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Ministro Epitacio Pessôa Memória Jurisprudencial Brasília 2009 Supremo Tribunal Federal

Ministro Epitacio Pessôa

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Ministro Epitacio PessôaMemória Jurisprudencial

Brasília2009

Supremo Tribunal Federal

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória JurisprudencialMINISTRO EPITACIO PESSÔA

MAURO ALMEIDA NOLETOBrasília

2009

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), PresidenteMinistro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003), Vice-PresidenteMinistro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000)Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006)Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009)

Diretoria-Geral Alcides Diniz da SilvaSecretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de MeloCoordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Leide Maria Soares Corrêa Cesar

Seção de Preparo de Publicações Cíntia Machado Gonçalves SoaresSeção de Padronização e Revisão Rochelle QuitoSeção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da Silva

Diagramação: Ludmila AraujoCapa: Jorge Luis Villar PeresEdição: Supremo Tribunal Federal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Noleto, Mauro Almeida.Memória jurisprudencial : Ministro Epitacio Pessôa / Mauro

Almeida Noleto. – Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2009. – (Série memória jurisprudencial)

318 p.

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Pessôa, Epitacio - Jurisprudência. I. Título. II. Série.

CDD-341.4191081

9 788561 435134

ISBN 978-85-61435-13-4

Ministro Epitacio Pessôa

APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar.

Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época.

Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das presta-ções de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da so-ciedade civil.

É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.É inegável sua importância como instrumento na concretização dos va-

lores expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.

O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser al-cançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.

A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso-lidação da função do próprio Poder Judiciário.

Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim-plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.

Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história na-cional em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.

Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam-bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.

Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático.

Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um ple-nário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.

O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à de-fesa das instituições democráticas.

Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.Entender suas decisões e sua jurisprudência.Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi-

nado julgamento.Interpretar a história de fortalecimento da instituição.Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre-

ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.

Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.

Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus vo-tos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre os juristas.

A injustiça dessa realidade não vem sem preço.O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma

visão burocrática do Tribunal.Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena-

gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.

Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for-mação do pensamento político brasileiro.

Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional.

As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.

Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-insti-tucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.

Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-mica própria dessas transformações.

Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.

Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO.

A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço.

Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos políti-cos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.

A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE.

O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér-prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.

É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi-

ciais da Constituição, sempre teve caráter fundamental.Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-polí-

tica, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo nor-mativo aos dispositivos da Constituição.

Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências.

Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.

Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron-teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais.

Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte.

Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO.

A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.

A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional.

Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil.

Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-polí-tico brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures.

E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura.

Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006Ministro Nelson A. Jobim

Presidente do Supremo Tribunal Federal

Aos servidores do Supremo Tribunal Federal.

“Forçoso é circunscrever o debate ao direito positivo e analisar a Constituição como ela é e não como devia ser.”

Epitacio Pessôa

SUMáRIO

ABREVIATURAS .......................................................................................... 17DADOS BIOGRÁFICOS ............................................................................... 19NOTA DO AUTOR ......................................................................................... 211. LINHA DO TEMPO: MINISTRO EPITACIO PESSÔA (1865-1942) ...... 252. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE EPITACIO PESSÔA —

O DIREITO E A POLÍTICA NA REPÚBLICA VELHA ........................... 343. ASPECTOS NORMATIVOS DA ORGANIZAÇÃO ORIGINÁRIA

DA JURISDIÇÃO DO STF: PARA COMPREENDER MELHORA JURISPRUDÊNCIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX ............................. 543.1 Recurso extraordinário .......................................................................... 563.2 Apelações e agravos: o começo da “crise do Supremo” ....................... 643.3 Habeas corpus: a doutrina brasileira na visão de Epitacio Pessôa ....... 66

4. EPITACIO PESSÔA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF ........................... 694.1 Tópicos da jurisprudência do STF nas matérias cível e criminal ......... 72

4.1.1 Guerra fiscal: imposto sobre intercurso de mercadorias .............. 724.1.2 Direito adquirido .......................................................................... 79

4.1.2.1 Vitaliciedade de cargo ..................................................... 794.1.2.2 Posse não gera direito adquirido ..................................... 814.1.2.3 Não há direito adquirido à manutenção de regime

jurídico ............................................................................ 864.1.2.4 Direito intertemporal pós-estado de sítio ........................ 89

4.1.3 Inconstitucionalidade de aposentadoria compulsória aos70 anos ......................................................................................... 92

4.1.4 Invocação indireta de fundamento constitucional ....................... 964.1.5 Sucumbência da Fazenda Nacional: duplo efeito e recurso

ex officio ...................................................................................... 974.1.6 Atribuições ambivalentes do Chefe de Polícia do Distrito

Federal ......................................................................................... 994.1.7 Despejo por condições sanitárias ............................................... 101

4.1.8 Peculato e co-autoria de pessoa estranha à administraçãopública ....................................................................................... 104

4.1.9 Um crime sui generis: depositário de moeda falsa .................... 1054.1.10 Crime continuado e aplicação da pena .................................... 106

4.2 Jurisdição extraordinária ..................................................................... 1074.2.1 Nulidade dos atos inconstitucionais ........................................... 1074.2.2 Prequestionamento ..................................................................... 1134.2.3 Irredutibilidade de vencimentos ................................................. 1154.2.4 Inamovibilidade de funcionários estaduais ................................ 117

4.3 Jurisdição das liberdades ..................................................................... 1194.3.1 Elegibilidade de militar e direito à disponibilidade ................... 1194.3.2 Direito da testemunha de ser ouvida no lugar de seu

domicílio .................................................................................... 1214.3.3 Bombardeio federal ao Palácio do Governo da Bahia: as

negativas do STF a impetrações de Rui Barbosa em defesa dedireitos políticos ........................................................................ 122

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 125APÊNDICE ................................................................................................... 129ÍNDICE NUMÉRICO ................................................................................... 315

ABREVIATURAS

AC Ação cautelar

ACi Apelação cível

ACr Apelação criminal

ADI Ação direta de inconstitucionalidade

Ag Agravo

AgP Agravo de petição

AI Agravo de instrumento

CA Conflito de atribuições

CJ Conflito de jurisdição

DJ Diário da Justiça

ED Embargos de declaração

HC Habeas corpus

LC Lei complementar

MS Mandado de segurança

RE Recurso extraordinário

RHC Recurso em habeas corpus

RvC Revisão criminal

SE Sentença estrangeira

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Supremo Tribunal de Justiça

DADOS BIOGRáFICOS

EPITACIO DA SILVA PESSÔA, filho do Tenente-Coronel José da Silva Pessôa e D. Henriqueta Barbosa de Lucena, nasceu em 23 de maio de 1865, na cidade do Umbuzeiro, província da Paraíba do Norte.

Órfão de pai e mãe aos oito anos de idade, foi admitido, em 1874, no Ginásio Pernambuco como um dos pensionistas da província de Pernambuco, que mantinha vinte órfãos no mesmo Ginásio, à custa do Tesouro Provincial.

Suprimida pela Assembléia Legislativa a verba destinada à educação de tais pensionistas, prosseguiu ele gratuitamente em seus estudos por determinação do então Presidente da província, Dr. Francisco Sodré.

Concluindo o curso secundário, matriculou-se, em 1882, na Faculdade de Direito do Recife, cujos estudos terminou com grande brilhantismo, recebendo o grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 13 de novembro de 1886.

Iniciou sua carreira pública com a nomeação de Promotor interino de Bom Jardim, em Pernambuco, passando a Promotor efetivo da comarca de Cabo, em 18 de fevereiro de 1887, cargo que exerceu até junho de 1889, quando foi exonerado.

Proclamado o regime republicano, aceitou o convite para Secretário do Governo do Dr. Venancio Neiva, na Paraíba, assumindo o exercício em 21 de dezembro de 1889.

Em setembro de 1890, foi eleito Deputado à Constituinte pelo Estado da Paraíba.Atendendo ao seu curso brilhantíssimo e à cultura já revelada em várias pu-

blicações, foi nomeado, em decreto de 23 de fevereiro de 1891, Lente Catedrático da Faculdade de Direito do Recife.

Em decreto de 15 de novembro de 1898, foi nomeado Ministro da Justiça e Negócios Interiores, no Governo do Dr. Campos Sales, cargo de que foi exonerado, a pedido, em decreto de 6 de agosto de 1901.

Em decreto de 25 de janeiro de 1902, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, tomando posse a 29 seguinte, preenchendo a vaga ocorrida com o falecimento do Barão de Pereira Franco, e por outro, de 7 de junho desse ano, o Governo resolveu nomeá-lo Procurador-Geral da República, sendo exonerado, a pedido, a 21 de outubro de 1905.

Como Procurador da República, reivindicou para o patrimônio nacional a pro-priedade dos terrenos de marinha, escrevendo sobre o assunto notável monografia, repu-tada o melhor trabalho existente sobre a matéria.

A convite do Barão do Rio Branco, elaborou em 1909 o projeto do Código de Direito Internacional Público.

Foi aposentado em decreto de 17 de agosto de 1912.

Em 1912 foi nomeado Delegado do Brasil no Congresso de Jurisconsultos Americanos, do qual foi aclamado Presidente pelo voto unânime dos representantes de todas as repúblicas do continente.

Foi eleito Senador em 1912, e, posteriormente, Presidente da República, tomando posse em 28 de julho de 1919, permanecendo neste cargo até 15 de novembro de 1922, preenchendo a vaga aberta com a morte de Rodrigues Alves, que havia falecido antes de assumir as funções.

No período do seu governo, o Brasil recebeu a visita dos Reis da Bélgica, que chegaram ao Rio de Janeiro em 19 de setembro de 1920, e do Presidente da República Portuguesa, Dr. Antônio José de Almeida, de 18 a 27 de setembro de 1922.

Dotado de grande talento, ilustração e vasta cultura, são notáveis os trabalhos que publicou, quer em pareceres, memoriais, relatórios, discursos parlamentares, quer em atos como chefe da nação e sentenças arbitrais em questões de limites entre os Estados de São Paulo e Paraná, Minas Gerais e Goiás.

Designado por vinte e um grupos nacionais, foi o nome do Dr. Epitacio Pessôa sufragado unanimemente e proclamado membro titular da Corte Permanente de Justiça Internacional, em 10 de setembro de 1923.

Seu alto saber jurídico mereceu da Universidade de Buenos Aires a concessão do grau de Doutor in honoris causa.

Os relevantes serviços que prestou foram reconhecidos pela Santa Sé e por diver-sas nações, que concederam ao Dr. Epitacio Pessôa as seguintes condecorações: Grã-Cruz da Legião de Honra, da França; Grã-Cruz de Leopoldo, da Bélgica; Grã-Cruz de São Maurício e São Lázaro, da Itália; Grã-Cruz da Ordem de Santo Olavo, da Noruega; Grã-Cruz, com colar, da Ordem do Banho, da Inglaterra; Grã-Cruz do Libertador Simão Bolivar, da Venezuela; Grã-Cruz da Ordem do Sol, do Peru; Grã-Cruz da Ordem do Crisântemo, do Japão; Cavaleiro da Ordem Superior de Cristo, da Santa Sé; Cavaleiro da Ordem do Elefante, da Dinamarca; Cavaleiro da Ordem dos Serafins, da Suécia; Cavaleiro da Ordem da Águia Branca, da Polônia; Banda das Três Ordens, de Portugal; a mais alta distinção da China e a medalha de 1ª classe Al Mérito do Chile.

Faleceu em 13 de fevereiro de 1942, no sítio que possuía em Nogueira, Município de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, sendo consignado pela Corte um voto de pesar, na reabertura dos trabalhos, em sessão de 7 de abril de 1942.

O Supremo Tribunal Federal comemorou o centenário de seu nascimento, em sessão de 24 de maio de 1965, quando falou pela Corte o Ministro Cândido Mota Filho, pela Procuradoria-Geral da República o Dr. Oswaldo Trigueiro e pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Esdras Gueiros.

Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: Dados biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet.

NOTA DO AUTOR

Foi com muita honra e gratificação pessoal que recebi o convite para participar deste esforço coletivo de preservação da memória jurisprudencial do STF. Desafio fasci-nante, mas carregado de responsabilidade.

Coube a mim a elaboração do perfil jurídico do Ministro Epitacio Pessôa, com base na identificação e na análise de sua obra jurisprudencial, produzida ao longo do período de dez anos em que ocupou a vaga de número 12 no Supremo. Sorte a mi-nha, analista judiciário e ex-assessor de dois Ministros da Casa (Sepúlveda Pertence e Cármen Lúcia), fui levado, pela leitura dos votos de Pessôa, aos primeiros momentos da experiência republicana no Brasil e ao (re)começo da história do próprio Supremo Tribunal Federal.

Além das inúmeras descobertas que uma pesquisa assim haveria de proporcio-nar, a escolha também tornou possível conhecer melhor a biografia dessa personalidade tão ímpar da história brasileira. Epitacio Pessôa foi um “fenômeno” político daqueles tempos iniciais em que se praticou a experiência republicana e federativa no Brasil. Ocupou os cargos mais importantes nos três Poderes da República: Constituinte em 1891; Ministro da Justiça de Campos Salles (1898); Ministro do Supremo aos 37 anos incompletos (1902-1912), onde atuou nos três primeiros anos como Procurador-Geral da República; Senador (1912); Presidente da República (1919-1922); e Juiz da Corte Internacional de Justiça, sediada na cidade de Haia (1923).

Órfão de pai e mãe aos oito anos de idade, na Província de Pernambuco, a traje-tória ascendente de Epitacio Pessôa era mesmo improvável. Precisou combinar mérito pessoal com a “imprevista coincidência de circunstâncias felizes” — a que alude Sobral Pinto — para elevar-se aos pontos mais altos da carreira de estadista. A notável singula-ridade histórica e os lances ficcionais da biografia de Epitacio Pessôa foram motivações latentes desta pesquisa.

Por outro lado, a figura histórica de Pessôa também revela os traços marcantes da elite jurídica brasileira da época, desde as características dominantes do recrutamento de quadros para a composição da cúpula do Judiciário, até as contradições próprias de uma nação que pretendia reinventar-se, na difícil e tumultuada transição do Império (unitário) para a República federativa, da escravidão para a sociedade de direitos, de um modelo constitucional europeu, em que o Legislativo tinha precedência, para a inspira-ção norte-americana do controle judicial da constitucionalidade das leis e da defesa da nova e complexa ordem federativa.

A pesquisa teve assim a dupla preocupação de recuperar as manifestações de-cisivas do Ministro Pessôa em sua passagem pelo STF, mas também, a partir delas, procurou revelar características marcantes da jurisdição e das instituições republicanas, àquela altura de nossa história nacional, ainda em fase de franca formação.

Para atingir de modo adequado esse segundo objetivo, optou-se por apresentar os dados biográficos do Ministro Epitacio Pessôa na forma de uma linha anual do tempo. Cronologia que começa com seu nascimento em 1865 e vai até a edição de suas Obras Completas, em 1965. Na medida do possível, a descrição dos fatos em ordem cronológica procurou conciliar o relato de eventos relevantes na política, nas artes e nas ciências, na economia e no direito brasileiro, sem perder de vista, obviamente, os fatos importantes da trajetória do biografado. Espera-se, com isso, ambientar o leitor destas páginas no tempo de Epitacio Pessôa, para que sua obra jurídica possa ser compreendida também pelo ângulo do contexto em que foi produzida.

Algumas obras, em particular os trabalhos de Leda Boechat Rodrigues, Emilia Viotti da Costa, Aliomar Baleeiro, Paulo Bonavides, Laurita Pessoa, Afonso Arinos de Melo Franco, Orlando Bittar, Andrei Koerner, entre muitas outras, foram fontes biblio-gráficas de grande importância para a compreensão e reconstrução do contexto institu-cional em que atuou o Ministro Pessôa, o STF da primeira década do século XX, objeto do capítulo seguinte à linha do tempo. Ali a preocupação foi mostrar fatos importantes da história do STF, desde a sua criação, em 1890, até o momento em que o Tribunal pas-sou por sua primeira renovação, justamente o período de Epitacio Pessôa como Ministro.

A revisão da bibliografia sobre o Supremo da época, embora não acrescente nada novo, cumpre bem, a meu ver, a tarefa desta coleção, que é voltada para a preservação da memória do Tribunal, neste caso, a partir da identificação do protagonismo de um de seus mais notáveis Ministros. Essa é também a razão para as extensas citações e notas de rodapé: a documentação — na medida do possível, de modo a não inviabilizar a con-tinuidade do texto principal — do relato e da análise dos que já se dedicaram a estudar a história e o funcionamento de uma instituição tão vital como o STF.

Em seguida, o livro conta ainda com uma breve explanação sobre a estrutura or-gânica da jurisdição do Supremo Tribunal Federal do início do século passado, as vias e os instrumentos processuais mais utilizados, as competências e os limites dessa jurisdi-ção, com a crise de congestionamento que já se insinuava. Além do apoio bibliográfico das obras de história do STF já mencionadas, esta pesquisa sobre a obra do Ministro Epitacio Pessôa encontrou duas manifestações preciosas de sua autoria: uma monografia e um discurso no Senado, que permitiram retratar com fidelidade histórica as origens da prática do recurso extraordinário brasileiro e do habeas corpus, respectivamente. O capítulo registra também elucidativo debate entre juristas, ocorrido em 1912, sobre as propostas de reforma do Judiciário federal. Participaram nomes de peso como Clóvis Beviláqua, Pedro Lessa, Enéas Galvão e Epitacio Pessôa. A nota curiosa é que o debate foi promovido pelo Jornal do Commercio, que fez distribuir às autoridades um questio-nário. As respostas foram publicadas nas edições periódicas do jornal e compiladas no 117º volume da revista O Direito, de 1912.

E assim, bem definido o contexto histórico e institucional da obra de Epitacio Pessôa no Supremo, segue-se seu exame direto, a descrição dos acórdãos e votos de sua

lavra, que proporcionaram a este pesquisador a surpresa de descobrir as origens de tópi-cos seculares da jurisprudência do nosso STF. Essa é a parte mais extensa do trabalho, mas foi, certamente, a mais fecunda e prazerosa de executar.

É preciso dizer, antes de concluir esta nota, que a principal fonte da pesquisa foi a coletânea realizada pelo Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação, editada em 1965, ano do centenário de nascimento de Epitacio Pessôa, e que reúne, no volume III das Obras Completas de Epitacio Pessôa, praticamente todos os seus acór-dãos e votos. Ali estava preservada uma parte do patrimônio cultural do STF. Foi lá que este livro nasceu.

Esta é, portanto, uma releitura da obra do grande Epitacio Pessôa, Ministro do STF, mas é, sobretudo, uma nova documentação de sua participação destacada na fun-dação da jurisprudência do Tribunal. Seu autor se permite alimentar a expectativa de que as páginas seguintes possam de fato cumprir esse papel, possam contribuir para reforçar a nobreza e a autoridade do STF pela demonstração de seu papel histórico na preserva-ção das liberdades democráticas, da unidade nacional, do governo das leis, mas funda-mentalmente por tudo aquilo que pode sempre representar a ação prudente do Supremo na promoção da justiça para a sociedade brasileira.

Brasília, junho de 2009.O Autor.

25

Ministro Epitacio Pessôa

1. LINHA DO TEMPO: MINISTRO EPITACIO PESSÔA (1865-1942)1

1865 — Nasce Epitacio Lindolpho da Silva Pessôa, em 23 de maio, na fazenda Marcos de Castro, na localidade do Umbuzeiro, serra do Cariri parai-bano, filho do coronel José da Silva Pessôa, senhor de engenho, e de sua segunda esposa, Dona Henriqueta de Lucena, irmã do Barão de Lucena.

1870 — Em dezembro, o jornal carioca A República publica o “Manifesto Republicano”, assinado por mais de cinqüenta profissionais liberais (advogados, médicos, engenheiros, professores), que inaugura publica-mente a decadência da monarquia e a intenção de implantação do fede-ralismo republicano no Brasil: “Se carecêssemos de uma fórmula para assinalar, perante a consciência nacional, os efeitos de um e outro re-gime, nós a resumiríamos assim: Centralização — Desmembramento. Descentralização — Unidade.” Termina a Guerra do Paraguai, com a morte do ditador positivista Francisco Solano Lopez, na batalha de Cerro Corá.

1873 — Falecem, infectados por varíola, na cidade do Recife, no intervalo de apenas um mês, o pai e a mãe de Epitacio Pessôa, então com oito anos de idade. Por influência do tio, o Barão de Lucena, Presidente da Província de Pernambuco, Epitacio recebe uma bolsa de estudos no Ginásio Pernambucano.

1882 — Epitacio Pessôa ingressa na Faculdade de Direito do Recife, no mesmo ano em que Tobias Barreto passa a integrar a Congregação de profes-sores daquela que passaria a ser conhecida como a “Casa de Tobias”.

1886 — A três anos da queda da monarquia, no dia 13 de novembro, Epitacio Pessôa cola grau na Faculdade de Direito do Recife. Na sua turma de formandos estavam Pires de Albuquerque, futuro ministro do Supremo, e Graça Aranha, escritor modernista.

1887 — Epitacio é nomeado promotor público da cidade do Cabo/PE.

1 Esta cronologia foi baseada nas seguintes obras:GOMES, Ângela de Maria de Castro et al. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira: CPDOC, 2002.MELLO FILHO, José Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República).

2. ed. Brasília: STF, 2007.NOSSO Século: Memória Fotográfica do Brasil no Século 20. São Paulo: Abril Cultural, 1981

(1900/1910: A Era dos Bacharéis, 1).NOSSO Século: Memória Fotográfica do Brasil no Século 20. São Paulo: Abril Cultural, 1981

(1910/1930: Anos de Crise e Criação, 2).RAJA-GABALGIA Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José

Olympio, 1951.

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Memória Jurisprudencial

1888 — A princesa Isabel assina a Lei 3.353, a “Lei Áurea”, na condição de Regente, durante viagem de D. Pedro II à Europa. Estava abolida a es-cravidão no Brasil.

1889 — Último país a abolir a escravidão negra e única monarquia americana, o Brasil imperial, por uma dessas estranhas coincidências históricas, manda expressiva delegação a Paris, para participar da Exposição Universal Comemorativa do Centenário da Revolução Francesa, a “Exposição Tricolor”. O evento grandioso celebrava o centenário da “Grande Revolução” com a inauguração da Torre Eiffel, símbolo co-lossal e iluminado dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. No Rio de Janeiro, uma conspiração militar proclama a República no Brasil no dia 15 de novembro. Forças do Exército saem às ruas, ocupam prédios públicos, rendem o gabinete do Conselho de Ministros e ins-talam um governo provisório. Para a edificação das novas instituições republicanas, toma-se como exemplo a experiência norte-americana, inclusive o próprio nome do país, que passava a se chamar “Estados Unidos do Brazil”, em alusão ao federalismo escolhido como novo modelo político de organização territorial. Era a vitória das províncias, principalmente São Paulo e Minas Gerais, que passavam à nova condi-ção de Estados.

1890 — Epitacio Pessôa é eleito, pelo Estado da Paraíba, Deputado constituinte. O Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, do Governo Provisório, cria o Supremo Tribunal Federal e institui a Justiça Federal no Brasil. Era Ministro da Justiça o futuro Presidente Campos Salles, que também faz publicar naquele ano o novo Código Penal brasileiro. No campo eco-nômico, a primeira experiência republicana foi a tentativa de moderni-zação e industrialização imediatas do país, que deveria vir da abertura total do mercado brasileiro para a entrada de capitais estrangeiros, seguida de permissão para bancos privados emitirem moeda, da edi-ção de uma nova e liberal lei das sociedades anônimas, além da criação de um mercado de ações concentrado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Essa aposta no mercado de ações acabou provocando o surto especulativo e inflacionário que ficaria conhecido como o “encilha-mento”, expressão alusiva ao alinhamento inicial dos cavalos no turfe.

1891 — É promulgada, em 24 de fevereiro, a Constituição da República Fede-rativa dos Estados Unidos do Brasil. No dia anterior, Epitacio era no-meado Lente Catedrático da Faculdade de Direito do Recife. Deodoro dissolve o Congresso. Os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul reagem a essa medida e recebem o apoio da Marinha, que inicia uma revolta na Baía de Guanabara. Para evitar a guerra ci-vil, Deodoro renuncia e é substituído pelo marechal Floriano Peixoto.

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Floriano promove a substituição dos governantes de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Os gaúchos demonstram descontentamento com o novo – e imposto – governante.

1892 — Em 6 de abril, treze generais protestam contra a falta de convocação da eleição presidencial. Manifestações de rua em apoio a Deodoro provo-cam a reação violenta de Floriano, que ordena a prisão e a deportação de vários civis, inclusive parlamentares, apesar de suas imunidades. Entre os presos, Olavo Bilac e o almirante Wanderkolk, que havia sido ministro do Governo Provisório. Rui Barbosa pede ao STF habeas corpus em favor dos presos (HC 300) que permaneciam no cárcere ou no desterro, após extinguir-se o prazo de 72 horas do estado de sítio. O Supremo nega a ordem pedida, contra o voto isolado do Ministro Pisa e Almeida, cujas mãos Rui teria beijado num gesto comovido de agra-decimento. No Rio Grande do Sul, as forças locais promovem o movi-mento separatista que ficou conhecido como a Revolução Federalista.

1893 — Em apoio ao movimento gaúcho, a Marinha inicia na capital a Revolta da Armada. Os revoltosos dominam a baía da Guanabara e bombar-deiam a cidade. Rui Barbosa renuncia ao mandato de Senador e busca refúgio em Buenos Aires, mudando-se depois para Londres, onde permanece até o fim do governo de Floriano. As autoridades republi-canas recebem a informação de que no povoado de Canudos, no sertão baiano, concentravam-se “fanáticos religiosos e monarquistas”, lide-rados por Antônio Vicente Mendes Maciel, o “Antônio Conselheiro”.

1894 — Com o apoio financeiro de São Paulo, Floriano consegue derrotar os movimentos do Sul e da Marinha, mas, em troca, concorda com a rea-lização de eleições que levarão ao poder o primeiro Presidente civil, o paulista Prudente de Morais. No final de seu governo, Floriano nomeia vários ministros para o Supremo, encerrando o período de recesso for-çado a que estava submetido o Tribunal há meses, por falta de quorum para julgamento dos feitos. Em novembro, uma mudança legislativa (Lei 221) estabelece que o Presidente e o Vice-Presidente do STF pas-sariam a prestar juramento perante o próprio Tribunal, não mais pe-rante o Presidente da República.

1897 — As Forças da União, após sucessivas e surpreendentes derrotas milita-res, finalmente derrotam os sertanejos, massacrando-os e pondo fim à Guerra de Canudos, no sertão da Bahia. Os acórdãos do Supremo pas-sam a ser publicados na Revista de Jurisprudência.

1898 — O Supremo, na sessão de 16-4-1898, no julgamento do HC 1.073, revê jurisprudência firmada em 1892 e concede o habeas corpus requerido por Rui Barbosa em favor de presos políticos para então consagrar a

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Memória Jurisprudencial

tese de que cessam, com o fim do estado de sítio, todas as medidas de repressão durante ele tomadas pelo Executivo. Epitacio é convi-dado para o cargo de Ministro da Justiça e Negócios Interiores pelo Presidente da República, Campos Salles, eleito no dia 1º de março com cerca de 420.000 votos. A grande obra jurídica de Epitacio Pessôa no cargo de Ministro da Justiça foi a elaboração do projeto de Código Civil, cuja execução foi por ele confiada ao jovem jurista cearense Clóvis Beviláqua, seu contemporâneo de faculdade.

1900 — A população brasileira atinge mais de 17 milhões de habitantes, a maioria (64%) ainda no campo. O Brasil detém então o monopólio mundial da produção de café, favorecido por doenças ocorridas nos ca-fezais asiáticos e por fatores econômicos. A Revolta dos Cocheiros, um movimento grevista, estoura em janeiro e provoca violentos choques entre manifestantes e a polícia durante três dias. Machado de Assis publica Dom Casmurro, e Chiquinha Gonzaga compõe Ô Abre Alas, considerada a primeira marchinha brasileira. Campos Salles implanta a “política dos governadores”, pacto oligárquico que vai caracterizar a aliança governista durante toda a primeira república. Epitacio Pessôa apresenta o projeto de Código Civil ao Presidente da República, que, em 17 de novembro, remete-o ao Congresso Nacional. Como se sabe, a tramitação do projeto do primeiro Código Civil brasileiro levaria ainda mais 16 anos. Somente no governo de Wenceslau Braz, tendo como re-lator geral dos trabalhos no Senado o próprio Epitacio Pessôa, o novo código seria finalmente aprovado.

1901 — É publicado, em janeiro, o novo Código de Ensino, projeto do Ministro da Justiça, Epitacio Pessôa, que tornava mais rigorosa a disciplina escolar, inclusive com medidas de repressão que envolviam até a con-vocação da polícia. No decorrer do ano, os estudantes da Capital pro-movem várias manifestações e protestos contra o Código. A relutância do Presidente Campos Salles, preocupado com a sucessão que se avizi-nhava, em tomar medidas mais enérgicas contra os manifestantes, leva Epitacio a apresentar em agosto sua carta de demissão, que foi aceita. Sylvio Romero publica os Ensaios de Sociologia e Literatura.

1902 — Campos Salles, em seu último ano de governo, por decreto de 25 de janeiro, nomeia Epitacio da Silva Pessôa, pouco antes de completar 37 anos, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga aberta com o falecimento do Barão de Pereira Franco. Outro decreto presidencial, de 7 de junho, traz a nomeação de Epitacio Pessôa para o cargo de Procurador-Geral da República (cargo que era exercido, de acordo com a Constituição de 1891, por um dentre os membros da

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Corte). Rodrigues Alves é eleito Presidente da República. Começa a ser editada a revista O Malho.

1903 — Oswaldo Cruz, médico sanitarista, é nomeado para a presidência da Diretoria Geral de Saúde Pública, criada em janeiro, no Rio, que passa por um surto de febre amarela. Euclides da Cunha ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em agosto, é deflagrada uma greve geral na cidade do Rio de Janeiro por melhores salários e pela jornada de trabalho de 8 horas. Em novembro, o Brasil assina com a Bolívia o “Tratado de Petrópolis”, obra diplomática do Barão do Rio Branco, que garante a incorporação do Acre ao país, após pagar indenização no va-lor de dois milhões de libras esterlinas ao país boliviano.

1904 — O jornal Correio da Manhã lidera uma campanha contra as medidas de combate à febre amarela instituídas por Oswaldo Cruz. O Prefeito da Capital, Pereira Passos, dá início às obras de reforma urbana, demo-lindo prédios e cortiços para a abertura de novas avenidas, é o “bota-abaixo” Em outubro é aprovada a lei da vacinação obrigatória contra a varíola. Em novembro explode a Revolta da Vacina, que provoca choques entre a população e as forças de repressão. O país sofre com a carestia e o desemprego, ingredientes que, somados à truculência dos agentes da vacinação obrigatória, alimentaram o calor e a violência da batalha urbana. Registram-se centenas de mortes. Quando o governo consegue retomar o controle da cidade, já na vigência de estado de sítio, prende centenas de pessoas e as despacha para o Acre, inclusive políticos e militares que aproveitaram a revolta para conspirar contra o Governo.

1905 — O Procurador-Geral da República, Epitacio Pessôa, apresenta no Plenário do STF seu discurso de acusação no rumoroso “caso das pedras”, em que o Presidente do Tribunal de Contas da União e o Ministro da Fazenda eram acusados de crimes de peculato. Em março, termina o estado de sítio decretado para conter a revolta contra a vaci-nação obrigatória. São lançadas as candidaturas de Afonso Pena e Nilo Peçanha, para Presidente e Vice-Presidente da República. Caem os pre-ços do café no mercado internacional, há risco de crise de superprodu-ção, o que acaba por se confirmar. Epitacio Pessôa, após atritos com o Ministro da Justiça, J. J. Seabra, pede demissão da Procuradoria-Geral e retoma as funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

1906 — Em janeiro, os Governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro reúnem-se na cidade de Taubaté, onde fecham um acordo para tentar contornar a crise do café. Pelo acordo, o Governo central assu-miria o compromisso de comprar estoques e estabelecer uma prática de preços mínimos para tentar segurar o valor do produto. Em outubro,

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Afonso Pena assume a Presidência da República. Nesse mesmo mês, Santos Dumont realiza o primeiro vôo público de um veículo mais pe-sado que o ar, o 14 Bis. Ao longo do ano, diversas greves operárias são deflagradas em São Paulo, no Rio e no Recife.

1907 — Em junho, realiza-se na cidade de Haia, na Holanda, a Segunda Conferência Internacional de Paz, com a debutante participação bra-sileira. Nosso principal representante é o Senador Rui Barbosa, cujo destaque obtido com sua participação rende a ele o título de “águia de Haia”. É publicada a Lei Adolpho Gordo, que permite a expulsão do Brasil de estrangeiros acusados de “comprometerem a segurança nacional”. Toma posse do cargo de Ministro do STF o advogado e pro-fessor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Pedro Lessa.

1908 — Conflitos armados na Bahia e em Goiás provocam a intervenção do Governo federal. Uma greve de cinco dias na companhia de gás pa-ralisa o Rio de Janeiro, que fica sem luz. Em agosto, tem início a ex-posição nacional comemorativa do centenário da abertura dos portos no Brasil. Instalada na Praia Vermelha (Rio de Janeiro), a exposição tinha a finalidade de mostrar aos estrangeiros as melhorias feitas na Capital pela reforma urbana de Pereira Passos e os avanços sanitários coordenados por Oswaldo Cruz. O navio Kasato Maru chega ao Porto de Santos trazendo o primeiro grupo de imigrantes japoneses. Epitacio Pessôa pede licença do Supremo e faz com a família uma viagem de seis meses à Europa, onde passa por tratamento de saúde. Nasce a re-vista O Careta. Morre Machado de Assis.

1909 — Com a morte de Afonso Pena, no exercício do mandato presidencial, assume o cargo o Vice-Presidente, Nilo Peçanha. Rui Barbosa lança sua candidatura à Presidência da República em oposição à candidatura do marechal Hermes da Fonseca. Rui, em campanha, reclama o po-der para os civis. É inaugurado o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Carlos Chagas descobre a causa de uma doença muito comum no meio rural; o micróbio, transmitido pela picada do inseto barbeiro, recebe o nome de Trypanosoma Cruzi em homenagem ao sanitarista Oswaldo Cruz. Durante esse ano, a Lei Adolpho Gordo é aplicada e são expul-sos do país 25 militantes socialistas e anarquistas. Tem início a for-mulação da “doutrina brasileira do habeas corpus”, no julgamento do “caso do Conselho Municipal do Distrito Federal” (HC 2.794, Relator o Ministro Godofredo Cunha).

1910 — A “campanha civilista” de Rui Barbosa intensifica-se, conseguindo muitas adesões em São Paulo. Pela primeira vez, os candidatos procu-ram consolidar o apoio popular com a realização de grandes comícios e

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atos públicos. Numa eleição muito disputada contra Rui Barbosa, o ma-rechal Hermes da Fonseca é eleito Presidente da República. É criado o Serviço de Proteção ao Índio sob a direção do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Os marinheiros dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo amotinam-se sob o comando de João Cândido (“Almirante Negro”), exigindo a extinção das penas de açoites prati-cadas na Marinha do Brasil. Era a Revolta da Chibata. O Jornal do Commercio de 15 de julho faz severas críticas ao Supremo, que “sacri-fica a justiça e a lei à influência nefasta dos interesses e dos empenhos”, em alusão às decisões do Tribunal proferidas em habeas corpus moti-vados por conflitos políticos nos Estados.

1911 — O Governador eleito do Estado de Pernambuco, Rosa e Silva, é de-posto pelo candidato derrotado, coronel Dantas Barreto, com apoio dos militares e do Governo federal. Tem início a chamada “política das salvações”, do regime do marechal Hermes e de seu líder no Senado, o gaúcho Pinheiro Machado. Epitacio é operado na Europa para retirada da vesícula.

1912 — Bombardeio de Salvador por forças federais obriga a deposição do Governador, Aurélio Vianna. Sucessivos habeas corpus impetrados por Rui Barbosa no Supremo Tribunal Federal são considerados preju-dicados pela maioria dos Ministros, que acompanham a argumentação do Ministro Epitacio Pessôa, recém-chegado de sua convalescença na França. Em 17 de agosto de 1912, Epitacio Pessôa, por recomenda-ção médica, aposenta-se do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Logo depois de deixar o Tribunal, Epitacio é convidado por lideranças dos dois partidos da Paraíba para ocupar a vaga de Senador pelo Estado, com a condição de poder se ausentar do país pelo tempo que fosse necessário ao seu restabelecimento. Epitacio, após diversos telegramas, aceita, é eleito e reconhecido. Nos quatro últimos dias da sessão legislativa, comparece ao Senado e, em seguida, parte com toda a família para a Europa, de onde retornaria apenas em 1914, três meses antes de rebentar a primeira Guerra Mundial.

1913 — Realiza-se no Rio de Janeiro um comício contra a carestia, reunindo mais de dez mil pessoas. Morre Campos Sales. Estoura a Revolução do Juazeiro, no Ceará: o Padre Cícero alia-se aos coronéis contra o Governador Franco Rabelo, imposto pelo governo de Hermes da Fonseca, que decreta estado de sítio. Rui Barbosa funda o Partido Liberal.

1914 — Venceslau Braz é eleito Presidente da República. Em julho, o Império Austro-húngaro declara guerra à Sérvia. Começa a Primeira Guerra Mundial.

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1915 — O Senador Pinheiro Machado é assassinado por Francisco Manso de Paiva, no Rio de Janeiro. Em 26 de dezembro o Congresso Nacional aprova o Código Civil brasileiro.

1916 — Aumentam os protestos e as greves contra a carestia. O tenor italiano Enrico Caruso visita o Brasil e se apresenta em São Paulo, interpre-tando a ópera francesa Carmen, de Bizet. O serviço militar torna-se obrigatório em todo o Brasil.

1917 — Submarinos alemães disparam torpedos contra o navio Paraná, na costa francesa. Em represália, o Governo brasileiro confisca navios alemães ancorados nos portos do país. Em junho, três milhões de sacas de café estocadas são queimadas, para evitar a queda nos preços. Anita Malfatti realiza exposição de suas obras em São Paulo. Manuel Bandeira publica A Cinza das Horas. A música Pelo Telefone, de Donga, passa a ser o primeiro samba gravado no Brasil. Em outubro, o navio brasileiro Macau é afundado pelos alemães. O Brasil declara guerra à Alemanha.

1918 — Rodrigues Alves e Delfim Moreira são eleitos Presidente e Vice-Presidente da República. A “gripe espanhola” faz milhares de ví-timas. Em São Paulo, oito mil pessoas morrem em apenas quatro dias. O Presidente eleito, Rodrigues Alves, adoece contaminado pela moléstia. Delfim Moreira assume interinamente. Morre Olavo Bilac. Monteiro Lobato publica Urupês. Em novembro, termina a Primeira Guerra, com a assinatura de armistício entre a Alemanha e os Aliados.

1919 — Epitacio Pessôa chefia a delegação brasileira que parte, em janeiro, para a Conferência de Paz, em Versalhes. No final de janeiro, morre no Rio Rodrigues Alves. A Constituição determinava a realização de novas eleições, que são convocadas para abril. Mesmo ausente do país, Epitacio Pessôa é eleito Presidente da República com 249.324 votos, contra 118.303 votos obtidos por Rui Barbosa.

1920 — O Presidente Epitacio cria a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por ordem sua, fica proibida a participação de jogadores negros no selecionado brasileiro de futebol. Monteiro Lobato publica Negrinha.

1921 — Hermes da Fonseca é eleito Presidente do Clube Militar. Em outu-bro, são publicadas no Correio da Manhã cartas atribuídas a Artur Bernardes ofensivas ao marechal Hermes. Freire Júnior compõe a marchinha carnavalesca Ai, Seu Mé!, cuja letra satirizava o candidato à Presidência Artur Bernardes. A música é proibida e seu autor, preso.

1922 — Ano do centenário da Independência do Brasil. Em fevereiro, realiza-se em São Paulo a Semana de Arte Moderna. No dia 25 de março, é fundado no Rio o Partido Comunista Brasileiro. Artur Bernardes é

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eleito Presidente da República. O Exército intervém nas eleições de Pernambuco, gerando uma reclamação de Hermes da Fonseca. Epitacio Pessôa manda fechar o Clube Militar e ordena a prisão do marechal Hermes. As guarnições da Vila Militar, da Escola Militar e do Forte de Copacabana se rebelam no dia 5 de julho e pedem a deposição de Epitacio. No dia seguinte, os revoltosos do Forte de Copacabana mar-cham pela Avenida Atlântica, sendo fuzilados pelas tropas do Governo. Apenas dois sobrevivem. No dia 15 de novembro, o mineiro Artur Bernardes toma posse na Presidência da República.

1923/ — Epitacio Pessôa ocupa o cargo de Juiz da Corte Permanente de Justiça1930 Internacional, sediada em Haia, na Holanda.1942 — No dia 13 de fevereiro, aos 76 anos, falece Epitacio Pessôa, na cidade

de Petrópolis, Rio de Janeiro.1965 — No ano do centenário de seu nascimento, os restos mortais de Epitacio

Pessôa e de sua esposa, D. Mary Sayão Pessôa, são transportados do Rio de Janeiro para João Pessôa, na Paraíba. No mês de maio, o Congresso Nacional e o STF realizam sessões solenes em homenagem ao centenário de nascimento de Epitacio Pessôa. O Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação, publica as Obras Completas de Epitacio Pessôa.

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2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE EPITACIO PESSÔA — O DIREITO E A POLÍTICA NA REPÚBLICA VELHA

Epitacio Pessôa foi Ministro do STF pelo período de dez anos, entre 1910 e 1912. Tinha apenas 36 anos de idade quando foi nomeado, mas já havia sido Ministro da Justiça de Campos Salles (1898-1901) e Deputado Constituinte pelo Estado da Paraíba em 1891. Depois de se aposentar do cargo de Ministro do STF, chegaria a Senador (1912-1919) e Presidente da República (1919-1922). Fora do comum, a sua biografia já foi escrita, pela filha, Laurita Pessoa Raja-Gabaglia, em edição do ano de 1951.

Sua obra jurídica e trajetória política foram fartamente documentadas com a publicação das Obras Completas de Epitacio Pessôa, coleção editada pelo Ministério da Educação em 1965. O volume III dessa coleção, cujo prefá-cio é assinado por Sobral Pinto, é dedicado aos acórdãos e votos do Ministro Epitacio Pessôa no STF. Estudiosos da história do Supremo, como Leda Boechat Rodrigues, Emilia Viotti da Costa, Aliomar Baleeiro e Andrei Koerner, escre-veram importantes passagens de suas respectivas obras sobre o protagonismo do Ministro Epitacio Pessôa na formação da jurisprudência do STF durante aquela primeira e decisiva década do século XX.

Com efeito, o estudo das fontes primárias e secundárias de e sobre Epitacio Pessôa ilumina um período especialmente importante, a fundação das instituições republicanas do país. As balizas e os propósitos desta coleção, Memória Jurisprudencial, do STF, impõem, todavia, maior delimitação desse foco de luz. O resultado, no entanto, é parecido. Descobre-se, a partir da leitura das decisões das quais participou ativamente o Ministro Pessôa, mas principal-mente a partir dos vários casos que julgou, na maior parte das vezes liderando a maioria do Tribunal, a edificação das instituições jurídicas nacionais: a duali-dade da Justiça e a unidade do Direito; a prevalência da Constituição (formal e materialmente) sobre as leis estaduais; o modo presidencialista de composição do Judiciário, repetido no âmbito estadual; o legalismo positivista e o raciocínio lógico-dedutivo que o acompanha; a utilização de instrumentos jurídico-pro-cessuais de caráter mandamental contra ilegalidades e abusos (mandados proi-bitórios, interditos, habeas corpus) para a garantia de direitos fundamentais.

Esse período, contudo, não evoca apenas memórias edificantes. Houve também muitos motivos para acreditar que, ao lado da cultura republicana de direitos que o Supremo começava fomentar, eram mantidos e até aprimora-dos mecanismos de fuga da legalidade constitucional: exploração do trabalho, fraudes eleitorais, oligarquias políticas, patrimonialismo, autoritarismo polí-tico. Afinal, a história republicana brasileira não registra outro período como o que experimentamos na vigência da Constituição de 1988, vinte anos sem

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golpes de Estado ou decretação de estado de sítio no país, e com a vigência simultânea de normas que estabeleçam: a realização de concursos públicos para o preenchimento dos cargos do Estado; a licitação para a contratação de serviços e aquisição de bens; a universalidade do sufrágio popular e o sigilo do voto; o controle concentrado da constitucionalidade das leis; a defesa do consumidor; o direito de greve. Na atualidade, até os conflitos sociais, como os conflitos pela terra no campo ou pela moradia nas cidades, ou ainda os con-flitos de gênero, de raça, étnicos, trabalhistas, todos encontram amparo e fun-damento na própria Constituição, o que, de algum modo, os coloca dentro da normalidade constitucional.

No passado do Brasil republicano, contudo, os parâmetros da dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais, da unidade, da força normativa e da supremacia da Constituição mal começavam a se tornar realidade, eram atrope-lados por medidas de exceção, ou mesmo por rupturas da ordem constitucional, situações que provocavam a sensação de recomeço a cada nova restauração da normalidade democrática.2

A própria Constituição de 1891 passaria sua primeira década de vigência em fase de ensaio. Paulo Bonavides, inspirado em Lassale3, afirma, a propó-sito de nossas fundações republicanas, que entre a “Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enorme distância” e que “nesse espaço se cavara também o fosso social das oligarquias e se descera ao precipício político do su-frágio manipulado”. Tudo isso para lembrar que, na República Velha, os fatores reais do poder teimaram em predominar sobre o texto conciso, elegante e liberal da Constituição de 1891, pois “ao redor da autoridade presidencial gravitavam

2 “O desrespeito à legalidade constitucional acompanhou a evolução política brasileira como uma maldição, desde que D. Pedro I dissolveu a primeira Assembléia Constituinte. Das rebeliões ao longo da Regência ao golpe republicano, tudo sempre prenunciou um enredo acidentado, onde a força bruta diversas vezes se impôs sobre o Direito. Foi assim com Floriano Peixoto, com o golpe do Estado Novo, com o golpe militar, com o impedimento de Pedro Aleixo, com os Atos Institucionais. Intolerância, imaturidade e insensibilidade social derrotando a Constituição.” BARROSO, Luis Roberto; BARCELOS, Ana Paula de. O Começo da História: A nova interpre-tação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf. Acesso em 15 de abril de 2009.3 Ferdinand Lassale é um dos autores mais importantes para o desenvolvimento da teoria cons-titucional. Sua obra sobre o tema é um clássico: A Essência da Constituição (conferência para intelectuais e operários da Prússia em 1863) é considerada precursora de muitos debates centrais dentro do constitucionalismo moderno, especialmente no que se refere à questão da eficácia das regras de uma constituição e — o que parece dar no mesmo — à questão das limitações práticas (políticas), ou debilidade jurídica das constituições escritas para a realização de grandes pro-messas, além de naturalmente suscitar os debates sobre a questão do poder constituinte. Lassalle não acreditava na chamada “força normativa da constituição escrita”. Com certo menosprezo, ele a chamava de “folha de papel”, em oposição à verdadeira constituição de uma sociedade, para Lassalle, a soma de seus “fatores reais de poder”.

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todas as dependências, todas as influências, todos os interesses. (...) O Presidente da República era um monarca eletivo que se substituía a cada quatriênio”.4

Outro registro parecido com o de Bonavides foi feito pelo brasilianista inglês Ernest Hambloch, que publicou em 1934 o instigante Sua Majestade, o Presidente do Brasil. Residente há vintes anos no Brasil, Hambloch ocupa va então o cargo de Secretário da Câmara Britânica de Comércio, no Rio de Janeiro. Sua obra atraiu a ira de nacionalistas durante os anos da ditadura do Estado Novo5, mas sua análise, ou melhor, sua crítica do presidencialismo, visto como regime autoritário e controlado por caudilhos, se dirigia ao período ante-rior, a primeira República. Vale a transcrição:

(...) Não foi a existência de uma cabeça coroada que preocupou os republi-canos durante a monarquia. Foi a Coroa que se tornou a sua obsessão. Repetiam como papagaios: “A monarquia deve ser destruída!” Mas quando os Catões republicanos fizeram isso, ou melhor, deixaram que o fizessem para eles, nada encontraram para colocar no lugar do regime liberal de uma monarquia constitu-cional. Reformar o sistema político desenvolvido durante o Império e trazer a sua aplicação até os dias atuais teria feito do Brasil um país realmente livre. O que estava em jogo, entretanto, não era dar maior liberdade ao indivíduo. O cidadão tinha progredido lenta, mas seguramente sob a monarquia. O que estava em jogo era dar ao novo cidadão a ilusão de uma Constituição inteiramente nova como a única garantia sólida da liberdade republicana. A ilusão não durou muito! A lei constitucional republicana foi aprovada a 24 de fevereiro de 1891. No dia 3 de no-vembro desse mesmo ano o primeiro Presidente constitucional da República dis-solveu o Congresso e declarou um estado de sítio. Todos os Presidentes brasileiros subseqüentes, com duas exceções, prestaram-lhe homenagem da mais sincera adulação, imitando-o! Mas não chegaram à medida inconstitucional de dissolver o Congresso. A prática tornou-se perfeita. Eles tinham empregado o estado de sítio sem dúvida ou hesitação — e caminharam em direção ao despotismo, com a aprovação servil do Congresso. O povo brasileiro foi compelido à aquiescência nas liberdades republicanas pelos métodos altamente persuasivos dos majores.6(Sem grifos no original.)

Essa análise pessimista vale, sobretudo, para os primeiros dez anos de vi-gência do texto de 1891, quando conflitos intensos ameaçaram e questionaram a

4 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra Política, 1988. p. 252.5 “His Majesty The President of Brazil, escrito por Hernest Hambloch, causou grande im-pressão pública, quando publicado. Como reação instantânea apareceu Esmagando a Víbora. Crítica ao Volume His Majesty The Presidente. Sua Majestade, o Presidente. A Afronta ao Brasil e com o autor escondido sob o pseudônimo Brasil Libero. Na explicação introdutória, escrevia-se um violento artigo contra os banqueiros estrangeiros que queriam ‘transformar a pátria brasileira num Protetorado da agiotagem internacional...” RODRIGUES, José Honório. Introdução. In: HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade, o Presidente do Brasil: Um estudo do Brasil Constitucional (1889-1934). Brasília: UnB, 1981. p. 9 (Coleção Temas Brasileiros).6 HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade, o Presidente do Brasil: Um estudo do Brasil Constitucional (1889-1934). Brasília: UnB, 1981. p. 57 (Coleção Temas Brasileiros).

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solidez do novo regime. Período histórico que, visto a partir dos valores republi-canos e constitucionais de hoje, apresenta copiosos exemplos de desrespeito aos limites constitucionais da ação do Estado e aos direitos fundamentais básicos dos cidadãos brasileiros.7

Reduzidas após 1898, mas não superadas definitivamente, as tensões po-líticas foram a marca maior de toda a primeira fase republicana. Nesse cenário de tensões e estréias institucionais, merece destaque a atuação de um antigo Conselheiro do Império, o advogado, político e jornalista baiano Rui Barbosa, que assumiu o papel e a responsabilidade de verdadeiro founding father da República recém-nascida.8

Rui Barbosa também contribuiu como protagonista para edificar as fun-dações republicanas da mais alta Corte de Justiça do Brasil, o STF. Não foi Ministro do Supremo, mas há fartos registros de que as feições americaniza-das do STF são fruto de sua intervenção direta na revisão feita pelo Governo Provisório aos projetos da “Comissão dos Cinco”.9 Em toda a carreira, Rui foi árduo defensor da Corte, mesmo quando suas teses eram derrotadas no Plenário do STF.

7 “Tanto o episódio de Canudos quanto o da Revolta da Vacina, com suas evidentes afinidades, são dos mais exemplares para assinalar as condições que se impuseram com o advento do tempo republicano. Um tempo mais acelerado, impulsionado por novos mecanismos energéticos e tec-nológicos, em que a exigência de acertar os ponteiros brasileiros com o relógio global suscitou a hegemonia de discursos técnicos, confiantes em representar a vitória inelutável do progresso e por isso dispostos a fazer valer a modernização ‘a qualquer custo’. (...) Casos como esses se mul-tiplicaram, como se sabe, em outros episódios trágicos como, apenas para ilustrar, a Guerra do Contestado (1912-1916) na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina ou o bombardeio desumano da população paulista quando da Revolta de 1924, seguido de execução sumária de imigrantes.” SEVCENKO, Nicolau. Introdução — O prelúdio republicano: Astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27 (República: Da belle époque à era do rádio, 3).8 “Rui Barbosa, no cair da noite de 15 de novembro, sentou-se, de caneta em punho, defronte duma resma de papel almaço, institucionalizando, os fatos da manhã. E assim, antes que vol-tasse ao solo toda a poeira da cavalgada de Deodoro, começou este a assinar o Decreto orgânico que instituía o Governo Provisório da nova República. Seguiram-se a separação da Igreja e do Estado e, dia a dia, inovações políticas e jurídicas de toda espécie...” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 14.9 “O Supremo Tribunal Federal somente adquiriu um perfil quase idêntico ao da Suprema Corte norte-americana a partir das emendas de Rui Barbosa, que resultaram no projeto do Governo Provisório. Nesse projeto foram suprimidas as atribuições do Legislativo de estabele-cer a interpretação autêntica e de velar na guarda da Constituição. A competência foi ampliada para todas as questões decididas pelos juízes e tribunais estaduais que negassem a validade de leis federais. (...) Também foi proibido que o Congresso transferisse qualquer jurisdição federal a tribunais dos estados e foi estabelecida a supremacia da jurisdição federal sobre a estadual. (...) A emenda de Rui Barbosa estabeleceu que os ministros seriam nomeados pelo Presidente da República, com a aprovação do Senado, dentre cidadãos elegíveis para este cargo.” KOERNER, Andrei. Judiciário de Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998. p. 155-156.

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Memória Jurisprudencial

Uma pequena demonstração desse “carinho” nutrido por Rui pelo Supremo está no discurso proferido ao assumir a Presidência do Instituto dos Advogados, em 1914. Na ocasião, paternal, Rui Barbosa aproveitava a tribuna para atirar suas setas sobre o Senado, então liderado por Pinheiro Machado, e sobre a ameaça de reforma constitucional que pretendia retirar poderes da Justiça Federal e do próprio STF, principalmente em razão do ativismo judicial construído em torno da “doutrina brasileira do habeas corpus”. Rui Barbosa ironizava os que à época reclamavam da “ditadura da justiça”. Vale novamente a transcrição:

Em vez de ser o Supremo Tribunal Federal, tal qual nossa Constituição o declarou, o derradeiro árbitro da constitucionalidade dos atos do Congresso, uma das câmaras do Congresso passaria a ser a instância de correição para a sentença do Supremo Tribunal Federal.

(...) A investida reacionária de nulificação da justiça, que se esboça no grandioso projeto de castração do Supremo Tribunal Federal, tem por grito de guerra, conclamado em brados trovejantes, a necessidade, cuja impressão abrasa o peito a generosas coortes, de por tranca ao edifício republicano contra a ditadura jurídica. Santa gente. Que afinado que lhes vai nos lábios, onde se tem achado escusas para todas as ditaduras da força, esse escarcéu contra a ditadura da justiça!

Os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não nomeiam funcionários. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem ministros, não distribuem candidaturas, não elegem e deselegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos e esquadras. Mas é dos tribunais que se temem e tremem os sacerdotes da ima-culabilidade republicana.10

A reforma constitucional, que estabeleceria limites para a atuação do Supremo Tribunal em questões políticas, só viria em 1926, já nos últimos anos da decadente República Velha. Mas, antes disso, o Tribunal seria palco de grandes causas políticas, que surgiam em momentos de grave crise ins-titucional e quando não estava ainda em seu melhor funcionamento o novo sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição. Sistema que, logo após sua criação, em 1891, precisou ser reinventado, partindo-se do remé-dio constitucional então disponível para a defesa das liberdades públicas, o habeas corpus.

Essa militância obstinada de Rui Barbosa e de vários Ministros da Corte, com destaque para a atuação do Ministro Pedro Lessa, provocou a criação juris-prudencial mais original e ousada politicamente do Supremo, a “doutrina brasi-leira do habeas corpus”, precursora da garantia constitucional do mandado de

10 BARBOSA, Rui. O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira. In: Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960. p. 569.

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Ministro Epitacio Pessôa

segurança — criado em 1934 — contra abusos e ilegalidades do Estado em face dos direitos públicos subjetivos.11

Pois foram ambos, doutrina e “autores”, em mais de uma ocasião, comba-tidos à altura de seu brilhantismo intelectual pelo Ministro Epitacio Pessôa — outro fenômeno da política na primeira República. Ortodoxo, o Ministro Pessôa resistia em admitir cabimento de habeas corpus que não fosse para salvaguar-dar exclusivamente o direito de locomoção. Conservador por formação e con-vicção, Epitacio Pessôa fez contraponto ao liberalismo de Rui Barbosa dentro e fora do Supremo, no Direito e na Política.

No entanto, Epitacio só chegaria ao Supremo no final do governo de Campos Salles, em 1902. Àquela altura, Rui Barbosa já havia se notabilizado por levar para o Plenário do Supremo o calor das disputas políticas, enfren-tando os jacobinos partidários de Floriano Peixoto, arriscando-se para fazer valer o império da Constituição.12 Suas primeiras tentativas, como se sabe, fra-cassaram. Foi preciso, em alguns casos, esperar longos anos até que ocorresse alguma mudança efetiva na jurisprudência do Tribunal, e para que se observas-sem no Brasil as primeiras manifestações do novo sistema de checks and balan-ces e de garantia de direitos.

Apesar de o STF ser, em 1890, quando foi criado, um órgão completa-mente novo em suas competências e funções, seus primeiros quinze membros foram escolhidos entre os velhos colaboradores do antigo regime. Tendo sido mantidos por Deodoro, esses juristas integraram o vetusto Supremo Tribunal de Justiça do Império luso-brasileiro e aderiram tardiamente à causa republicana, conforme a análise precisa de Aliomar Baleeiro:

(...) talvez por economia, Deodoro aproveitou para o recém-criado Supremo Tribunal Federal vários dos barões e conselheiros da mais alta Corte

11 “Sem embargo do ousado e creio que injusto libelo de João Mangabeira, quando, há perto de 30 anos, afirmou que o malogro da democracia representativa no Brasil se devia ao Supremo Tribunal Federal, este desempenhou, como lhe foi possível, sua missão política, protegendo a liberdade e direitos individuais, assegurando o equilíbrio federativo e impondo a supremacia da Constituição e das leis federais. Ainda não se apagaram as recordações dos atritos tormentosos do Supremo com Floriano, Prudente e Hermes da Fonseca. A construção da chamada teoria brasileira do habeas corpus com Ruy e Pedro Lessa, até mesmo nos seus exageros e aberrações, oferece um exemplo honroso do esforço tenaz do Supremo para proteção dos direitos, garan-tias e liberdades.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 36, 1972. Separata.12 “Essas atitudes de desassombro, batendo às portas dos Tribunais, ou utilizando a tribuna do Senado ou a pena de jornalista, onde quer que se registrasse abuso de poder contra as liberdades públicas e direitos individuais, algumas vezes em favor de adversários e até de inimigos, fizeram de Rui um mito nacional, porque assim continuou pela vida afora ao longo de 30 anos, durante os quais conseguiu incutir no Supremo Tribunal Federal o seu papel de guardião da Constituição e das leis.” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 56.

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Memória Jurisprudencial

do Império: o visconde de Sabará, com 73 anos; Andrade Pinto, com 65 anos “moço fidalgo da Casa Imperial e último Morgado do Inferno em Lisboa”; Araripe, 69 anos, ex-presidente de duas províncias; Freitas Henrique, 68 anos, ex-presidente de quatro províncias; J. F. Faria, 65 anos, ex-procurador da Coroa; J. M. Uchoa, 71 anos, ex-presidente de província e procurador da Coroa; Queiroz Barros, 73 anos, remanescente da Revolução Praieira; Souza Mendes, 67, ex-vice-presidente de província; Trigo de Loureiro, 62; Barradas, 54, desem-bargador que não chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, mas presidiu duas províncias; Barão de Sobral, um dos mais novos com 49 anos; Barão de Lucena, ex-presidente de quatro províncias; Barão de Pereira Franco, ex-presidente de província e ex-ministro em dois gabinetes monárquicos; Barros Pimentel, ex-Presidente de província e deputado em 5 legislaturas do Império... Por maiores que fossem os títulos e virtudes desses juristas, eram políticos de mentalidade umbilicalmente vinculados ao passado oposto às instituições novas, das quais talvez não houvessem assimilado a razão de ser.13

O STF foi criado pelo Decreto 848, de 11 de outubro de 1890 — documen to normativo equivalente ao Judiciary Act norte-americano, de 1789, de onde abertamente nosso Governo Provisório fora retirar o modelo.14 Meses antes, o Decreto 510, de 22 de junho de 1890, que implantou uma constituição provisória no Brasil, dispôs sobre a composição (quinze ministros)15, as compe-tências e a criação do STF.

Confirmado pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891, o Tribunal foi instalado quatro dias depois, sob a Presidência interina do Visconde de Sabará, Ministro João Evangelista de Negreiros Saião Lobato.

Emilia Viotti da Costa observa que muito pouco foi alterado nas caracte-rísticas e funções essenciais do Supremo ao longo de sua secular história repu-blicana. Mas exatamente por ter assumido, desde o início, o papel de instância jurídica de controle sobre os demais Poderes, papel antes exercido pelo Poder

13 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 13, 1972. Separata.14 “Campos Sales, naquele Decreto nº 848, de 1890, marco inicial da Justiça da União e do pró-prio Supremo, inspirou-se na Lei Judiciária norte-americana de 1789, para definir a competência de nossa mais alta Corte.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro des-conhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 9015 “Diferentemente da Constituição dos Estados Unidos (de acordo com a Constituição brasi-leira de 1891), os presidentes dos tribunais eram eleitos por seus pares e o Procurador-Geral da República seria designado pelo Presidente da República entre os Ministros do Supremo. Estes deveriam ser nomeados pelo Presidente da República dentre cidadãos ‘de notável saber e reputa-ção, elegíveis para o Senado’ (isto é, maiores de 35 anos). Como o texto não dizia que o ‘saber’ devia ser especificamente jurídico, Floriano nomeou para o STF um general e um médico. Este, Barata Ribeiro, chegou a exercer o cargo. Mas o Senado assentou que só juristas poderiam ser Ministros do STF.” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 38.

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Ministro Epitacio Pessôa

Moderador16, sua história seria marcada por conflitos políticos, para os quais é freqüentemente chamado a dar respostas definitivas. Nas palavras de Viotti da Costa, “inevitavelmente levado a participar das lutas políticas que se travam à sua volta e sofrendo suas conseqüências, o Supremo Tribunal Federal é ao mesmo tempo agente e paciente dessa história”17.

O regime constitucional de 1891 não previa decerto o controle abstrato de constitucionalidade das leis, atualmente bastante utilizado pelo STF no jul-gamento das ações diretas. Aliás, esse tipo de intervenção judicial direta na ati-vidade política, de que dispõe o Supremo hoje, chamado de “modelo austríaco”, em oposição ao modelo americano que adotáramos então, não havia sido ainda nem inventado18.

Mas, nos termos da Constituição de 1891, o Tribunal já era competente para julgar os crimes comuns do Presidente da República e dos Ministros de Estado, incluídos aí os diplomatas. No exercício dessa competência, o Tribunal chegou a julgar, na época, um caso criminal célebre, que ficou conhecido como o “Caso das Pedras”, em que o Ministro da Fazenda e o Presidente do Tribunal de Contas da União eram acusados de peculato, supostamente envolvidos numa trama de indenizações fraudulentas. Epitacio Pessôa atuou nesse caso como Procurador-Geral da República, pedindo a condenação dos acusados.19

Era do Tribunal também a função de arbitragem dos conflitos federa-tivos (entre Estados e entre estes e a União) e de jurisdição (juízes federais e estaduais).

Como tribunal de apelação, era sua a competência para julgar, em grau de recurso ordinário ou de agravo, as questões resolvidas pelos juízes e tribunais federais.

Além disso, o Supremo passaria a controlar, em sede de recurso extraor-dinário, as decisões de última instância das Justiças dos Estados: quando nelas

16 “Na ausência da figura do imperador, era necessário definir a última instância para resolução de conflitos públicos e privados, uma vez que desaparecera com ele aquela função. O imperador, na verdade, já havia pensado em introduzir no Brasil uma instituição, similar à Suprema Corte dos Estados Unidos da América, que assumisse muitas das responsabilidades até então atribuí-das a ele (Poder Moderador) e ao Conselho de Estado. Essa idéia, entretanto, só vingaria depois da queda da Monarquia.” COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 30.17 Idem, p. 29.18 O primeiro regime a prever o controle abstrato de constitucionalidade foi o austríaco por influência direta de Hans Kelsen que o concebeu. Sob a influência do pensamento de Kelsen, a Constituição austríaca de 1920 inovou ao introduzir essa nova e concentrada forma de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, exercida por um Tribunal constitucional, a quem caberia a função exclusiva de guarda da integridade da Constituição.19 RAJA-GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 178-187.

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se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do tribunal do Estado fosse contra essa validade; e quando se contestasse a va-lidade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal estadual houvesse considerado válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.20

Com todas essas competências, a vocação e o destino político do STF estavam de fato traçados desde sua criação.

Naqueles primeiros tempos, no entanto, essa vocação não foi tão positiva para o Tribunal. Os poderes da República nascente, apesar da fórmula consti-tucional da harmonia e independência recíproca21, tiveram especial predileção pelo atrito e pouca, ou pelo menos insuficiente, atenção a certos mandamentos constitucionais, então carentes de supremacia efetiva e força normativa. O qua-dro político também não favorecia as soluções jurídicas e pacíficas da jurisdição constitucional, pois, em situações de crise aguda, na maioria das vezes, imperou o arbítrio e a manipulação. Nem o STF ficaria imune à influência das oligar-quias que dominaram o período.22

Emilia Viotti da Costa classifica esse período inicial da história do STF como um “difícil aprendizado”. Ela também registra outra curiosidade, o vivo interesse com que a sociedade brasileira já acompanhava os primeiros passos do Tribunal:

No meio desses confrontos múltiplos, o recém-criado Supremo Tribunal Federal era chamado a se manifestar, julgando pedidos de habeas corpus. As decisões eram examinadas pela imprensa e debatidas na Câmara. Os minis-tros tornavam-se alvo de críticas, de defesas e ataques. As sessões eram concor-ridas. O Tribunal transformava-se em teatro para o gozo do público que lotava as galerias e se manifestava ruidosamente a favor e contra: vaiava, assobiava, aplaudia os discursos e os acórdãos, apesar das reiteradas advertências do presi-dente, que ameaçava os manifestantes de expulsão.23

O Tribunal reunia-se sempre às quartas-feiras e aos sábados, em sua composição plena — não havia turmas de julgamento —, com o início da sessão

20 BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999, p. 38.21 O artigo 15 da Constituição de 1891 trazia o seguinte teor: “São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si.”22 “O viés político das decisões transparecia nos casos de habeas corpus ou nos de conflitos entre as oligarquias estaduais por ocasião das eleições, quando os ministros tinham que decidir entre as facções que lutavam pelo poder ou arbitrar os embates entre União e Estado. Criaturas da patronagem que presidiam as carreiras políticas do Império, dificilmente os ministros es-capavam das malhas das lealdades que haviam forjado ao longo da vida. O Supremo Tribunal politizava-se.” COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 35-36.23 COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 35.

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Ministro Epitacio Pessôa

marcado para as dez horas da manhã. Os Ministros escreviam de próprio punho as decisões, com longas séries de consideranda, que funcionavam como premis-sas decisórias, enquadramentos normativos e conceituais de onde se extraíam as soluções para o problema contido nos autos. Os primeiros acórdãos sequer foram publicados, e o movimento processual não era ainda uma preocupação.

Instituição republicana e federativa, tribunal de apelação da Justiça Fe-deral também recém-criada, o Supremo teve, porém, como vimos, em sua com-posição originária, representantes da alta magistratura do Império decaído. Dos quinze membros, quatro ainda ostentavam o título de nobreza, “eram eles o visconde de Sabará e os barões de Sobral, Pereira Franco e Lucena”.24

No entanto, essa primeira geração, essencialmente monarquista, não per-maneceria muito tempo no Tribunal. Viotti da Costa registra que, apenas quatro anos após a instalação, somente três Ministros da composição original conti-nuavam no cargo: Olegario Herculano d’Aquino e Castro, Luiz Antonio Pereira Franco e Joaquim de Toledo Piza e Almeida.25

Aliomar Baleeiro não poupa as palavras para ressaltar que os Ministros da primeira geração:

Vergaram ao peso dessa realidade logo às primeiras crises da República recém-nascida, quando bateram às portas do Supremo Tribunal as vítimas afli-tas das paixões e agitações da época. Dentro de um ano, convencidos disso, os velhos Conselheiros vindos do Tribunal áulico (no sentido jurídico da palavra) haviam renunciado à nova Corte, recolhendo-se à aposentadoria salvadora.26

Por causa disso, Floriano Peixoto, na Presidência da República, em pouco mais de dois anos, nomeou a mesma quantidade de Ministros que seu anteces-sor deposto: quinze. Ambos (os marechais) só perdem para Getúlio Vargas que, em dezenove anos de governo, nomeou 21 Ministros para o STF. No caso de Deodoro, naturalmente, os quinze Ministros nomeados por ele integravam a composição original.

Já o Marechal de Ferro só não conseguiu alterar completamente a compo-sição do Tribunal porque cinco de seus indicados foram rejeitados pelo Senado: Barata Ribeiro, Innocêncio Queiroz Galvão, Ewerton Quadros, Antonio Séve Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo. Não eram bacharéis em Direito, nem consta que tivessem notável saber (jurídico).27

24 COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 31.25 Idem, p. 32.26 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 13, 1972. Separata.27 SANTOS, André Marenco dos; DA ROS, Luciano. Caminhos que levam à Corte: Carreiras e padrões de recrutamento dos ministros dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário brasileiro (1829-2006). In: Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 140, jun. 2008.

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Memória Jurisprudencial

Talvez para compensar a pacífica derrubada do regime imperial, os pri-meiros anos da experiência republicana no Brasil foram marcados por intensos e violentos conflitos, como o já mencionado levante de Canudos, a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e a Revolta da Armada, na Capital. A estabi-lidade do novo regime viu-se constantemente ameaçada também pelas disputas estaduais. Na ausência de partidos nacionais, a insegurança era alimentada por facções políticas que se enfrentavam sem trégua: os monarquistas e os republi-canos, os republicanos históricos e os adesistas, os deodoristas e os florianistas, os militares e os civis, os positivistas autoritários e os liberais, os centralistas e os federalistas.28

A resposta do governo era a repressão, a decretação de estado de sítio, as prisões, o desterro e o exílio de adversários. As novíssimas instituições jurídi-cas nacionais criadas pela Constituição de 1891 passavam então pelo duro teste do confronto com os fatos sociais. O autoritarismo político, marca forte dos primeiros governos militares, especialmente o governo do marechal Floriano Peixoto, perdurou de modo aberto até o governo do primeiro civil, Prudente de Morais (1894-1898), e teve ainda uma recaída no governo do marechal Hermes da Fonseca (1910-1914).

Vale lembrar ainda que Floriano assumiu a Presidência após a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca, de quem era o Vice-Presidente, em novembro de 1891. Deodoro, na verdade, fora forçado a renunciar após tentativa fracas-sada de institucionalizar um regime ditatorial com a dissolução do Congresso. Floriano, por sua vez, governou na interinidade, pois a Constituição aprovada naquele mesmo ano previa, em seu art. 42, a realização de novas eleições caso a vacância ocorresse nos dois primeiros anos do quadriênio do mandato presi-dencial. Sua recusa em dar cumprimento ao mandamento constitucional e con-vocar eleições provocou o primeiro atrito grave do Executivo com o Judiciário. O motivo: habeas corpus impetrado por Rui Barbosa no STF em favor de vários militares e civis presos e desterrados que protestaram pela realização das elei-ções previstas na Constituição.29

O caso teve julgamento emblemático, revelador da posição ainda vaci-lante do Tribunal em exercer suas novas competências na defesa da supremacia da Constituição. Aliomar Baleeiro oferece, na seguinte passagem, rica descri-ção daqueles eventos:

Em 6 de abril de 1892, treze generais protestam contra a falta de convo-cação da eleição presidencial. Floriano reage, reformando-os, e agita-se o Rio.

28 COSTA, Emilia Viotti. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed.. São Paulo: IEJE, 2007. p. 32.29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 300. Relator: Ministro Costa Barradas, julgado em 27-4-1892. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagina=hc300. Acesso em 5 de maio de 2009.

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Ministro Epitacio Pessôa

Poucos dias depois, várias pessoas promovem manifestações de rua a Deodoro, já quase moribundo, precedidos de uma fanfarra militar que passava no momento. Floriano reage prendendo e deportando vários civis, inclusive parlamentares, os quais gozavam de imunidades. Entre os presos, figurava Olavo Bilac, que veio a ser considerado o maior poeta do Brasil nas duas primeiras décadas deste século. Rui apressa-se em requerer um habeas corpus em favor dos presos, que perma-neciam no cárcere ou no desterro, após extinguir-se o prazo de 72 horas do estado de sítio. O Supremo Tribunal lhe nega a ordem pedida, contra o voto apenas do Ministro Piza e Almeida, cujas mãos Rui beijou num gesto comovido.30

O pedido de Rui Barbosa sustentava-se na inconstitucionalidade das prisões e demais medidas repressivas, algumas realizadas antes de decretado o estado de sítio, outras, depois do vencimento do prazo de sua vigência, quando então deveriam ser restabelecidas as garantias constitucionais. O episódio é tão marcante que passou para a história a suposta ameaça de Floriano ao Supremo, quando teria dito, às vésperas da sessão que julgaria os pedidos de Rui: “Se os juízes do Tribunal concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão”.31

Explicitamente acuado pelo ditador, o Supremo negou a ordem requerida, firmando uma posição que seria mantida até 1898, já no final do governo de Prudente de Morais.32

A leitura do acórdão desse julgamento não deixa dúvidas quanto à re-cusa do Tribunal em “envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo”, mesmo tendo reconhecido que, “na situação criada pelo estado de sítio, estejam ou possam estar envolvidos alguns direitos individuais”. Vejamos:

Considerando que durante o estado de sítio é autorizado o Presidente da República a impor, como medida de repressão, a detenção em lugar não destinado aos réus de crimes comuns e o desterro para outros sítios do território nacional;

30 BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 55.31 COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed.. São Paulo: IEJE, 2007. p. 37.32 “O Supremo Tribunal Federal, na sessão de 16-4-1898, ao conceder ordem de habeas cor-pus, no julgamento do HC 1.073, Relator designado Ministro Lucio de Mendonça, consagrou a tese — até então sustentada sem sucesso por Rui Barbosa (HC 300, 1892) — de que ‘Cessam, com o estado de sítio, todas as medidas de repressão durante ele tomadas pelo Executivo’, pois a possibilidade desse controle jurisdicional, findo o sítio, não é excluída pela competência atri-buída ao Congresso Nacional ‘para o julgamento político dos agentes do Executivo’ (...) Essa decisão do Supremo Tribunal Federal reformou antiga jurisprudência, que, estabelecida em 1892, consolidara-se em sucessivos julgamentos proferidos, pela Corte, em 1894 e 1897, o que motivou, por parte de Rui Barbosa, o reconhecimento de que esse acórdão (1898) representava ‘o fruto de seis anos de campanha liberal, que tinha o brilho e a solidez e a força dos grandes arestos, que valem mais para a liberdade dos povos do que as Constituições escritas’.” MELLO FILHO, José Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). 2. ed. Brasília: STF, 2007. p. 16-17. (Grifos no original.)

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Memória Jurisprudencial

Considerando que estas medidas não revestem o caráter de pena, que o Presidente da República em caso algum poderá impor, visto não lhe ter sido conferida a atribuição de julgar, mas são medidas de segurança, de natureza transitória, enquanto os acusados não são submetidos aos seus juízes naturais nos termos do art. 72, § 15, da Constituição;

Considerando, porém, que o exercício desta extraordinária faculdade a Constituição confiou ao critério e prudente discrição do Presidente da República, responsável por ela, pelas medidas de exceção que tomar, e pelos abusos que à sombra delas possa cometer;

Considerando que, pelo art. 80, § 3º, combinado com o art. 34, § 21, da Constituição, ao Congresso compete privativamente aprovar ou reprovar o es-tado de sítio declarado pelo Presidente da República, bem assim o exame das medidas excepcionais, que ele houver tomado, as quais para esse fim lhe serão relatadas com especificação dos motivos em que se fundam;

Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso, não pode o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República daquela atribuição constitucional, e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo;

Considerando que, ainda quando na situação criada pelo estado de sítio, estejam ou possam estar envolvidos alguns direitos individuais, esta circuns-tância não habilita o Poder Judicial a intervir para nulificar as medidas de segu-rança decretadas pelo Presidente da República, visto ser impossível isolar esses direitos da questão política, que os envolve e compreende, salvo se unicamente tratar-se de punir os abusos dos agentes subalternos na execução das mesmas medidas, porque a esses agentes não se estende a necessidade do voto político do Congresso;

Considerando, por outro lado, que não está provada a hora em que as pri-sões foram efetuadas, nem o momento em que entrou em execução o decreto que suspendeu as garantias constitucionais, o qual pela sua natureza não obedece às normas comuns da publicação, mas encerra implícita a cláusula de imediata execução, pouco importando que as prisões tenham sido realizadas, antes ou de-pois do estado de sítio, uma vez que foram decretadas dentro dele, como consta do decreto de 12 do corrente à fl. 139;

Considerando, finalmente, que a cessação do estado de sítio não importa, ipso facto, na cessação das medidas tomadas dentro dele, as quais continuam a subsistir, enquanto os acusados não forem submetidos, como devem, aos tribu-nais competentes, pois, do contrário, poderiam ficar inutilizadas todas as pro-vidências aconselhadas em tal emergência por graves razões de ordem pública;

Negam, por esses fundamentos, a pedida ordem de habeas corpus.33

As relações institucionais entre Floriano e o STF não seriam as mais ame-nas, mesmo depois desse julgamento ter amplamente favorecido as pretensões autoritárias do Presidente. Deve-se, portanto, a Floriano o exemplo histórico inaugural de como a prerrogativa republicana de nomear os membros da Corte pode afetar negativamente — e, no caso, impedir — o próprio funcionamento

33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 300. Relator: Ministro Costa Barradas, julgado em 27-4-1892. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico&pagina=hc300. Acesso em 5 de maio de 2009.

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Ministro Epitacio Pessôa

do Tribunal. Como se sabe, Floriano Peixoto cometeu a proeza de nomear cinco Ministros sem nenhuma formação jurídica. O que não ficou tão conhecido foi o expediente seguinte. Inconformado com a recusa do Senado em aprovar suas indicações, o Presidente da República simplesmente omitiu-se, deixando de nomear novos Ministros para o Supremo, que, durante meses, ficou impossibili-tado de realizar sessões de julgamento, por falta de quorum.34

De acordo com Keorner, o mecanismo de indicação presidencial dos Ministros do Supremo, inspirado no modelo da Suprema Corte americana, que o Brasil adota desde 1891, na verdade, cumpria à época o claro objetivo de refor-çar as posições do Governo da União perante os Estados da Federação.

Por outro lado, a vitaliciedade dos cargos dos Ministros do STF permi-tia — assim como hoje — a formação de composições heterogêneas.35 Ainda de acordo com Andrei Koerner, naquela fase inicial da primeira República, isso gerava a produção de uma jurisprudência tópica nas questões políticas, devido à vinculação das posições de muitos Ministros, nem tanto ao direito constitu-cional, mas às oligarquias que haviam patrocinado suas respectivas indicações, numa estranha e oblíqua forma de demonstração de autonomia. Ou, pelo me-nos, nos casos em que essa influência foi decisiva, do acerto da tese central de Ferdinad Lassale.

Segundo Koerner:Os ministros decidiam segundo suas ligações com os grupos políticos de

seus estados. Mas, em virtude da vitaliciedade do cargo, a maioria do tribunal não correspondia sempre à aliança que predominava na política federal. Desse modo, havia alguma incerteza sobre o resultado das decisões do tribunal, o que conduzia a complicadas negociações entre ministros e chefes políticos, e tam-bém a pressões destes sobre o tribunal, colocando em dúvida sua real obediên-cia às decisões que lhes fossem desfavoráveis. Além disso, os grupos políticos reagiam às decisões desfavoráveis do tribunal, criticando a intervenção do ju-diciário na política, ou atribuindo o resultado da decisão a influências políticas sobre o tribunal. Mas, uma vez que a demanda da intervenção do tribunal era

34 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, 1972. Separata.35 “Por ser vitalício, o cargo de ministro do STF implicava uma situação particular na dinâmica das alianças e dos conflitos entre as facções políticas. Uma mudança da situação política resul-tava na substituição dos ocupantes dos mandatos parlamentares ou executivos. Os ministros do STF, ao contrário, permaneciam bastante tempo em seus cargos, durante o qual ocorriam realinhamentos nas alianças entre as facções, ou mesmo o desaparecimento da facção a qual pertenciam. Esse é o caso de Bernardino Ferreira da Silva, chefe de polícia (1892-3) e membro do Supremo Tribunal Militar (1893-4), e Eduardo Pindahiba de Mattos, nomeados por Floriano Peixoto; de Lucio de Mendonça, ligado aos jacobinos, e Riberiro de Almeida, ligado ao chefe fluminense, Tomás Porciúncula, nomeado no início do governo de Prudente de Morais; e de João Barbalho, pernambucano, ligado a Lucena e nomeado por Victorino na sua manobra para forçar a renúncia de Prudente.” KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998. p. 181.

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um recurso político disponível, as facções políticas utilizavam-no, mesmo que tivessem criticado “doutrinariamente” essa intervenção pouco antes. Desse modo podemos compreender a paradoxal recusa dos chefes políticos à interven-ção judiciária na política, seguida de demandas de habeas corpus ao tribunal, desde que fosse necessário.36

Essa heterogeneidade também provocou atritos e divisões dentro do próprio Supremo37, que se afirmava como instância judicial superior do direito federal e que — substituída a composição original ainda muito vinculada ao re-gime decaído — começava o século pretendendo afirmar-se como árbitro cons-titucional dos conflitos políticos e da Federação.

A primeira grande renovação do Supremo começa, portanto, já nos pri-meiros anos da história republicana, com a defecção da maioria dos integrantes da Corte nomeada por Deodoro. No entanto, somente quase vinte anos depois da instalação do STF é que se completaria o novo quadro, após a morte, no exercício da Presidência, do Ministro Piza e Almeida, em 1908, último de sua geração republicana original.

Nesse ambiente de renovação, e após as grandes agitações que marcaram a primeira década republicana, no dia 29 de janeiro de 1902, chegava ao STF o paraibano Epitacio da Silva Pessôa. Nomeado pelo Presidente Campos Salles, de quem fora titular da pasta da Justiça, o Ministro Epitacio Pessôa assumiu a vaga aberta com o falecimento do barão de Pereira Franco, outro remanescente da primeira geração republicana que ainda atuava no Tribunal.

O cargo de ministro do STF representa, para a maioria de seus ocupan-tes, o ponto mais alto ou o ponto final da carreira. Contudo, o mesmo não se aplica ao caso de Epitacio Pessôa, que chegou ao Tribunal aos quarenta anos de idade e lá permaneceu por dez anos. Logo depois de se aposentar, por

36 KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998. p. 181-182.37 “Entre Pedro Lessa e Epitacio Pessôa, em face das diferenças de temperamento, da vai-dade e da autoconsciência muito nítida que ambos tinham de seu próprio valor, e prova-velmente do desejo de ambos de se afirmarem e influir poderosamente nos julgamentos, as diferenças de tal modo se azedaram que eles terminaram rompendo totalmente um com o outro, não se cumprimentando, sequer, no Tribunal. As relações já tensas teriam sido quebra-das — segundo a tradição oral da família de Pedro Lessa — por ocasião de um julgamento em que Epitacio citara um autor norte-americano, em apoio de sua tese, sendo contestado por Lessa, que dizia ser a opinião do autor citado exatamente contrária à que lhe fora atribuída. Em seguida mandou buscar o volume respectivo na Biblioteca do Tribunal e, ao recebê-lo, passou-o a Amaro Cavalcanti, pedindo-lhe que lesse e traduzisse aos demais colegas o texto citado, a fim de provar que ele, Lessa, tinha razão.” RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 112 (Defesa do Federalismo, II).

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invalidez38, em 1912, foi eleito Senador da República pelo Estado da Paraíba. Como Senador, Epitacio seria relator do projeto de Código Civil, em 1916, e chefe da delegação brasileira na Conferência de Paz de Versalhes, em 1919. Nesse mesmo ano, Epitacio Pessôa tornar-se-ia o décimo primeiro Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, após derrotar Rui Barbosa em eleição curiosa. É que Epitacio fora eleito a distância, como explica Walter Costa Porto:

Rodrigues Alves, eleito em março de 1918, pela segunda vez presidente, faleceu em janeiro de 1919, sem que assumisse o posto. (...) Candidatos naturais aos cargos, Altino Arantes, dirigente de São Paulo, e Artur Bernardes tiveram, o primeiro, o veto de Borges de Medeiros, e de Minas, o segundo. Epitacio é en-tão lembrado por Borges como fórmula conciliadora que evitará o conflito, que outra vez se esboça, entre Minas e São Paulo. Epitacio presidia a Comissão bra-sileira à Conferência de Versalhes, recusada por Rui. A notícia da candidatura o surpreendeu em Paris. (...) Continuou na Europa a receber notícias da campanha eleitoral, em que tinha Rui como opositor.

A principal contestação de seus adversários — principalmente de Rui — era sua inelegibilidade, por sua condição de ministro aposentado, por questão de saúde, do Supremo Tribunal. Mas já quando eleito Senador pela Paraíba, em 1912, se defendera da acusação.39

Ao deixar a Presidência, em 1922 — centenário da Independência —, Epitacio ainda chegaria, no ano seguinte, ao cobiçado posto de Juiz da Corte Permanente de Justiça Internacional de Haia, na Holanda.

Com muita razão, portanto, deve-se reconhecer na trajetória de Epitacio Pessôa o traço da exceção, o desvio do padrão.

Também no STF, apesar da relativamente curta passagem, Epitacio Pessôa deixaria suas marcas e contribuições para a formação da jurisprudência. Ficou conhecido e admirado pela firmeza de suas convicções e pela solidez de

38 Na biografia que escreveu sobre seu pai, Laurita Pessoa explica que a aposentadoria fora uma recomendação médica: “a saúde combalida pela crise que determinara a extração da vesí-cula desaconselhava-lhe de modo absoluto um regímen de vida todo sedentário, como era o de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Epitacio, ele próprio, não se sentia capaz de resistir por muito tempo à absorção, tantas vezes exaustiva, dos trabalhos de gabinete e jamais se resignaria a permanecer no Tribunal, se não pudesse continuar a ser o mesmo juiz.” RAJA-GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p. 203. O baiano Aliomar Baleeiro, porém, anota que: “A labuta de um ministro, àquele tempo, não o esfalfava. Oswaldo Trigueiro, pesquisando a atuação de Epitacio Pessôa no Supremo Tribunal, onde teve assento de 1902 a 1912 — dez anos –, apurou que relatara apenas 25 apelações, 15 agravos, 12 habeas corpus, 9 recursos extraordinários e 15 casos outros, num total de 86 fei-tos (R.F., 211/379). Não raro um ministro, entre 1966 e 1969, julgou isso em apenas um mês.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 15, 1972. Separata.39 PORTO, Walter Costa. O Voto no Brasil: Da Colônia à 6ª República. 2. ed., rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002. p. 175-176.

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sua ciência jurídica, cultivadas na intelectualidade da Escola do Recife, onde passara a reinar naqueles anos inaugurais a objetividade científica, o método positivo. Epitacio era agnóstico, mas acreditava piamente na legalidade.40

No prefácio que apresenta e introduz o volume III das Obras Completas de Epitacio Pessôa, Sobral Pinto o descreve como alguém dotado das melhores virtudes de um magistrado:

Das altas funções que uma República Federativa reclama e cria para o seu regular funcionamento, no seio de um povo sem grande experiência política, semi-inculto, e de economia privada e pública desorganizada, nenhuma é tão árdua e mais difícil do a que de Juiz do Tribunal que partilha, com o Presidente da República e o Congresso Nacional, a suprema direção da cousa pública no país. No magistrado, membro de um tal Tribunal, há de coexistir, necessaria-mente, para o bom e fiel desempenho de sua importante tarefa, um conjunto tão harmonioso de qualidades espirituais e de conhecimentos gerais e técnicos, que ele surge aos olhos de todos como um misto de estadista, de legislador e de juiz. A serenidade e a imparcialidade não são, só por si, suficientes. Dele, há que exigir, também, amplitude de visão, penetração segura da realidade, percepção exata das tendências da época, afora o domínio completo e perfeito das ciências sociais de seu tempo.

De quantos até hoje integraram o quadro dos Juízes do nosso Supremo Tribunal Federal, Epitacio Pessôa, foi, sem favor, um daqueles que mais se apro-ximaram do modelo que acima descrevi. Pelo talento, cultura, têmpera e senso da realidade pertence à galeria dos Pedro Lessa, Amaro Cavalcanti, Pires e Albuquerque e Edmundo Lins (...)41

Mas a personalidade forte de Epitacio, sua entrega apaixonada aos emba-tes dialéticos e seus pendores para a política fizeram dele alvo de muitas críticas, mesmo ainda no período em que liderou a jurisprudência no Supremo Tribunal. É de um contemporâneo, José de Castro Nunes, o relato que melhor descreve a imagem projetada pelo Ministro Epitacio durante sua passagem pelo Supremo:

Conheci o Dr. Epitacio quando Ministro do Supremo Tribunal e Procura-dor-Geral da República. Levava sobre os seus eminentíssimos colegas a van-tagem de falar excelentemente. Era um orador perfeito, argumentador exímio, mas orador para parlamentos ou auditórios seletos que pudessem acompanhar-lhe os raciocínios concatenados na exposição precisa e eloqüente do seu ponto de vista. Pedro Lessa, seu maior antagonista nos debates, apesar da cultura jurídica maior, não era orador, nem mesmo bom expositor oral. E não raro saía vencido pelo domínio inelutável desse poder imenso que é a palavra de um grande orador, ainda que freado nos seus arroubos tribunícios, que a função não comportaria, mas preciso, claro, cintilante.

40 RAJA-GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p. 43.41 PINTO, Sobral. Prefácio. In: BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional do Livro. Obras Completas de Epitacio Pessôa. Rio de Janeiro, 1965. p. 12 (Acórdãos e Votos no Supremo Tribunal Federal, III).

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Ministro Epitacio Pessôa

(...) O Ministro Epitacio era cortês, mas distante. Temerário embargar-lhe o passo num corredor do antigo Supremo Tribunal para entregar-lhe um memo-rial ou, muito menos, lhe pedir preferência para algum caso de que fosse relator ou revisor. E, no entanto, não era tanto quanto o indicavam essas aparências, nem tão insensível às aflições de um advogado quanto parecia.42

Homem conservador, apegado à ordem, foi ardoroso defensor da sobe-rania nacional, mas não teria igualado esse amor à defesa da liberdade indivi-dual.43 Um episódio em especial lhe renderia as mais severas críticas: o caso dos habeas corpus impetrados por Rui Barbosa, em 1912, em favor dos governantes depostos por forças federais na Bahia, cuja capital havia sido submetida a bom-bardeios que destruíram o Palácio de Governo e a biblioteca pública, provo-cando várias mortes. Os habeas corpus foram julgados prejudicados pelo STF, que acolheu, por maioria, as razões do voto de Epitacio Pessôa.

Entre tantos registros desse fato, destaca-se a anotação ácida de Afonso Arinos de Melo Franco, cujas fortes críticas feitas à postura de Epitacio Pessôa, em maioria no Tribunal, mereceram a contestação de Sobral Pinto, no prefácio acima mencionado. Eis o relato e a análise do evento feitos por Afonso Arinos:

O primeiro pedido, tendo como relator o ministro Epitacio Pessôa, foi de-clarado prejudicado a 20 de janeiro, contra os votos dos ministros Canuto Saraiva, Guimarães Natal, Amaro Cavalcanti, Manuel Murtinho e Pedro Lessa. Com os ven-cidos estava, sem dúvida nenhuma, a boa doutrina constitucional. O impetuoso Pedro Lessa, cujas divergências com Epitacio eram mais que notórias, chega a rematar o seu voto com as seguintes palavras “julgar assim é abolir, de fato, o habeas corpus”.

Mas Epitacio, temperamento voluntarioso e marcadamente político, não vacilava em atropelar a ciência jurídica, que possuía em grau eminente, para aten-der às conveniências partidárias. Nesse ponto não era, nem poderia ser um bom juiz. Aliás, já estava de malas arrumadas, em mudança do Supremo Tribunal para o Senado, onde iria ocupar, com a sanção do governo federal, uma das cadeiras da representação paraibana. Este simples fato que, como bem acentua Rui Barbosa, seria suficiente para impedi-lo de tomar parte em um julgamento tão frontalmente político, exacerbou, ao contrário, a sua dedicação à causa dos governantes.44

Entre os que puseram relevo elogioso ao seu talento de orador e jurista — afora o já mencionado Sobral Pinto e sua própria filha Laurita Pessoa, na bio-grafia que escreveu sobre o pai —, sobressaem as loas tecidas por José Américo de Almeida, em que se pode perceber, em meio à efusividade do comentário, a importância do Ministro Pessôa como formulador de um estilo próprio para o exercício das novas funções atribuídas à jurisdição constitucional brasileira:

42 NUNES, J. Castro. Alguns Homens do meu Tempo. Rio de Janeiro: José Olympio. 1957. p. 135.43 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 7 (Defesa do Federalismo, II).44 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República: Afrânio de Melo Franco e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. v. II. p. 711-712 (Coleção Documentos Brasileiros).

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Memória Jurisprudencial

Alheio à judicatura, sem ter sido juiz nem advogado, converteu-se em julga-dor com a técnica própria de um mestre da hermenêutica e uma inteligência prática. Primou pela palavra exata, pela síntese substancial, pela precisão e limpidez. Tudo medida e clareza, animado pelo valor verbal, pela atraente espontaneidade da expo-sição. Abolira todo o verbalismo. O técnico da expressão estava presente, mas nada de livresco, enciclopédico, sinuoso, abstrato ou desigual, da linguagem embandei-rada ou carregada de uma erudição ociosa. O acórdão passou a ter uma arquitetura.

(...) Imprimiu um cunho próprio aos seus trabalhos e não abandonou o espírito dialético. Servia-se das palavras para ser entendido e não para a arte de fabricar mistérios. A tendência para simplificar foi seu maior progresso. Daí saiu o notável jurisconsulto, cujos pareceres, como estado de consciência, são modelos no gênero, pela concisão, pela valorização dos fatos, pela agudeza inte-lectual e pela propriedade. Mais firmeza do que movimento. E nada de barroco, nem de fumos de doutrina. Tudo objetivo e incisivo. Prevalecia o velho conceito: é melhor saber bem do que saber tudo.45

Em 1965, comemorou-se o centenário de nascimento de Epitacio Pessôa. A data foi lembrada no Congresso Nacional. A Câmara dos Deputados reservou o grande expediente da sessão do dia 21 de maio daquele ano para os discursos de parlamentares em sua homenagem.46

Em 24 de maio daquele ano, o Supremo também prestava homenagem à sua memória em sessão solene. Na ocasião, usaram da palavra o Presidente do Tribunal, Ministro Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa, o Ministro Candido Motta Filho, o Procurador-Geral da República, Oswaldo Trigueiro, e o Dr. Esdras Gueiros, pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Da oração de Candido Motta Filho, na qual se encontra, como de praxe, o inventário dos feitos do homenageado, extrai-se também outro perfil precioso de Epitacio Pessôa, que vai da “leitura” de seu famoso retrato na galeria secular de Ministros do Tribunal ao registro de seus votos:

Seu retrato, pela sua postura, pelo seu olhar de homem convicto, pelos seus bigodes petulantes, pelo seu trajar sóbrio e correto, é de um exemplar mag-nífico de homem público do começo do século, que sabia, com apoio em suas certezas, captar, para seu país e para seu povo, os poderosos e renascidos argu-mentos da liberdade.

(...) Quem lê seus votos, compostos em consideranda cuidadosos na forma, precisos em suas deduções; quem o relembra nos debates em que tomava parte, com a veemência de um pugnaz, encontrava-se diante de uma acendrada vocação de jurista.47

45 ALMEIDA, José Américo de. Eu e Eles. Rio de Janeiro: Nosso Tempo, 1979. p. 191.46 BRASIL. Discursos parlamentares em homenagem ao centenário de nascimento de Epitacio Pessôa. Diário do Congresso Nacional. p. 3503-3510. Sábado, 22 de maio de 1965.47 BRASIL. Ata da Vigésima Quarta Sessão Plena Extraordinária do STF de 24 de maio de 1965. Centenário do Nascimento de Epitacio Pessôa. Diário da Justiça. Quarta-feira, 2 de junho de 1965. p. 1269-1271.

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Ministro Epitacio Pessôa

Levi Carneiro, em O Livro de um Advogado48, já havia anotado que Epitacio Pessôa nunca fora voto vencido nos processos de que foi Relator. Já Aliomar Baleeiro acrescenta a importante informação de que, nesses dez anos de sua passagem pelo STF, Pessôa recebera apenas 86 processos para re-latoria49. Em suas Obras Completas (Volume III), há o registro de 80 decisões.

Todas essas informações, enfim, que foram obtidas com a pesquisa bi-bliográfica inicial, trouxeram a tranqüilidade necessária para a confecção deste trabalho, no que diz respeito à identificação documental do protagonismo de Epitacio Pessôa como Ministro do STF.

Porém, antes de iniciar o exame de seus votos, cumpre examinar o modo como se organizava a jurisdição do STF nos primeiros anos de existência da Corte.

48 CARNEIRO, Levi. O Livro de um Advogado. Rio de Janeiro: Coelho Branco Filho, 1943. p. 24.49 “Oswaldo Trigueiro, pesquisando a atuação de Epitacio Pessôa no Supremo Tribunal, onde teve assento de 1902 até 1912 — dez anos — apurou que relatara apenas 25 apelações, 15 agra-vos, 12 habeas corpus, 9 recursos extraordinários e 15 casos outros, num total de 86 feitos (R.F., 211/379).” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 15, 1972. Separata.

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Memória Jurisprudencial

3. ASPECTOS NORMATIVOS DA ORGANIZAÇÃO ORIGINáRIA DA JURISDIÇÃO DO STF: PARA COMPREENDER MELHOR A JURISPRUDÊNCIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX

O Governo Provisório não esperou a promulgação da Constituição de 1891 para instituir “definitivamente” a Justiça Federal brasileira. Campos Sales, Ministro da Justiça, que ficara encarregado de organizar o Poder Judiciário da União, elaborou e fez publicar o Decreto 848, de 11 de outubro de 1890. Na ex-posição de motivos, declarava que era necessário apressar a transição da fase ditatorial da instalação da República, para o estado de respeito à legalidade, e que a Justiça Federal, instituída por aquele ato, não seria “um instrumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do poder legislativo”.50

No entanto, já vimos no capítulo anterior que, talvez por comodidade, Deodoro da Fonseca aproveitou para os primeiros quinze cargos de Ministro do STF os Juízes do antigo Supremo Tribunal de Justiça do Império. Esse erro histórico apontado por Aliomar Baleeiro51 atrasaria a formação da nova

50 “A proximidade da instalação do Congresso constituinte, que poderia parecer em outras cir-cunstâncias um plausível motivo de adiamento, a fim de que lhe fosse submetido o exame de uma questão de tal magnitude, torna-se, entretanto, nesta situação, que é profundamente anormal, uma poderosa razão de urgência a aconselhar a adoção desta medida.

O principal, senão o único intuito do Congresso na sua primeira reunião, consiste, sem dú-vida, em colocar o poder público dentro da legalidade. Mas esta missão ficaria certamente incompleta se, adotando a Constituição e elegendo os depositários do poder executivo, não esti-vesse, todavia, previamente organizada a Justiça Federal, pois que só assim poderão ficar a um tempo e em definitiva constituídos os três principais órgãos da soberania nacional. Trata-se, por-tanto, com este ato, de adotar o processo mais rápido para a execução do programa do Governo Provisório no seu ponto culminante — a terminação do período ditatorial.

Mas, o que principalmente deve caracterizar a necessidade da imediata organização da Justiça Federal é o papel de alta preponderância que ela se destina a representar, como órgão de um poder, no corpo social.

Não se trata de tribunais ordinários de justiça, com uma jurisdição pura e simplesmente res-trita à aplicação das leis nas múltiplas relações do direito privado. A magistratura que agora se instala no país, graças ao regime republicano, não é um instrumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do poder legislativo. Antes de aplicar a lei cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção, se ela lhe parecer conforme ou contraria à lei orgânica.

Aí está a profunda diversidade de índole, que existe entre o Poder Judiciário, tal como se achava instituído no regime decaído, e aquele que agora se inaugura, calcado sobre os moldes democráticos do sistema federal. De poder subordinado, qual era, transforma-se em poder so-berano, apto, na elevada esfera de sua atividade, para interpor a benéfica influência de seu cri-tério decisivo, a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria independência dos outros Poderes, assegurando, ao mesmo tempo, o livre exercício dos direitos dos cidadãos.” (BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Justiça Federal: Legislação. Brasília: CJF, 1993.)51 “Um Tribunal, cujo sentido político transparece dessas palavras incisivas de Campos Sales, deveria ter sido composto predominantemente por juristas imbuídos das novas instituições, que não poderiam colher os frutos esperados nos galhos das árvores seculares com raízes na Carta de 1824, senão na Casa da Suplicação de 1808. Esse foi, a meu ver, o primeiro percalço na his-tória do Supremo Tribunal Federal.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 21.

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Ministro Epitacio Pessôa

jurisprudência republicana do STF por alguns anos. Mas, do ponto de vista formal, a ordem jurídica republicana abriu, desde o início, as portas da Justiça da União para a defesa dos direitos subjetivos, posições jurídicas de imunidade contra a ação do Estado e de privilégios adquiridos em razão da implantação de um governo das leis. Era a “ordem” de que necessitava o “progresso”. Era preciso, como afirmou Campos Sales, ultrapassar a fase inicial do movimento revolucionário que trouxera à luz a República, a ditadura militar. Sua lei orgâ-nica da magistratura deveria cumprir esse papel.52

Ao longo de seus 387 artigos, distribuídos em 45 capítulos, o Decreto 848 traçava os marcos jurídicos iniciais de toda a jurisdição federal na República brasileira, inclusive do Supremo, inspirado no Judiciary Act norte-americano de 1789, a lei orgânica da magistratura dos Estados Unidos.53

Em grande medida, as disposições do decreto foram mantidas pelo texto constitucional que seria promulgado meses depois54.

A propósito da influência americana, merece destaque, nessa nova forma de organização da estrutura judiciária brasileira implantada em 1890, a menção expressa do art. 356, no qual o decreto previa até mesmo que “os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República

52 “(...) As nossas tradições haviam-nos educado no dogma da supremacia parlamentar. Esta, a norma inglesa estabelecida com a revolução de 1688, a norma francesa decorrente da revolução de 1789, a norma européia generalizada com a propagação do governo constitucional, desde 1830, nas monarquias limitadas, a norma brasileira, introduzida com a nossa Constituição de 1823, e praticada em 66 anos de regímen imperial. Substituí-la pelo regímen presidencial, sem buscar na criação de uma justiça, como a americana, posta de guarda à constituição contra as usurpações do presidente e as invasões das maiorias legislativas, contra a onipotência de gover-nos e congressos igualmente irresponsáveis, seria entregar o País ao domínio das facções e dos caudilhos. Eis porque a Constituição brasileira de 1891, armando a Justiça Federal da mesma autoridade, em que a investe a Constituição dos Estados Unidos, a dotou de garantias ainda mais numerosas e cabais, para arrostar as facções encasteladas no Executivo e no Congresso Nacional.” BARBOSA, Rui. O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira. In: Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960. p. 566.53 “A Constituição dos Estados Unidos da América foi nosso primeiro paradigma, como o tinha sido para a Argentina e outros países americanos de língua espanhola. Em 1890, pouco antes do advento de nossa Constituição definitiva (1891), o Governo Provisório baixou o Decreto n. 848, que se espelhou na Judiciary Act de 1789. Na seção 25 dessa Lei Orgânica federal americana, estava previsto um recurso judicial contra as decisões finais dos tribunais estaduais de mais alta instân-cia quando se questionasse a validade de lei federal ou de tratado, ou quando tais decisões fossem ‘repugnant to the constitution, treaties, or laws of the United States’. O nome desse meio impug-nativo era ‘writ of error’ (Cf. COMMAGER, 1958, p. 154). O recorrente, ao interpor o recurso, alegava error in procedendo ou error in iudicando, isto é, errores of the law (erros de direito) da decisão recorrida, a fim de que a Suprema Corte federal anulasse (cassasse) ou reformasse o jul-gado.” MACIEL, Adhemar Ferreira. Restrição à admissibilidade de recursos na Suprema Corte dos Estados Unidos e no Supremo Tribunal Federal do Brasil. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_170/R170-01.pdf. Acesso em 13 de maio de 2009.54 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 20.

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Memória Jurisprudencial

dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

3.1 Recurso extraordinário

Foi também o Decreto 848, de 1890, o criador do recurso extraordiná-rio55, que, todavia, ainda não tinha essa denominação. Adaptado do writ of error do Judiciary Act, nosso recurso extraordinário foi concebido para levar ao Supremo as causas julgadas pelos tribunais dos Estados.

De acordo com o parágrafo único do art. 9º do Decreto 848, caberia re-curso ao Supremo das sentenças definitivas de juízes e tribunais estaduais nas seguintes hipóteses:

a) quando a decisão houver sido contrária à validade de um tratado ou convenção, à aplicabilidade de uma lei do Congresso Federal, finalmente, à le-gitimidade do exercício de qualquer autoridade que haja obrado em nome da União — qualquer que seja a alçada;

b) quando a validade de uma lei ou ato de qualquer Estado seja posta em questão como contrária à Constituição, aos tratados e às leis federais e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou do ato;

c) quando a interpretação de um preceito constitucional ou de lei federal ou da cláusula de um tratado ou convenção seja posta em questão e a decisão final tenha sido contrária à validade do título, direito e privilégio ou isenção, derivado do preceito ou cláusula.

A Constituição de fevereiro de 1891 manteria apenas os dois primeiros permissivos constitucionais de cabimento do recurso56 previstos no Decreto de 1890. Eliminou a terceira hipótese, que tratava de interpretação errônea dos tribunais de justiça dos Estados quanto a preceito constitucional ou de lei federal que significasse deixar de reconhecer a validade de títulos, direitos, privilégios ou imunidades. A manutenção dessa cláusula poderia alargar em demasia a competência do Supremo — a fórmula atual permite recurso extraor-dinário quando se contrariar dispositivo da Constituição, ou seja, praticamente

55 Edson Rocha Bomfim adverte que “a expressão recurso extraordinário somente foi incluída na Constituição a partir de 1934, sendo, porém, pela primeira vez utilizada em 1891, com o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 99)”. BOMFIM, Edson Rocha. Supremo Tribunal Federal: Perfil histórico. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 63.56 Constituição de 1891, art. 59, § 1º:

“Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal:

a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela;

b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.”

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Ministro Epitacio Pessôa

tudo — e, talvez, precipitar sua decantada “crise”. Mas não parece ter sido esse o motivo da supressão. É possível entender, ao contrário, que o Constituinte, por outra via, quis de fato alargar a competência do Supremo para conhecer dos recursos contra as decisões dos tribunais estaduais. É que a Constituição também acrescentou ao texto do decreto a previsão de que o recurso caberia quando fosse posta em questão não apenas a validade, mas também a aplicação de tratados e de leis federais.

Esse acréscimo no enunciado do permissivo constitucional seria fonte de muita controvérsia na doutrina e na própria jurisprudência do Tribunal. O regis-tro desse debate foi feito pelo próprio Ministro Epitacio Pessôa, em monografia de 1907, publicada no ano de 1922 pela Revista do Supremo Tribunal Federal.57

A monografia de Epitacio Pessôa é uma aula sobre as origens do recurso extraordinário brasileiro. É, por isso, um testemunho histórico precioso dos primeiros momentos da jurisprudência do Supremo a respeito do cabimento do recurso extraordinário e de suas funções de controle de constitucionalidade das leis estaduais e, principalmente, de controle da aplicação das leis federais no território dos Estados.

Logo no início do texto, Pessôa fala da indefinição que reinava na dou-trina e na jurisprudência, que não sabiam indicar “com precisão e firmeza os casos em que ele [o recurso extraordinário] pode ser admitido”. O impasse era a colisão, até então inédita, de princípios fundamentais que teria sido cau-sada pela adaptação à brasileira do federalismo americano. Pessôa relembra os fatos da época da Proclamação e localiza a origem da colisão na decisão da Constituinte, da qual ele próprio fora parte, de estabelecer que o poder de le-gislar sobre o direito civil, comercial e penal caberia privativamente à União. Em outras palavras, o problema decorreria da decisão constitucional de adotar a unidade do direito material no novo Brasil federativo. Vejamos:

Vêm estas divergências principalmente da dificuldade de conciliar o princípio da independência da justiça local com o da unidade do direito, ambos consagrados na Constituição (arts. 61, 62 e 34, n. 23), porquanto, se por um lado a autonomia do poder judiciário do Estado é incompatível com a idéia de anula-ção de suas sentenças por um tribunal estranho, por outro a necessidade de man-ter a unidade do direito nacional exige que haja um tribunal da União incumbido de corrigir e uniformizar as decisões divergentes proferidas, sobre as mesmas espécies jurídicas, por vinte e um juízes autônomos.

(...)O projeto de Constituição do Governo Provisório, seguindo a Constituição

dos Estados Unidos, prescrevia a dualidade do direito, a par da dualidade da justiça. O Decreto 848, de 1890, coerente com o sistema, reproduziu as disposi-ções do Judiciary Act. Mas a Constituinte alterou esse regime, e estatuiu que o

57 PESSÔA, Epitacio. Do recurso extraordinário. Revista do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, v. XXXVIII, março de 1922.

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Memória Jurisprudencial

poder de legislar sobre o direito civil, comercial e penal caberia privativamente à União, ficando, não obstante, os Estados com um poder judiciário autônomo e, em regra, independente do poder judiciário federal.

Desde então, uma vez que todo o direito passava a ser federal e se não podia mais estabelecer distinção, a não ser em uma esfera muito restrita, en-tre causas fundadas em leis federais, da competência ordinária da Justiça da União, e causas baseadas em leis estaduais, da alçada privativa dos tribunais dos Estados, pois que a estes ficava agora pertencendo em geral o conhecimento de todos os feitos, isto é, a aplicação de todo o direito civil, comercial e penal, a conseqüência lógica seria, em respeito à soberania nacional e ao axioma político que manda dar ao poder judiciário de um governo a mesma extensão que ao seu poder legislativo, tornar recorríveis para o Supremo Tribunal todas as sentenças dos juízes locais, visto que só deste modo se poderia evitar que as interpretações variadas e discordantes de numerosos tribunais viessem a sacrificar o prestígio da legislação federal e tirar ao direito o caráter de unidade que lhe assinara a Constituição.

Ora, isso seria anular de fato a autonomia dos tribunais dos Estados, as-segurada nos arts. 61, 62 e 63.

Mas, de outra parte, deixar sem corretivo algum as sentenças destes tri-bunais fora também por em perigo a unidade do direito.

Debatendo-se assim entre as maiores dificuldades, solicitadas por essas duas forças opostas, julgou a Constituinte resolver o problema concedendo o recurso somente nos casos em que a justiça local decidisse contra a validade ou a aplicação da lei federal.

Mas qual o alcance destas expressões validade ou aplicação da lei federal?58

A partir dessa indefinição conceitual, a questão que se colocava era a de estabelecer os limites do cabimento do recurso extraordinário. A posição ado-tada pelo Supremo inicialmente foi a de que o recurso só era admissível quando decisão do tribunal do Estado fosse contrária à validade da lei federal, porque o Constituinte teria usado a expressão “aplicação” no sentido de aplicabilidade em tese, ou seja, equivalente à validade mesma. Contra a jurisprudência, se-gundo Pessôa, outros entendiam que “esta equivalência não existe, que os dois vocábulos devem ser entendidos em seu sentido natural e próprio, e o recurso permitido não só quando a sentença da justiça local declara juridicamente ine-xistente a lei da União, mas também deixa em absoluto de aplicá-la e, ainda, quando a aplica de modo contrário à sua letra ou ao seu espírito”.59

Epitacio Pessôa ponderava que, entre os extremos, deveria prevalecer uma terceira posição, a de que o cabimento do recurso não deveria ficar restrito aos casos de validade, mas também não deveria abranger os casos de aplicação da lei federal — ainda que errônea ou decorrente de má interpretação da lei feita

58 PESSÔA, Epitacio. Do recurso extraordinário. Revista do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, v. XXXVIII, p. 255-257, março de 1922.59 Idem, p. 258.

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Ministro Epitacio Pessôa

pela Justiça estadual —, e, nesse ponto, acompanhava a posição da maioria no Tribunal. Mas continuava vencido no ponto em que admitia cabimento de re-curso extraordinário para os casos em que a Justiça local deixasse de aplicar à espécie a lei federal que expressamente regesse a matéria.

A solução de Pessôa era uma opção clara pela unidade do Direito, ao reconhecer a necessária mitigação do princípio da autonomia do Judiciário estadual, que estava impedido de deixar de aplicar uma lei federal na matéria que fosse por esta expressamente regida. Por outro lado, fazia uma enorme concessão hermenêutica à Justiça dos Estados, ao sustentar a incompetência do Supremo para conhecer de recurso extraordinário contra decisão que houvesse “aplicado mal” a lei federal.

Na biografia de Epitacio Pessôa, Laurita Pessoa Raja-Gabaglia conta que, “graças a numerosos pareceres, cuja doutrina a citada monografia re-colheu, Epitacio Pessôa conseguiu fixar, durante anos a jurisprudência do Supremo Tribunal nesse meio-termo criterioso: nem a restrição exagerada, nem a indevida ampliação do recurso extraordinário”. Laurita também regis-tra que, após a saída de Pessôa, o Tribunal passou a aceitar a tese de cabimento de recurso extraordinário em caso de má ou errônea aplicação da lei federal, e, cita Levi Carneiro para concluir que essa virada na jurisprudência havia provocado a “torrente dos recursos extraordinários” submetidos ao Supremo Tribunal.60

O recurso extraordinário é talvez o exemplo mais forte de continuidade da jurisdição constitucional brasileira exercido pelo Supremo. A reforma cons-titucional de 1926, que enterrou a “doutrina brasileira do habeas corpus”, ao vincular exclusivamente seu cabimento aos constrangimentos ilegais contra a liberdade de locomoção, retirou do Supremo a via alargada para conhecer das violações a direitos e prerrogativas assegurados pela Constituição. Com a cria-ção do Tribunal Federal de Recursos, em 1947, o Supremo deixou de julgar as apelações cíveis e criminais de interesse da União, passando a admitir ações dessa natureza apenas em caráter originário. Com isso, deixou também de exercer nessas causas, de modo incidental, o controle de constitucionalidade. Já em relação ao recurso extraordinário não houve ruptura, pois durante toda a história republicana este exerceu o papel de levar para o Supremo o controle de constitucionalidade das leis no Brasil.

A importância do recurso extraordinário, como instrumento de controle da constitucionalidade, só começa a perder força quando, ainda no regime formal da Constituição de 1946, por força da Emenda 16, de 1965, o Supremo Tribunal

60 RAJA-GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p. 191.

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Memória Jurisprudencial

passou a exercer também o controle concentrado de constitucionalidade das leis.61

Nos primeiros anos da vida republicana, porém, não era o recurso ex-traordinário o campeão das estatísticas de movimentação processual no STF, mas, sim, as apelações cíveis e os pedidos de habeas corpus. Aliomar Baleeiro recorda que (na primeira década republicana) os Ministros “julgavam as ape-lações interpostas das decisões dos juízes federais seccionais e raros recursos extraordinários lhes subiam às mãos: dois apenas em 1892, poucas dezenas nos anos seguintes”.62 Com a mudança na orientação da jurisprudência, esse quadro seria progressivamente alterado nas décadas seguintes, ao ponto de transformar essa via recursal, extraordinária há várias gerações, na maior res-ponsável pela chamada “crise do Supremo”.

Com efeito, a percepção da crise de congestionamento das causas no Supremo vem desde o início da segunda década do século XX, exatamente após a aposentadoria do Ministro Epitacio Pessôa. Aliomar Baleeiro localizou manifestação datada de 1913, do Ministro Guimarães Natal, que já reclamava da “eternização” das causas no STF.63 A reclamação certamente tinha como alvo, não o recurso extraordinário, mas os recursos ordinários, as apelações e os agravos oriundos das 21 seções da Justiça Federal nos Estados, conforme examinaremos mais adiante.

Em 1943, mesmo depois da criação das turmas de julgamento (1934), o Ministro Philadelpho Azevedo, citando dados estatísticos de 1926 a 1942, pedia nova reforma para enfrentar o problema do congestionamento de causas sem julgamento no Tribunal, e também falava em crise. Dizia ele: “É preciso, pois, voltar ao assunto, enquanto a crise não se agrava a ponto de paralisar pratica-mente o Supremo Tribunal, deixando os litigantes, inclusive a própria União, a aguardar os julgamentos por longos anos”.64

O problema persistiu. Na década de sessenta do século passado, o Ministro Victor Nunes Leal, insatisfeito com esse congestionamento crescente do STF, procurou, na adoção de novos procedimentos e técnicas de julgamento e de 61 “No Brasil, o controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituição republicana, a de 1891. Por outro lado, a denominada ação genérica (ou, atual-mente, ação direta), destinada ao controle por via principal — abstrato e concentrado —, foi introduzida pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que atribuía a legitimação para sua propositura, exclusivamente, ao Procurador-Geral da República.” BARROSO, Luis Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009.62 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 14, 1972. Separata.63 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 122.64 Apud BOMFIM, Edson Rocha. Supremo Tribunal Federal: Perfil histórico. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 50.

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Ministro Epitacio Pessôa

visualização da jurisprudência (a Súmula), outros meios para enfrentamento da crise. Suas idéias e propostas pioneiras de gestão da jurisdição do Supremo, como se sabe, foram abatidas pelo endurecimento político que caiu sobre todos (especialmente os Ministros e demais autoridades cassadas pelo Ato Institucional 5/1968). Mas, ainda no ano de 1964, o Ministro Victor Nunes, em tom de alerta profético, registrava sua irresignação com a crise processual que se propunha a enfrentar:

Julgar processos sempre fez o Supremo Tribunal, que, ultimamente, decide cerca de 7.000 por ano. Podemos ter uma idéia do aumento do serviço quando observamos que, em 1950, foram julgados 3.511. Quando um tribunal se vê a braços com esse fardo asfixiante, há de meditar, corajosamente, sobre seu próprio destino. Se não o fizer, deixará que formulem a receita os que menos co-nhecem a instituição, ou aqueles que desejariam diminuí-la, para mudar o nosso regime de liberdade garantida em sistema de liberdade tolerada.65

Comparando-se esses números, que assustavam o Ministro Victor Nunes Leal, com os de hoje — mesmo levando em conta as expressivas reduções do movimento processual, obtidas pela aplicação dos mecanismos processuais da Emenda Constitucional 45/2004 —, compreende-se bem por que o Ministro Sepúlveda Pertence chegou a afirmar, irônico, no voto que proferiu como Relator no AI 466.032-AgR, que a crise do Supremo, que tantas vezes dissera ser a crise do recurso extraordinário, estava sendo rebaixada à crise do agravo de instrumento:

Falar de agravo de instrumento é falar do campeão — por classe — dos recursos para o STF: desde 1995 — ano em que o número de agravos superou o de recursos extraordinários — é ele o primeiro em números de distribuição e julgamentos.

Em 2002, foram distribuídos 50.218 agravos (contra 34.719 recursos extraordinários) e julgados 45.769 (contra 34.396 recursos extraordinários). Foram 5.021 agravos, em 2002, para cada um dos 10 Ministros que atuam como relatores.

Em proporção (dados somente de 2002), os agravos corresponderam a 57,5% dos processos distribuídos ao Tribunal. A crise do Supremo que tantas vezes disse com razão ser a crise do recurso extraordinário acabou pobremente reduzida em graus paroxísticos, na crise do agravo de instrumento.66

No cargo de Ministro do STF, Epitacio Pessôa não conviveu, portanto, com a crise do recurso extraordinário. Sua posição a respeito do cabimento do recurso extraordinário foi majoritária enquanto esteve no cargo, e, defensiva,

65 LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público e Outros Problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. v. II. p. 37.66 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Instrumento 466.032-AgR. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 18-3-2005.

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Memória Jurisprudencial

ajudou a evitar a subida de um número maior de recursos extraordinários para o Supremo.

De volta à sua monografia sobre o tema, encontramos o Ministro Epitacio Pessôa a discutir, com base na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, outras hipóteses de cabimento do recurso extraordinário.

Vale então registrar a menção feita por ele à hipótese em que fica dispen-sado o chamado prequestionamento da questão da aplicação (ou da declaração de inconstitucionalidade) da lei federal pela decisão recorrida, para admitir-se o conhecimento do recurso extraordinário. O Ministro Pessôa explicava que essa condição, “que figura em todos os livros de doutrina, tem sido sempre exigida pelo Supremo Tribunal”. Mas indagava também se haveria algum caso em que poderia ser afastada. Vejamos:

Dantes tínhamos por certo que o princípio não comportava exceções. Desde que a Constituição pressupõe que se haja questionado sobre a validade ou a aplicação da lei, parecia de necessidade incluir sempre este entre os requi-sitos do recurso extraordinário. Uma ponderação mais acurada do assunto, po-rém, mostra que se inspira melhor no pensamento do legislador constitucional a opinião que esse princípio abre exceção para a hipótese como a que vamos figurar.

Suponhamos que, em uma causa sujeita a uma única instância, julgada por uma única sentença e esta mesma insuscetível de embargos ou de qualquer outro recurso ordinário, ou mesmo no julgamento dos embargos ao acórdão da apelação, o juízo local, com surpresa para as partes litigantes, declara inválida a lei federal em que se funda o direito de uma delas.

A hipótese não é gratuita: tivemo-la há dois anos no Supremo Tribunal.(...) Será razoável atribuir àquele requisito tal importância que, sem ele,

possa o Estado, por um de seus órgãos, sobrepor-se impunemente à autoridade legislativa da República?67

Com essa ancestral invocação do chamado princípio da razoabilidade, o Ministro Pessôa adicionava uma cláusula de exceção ao requisito do prequestio-namento, ao argumento de que:

A condição visceral, indispensável do recurso extraordinário é a existên-cia de uma decisão de última instância da Justiça do Estado contrária à validade ou à aplicação da lei federal; porque o que a Constituição quer, o que reclama a índole do regime, o que a soberania nacional exige, o que dita o simples bom senso, é que as leis da República sejam respeitadas e aplicadas pelos poderes locais e só o mais elevado tribunal da União possa, em caso de dúvida, decidir soberanamente se elas deixaram de vigorar, se são inconstitucionais, ou se de-vem ou não ser aplicadas.

67 PESSÔA, Epitacio. Do recurso extraordinário. Revista do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, v. XXXVIII, p. 280-281, março de 1922.

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Ministro Epitacio Pessôa

Eis aí a condição por excelência do recurso extraordinário, sem a qual este não pode ser admitido e à qual cede o passo a do prévio debate sobre o ponto constitucional.68

Vale ainda registrar outra contribuição de Epitacio Pessôa para a documen tação da jurisprudência do Supremo sobre o tema do recurso extraor-dinário. Na parte final de sua monografia, o Ministro deixou esta valiosa relação de tópicos da jurisprudência do Tribunal sobre o cabimento do (denominado por ele) “remédio constitucional”:

Somente ao Supremo Tribunal e jamais ao juízo recorrido é que cabe decidir se o recurso é ou não admissível. (Acórdãos 103, 104, 107 e 112, de 1895; 136, de 1896; 216, 221 e 222, de 1897; 334, de 1898, nos volumes corres-pondentes da Jurisprudência); e, mais recentes, 502, de 1903; 745, de 1905; 824 (O Direito, vol. 102, p. 378), 829 e 874, de 1906.

Do mesmo modo, só o Supremo Tribunal pode decidir as questões in-cidentes (como, por exemplo, a deserção), que se prendem ao recurso desde o seu recebimento até a execução da sentença sobre ela proferida (citado Acórdão 745, de 1905 — O Direito, vol. 99, p. 205).

Cabe o recurso quando o Tribunal do Estado se declara incompetente para reconhecer da constitucionalidade da lei: a sua competência está pressu-posta na própria Constituição da República, art. 59, § 1º (Acórdão 224, de 9 de abril de 1902 — O Direito, vol. 88, p. 568).

O recurso não pode ser arrazoado no Supremo Tribunal (Acórdão 341, de 4 de novembro de 1903 — O Direito, vol. 95, p. 239).

Só é admissível quando a questão constitucional é decidida por tribunal judiciário (Acórdãos 358 e 351, de 19 de abril de 1904, e 361, 378 e 382, de 12 de abril de 1905 — O Direito, vol. 101, p. 563) e, assim, não cabe das decisões das juntas eleitorais de recurso (Acórdão 749, de 3 de janeiro de 1906), nem da deci-são proferida em conflito de atribuições pelo Senado dum Estado (Acórdão 192, de 20 de dezembro de 1899, Jurisprudência, p. 166).

Nas palavras — atos e leis dos governos locais — compreendem-se atos ou leis municipais (Acórdão 375, de 7 de outubro de 1905).

A interposição de recurso não investe o juiz federal da secção de com-petência alguma na causa, que é deferida só e excepcionalmente ao Supremo Tribunal (Acórdão 885, de 2 de janeiro de 1907).69

O leitor atento há de concordar que os tópicos acima citados, organiza-dos dessa forma por Epitacio Pessôa, podem ser vistos como verdadeiros enun-ciados antecipados da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, que somente seria adotada pelo STF na década de sessenta do século passado.

68 PESSÔA, Epitacio. Do recurso extraordinário. Revista do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, v. XXXVIII, p. 282, março de 1922.69 Idem, p. 291-292.

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Memória Jurisprudencial

3.2 Apelações e agravos: o começo da “crise do Supremo”

Se o Decreto 848, de 1890, e a própria Constituição de 1891 já haviam de-finido o modo de funcionamento da jurisdição federal no Brasil, caberia a outro ato normativo, a Lei 221, de 20 de novembro de 1894, complementar as disposi-ções anteriores e assim estabelecer os contornos definitivos dessa jurisdição até praticamente o fim da República Velha. Nos votos do Ministro Epitacio Pessôa, são os dispositivos dessa lei de 1894 que ele invoca para reconhecer a compe-tência do STF, principalmente na via recursal ordinária, nas apelações cíveis e criminais e nos agravos.

Essa foi a via mais utilizada para acessar a jurisdição do Supremo na Primeira República. Como vimos, o STF era um tribunal de apelação das cau-sas julgadas pela Justiça Federal de primeira instância, ou seja, pelos juízes sec-cionais. Cada Estado constituía uma Seção. Embora a Constituição tenha dito, no art. 55, que o Poder Judiciário da União poderia ter tantos juízes e tribunais quantos o Congresso criasse, não foram criados tribunais de segunda instância no período. Todas as causas de interesse da União poderiam, como puderam, chegar ao Supremo.

O STF, desde o início, assumiu essa competência ampliada, que ainda faz dele o estuário processual de todos os diversos órgãos de jurisdição no Brasil. Mesmo depois da criação do Tribunal Federal de Recursos (1947), que assumiu, pela primeira vez, a função de segunda instância na Justiça Federal, o Supremo continuaria a receber potencialmente todas as causas pela via do recurso extra-ordinário, via que foi progressivamente ampliada, conforme acabamos de ver.

Somente agora, com a implementação das medidas de uniformização e vinculação das decisões — o stare decicis que sempre faltou —, aliadas à necessidade de demonstração da repercussão geral no recurso extraordinário, é que o Supremo poderá recusar-se a rever a jurisdição comum que é prestada seja pela Justiça Federal, seja pelas Justiças estaduais, mesmo que a decisão das instâncias inferiores tenha se pautado em matéria constitucional.

De volta a 1912, último ano do Ministro Pessôa no Supremo, descobre-se que o assunto — a crise de congestionamento processual — já era motivo de grandes debates. Naquele ano encontramos registro interessante: o Jornal do Commercio promoveu um debate público sobre as propostas de reforma da Justiça Federal. O periódico elaborou um questionário que fez distribuir às auto-ridades consultadas, entre as quais Epitacio Pessôa. A pergunta central era: “De que reformas necessita a atual organização judiciária brasileira?”

Com a pretensão de sintetizar o debate público sobre o tema, o questio-nário desdobrava-se:

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Ministro Epitacio Pessôa

São constitucionais e vantajosas a redução do Supremo Tribunal Federal a tribunal de revista e a criação de tribunais regionais, investidos nos Estados das atribuições de segunda instância, hoje exercidas por aquele órgão do judi-ciário? No caso afirmativo, quais devem ser as atribuições desses últimos tribu-nais e quando podem ser interpostos os recursos de revista?70

A necessidade de reforma da estrutura da Justiça da União — que, afinal, não aconteceu71 — é a primeira manifestação da citada “crise do Supremo”. Todos os juristas consultados pelo jornal concordavam com essa avaliação de que era preciso descongestionar o Supremo, mas divergiam muito na maneira de fazê-lo.

Clóvis Beviláqua, o primeiro a responder, citando os enunciados dos arts. 59 e 60 da Constituição, declarava que o texto constitucional “não se opõe, antes faculta, a criação de tribunais regionais, que aliviem a tarefa excessiva atualmente entregue ao Supremo Tribunal Federal”.72

Pedro Lessa, por sua vez, afirmava ser preciso reformar a Constituição para criar duas alçadas na Justiça Federal. Ou seja, criados os tribunais federais de segunda instância, a jurisdição destes ficaria sujeita ao exame de causas de até determinado valor. Acima disso, a competência de segunda instância ainda seria do STF.73

Enéas Galvão também achava que era preciso reformar a Constituição, caso se entendesse necessário criar tribunais regionais federais de segunda instância. Para Galvão, quando os arts. 55, 58, 59, II, e 60 da Constituição se referiam a juízes e tribunais federais, quis o Constituinte “deixar ao Congresso ordinário a liberdade de organizar a Justiça Federal de primeira instância, conforme convier, ou por meio de tribunais coletivos, ou por meio de juízes singulares”. Para ele, a prova dessa intenção seria o fato de que a Constituição não se preocupou em indicar “a competência dos tais tribunais, como distinta do dos juízes federais”, antes atribuiu-lhes a mesma competência, o que seria

70 O DIREITO. Pareceres sobre Reforma do Judiciário. Revista Mensal de Legislação, Doutrina e Jurisprudência, Rio de Janeiro, p. 30, Ano XXXX, jan.-abr. 1912.71 O deputado federal Afrânio de Melo Franco chegou a propor naquele ano de 1912 um pro-jeto de reforma da Justiça Federal, que também não foi adiante. Afonso Arinos de Melo Franco, sobre o fato, fez o seguinte relato: “Era a criação de juízes substitutos nos Estados, com com-petência para julgar determinados processos menos importantes, e de cujas decisões haveria recurso para o juiz seccional, mas não para o Supremo. Era, enfim, a criação da Justiça Federal de segunda instância, no modelo americano, com competência para proferir decisões finais. Pela resistência criada a essa solução pelo próprio Supremo, no governo Epitacio Pessôa, verifica-se quão ousada era a tentativa do deputado mineiro, no ano de 1912.” (Sem grifos no original.) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República: Afrânio de Melo Franco e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. v. II, p. 711-712 (Coleção Documentos Brasileiros).72 Idem, p. 32.73 Idem, p. 34-35.

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Memória Jurisprudencial

um “método inconcebível”, pois se cogitasse de tribunais de hierarquia diversa, deveriam também ter competências diferentes.74

A proposta de Epitacio Pessôa, contra Lessa e Galvão, é, sem dúvida, a que melhor reflete o quadro atual da jurisdição federal no Brasil, cem anos depois:

A criação dos tribunais de circuito ou regionais seria da maior utilidade para a administração da justiça. A lei que os instituísse poderia conferir-lhes todas as atribuições de segunda instância, ficando o Supremo Tribunal com a sua competência originária e com os recursos das sentenças daqueles tribunais em certos casos, tais como os que envolvessem matéria constitucional, interna-cional ou política. Assim, o trabalho seria mais equitativamente distribuído, a administração da justiça ganharia em rapidez e o Supremo Tribunal não se veria assoberbado, como agora, por uma tarefa muitas vezes superior às suas forças.75

Foi a partir desse ponto que o movimento processual do Supremo Tribunal começou a crescer exponencialmente. O momento histórico coincide com a aposentadoria de Epitacio do cargo de Ministro do STF (1912) e com a consoli-dação de uma jurisprudência que poderíamos chamar de ativista do Tribunal, a “doutrina brasileira do habeas corpus”.

3.3 Habeas corpus: a doutrina brasileira na visão de Epitacio Pessôa

A despeito do propósito desta pesquisa de documentar a obra jurídica do Ministro Epitacio Pessôa no STF, não se poderia deixar de mencionar e registrar a reflexão do político e diplomata Epitacio Pessôa sobre os pontos da reforma constitucional de 1926 relativos ao habeas corpus.76 Como se sabe, essa reforma encerrou a tradição jurisprudencial republicana, que alargou enormemente a hi-pótese clássica de cabimento do chamado “remédio heróico” no Brasil.

Em discurso proferido no Senado Federal, que se preparava para consoli-dar a reforma da Constituição, Epitacio Pessôa fez uma retrospectiva histórica e teórica do instituto e, claro, comentou o desenvolvimento peculiar de sua aplica-ção a partir da vigência da Constituição de 1891. Encontrou, contudo, exemplos de que a tendência de alargamento vinha antes da Proclamação da República. Ensinou, então, que no Brasil o habeas corpus fora adotado pelo Código de Processo Civil imperial de 1832, diretamente do direito inglês, com o mesmo significado, ou seja, para proteger o direito de locomoção contra constrangi-mento ilegal. “Mas [continuou Pessôa], uma vez admitido o instituto entre nós,

74 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República: Afrânio de Melo Franco e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. v. II, p. 59 (Coleção Documentos Brasileiros).75 Idem, p. 41.76 REVISTA FORENSE. Fascículos 271 a 276. Propriedade e direção de F. Mendes Pimentel. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1926. v. XLVI, p. 169-173.

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Ministro Epitacio Pessôa

alguns tribunais e alguns espíritos mais adiantados começaram logo a mani-festar certa tendência para alargá-lo, embora dentro do âmbito de seu conceito original”.

Epitacio, então, pôs em relevo o fato de a Constituição de 1891 não ter feito menção expressa ao direito de locomoção, declarando apenas, no § 22 do art. 72, que seria concedido habeas corpus sempre que o indivíduo sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder. Partiu daí para explicar a origem e o fundamento da “doutrina brasileira” que àquela altura já havia conquistado definitivamente a jurispru-dência do Supremo Tribunal:

Eu não creio que o legislador constituinte tenha tido a intenção delibe-rada de transformar substancialmente o remédio do habeas corpus, conver-tendo-o em outro mais amplo e aplicável a todas as liberdades para as quais não houvesse em nosso direito garantia especial; eu creio, pelo contrário, que não foi esta a sua idéia, que o seu pensamento foi consagrar mesmo o habeas corpus, tanto que lhe conservou o nome tradicional.

Mas é fora de dúvida que o texto da Constituição republicana é muito mais amplo do que o do Código imperial, e desta amplitude se valeram a doutrina e a jurisprudência para alargar o domínio do instituto. Com efeito, apoiados nos termos do dispositivo constitucional e, considerando que a nossa legislação não possui, como a americana, remédios tutelares para certos direi-tos, tão respeitáveis como a liberdade de locomoção e dos quais a liberdade de locomoção é um acessório, a doutrina e a jurisprudência entenderam cabível o habeas corpus, não só quando esta liberdade é o fim direto e exclusivo da garan-tia que se impetra, mas ainda quando é unicamente a condição do exercício de outro direito, para o qual não haja na lei o remédio apropriado.77

Epitacio propôs ao Senado uma posição conciliadora que poria fim aos “abusos” da jurisdição ampliada do habeas corpus, principalmente em ques-tões políticas, mas manteria a garantia como remédio para a proteção de outras liberdades fundamentais, como a “liberdade de consciência, de reunião e de tribuna”. Na verdade, Pessôa considerava que o “mal” já estava superado pela supressão proposta (e já aprovada) na Emenda 4, § 5º, que retirava do Judiciário a apreciação de qualquer questão relativa à intervenção nos Estados, à declara-ção do estado de sítio, à verificação de poderes e ao reconhecimento, posse, le-gitimidade e perda de mandato dos membros do Poder Legislativo e Executivo, federal ou estadual. Para Epitacio, isso já seria suficiente para conter o ativismo do Supremo em matéria política.

Salvo poucos casos, que podem ser considerados exceções, é sobretudo na matéria política que os inconvenientes dessa atuação se têm feito sentir. A in-gerência dos tribunais nesses assuntos contraria, com efeito, a lógica dos princí-pios e quebra a harmonia do sistema, segundo o qual os tribunais devem o mais

77 REVISTA FORENSE. Fascículos 271 a 276. Propriedade e direção de F. Mendes Pimentel. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1926. v. XLVI, p. 170.

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Memória Jurisprudencial

possível ser afastados desse terreno onde, ao demais, correm sempre o risco de perder a serenidade que deve formar o ambiente de suas decisões e o sentimento de justiça que deve inspirá-las. Infelizmente a intervenção do Judiciário nos cha-mados casos políticos tem sido demasiado freqüente e não raro perturbadora.78

Nota-se, claramente, a posição reticente de Epitacio Pessôa em relação à “doutrina brasileira do habeas corpus”, mas a sua proposta (que não era tão conhecida) de utilização do instituto para casos mais amplos de proteção das liberdades fundamentais, excluída apenas a possibilidade de intervenção ju-dicial na atividade política, revela o compromisso de Pessôa com a defesa da Constituição. Vejamos:

Restringida, assim, a órbita de ação dos tribunais, os inconvenientes apontados perdem o vulto. Não há necessidade de estreitá-la ainda mais, como faz a Emenda 5, § 22. Reduzir ainda o habeas corpus à simples garantia de loco-moção, sem dar-lhe um sucedâneo para assegurar certos direitos imprescritíveis do indivíduo e inseparáveis de todo povo culto, será mal ainda maior, será um pirronismo excusado e indefensável. Não pode aspirar aos foros de civilizada a nação onde direitos como o de reunião, de tribuna, de consciência, etc. possam ser mistificados pelo arbítrio da autoridade, sem que à justiça seja permitido impedi-lo em tempo oportuno. Entretanto, é o que vai acontecer se o Congresso adotar a emenda de que estou tratando.79

Nos votos proferidos — cerca de vinte anos antes desse discurso — pelo Ministro Epitacio Pessôa, em processos de habeas corpus, é possível identificar perfeitamente sua coerência de pensamento sobre o tema. Nota-se, ao mesmo tempo, a mencionada resistência com a perspectiva de alargamento excessivo do cabimento do remédio constitucional, mas também o reconhecimento de seu cabimento em situações em que a liberdade de locomoção seria meio para a fruição de outras liberdades fundamentais.

78 REVISTA FORENSE. Fascículos 271 a 276. Propriedade e direção de F. Mendes Pimentel. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1926. v. XLVI, p. 171.79 Idem, p. 171.

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Ministro Epitacio Pessôa

4. EPITACIO PESSÔA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Este capítulo tem o objetivo de apresentar mais detalhadamente o perfil jurídico do Ministro Epitacio Pessôa com base na análise de algumas de suas principais decisões. Para tanto, buscou-se classificar as decisões utilizando o critério da organização da própria jurisdição do Supremo da época: como tribu-nal de apelação da Justiça Federal (jurisdição cível e criminal); como tribunal encarregado de garantir a unidade do Direito em confronto com a dualidade da Justiça (jurisdição extraordinária); e como tribunal de defesa dos direitos e li-berdades assegurados pela Constituição (jurisdição das liberdades).

É bem verdade, como se verá, que essa divisão não significa uma sepa-ração estanque das funções do STF, até porque, incidental, o controle de cons-titucionalidade na época era feito de modo excepcional em qualquer processo. A proteção de liberdades fundamentais ou a preservação da unidade e supre-macia do direito federal sobre a legislação estadual muitas vezes se fazia no exercício da jurisdição, digamos, comum do STF, quando atuava como corte de apelação da Justiça Federal. O recurso extraordinário propriamente dito desti-nava-se principalmente à defesa da Federação e aproximava o STF do formato de corte de cassação das decisões dos tribunais estaduais, com a diferença de que suas decisões nessa sede sempre substituíram a decisão recorrida, ou seja, sempre foram dotadas da prerrogativa — ausente nas cortes de cassação — de julgar novamente a causa, a partir da correta aplicação do direito.

A classificação visa apenas a organizar os acórdãos e votos de Epitacio Pessôa de modo um pouco mais didático. Não obstante, os subitens desta se-ção foram montados com o intuito de revelar, mediante a seleção de votos do Ministro Pessôa, os tópicos, as premissas decisórias, os fundamentos conceituais que ele manejava para convencer a maioria do Tribunal.

Foi dito, no capítulo primeiro, que a característica mais marcante de Pessôa como juiz do Supremo foi a defesa da legalidade, do direito positivado, defesa que se manifestava, não raro, explicitamente. Vê-se esse compromisso em várias passagens de seus votos, como, por exemplo, no voto que proferiu na ACr 352, de 1909, em que se discutia o correto enquadramento legal da conduta apontada como típica em relação ao crime de “introduzir em circulação moeda falsa, como autêntica”. Na ocasião Pessôa, com a ênfase habitual, chamava a atenção do Tribunal para a impropriedade da redação do enunciado normativo:

Ora, não há artifício capaz de convencer que incorre nas penas deste artigo quem introduz na circulação moeda falsa, como falsa. Podem sacar daí todas as assustadoras conseqüências que quiserem: a culpa será do legislador, que não soube fazer a lei, nunca do juiz, adstrito a aplicá-la como ela é e não como ele entende que devia ser.

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Memória Jurisprudencial

Esse voto será examinado mais adiante, mas a antecipação do pequeno trecho acima serve apenas para ilustrar o que se disse a respeito da postura de Pessôa em defesa da legalidade, à moda exegética.

É notável também a atuação de Pessôa na defesa dos interesses da União e de sua legislação federal, em face dos governos e legisladores estaduais. Suas posições firmes nesse sentido ajudaram a sedimentar o modelo brasileiro de federalismo, caracterizado pela ascendência do poder central sobre as demais unidades políticas do território nacional, Estados e Municípios.

Um bom exemplo do modo como ele encarava o federalismo está no voto elaborado para o julgamento do RE 518/RS. Sobre esse voto, aliás, há uma curiosidade histórica, lembrada por Leda Boechat Rodrigues80, mas que, apa-rentemente, passou despercebida por Sobral Pinto quando da confecção do pre-fácio da já mencionada coleção das obras completas de Pessôa. O julgamento do recurso extraordinário ocorreu no dia 11 de dezembro de 1907. Pessôa havia se licenciado do Tribunal para tratar de uma enfermidade, viajara para a Europa e não participara do julgamento. Seu longo voto não foi lido e o resultado foi a vitória do Estado do Rio Grande do Sul, em desempate, contra eleitores da cidade de Porto Alegre, que não aceitavam a aplicação de legislação estadual supostamente em confronto com a Lei federal 1.269, de 1904, lei esta que, nas palavras de Pessôa, havia consagrado “o princípio da unidade de alistamento para todo o Brasil”.

A leitura desse voto não proferido dá a exata dimensão de sua posição de defesa da superioridade da lei federal sobre a legislação dos Estados:

Desde que o direito de voto é outorgado pela União, é a esta que incumbe proclamar quais os que dele se acham investidos; é ela que deve verificar quais cidadãos que reúnem as condições que ela própria estabeleceu para o gozo dum direito que ela própria criou e conferiu.

Mas, feita esta verificação, reconhecido o direito político do cidadão, proclamado oficialmente (permitam-me dizê-lo, federalmente) esse direito por meio do título eleitoral, não podem os Estados criar limitações, condições ou embaraços de qualquer natureza a esse direito, sob pena de admitirmos este absurdo — que é lícito aos Estados limitarem, condicionarem ou embaraçarem nos seus territórios a própria ação da União Federal. Investido pela União do direito de voto, o cidadão é eleitor em toda a República e, exibindo o seu título,

80 “Encontrou-se entre os papéis de Epitacio Pessôa um voto, datado de 11 de dezembro de 1907, que não chegou a ser proferido, por ter sido a causa duas vezes decidida em 1908 enquanto ele se encontrava na Europa, de licença. Pelo voto de desempate do Presidente Pindaíba de Matos, negou-se provimento ao recurso, julgando-se constitucional o alistamento eleitoral do Estado do Rio Grande do Sul. Se Epitacio tivesse participado do julgamento e lido seu voto, realmente ma-gistral, o Tribunal teria dado provimento ao recurso por 6 votos contra 5, e não teria sido adiada, por decisão judicial, a unidade do alistamento eleitoral no Brasil.” RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 9 (Defesa do Federalismo, II).

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Ministro Epitacio Pessôa

pode votar em qualquer eleição federal, estadual ou municipal, independente de qualquer outro alistamento. E só o investido pela União pode votar, porque só ela pode conferir esse direito.

O que os Estados podem fazer é estabelecer as regras para o exercício deste direito nas eleições locais; é prescrever que os eleitores só possam votar na seção da sua residência, em grupos de cem ou duzentos, de tais a tais horas, em escrutínio secreto ou não, em tantos nomes, assinando tais a tais documentos, exibindo os seus títulos etc., etc.

E eis aí perfeitamente definidas e caracterizadas a função da União e a função do Estado em matéria eleitoral. A primeira concede o direito de voto (di-reito que se autentica com o título), o segundo regula o seu exercício.

É o mesmo que se dá com o direito de ação, jus agendi. A União é quem concede o jus agendi, o Estado não pode dá-lo a outras pessoas que não as favo-recidas pela lei federal, não pode, por exemplo, dá-lo aos menores de quatorze anos; o Estado não pode recusá-lo a alguma daquelas pessoas, por exemplo, aos estrangeiros ou aos condenados; o Estado não pode impor-lhe limitações, decretando, por exemplo, que o interdito recuperando não possa ser empregado por quem tenha viciosa a posse; o Estado, finalmente, não pode sujeitá-lo a con-dições, determinando, por exemplo, que a ação finim refundarum só possa ser exercida por quem tenha a sua propriedade registrada em alguma repartição estadual.

O Estado não pode fazer nada disso. Por quê? Porque seria dar onde a União nega; recusar onde a União dá; limitar e condicionar onde a União não criou limites nem condições; e a autoridade do Estado não se pode sobrepor ou contrapor à da União.

Como se vê, a superioridade política da União sobre os Estados é, pois, originária na experiência republicana.

Atualizado, poliglota, Epitacio Pessôa combinava em seus votos, a seguir examinados mais amiúde, a doutrina predominante do pensamento jurídico europeu com a jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Unidos, tomada como modelo para a criação de nosso Supremo Tribunal.

Os direitos adquiridos, a relação jurídica, os conceitos de posse e de pro-priedade, os efeitos da vitaliciedade dos cargos públicos, os interditos posses-sórios, todos esses institutos e muitos outros, recebidos da influência civilista européia, passam então a conviver com as técnicas e questões — até aquele momento inéditas — do controle difuso de constitucionalidade, que impu-nham — como vimos no capítulo anterior — saber se o recurso extraordinário era cabível quando a decisão recorrida negava validade a lei federal ou apenas havia deixado de aplicá-la, ou de aplicá-la corretamente; e do habeas corpus, como ação mandamental mais ampla de proteção das liberdades fundamentais, principalmente no campo dos direitos políticos.

Sua passagem pelo Supremo deixou no Tribunal a marca de uma obra jurídica de grande relevo, cuja importância Sobral Pinto já apontara não apenas

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Memória Jurisprudencial

“como expressão científica da cultura jurídica do passado, mas também como roteiro da vida jurídica contemporânea”.81

A propósito, nas páginas seguintes, em que se pretende mais descrever do que propriamente analisar os votos do Ministro Epitacio Pessôa, poderá o leitor, minimamente versado nos temas atuais de nossa doutrina constitucional, surpreender-se com a familiaridade de alguns debates de outrora, não obstante o século decorrido, tão parecidos com alguns problemas e suas soluções cons-titucionais do presente.

A vivacidade do texto de Epitacio Pessôa será evidenciada. Seu raciocí-nio lógico inescapável, sua ironia e senso de humor, sua veemência, o manejo dedutivo de princípios, as melhores passagens de cada voto selecionado serão transcritas. Pretende-se, portanto, revelar Epitacio por ele mesmo, na melhor medida possível. Recomenda-se, porém, a leitura integral dos respectivos acór-dãos colecionados no apêndice.

4.1 Tópicos da jurisprudência do STF nas matérias cível e criminal

4.1.1 Guerra fiscal: imposto sobre intercurso de mercadorias

ACi 1.221/AC, Pessôa, 1906. Estado do Maranhão v. Sousa Machado & Cia. Sucessores de Alves Machado & Cia.

Esse caso foi escolhido porque expõe diversos aspectos da jurisprudência do STF na matéria. Aspectos processuais, preclusão, exceção de incompetência, aspectos substantivos envolvendo argüição de inconstitucionalidade. A solução específica para o caso, encaminhada pelo Ministro Pessôa, já mostra também boa dose de seu raciocínio jurídico. Claro, o caso retrata uma situação típica e difícil de acomodação entre os poderes dos Estados e o poder central, problema aparentemente crônico do federalismo nacional. Trata-se da “guerra fiscal” entre Estados em torno da cobrança de tributos estaduais sobre a circulação de mercadorias.

Outros casos semelhantes, mas de procedências diversas, relatados por Epitacio Pessôa, indicam que o assunto mobilizou a jurisdição do STF naquela quadra.

Examinemos o caso.A Fazenda do Estado do Maranhão apelou ao Supremo da sentença do

Juiz Federal da Seção, que havia concedido aos apelados um mandado de ma-nutenção — instrumento criado pela Lei federal 1.185, de 1904 — contra a

81 PINTO, Sobral. Prefácio. In: BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional do Livro. Obras Completas de Epitacio Pessôa. Rio de Janeiro, 1965. p. 11. (Acórdãos e Votos no Supremo Tribunal Federal, III).

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Ministro Epitacio Pessôa

penhora de mercadorias feita pelo Estado para pagamento de imposto estadual, supostamente incidente sobre o consumo, mas que, na prática, recaía sobre o comércio interestadual. O caso não era novo, a jurisprudência do Supremo já contava mais de uma declaração incidental de inconstitucionalidade de leis es-taduais por invasão da competência exclusiva implícita da União para tratar de tributação do comércio interestadual.82

A Lei federal 1.185, de 1904, veio, na verdade, confirmar e atribuir efeitos erga omnes à jurisprudência do Supremo Tribunal, emprestando o atributo que então lhe faltava.

Essa lei explicitava a liberdade do comércio de cabotagem, vedava a co-brança de impostos sobre o trânsito de mercadorias entre Estados e estabelecia a competência privativa do Congresso Nacional para regular o comércio interes-tadual. A lei também estabelecia a competência da Justiça Federal para conceder mandados de manutenção em favor do possuidor de mercadorias estrangeiras ou nacionais que fosse turbado na sua posse em conseqüência de dispositivo de lei estadual criadora de impostos instituídos fora daquelas condições.

O quadro parecia de fácil equacionamento ante a posição já firme do Supremo pela inconstitucionalidade do imposto estadual sobre circulação de mercadorias entre Estados. Mas, nesse caso, a lei maranhense também parecia adequar-se perfeitamente ao padrão da legislação federal e da própria jurispru-dência, pois admitia cobrar tributos sobre gêneros oriundos de outros Estados apenas quando esses já estivessem em circulação no comércio do próprio Estado, incorporados, portanto, ao acervo de suas próprias riquezas. Em outras palavras, a lei maranhense tratava apenas de cobrança de tributos sobre o con-sumo das riquezas, não sobre seu comércio interestadual.

Talvez por não se sentir tão segura quanto à prova dos autos, a Fazenda do Estado levantou, preliminarmente, a exceção de incompetência da Justiça Federal para conhecimento da causa. Sustentava que a matéria seria de com-petência da Justiça estadual, por se tratar da aplicação de uma lei do Estado, a que tratava da incidência do imposto. Em razão disso — sustentava a Fazenda do Estado do Maranhão —, a própria lei federal, que permitia à Justiça Federal conhecer dos mandados de manutenção, seria inconstitucional, por violação do art. 59, § 1º, b, e do art. 62, da Constituição de 1891. Respectivamente,

82 “O STF declarou inconstitucional o imposto sobre gêneros importados de outros Estados criado pela Lei pernambucana 315 de 30-6-1897, pois esse tipo de imposto só poderia ser criado por lei federal.” Supremo Tribunal Federal — Jurisprudência, p. 140, 1905 — RE 196, 09-1-1901. “O STF declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual (Bahia) 315, de 1897, que criou o imposto de importação interestadual. A Fazenda local invadiu a competência exclusiva da União federal.” Supremo Tribunal Federal — Jurisprudência, p. 158, 1905 — RE 204, 31-6-1901.

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Memória Jurisprudencial

o permissivo constitucional do recurso extraordinário contra acórdão de tribu-nais estaduais e a imunidade recíproca de jurisdição.83

A preliminar seria superada por Pessôa, que, utilizando com maestria suas ferramentas retóricas, simplesmente não reconhecia a competência da Justiça estadual para o caso, demonstrando não ser suficiente, para atrair essa competência, a alegação da aplicação de lei estadual em face de lei federal, o que forçaria a apreciação do feito pelo STF apenas na via do recurso extraor-dinário. Com o voto de Pessôa, o Tribunal conheceu da apelação e aplicou sua jurisprudência já firmada nos precedentes mencionados (recursos extraordiná-rios). Vejamos:

Afirma o apelante que a Lei 1.185 é inconstitucional:a) porque, sempre que se contesta a validade de leis ou de atos dos

Governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federais, a Justiça competente para dirimir a controvérsia é a Justiça local, ex vi do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, e, sendo assim, não pode uma lei ordinária conferir essa atribuição em caso algum à Justiça Federal;

b) porque “a Justiça Federal não pode intervir em questões submetidas aos tribunais dos Estados, nem alterar, anular ou suspender as decisões ou or-dens destes, excetuados os casos expressamente declarados na Constituição”, e, pois, estando a questão sujeita já à Justiça local, não era dado ao Juiz Federal, embora autorizado por aquela lei, intervir no pleito, e por meio de um mandado de manutenção suspender a ação do Juiz do Estado, hipótese que se não acha “declarada expressamente” em nenhum artigo da Constituição.

Não há dúvida que, segundo o art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, a Justiça local é competente para decidir da validade das leis do Estado, quando contestada perante ela em face da Constituição ou das leis da União. É este direito um consectário da autonomia das Justiças locais; é o que se deduz dos precisos termos da disposição citada e o que o Supremo Tribunal tem assentado em uma longa série de julgados.

Mas é incontestável também que este preceito se refere às causas que, desde a origem, por sua natureza e independente da questão constitucional que nelas se agita, são da competência da Justiça dos Estados.

Ele não compreende, porém, as causas da alçada da Justiça da União, nas quais, entretanto, é possível também surgir a questão da constitucionalidade de uma lei local.

83 “Art. 59. (...)§ 1º Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o

Supremo Tribunal Federal:(...)b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da

Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.

Art. 62. As Justiças dos Estados não podem intervir em questões submetidas aos Tribunais Federais, nem anular, alterar, ou suspender as suas sentenças ou ordens. E, reciprocamente, a Justiça Federal não pode intervir em questões submetidas aos tribunais dos Estados nem anular, alterar ou suspender as decisões ou ordens destes, excetuados os casos expressamente declarados nesta Constituição.”

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Ministro Epitacio Pessôa

Ora, quando tal aconteça, tornar-se-á, por acaso, só por este fato, incom-petente a Justiça Federal, até então competente? Terá, porventura, essa circuns-tância a virtude de desaforar o feito?

Certamente não; este continua a correr perante o Juiz Federal, a quem desde então assiste o direito de negar execução à lei local, cuja inconstituciona-lidade se argúi, como tem o de não cumprir uma lei da República, em condições idênticas.

Seria, com efeito, extravagante que a Justiça Federal, a quem está con-fiada a defesa da Constituição contra os atos dos outros poderes nacionais, fosse obrigada a aplicar passivamente as leis dos Estados ainda que as reconhecesse contrárias à Constituição, ou a recuar impotente diante delas, quando surgissem como um embaraço ao desempenho de sua missão.

Este ponto, aliás, já foi resolvido no sentido das considerações expostas pelos Acórdãos 948 e 949, de 10 de agosto de 1904.

É, portanto, fora de dúvida que, em uma causa de sua competência, pode a Justiça Federal conhecer da constitucionalidade de uma lei de Estado; não há aí nenhuma violação do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, que pressupõe hipótese diversa.

Isto mostra que a questão foi mal posta pelo apelante.Não se pode provar a inconstitucionalidade da Lei 1.185 com o art. 59

da Constituição, porque este artigo cogita de feitos da competência da Justiça dos Estados, enquanto que as causas de que trata a lei de 1904 são da alçada da Justiça Federal.

O que se tem de investigar é se esta lei podia conferir à Justiça da União o conhecimento e julgamento dessas causas. Se podia, a lei é perfeitamente constitucional, apesar do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição; se não podia, a lei não deve ser aplicada, não porque o citado artigo obste que o juiz federal, em causa de sua competência, aprecie a constitucionalidade de uma lei de Es-tado, mas unicamente por uma destas duas razões: ou porque a legislatura or-dinária não pode aumentar as funções do Poder Judiciário federal, ou porque, podendo-o, outorgou, todavia, a este o conhecimento de uma causa privativa da Justiça local.

A questão, com efeito, se biparte assim:1º Pode o Congresso Nacional conferir ao Poder Judiciário atribuições

que não estejam expressas na Constituição?2º Serão os mandados de manutenção ou proibitórios da lei de 1904, por

sua natureza, da competência da Justiça Federal ou da competência da Justiça dos Estados?

Epitacio responde citando a doutrina americana, segundo a qual as com-petências privativas do Supremo fixadas na Constituição não poderiam ser aumentadas nem diminuídas pela legislação federal: “não assim, porém, as atribuições da Justiça Federal da primeira instância, às quais pode a legis-latura ordinária acrescentar outras causas, desde que nestas se pleiteie um interesse da União.”

E completa citando a já vasta jurisprudência do STF no ponto:

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Memória Jurisprudencial

Eis por que o Tribunal aceitou, apesar de não exarada expressamente na Constituição, a competência atribuída aos juízes secionais, e a ele próprio por via de apelação: 1º, nas ações de marcas de fábrica, entendendo que neste caso a Lei 221, art. 12, se limitou a exprimir poderes implícitos no art. 35, 2, e no art. 72, § 25, § 26 e § 27, da Constituição; 2º, nos processos de contrabando e moeda falsa, admitindo que neste ponto a citada Lei 221, de 1894, e a 515, de 1898, nada mais fizeram do que traduzir poderes incluídos nos arts. 7º, 1 e § 3º, e 34, 4 e 5, quanto ao primeiro daqueles crimes, e nos arts. 7º, § 1º, 1; 34, 7 e 8; e 66, quanto ao segundo.

O Tribunal legitimou assim o princípio de que ao Poder Legislativo or-dinário é lícito aditar às atribuições dos juízes secionais outras atribuições, contanto que estas se compreendam implicitamente nos poderes conferidos à União pela Carta Constitucional.

E nesta ordem de idéias foi ao ponto de aceitar a competência que lhe deu a lei de 24 de setembro de 1893 para julgar, em segunda instância, os recursos eleitorais, considerando-os matéria concernente a direitos políticos e, assim, implícita, senão expressamente compreendida na esfera da jurisdição federal. (Acórdão 24, de 23 de fevereiro de 1897, Jurisprudência, p. 353.)

É que existem sempre nas leis institucionais certas atribuições implícitas que são imprescindíveis para garantirem a unidade da administração. Nem era possível, sem o completo aniquilamento do sistema federativo, delegar às auto-ridades estaduais a solução de graves assuntos que entendem com os direitos outorgados pela Constituição aos órgãos da soberania nacional. (Acórdão de 24 de outubro de 1894.)

Tratando-se de ato lesivo à Fazenda Nacional, outra jurisdição para dele conhecer não pode ser invocada senão a federal, instituída especialmente para garantia e segurança das prerrogativas dos direitos, poderes e contratos da União, nada havendo mais incurial e ábsono da organização federal do que colo-car esses direitos sob a dependência das jurisdições locais e, com tal subversão dos princípios fundamentais do regímen, sobrepor a parte ao todo, dando àquela a preponderância sobre este. (Acórdão 1.850, de 13 de setembro de 1902.)

Entra na alçada das legislaturas ordinárias definir esses poderes im-plícitos, e, como conseqüência, confiar a sua salvaguarda ao Poder Judiciário da União.

Do exposto conclui-se que ao Congresso Nacional é lícito conferir aos juí-zes secionais atribuições que não estejam expressas no art. 60 da Constituição. A única restrição a esta faculdade é que a nova atribuição exista implícita em disposições da Constituição Federal.

Resolvida a primeira questão, admitida a constitucionalidade da lei fe-deral que dava competência para a Justiça Federal conhecer da causa, Pessôa ainda acrescenta o argumento substantivo (equilíbrio federativo) para sustentar o porquê de os mandados criados pela lei de 1904 permanecerem na esfera da jurisdição federal:

O Estado que tributa a entrada ou a passagem de mercadorias de outros Estados ou estrangeiras em seu território viola, sem dúvida, estes preceitos constitucionais, como tantas e tantas vezes tem decidido o Supremo Tribunal, e, violando-os, fere direitos e interesses da União, embaraçando o exercício de

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Ministro Epitacio Pessôa

uma função que é somente dela, diminuindo-lhe as rendas pelo retraimento for-çado da importação, que o imposto estadual afugenta, provocando talvez con-flitos interestaduais, gerando a guerra de tarifas entre os Estados, perturbando, portanto, da maneira mais nociva o seu comércio etc.

(...)(...) É mister, pois, entender-se o citado preceito constitucional como se in-

terpreta no direito americano a disposição de que ele é cópia, isto é, como sendo aplicável sempre que se trate de causas regidas diretamente pela Constituição, ou que digam respeito aos poderes que ela confere, às garantias que assegura e às proibições que faz, independentemente de qualquer lei especial. Nem ou-tra é a inteligência proclamada pelo Supremo Tribunal nos Acórdãos 162, de 30 de setembro de 1896, Jurisprudência, p. 101; 185, de 3 de abril de 1897, Jurisprudência, p. 71; 288, de 5 de dezembro de 1898, Jurisprudência, p. 134; 462, de 30 de janeiro de 1900, Jurisprudência, p. 187, além de outros. Ora, não se pode contestar que os mandados da Lei 1.185 constituem uma prote-ção à liberdade do comércio interestadual garantida pela Constituição, visam tornar efetivos poderes que a Constituição confere à União e proibições que a Constituição fez aos Estados, poderes que não dependem de leis especiais que lhes regulem o exercício, proibições que, para se imporem, não precisam que os legisladores ordinários lhes definam as condições de sua realização.

A vedação constitucional a que se refere Pessôa encontra-se no art. 11, 1º, que explicitamente torna imune de tributos dos Estados e da própria União o comércio de mercadorias entre Estados.84

Não obstante, foi preciso ainda assinalar a auto-aplicabilidade da garantia constitucional para demonstrar definitivamente o cabimento dos mandados de manutenção criados pela lei de 1904 e afetos à competência da Justiça Federal.

Mas o Estado também havia alegado que a lei federal violava a garantia constitucional de imunidade recíproca ou da independência entre as jurisdições estaduais e a federal, apontando a violação do art. 62 da Constituição de 1891.

A essa altura, porém, firmada a premissa da competência da Justiça Federal, essa outra alegação já não mereceria muito esforço do Ministro. Mesmo assim, ele aproveita o ponto para esclarecer um pouco mais suas pre-missas e se aproximar da dedução final que poria fim ao caso:

Assim, o pensamento do art. 62 da Constituição é que uma Justiça não pode intervir em causas da competência da outra. Se o faz, o meio de evitar a usurpação é a avocatória (Lei 221, art. 29, 3, e art. 79), o conflito de jurisdição ou o de que usou o apelante, isto é, a exceção de incompetência. Proposta esta e levada a questão até ao Supremo Tribunal, se este entender que a Justiça Federal

84 CF/1891:“Art. 11. É vedado aos Estados, como à União:1º) criar impostos de trânsito pelo território de um Estado, ou na passagem de um para outro,

sobre produtos de outros Estados da República ou estrangeiros, e, bem assim, sobre os veículos de terra e água que os transportarem.”

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Memória Jurisprudencial

é incompetente, anulará o feito e restabelecerá desta sorte o preceito constitucio-nal violado. Se, pelo contrário, julga competente a Justiça da União, então é que o art. 62 não foi infringido, não houve invasão da Justiça Federal nas atribuições das Justiças dos Estados.

Ora, que a matéria de que se trata entra na alçada das Justiças da União é o que já ficou abundantemente demonstrado.

De tudo quanto até aqui se expendeu resulta que a lei de 1904, com o outorgar aos Juízes Federais a faculdade de conceder mandados de manutenção ou proibitórios nas condições que estabeleceu, não transgride nenhum preceito constitucional.

O que é indispensável é que o mandado se contenha dentro dos limites assinados pela lei; é que haja uma lei do Estado tributando o comércio interes-tadual, marítimo, terrestre ou fluvial (salvo o imposto de exportação e o de que trata a Constituição, art. 9º, § 3º, 4) e o dono das mercadorias tributadas esteja sendo turbado ou ameaçado de turbação na posse das mesmas mercadorias.

Superadas as preliminares, restou o enquadramento do fato à moldura legal. Mas o problema não estava no texto da lei maranhense que, nos termos em que foi concebida, não infringia nem a Constituição Federal, nem a Lei 1.185, como reconhecia o Ministro Pessôa no voto: “os tributos são os mesmos para os gêneros dos outros Estados e para os produtos similares do Maranhão, e a lei preceitua que, em relação aos primeiros, as taxas sejam cobradas so-mente depois que as mercadorias constituírem objeto do comércio interno do Estado e se acharem assim incorporadas à massa de suas riquezas. São justa-mente as condições em que a lei de 1904, inspirando-se na Constituição, per-mite a tributação.”

O problema estava na sua execução:Mas não é assim que a têm entendido e executado, pelo menos no caso

dos autos, os agentes do fisco estadual. Tais agentes tomam a mercadoria ainda a bordo, recolhem-na em armazéns de propriedade do Estado e aí calculam o im-posto sobre a mercadoria tal qual é importada, em sua quantidade ou peso total, isto é, arbitram o imposto antes de se incorporar à massa das riquezas locais, e em seguida cobram a importância total do imposto assim calculado, tenha ou não o importador desfeito assim os invólucros de todos os gêneros, tenha-os ou não vendido todos por grosso, estejam ou não sendo todos vendidos a retalho.

Ora, é manifesto que tal processo transgride o espírito e a letra da lei de 1904.

Alega o Estado que os apelados não provaram esse fato. Mas, em pri-meiro lugar, o apelante não nega a veracidade dele. Depois, os avisos de fls. 19 a 49 confirmam as asseverações dos apelados: neles vêm a discriminação de todos os gêneros, com a especificação do envoltório, peso, qualidade e quantidade, e esta discriminação, coincidindo exatamente com a qualidade, quantidade, peso e invólucros das mercadorias importadas, prova bem que estas não esta-vam ainda incorporadas ao comércio interno do Estado, quando foi calculado o imposto.

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Ministro Epitacio Pessôa

Assim que, se a lei maranhense não é contrária à lei federal de 1904, contrários a esta são os atos de execução de que os autos dão notícia; pelo que o Supremo Tribunal Federal confirma a sentença que manuteniu os apelados na posse das mercadorias penhoradas e condena o apelante nas custas.

Era, portanto, a despeito das diversas e controvertidas questões de direito envolvidas, um caso que tornava essencial o exame da prova, algo que não po-deria ser feito em sede extraordinária.

A decisão foi unânime.

4.1.2 Direito adquirido

Entre os votos de Epitacio Pessôa, há diversos casos envolvendo questões de direito intertemporal: a proteção a direitos adquiridos contra restrições ou mesmo perda dessas posições subjetivas em decorrência de legislação posterior. Com sua capacidade para a exposição clara da discussão em causa, Pessôa en-sina a diferença entre direito adquirido e mera expectativa de direito; define o momento em que se dá a aquisição ou incorporação dos direitos ao patrimônio jurídico dos sujeitos; compara e distingue as relações jurídicas decorrentes de regimes contratuais e regimes estatutários; e, em caso específico que envolvia suposto direito a promoção de militar, vemos Epitacio afirmar a tese — hoje consagrada — de que não existe direito adquirido a regime jurídico.

A quantidade expressiva desse tipo de questão revela também aspectos da instabilidade política e jurídica daqueles primeiros tempos, o que obrigava o Tribunal a tornar eficaz a cláusula constitucional da irretroatividade das leis em prejuízo de posições jurídicas consolidadas, segundo a norma então vigente.85

4.1.2.1 Vitaliciedade de cargo

ACi 1.197/RJ, Pessôa, 1906. Desembargadores Antônio José de Sousa Freitas e Enéias de Araújo Torreão v. Estado do Rio de Janeiro.

Em 1892, a Lei fluminense 20 declarou vitalícios e inamovíveis os mem-bros do Tribunal de Contas do Estado. Onze anos depois, uma reforma legisla-tiva extinguiu o Tribunal e dispensou de suas funções todos os seus membros. Após terem seus pedidos de manutenção do pagamento dos vencimentos nega-dos na via administrativa, os “desembargadores” propuseram ação ordinária na Justiça Federal, com base no art. 60, letra a, da Constituição, segundo o qual competia à Justiça Federal processar e julgar as causas em que algumas das par-tes fundamentassem a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal.

85 A Constituição de 1891 já previa, em seu art. 11, 3º, a vedação “aos Estados, como à União” da prescrição de leis retroativas.

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Memória Jurisprudencial

No mérito, os autores pediam a condenação do Estado a lhes pagar os vencimentos desde a data em que foram afastados de suas funções até serem providos em cargos equivalentes, ou serem regularmente aposentados, e mais os juros da mora. Fundamentaram o pedido nas garantias previstas no art. 11, 3º (irretroatividade das leis), no art. 63 (“cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar, respeitados os princípios constitucionais da União”) e no art. 74 (“As patentes, os postos e os cargos inamovíveis são garantidos em toda a sua plenitude”).

A ação foi julgada improcedente pela sentença do Juiz da Seção. Da sen-tença apelaram os autores ao Supremo Tribunal Federal, cabendo a relatoria ao Ministro Epitacio Pessôa.

De saída, em seu voto, Pessôa buscou apoio na doutrina americana que tratava da auto-executoriedade de algumas normas constitucionais garantidoras de direitos independentemente de reserva legal, para explicar melhor a hipótese de atração da competência da Justiça Federal invocada pelos apelantes, prevista no art. 60, b, da Constituição de 1891:

Considerando que, se a simples invocação da Carta Constitucional não basta para aforar a causa na Justiça da União, do contrário anulada ficaria a jurisdição da Justiça dos Estados, uma vez que todos os direitos encontram as-sento próximo ou remoto na Constituição, é certo também que o mero fato ma-terial da existência de uma lei ou decreto, estatuindo sobre o caso que faz objeto da lide, não pode ter a virtude de anular a competência da Justiça Federal, em benefício dos tribunais locais. Se tal fato fosse por si só bastante para caracte-rizar a competência da Justiça estadual, sem aplicação ficaria o art. 60, letra a da Constituição, porque toda causa fundada imediatamente na Constituição tem precisamente por fim a defesa de um direito ferido por ato legislativo ou executivo da União ou dos Estados. É mister, pois, entender o citado preceito constitucional qual se interpreta no direito americano a disposição de que ele é cópia, isto é, como referindo-se às causas diretamente regidas pela Constituição ou que digam respeito aos poderes que esta confere, às garantias que assegura e às proibições que faz, independente de qualquer lei especial (Acórdãos 162, de 30 de setembro de 1896, Jurisprudência, p. 101; 185, de 3 de abril de 1897, Jurisprudência, p. 71; 285, de 5 de dezembro de 1898, Jurisprudência, p. 134; 462, de 3 de janeiro, e 361, de 11 de agosto de 1900, Jurisprudência, p. 187 e 105; 1.221, de 24 de outubro de 1906, etc.);

Considerando que os apelantes invocam em apoio do seu pedido os arts. 11, 3; 63; e 74 da Constituição, e estes dispositivos contêm proibições, poderes e garantias que, para a sua efetividade, não dependem de qualquer lei ou ato especial, verificando-se assim o caso de competência definido no citado art. 60, letra a;

Reconhecida a competência e os atributos das normas constitucionais invocadas pelos apelantes, seu voto adentra o mérito da causa e passa a definir a natureza do cargo vitalício dos apelantes. Argumenta que em um emprego público qualquer é necessário distinguir a função, que constitui o interesse da

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Ministro Epitacio Pessôa

sociedade, e o vencimento, que representa o interesse do funcionário: “em bem cumprir a primeira está o dever deste; em pagar pontualmente o segundo se concretiza a obrigação daquela.”

Assim — continua —, se o emprego é vitalício, o ato da nomeação se-guido da posse vincula desde logo o governo à obrigação de pagar os vencimen-tos do cargo ao nomeado, enquanto este viver ou enquanto não perder o cargo por ato próprio. E ainda se ao governo é lícito suprimir o emprego, desde que não o considere mais necessário, e por esta forma renunciar ao que lhe deve o funcionário, não pode, todavia, esse seu ato ter como efeito liberá-lo daquela obrigação. A conclusão do raciocínio é que: “pode o sujeito de um direito abrir mão desse direito, mas ao devedor de uma obrigação não é dado eximir-se, por ato pessoal, ao seu cumprimento”.

Pessôa arremata sua dedução e ainda reclama força normativa para as regras constitucionais invocadas, ao aduzir que “a vitaliciedade não tolhe somente ao Governo a liberdade de demitir o funcionário, mas também a de extinguir-lhe o emprego, sem lhe assegurar os proventos respectivos, do contrá-rio aquele predicamento seria uma garantia puramente nominal, pois estaria no arbítrio da administração burlá-la sempre que quisesse, abolindo a função”.

Outra não poderia ser a conclusão desse julgamento senão a reforma da sentença com o reconhecimento dos direitos pleiteados pelos apelantes, mas vale a transcrição da lavra do Ministro Pessôa, especialmente para fazer notar o modo dedutivo como ele se refere aos princípios, isto é, não como mandados de otimização, mas como premissas lógicas de seu raciocínio, obtidas a partir da interpretação das regras constitucionais em jogo:

Considerando, à vista dos princípios expostos, que desde o momento em que um cidadão é investido em um emprego vitalício, adquire direito, por toda a sua vida, aos proventos ligados a esse emprego, os quais passam a fazer parte do seu patrimônio jurídico, e, sendo assim, a lei que extingue a função, sem prover quanto à situação do funcionário, ofende um direito adquirido, é uma lei retroativa e como tal incide na proibição do art. 11, 3, da Constituição Federal;

(...)Considerando o mais que dos autos consta:Acordam reformar a sentença de fl. 58v. para condenar o réu apelado, nos

termos do pedido, a pagar aos autores apelantes os vencimentos de membros do extinto Tribunal de Contas, à razão de 9:900$000 anuais, desde a data em que deles foram privados até serem providos em cargos equivalentes, ou até serem regularmente aposentados, juros da mora e custas.

A decisão novamente foi unânime.

4.1.2.2 Posse não gera direito adquirido

ACi 1.119/BA, Pessôa, 1907. John Gordon v. Estado da Bahia

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Memória Jurisprudencial

O apelante, John Gordon, cidadão americano, requereu ao Governo da Bahia a legitimação (reconhecimento da propriedade) de várias posses de terras situadas no Estado. O Governo deferiu o pedido, mas com reserva das minas e mais riquezas que se encontrassem no subsolo para o Estado, conforme dispu-nha a Lei estadual 436, de 23 de agosto de 1901. Inconformado, John Gordon promoveu perante o Juiz Federal daquela seção a anulação dessa cláusula pelas seguintes razões: de um lado, que a citada Lei baiana 436 era inconstitucional, porque versava matéria de direito substantivo — competência exclusiva da União — e violava o art. 72, § 17, da Constituição, que assegura ao dono do solo a propriedade das minas; de outro, porque, ao tempo em que foi reque-rida a legitimação das posses, não existia ainda a mencionada lei baiana, esta, portanto, não poderia ter sido aplicada à sua situação sem infração do art. 11, 3, da Constituição, que protege direitos adquiridos contra a prescrição de leis retroativas.

O Juiz Federal julgou improcedente a ação.Relator, Epitacio Pessôa começa pela exposição do problema a ser diri-

mido pelo Tribunal, antecipando abertamente as premissas de sua conclusão contrária às pretensões do apelante, pois já trata os apelantes como “possuidores de terra a legitimar”:

A primeira questão a examinar é se os possuidores de terras a legitimar têm ou não a propriedade dessas terras. Se têm, é claro que a lei estadual não po-dia, sem ir de encontro ao art. 72, § 17, da Constituição, reservar para o Estado as minas existentes em ditas terras; mas se não têm, se o domínio direto das terras pertence ao Estado, é fora de dúvida também que nada se opunha a que este pusesse à alienação de sua propriedade as restrições que bem entendesse.

A solução da lide ficou no terreno teórico dos conceitos distintos de posse e de propriedade e do conceito de “terras devolutas”. A questão de direito intertemporal ficou subordinada à definição da natureza jurídica do título do apelante, ao tempo em que a lei baiana permitiu ao Estado conservar as minas do subsolo de seu território. Essa questão era saber se a posse de John Gordon sobre terras devolutas do Estado lhe daria direito adquirido sobre o subsolo.

Mas, antes, o Ministro Epitacio Pessôa precisou refazer a trajetória jurí-dica da “questão fundiária” no Brasil, desde o regime das sesmarias até aquela data, para distinguir os institutos da posse e da propriedade, e assim enquadrar a situação de Gordon.

Merece uma nota, nesse ponto, o fenômeno da recepção de leis do Império pela Constituição republicana, peculiar continuidade jurídica apesar da ruptura política fundamental ocorrida na década anterior.

O regímen das sesmarias, adotado a princípio em Portugal como sim-ples uso e mais tarde incorporado à Ordenação Filipina L. 4, T. 43, foi também

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Ministro Epitacio Pessôa

seguido no Brasil pelos primeiros donatários. A estes era lícito, pelas doações e forais, dar em sesmaria as terras incultas. Como, porém, não produzisse ele os resultados esperados, a coroa portuguesa autorizou o primeiro governador ge-ral do Brasil a conceder sesmarias gratuitas, sujeitas apenas ao dízimo a Deus. Ainda assim o sistema não teve grande êxito: as formalidades a preencher, a me-dição, confirmação e cultura das terras, afugentavam os povoadores, muitos dos quais julgavam preferível instalarem-se livremente onde bem lhes aprouvesse, certos de antemão que a inesgotável abundância das terras incultas predisporia à tolerância os representantes do Governo. A partir de 1822, cessando de todo as concessões de sesmarias, esse abuso generalizou-se de modo extraordiná-rio. Para pôr-lhe um termo e regularizar o serviço das terras devolutas, veio a Lei 601, de 18 de setembro de 1850.

Começou a lei por proibir as aquisições de terras devolutas por outro título que não o de compra, cominando aos que delas se apossassem o despejo com perda de benfeitorias e mais a pena de prisão e multa e a satisfação do dano causado. Em seguida, enumerando aquelas terras, declarou que entre elas se incluiriam as que se não achassem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título legal, viessem a ser legitimadas pelo processo nela estabele-cido (art. 3º, § 4º). Resulta daí que, enquanto se não legitimassem, essas terras não passariam ao domínio dos posseiros, continuariam a pertencer à Nação. A lei, dada a origem irregular dessas posses, podia, sem mais satisfações aos seus detentores, ter-se limitado a reivindicar pura e simplesmente das mãos des-tes a propriedade nacional; mas, estacando diante da dificuldade senão impos-sibilidade de abolir um estado de cousas que durava desde longuíssimos anos, hesitando em ferir os valiosos interesses particulares ligados a essas posses, em-baraçar, aos demais, a cultura e povoamento do solo e quiçá anular o trabalho já feito nesse sentido, preferiu adotar um regímen de transação, pelo qual se com-prometia a reconhecer o direito de todos os posseiros que nos prazos marcados legitimassem as suas posses. Enquanto isto, porém, se não fizesse, a Nação não abriria mão de sua propriedade.

Esse pensamento da lei resulta claramente do dispositivo acima citado. Outros ainda o confirmam. Pelo art. 8º, por exemplo, os possuidores que deixas-sem de proceder à medição seriam reputados caídos em comisso e perderiam por isso o direito que tivessem a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos ou por favor da lei, cominação esta que decerto a Assembléia Geral não poderia estabelecer se o direito dos posseiros sobre as terras em questão fosse um legítimo direito de propriedade. Mais ainda. Segundo o art. 11, os pos-seiros eram obrigados a tirar os títulos dos terrenos que lhes ficassem perten-cendo por efeito da lei, e, sem eles, não poderiam hipotecar os mesmos terrenos nem aliená-los por qualquer modo. Ora, os títulos só podiam ser passados de-pois da legitimação; portanto, antes desta, os terrenos não pertenciam aos pos-seiros: a legitimação, consumada com a expedição dos títulos, é que transferia o domínio, tanto que, sem estes, os posseiros não podiam hipotecar ou alienar as terras.

Assim, pela lei de 1850, os possuidores de terras sujeitas à legitimação não tinham a propriedade dessas terras; eram simples posseiros, como a lei os chamava; o laço jurídico que os prendia às terras era unicamente o da posse. Tais terras eram consideradas terras devolutas; só perdiam este caráter depois de expedido o título de legitimação; até esse momento o domínio direto delas

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Memória Jurisprudencial

residia no Estado. Essa conclusão ainda mais se avigora, atendendo-se que a lei teve o cuidado de declarar isentas de legitimação todas as terras a respeito das quais se pudesse exibir um qualquer título legítimo de aquisição, embora havidos de meros ocupantes sem título algum de domínio, o que mostra que, sujeitando àquela formalidade os simples posseiros, não os reputava senhores ou proprietários das terras.

Era esse o direito vigente ao tempo em que se promulgou a Constituição, que transferiu aos Estados, em plena propriedade, as terras devolutas. Esse di-reito não foi alterado, no ponto que se discute, pela legislação da Bahia. A Lei estadual 198, de 21 de agosto de 1897, que regulou especialmente o assunto, con-tinuou a atribuir ao Estado o domínio das terras possuídas, sujeitas à legitima-ção, enquanto não fossem legitimadas. É o que se vê, entre outras disposições, do art. 39, que sujeita tais posses a uma determinada taxa por hectare antes da expedição do título de propriedade, e do art. 47, onde se declara que os possei-ros não poderão hipotecar ou alienar por qualquer modo as suas terras, sem que estejam medidas e demarcadas e sem que o possuidor haja tirado o respectivo título de propriedade na repartição competente.

A partir desse ponto, o voto passa à fase seguinte, a da argumentação. Começa por considerar que, se ao Estado cabe o domínio direto das terras su-jeitas à legitimação, ou seja, antes de transferidas definitivamente ao apelante, até então apenas seu possuidor; e se as minas pertencem ao proprietário do solo, segundo Pessôa, “nada obstava a que a Bahia estipulasse por lei que, nas trans-ferências de domínio conseqüentes à legitimação de posses, ficassem sempre reservados para o Estado as riquezas do subsolo”.

Segundo Pessôa, isso não significava, ao contrário do alegado pelo ape-lante, legislar sobre direito substantivo, alterar ou derrogar princípios vigentes no direito civil brasileiro, mas pelo contrário, “fazer aplicação legítima e fiel desses princípios, quando conferem ao proprietário a faculdade de pôr à alie-nação do seu domínio as limitações que quiser.”

Não estava assim caracterizada a inconstitucionalidade da lei baiana em face do art. 72, § 17, da Constituição: “a lei baiana não tirou as minas ao pro-prietário, pois o proprietário, como já se demonstrou, é o Estado; quando o posseiro se investiu do domínio das terras, já do direito a estas estava desmem-brado o direito às minas”. A lei do Estado só violaria o citado preceito consti-tucional, se tirasse do possuidor as riquezas do subsolo, depois de legitimada a posse e expedido o respectivo título de propriedade.

Assim, o primeiro fundamento da ação, a inconstitucionalidade da lei do Estado, que era de 1891, por ofensiva dos arts. 34, 23, e 72, 17, da Constituição, fora plenamente afastado.

Restava ainda a argüição de que a lei teria sido aplicada com ofensa a direitos adquiridos. E, mais uma vez, assentadas as premissas, a conclusão tornava-se relativamente simples.

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Ministro Epitacio Pessôa

Ora, se o Estado é que tem o domínio das terras antes de legitimar a posse de terceiros e de lhes transferir este mesmo domínio, e, nessa condição, detém a propriedade das minas respectivas, tal como prescrevia o art. 72 da Constituição de 1891, não seria possível conceber a existência de um direito ad-quirido do posseiro sobre estas terras e minas antes da legitimação, que se deu depois da edição da lei estadual.

A lei estadual nada mais fez do que declarar um direito do Estado pre-existente ao pedido de legitimação. Ofensa de direito adquirido haveria se, de-pois de legitimadas as posses, sem ressalva alguma, e conseguintemente depois de transferido o domínio integral das terras, isto é, da superfície e do subsolo, o Governo se arrogasse a propriedade deste. Não é essa, porém, a hipótese dos autos.

Havia ainda um último argumento a ser rebatido por Pessôa, quase um sofisma do apelante, que o seu direito adquirido era na verdade “o direito a ob-ter a sua legitimação sem restrição alguma”, pois, na vigência da lei anterior, houvera preenchido todas as condições exigidas para a legitimação. Em outras palavras, alegou que, na época de seu pedido de legitimação, não havia sido edi-tada a lei que permitiu ao Estado conservar a propriedade do subsolo das terras após a legitimação.

Contra esse argumento, Pessôa devolvia a consideração de que do fato de não haver, na lei que vigorava ao tempo em que foi requerida a legitimação, qualquer limitação sobre o domínio a transferir, não se poderia deduzir que o proprietário (Estado da Bahia), não tendo prazo para conceder a legitimação, estivesse inibido de definir as condições em que traspassaria o mesmo domínio. Isso porque, na verdade, não havia ainda se completado o direito do apelante pelo fato de que o Governador não estava obrigado por lei a atender aos pedidos de legitimação em um prazo específico. Se estivesse — continua —, “ainda se poderia admitir que o adiamento intencional da decisão além desse prazo pre-terira um direito que já reunia todos os seus elementos constitutivos e cuja con-sumação dependia apenas dum prazo fatal, dentro do qual nenhuma alteração se operara na lei em vigor”.

Mas, como não havia essa obrigação, a alegada demora por parte do Governo, ponderava o Ministro, caso tenha sido intencional, poderia ser taxada como um “ato administrativo menos correto”, mas não ofendia direito adqui-rido do apelante, que ainda não o tinha.

Assim, concluía Epitacio Pessôa: “chegado o momento da decisão, ao Governo cabia o direito e corria o dever de aplicar a lei então em vigor”.

Por esses fundamentos, o Tribunal confirmou a sentença e condenou o apelante nas custas. No ano seguinte, os embargos opostos por Gordon foram desprezados, contra Lessa, João Pedro e Espirito Santo.

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Memória Jurisprudencial

4.1.2.3 Não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico

ACi 1.297/Capital, Murtinho, 1907. União v. Tenente Astrogildo de Figueiredo.

O Ministro Epitacio Pessôa resumiu assim o caso:O Segundo-Tenente Astrogildo Marques de Figueiredo alega que foi pro-

movido a esse posto em 3 de novembro de 1894, ao tempo em que vigorava o Decreto 1.351, de 7 de fevereiro de 1891, segundo o qual (art. 5º, parágrafo único), enquanto existissem alferes de infantaria ou cavalaria sem o respectivo curso, as vagas de tenente seriam preenchidas por antiguidade, 2/3 por esses subalternos e 1/3 pelos que tivessem o curso; que a Lei 1.348, de 12 de julho de 1905, modificou essa proporção, estabelecendo que as promoções passariam a ser metade por antiguidade absoluta e metade por estudos, que por efeito desta lei já houve seis promoções por estudos e apenas quatro por antiguidade; que, sendo o quinto ao tempo em que se promulgou a Lei 1.348, teria sido promovido, se esta não hou-vesse revogado o Decreto 1.351, que, portanto, esta lei feriu com (sic) seu direito adquirido, isto é, o direito de ser promovido segundo a lei vigente ao tempo em que fora promovido a alferes. Pede, à vista do exposto, que a União seja conde-nada a pagar-lhe a etapa e a gratificação de primeiro-tenente, desde a data em que pelo Decreto 1.351 lhe cabia a promoção, até ser efetivamente promovido.

Nesse caso, pode-se perceber com muita clareza a longevidade de certos tópicos da jurisprudência do Supremo Tribunal, em especial aquele que, com base na doutrina da irretroatividade das leis, fixa a diferença entre direito ad-quirido e mera expectativa. Também a afirmação, hoje pacífica, de que não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico pode ser extraída das razões deste voto de Epitacio Pessôa.

Vejamos primeiro como Pessôa trata, no caso, o conceito de direito ad-quirido para distingui-lo da mera expectativa de direito:

O oficial só tem direito à promoção depois que se abre a vaga. Enquanto esta se não abrir, ele tem apenas a esperança de que ela se verifique, para que lhe advenha então o direito de preenchê-la. Ora, ao tempo em que se publicou a Lei 1.348, não se dera ainda a vaga que o apelado disputa. Logo, não tinha ele ainda direito adquirido a essa vaga, e a lei, portanto, era livre de regular as con-dições do seu preenchimento. Para que se tenha direito a uma cousa, parece que a primeira condição é que esta cousa exista.

Enquanto isto não ocorrer, ter-se-á quando muito uma expectativa.Há direito adquirido (ensina Teodoriadas, Éssai sur la non rétro-

activité des lois, p. 52 a 53) quando as condições essenciais à sua existência estão todas realizadas. Entendemos por condições essenciais as que são determinadas por lei e sem as quais o direito não pode existir. Há simples expectativa ou fraca esperança de direito sempre que todas ou alguma das condições essenciais à existência do direito ainda se não tenham realizado e seja preciso esperar o advento de acontecimentos posteriores para vê-la desenvolver-se e converter-se em verdadeiro direito. A diferença entre o

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Ministro Epitacio Pessôa

direito adquirido e a expectativa está, portanto, em que o primeiro tira a sua existência de fatos passados e definitivos, enquanto que a segunda precisa do futuro para completar e converter-se em direito.Ora, três são as condições determinadas pela lei, essenciais ao direito de

ser primeiro-tenente: 1º, a qualidade de segundo-tenente; 2º, ocupar o número 1; 3º, a vaga. Dessas condições, apenas a primeira se havia realizado para o ape-lado; quando se promulgou a Lei 1.348. Onde, pois, o seu direito adquirido?

Admite-se, é verdade, um direito adquirido dependente dum fato futuro. Mas é mister que este fato valha por um termo, isto é, faz-se necessário, como diz Gabba (Teoria della Retroattività, vol. 1; p. 288): 1º, que o fato futuro seja por sua vez infalível; 2º, que não esteja mais no poder daquele contra quem é afirmado o direito de impedi-lo; 3º, que o direito a adquirir tenha a sua raiz em um direito já adquirido, do qual não seja mais que um desenvolvimento ou a sua transformação. Ora, no caso que se discute, além da segunda, falha evidente-mente a primeira condição, pois o apelado podia reformar-se livre ou compulso-riamente antes de abrir-se a vaga.

Aberta a vaga, o alferes número 1 tem direito à promoção. Mas, antes de abrir-se a vaga, é lícito contestar ao Congresso o direito de, por exemplo, redu-zir ou mesmo suprimir o quadro dos tenentes dando assim lugar a que o alferes número 1 não seja promovido na primeira vaga.

A doutrina do apelado chegaria a esse resultado. Entretanto é fato que se tem praticado entre nós sem reclamações, e que manifestamente fere um inte-resse, mas não um direito do oficial que ocupa o número 1 da lista.

Outra questão que sempre ocupa o juízo e a prudência dos Ministros do Supremo diante de causas em que se agita a proteção do direito adquirido contra mudanças legislativas é a da natureza do regime jurídico, ao qual está atrelada a posição subjetiva de quem reclama a condição de “proprietário” de um direito adquirido. Para a solução do caso, em 1907, o Ministro Epitacio Pessôa também enfrentou esse problema, e com amplo apoio doutrinário.

Mas (e eis o principal argumento do apelado) o Decreto 1.351 representa o título dum contrato entre o Governo e o apelado, e este contrato não pode ser rompido por ato exclusivo de uma das partes. É a tão debatida questão da natu-reza das relações jurídicas entre o Estado e os seus funcionários, relações que o apelado considera contratuais.

A chamada teoria do contrato, fulminada, como bem notam os assisten-tes, por Bluntschli (Teoria Geral do Estado) e G. Giorgi (Doutrina das Pessoas Jurídicas) ainda não logrou foros de cidade.

Nos Estados Unidos é ela geralmente repelida (Amaro Cavalcanti, Res-ponsabilidade do Estado, p. 560). Entre nós não pode ela medrar à sombra da disposição constitucional que dá ao Congresso o direito de criar empregos e fixar-lhes os vencimentos, ato unilateral que se não coaduna com o regímen contratual. Eis por que João Barbalho ensina que têm pleno efeito com relação a fatos anteriores as leis que regulam as condições de aptidão para os cargos públicos (Comentários, p. 42).

(...)O vencimento do oficial e a antiguidade para a reforma interessam à pes-

soa dele, ao seu patrimônio, e são, portanto, da esfera do direito privado; mas a

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Memória Jurisprudencial

nomeação, o desempenho do posto, as condições de acesso, a antiguidade para a promoção são de direito público, porque interessam à ordem pública, inspiram-se na necessidade de conciliar os interesses de todos os oficiais evitando pre-terições, injustiças e descontentamentos que fomentam a indisciplina (Ver G. Giorgi, Persone Giuridiche 164-6 e 183).

“O empregado a quem pela lei competia certo acesso (diz Coelho da Rocha, Direito Civil nota A ao § 4), se antes de o ter obtido, a lei nova dispõe de outra forma, não tem que argüi-la de retroativa.” E Gabba (Retroattività vol. 1, p. 205): “As leis concernentes à capacidade dos cidadãos para adquirirem direitos ou exercitá-los de certo modo são retroativas no sentido de se aplicarem imediatamente às pessoas e cousas existentes”. Este princípio sofre uma única exceção: “O grau de capacidade pessoal uma vez adquirido nos termos da lei não pode ser tirado por uma lei posterior”.

“O direito que pode ter um oficial ao posto superior (diz Perriquet, Contrats de l’Etat 534) tem por único fundamento a antiguidade relativa, isto é, a qualidade de oficial mais antigo entre os que forem aptos a concorrer a esse posto.”

Segue-se daí que o oficial que chega ao número 1 adquire direito à pro-moção segundo a lei então em vigor, de sorte que uma lei nova não poderá mais atingi-lo. Não é isso, porém, o que pretende o apelado.

A partir desse ponto, ou seja, firmada a premissa de que o regime jurídico do militar não tem natureza contratual, vemos um Epitacio irônico despejar toda a força de sua dedução lógica para demonstrar a tese, argumentando até pelo absurdo, de que não existe direito adquirido a regime jurídico.

O que este pretende é que, uma vez nomeado o alferes, as condições de acesso então existentes não possam mais ser alteradas até que ele chegue a marechal, é, em suma, paralisar a ação do Estado no tocante à força armada, isto é, no que diz respeito à segurança interna e externa da República. Levado às suas legítimas conseqüências, este princípio significa que o simples ato de verificar praça no Exército suspende desde logo a Constituição da República, na parte em que confere ao Congresso Nacional a atribuição de legislar sobre a organização da força armada (art. 34, 17), de suprimir empregos públicos (25) e de estatuir as condições de capacidade especial para o acesso às funções milita-res (art. 73); e como todos os dias há cidadãos que assentam praça no Exército, segue-se que a suspensão desses preceitos constitucionais é indefinida, vale por uma derrogação ou antes por um novo processo de reforma constitucional, não previsto no art. 90. Se a princípio não se atribui tamanho vigor, então teremos: hoje o Congresso estabelece certas condições de acesso: estas não se aplicarão aos oficiais existentes. Amanhã o interesse público exige que se modifique essa lei: já esta lei não atingirá aos oficiais protegidos pelas duas leis anteriores, e assim por diante. Ao cabo de algum tempo, teremos várias fornadas de direitos adquiridos, e o poder público se verá a braços com um cipoal tão emaranhado de direitos tais, que paralisará completamente a sua ação. Imagine-se agora que isso se estende a todas as repartições públicas, e digam-me se é possível assim a existência do Estado.

Eis aí o que é o tal contrato de direito público.

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Ministro Epitacio Pessôa

Está aí também mais uma mostra do raciocínio e da ciência jurídica de Epitacio Pessôa, que, acompanhado pela maioria do Tribunal, contra Murtinho e Amaro, reformou a sentença e julgou improcedente a ação.

4.1.2.4 Direito intertemporal pós-estado de sítio

ACi 1.394/Capital, Murtinho, 1907. União v. primeiro-tenente J.e J.m Pires de Carvalho e Albuquerque

Mais de uma ação proposta por militares para preservar seus direitos adquiridos, supostamente violados por mudanças legislativas, mobilizou a jurisdição do Supremo na primeira década do século XX. Mas esta, em par-ticular, revela um pouco das conseqüências jurídicas dos anos de chumbo da “República dos Marechais”. Os governos autoritários costumam deixar para as gerações posteriores uma herança nefasta: os chamados “esqueletos jurídicos”.

Sucessivas alterações legislativas ocorridas entre a Revolta da Armada (1893) e o governo de Rodrigues Alves provocaram, nas palavras de Pessôa, “uma balbúrdia inominável” na situação funcional dos militares.

Talvez até por isso, antes da exposição do problema levado a julgamento, o Ministro tenha sentido a necessidade de fazer uma exposição da legislação militar do tempo do Império, outra vez admitindo, sem maiores escrúpulos, a recepção dessa legislação pelo regime da Constituição republicana de 1891:

Em 1894, a antiguidade dos oficiais do Exército era regulada pelo Decreto de 31 de março de 1851, art. 18, que, reproduzindo princípios consagrados na legislação desde dois séculos, mandava contar aquela antiguidade da data da promoção, e, havendo igualdade, sucessivamente da data dos postos anteriores, do tempo de serviço, da praça, da idade e, por fim, da sorte.

A comissão no posto de alferes é uma promoção provisória, só permi-tida em campanha. As promoções a alferes em campanha podem ser feitas: a) por atos de bravura praticados em combate; b) por serviços relevantes; c) por deficiência de alferes determinada pelas eventualidades da guerra. Tudo isso é expresso na Lei 585, de 6 de setembro de 1850, art. 7º, e no Decreto 772, de 31 de março de 1851, art. 17.

Só quando a comissão é conferida por atos de bravura (e não por serviços de guerra; não há esta expressão como, sem dúvida por equívoco, diz o apelado; há, sim, comissão por serviços relevantes) é que a antiguidade se conta do dia da comissão, e não da promoção, isto é, do dia posterior, em que a comissão é con-firmada (Decreto 3.356, de 6 de junho de 1888, art. 1º, resolução de 11 de maio de 1889). Mas, se a comissão é dada por falta de oficiais, ou por antiguidade, ou por serviços relevantes, o cálculo da antiguidade segue a regra geral, isto é, conta-se do dia em que a comissão é confirmada. Este princípio é tão rigoroso que oficiais comissionados na campanha do Paraguai por distinção em combate não lograram contar a sua antiguidade da data da comissão (resolução de 28 de setembro de 1889).

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Memória Jurisprudencial

Relembrados os preceitos da legislação militar, ele passa a relatar os fatos da causa:

Durante a Revolta de 1893 [Revolta da Armada], foram comissionados em alferes numerosos inferiores. A 3 de novembro de 1894, o Governo confir-mou essas comissões, em número de 1.753! Na conformidade da legislação que acabo de citar, foram estes oficiais classificados pela data da praça, pois que a da promoção era a mesma, salvo os comissionados por atos de bravura, que conta-ram a sua antiguidade da data da comissão.

Assim classificados, estes oficiais adquiriram direito aos seus números respectivos na escala, com todos os consectários daí decorrentes, inclusive o de serem promovidos ao posto superior logo que atingissem o número 1.

Pois bem, mais de um ano depois, a 9 de dezembro de 1895, promulga-se a Lei 350 desta data, mandando que estes oficiais, já classificados pela data de promoção de acordo com a legislação bissecular que rege o Exército, fossem classificados pela data da comissão. Foi uma balbúrdia inominável: quem era o número 1 passou a ser o 20, quem era o número 50 passou a ser o 1, e assim por diante. Aqui no Tribunal tivemos há algum tempo uma ação na qual, estribado nesta lei, um alferes que era o número 663 da arma de infantaria pretendia pas-sar a ocupar o 1!

Como era de esperar, surgiram de todos os lados as reclamações, e essas afinal se corporificaram numa representação dirigida ao Congresso Nacional. Tomando conhecimento desta representação, a Câmara dos Deputados, pelo voto unânime da Comissão de Legislação e Justiça, reconheceu que a Lei 350 “retroagira com ofensa dos direitos garantidos pela legislação até então em vigor e, portanto, era manifestamente inconstitucional”.

E em conseqüência cotou a Lei 981, de 1903, restabelecendo a classifica-ção anterior.

Contra esta Lei 981, reclamaram então alguns oficiais, que haviam sido favorecidos pela de número 350. Mas o Supremo Tribunal, por Acórdãos 952, de 27 de janeiro de 1904 e 2 de maio de 1905, reconheceu, como fizera o Congresso, que a Lei 350 é que era inconstitucional; a de número 981, pelo con-trário, era uma lei de reparação e de justiça. A classificação, portanto, a preva-lecer era a da confirmação da comissão (3-11-1894) e não a da própria comissão (datas anteriores).

É preciso interromper a seqüência do voto do Ministro Pessôa para real-çar um aspecto muito elucidativo dos limites da jurisdição do STF à época em relação ao controle da constitucionalidade das leis. Como se sabe, o Supremo, no regime de 1891, não tinha o poder de declarar abstratamente a inconstitucio-nalidade das leis. Neste caso, Epitacio Pessôa reconhece a necessidade de inter-venção dos outros poderes da República para o exercício pleno desse controle, ou seja, para eliminar do mundo jurídico uma lei considerada inconstitucional pelo Supremo.

O fato é que, na melhor tradição européia, o Poder Legislativo havia exercido o controle, pela revogação da lei considerada por ele, Congresso, in-constitucional, embora estivesse em vigor há quase dez anos. A manifestação

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Ministro Epitacio Pessôa

do Supremo, nos acórdãos de 1904 e 1905, veio, portanto, depois da nova lei, para reforçar seu propósito.

Mas retornemos ao voto do Ministro:Ora, qual a conseqüência dessa manifestação dos dois poderes constitu-

cionais da República, o legislativo e o judiciário? Qual o alcance da Lei 981, vo-tada como uma lei de reparação? A conseqüência é que os alferes que não foram promovidos a tenentes porque, quando lhes chegou a vez, estavam ilegalmente classificados em números inferiores, devem agora ser promovidos e ir ocupar na lista dos tenentes o lugar que de direito lhes compete. Mas acontece que, du-rante o tempo da vigência inconstitucional da Lei 350, tinham sido promovidos a tenentes outros alferes, a quem ela arbitrariamente colocara nos lugares supe-riores. Que fazer então? O quadro é limitado, não comporta estas duas turmas de tenentes. Que fazer?

O Governo declarou agregados os que tinham sido promovidos sem di-reito, isto é, os que haviam sido promovidos por efeito da Lei inconstitucional 350, e incluiu no quadro aqueles a quem a promoção cabia de direito, isto é, ex vi da legislação que regula as promoções por antiguidade e da Lei 981, que a manteve.

Eis ai o fato dos autos. Basta expô-lo para mostrar a correção do ato do Governo e, portanto, a improcedência da ação, porque o que o autor pretende é que ele, que foi um dos alferes promovidos a tenente por efeito da Lei inconsti-tucional 350, isto é, sem ter direito algum, permaneça no quadro com todas as vantagens inerentes a esta situação, dele saia o outro oficial a quem ele preteriu, e cuja preterição a Lei 981 veio reparar.

Alega o autor, e é este o seu principal argumento, que o Governo não tem competência para declarar inconstitucional uma lei e deixar por isso de observá-la, nem para ampliar um julgado do Tribunal a indivíduos que não foram parte nele. Mas quem considerou inconstitucional a Lei 350 não foi o Governo, foi o Congresso, que, precisamente por esse motivo, revogou-a pela de número 981; e, por outro lado, o que o Governo aplicou ao autor não foi o ato do Supremo Tribunal, que ele invocou apenas como um reforço da sua resolução, mas o ato do Congresso, que não se manifesta in specie, mas, pelo contrário, com a mais ampla generalidade.

A promoção do autor tinha sido feita em virtude da Lei 350; veio o Con-gresso e declarou esta lei inconstitucional e, portanto, nula a promoção, man-dando que os acessos fossem dados pela legislação anterior. Que fez o Governo? Executou o ato do Congresso, aplicando-o a todos aqueles a quem ele legitima-mente abrangia. Ah! Mas fundou-se no acórdão do Supremo Tribunal. Quid inde? Fundou-se no acórdão do Supremo Tribunal para mostrar que também o Poder Judiciário, numa espécie que lhe fora submetida, julgara inconstitucional a lei, como o fazia o Poder Legislativo.

Para finalizar, Epitacio parece concordar com o autor da ação. Mas é pura retórica, o exemplo utilizado por ele apenas serve de advertência ao autor da ação de que sua situação, afinal, se não era a melhor ou aquela desejada, poderia ser ainda pior, pois “um ato inconstitucional não podia conferir direitos”:

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Memória Jurisprudencial

Há um ponto em que o autor tem razão. É quando diz que, se era incons-titucional a lei de que resultou a sua promoção, esta devia ser anulada para todos os efeitos, e não somente para o fim de ficar agregado sem contar antiguidade. É verdade. O autor devia voltar à sua condição de alferes. Isso é que seria lógico, mas são tais os privilégios dos militares, que nem sempre a lógica consegue pe-netrar nos seus domínios.

O Governo de 1893 demitiu vários lentes vitalícios e nomeou indivíduos estranhos para regerem as cadeiras. No Governo imediato, os professores espo-liados reclamaram ao Poder Judiciário, este deu-lhes ganho de causa; eles vol-veram às suas cadeiras, e os ocupantes, que tinham sido nomeados com ofensa da Constituição, foram simplesmente dispensados, sem mais direito algum. Isto é lógico: um ato inconstitucional não podia conferir direitos.

Mas o mesmo Governo de 1893 reformou violentamente o Marechal Almeida Barreto e promoveu para o seu lugar o General de Divisão Bernardo Vasques. No Governo imediato, o Marechal Barreto reclamou ao Poder Judici-ário, este deu-lhe ganho de causa; o Marechal tomou o seu posto efetivo; mas o General Bernardo Vasques não voltou à sua condição de General de Divisão; não, continuou Marechal, apenas agregado por excedente do quadro; isto é, como ele era militar, e não pobre paisano como aqueles professores, um ato in-constitucional podia produzir efeitos para ele.

Como quer que seja, porém, se o Governo atual não privou o apelado de todas as vantagens do seu posto, mas somente da antiguidade até ser regular-mente promovido, é fora de dúvida que com isso, longe de lhe fazer agravo, lhe faz favor: podia prejudicá-lo na razão de dez e o prejudica apenas na razão de um. Não é certamente o apelado quem tenha direito a reclamar contra este ato.

Depois, é preciso esclarecer que o Governo assim procedeu em obediên-cia à lei, que manda que, quando o oficial exceda do quadro, seja agregado sem contar antiguidade até chegar a sua vez. Será ilógica e, se quiserem, inconve-niente esta lei; mas é lei. E o autor que nega ao Governo o direito de não cumprir uma lei que o Poder Legislativo e o Judiciário declararam inconstitucional, não há de querer agora conferir-lhe a estupenda faculdade de não cumprir uma lei vigente e que ainda não foi, nem sequer, suspeitada de contrária à Constituição.

A ação foi julgada improcedente, mas, no ano seguinte (1908), em embar-gos, sem a presença de Epitacio Pessôa, reformou-se o acórdão, contra Lessa, Natal e André.

4.1.3 Inconstitucionalidade de aposentadoria compulsória aos 70 anos

ACi 1.410/Capital, Pessôa, 1907. União v. Desembargador Guilherme Cordeiro Coelho Sintra.

Para alguns acórdãos, o Ministro Epitacio Pessôa já começava a elaborar ementas como esta:

Na expressão “funcionário público” do art. 75 da Constituição com-preendem-se os magistrados, os quais, portanto, só podem ser aposentados em caso de invalidez, devendo ter-se por inconstitucional a lei que estabelece

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Ministro Epitacio Pessôa

a aposentação forçada do juiz que atinge uma certa idade. O citado artigo, porém, não abrange os militares.

A invalidez é relativa às funções especiais dos cargos.A garantia do art. 75 estende-se também às magistraturas locais.O funcionário vitalício tem direito ao aumento de vencimentos vo-

tado pelo Congresso no tempo em que ele esteve afastado do emprego por um ato inconstitucional.

A União é responsável pelos danos resultantes da administração da Justiça local do Distrito Federal.

O problema neste caso havia sido gerado pela Lei 1.338, de 9 de janeiro de 1905, que regulava a organização da Justiça do Distrito Federal e autorizava o Presidente da República a aposentar o magistrado desde que este chegasse à idade de 70 anos (art. 9º, 3, letra b). Com base nesse dispositivo, o Governo, por decreto de 30 de novembro do mesmo ano, aposentou o apelado no cargo de Desembargador da Corte de Apelação, com todos os vencimentos, por contar mais de trinta anos de serviço.

Para anular esse ato, que reputava contrário ao art. 75 da Constituição, o Desembargador propôs, nos termos do art. 13 da Lei 221, de 1894, ação sumária especial, exibindo atestados médicos de sua validade e pedindo que a Fazenda Nacional fosse condenada a restituir-lhe tudo que descontou de seus vencimen-tos a título de selo da aposentadoria, a indenizá-lo das perdas e danos, e, final-mente, a pagar-lhe os vencimentos que na época percebia e de futuro viessem a perceber os membros da Corte de Apelação. A ação foi julgada procedente pela sentença, da qual apelou a União Federal.

O Ministro Epitacio Pessôa, nesse voto, ajudou a criar a tese que o bene-ficiaria anos depois, embora em circunstâncias bem diversas: a de que a única aposentadoria possível dos funcionários públicos era a invalidez — que não poderia ser presumida —no serviço da Nação.

Por isso não admitia a aposentadoria compulsória, prevista na lei do Distrito Federal, para os magistrados que completassem 70 anos.

Eis o voto:Considerando que a aposentadoria só pode ser dada aos funcionários pú-

blicos em caso de invalidez no serviço da Nação (Constituição, art. 75);Considerando que na expressão “funcionários públicos” se compre-

endem os magistrados. É assim que os chama a Constituição no art. 33, c/c o art. 52, § 2º, e pode-se dizer, também no art. 82, que irrecusavelmente os abrange. É assim que os considera o Código Penal quando, tratando das malver-sações, abusos e omissões dos funcionários públicos, define os crimes dos juízes (art. 207, 1, 2, 4, 5, e 8, § 1º e § 2º; art. 214, § 3º; art. 216; e art. 235).

É assim, finalmente, que tem entendido este Tribunal, como se vê dos Acórdãos 288, de 5 de dezembro de 1898 (Jurisprudência, p. 134), 177, de 4,

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Memória Jurisprudencial

e 532, de 16 dezembro de 1899 (Jurisprudência, p. 165 e 305), e 671, de 17 de junho de 1902 (O Direito, vol. 89, p. 390);

Considerando, portanto, que os magistrados só podem ser aposentados quando se invalidarem no serviço da Nação, como, aliás, foi declarado no De-creto Legislativo 372, de 16 de julho de 1896, ainda hoje em vigor na parte refe-rente aos juízes federais;

Considerando que a invalidade é um estado de fato, que pode e precisa ser provado por exame direto e pessoal;

Considerando que a idade de 70 anos, só por si, constituirá quando muito uma presunção, mas não a prova desse fato, e tanto assim é que não são raros os casos de juízes septuagenários que se conservam física e intelectualmente aptos para o desempenho de suas funções. Invalidade quer dizer incapacidade, impossibilidade de exercer, como convém, os deveres do cargo. Mas, desde que há, e com relativa freqüência, magistrados de 70 anos que dão perfeita conta desses deveres, é fora de dúvida que essa idade não oferece um critério seguro para se julgar da validade do juiz. E uma prova disto está na divergência que se nota entre as próprias leis que regulam a matéria, adotando como base da apo-sentação compulsória ora a idade de 70 anos (Lei 1.338, de 1905), ora a de 75, (Decreto 3.309, de 1886, Lei 221, de 1894). O art. 9º, 3, letra b, da Lei 1.338, ar-vora em princípio absoluto que todo magistrado aos 70 anos está impossibilitado de exercer o seu cargo. Ora, visto que esse princípio não é verdadeiro, segundo atestam os fatos; forçoso é concluir, como já ficou dito, que aquela idade será a presunção, mas não a certeza da invalidade;

Considerando, porém, que dar a aposentadoria “só em caso de invalidez” não é o mesmo que dá-la desde que esta se presuma;

Considerando que a última condição é evidentemente mais ampla do que a primeira, o que vale dizer que a que a consagra é inconstitucional, porque al-tera, modifica, alarga incompetentemente o preceito da Constituição, substitui a realidade, que esta pressupõe como condição da aposentadoria, pela simples possibilidade, a certeza pela mera presunção, legitimando assim casos de apo-sentação em circunstâncias não previstas pela lei constitucional, e antes por ela excluídas;

Considerando que não poderia estar nas vistas dos autores da Constituição deixar ao legislador ordinário a faculdade de afastar dos seus cargos os mem-bros do Poder Judiciário à simples presunção de invalidade resultante de idade mais ou menos avançada; porquanto, se esta presunção se funda, em grande parte, no arbítrio do Congresso, como atesta a divergência já assinalada entre as leis que regem o assunto, nada impediria que, para excluir dos tribunais este ou aquele juiz ou para dar neles ingresso a este ou àquele cidadão, se alterasse em dado momento a lei para fixar uma idade mais baixa, constituindo assim aquela faculdade uma ameaça permanente à independência do Poder Judiciário e, até certo ponto, à vitaliciedade dos juízes;

Considerando que não têm aplicação ao caso vertente as decisões deste Tribunal julgando não contrária à Constituição a reforma compulsória.A pri-meira regra, para a boa interpretação da lei, é tomar as suas palavras no sentido próprio e usual. Ora, nem na linguagem vulgar, nem na linguagem das nossas leis, dos atos do Poder Executivo, dos livros de doutrina ou da jurisprudência dos tribunais, jamais a palavra aposentadoria se aplicou a militares, não sendo, pois, de presumir que dela, neste sentido inusitado, se servisse o legislador, so-bretudo tendo-se em consideração que o autor do art. 75 da Constituição foi um

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Ministro Epitacio Pessôa

militar, o qual, pelo hábito da linguagem relativa à sua classe, poderia incorrer no vício oposto, isto é, estender a palavra reforma a civis, mas nunca, na elabo-ração de uma lei de tamanha importância, aplicar à sua classe uma expressão que ele, mais do que ninguém, sabia inadequada e imprópria; porquanto de mili-tares, o que se diz é reforma, em português, como nas línguas que possuem este vocábulo. Do mesmo modo, a qualificação funcionários públicos, empregada também no dispositivo constitucional, não abrange os militares como é corrente em direito administrativo. Tudo isso mostra que não estava no pensamento do legislador constituinte abolir, com o dispositivo do art. 75, a reforma compulsó-ria, já então adotada em nossa legislação; nem podia ele esquecer que a reforma compulsória é requisito indispensável a uma boa organização militar e é de uma boa organização militar que em grande parte depende a segurança e a indepen-dência da pátria. Sem valor é a objeção de que também aos professores não se aplica comumente o termo aposentadoria; porquanto não só os professores são funcionários públicos, na acepção peculiar da expressão, como ainda é incon-testável que, o modo comum de falar, não faz entre aposentadoria e jubilação uma diferença tão marcada quanto entre reforma e aposentadoria: diz-se, com efeito, sem chocante impropriedade, que um lente foi aposentado, mas não se diz que foi aposentado um coronel ou que um escriturário do Tesouro se reformou;

Considerando que, se a compulsória dos magistrados é, como se diz, tão ou mais conveniente que a dos militares, razão será isso para que uma as-sembléia constituinte derrogue o art. 75 da Constituição e dele expressamente exclua os juízes, mas não para que um tribunal, adstrito à lei como ela é, e não como devia ser, subtraia ao seu dispositivo indivíduos ou classes que ela mani-festamente abrange;

Considerando que, se é da maior inconveniência para a administração da justiça manter em exercício juízes abatidos, senão inutilizados, física ou intelec-tualmente, o remédio para esse mal não é arredar dos tribunais, de envolta com tais juízes, magistrados ainda perfeitamente válidos, e sim mandar submeter à inspeção de saúde, sem desfalecimentos nem condescendências, todos quantos, maiores ou não de 70 anos, se mostrarem incapazes do serviço, como, aliás, está previsto e determinado na própria Lei 1.338, art. 9º, III, letra a, e privar do exer-cício do cargo realmente inválidos, conciliando-se assim com o pensamento da Constituição os interesses da justiça. E tanto mais eficaz será esta providência quanto se deverá ter em vista que a invalidez de que fala a Constituição não é a incapacidade absoluta, que inconciliável com a vida, nem mesmo a incapa-cidade para os cargos públicos em geral, mas a invalidade relativa às funções especiais do emprego;

Considerando que o art. 6º das disposições transitórias da Constituição, com o qual também se argumenta, não pode ser invocado em defesa da medida consagrada pela Lei 1.338, pois não adotou como critério para a aposentação a idade, mas sim o tempo de serviço, e se também dispensou a prova de invali-dade para os que contassem trinta anos de exercício, fê-lo por um favor excep-cional aos magistrados do antigo regímen que, apesar de todos os seus títulos de preferência, não fossem aproveitados na organização judiciária da União ou dos Estados;

Considerando que o art. 153 do Regimento deste Tribunal bem como o art. 22, letra c, V, da Lei 221, invocados nesta instância pela apelante e que tratam da aposentação forçada dos Ministros do Supremo Tribunal e dos juízes federais que completarem 75 anos de idade, estão revogados desde 1896 pelo

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Decreto Legislativo 372, de 16 de julho desse ano, que mandou respeitar na aposentadoria da magistratura da União a condição da invalidez. Acresce que tais dispositivos se referiam a juízes federais, e, na causa ora em julgamento, o autor é um magistrado local. Por último, ainda que estivessem em vigor, estas leis seriam inconstitucionais, pelas razões já expostas;

Considerando que o art. 75 da Constituição abrange em seu preceito os membros das magistraturas locais. Se é certo que a aposentadoria é matéria es-tranha à Declaração de Direitos e, por isso, a disposição constitucional parece à primeira vista restrita aos funcionários da União, não é menos verdade que o fato mesmo de inserir o legislador tal preceito aí, e não nas Disposições gerais mostra que o seu intuito foi dar-lhe o mesmo caráter de generalidade que têm as garantias nesse lugar declaradas, para que se entendesse que, reunidos neste capítulo todos os direitos prometidos pela República aos seus cidadãos, assim como os direitos que não se referem a uma classe determinada são extensivos a todos os brasileiros, qualquer que seja o ponto do país em que estes se achem, assim também os que se referem a uma classe, como, por exemplo, a dos fun-cionários, são aplicáveis a todos os membros dela, sejam federais ou estaduais;

Considerando que assim já decidiu o Tribunal, precisamente em relação aos juízes locais, nos Acórdãos citados, 288, de 1898; 177 e 532, de 1899; e 671, de 1902, sendo além disso de notar que, se o juiz da Corte de Apelação, como era o apelado, é magistrado local pela natureza de suas atribuições, recebe, todavia, a sua nomeação do Presidente da República e é pago da metade dos seus vencimentos pelos cofres da União, sendo a outra metade provida com rendas que pertencem ao Município, mas que são também arrecadadas pelo Go-verno Federal;

Considerando que o decreto, de 30 de novembro de 1905, causou dano ao apelado, embora o tenha aposentado com todos os vencimentos, porquanto, não só o sujeitou ao pagamento imediato do selo da aposentadoria, mas, ainda, o privou das custas que pelo regimento competem aos desembargadores, e o im-pediu de gozar do aumento de vencimento que para este votou posteriormente o Congresso Nacional, aumento a que incontestavelmente tem direito todo fun-cionário vitalício privado, por um ato inconstitucional, do exercício de seu cargo (Acórdãos 635, de 30 de agosto de 1905, O Direito, vol. 98, p. 370, e 1.234, de 28 de setembro de 1907);

Considerando que por esse dano deve responder a apelante, embora se trate de um juiz local, pois dela é que partiu o ato contra o qual reclama o ape-lado como inconstitucional e lesivo dos seus direitos. A Lei 23, de 30 de outubro de 1891, art. 4º, de acordo com a Constituição, arts. 67 e 34, 30, reservou para o Governo Federal a administração da Justiça local neste Distrito, sendo ele, por conseguinte, e não também o Governo municipal, o responsável pelos danos que causar na direção desse serviço;

Considerando o mais que dos autos consta:Acordam confirmar a sentença da primeira instância e condenam a ape-

lante na custas.Supremo Tribunal Federal, 2 de dezembro de 1907. — Piza e Almeida,

Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Herminio do Espirito Santo — João Pedro — André Cavalcanti — Guimarães Natal — Amaro Cavalcanti — Pedro Lessa — Manoel Espinola — A. A. Cardoso de Castro. Vencido. — Ribeiro de Almeida — Pindahiba de Mattos — Manoel Murtinho — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

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Ministro Epitacio Pessôa

4.1.4 Invocação indireta de fundamento constitucional

Ag 1.118/PR, Pessôa, Relator para o acórdão, 1909.A Justiça Federal só é competente nos termos do art. 60, a, da

Constituição quando a causa se rege diretamente por um preceito desta, expresso e especial, que, independente de leis ordinárias ou de interpreta-ções doutrinárias, possa servir de fundamento à ação. Em tais condições não está a ação fundada no art. 68 da Constituição. A simples invocação de um artigo constitucional não basta para aforar a causa na Justiça da União.

O Juiz Federal da Seção do Estado do Paraná se declarou competente para ação que pretendia anular ato do Governo do Estado que determinava que a Câmara Municipal de um Município fizesse a apuração das eleições ocorridas em outro Município paranaense. Agravada a decisão, o Ministro Pessôa, Relator para o acórdão, conduziu o Tribunal para o reconhecimento da incompetência da Justiça Federal para conhecer da ação. Utilizou-se do argumento (defensivo) de que o fundamento da causa apenas indiretamente poderia ser fundado na Constituição — algo parecido com a atual cláusula da “ofensa reflexa”. E não se permitiu ao Juiz Federal a intervenção na política local:

Considerando que a Justiça Federal só é competente nos termos do art. 60, letra a, da Constituição quando a causa se rege diretamente por esta, isto é, quando a ação se funda em uma disposição expressa e especial, que por si só defina inteiramente os poderes que confere, as garantias que assegura ou as proibições que faz, independente de leis estranhas ou de interpretações doutrinárias, podendo assim, por si só, servir de fundamento jurídico da ação (Acórdãos 1.197 e 1.221, de 1906; 887, 934, 953, 989, 998 e 1.000, de 1907; 491, de 1908);

Considerando que nestas condições não se acha o art. 68 da Constituição, que não declara precisamente em que consiste a autonomia municipal nem quais os seus limites necessários, dependendo isso de leis estaduais que definam o que, dentro do Município, constitui o interesse peculiar deste com exclusão do interesse do Estado;

Considerando que os próprios agravados reconhecem implicitamente que o preceito indefinido do art. 68 da Constituição não pode servir de fun-damento direito e exclusivo da ação, tanto que invocam a combinação desse dispositivo com os arts. 6º, 2, 63 e 78, mostrando assim que fundam a sua ação, não diretamente em uma disposição expressa da Carta Constitucional, mas em princípios resultantes da interpretação comparativa de diversas disposições;

Considerando que, se a simples invocação de um artigo constitucional fosse bastante para aforar a causa na Justiça Federal, sem função ficaria a Justiça dos Estados, porquanto todo direito e, conseqüentemente, toda ação se fundam em última análise, em uma disposição da Constituição, que é a fonte e a garantia de todos os direitos (Acórdãos 171, de 1896; 185, de 1897; 75, de 1898; 421, de 1901; e 487, de 1903);

Considerando que, se a ação proposta pelos agravados não se funda di-retamente, como ficou demonstrado, em dispositivo da Constituição, a Justiça Federal não é competente para processá-la e julgá-la, nem em face do art. 60,

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Memória Jurisprudencial

letra a, da mesma Constituição, nem em vista do Decreto 1.939, de 28 de agosto de 1908, art. 6º:

Acordam, verificado que o agravo tem fundamento no art. 54, VI, letra a, da Lei 221, de 1894, dar-lhe provimento para que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, se declare incompetente, pagas as custas pelos agravados.

Supremo Tribunal Federal, 13 de janeiro de 1909 — Pindahiba de Mattos, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão.

4.1.5 Sucumbência da Fazenda Nacional: duplo efeito e recurso ex officio

AgP 962/Capital, Pessôa, 1907. Agravantes — a União e a Cia. de Loterias Nacionais v. Agravada — Companhia Loterias da Bahia.

Na ação especial do art. 13 da Lei 221, de 1894, a apelação deve ser recebida em ambos os efeitos, sempre que a Fazenda Nacional for vencida.

O agravo aqui fora provido para que o Juiz da Seção reformasse seu des-pacho e recebesse a apelação da Fazenda Nacional em ambos os efeitos, devo-lutivo e suspensivo, em decorrência mesma da necessidade de processamento obrigatório da apelação, em caso de sucumbência da Fazenda. E, mais uma vez, foi reconhecida a continuidade de legislação imperial:

Nos termos da lei de 1841, art. 13, devem ser ex officio apeladas todas as sentenças proferidas contra a Fazenda Nacional em primeira instância, e isso significa que nenhuma sentença contra a Fazenda Nacional pode ser executada, senão depois de confirmada na instância superior.

É esta, com efeito, a inteligência que sempre se deu à citada lei, e que resulta naturalmente da sua letra e do seu espírito (Ord. 110, de 10 de outubro de 1845; Decreto 3.084, de 1898, part. V, art. 40; Perdigão Malheiros, Man. nota 132; Sousa Bandeira, Man. § 27, § 84 e § 140; Pereira e Sousa, Primeiras Linhas ed. de T. de Freitas, nota 634; Paula Batista, Prática do Processo, nota ao § 223).

Nem outro foi o pensamento do Governo ao apresentá-la à Assembléia Geral em 1838 (Anais da Câmara dos Deputados de 1838, vol. I, p. 164).

Nem as comissões respectivas, e os deputados que a discutiram, a inter-pretaram jamais de modo diverso (cit. Anais, vol. I, p. 458; vol. II, p. 484 a 489, e Anais de 1841, vol. II, passim).

(...)A objeção de que tanto o legislador de 1841 não quis dar sempre à ape-

lação ex officio o efeito suspensivo, que mandou observar na sua interposição, recebimento, expedição, processo e julgamento, a legislação então em vigor, se-gundo a qual nas causas sumárias a apelação era em regra recebida no só efeito devolutivo, não tem procedência alguma.

O art. 14, do qual vem a referência a essa legislação, trata não unica-mente das apelações ex officio, mas também das voluntárias, e é evidente que dos trâmites processuais por ele indicados alguns há — a interposição e o rece-bimento — que somente às últimas se aplicam.

De feito, quanto à interposição, não podia a lei prescrever para a da apelação ex officio o processo em vigor, quando justamente instituía outro dife-rente; e pelo que diz respeito ao recebimento seria extravagância conferir ao juiz

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Ministro Epitacio Pessôa

a atribuição de receber a sua própria apelação, como absurdo seria dar-lhe a lei o arbítrio de receber ou não (que tanto significa o termo recebimento) um recurso que ela própria criara obrigatório.

Depois, o princípio então dominante no processo era que as apelações fossem recebidas em ambos os efeitos (Ord. L. 3, T. 73 pr.) e no devolutivo só quando a lei expressamente o determinasse.

Finalmente, a ação do art. 13 da Lei 221, de 1894, não é propriamente uma ação sumária, mas uma ação especial, que só em parte segue o curso das ações daquela natureza.

Nem se diga que a lei de 1841 foi revogada pela legislação da República ou é incompatível com o atual regímen judiciário, já porque converte o juiz em advogado da Fazenda Nacional, já porque mantém em favor desta um privilégio que se não justifica mais.

Lei especial, a Lei 242 só podia ser ab-rogada por outra da mesma natu-reza, e não o foi até agora.

Quanto ao papel do juiz na apelação ex officio, está longe de ser o de um advogado da Fazenda, desde que as únicas razões que por aquele meio ele produz na instância superior são as constantes da sua sentença — sentença contrária aos interesses da mesma Fazenda. Quando a Lei 2.040, de 1871, criou a apelação ex officio das sentenças contrárias à liberdade: o Decreto 3.069, de 1863, das que anulassem o casamento de pessoas estranhas à religião oficial, e o Decreto 181, de 1890 das homologatórias do acordo sobre o divórcio, nin-guém jamais enxergou nisso um desvirtuamento da função do magistrado. São relevantíssimas razões de ordem pública — ali o zelo pela liberdade humana e pela paz das famílias, aqui o interesse da Fazenda Nacional, que é o interesse de toda a coletividade — que levam o legislador a exigir que o juiz submeta à instância superior o seu julgado. Nem o juiz com isso patrocina direitos de nin-guém, pois se limita a remeter a sua decisão ao tribunal superior, nem sofre com isso a sua independência, que então se ressentiria igualmente com a apelação voluntária.

No tocante ao privilégio em si, não é de admirar que subsista ainda hoje em um regímen, cujas leis reconhecem e proclamam os “privilégios da Fazenda Nacional” (Decreto 1.030, de 1890, art. 77) e até lhe conferem regalias de que ela até então não gozara (Lei 221, art. 51).

Aliás, a vigência da lei de 1841 é matéria vencida neste Tribunal (Acórdãos 414, de 2 de maio; 480, de 16 de maio; 541, de 21 de julho; e 536, de 15 de setembro de 1900; 416, de 16 de novembro de 1901; 723, de 7 de maio; 702, de 21 de junho; 733, de 9 de julho; 825, de 25 de outubro; e 760 e 762, de 22 de novembro de 1902; 658 e 698, de 24 de janeiro de 1903; 918, de 3 de setembro de 1904; 1.069, de 18 de outubro; e 970, de 22 de novembro de 1905; e 1.069, de 20 de maio de 1906).

Reconhecer a vigência desta lei e ao mesmo tempo admitir que as apela-ções da Fazenda possam ser recebidas no efeito devolutivo, somente seria con-tradição e absurdo.

Acresce que são por sua natureza mesma inexeqüíveis, sem confirma-ção superior, as sentenças proferidas contra a Fazenda Nacional em primeira instância; porquanto nem é admissível que o Congresso Nacional, quando a condenação importe um desembolso pecuniário, vote uma lei para cumpri-mento provisório de uma decisão revogável, nem se compreende que uma lei ou decreto de um dos poderes da Nação possa ser de fato anulado por outro,

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Memória Jurisprudencial

mas apenas si et in quantum. São sentenças estas em que, por não comportarem execução provisória, a apelação é suspensiva pela necessidade das cousas (Paula Batista. Prática do Processo, nota ao § 227).

O art. 59 da Lei 221 não teve nem podia ter em vista a hipótese dos autos.Disposição de caráter geral, não lhe era dado derrogar uma lei especial.

Também as leis gerais de processos posteriores a 1841 — Regulamento 143, de 15 de março de 1842, Decreto 5.467, de 12 de novembro de 1873, e outros — consagravam preceitos incompatíveis com a apelação ex officio e nem por isso eram tidas por derrogatórias da Lei 242, daquele ano.

Pague a agravada as custas.Supremo Tribunal Federal, 17 de agosto de 1907 — Piza e Almeida,

Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Ribeiro de Almeida — André Cavalcanti — Guimarães Natal — Pindahiba de Mattos. Vencido. — Herminio do Espirito Santo — A. A. Cardoso de Castro. Vencido. — Manoel Murtinho — Manoel Espinola. Vencido. — Amaro Cavalcanti. Vencido. Foi voto vencido o Ministro Alberto Martins Torres. — O secretário João Pedreira do Couto Ferraz.

4.1.6 Atribuições ambivalentes do Chefe de Polícia do Distrito Federal

Ag 1.000/ Capital, Pessôa, 1908. Agravantes — Jacinto Magalhães e ou-tros v. Agravada — União Federal.

Segundo a narração de Pessôa, Jacinto Magalhães e Lopes & Freitas, pro-prietários de automóveis, estabelecidos na Capital, requereram ao Juiz Federal da Segunda Vara um mandado proibitório contra o Chefe de Polícia e alguns dos seus subordinados, que, para fazerem cumprir a tabela de preços de automó-veis, ameaçaram a sua liberdade de praticar o comércio e também o seu direito de propriedade, quando prometeram apreender os seus automóveis que se não sujeitassem aos preços fixados.

O Juiz Federal se declarou incompetente, pois considerou o Chefe de Polícia como autoridade local, sujeito, portanto, à Justiça do Distrito. O caso vale o destaque pela descrição de Pessôa sobre essa ambivalência da polícia do Distrito Federal, na verdade, característica do próprio Distrito Federal até hoje. O Supremo mais uma vez reconheceu a competência da Justiça Federal:

(...) o Supremo Tribunal, tomando conhecimento do agravo, por estar no termo do art. 54, VI, letras a (sic) e s, da Lei 221, de 1894, dá-lhe provimento e manda que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, se julgue competente e conceda ou não, como entender de direito, o interdito requerido.

O serviço de polícia, embora local pela índole de sua função, está neste Distrito a cargo do Governo Federal, em virtude de disposições expressas na Constituição e de leis ordinárias.

A Constituição, com efeito, no art. 34, 30, conferiu privativamente ao Congresso Nacional a atribuição de legislar sobre a polícia da Capital, como serviço que ficava reservado para o Governo da União. A Constituição não quis sequer deixar ao arbítrio da legislatura ordinária confiar ou não esse serviço ao

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Ministro Epitacio Pessôa

Governo Federal; ela própria o fez, como que visando prevenir qualquer decisão em contrário de leis posteriores.

Mais tarde, a Lei 23, de 30 de outubro de 1891, organizando os serviços da administração federal, entregou a polícia ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores (art. 4, letra b).

Assim o serviço de polícia, ainda que local por sua natureza, na Capital da União, onde só há o poder federal e o do Município, não é um serviço muni-cipal. E não o é, porque assim o declararam a Constituição e a lei citada; porque assim o consideraram todas as reformas por que ele tem passado; porque está “sob a inspeção suprema do Presidente da República e a superintendência geral do Ministro da Justiça” (Lei 1.631, de 3 de janeiro de 1907, art. 1º, Decreto 6.440, de 30 de março do mesmo ano, art. 1º); porque é dirigido por um chefe de livre nomeação e exoneração do Presidente da República (citada Lei, art. 2º, 1, citado decreto art. 9º) e que é obrigado a cumprir as ordens e instruções do Ministro da Justiça (citado decreto, art. 32); finalmente, porque é estipendiado pelo cofre nacional, pouco importando que o Município concorra com parte das despesas, desde que isso lhe não dá intervenção alguma na direção do serviço e se explica pelos benefícios que daí aufere.

Mas, se é ao Governo da União que, por força dum preceito constitu-cional, compete organizar a polícia neste Distrito, dirigi-la, superintendê-la, custeá-la, nomear e demitir o seu chefe, etc.; se o Município não tem nisso a menor ingerência, manifesto é que a este não pode caber nenhuma responsabi-lidade pelas violações de direito acaso cometidas na execução desse serviço, e em tais casos não é a sua Justiça que tem de intervir.

É certo que, no crime, o Chefe de Polícia responde perante a Justiça local, como dispõe a Lei 1.338, de 1905, art. 24, X, e tem sido mais de uma vez decla-rado por este Tribunal.

No cível, porém, não é isso possível, não só pelas razões já expostas, mas ainda porque os dinheiros, com que se mantém a polícia e teriam de fazer face à composição dos danos resultantes de atos do Chefe de Polícia, são em parte da Fazenda Nacional, de sorte que a causa, pelo menos em parte, interessaria diretamente a esta Fazenda, e tanto basta para forçar a competência da Justiça Federal, à vista do art. 60, letra b, da Constituição.

A única restrição a fazer ao que até aqui se tem exposto é a da compe-tência da Justiça local para a apuração dos prejuízos que o Chefe de Polícia por ventura cause ao direito individual na execução de leis municipais, pois aí é só a Fazenda do Município e não também a da União, a interessada.

Essa função da polícia está, aliás, prevista no próprio Decreto 6.440, de 1907, já citado, em cujo art. 32, III, se lê:

É da competência do Chefe de Polícia exercer a polícia admi-nistrativa relativamente aos serviços dos Ministérios Federais e da Municipalidade do Distrito, de acordo com as respectivas autoridades.Ora, no caso dos autos, não se trata da execução de uma lei do Município.

A Lei federal 1.631, do ano passado, autorizou o Presidente da República a re-formar o serviço policial, referindo-se expressamente, no art. 9º, ao regulamento de veículos. No Decreto 6.440, que expediu por força dessa lei, o Governo in-cumbiu (art. 221) o Chefe de Polícia de expedir as tabelas especiais necessárias a esse ramo de serviço.

A tabela, pois, de que se queixam os agravantes foi organizada por aquela autoridade como delegado do Governo da União, executando uma lei do

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Memória Jurisprudencial

Congresso Nacional e um decreto do Poder Executivo federal. Logo, os meios tendentes a evitar a sua aplicação e prevenir os danos que dessa aplicação pos-sam originar-se, devem ser pedidos, não ao juiz da Fazenda do Município, mas ao da Fazenda federal, que é o juiz da seção.

Custas pela União, agravada.8 de janeiro de 1908.

4.1.7 Despejo por condições sanitárias

AgP 768/Capital, Pessôa, 1906. Agravante — Manuel de Sousa Nogueira v. Agravado — o Juiz Federal da 2ª vara [sic].

Manuel de Sousa Nogueira requereu ao Juiz agravado manutenção da posse do seu imóvel, situado na Travessa da Natividade, n. 1, alegando: ameaça de despejo pela autoridade sanitária, apoiada do art. 91 do Decreto 5.156, de 8 de março de 1904; que essa ameaça é ilegal, porque só o Juiz dos Feitos da Saúde Pública pode ordenar o despejo dos prédios cujas condições sanitárias não sejam boas, como é expresso na Lei 1.151, de 5 de janeiro de 1904, art. 1º, § 12, 1. O Juiz indeferiu o pedido, por não ser o interdito possessório meio hábil para obstar a ação da autoridade sanitária nas medidas prescritas pela higiene pública.

O caso contido neste agravo ilustra um pouco da dramática situação vi-vida por muitos proprietários e ocupantes de imóveis no Rio de Janeiro, quando o então Prefeito, Pereira Passos, promoveu a primeira grande reforma urbana da Capital e o sanitarista Oswaldo Cruz a reforma sanitária. Os interditos pos-sessórios eram, então, o meio disponível para tentar frear a ação administrativa que, conforme o relato dos historiadores, foi rápida e, muitas vezes, violenta e arbitrária. O povo do Rio de Janeiro batizou as operações da Prefeitura de o “bota-abaixo”, e a vacinação obrigatória imposta por Cruz, no governo de Rodrigues Alves, provocaria a Revolta da Vacina.

Leda Boechat Rodrigues afirma, a propósito, que o Supremo não se dei-xou dominar pelo “ambiente adverso” — referindo-se às críticas de Rui Barbosa e de Barbosa Lima à vacinação obrigatória —, “proclamando a constituciona-lidade das leis de higiene pública e negando os interditos proibitórios pedidos contra a desinfecção de prédios, levou-se a bom termo a tarefa de saneamento da Capital Federal”86.

Nesse caso, o Ministro Epitacio Pessôa chega a reconhecer a ilegalidade do despacho administrativo que determinou o despejo, porque isso só poderia ter sido feito por uma autoridade judiciária. No entanto, declara incompetente o Supremo Tribunal para conhecer de agravo interposto contra decisão do Juiz

86 RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 6 (Defesa do Federalismo, II).

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Ministro Epitacio Pessôa

Federal, pois a competência para o exame da causa seria da Justiça estadual (Juiz da Saúde), conforme havia estabelecido a Lei federal 1.151.

Mesmo assim, ainda que fossem superadas as preliminares, o agravo não mereceria provimento, nas palavras do Ministro, porque o agravante não teria feito prova de que estivesse sob ameaça.

A decisão final do STF no caso foi mesmo a de não “tomar conhecimento do agravo”, mas por outro motivo: o preparo intempestivo do recurso.

I — Entendo que o art. 98 do Regimento do Tribunal é embaraço a que se tome conhecimento do agravo. A meu ver a Secretaria não devia ter admitido a parte a preparar o agravo; mas desde que o fez e desde que a parte, a quem não é lícito ignorar a lei, o quis, forçoso é que os autos subam ao Tribunal. Nem por isso, entretanto, está adstrito a conhecer do feito, com preterição daquele preceito regimental.

II — O Juiz Federal é incompetente. Muito embora se trate de uma causa proposta contra funcionários federais e, portanto, contra o Governo da União, fundada em lei e regulamento do Poder Executivo (Constituição, art. 60, letra b), todavia: 1º, esses funcionários são, pela natureza de suas funções, municipais, tanto que só acidentalmente estão a cargo da União, e as suas atribuições eram exercidas por empregados municipais até 1903; 2º, que a ação do Governo aqui é também essencialmente municipal, tanto que é restrita ao Distrito Federal (Lei 1.151, art. 1º; Decreto 5.156, art. 1º, § 2º); 3º, essa lei e esse decreto, funda-mento da ação, são, quanto à higiene domiciliária, também municipais.

Era lícito, portanto, ao Congresso cometer a um juiz local o julgamento de todas as causas fundadas nessa legislação. Ora, o art. 1º, § 11, da Lei 1.151 as-sim dispõe: “É da competência do juízo dos feitos da Saúde Pública conhecer de todas as ações e processos civis e criminais em matéria de higiene e salubridade pública, concernente à execução das leis e dos regulamentos sanitários, atinen-tes à observância e efetividade dos mandados e ordens das autoridades sanitá-rias ou relativos aos atos de ofício destas.” E no § 12: “O juiz dos feitos da Saúde Pública tem jurisdição privativa em primeira instância para o processo e julga-mento: IV (sic) de qualquer ação em que a saúde pública possa ser interessada.”

Tais disposições são constitucionais, pelo menos no que disser respeito, como no caso presente, à higiene domiciliária e à profilaxia das moléstias infec-tuosas (Decreto 5.156, art. 1º, § 2º).

Sendo assim, claro é que a manutenção devia ter sido requerida ao Juiz da saúde.

III — A autoridade sanitária administrativa não pode forçar ninguém a desocupar o prédio interdito. “A declaração de interdição de prédios, diz a lei no art. 1º, § 3º, II, por parte da autoridade administrativa, terá por efeito serem eles desocupados amigável ou judicialmente (...).” A autoridade administrativa convidará o inquilino a desocupar o prédio; mas, se o inquilino não o quer fazer amigavelmente, o despejo só pode ser ordenado pelo juiz. Eis por que a lei dis-põe no já citado § 12: “O juiz dos feitos da Saúde Pública tem jurisdição priva-tiva em primeira instância para o processo e julgamento das causas que têm por objeto despejo etc.” Também o Regulamento, no art. 98, §, VI, pode-se dizer que é expresso quanto à doutrina exposta. Se outras disposições do Regulamento

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Memória Jurisprudencial

levam a conclusão diversa, elas são exorbitantes da lei e como tais não podem ser cumpridas.

Em vista do exposto, é claro que não tem aqui aplicação o art. 1º, § 20 da lei, que proíbe os interditos possessórios contra atos de autoridade sanitária exercidos ratione imperii, quando o ato que se discute, o despejo, não entra nas atribuições legais da autoridade administrativa, pois que é privativo da auto-ridade judiciária. Nem importa a segunda parte dessa disposição, que parece vedar o interdito mesmo quando o ato seja ilegal: a ilegalidade de que aí se fala só pode ser a que dimana de outra causa que não a incompetência, do contrá-rio a autoridade sanitária poderia chegar até à desapropriação sem indenização prévia.

Mas o agravante não produziu prova alguma de que estivesse sob a amea ça de que se queixa. Nem sequer juntou a intimação que diz lhe haver sido feita pela autoridade sanitária, intimação que é feita por escrito, como prescreve o art. 1º, § 21, da lei.

Por isso, quando não prevalecessem as duas preliminares, o agravo não mereceria provimento.

Vistos e expostos estes autos de agravo de petição em que é agravante Manuel de Sousa Nogueira e agravado o Juiz Federal da 1ª vara [sic] deste Distrito:

Acordam não tomar conhecimento do recurso por ter sido preparado de-pois de esgotado o prazo legal de cinco dias (Regimento do Supremo Tribunal, art. 98). Com efeito, o agravo teve entrada na Secretaria do Tribunal no dia 21 de dezembro de 1905 (termo de fl. 19) e só foi preparado no dia 30 de março do corrente ano (termo de fl. 19 v.). Custas pelo agravante.

Supremo Tribunal Federal, 11 de abril de 1906.

4.1.8 Peculato e co-autoria de pessoa estranha à administração pública

ACr 309/Paraná, Pessôa, 1909. Apelante — o Procurador da República v. Apelado — João Loureiro da Silveira.

Conhece-se da apelação que é entregue ao Correio em tempo de che-gar ao Tribunal dentro do prazo, ainda que recebida nove dias depois de esgotado este.

No domínio do Código Penal já podiam ser co-autores ou cúmplices de peculato empregados estranhos à guarda e administração dos dinheiros públicos, e até simples particulares.

A não-pronúncia não é obstáculo à instauração de um outro pro-cesso, se novas provas do delito foram colhidas.

Reforma da sentença absolutória, à vista das provas dos autos.

Foram poucos os registros de votos e acórdãos do Ministro Epitacio Pessôa em matéria criminal. Neste caso, vale observar a longevidade da equi-paração, à condição de servidor público para efeitos penais, do particular que, associado àquele, comete crime próprio:

Considerando que, se é substancial no crime de peculato que o réu seja funcionário público e tenha sob sua guarda ou administração os valores da

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Ministro Epitacio Pessôa

Fazenda Pública, daí não se segue que não possam ser cúmplices ou co-autores neste crime, conforme o auxílio que para a sua realização prestarem ao guarda daqueles valores, funcionários outros, ou mesmo particulares, estranhos à re-partição, como tantas vezes tem reconhecido esse Tribunal (Acórdãos 77, de 12 de novembro de 1898; 1.163 e 1.175, de 21 de janeiro e 2 de fevereiro de 1899; 98, de 20 de junho de 1900; 126, de 21 de dezembro de 1901; 175, de 17 de no-vembro de 1906; e 2.463, de 4 de setembro de 1907);

Considerando que o fato de não ter sido o apelado pronunciado no primeiro processo a que respondeu não era obstáculo à instauração dum ou-tro processo, à vista dos novos elementos de prova remetidos ao Ministério Público — como, aliás, reconheceu o despacho de pronúncia de fl. 37;

Considerando que o crime imputado ao apelado está provado com os depoimentos da segunda, terceira, quarta e quinta testemunhas (fls. 13, 14 v., 22 e 32) com o ofício da comissão da Delegacia Fiscal (fl. 6) e a conta-corrente organizada pelo Tribunal de Contas (fl. 8), dos quais se mostra que, por meio de lançamentos falsos em cadernetas da Caixa Econômica e mediante ajuste com o Tesoureiro respectivo, subtraiu dessa repartição a quantia de 49:178$707:

Acordam — vencendo-se a preliminar de se conhecer da apelação, que, embora recebida no Tribunal nove dias depois de esgotado o prazo da lei, fora, todavia, entregue ao Correio em tempo de chegar ao seu destino dentro do prazo — dar provimento ao recurso para, reformando a sentença apelada, con-denar o apelado João Loureiro da Silveira, ex-oficial da Caixa Econômica do Paraná, a quatro anos de prisão celular e multa de 20% do dinheiro subtraído, grau máximo do art. 221 do Código Penal, à vista da circunstância agravante do art. 39, § 13, do mesmo Código, e mais nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 19 de maio de 1909 — Pindahiba de Mattos, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — A. A. Cardoso de Castro — Herminio do Espirito Santos — Manoel Murtinho — Pedro Lessa — Canuto Saraiva — André Cavalcanti — Manoel Espinola — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal.

4.1.9 Um crime sui generis: depositário de moeda falsa

ACr 352/Capital, Canuto Saraiva, 1909. Apelante — a Justiça Federal v. Apelados — Alfredo B. Pinto e outros.

Neste caso, citado anteriormente, Pessôa atuou como vogal no julga-mento. Sua manifestação, bem-humorada, concentra-se em discutir aspectos técnicos relacionados ao enquadramento adequado da conduta apontada como criminosa, ante o fato de ter o legislador definido uma tipificação sui generis para o crime de que se cuidava:

Ressalvo, como fiz na discussão da causa e, depois, ao se submeter o acórdão à aprovação do Tribunal, a minha divergência quanto à qualificação de atos preparatórios do crime do art. 12 da Lei 1.785, de 1907, dada aos atos praticados pelos apelados que, na espécie dos autos, jamais poderiam cometer esse delito.

O citado preceito legal pune como crime introduzir na circulação a moe da falsa como autêntica. Ora, não há artifício capaz de convencer que

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incorre nas penas deste artigo quem introduz na circulação moeda falsa, como falsa. Podem sacar daí todas as assustadoras conseqüências que qui-serem: a culpa será do legislador, que não soube fazer a lei, nunca do juiz, adstrito a aplicá-la como ela é e não como ele entende que devia ser.

Mas, se os apelados, propondo a venda das notas pela quarta parte do seu valor e confessando previamente a falsidade delas, não cometeram nem podiam cometer o crime do art. 12 da Lei 1.785, como chamar seus atos de atos preparatórios desse crime impossível?!

Se não concordei com essa qualificação, muito menos aceitei a de delito consumado, também aventada no julgamento. Esta última, além de flagrantemente contrária à verdade dos autos, envolveria um verdadeiro contra-senso, qual o de admitir que introduziu moeda na circulação, quem conservou sempre em seu poder a moeda a introduzir!

Os atos dos apelados constituem o crime sui generis definido no art. 24, 2ª parte, da lei. O legislador arvorou em delito especial “o fato de alguém ser depositário de moeda falsa”. O Tribunal considerou os apelados como “depositários”, foi este o fundamento invocado e muitas vezes repetido da sua decisão.

Neste ponto acompanhei o Tribunal. É da maior evidência que a lei não usou da expressão depositário no sentido que em direito lhe é próprio. Imagine-se o legislador considerando a nota falsa objeto lícito de depósito com todas as formalidades e estipulações próprias deste contrato — do-cumento escrito e assinado pelo depositário, com duas testemunhas, firma reconhecida por tabelião, averbação dessa firma e inscrição do contrato no cartório especial de registro de títulos, comissão do depositário, obrigação deste de restituir a nota ao depositante dentro de 48 horas da intimação judicial, sob pena de prisão, decretada por um juiz, responsabilidade por estelionato no caso da alienação da nota falsa depositada etc. etc.; imagine-se o legislador exigindo tudo isso para a caracterização do crime e, depois de obter tudo isso, punindo somente o depositário e deixando incólume o depositante!

Seria o cúmulo do disparate!Não, o legislador quis referir-se ao “intermediário” a quem o fabri-

cante confiasse a moeda destinada à circulação, ou mesmo ao introdutor, antes de entrar em função.

E tudo leva a crer que, incluindo na nova lei essa figura delituosa, não teve ele em vista outra cousa mais do que consagrar a jurisprudência do Supremo Tribunal, que já declarara punível esse fato (Acórdãos 145, de 20 de junho de 1904; 162, de 20 de novembro de 1905; 259, de 27 de setembro de 1906; 2.416, de 16 de janeiro de 1907). Apenas, como entre os membros do Tribunal muitos houvesse, para os quais o dito fato constituía não uma tenta-tiva, como pensava a maioria, mas simples ato preparatório, não passível de pena, o legislador procurou harmonizar as opiniões divergentes, definindo o fato como um delito especial e punindo-o com a pena da tentativa.

Vê-se daí que a lei terá usado duma expressão imprópria, mas não pressupôs uma hipótese absurda e ridícula.

28 de junho de 1909.

107

Ministro Epitacio Pessôa

4.1.10 Crime continuado e aplicação da pena

ACr 287/Piauí, Pessôa, 1907. Apelante — Jaime Chaves v. Apelada — a Justiça Federal.

O crime retratado neste acórdão é o de subtração de valores dos Correios, cometido por um funcionário da entidade que, durante meses, teria extraviado diversos valores sob sua guarda. Interessante a intervenção do Supremo neste caso que, por considerar a prática do funcionário mera continuação do mesmo crime, pelo qual já havia sido condenado em outro processo, decidiu, acompa-nhando o voto de Epitacio Pessôa, reformar a sentença do Juiz Federal e absol-ver o réu:

Vistos e relatados estes autos de apelação interposta por Jaime Chaves, ex-carteiro dos Correios do Piauí, da sentença do Juiz Federal do mesmo Estado que o condenou nas penas do grau médio do art. 221 do Código Penal por haver, nos meses de julho, outubro e dezembro de 1903 e fevereiro e março de 1904, extraviado diversos valores registrados confiados à sua guarda.

O Supremo Tribunal reforma a sentença apelada e absolve o apelante das penas que lhe foram impostas. Consta dos autos que a 29 de abril de 1904 o ad-ministrador dos Correios do Piauí enviou ao Procurador secional um inquérito administrativo, do qual resultava que o apelante era autor de várias subtrações de valores, cometidas naquela repartição no período decorrido de julho de 1903 a março de 1904.

Denunciado a 5 de maio seguinte, foi o apelante pronunciado no art. 221 do Código Penal. Tendo recorrido para este Tribunal e antes que fosse decidido o seu recurso, o Procurador da República, provocado por novas diligências do administrador dos Correios, instaurou outro processo contra o apelante, acusado de mais duas subtrações, praticadas no mesmo mês de março de 1904. Neste se-gundo processo, foi o apelante condenado por sentença do Juiz Federal no grau máximo do art. 221, pena reduzida ao médio pelo acórdão deste Tribunal nú-mero 234, de 5 de agosto de 1905. Julgando agora o primeiro processo, o Juiz da seção condenou o apelante no médio do mesmo artigo pela sentença de fl. 253v. que é a sentença apelada.

Ora, está provado dos autos que todas essas subtrações obedeciam a uma só intenção criminosa e sendo, portanto, manifesto que se trata, na espécie ver-tente, dum crime continuado, que teve início em julho de 1903 e terminou em março de 1904, e duma série de atos delituosos isolados e distintos, presos por um mesmo nexo causal e subordinados a um mesmo plano, crime que por isso mesmo que é um só, tem de ser punido com uma só pena, e sem a agravação especial do art. 66, § 2º, porque os atos não foram praticados em lugar diferente, nem a do art. 66, § 3º, porque os ditos atos são da mesma natureza. Mas, se todas as subtrações formam um só crime, passível de uma só pena, e se o apelante já foi condenado uma vez, não é possível, sem evidente violação da lei, condená-lo de novo: seria converter um só delito em dois. O Procurador da República não devia ter movido o segundo processo e sim mandado juntar ao primeiro as novas diligências efetuadas pelo administrador dos Correios: assim como entendeu que não devia denunciar o apelante por tantas infrações do art. 221 do Código quantos os desvios narrados na primeira denúncia, sem dúvida por pensar que

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Memória Jurisprudencial

todos eles representavam um só crime continuado, apesar de haver entre alguns o espaço de mais de dois meses, assim também não podia destacar duas das sub-trações operadas quase sem interná-lo no curto período do mês de março para formar um crime e um processo à parte.

Custas ex causa.4 de novembro de 1907.

Supremo Tribunal Federal, 31 de dezembro de 1907.Contra Natal.

4.2 Jurisdição extraordinária

4.2.1 Nulidade dos atos inconstitucionais

RE 426/MA, Pessôa, 1906. Recorrente — Drs. Lourenço V. de Figueiredo, Carlos E. de Andrade Peixoto e A. P. Câmara Lima v. Recorrido — o Estado do Maranhão.

Neste recurso extraordinário se pretendia a declaração de nulidade do Decreto 117, de 4 de janeiro de 1892, da Junta Governativa do Maranhão, que governou o Estado após a deposição do Governador anterior. É caso de conflito entre oligarquias estaduais, que Epitacio Pessôa resolve como conflito de leis no tempo, ou seja, declarando a nulidade da lei posterior que desconsiderou direi-tos adquiridos, no caso a vitaliciedade de magistrados, privilégio estabelecido na própria Constituição.

O decreto da Junta Governativa, apontado como inconstitucio-nal, havia desfeito a organização judiciária anteriormente estabelecida pelo Decreto 91, de 20 de agosto de 1891, e em conseqüência despojou dos cargos de Desembargadores os dois primeiros recorrentes e de Juiz da Capital o último. O Juiz da primeira instância deu-lhes ganho de causa; o Tribunal do Estado, porém, reformou a sentença e declarou válido o ato impugnado.

A questão subiu ao Supremo Tribunal em recurso extraordinário. Em seu voto, Pessôa carrega bastante nas tintas para pedir a reforma da decisão recor-rida e assegurar o direito adquirido dos Desembargadores, o que, para ele, se-ria a expressão do reconhecimento da garantia da independência do Judiciário estadual frente às forças políticas. Já na conclusão, alerta (profético) que, se o Tribunal fraquejasse, poderia estimular sublevações políticas nos Estados “com a aquiescência ou mesmo a tolerância do Governo da União”. Por isso era pre-ciso evitar, com a decisão de cassar o acórdão recorrido, que um governo de fato, “oriundo de algum movimento local, se julgue com o direito de cassar a seu talante as garantias que a Constituição Federal e as dos Estados asseguram aos membros do Poder Judiciário.”

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Ministro Epitacio Pessôa

De meritis, dou provimento ao recurso para anular o ato da Junta Gover-nativa e mandar que o Estado pague aos recorrentes todos os vencimentos de desembargadores e juiz desde a data em que votou regularmente o seu primeiro orçamento até que os mesmos recorrentes sejam reintegrados, salvo o direito da União para haver desses magistrados tudo quanto lhes pagou como juízes em disponibilidade.

A Constituição do Maranhão, de 4 de julho de 1891, no art. 13 das suas disposições transitórias, autorizou o Governador do Estado a fazer a organiza-ção judiciária e nomear os respectivos juízes, como se praticou, aliás, em todos os Estados. Por força dessa autorização, o Governador baixou o Decreto 91, de 20 de agosto do mesmo ano, que estabeleceu aquela organização, e por força do qual foram nomeados os dois primeiros recorrentes desembargadores e o ter-ceiro juiz da Capital. Nomeados, tomaram posse dos cargos e entraram em exer-cício. Era um ato legal e, portanto, capaz de criar direitos; era um ato acabado e que, portanto, já criara efetivamente direitos para aqueles em favor de quem fora expedido; e, como a Constituição do Estado consagrava (aliás, de acordo com a Constituição Federal, como devia ser) a vitaliciedade como principal predica-mento dos juízes, é fora de dúvida que os recorrentes eram vitalícios nos cargos em que haviam sido investidos e esta vitaliciedade não podia mais ser destruída por poder algum.

Em tais condições, o ato da Junta Governativa que anulou a nomeação dos recorrentes, além de contrário à própria Constituição do Estado, que a mesma Junta, como se vê de vários decretos por ela expedidos, continuava a considerar em vigor e que, no art. 62, só permitia a destituição dos juízes por meio de sentença judicial, infringe a constituição da República; primeiro no art. 11, § 3º, que veda a prescrição de leis e, com maioria de razão, de decre-tos retroativos, e como tal é evidente que não pode deixar de ser considerado o ato que fere direitos legitimamente adquiridos à sombra de um ato anterior; segundo no art. 15, que consagra como princípio básico da organização consti-tucional a independência dos poderes políticos, princípio que os Estados devem respeitar, ex vi do art. 63; ora, a vitaliciedade dos magistrados é a primeira con-dição da independência do Poder Judiciário.

Os argumentos formulados pelo recorrido contra essas conclusões e es-posados pela sentença são de todo improcedentes.

O primeiro e o principal é que a organização judiciária decretada pelo primeiro Governador era radicalmente nula e, por conseguinte, não podia criar direito algum em favor dos recorrentes: nula porque o Governador havia sido irregularmente eleito e assim era autoridade incompetente para expedir o ato; nula, porque o Congresso do Estado não podia delegar ao Poder Executivo a atribuição, que pela Constituição era privativamente sua, de organizar o Poder Judiciário. É o argumento que o recorrido exprime nesta fórmula sintética: “Era um Governador inconstitucional decretando leis inconstitucionais.”

Examinemos os dois pontos separadamente.Pelo Decreto 802, de 4 de outubro de 1890, o Governo Provisório pro-

videnciou sobre a convocação das assembléias constituintes dos Estados, e no art. 2º assim dispôs: “Essas assembléias receberão dos eleitores poderes espe-ciais para aprovar as Constituições dos Estados, assim como para eleger os go-vernadores e vice-governadores que houverem de servir no primeiro período administrativo.” Ora, o Governador do Maranhão foi eleito pelo Congresso Constituinte do Estado, para isso autorizado pelos poderes especiais que lhe

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Memória Jurisprudencial

conferiram os eleitos nos termos do decreto citado. Onde está, pois, a irre-gularidade da eleição? Está, responde o recorrido, em que o Governador foi eleito antes de votada a Constituição. Mas isso não tem importância: eleito antes ou depois de aprovada a Constituição, o que é certo é que o Governador foi eleito pelo Congresso Constituinte e isso é que é essencial. Pouco importa que a Constituição do Estado, votada logo em seguida, consagrasse o princípio da eleição direta para o cargo de governador; não havia inconstitucionalidade em que a primeira eleição fosse feita pelo Congresso: 1º, porque a Constituição ainda não estava votada; 2º, porque era isso mesmo o que prescrevia o ato do Governo Provisório que regulava a convocação das assembléias constituintes dos Estados. Também a Constituinte Federal elegeu o primeiro Presidente da República, não obstante ter a Constituição Federal, que, aliás, já estava votada, adotado o sistema de eleição direta.

Pensar-se-á, porventura, que o Congresso do Maranhão elegeu alguém para um cargo que ainda não estava criado? Não, pois, o mesmo Congresso, logo que se reuniu, criou por um decreto constitucional os cargos de governador e vice-governadores, decreto que mais tarde foi incorporado à Constituição.

Mas concedamos que tivesse havido irregularidade em ser eleito o Go-vernador antes de aprovada a Constituição. Pois bem, essa irregularidade foi inteiramente sanada pelo Congresso, que, depois de votada a Constituição, incluiu entre as disposições transitórias desta uma em que aprovou a eleição anteriormente feita. Eis aí a eleição feita depois de votada a Constituição, como quer o recorrido.

Assim, o Governador era autoridade legitimamente constituída.Vejamos agora o outro ponto. O Congresso, diz o recorrido, não podia

delegar ao Governador a atribuição de organizar a magistratura do Estado.Há aqui evidentemente uma confusão. Quando se diz que o Poder Le-

gislativo não pode delegar atribuições suas ao Poder Executivo, é claro que se trata do Poder Legislativo ordinário, mas não duma assembléia constituinte que vai pela primeira vez fazer a constituição de um povo, que vai iniciar um regí-men substancialmente diverso daquele que até então vigorou. As faculdades da assembléia constituinte são ilimitadas e ninguém lhe recusará o poder de con-fiar a título transitório ao Poder Executivo o exercício duma atribuição que, no regímen normal e ordinário, deva caber ao Legislativo. Tratando-se de Estados federados, os únicos limites dessas faculdades são os criados pela Constituição da União. Ora, esta não vedava aos congressos estaduais a providência seguida pela do Maranhão, que, aliás, foi a mesma adotada por todos os Estados. Nem é razoável descobrir antinomia jurídica entre uma disposição permanente e uma disposição transitória da Constituição, isto é, entre a disposição ordinária que dá ao Legislativo o direito exclusivo de organizar a Justiça do Estado, e a dis-posição transitória que autoriza o Executivo a fazer a primeira organização; do mesmo modo que ninguém jamais se lembrou de descobrir essa antinomia entre, por exemplo, a disposição da Constituição Federal que manda eleger o Presi-dente da República por sufrágio direto e a disposição transitória que mandou eleger pelo Congresso o primeiro Presidente. As Assembléias ordinárias têm os seus poderes definidos na Constituição; elas não podem alienar de si esses po-deres sem violar a própria Constituição. As Assembléias constituintes, porém, não têm os seus poderes restringidos por nenhuma lei escrita; nada, portanto, impede que elas, por exceção, confiem ao Poder Executivo o que, no regímen permanente, irão atribuir ao Legislativo.

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Ministro Epitacio Pessôa

O ato do Congresso Constituinte do Maranhão, portanto, confiando ao Governador a atribuição de fazer a primeira organização da Justiça do Estado, foi perfeitamente regular, não pode ser taxado de inconstitucional. É até uma ex-travagância chamar de inconstitucional uma disposição transitória da Constitui-ção, por ser contrária à correspondente disposição ordinária; pois é da natureza mesma das disposições transitórias o serem exceções, derrogações passageiras dos princípios consagrados nas disposições permanentes.

Mas, se o Governador do Estado foi legitimamente eleito, se era, por-tanto, uma autoridade constitucional; se, por outro lado, o ato da organização judiciária por ele expedido foi, como acabamos de ver, também um ato cons-titucional, é óbvio que o primeiro e principal argumento do recorrido é im-procedente; é incontestável que esse ato, perfeitamente legítimo, era capaz de gerar direitos e efetivamente os criou; é claro que esses direitos, dada a posse e o exercício dos juízes nomeados, incorporaram-se ao seu patrimônio jurídico, tornaram-se direitos adquiridos e conseguintemente inatingíveis por qualquer ato posterior.

Diante do rigor lógico dessa conseqüência, eu me poderia dispensar de apreciar os outros argumentos do recorrido e da sentença do Superior Tribunal do Estado.

Em todo caso, mostrarei em poucas palavras a improcedência de cada um deles.

Alega o recorrido que o Estado não se achava definitivamente organi-zado. Mas que importa isso? Para que a organização judiciária fosse legítima e capaz de criar direitos, não era mister que o Estado estivesse definitiva e com-pletamente constituído: bastava que ela — organização — o estivesse.

A Constituição Federal não exigia que os Estados se organizassem de um só jato; pelo contrário, previa justamente que a organização dos diversos serviços fosse sendo feita paulatina e sucessivamente. À proporção que esses serviços fossem sendo constituídos, o Governo Federal os iria transferindo aos Estados e desde então eles iriam produzindo todos os seus efeitos lógicos, legais e jurídicos, embora continuassem a ser pagos pela União até que o Estado vo-tasse o seu primeiro orçamento. É o que se vê dos arts. 3º e 4º das Disposições Transitórias e do Decreto 438, de 11 de julho de 1891.

Não era, pois, indispensável que o Estado já estivesse definitiva e in-teiramente organizado (e, aliás, já estava): desde que o serviço da Justiça fora legalmente constituído, ele passava a produzir em favor dos juízes nomeados todos os seus efeitos jurídicos. Seria mesmo incompreensível que este, como os demais serviços, depois de organizados, ficassem suspensos até que se comple-tasse a organização definitiva do Estado.

Alega ainda o recorrido que a Junta Governativa surgiu de um movi-mento revolucionário que era a expressão da opinião popular, e com isso quer sem dúvida significar que não podia haver embaraços legais à sua ação. Ora, todos sabemos o que foram esses movimentos nos Estados: tragédia ou comé-dia, o que é certo é que neles nunca entrou o povo como comparsa. Mas, admi-tindo que o Estado do Maranhão tenha sido honrosa exceção à regra geral, o que é certo é que o tal movimento revolucionário teve caráter puramente local e, portanto, não podia desdenhar da Constituição Federal que continuava em vigor e, por conseguinte, continuava a assegurar aos juízes estaduais a garantia da vitaliciedade como um elemento essencial da sua independência, princípio constitucional da União que os Estados são obrigados a respeitar. Mas o curioso

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Memória Jurisprudencial

é que esse movimento revolucionário não se julgou de todo incompatível nem mesmo com a Constituição do Estado, pois constam dos autos vários decretos da Junta Governativa dos quais se depreende que ela reputava ainda em vigor a Constituição do Estado, sendo esta a razão pela qual convocava uma nova assembléia constituinte para apenas alterar a Constituição nos pontos que jul-gasse conveniente. Mas, se, feita a revolução no Maranhão, a Constituição do Estado continuou em vigor menos na parte referente ao Poder Executivo, e a Constituição Federal nunca deixou de vigorar em nenhum dos seus pontos, como pretender que a Junta Governativa pudesse ter a faculdade de anular a vi-taliciedade de juízes garantidos por ambas estas Constituições?

Alega em terceiro lugar o recorrido que a vitaliciedade dos recorrentes foi respeitada, pois que eles voltaram aos seus lugares do tempo da Monarquia. Este argumento não é sério. A vitaliciedade que aqui se discute não é a que tinham os recorrentes como juízes de direito do tempo do Império, mas a que adquiriram já na República, nos cargos de desembargadores e juiz da Capital.

Em quarto lugar alega o recorrido que nenhuma ação podem ter os re-correntes contra o Estado, porque este nunca lhes pagou vencimentos, e sim a União. É verdade, mas porque, nos termos do art. 2º do já citado Decreto 438, tal serviço devia ser custeado pela União até que o Estado votasse o seu orçamento, e o Maranhão ainda não o havia feito. Mas ia fazê-lo e não podia deixar de fazê-lo; votado o orçamento, os vencimentos passariam a ser pagos pelo Estado: era, pois, uma obrigação a termo.

Alega finalmente o recorrido que os recorrentes se conformaram com o ato da Junta Governativa, tanto que voltaram às suas antigas comarcas e mais tarde, não tendo sido aproveitados na nova organização judiciária, foram decla-rados em disponibilidade pelo Governo Federal. Mas, primeiramente, consta dos autos que, expedido o decreto da Junta, um dos recorrentes, que era presi-dente do Superior Tribunal, protestou contra ele em seu nome e no de todos os membros da magistratura. Depois, é princípio inconcusso que “o ato praticado contra declarações constitucionais é nenhum” e nunca mais poderá ser revali-dado, porque “se entende que nunca, desde o seu começo, lhe assistiu a mínima autoridade legal — it is as if it had never been, na frase de Colby. Actus ipso jure nullus, convalescere non potest (Rui Barbosa, Atos Inconstitucionais, p. 220 e 221).

Já o Alvará de 6 de maio de 1765 dispunha: “Atos nulos não podem pro-duzir qualquer efeito (...)”. Trata-se de uma violação constitucional, isto é, da transgressão de uma lei de ordem pública: trata-se, portanto, duma nulidade ab-soluta, isto é, duma nulidade da natureza daquelas em que, no sentir de todos os jurisconsultos, se pode contravir ao próprio fato. “Ubi lex seu estatutum aliquid prohibet, diz Altimari, actus contra prohibitionem factus non solum est nullus et inutilis, sed etian habetur pro non facto et sic ipso jure nullus. Nec sustinetur etiam volente eo in cujus favorem annullatur, quia tali nullitate renuntiare non potest.”

E o Supremo Tribunal assim tem entendido. Quando os juízes do tempo do Império foram violentamente aposentados pelo Decreto 2.056, de 25 de julho de 1895, todos eles se submeteram ao ato inconstitucional e passaram a receber os vencimentos da aposentadoria: não obstante, o Supremo Tribunal anulou esse decreto em favor de todos os juízes que recorreram ao Poder Judiciário, e uma só vez não invocou contra os reclamantes a circunstância de haverem eles se conformado com o ato da aposentadoria.

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Ministro Epitacio Pessôa

Em todo caso, como não é justo que os recorrentes recebam dois venci-mentos pela mesma função, eu ressalvo no meu voto o direito da União para ha-ver deles os vencimentos que lhes pagou como magistrados em disponibilidade.

Faz o recorrido grande cabedal de uma decisão do Tribunal que julgou improcedente a denúncia dada contra os membros do Governo revolucionário do Maranhão, e pretende talvez daí inferir que o Tribunal reconheceu a legiti-midade desse governo.

Mas, em primeiro lugar, o que o Tribunal fez então foi deixar de conhe-cer da denúncia por se tratar de matéria política ao passo que a questão que ora se debate nada tem de política. Em segundo lugar, ainda que o Tribunal houvesse reconhecido e proclamado a legitimidade daquele Governo, não im-portaria isso nem poderia importar o reconhecimento da legitimidade de todos os atos que ele houvesse praticado ou viesse a praticar em detrimento de di-reitos individuais assegurados pela carta constitucional da República. Podia o Governo do Maranhão ser um Governo perfeitamente legítimo; nem por isso estava no seu poder cassar a vitaliciedade de magistrados garantida pelo art. 15 da Constituição Federal, Constituição que não foi nem podia ter sido suspensa pela revolução local e, portanto, estava em seu inteiro vigor.

Não preciso encarecer aos olhos do Tribunal a importância deste pleito. O Tribunal tem sido, e deve continuar a sê-lo, a garantia suprema do prestígio e da independência dos magistrados locais. É ele mesmo que, consagrando uma liberal compreensão do regímen, tem assentado em numerosos acórdãos que tais juízes não podem ser aposentados senão no caso de invalidez; que não podem ser demitidos; que não podem ser removidos. Foi ele mesmo que, ainda há pouco tempo, pelo Acórdão 385, de 31 de dezembro de 1904, resolveu a mesmíssima questão que ora se oferece ao seu exame, decidindo que as Juntas Governativas de 1892 não podiam demitir os juízes nomeados pelos governa-dores depostos. É de esperar que o Tribunal mantenha aqui a sua decisão de há um ano, além do mais, para que, se amanhã, com a aquiescência ou mesmo a tolerância do Governo da União, surgir em qualquer dos Estados da República um governo de fato, oriundo de algum movimento local, não se julgue ele com o direito de cassar a seu talante as garantias que a Constituição Federal e as dos Estados asseguram aos membros do Poder Judiciário.

23 de janeiro de 1906.

4.2.2 Prequestionamento

RE 502/SP, Guimarães Natal, 1907. Recorrente — Companhia Viação Paulista v. Recorridos — a Câmara Municipal de S. Paulo e a Light and Power do mesmo Estado.

Neste recurso extraordinário, esteve em discussão a constitucionalidade da Lei municipal 304, da capital de São Paulo, de 15 de julho de 1897. A decisão da junta do Estado, em última instância, foi pela constitucionalidade dessa lei. Discutiam-se, mais uma vez, direitos adquiridos, no caso, contra a revogação de uma concessão pública (privilégios para a exploração de transporte). O des-taque, nesse caso, vai para a necessidade de discussão prévia da matéria dedu-zida no recurso extraordinário, o famoso requisito do prequestionamento. Vale

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Memória Jurisprudencial

ressaltar também o fato de que o privilégio cassado era de exploração do trans-porte sob trilhos movido à tração animal e a nova concessão, entregue à compa-nhia Light and Power, seria para execução de transporte movido à eletricidade.

Epitacio Pessôa chega a concordar em abrandar a condição, para que o recurso fosse conhecido pelo Tribunal, mas encaminha solução contrária às pre-tensões do recorrente. Aparentemente, porém, as circunstâncias da moderniza-ção da cidade de São Paulo parecem ter pesado mais do que a própria doutrina do direito adquirido ou do que o requisito do prequestionamento:

Ora, o que se observa neste feito é que a recorrente nunca levantou pro-priamente a questão da inconstitucionalidade da lei; discutia longa, ardorosa e exaustivamente todos os outros aspectos do assunto, e só ao fechar as suas últimas alegações, na primeira e na segunda instância, é que aludiu de passa-gem, frouxa e incidentemente, à incompatibilidade entre o ato municipal e a Constituição da República.

Mas, para fazer jus ao recurso extraordinário, é mister que a parte sus-cite aberta e claramente a questão constitucional, de modo tal que não possa passar despercebida ao juiz e este seja forçado a se manifestar sobre ela, ou a deixar patente, não o fazendo, que foi intencionalmente que o não fez, isto é, que foi propositadamente que deixou de dizer da validade da lei ou se recusou a aplicá-la.

Isso é que é o regular.Em todo caso, como a argüição da inconstitucionalidade não deixou de

ser feita e a sentença de última instância da Justiça do Estado parece tê-la con-siderado improcedente, amparando o direito fundado na lei impugnada, e como, por outro lado, na expressão constitucional leis dos Governos dos Estados se compreendem as leis municipais (acórdão 373, de 5 de outubro de 1905), não me oponho a que o Tribunal conheça preliminarmente do recurso.

Fazendo-o, porém, penso que lhe deve negar provimento.A lei em discussão não é retroativa, não feriu o direito de propriedade da

recorrente, outorgado pelo contrato de fl. 25. A concessão feita por este contrato é diversa e independente da que foi dada por aquela lei: tanto basta para excluir toda idéia de colisão entre uma e outra.

Com efeito, o que a cláusula 27ª do contrato de fl. 25 proíbe é a incorpo-ração de outras companhias “para o mesmo fim e nas mesmas direções”.

Ora, qual o fim do privilégio? Di-lo o contrato logo em princípio, em frase cuja intenção é a que resulta do sentido natural e comum das palavras e não há mister de perscrutar por meio de hipóteses mais ou menos artificiosas: “(...) Compareceu o engenheiro F. a fim de contratar a construção de uma linha de diligências por trilhos de ferro, tirada por animais.”

Di-lo ainda a cláusula 1ª:O Governo concede ao engenheiro F. privilégio exclusivo (...)

Para que fim?(...) para estabelecer uma ou mais linhas de diligências por trilhos

de ferro, tiradas por animais.Essa condição — tirada por animais — é evidentemente de natureza res-

trita; do contrário, o Governo se teria limitado a dizer: (...) concede privilégio

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Ministro Epitacio Pessôa

para estabelecer linha de diligências por trilhos de ferro em tais e tais direções, deixando ao concessionário a escolha do sistema de tração.

E quais as direções? “As estações dos caminhos de ferro e dos subúr-bios” (cláusula 1ª) indicadas na cláusula 7ª, e mais na cláusula 5ª do contrato de fl. 32 e na cláusula 1ª do de fl. 30. E somente essas, desde que os antecessores da recorrente deixaram expirar sem aproveitá-lo o prazo para a instalação de outras linhas (cláusulas 3ª, 9ª e 10ª do contrato de fl. 25).

Ora, a lei da Câmara Municipal de São Paulo concedeu a Gualco e Sousa, de quem é concessionária a companhia recorrida, privilégio para a construção de linhas de bondes por tração elétrica e para outros pontos que não aqueles.

Logo, não violou o direito adquirido com o contrato de fl. 25, trans-ferido, aliás, sem autorização do Governo, à recorrente; não transgrediu a cláusula 27ª desse contrato, uma vez que o fim da nova concessão não é a cons-trução de linhas de tração animal nas mesmas direções; em uma palavra, não infringiu o art. 11, 3, da Constituição Federal.

Diz-se, porém, que a cláusula 8ª, § 1º, previu, em benefício do conces-sionário, a introdução de quaisquer aperfeiçoamentos na tração dos carros.

Não é exato. O que a citada cláusula diz é o seguinte:No estabelecimento das linhas, serão observadas as seguintes

condições técnicas:§ 1º O sistema de carris de ferro será adequado a esse gênero de

vias de transporte, com os melhoramentos mais recentes que se houve-rem feito.Eis aí, trata-se apenas de melhoramentos do sistema de trilhos e, o que é

mais, de melhoramentos já conhecidos ou que se descobrissem até a instalação do serviço, e não dos que se viessem a inventar posteriormente a essa época, momento este em que ou as linhas já estariam estabelecidas ou a concessão já teria caducado.

A própria recorrente, aliás, já reconheceu mais de uma vez que o seu pri-vilégio (ou mesmo o seu direito de preferência, com o qual já parece contentar-se) não é tão amplo como apregoa, tanto que, por ter direito às linhas de bondes concedidas depois das suas, se julgou no dever de comprá-las.

Mais do que isso. A 13 de setembro de 1898, isto é, mais de um ano de-pois da lei impugnada, a recorrente assinou o documento de fl. 153, unificando todos os seus contratos, e nele figura a seguinte cláusula:

35ª Ficam salvos os direitos adquiridos por terceiros, até a data deste contrato, para a construção de linhas de carris de ferro neste município.Ora, esses terceiros eram justamente os antecessores da companhia

recorrida, Gualco e Sousa, pois as outras concessões haviam sido compradas pela recorrente.

Assim que é essa mesma quem se incumbe de mostrar que a lei cuja constitucionalidade contesta não lhe feriu realmente nenhum direito adquirido, ou, o que vale o mesmo, não infringiu o art. 11, 3, combinado com o art. 72, § 17, da Constituição da República.

31 de agosto de 1907.

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Memória Jurisprudencial

4.2.3 Irredutibilidade de vencimentos

RE 431/PE, Pessôa, 1908. Recorrentes — Drs. Luis da Silva Gusmão e José Mariano Carneiro Bezerra Cavalcânti v. Recorrida — a Fazenda do Estado de Pernambuco.

Neste acórdão, de que foi Relator o Ministro Epitacio Pessôa, o STF con-sagrou a tese de que os vencimentos dos magistrados dos Estados, assim como os dos juízes da União, não podem ser direta ou indiretamente reduzidos. Mais uma vez o fundamento invocado foi o princípio da independência do Poder Judiciário. No caso, os juízes do Estado de Pernambuco se insurgiram contra o recolhimento para o Fisco estadual do percentual de 15% sobre seus vencimen-tos. Esse imposto fora criado por lei estadual apontada pelos recorrentes como inconstitucional.

Com o voto de Pessôa, o Tribunal reformou a decisão recorrida e conde-nou o Estado a devolver aos magistrados o imposto cobrado. Na falta de efeitos erga omnes desse controle difuso de constitucionalidade, a lei estadual prova-velmente continuou em vigor, uma vez que o imposto era cobrado de todos os funcionários públicos que recebessem vencimentos acima de determinado valor.

Assim, embora tenha firmado um princípio, em decorrência da interpre-tação da Constituição, o efeito da decisão foi o de gerar apenas um privilégio funcional.

Havendo as leis orçamentárias de Pernambuco, votadas para os exercí-cios de 1902 a 1903 e 1903 a 1904, criado o imposto de quinze por cento sobre todos os vencimentos maiores de 4:200$000 por ano, os recorrentes, juízes de direito do Estado, com vencimentos superiores àquela quantia, ex vi da Lei 329, de 8 de julho de 1898, reclamaram perante a Justiça local a restituição das somas que lhes foram descontadas, fundando o seu pedido em que as leis que reduzem, ainda que por meio de imposto, os vencimentos dos magistrados, devem ser ti-das como contrárias à Constituição da República.

O Superior Tribunal de Pernambuco, confirmando a sentença do Juiz da primeira instância, considerou válidas as leis impugnadas e, por conseqüência, improcedente a ação.

Foi dessa decisão que se interpôs o presente recurso extraordinário.Isso posto, e,Considerando, preliminarmente, que das sentenças das Justiças dos Esta-

dos em última instância há recurso para o Superior Tribunal quando se contesta a validade de leis locais em face da Constituição Federal, e a decisão do Tribunal do Estado considera válidas essas leis (Constituição art. 59, § 1º, letra b) e estas condições se verificam na espécie vertente;

E, de meritis:Considerando que a independência dos poderes políticos é um princípio

constitucional da União, que os Estados não podem violar (Constituição, art. 63);Considerando que a Constituição da República, procurando assegurar

a independência do Poder Judiciário da União, por ela proclamada no art. 15,

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Ministro Epitacio Pessôa

declarou, entre outras garantias, que os vencimentos dos juízes não podem ser diminuídos (art. 57, § 1º);

Considerando que os Estados deixariam de respeitar fielmente o princí-pio constitucional da independência do Poder Judiciário, se, na organização de sua Justiça, não a rodeassem das mesmas garantias que a Constituição Federal julgou essenciais a essa independência, e, portanto, da que consiste na irreduti-bilidade dos vencimentos;

Considerando que, no regímen consagrado pela Constituição brasileira, o Poder Judiciário dos Estados tem, como o da União, a suprema atribuição de julgar da constitucionalidade dos atos do Poder Legislativo (art. 59, § 1º, letra b) e, em tais condições, dar a este último poder a faculdade de diminuir os venci-mentos daquele, seria colocar os juízes à mercê da legislatura e tirar-lhes assim a independência de que precisam para dizer, com verdade e justiça, da validade das leis, independência que, como já ficou dito, deve ser garantida nas organiza-ções locais, em respeito ao art. 63 da Constituição da República;

Considerando que improcedente é a objeção de que o Poder Judiciário local não julga soberanamente da validade das leis, pois das suas decisões há recurso para o Supremo Tribunal Federal, porquanto: a) este recurso só existe quando a Justiça do Estado considera válida a lei local argüida de contrária à Constituição ou às leis da República, isto é, quando homologa o ato da assem-bléia estadual, mas não quando invalida, isto é, justamente quando fulmina esse ato; b) também das sentenças dos juízes federais de primeira instância, quando julgam da validade dos atos do Congresso Nacional, há recurso para o Supremo Tribunal, e nem por isso a Constituição permite que os vencimentos desses juí-zes possam ser diminuídos;

Considerando que não destrói a procedência da doutrina exposta qual-quer divergência que se note entre ela e o que porventura se pratique nos Estados Unidos, desarrazoada é a pretensão de estabelecer perfeita identidade entre a organização americana e a brasileira. Ali a União foi uma criação ar-tificial, posterior aos Estados. Foi vencendo as maiores dificuldades, oriundas do exagerado amor de independência dos Estados, do seu excessivo zelo pelas prerrogativas de que se achavam investidos, que os promotores da Convenção de Filadélfia conseguiram obter deles a renúncia de alguns desses direitos e re-galias para a formação de uma só e grande Nação. Em tais condições, não era prudente levar muito longe as pretensões da União; tudo aconselhava, pelo con-trário, a deixar aos Estados uma larga esfera de ação, bastante para contentar o seu amor-próprio local, as suas ambições e necessidades, e respeitar os seus hábitos e tradições. Não seria, pois, de admirar que nos Estados da União norte-americana, promulgada a Constituição federal, se entendesse que a garantia da irredutibilidade dos vencimentos não abrangia os juízes locais, tanto mais quanto continuaram a subsistir nos Estados os mesmos variados tipos de organi-zação judiciária então existentes — juízes de investidura temporária, juízes ele-tivos etc. — divergentes da organização federal e aos quais inaplicável poderia parecer aquela garantia. Apesar disso, o Supremo Tribunal da Pensilvânia não hesitou em declarar inconstitucional a lei que em 1841 lançou o imposto de dois por cento sobre os vencimentos dos juízes (Kent, Commentary on international law, vol. I, p. 308). Entre nós, porém, a União não foi uma criação artificial: ela existia já, fortalecida por setenta anos de independência e soberania, quando se instituiu o regímen dos Estados autônomos; nenhuma resistência houve a de-belar da parte das províncias a quem o novo regímen não impunha a perda de

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nenhum privilégio e, o ao revés, cumulava de vantagens e regalias. Nós éramos uma monarquia unitária, vivíamos sob um regímen de centralização, tínhamos a unidade da legislação e da justiça, e esta situação, proclamada a República, não podia deixar de influir na organização da nova ordem de coisas; o passado e a tradição tinham por força de colaborar nessa obra. Eis por que tantas vezes tem reconhecido este Tribunal que o espírito da nossa Constituição, implícito no art. 63, foi que a magistratura nacional servisse de molde às magistraturas dos Estados, desde então com direito às mesmas garantias outorgadas àquela;

Considerando que os vencimentos dos magistrados não podem ser diminuí-dos, nem diretamente por meio de uma lei especial visando a esse objeto, nem indi-retamente por meio de um imposto, que, aumentado ou repetido à vontade, conduz ao mesmo resultado, conforme tem sido uniformemente decidido pelo Tribunal:

Acordam tomar conhecimento do recurso e dar-lhe provimento para de-clarar inconstitucionais, na parte impugnada, as leis orçamentárias votadas em Pernambuco para os exercícios de 1902-1903 e 1903-1904, devendo, em conse-qüência, ser restituída aos recorrentes a importância que, a título de imposto e por força dessas leis, houver sido descontada dos seus vencimentos.

Pague as custas o Estado recorrido.Supremo Tribunal Federal, 4 de abril de 1908.

4.2.4 Inamovibilidade de funcionários estaduais

RE 592/SP, Pessôa, 1910. Recorrente — Dr. Virgílio de Resende v. Recorrida — a Fazenda de São Paulo.

Neste julgamento, outro direito adquirido, o da inamovibilidade dos fun-cionários vitalícios estaduais, foi discutido pelo Supremo Tribunal, a partir do voto de Epitacio Pessôa como Relator.

A decisão foi favorável ao recorrente, um professor de alemão que se re-cusara a aceitar sua remoção da Escola Normal de São Paulo, onde a disciplina havia sido extinta, para o Ginásio da cidade de Campinas, onde poderia conti-nuar a lecioná-la.

Vistos e relatados estes autos de recurso extraordinário em que o Dr. Virgílio de Resende, fundado no art. 59, § 1º, b, da Constituição Federal, re-corre da sentença do Superior Tribunal do Estado de São Paulo que reconheceu como válido o ato do Governo do Estado privando o recorrente das vantagens de professor de alemão na Escola Normal da capital, emprego suprimido pela Lei 295, de 19 de julho de 1894, por não ter aceitado o de professor da mesma disciplina no Ginásio de Campinas, ato impugnado em face dos arts. 11, 3, e 74 da Constituição Federal:

Considerando que na causa se impugnou a constitucionalidade do citado ato do Governo e da lei em que ele se baseou, como se vê a fls. 118v., 119, 180, 186 e 186v., e a sentença recorrida, de última instância, confirmatória da de fl. 80, admitiu como válidos esses atos, verificando-se assim o caso de recurso extraordinário previsto no art. 59, § 1º, b, da Constituição Federal;

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que a Lei paulista 88, de 8 de setembro de 1892, e o Decreto 114 B, de 30 de dezembro do mesmo ano, declaram ser inamovíveis os professores catedráticos das Escolas Normais do Estado;

Considerando que a Constituição da República, art. 74, garante em toda a sua plenitude os cargos inamovíveis, e esse preceito se aplica assim aos cargos federais como aos estaduais (Acórdãos 177, de 4 de dezembro de 1899, J. 165; 671, de 7 de junho de 1902, O Direito 89, p. 393; 1.197, de 10 de novembro de 1906 e 13 de abril de 1907, O Direito 2, vols. 102 e 103, p. 38 e 180);

Considerando que, em tais condições, não podia o Governo do Estado, sem ofensa da Constituição da República, remover o recorrente da Capital para a cidade de Campinas, embora para um emprego idêntico, pouco importando que o tenha feito em virtude da Lei 295, de 1894, que suprimira a cadeira de ale-mão da Escola Normal da Capital e autorizara o aproveitamento do recorrente em outro instituto de ensino; porquanto essa lei, entendida como a entendeu o Governo, isto é, como autorizando a nomeação do recorrente para outro esta-belecimento ainda que fora da Capital, ofende o direito de inamovibilidade do mesmo recorrente, adquirido por força de leis anteriores, e, portanto, é contrária ao art. 11, 3 da Constituição Federal, como tudo foi decidido na causa principal pela sentença de fl. 31 e acórdão de fl. 51:

Acordam, por esses fundamentos e o mais dos autos, tomar conheci-mento do recurso e dar-lhe provimento para declarar, como declaram, inconsti-tucional e, portanto, sem validade o ato do Governo do Estado de São Paulo que privou o recorrente dos vencimentos de professor da cadeira extinta de alemão da Escola Normal da Capital, por não ter aceitado a regência de idêntica cadeira no Ginásio de Campinas.

Pague as custas o Estado recorrido.Supremo Tribunal Federal, 10 de agosto de 1910.

4.3 Jurisdição das liberdades

4.3.1 Elegibilidade de militar e direito à disponibilidade

HC 2.654/Capital, 1909. Paciente: Dr. João Francisco Lopes Rodrigues (capitão de fragata, eleito para o cargo de Vereador).

O paciente alegava estar ameaçado de constrangimento ilegal, porque, tendo sido eleito para o cargo de “membro do conselho municipal da cidade do Rio Grande do Sul [Vereador], do Estado de igual nome”, e tendo solicitado li-cença ao Ministro da Marinha, para exercer o respectivo cargo eletivo, este lha recusara. Com isso, o impetrante ficou sujeito à prisão por deserção, o que repu-tava ilegal desde que ao Governo não era lícito embaraçar o exercício do man-dato popular de que se ache investido um militar, quando este, pela Constituição e leis do país, gozava então de plena capacidade eleitoral.

O detalhe, realçado por Epitacio Pessôa nesse raro voto vencido, é que, pelo Ministério da Guerra, era abertamente permitido a oficiais do Exército to-mar assento em câmaras municipais, e dava o exemplo de um oficial do corpo

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de engenheiros, capitão Juvenal Miller, que fazia parte do mesmo conselho mu-nicipal, do qual se pretendia afastar o paciente. Para Epitacio, estava era ocor-rendo “no seio do próprio Governo dois procedimentos divergentes em relação ao mesmo assunto”, ou seja, dois pesos e duas medidas, uma para o Exército, outra para a Marinha. Tratava-se uma questão de isonomia de tratamento em relação aos direitos políticos dos militares.

Não obstante, o esforço retórico de Epitacio, nesse caso, não foi sufi-ciente, e o Tribunal negou o pedido de habeas corpus, mas não sem antes ouvir a veemente manifestação de Pessôa:

Que o militar pode ser eleito vereador é incontestável. O próprio acórdão em que o Tribunal ora firma a sua decisão reconhece-o em termos explícitos, ci-tando “a Constituição e mais leis em vigor”. Essa capacidade resulta, com efeito, da Carta constitucional, que só a recusa aos não alistáveis, e das leis de eleição municipal, que não incluem entre as incompatibilidades a de ser militar.

Mas, se o militar “tem capacidade para ser eleito conselheiro municipal em vista da Constituição e das leis em vigor” como se exprime o acórdão, não se pode admitir sem flagrante contradição que ao ministro seja lícito burlar essa capacidade, sobrepor-se à Constituição e às leis e impedir que o militar exerça as funções para que foi escolhido. Não seria cousa séria a legislação que dissesse ao oficial “podeis ser eleito” e logo ao ministro “podeis proibir que ele tome posse do cargo”. Do mesmo modo, seria um escárnio o sistema representativo em que o exercício de um mandato político dependesse do “favor, condescen-dência ou simples arbítrio” (o conceito é do acórdão) de um secretário do presi-dente da República!

Perdoe-me a maioria do Tribunal, se não posso dominar o meu assombro diante de uma tal doutrina.

Pela Constituição e leis em vigor, o militar pode ser eleito vereador; a Cons-tituição adota, como base do regímen, o sistema representativo; a mesma Constituição consagra em termos insofismáveis o princípio da autonomia mu-nicipal; ainda a Constituição estatui que ninguém pode ser obrigado a deixar de fazer alguma cousa senão em virtude de lei. Em tais condições, como declarar perfeitamente correto e legal o procedimento de um ministro de Estado que, sem apoio em lei alguma, por “simples arbítrio”, cassa a elegibilidade de um oficial, mistifica o voto popular, priva os eleitores do seu legítimo representante, anula a autonomia municipal, desrespeitando-lhe as leis, em virtude das quais o oficial foi eleito e tinha de exercer as funções, em suma, viola uma, duas, três vêzes a Constituição?!

Não, semelhante decisão não pode, não deve figurar nos volumes da ju-risprudência do Tribunal, como sua opinião definitiva.

Uma vez eleito, seja para que cargo for, vereador ou presidente da República, uma vez reconhecido e proclamado tal pelo poder competente, o ofi-cial está ipso facto desligado dos seus deveres militares. É um representante do povo, e tanto basta para não poder continuar às ordens da administração. Não tem que pedir licença ao ministro; comunica-lhe apenas que vai ocupar o posto que lhe designou a vontade popular.

Se o oficial eleito vereador “não tem direito à disponibilidade”, porque “não há lei expressa em que se funde essa pretensão”; se a licença do ministro é

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Ministro Epitacio Pessôa

indispensável e constitui ato de mero “favor, condescendência ou simples arbí-trio”, de sorte que o ministro pode recusá-la sem violar “nenhuma disposição de lei” nem cometer nenhuma “exorbitância de atribuição” então sejamos lógicos e, como por igual nenhuma lei “concede” expressamente a disponibilidade ao ofi-cial eleito governador do Estado ou presidente da República, reconheçamos que tal oficial está também obrigado ao pedido de licença! E, como o deferimento deste é ato de “simples arbítrio” do ministro, proclamemos ainda que o ministro pode negá-la e impedir assim que assuma as funções de governador do Estado ou de presidente da República o oficial que o Estado ou a Nação haja escolhido para esse cargo!

Eis a que maravilhas conduz a doutrina do acórdão.Quanto ao mal que resultaria do afastamento simultâneo de muitos ofi-

ciais para os conselhos de Município, consideração é esta que estaria bem em uma assembléia legislativa, jamais em um tribunal judiciário. Se esse fato pre-judica ao serviço federal e coarcta a ação do Governo, é ao Congresso Nacional que cumpre dar-lhe remédio, não ao Supremo Tribunal que não tem entre as funções constitucionais a de procurador dos interesses da administração.

(...)O que fica dito é bastante para mostrar que o ato contra o qual reclama

o impetrante do habeas corpus é ilegal e, conseguintemente, ilegal o constran-gimento em que se acha o paciente, ameaçado de ser preso como desertor se se empossar das funções para que foi eleito em um conselho onde — significativo constraste! — as está exercendo tranqüilamente um outro militar, oficial do Exército, eleito ao mesmo tempo que ele!

O ministro da Marinha não pode opor-se a que um seu subordinado exerça a vereança. A única restrição a esse direito, no estado atual da nossa legislação, é que o oficial vereador perde parte dos seus vencimentos militares. Se esta restrição não basta, o Poder Legislativo que crie outras. O ministro é que não pode criá-las a seu talante e menos ainda obstar de todo o desempenho do cargo, sem cometer uma ilegalidade, e ao Supremo Tribunal falece autoridade para homologar os atos ilegais do ministro, ofensivos da liberdade individual e de direitos políticos assegurados na Constituição.

4.3.2 Direito da testemunha de ser ouvida no lugar de seu domicílio

HC 3.004/RS, Pessôa, Relator para o acórdão, 1911.Em face do art. 166 do Código do Processo Penal do Rio Grande do

Sul, a testemunha tem o direito de ser inquirida no lugar do seu domicílio, ainda que resida fora da jurisdição do juiz.

A exceção contida no final deste dispositivo não é uma limitação a um direito, mas a exigência da citação das partes para o processo.

Nos termos dos arts. 78 e 79 do citado código, só na fase do julga-mento e não na da formação da culpa, pode o processo ser desaforado.

Uma decisão do Supremo Tribunal do Estado desaforando ab initio o processo não constitui embaraço legítimo à ação do Supremo Tribunal Federal para amparar por meio de habeas corpus a liberdade das testemu-nhas ameaçadas, por força daquela decisão, de serem conduzidas debaixo de vara para deporem em comarca estranha à do seu domicílio.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que o Dr. Plínio de Castro Casado recorre do acórdão do Superior Tribunal do Rio Grande do Sul, que lhe negou a ordem de habeas corpus por ele impetrada para que os Drs. Pedro Simões Pires, Serafim Prates Garcia e outros, arrolados como testemunhas em denúncia oferecida por crimes cometidos em Santana do Livramento, não sejam obrigados a ir depor em Porto Alegre, para o que foram agora intimados, sob as cominações legais:

Considerando que é direito da testemunha ser inquirida no lugar do seu domicílio, ainda quando resida fora da jurisdição do juiz. O Código do Processo Penal do Estado (art. 166) dispõe, com efeito, que “as testemunhas residentes fora do lugar da jurisdição do juiz são inquiridas no lugar do seu domicílio, com citação das partes, menos no período da instrução secreta”;

Considerando que esta última frase — menos no período da instrução secreta — não é uma limitação daquele direito, mas gramaticalmente e logica-mente, uma exceção à exigência da citação das partes para o processo, citação, de fato, dispensável na instrução secreta, porque a esta não podem as partes as-sistir, como é expresso no art. 344 do mesmo código;

Considerando, porém, que dos termos expressos e positivos dos arts. 78 e 79 do citado código, o processo só pode ser desaforado na fase do julgamento, não sendo curial, em matéria da restrição de direitos, como esta, estender tais disposições a outras fases do processo, qual a da instrução, de que elas não cogitam;

Considerando que a esta interpretação, única que comportam os termos da lei, não se opõem nem a emenda nem o trecho da exposição de motivos a que se refere o acórdão de fl. 8; porquanto, nem uma nem outra se ocupam precisa-mente do ponto em debate, a saber, se os artigos 78 e 79 compreendem também os processos no período da formação da culpa, mas cogitam de assuntos outros, qual a inclusão dos crimes políticos a significação das palavras legítima suspei-ção etc;

Considerando que o acórdão do Tribunal recorrido, desaforando ab initio o processo, não constitui embaraço legítimo à ação do Supremo Tribunal, au-torizada na espécie sem limitação alguma, como não podia deixar de ser, pelo art. 61 da Constituição e, assim, contida nas exceções da última parte do art. 2:

Acordam dar provimento ao recurso para conceder, como concedem, a ordem impetrada.

Custas ex causa.Supremo Tribunal Federal, 5 de abril de 1911 — Herminio do Espirito

Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão — Leoni Ramos. Vencido. — Canuto Saraiva — Oliveira Ribeiro — André Cavalcanti — Manoel Espinola. — Manuel Murtinho — Amaro Cavalcanti — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal — Godofredo Cunha — Pedro Lessa.

Contra Leoni.

4.3.3 Bombardeio federal ao Palácio do Governo da Bahia: as negativas do STF a impetrações de Rui Barbosa em defesa de direitos políticos

HC 3.137 e HC 3.148/BA, 1912.Finalmente, o “caso da Bahia”. Esse foi praticamente o último caso

julgado por Epitacio Pessôa, pouco tempo antes de aposentar-se do cargo de

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Ministro Epitacio Pessôa

Ministro do STF. Teria sido também o caso que mais despertou polêmica e ren-deu a Epitacio as críticas mais severas ao seu comportamento como magistrado do Supremo Tribunal.

Sobral Pinto procurou, no citado prefácio das Obras Completas de Epitacio Pessôa, “fazer justiça às duas maiores personalidades da vida política da Velha República”, Epitacio Pessôa e Rui Barbosa. Ambos se encontraram em lados opostos da disputa política por mais de uma vez e, novamente, nesse caso de 1912, foram antagonistas. De um lado, Rui Barbosa, como patrono dos políticos baianos de seu grupo, Leôncio Galrão e Aurélio Viana, Governador e Vice. Os dois, acuados pela ação violenta das forças da União que bombardea-ram o Palácio e os impediram de continuar a exercer seus mandatos, foram obri-gados a buscar refúgio no consulado francês para não serem mortos. De outro, Epitacio Pessôa, Ministro do Supremo, que persuadiu o Tribunal a rejeitar os pedidos de Rui, convencido de que o Presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, falava a verdade quando, em resposta ao pedido de informações, declarou nos autos que havia tomado todas as providências para assegurar aos pacientes o desembaraçado exercício de seus mandatos.

Como se sabe, o Supremo, em todos os sucessivos pedidos de Rui Barbosa, acolheu as ponderações de Epitacio Pessôa e julgou prejudicados os habeas corpus, ao considerar que os pacientes fizeram prova de que haviam aberto mão das garantias oferecidas pelo Presidente da República para retorna-rem ao exercício de seus cargos.

O fato — lembra Sobral Pinto — é que a luta armada que se travou em Salvador de janeiro a fevereiro de 1912 “foi o desfecho brutal e dramático de um longo choque de partidos, facções e grupos, que durava, em clima de intensa exaltação, desde 1909.” E esse acirramento político do conflito dificultava, se-gundo ele, o conhecimento exato da verdade.

Para Sobral Pinto, o erro do Ministro Epitacio Pessôa foi não entender a excepcionalidade daquele caso, que, na sua visão, reclamava a concessão da ordem de habeas corpus até para a própria manutenção do sistema federativo, ameaçado pela campanha intervencionista do marechal Hermes, decidido a acabar com o pacto oligárquico firmado por Campos Sales, na década ante-rior. O habeas corpus era então o único remédio para a proteção dos direitos políticos violados pela ação violenta da intervenção branca do poder central no Estado da Bahia.

Sua conclusão, por não ser passível de qualquer crítica, foi a de que:A história que vier a ser feita tão só à luz dos documentos frios e serenos,

utilizados não pelos contemporâneos desses acontecimentos, mas pelos que não padeceram as angústias e revoltas que provocaram no momento em que surgi-ram, dirá, por certo, como estou a dizer agora, que Epitacio Pessôa não praticou,

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Memória Jurisprudencial

ao denegar os habeas corpus pedidos por Rui Barbosa, um erro de vontade, mas sim um erro de psicologia. Ele apreciou mal os fatos e os personagens que neles se movimentaram, supondo que estava, com o seu procedimento, a manter o Supremo Tribunal Federal dentro de suas atribuições constitucionais, e obs-tando que ele invadisse as do Presidente da República.87

A documentação dos votos proferidos nos diversos casos em que Epitacio Pessôa atuou na condição de Ministro do STF, como neste polêmico caso de habeas corpus, certamente contribuirá para a correta interpretação histórica de sua trajetória na Corte.

De qualquer modo, qualquer que seja o enfoque que se queira dar para realçar ou criticar essa trajetória, é preciso fazer justiça — como o fez Sobral Pinto — à grandeza de sua enorme competência técnica como jurista, mas tam-bém de seu inegável talento e vocação para a política.

(...)Duvido que haja um espírito de jurista que, conhecendo os fatos como

acabo de extraí-los fielmente dos autos, e não como os tem ajeitado a manha das conveniências políticas, seja capaz de encontrar aí as condições preestabeleci-das na lei para a concessão de uma ordem de habeas corpus.

Pode parecer o contrário à paixão partidária, sob cujo pernicioso influxo as mais elementares noções se transformam ou se obliteram; para quem os cri-minosos se transmudam em heróis e os feitos judiciais se devem julgar ao sabor das desconfianças, dos ódios ou dos apetites de partido, e cuja intervenção, sempre indelicada e irritante nas causas sub judice, nesta chegou ao desvario de pretender forçar a consciência jurídica do Tribunal com as mais pungentes cominações na imprensa e tumultos e assuadas no próprio recinto das sessões.

Pode ainda, digo-o com todo o respeito, uma coerência mal-entendida ou uma compreensão, sincera embora, da espécie jurídica, mas defeituosa, por incompleto conhecimento dos autos, pensar que o Supremo Tribunal devia con-ceder a ordem impetrada.

Mas tenho para mim que, esclarecidos devidamente os fatos, como eles constam do processo e acabo de fazê-lo, uma tal decisão não justificaria jamais a interpretação desapaixonada da lei nem a serena consciência do juiz.

87 PINTO, Sobral. Prefácio. In: BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional do Livro. Obras Completas de Epitacio Pessôa. Rio de Janeiro, 1965. p. XLV (Acórdãos e votos no Supremo Tribunal Federal, III).

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Ministro Epitacio Pessôa

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APÊNDICE

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Ministro Epitacio Pessôa

RECURSO ELEITORAL 124

Vistos e relatados os embargos opostos pelo recorrente, Dr. Cândido Mendes de Almeida, ao acórdão de fl. 279, que deixou de tomar conhecimento do seu recurso por apresentado fora do prazo legal:

Vencida a preliminar de se conhecer dos embargos, porque, se é certo que os recursos eleitorais se processam como os recursos criminais, onde não se admitem embargos, é verdade também que as sentenças proferidas sobre estes não são finais, podem ser modificadas no plenário ou pelo Supremo Tribunal em grau de apelação, enquanto as decisões proferidas sobre aqueles revestem o caráter de definitivas, pois não podem mais ser alteradas, e, assim, se compreen-dem no dispositivo do art. 3º da Lei 938, de 29 de dezembro de 1902:

Acordam rejeitar os embargos de fl. 290, cujos fundamentos já foram de-vidamente apreciados, refutados e desprezados no acórdão embargado.

Sem custas, pela natureza da causa.Supremo Tribunal Federal, 29 de dezembro de 1906.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO 186

Vistos e relatados estes autos de conflito negativo de jurisdição, suscitado pela firma Rodrigues & Martins entre o Juiz Federal da 2ª Vara e o Juiz dos Feitos da Fazenda Municipal deste Distrito:

O Supremo Tribunal, tendo em vista as informações dos ditos Juízes, requisitadas pelo acórdão de fl. 11, e as leis que regem a matéria, declara com-petente para a causa o Juiz Federal da 2ª Vara.

No nosso regímen constitucional, os serviços, bem como os cargos que lhes correspondem, ou são federais, ou estaduais, ou municipais. Como ser-viço de natureza estadual se tem sempre considerado entre nós a Polícia, que é organizada, dirigida e mantida em todos os Estados pelos poderes estaduais, e cujo chefe é sempre nomeado pelo Presidente do Estado. No Distrito Federal, onde existia e continuaria a existir esse serviço, mas onde a Constituição não criava uma assembléia legislativa nem um Poder Executivo nos moldes dos poderes correspondentes dos Estados, o Congresso Constituinte só tinha dois caminhos a seguir: ou entregar a polícia às autoridades municipais, ou confiá-la ao Governo da União, o que era mais natural, visto que aqui continuaria a ter este Governo a sua sede. Optou por este último alvitre, e no art. 34, 30, da Constituição conferia ao Congresso Nacional a atribuição de legislar sobre a Polícia do Distrito Federal.

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Memória Jurisprudencial

De acordo com esse dispositivo, a Lei 23, de 30 de outubro de 1891, incluiu a Polícia do Distrito entre os serviços do Ministério da Justiça (art. 4º, letra b); a de número 1.631, de 3 de janeiro de 1907, repetindo leis anterio-res, colocou-a “sob a inspeção suprema do Presidente da República e a su-perintendência geral do Ministro da Justiça” (art. 1º) e declarou que o seu chefe, “obrigado a cumprir as ordens e instruções do Ministro da Justiça” (Decreto 6.440, de 30 de março de 1907, art. 32), seria “livremente nomea do e demitido pelo Presidente da República” (art. 2º, I); finalmente, as leis orça-mentárias posteriores à Constituição destinaram da receita nacional o bas-tante para ocorrer à metade do seu custeio, incumbindo a outra metade aos cofres municipais em retribuição sem dúvida dos benefícios auferidos pelo Município.

Vê-se do exposto que o Chefe de Polícia deste Distrito, se bem que não seja uma autoridade municipal (classificação que a Constituição lhe recusa, como se deduz da comparação entre o art. 67, parágrafo único, e o art. 34, 30), é, todavia, uma autoridade local, não só pela natureza de suas funções, mas até mesmo pela origem da sua investidura, porque, quando o Presidente o nomeia, não exercita uma atribuição de Chefe do Governo da União propriamente dita, mas de Chefe do Governo da União no caráter especial de Chefe do Governo do Distrito, caráter de que cumulativamente o investiram disposições também especiais da Constituição, o Presidente pratica no Distrito Federal o mesmo ato que nos Estados compete aos respectivos Governadores, do mesmo modo que o Congresso Nacional, quando legisla para este Distrito, desempenha funções idênticas às das assembléias dos Estados (Acórdão 502, de 5 de agosto de 1903, O Direito, vol. 92, p. 585).

Como autoridade local que é, o Chefe de Polícia devia estar sempre su-jeito à Justiça local.

Assim é no crime (Lei 1.338, de 9 de janeiro de 1905, art. 24, X), salvo a hipótese em que ele proceda em nome do Governo da União na sua qualidade de Governo Geral da República, o que às vezes acontece, como no caso de ex-pulsão de estrangeiros, porque então o negócio interessa a toda a União ou à Fazenda Nacional, e isso determina a competência privativa da Justiça Federal (Acórdãos 1.850, de 13 de setembro de 1902, O Direito, vol. 89, p. 451; e 2.187, de 27 de julho de 1904, O Direito, vol. 95, p. 167).

Assim devia ser também no cível. Mas a isso se opõe um preceito cons-titucional. Com efeito, o serviço policial, como ficou dito, é em parte estipen-diado pela Fazenda Nacional; qualquer causa, portanto, que vise à reparação de danos decorrentes de atos do Chefe de Polícia, interessa incontestavelmente à Fazenda Nacional e compete, por conseguinte, aos juízes de seção ex vi do art. 60, letra b, da Constituição.

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Ministro Epitacio Pessôa

Se a lei mandasse pagar todas as despesas da Polícia unicamente com o produto dos impostos municipais, nenhum embaraço haveria a que os atos do Chefe de Polícia no cível fossem julgados pelo Juízo dos Feitos da Fazenda Municipal. Do mesmo modo, se o Congresso Nacional mandasse custear esse serviço, parte pelo Município e parte pelo Tesouro, como é agora, mas saindo a contribuição do Tesouro exclusivamente, dos impostos de natureza local, isto é, daqueles que aos Estados cabe cobrar nos seus territórios e aqui são cobrados pela União, ainda se poderia admitir que o Chefe de Polícia, mesmo no cível, ficasse subordinado ao juiz local que a lei designasse. Não havendo, porém, essa discriminação e sendo a Polícia mantida também à custa de tributos propria-mente federais, a Justiça da União não pode deixar de ser a única competente para apurar os danos resultantes da prática desse serviço.

Aos princípios até aqui estabelecidos, há uma restrição a fazer: é a da competência da Justiça local para a apuração dos prejuízos que o Chefe de Polícia porventura cause ao direito individual, quando mero executor das leis municipais, função que lhe reconhece o citado Decreto 6.440, art. 32, II, pois em tal caso é só a Fazenda do Município, e não também a da União, a interes-sada (Acórdão 1.000, de 8 deste mês).

A espécie dos autos, porém, exclui inteiramente essa hipótese, pois aqui o Chefe de Polícia procedeu em execução de um ato do Governo da União, o Decreto 6.440, de 1907, expedido como regulamento de uma lei do Congresso Nacional.

Paguem os suscitantes as custas.Supremo Tribunal Federal, 22 de janeiro de 1908 — Pindahiba de

Mattos, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Pedro Lessa. Vencido na parte do acórdão que julga a Justiça local competente para julgar o Chefe de Polícia do Distrito Federal no crime. O acórdão declarou, e não podia deixar de fazê-lo, que, em face do art. 60, letra b, da Constituição Federal, é a Justiça Federal a competente para mandar pagar quaisquer indenizações que se peçam legalmente à Fazenda Pública Nacional em conseqüência de danos causados pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal quando este — acrescenta o acór-dão — executa leis e regulamentos federais. Mas, quando se trata de processar criminalmente o mesmo Chefe de Polícia, declara o acórdão que a Justiça com-petente é a local. O acórdão, portanto, faz uma distinção inegável entre Justiça local e Justiça Federal; e, no intuito de observar o preceito constitucional, que não permite a condenação da Fazenda Federal por uma Justiça local, manda que a Justiça Federal julgue os pedidos de indenização por danos causados pelo Chefe de Polícia. Ora, o art. 68 da Lei de 3 de dezembro de 1841 e o art. 69 do Código Penal são claros e terminantes: a condenação do delinqüente na Justiça criminal produz como efeito inquestionável a obrigação de indenizar o dano

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Memória Jurisprudencial

causado pelo delito. Isso é corrente, e mais que elementar. Sendo assim, temos violado de modo indiscutível o art. 60, letra b, da Constituição Federal, desde que se cumpra o preceito do acórdão; porquanto a Justiça que condena a União, ou a Fazenda Nacional, vem a ser a local, que, condenando o criminoso, obriga a Fazenda Federal a indenizar o dano causado pelo delito. Para observar o preceito constitucional do art. 60, letra b, e evitar tão grave absurdo, forçoso é reconhe-cer que à Justiça Federal compete julgar também no crime o Chefe de Polícia do Distrito Federal. Para pôr termo às oscilações da jurisprudência relativamente à questão de saber qual a Justiça competente para julgar o Chefe de Polícia no crime e no cível, importa adotar o critério jurídico, o único critério jurídico aplicável ao caso, que é verificar qual a entidade que nomeia e demite o Chefe de Polícia do Distrito Federal. Essa entidade é o Poder Executivo federal, ou a União pelo Presidente da República. A Municipalidade não nomeia, não demite, não censura, não dirige, não fiscaliza o Chefe de Polícia do Distrito Federal, funcionário que desempenha funções que, sendo de utilidade ou necessidade local, são também, e sobretudo, de utilidade ou necessidade federal ou nacio-nal, por ser o Distrito Federal a sede do Governo da União. É a esta que cum-pre pagar as indenizações de danos causados pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal. — André Cavalcanti — João Pedro. Vencido. — Amaro Cavalcanti — A. A. Cardoso de Castro. Com restrições. — Manoel Espinola — Herminio do Espirito Santo. Vencido. — Guimarães Natal — Manoel Murtinho — Ribeiro de Almeida — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

RECURSO CRIMINAL 238

Não se pode considerar incurso no art. 261 do Código Penal quem, ao fazer um depósito em uma Caixa Econômica em favor dos seus filhos naturais, declara ser casado, sendo solteiro. Igualmente não incorrem na sanção penal desse artigo as testemunhas que asseveram em juízo a condição de solteiro do depositante, se não se mostra que esses depoimentos são falsos e se, pelo contrá-rio, estão de acordo com documentos autênticos que atestam aquela condição.

Vistos e relatados estes autos de recurso criminal, em que o Procurador da República na seção do Espírito Santo recorre do despacho do respectivo Juiz Federal que deixou de receber a denúncia por ele dada contra Francisco Coelho Guimarães, Álvaro dos Santos, Casimiro de Freitas Guimarães e José Rodrigues dos Santos, como incursos no art. 261 do Código Penal, por haver o primeiro requerido uma justificação para provar que era solteiro, ao contrário do que declarara inadvertidamente na Caixa Econômica daquele Estado, e terem os outros deposto nesse sentido, depoimentos que o recorrente reputa falsos:

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que o fato denunciado não constitui crime, nem em re-lação ao primeiro denunciado, que nada asseverou em juízo “como testemu-nha”, nem quanto aos mais, cujos depoimentos o recorrente não mostrou que eram falsos, como lhe cumpria e, caso fosse fundada a denúncia, lhe era fácil fazê-lo;

Considerando que tais depoimentos estão de acordo com a outra justifica-ção anteriormente prestada por Francisco Coelho Guimarães e com as certidões de idade de seus filhos naturais e as escrituras de filiação por ele exibidas;

Considerando que nenhum dolo se mostra no fato denunciado, pois, ca-sado ou solteiro, tinha Coelho Guimarães o direito de retirar os depósitos que fizera em nome de seus filhos;

Considerando que o próprio recorrente qualifica de falsa (fl. 5) a decla-ração de ser casado, feita pelo primeiro denunciado na Caixa Econômica, e tais condições não se concebe que denuncie por falsidade de testemunho quem afirma que o mesmo denunciado é solteiro;

Considerando o mais que dos autos consta:Acordam negar provimento ao recurso para confirmar, como confirmam,

o despacho recorrido. Custas ex causa.Supremo Tribunal Federal, 7 de dezembro de 1910 — Herminio do

Espirito Santo, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Godofredo Cunha — Canuto Saraiva — André Calvancanti — Oliveira Ribeiro — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal — Manoel Espinola — Amaro Calvacanti — Pedro Lessa — Leoni Ramos — Fui presente, A. A. Cardoso de Castro.

RECURSO CRIMINAL 250

Não tem direito a usar do recurso do art. 329, b, parte II, do Decreto 3.084, de 1898, quem apenas representa a autoridade pública nos termos do art. 72, § 9º, da Constituição para proceder contra um indiciado em crime.

As autoridades judiciárias sempre que reconhecerem casos de respon-sabilidade, se não forem competentes para formarem a culpa, deverão remeter ao Ministério Público as provas que servirem para fundamentar a denúncia, participando esta remessa ao juiz competente (Lei 2.033, de 1871, art. 15, § 7º).

A ação criminal no crime de peculato não depende da prévia tomada de contas do responsável, sobretudo quando, à vista dos autos, não pode haver dúvida sobre a classificação do crime, se na letra a ou na letra b do art. 1º do Decreto 2.110 de 1909. Feita a classificação num desses dispositivos, a incerteza

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Memória Jurisprudencial

da soma desviada, não influindo na pena de prisão, mas só na de multa, é ques-tão a ser suscitada na liquidação desta.

Destes autos de recurso criminal em que é recorrente o Dr. Trajano Augusto Lopes e recorrido o Juízo Federal do Rio Grande do Sul, consta o se-guinte: A 10 de novembro de 1910 dirigiu o recorrente ao Juiz Federal da seção do Rio Grande do Sul uma representação contra João Tomás Ramos, telegra-fista-chefe na cidade do Rio Grande, atribuindo a esse funcionário vários fatos criminosos que capitulou no art. 221 do Código Penal, e pedindo àquele Juiz que, explanados os ditos fatos, fosse o mesmo funcionário denunciado ao poder competente para os fins de direito (fls. 6v. a 11).

Mais tarde, passando a chamar queixa essa representação, pediu fosse ela aditada pelo Procurador da República (fl. 31v.).

Esse requereu um inquérito administrativo (fl. 39v.) e, recebendo-o, declarou nos autos que deixava de aditar a queixa e bem assim de apresentar denúncia, porque não haviam sido tomadas as contas do funcionário acusado e lhe cumpria aguardar do Governo a remessa dessa tomada de contas (fl. 84v.).

O Juiz conformou-se com essa promoção pelo despacho de fl. 87v., do qual recorreu o Dr. Trajano Lopes com fundamento no art. 329, b, da parte II do Decreto 3.084, de 1898.

Não há despacho do Juiz admitindo o recurso, nem este foi tomado por termo. Nas razões de recurso alega o recorrente que alguns dos fatos impu-tados ao telegrafista João Ramos ficaram provados no inquérito administrativo requerido pelo Procurador secional, e que não é necessária a tomada de contas dos responsáveis por desvio dos dinheiros públicos, para contra eles iniciar-se a ação criminal, sendo, pois, de direito e justiça que se reforme o despacho do Juiz Federal para o fim de ser denunciado o telegrafista João Tomás Ramos. O Sr. Ministro Procurador-Geral é de parecer que se não tome conhecimento do recurso ou, se se conhecer, que se lhe negue provimento (fl. 104).

O que tudo visto e bem examinado:Considerando que o art. 329, b, da parte II do Decreto 3.084, de 1898,

invocado pelo recorrente, não legitima o seu recurso: esse dispositivo concede recurso da decisão do Juiz secional que não aceita a queixa ou denúncia, mas o recorrente não apresentou queixa ou denúncia contra o telegrafista João Ramos, limitou-se a representar à autoridade pública, nos termos do art. 72, § 9º, da Constituição, para que ele fosse denunciado, e agora mesmo, nas suas razões de recurso, é precisamente isso o que pede;

Considerando, além disso, que o recurso não foi tomado por termo; mas,Considerando que as autoridades judiciárias, sempre que reconhecerem

casos de responsabilidade, não sendo competentes para reformarem a culpa,

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Ministro Epitacio Pessôa

devem remeter ao Ministério Público as provas que sirvam para fundamentar a denúncia, participando essa remessa à autoridade a quem competir a formação da culpa (Lei 2.033, de 1871, art. 15, § 7º);

Considerando que não só dos documentos que instruem a representação de fl. 6v., como do inquérito administrativo constante dos autos, verifica-se que o telegrafista João Tomás Ramos, para se apropriar de dinheiros por ele arrecadados na estação a seu cargo: 1º, fez figurar, durante dois anos, nas fo-lhas de pagamento da mesma estação, um servente que não existia; 2º, orga-nizou, com impressos de uma casa comercial, contas de artigos que não eram consumidos na repartição e cuja aquisição não estava autorizada; 3º, forjicou várias contas de consumo de luz e água da estação; 4º, especulando com a casa onde era esta instalada, alugou, em proveito próprio, a subordinados seus, várias dependências dela;

Considerando que, do referido inquérito administrativo e dos depoi-mentos tomados posteriormente e que se encontram às fls. 76v. e seguintes dos autos, se verifica ainda que o mesmo telegrafista não somente tolerou que su-bordinados seus alterassem recibos de telegramas do jornal Intransigente, da ci-dade do Rio Grande, aumentando o número de palavras e correspondentemente o preço da expedição, o que ele próprio confessa (fl. 49), mas ainda praticou, ele mesmo, durante algum tempo essas alterações;

Considerando que, se alguns dos fatos expostos, por serem as despesas da estação feitas com o produto da arrecadação, como se depreende dos autos, constituem realmente o crime de peculato definido no art. 1º do Decreto 2.110, de 30 de setembro de 1909, outros, porém, não se enquadram nesse dispositivo legal e constituem crimes diversos;

Considerando que a ação criminal, no crime de peculato, não depende da prévia tomada de contas do responsável, tal a jurisprudência do Tribunal (Acórdãos 796, de 1º de julho, e 815, de 21 de agosto de 1895; 966, de 20 de março, e 974, de 10 de abril de 1897; 1.494, de 13 de abril, 57, de 16 de outubro, e 126, de 21 de dezembro de 1901; 2.262, de 5 de abril de 1905; 2.382, de 8 de agosto de 1906; 177, de 17 de abril, 2.448, de 6 de julho, 281, de 28 de agosto, 2.463, de 4 de setembro, e 2.473, de 2 de outubro de 1907; etc.);

Considerando que, no caso dos autos, é manifesto que as quantias distraídas não atingem à soma de dez contos de réis e, conseguintemente, o crime de peculato imputado ao telegrafista em questão, é, independente de qualquer cálculo, exame ou tomada de contas, o do art. 1º, a, do Decreto 2.110, de 1909;

Considerando mais que a incerteza da soma desviada, não influindo na pena de prisão, mas só na multa, é questão a ser suscitada na liquidação desta, perante o Juiz das Execuções (Acórdão 332, de 5 de maio de 1909);

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Memória Jurisprudencial

Considerando, portanto, que destituídos de toda procedência são os mo-tivos invocados pelo Procurador da República em sua promoção de fl. 84v. para deixar de denunciar aquele empregado, tanto mais quanto, além do crime de peculato, outros constam do processo que não dependiam de tomada de contas para efeito algum, nem próximo, nem remoto:

Acordam não tomar conhecimento do recurso, mas, por força do disposto no art. 15, § 7º, da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, mandar que o processo seja remetido ao Procurador secional para que ele denuncie o telegrafista João Tomás Ramos pelos fatos criminosos acima referidos, dando-se ciência dessa remessa aos juízes a quem compete formar a culpa do indiciado. Pague o recor-rente as custas.

Supremo Tribunal Federal, 29 de janeiro de 1912 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — André Cavalcanti — Manoel Murtinho — Canuto Saraiva — Leoni Ramos — Amaro Cavalcanti — Oliveira Figueiredo — Pedro Lessa. Não conheci do recurso, de acordo com o parecer do Sr. Ministro Procurador-Geral da República à fl. 104 — Oliveira Ribeiro — Manoel Espinola — Guimarães Natal — Godofredo Cunha — Fui presente, Moniz Barreto.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO 252

A 6 de maio deste ano, o General Santa Cruz Oliveira, à frente de mais de cem homens, sitiou Alagoa do Monteiro, prendeu o Prefeito e o Promotor, apossou-se da Vila, cometendo assassínios, roubo, rapto, etc. O suscitante, en-viado para ali em comissão, formou culpa aos criminosos, mas por fim deu-se como incompetente, por se tratar de sedição, crime político. O Juiz secional não pensa assim. Daí o conflito.

Os elementos do crime de sedição estão bem caracterizados, como de-monstra o suscitante: reunião de mais de vinte pessoas armadas, para exercerem com violência e ameaças atos de ódio e vingança contra as autoridades, tendo sido conseguido o fim sedicioso.

Sou, pois, pela competência do Juiz Federal.5 de dezembro de 1911.

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Ministro Epitacio Pessôa

APELAÇÃO CRIMINAL 287

Vistos e relatados estes autos de apelação interposta por Jaime Chaves, ex-carteiro dos Correios do Piauí, da sentença do Juiz Federal do mesmo Estado que o condenou nas penas do grau médio do art. 221 do Código Penal por haver, nos meses de julho, outubro e dezembro de 1903 e fevereiro e março de 1904, extraviado diversos valores registrados confiados à sua guarda.

O Supremo Tribunal reforma a sentença apelada e absolve o apelante das penas que lhe foram impostas. Consta dos autos que a 29 de abril de 1904 o ad-ministrador dos Correios do Piauí enviou ao Procurador secional um inquérito administrativo, do qual resultava que o apelante era autor de várias subtrações de valores, cometidas naquela repartição no período decorrido de julho de 1903 a março de 1904.

Denunciado a 5 de maio seguinte, foi o apelante pronunciado no art. 221 do Código Penal. Tendo recorrido para este Tribunal e antes que fosse decidido o seu recurso, o Procurador da República, provocado por novas diligências do administrador dos Correios, instaurou outro processo contra o apelante, acusado de mais duas subtrações, praticadas no mesmo mês de março de 1904. Neste se-gundo processo, foi o apelante condenado por sentença do Juiz Federal no grau máximo do art. 221, pena reduzida ao médio pelo Acórdão deste Tribunal nú-mero 234, de 5 de agosto de 1905. Julgando agora o primeiro processo, o Juiz da seção condenou o apelante no médio do mesmo artigo pela sentença de fl. 253v., que é a sentença apelada.

Ora, está provado dos autos que todas essas subtrações obedeciam a uma só intenção criminosa e sendo, portanto, manifesto que se trata, na espécie ver-tente, dum crime continuado, que teve início em julho de 1903 e terminou em março de 1904, e duma série de atos delituosos isolados e distintos, presos por um mesmo nexo causal e subordinados a um mesmo plano, crime que por isso mesmo que é um só, tem de ser punido com uma só pena, e sem a agravação especial do art. 66, § 2º, porque os atos não foram praticados em lugar diferente, nem a do art. 66, § 3º, porque os ditos atos são da mesma natureza. Mas, se todas as subtrações formam um só crime, passível de uma só pena, e se o apelante já foi condenado uma vez, não é possível, sem evidente violação da lei, condená-lo de novo: seria converter um só delito em dois. O Procurador da República não devia ter movido o segundo processo e sim mandado juntar ao primeiro as novas diligências efetuadas pelo administrador dos Correios: assim como entendeu que não devia denunciar o apelante por tantas infrações do art. 221 do Código quantos os desvios narrados na primeira denúncia, sem dúvida por pensar que todos eles representavam um só crime continuado, apesar de haver entre alguns o espaço de mais de dois meses, assim também não podia destacar

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Memória Jurisprudencial

duas das subtrações operadas quase sem interná-lo no curto período do mês de março para formar um crime e um processo à parte.

Custas ex causa. 4 de novembro de 1907.

Supremo Tribunal Federal, 31 de dezembro de 1907.Contra Natal.

APELAÇÃO CRIMINAL 309

Conhece-se da apelação que é entregue ao Correio em tempo de chegar ao Tribunal dentro do prazo, ainda que recebida nove dias depois de esgotado este.

No domínio do Código Penal, já podiam ser co-autores ou cúmplices de peculato empregados estranhos à guarda e administração dos dinheiros públi-cos, e até simples particulares.

A não-pronúncia não é obstáculo à instauração de um outro processo, se novas provas do delito foram colhidas.

Reforma da sentença absolutória, à vista das provas dos autos.Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação crime, em que é

apelante o Procurador da República na Seção do Paraná e apelado João Loureiro da Silveira, ex-oficial da Caixa Econômica do mesmo Estado:

Considerando que, se é substancial no crime de peculato que o réu seja funcionário público e tenha sob sua guarda ou administração os valores da Fazenda Pública, daí não se segue que não possam ser cúmplices ou co-autores neste crime, conforme o auxílio que para a sua realização prestarem ao guarda daqueles valores, funcionários outros, ou mesmo particulares, estranhos à re-partição, como tantas vezes tem reconhecido esse Tribunal (Acórdãos 77, de 12 de novembro de 1898; 1.163 e 1.175, de 21 de janeiro e 2 de fevereiro de 1899; 98, de 20 de junho de 1900; 126, de 21 de dezembro de 1901; 175, de 17 de no-vembro de 1906; e 2.463, de 4 de setembro de 1907);

Considerando que o fato de não ter sido o apelado pronunciado no primeiro processo a que respondeu não era obstáculo à instauração dum ou-tro processo, à vista dos novos elementos de prova remetidos ao Ministério Público — como, aliás, reconheceu o despacho de pronúncia de fl. 37;

Considerando que o crime imputado ao apelado está provado com os depoimentos da segunda, terceira, quarta e quinta testemunhas (fls. 13, 14v., 22 e 32) com o ofício da comissão da Delegacia Fiscal (fl. 6) e a conta-corrente

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Ministro Epitacio Pessôa

organizada pelo Tribunal de Contas (fl. 8), dos quais se mostra que, por meio de lançamentos falsos em cadernetas da Caixa Econômica e mediante ajuste com o Tesoureiro respectivo, subtraiu dessa repartição a quantia de 49:178$707:

Acordam — vencendo-se a preliminar de se conhecer da apelação, que, embora recebida no Tribunal nove dias depois de esgotado o prazo da lei, fora, todavia, entregue ao Correio em tempo de chegar ao seu destino dentro do prazo — dar provimento ao recurso para, reformando a sentença apelada, con-denar o apelado João Loureiro da Silveira, ex-oficial da Caixa Econômica do Paraná, a quatro anos de prisão celular e multa de 20% do dinheiro subtraído, grau máximo do art. 221 do Código Penal, à vista da circunstância agravante do art. 39, § 13, do mesmo Código, e mais nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 19 de maio de 1909 — Pindahiba de Mattos, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — A. A. Cardoso de Castro — Herminio do Espirito Santo — Manoel Murtinho — Pedro Lessa — Canuto Saraiva — André Cavalcanti — Manoel Espinola — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal.

APELAÇÃO CRIMINAL 352

Ressalvo, como fiz na discussão da causa e, depois, ao se submeter o acórdão à aprovação do Tribunal, a minha divergência quanto à qualificação de atos preparatórios do crime do art. 12 da Lei 1.785, de 1907, dada aos atos praticados pelos apelados que, na espécie dos autos, jamais poderiam cometer esse delito.

O citado preceito legal pune como crime introduzir na circulação a moe da falsa como autêntica. Ora, não há artifício capaz de convencer que incorre nas penas deste artigo quem introduz na circulação moeda falsa, como falsa. Podem sacar daí todas as assustadoras conseqüências que quiserem: a culpa será do le-gislador, que não soube fazer a lei, nunca do juiz, adstrito a aplicá-la como ela é e não como ele entende que devia ser.

Mas, se os apelados, propondo a venda das notas pela quarta parte do seu valor e confessando previamente a falsidade delas, não cometeram nem podiam cometer o crime do art. 12 da Lei 1.785, como chamar seus atos de atos prepa-ratórios desse crime impossível?!

Se não concordei com essa qualificação, muito menos aceitei a de delito consumado, também aventada no julgamento. Esta última, além de flagrante-mente contrária à verdade dos autos, envolveria um verdadeiro contra-senso, qual o de admitir que introduziu moeda na circulação, quem conservou sempre em seu poder a moeda a introduzir!

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Memória Jurisprudencial

Os atos dos apelados constituem o crime sui generis definido no art. 24, 2ª parte, da lei. O legislador arvorou em delito especial “o fato de alguém ser depositário de moeda falsa”. O Tribunal considerou os apelados como “deposi-tários”, foi este o fundamento invocado e muitas vezes repetido da sua decisão.

Neste ponto acompanhei o Tribunal. É da maior evidência que a lei não usou da expressão depositário no sentido que em direito lhe é próprio. Imagine-se o legis-lador considerando a nota falsa objeto lícito de depósito com todas as formalidades e estipulações próprias deste contrato — documento escrito e assinado pelo depo-sitário, com duas testemunhas, firma reconhecida por tabelião, averbação dessa firma e inscrição do contrato no cartório especial de registro de títulos, comissão do depositário, obrigação deste de restituir a nota ao depositante dentro de 48 horas da intimação judicial, sob pena de prisão, decretada por um juiz, responsabilidade por estelionato no caso da alienação da nota falsa depositada etc., etc.; imagine-se o legislador exigindo tudo isso para a caracterização do crime e, depois de obter tudo isso, punindo somente o depositário e deixando incólume o depositante!

Seria o cúmulo do disparate!Não, o legislador quis referir-se ao “intermediário” a quem o fabricante

confiasse a moeda destinada à circulação, ou mesmo ao introdutor, antes de entrar em função.

E tudo leva a crer que, incluindo na nova lei essa figura delituosa, não teve ele em vista outra cousa mais do que consagrar a jurisprudência do Supremo Tribunal, que já declarara punível esse fato (Acórdãos 145, de 20 de junho de 1904; 162, de 20 de novembro de 1905; 259, de 27 de setembro de 1906; 2.416, de 16 de janeiro de 1907). Apenas, como entre os membros do Tribunal muitos houvesse, para os quais o dito fato constituía não uma tentativa, como pensava a maioria, mas simples ato preparatório, não passível de pena, o legis-lador procurou harmonizar as opiniões divergentes, definindo o fato como um delito especial e punindo-o com a pena da tentativa.

Vê-se daí que a lei terá usado duma expressão imprópria, mas não pres-supôs uma hipótese absurda e ridícula.

28 de junho de 1909.

APELAÇÃO CRIMINAL 357

Vistos e relatados estes autos, em que José Antônio Rodrigues Callejo apela da sentença do Juiz Federal da Seção de São Paulo, que o condenou a quatro anos e oito meses de prisão celular, grau máximo do art. 241, combinado com o art. 66, § 2º, do Código Penal:

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que nenhuma procedência tem a prescrição invocada pelo apelante, pois a pena corresponde aos crimes denunciados e sobre os quais versou a pronúncia é de quatro anos e oito meses de prisão celular, a mesma que mais tarde lhe impôs a sentença apelada, e não de quatro anos somente, donde se segue que o prazo da prescrição é de doze e não de oito anos, como pretende o mesmo apelante;

Considerando que, entre a evasão ou a pronúncia do apelante e o seu jul-gamento não mediaram os doze anos marcados na lei;

Considerando que as irregularidades do sumário e do pagamento aponta-das nas razões de fl. 139 são destituídas de importância;

Considerando que os crimes estão plenamente provados com os exames de fls. 27 e 70 e os depoimentos das testemunhas, quer do inquérito, quer da formação da culpa, e que a pena é a legal:

Acordam confirmar a sentença apelada e condenam o apelante nas custas.Supremo Tribunal Federal, 19 de julho de 1909 — Pindahiba de Mattos,

Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — A. A. Cardoso de Castro — João Pedro — Manoel Murtinho — Canuto Saraiva — Pedro Lessa — André Cavalcanti — Ribeiro de Almeida — Manoel Espinola — Guimarães Natal — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 425

Vistos e relatados estes autos de recurso extraordinário, vindos do Estado de Minas Gerais, e em que é recorrente o Banco Hipotecário do Brasil, suces-sor do Banco Popular do Brasil, e recorrida a Câmara Municipal de S. José de Além-Paraíba:

Considerando que em ação executiva, movida pela recorrida para haver do recorrente a quantia de 945$ de “imposto predial rústico”, lançado sobre vá-rios imóveis do mesmo recorrente, como este invocasse em sua defesa o art. 14 do Decreto 1.036 B, de 14 de novembro de 1890, que lhe concedeu “isenção de imposto sobre o dividendo, do selo dos seus documentos e capital, bem como de qualquer outra contribuição”, a Justiça do Estado de Minas Gerais, por sentença de última instância, declarou revogado este decreto pelo art. 9º, 2, da Constituição, que outorgou aos Estados o direito exclusivo de decretar impostos sobre imóveis rurais e urbanos;

Considerando que a disposição citada do Decreto 1.036 B, pelos termos absolutos em que está escrita, compreende todo o gênero de contribuições, fe-derais ou estaduais, o que, aliás, é corroborado pelo final da disposição anterior,

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Memória Jurisprudencial

o art. 13, no qual se prevê a hipótese de o Banco perder no Estado o gozo dos favores que lhe eram concedidos;

Considerando que ao Governo Provisório, à vista dos poderes extraordi-nários de que o investira a revolução, era lícito legislar com essa amplitude, não estando adstrito à Constituição, que ainda não fora votada, nem às faculdades tributárias dos Estados, que ainda não estavam organizados;

Considerando que, organizado o Banco e aprovados os seus estatutos, aquele decreto passou a ser o instrumento dum contrato entre o Governo da Nação e o mesmo Banco, gerando direitos que logo entraram a fazer parte do patrimônio deste;

Considerando que, tratando-se de um ato perfeito e acabado ao tempo em que se promulgou a Constituição, de um direito já adquirido para o Banco, de um fato de natureza patrimonial, sem nenhum caráter institucional ou político, não pode ter o efeito de anulá-lo o preceito do art. 9º, 2, da Constituição e, muito menos, quaisquer atos das legislaturas dos Estados, às quais é vedado prescre-ver leis retroativas;

Considerando que, se o recorrente não tem cumprido as cláusulas a que se obrigou, será isso razão para que o Governo Federal o chame a contas ou promova a cassação do seu privilégio, mas não para que simples câmaras muni-cipais se julguem com o direito de anular esse privilégio;

Considerando, à vista do exposto, que bem fundada foi a defesa do re-corrente, não no tocante à dívida anterior à época em que adquiriu os imóveis, porque a esse tempo já os prédios pertenciam a outras pessoas e estavam já one-rados por um imposto que em nada colidia com o Decreto 1.036 B, mas quanto aos impostos lançados após a aquisição, porque então os ditos imóveis passaram a fazer parte do capital do recorrente e, conseguintemente, a gozar da isenção estabelecida no art. 14 do citado decreto:

Acordam tomar conhecimento do recurso e dar-lhe provimento para declarar que o Decreto 1.036 B, de 14 de novembro de 1890, está em vigor e, portanto, que o recorrente não está sujeito a nenhum imposto, mesmo local, que tenha incidido nos imóveis em questão depois de incorporados ao seu capital, estando obrigado apenas ao pagamento dos impostos lançados antes da aquisi-ção dos ditos imóveis.

Custas em proporção.Epitacio Pessôa. Relator. Limitava-me, na conclusão, a declarar que o

Decreto 1.036 B está em vigor.De acordo.

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Ministro Epitacio Pessôa

RECURSO EXTRAORDINáRIO 426

Os recorrentes pretendem que se declare nulo o Decreto 117, de 4 de ja-neiro de 1892, da Junta Governativa do Maranhão, que desfez a organização judiciária anteriormente estabelecida pelo Decreto 91, de 20 de agosto de 1891, e em conseqüência os despojou dos cargos de desembargadores, os dois primei-ros, e de juiz da capital, o último. Nesse sentido moveram a ação. O Juiz da pri-meira instância deu-lhes ganho de causa; o Superior Tribunal, porém, reformou a sentença e declarou válido o ato impugnado. É desta sentença que se recorre.

Não conheço da prescrição: primeiro porque, no caso, ela não constitui nem pode constituir matéria do recurso. A questão federal ou constitucional que está em causa é saber se o ato da Junta Governativa é ou não contrário ao art. 11, § 3º, da Constituição, que veda a decretação de leis retroativas; aos arts 57 e 15, que firmam um o princípio constitucional da independência dos três poderes políticos, e o outro a vitaliciedade dos magistrados como uma condição subs-tancial da independência do Poder Judiciário; ao art. 63, que obriga os Estados a respeitarem os princípios constitucionais da União; finalmente ao art. 74, que garante em toda a sua plenitude os cargos inamovíveis. Esta é a questão fe-deral controvertida. Ora a Lei 221, art. 24, estatui que “a sentença do Tribunal, quer confirme, quer reforme a decisão recorrida, será restrita à questão federal controvertida no recurso, sem estender-se a qualquer outra porventura compre-endida no julgado”. E o nosso Regimento, que também é lei, assim dispõe no art. 102: o Tribunal “julgará o feito sem que, todavia, a decisão confirmatória ou revogatória da sentença recorrida envolva questão diversa ou independente daquela em que a mesma sentença for (...) em favor da validade de leis ou atos dos governos dos Estados que tenham sido impugnados por ofensivos à Constituição, lei ou tratado federais”. A matéria da prescrição poderia ser ob-jeto de exame do Tribunal, se acaso a questão se houvesse agitado em torno do ponto de saber se os Estados podem ou não legislar sobre esse assunto, fazendo direito seu. Mas sobre esse ponto não se manifestou a sentença e até o apelado reconhece que é assunto que escapa à competência dos Estados. É certo que a sentença alude a uma disposição transitória da Constituição estadual de 28 de julho de 1892 que manda vigorar a legislação federal relativa a matéria fiscal; mas essa disposição não se arrogou a faculdade de legislar sobre a matéria, pelo contrário reconheceu a competência dos Poderes da União, deu como assen-tado que a legislação geral se estendia à prescrição das dívidas das províncias e mandou que se observasse o que ele supunha ser o direito preexistente. Quer isso dizer que a disposição transitória da Constituição do Estado não legislou propriamente sobre a prescrição, não fez direito próprio, seu, especial sobre o assunto, nem a sentença lhe atribuiu tal intuito; a referida disposição apenas acreditou que isso já estava regulado pela lei do Império e mandou que se conti-nuasse a observar esta lei, “enquanto não revogada pelos poderes competentes”.

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Memória Jurisprudencial

Assim, a prescrição não é “questão constitucional controvertida” no recurso e, nessas condições, não pode ser apreciada pelo Tribunal.

Em segundo lugar, quando se pudesse conhecer da prescrição, não daria por ela, porque ela é invocada com fundamento do Decreto 857, de 1851, e este decreto regula tão-somente a prescrição das dívidas do Império, hoje União, e não das dívidas das províncias, hoje Estados.

Nem se diga que essa lacuna foi preenchida pela disposição transitória a que há pouco me referi e que mandou observar no Estado a legislação geral sobre matéria fiscal; porquanto até aí não chegam as faculdades legislativas dos Estados. Isso seria criar direito, seria legislar sobre prescrição, instituindo-a para dívidas não favorecidas ainda por esse privilégio, seria, portanto, infringir o art. 34, 23, da Constituição Federal, como reconhece o próprio apelado, e já o declarou este Tribunal no Acórdão 388, de 14 de dezembro de 1904, dto. v. 96, p. 394.

De meritis, dou provimento ao recurso para anular o ato da Junta Gover-nativa e mandar que o Estado pague aos recorrentes todos os vencimentos de desembargadores e juiz desde a data em que votou regularmente o seu primeiro orçamento até que os mesmos recorrentes sejam reintegrados, salvo o direito da União para haver desses magistrados tudo quanto lhes pagou como juízes em disponibilidade.

A Constituição do Maranhão, de 4 de julho de 1891, no art. 13 das suas disposições transitórias, autorizou o Governador do Estado a fazer a organiza-ção judiciária e nomear os respectivos juízes, como se praticou, aliás, em todos os Estados. Por força dessa autorização, o Governador baixou o Decreto 91, de 20 de agosto do mesmo ano, que estabeleceu aquela organização, e por força do qual foram nomeados os dois primeiros recorrentes desembargadores e o ter-ceiro juiz da Capital. Nomeados, tomaram posse dos cargos e entraram em exer-cício. Era um ato legal e, portanto, capaz de criar direitos; era um ato acabado e que, portanto, já criara efetivamente direitos para aqueles em favor de quem fora expedido; e, como a Constituição do Estado consagrava (aliás, de acordo com a Constituição Federal, como devia ser) a vitaliciedade como principal predica-mento dos juízes, é fora de dúvida que os recorrentes eram vitalícios nos cargos em que haviam sido investidos e esta vitaliciedade não podia mais ser destruída por poder algum.

Em tais condições, o ato da Junta Governativa que anulou a nomeação dos recorrentes, além de contrário à própria Constituição do Estado, que a mesma Junta, como se vê de vários decretos por ela expedidos, continuava a considerar em vigor e que, no art. 62, só permitia a destituição dos juízes por meio de sentença judicial, infringe a Constituição da República; primeiro no art. 11, § 3º, que veda a prescrição de leis e, com maioria de razão, de decre-tos retroativos, e como tal é evidente que não pode deixar de ser considerado

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Ministro Epitacio Pessôa

o ato que fere direitos legitimamente adquiridos à sombra de um ato anterior; segundo no art. 15, que consagra como princípio básico da organização consti-tucional a independência dos poderes políticos, princípio que os Estados devem respeitar, ex vi do art. 63; ora, a vitaliciedade dos magistrados é a primeira con-dição da independência do Poder Judiciário.

Os argumentos formulados pelo recorrido contra essas conclusões e es-posados pela sentença são de todo improcedentes.

O primeiro e o principal é que a organização judiciária decretada pelo primeiro Governador era radicalmente nula e, por conseguinte, não podia criar direito algum em favor dos recorrentes: nula porque o Governador havia sido irregularmente eleito e assim era autoridade incompetente para expedir o ato; nula, porque o Congresso do Estado não podia delegar ao Poder Executivo a atribuição, que pela Constituição era privativamente sua, de organizar o Poder Judiciário. É o argumento que o recorrido exprime nesta fórmula sintética: “Era um governador inconstitucional decretando leis inconstitucionais.”

Examinemos os dois pontos separadamente.Pelo Decreto 802, de 4 de outubro de 1890, o Governo Provisório pro-

videnciou sobre a convocação das assembléias constituintes dos Estados, e no art. 2º assim dispôs: “Essas assembléias receberão dos eleitores poderes espe-ciais para aprovar as Constituições dos Estados, assim como para eleger os go-vernadores e vice-governadores que houverem de servir no primeiro período administrativo.” Ora, o Governador do Maranhão foi eleito pelo Congresso Constituinte do Estado, para isso autorizado pelos poderes especiais que lhe conferiram os eleitores nos termos do decreto citado. Onde está, pois, a irre-gularidade da eleição? Está, responde o recorrido, em que o Governador foi eleito antes de votada a Constituição. Mas isso não tem importância: eleito antes ou depois de aprovada a Constituição, o que é certo é que o Governador foi eleito pelo Congresso Constituinte e isso é que é essencial. Pouco importa que a Constituição do Estado, votada logo em seguida, consagrasse o princípio da eleição direta para o cargo de governador; não havia inconstitucionalidade em que a primeira eleição fosse feita pelo Congresso: 1º, porque a Constituição ainda não estava votada; 2º, porque era isso mesmo o que prescrevia o ato do Governo Provisório que regulava a convocação das assembléias constituintes dos Estados. Também a Constituinte Federal elegeu o primeiro Presidente da República, não obstante ter a Constituição Federal, que, aliás, já estava votada, adotado o sistema de eleição direta.

Pensar-se-á, porventura, que o Congresso do Maranhão elegeu alguém para um cargo que ainda não estava criado? Não, pois o mesmo Congresso, logo que se reuniu, criou por um decreto constitucional os cargos de governador e vice-governadores, decreto que mais tarde foi incorporado à Constituição.

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Memória Jurisprudencial

Mas concedamos que tivesse havido irregularidade em ser eleito o Go-vernador antes de aprovada a Constituição. Pois bem, essa irregularidade foi inteiramente sanada pelo Congresso, que, depois de votada a Constituição, incluiu entre as disposições transitórias desta uma em que aprovou a eleição anteriormente feita. Eis aí a eleição feita depois de votada a Constituição, como quer o recorrido.

Assim, o Governador era autoridade legitimamente constituída.Vejamos agora o outro ponto. O Congresso, diz o recorrido, não podia

delegar ao Governador a atribuição de organizar a magistratura do Estado.Há aqui evidentemente uma confusão. Quando se diz que o Poder Legis-

lativo não pode delegar atribuições suas ao Poder Executivo, é claro que se trata do Poder Legislativo ordinário, mas não duma assembléia constituinte que vai pela primeira vez fazer a constituição de um povo, que vai iniciar um regímen substancialmente diverso daquele que até então vigorou. As faculdades da as-sembléia constituinte são ilimitadas e ninguém lhe recusará o poder de confiar a título transitório ao Poder Executivo o exercício duma atribuição que, no re-gímen normal e ordinário, deva caber ao Legislativo. Tratando-se de Estados federados, os únicos limites dessas faculdades são os criados pela Constituição da União. Ora, esta não vedava aos congressos estaduais a providência seguida pela do Maranhão, que, aliás, foi a mesma adotada por todos os Estados. Nem é razoável descobrir antinomia jurídica entre uma disposição permanente e uma disposição transitória da Constituição, isto é, entre a disposição ordinária que dá ao Legislativo o direito exclusivo de organizar a Justiça do Estado, e a dis-posição transitória que autoriza o Executivo a fazer a primeira organização; do mesmo modo que ninguém jamais se lembrou de descobrir essa antinomia en-tre, por exemplo, a disposição da Constituição Federal que manda eleger o Pre-sidente da República por sufrágio direto e a disposição transitória que mandou eleger pelo Congresso o primeiro Presidente. As Assembléias ordinárias têm os seus poderes definidos na Constituição; elas não podem alienar de si esses po-deres sem violar a própria Constituição. As Assembléias constituintes, porém, não têm os seus poderes restringidos por nenhuma lei escrita; nada, portanto, impede que elas, por exceção, confiem ao Poder Executivo o que, no regímen permanente, irão atribuir ao Legislativo.

O ato do Congresso Constituinte do Maranhão, portanto, confiando ao Governador a atribuição de fazer a primeira organização da Justiça do Estado, foi perfeitamente regular, não pode ser taxado de inconstitucional. É até uma extravagância chamar de inconstitucional uma disposição transitória da Cons-tituição, por ser contrária à correspondente disposição ordinária; pois é da natureza mesma das disposições transitórias o serem exceções, derrogações passageiras dos princípios consagrados nas disposições permanentes.

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Ministro Epitacio Pessôa

Mas, se o Governador do Estado foi legitimante eleito, se era, portanto, uma autoridade constitucional; se, por outro lado, o ato da organização judiciá-ria por ele expedido foi, como acabamos de ver, também um ato constitucional, é óbvio que o primeiro e principal argumento do recorrido é improcedente; é incontestável que esse ato, perfeitamente legítimo, era capaz de gerar direitos e efetivamente os criou; é claro que esses direitos, dada a posse e o exercício dos juízes nomeados, incorporaram-se ao seu patrimônio jurídico, tornaram-se direitos adquiridos e conseguintemente inatingíveis por qualquer ato posterior.

Diante do rigor lógico dessa conseqüência, eu me poderia dispensar de apreciar os outros argumentos do recorrido e da sentença do Superior Tribunal do Estado.

Em todo caso, mostrarei em poucas palavras a improcedência de cada um deles.

Alega o recorrido que o Estado não se achava definitivamente organi-zado. Mas que importa isso? Para que a organização judiciária fosse legítima e capaz de criar direitos, não era mister que o Estado estivesse definitiva e com-pletamente constituído: bastava que ela — organização — o estivesse.

A Constituição Federal não exigia que os Estados se organizassem de um só jato; pelo contrário, previa justamente que a organização dos diversos servi-ços fosse sendo feita paulatina e sucessivamente. À proporção que esses serviços fossem sendo constituídos, o Governo Federal os iria transferindo aos Estados e desde então eles iriam produzindo todos os seus efeitos lógicos, legais e jurídi-cos, embora continuassem a ser pagos pela União até que o Estado votasse o seu primeiro orçamento. É o que se vê dos arts. 3º e 4º das Disposições Transitórias e do Decreto 438, de 11 de julho de 1891.

Não era, pois, indispensável que o Estado já estivesse definitiva e inteira-mente organizado (e, aliás, já estava): desde que o serviço da justiça fora legal-mente constituído, ele passava a produzir em favor dos juízes nomeados todos os seus efeitos jurídicos. Seria mesmo incompreensível que este, como os de-mais serviços, depois de organizado, ficasse suspensos até que se completasse a organização definitiva do Estado.

Alega ainda o recorrido que a Junta Governativa surgiu de um movi-mento revolucionário que era a expressão da opinião popular, e com isso quer sem dúvida significar que não podia haver embaraços legais à sua ação. Ora, todos sabemos o que foram esses movimentos nos Estados: tragédia ou comé-dia, o que é certo é que neles nunca entrou o povo como comparsa. Mas, admi-tindo que o Estado do Maranhão tenha sido honrosa exceção à regra geral, o que é certo é que o tal movimento revolucionário teve caráter puramente local e, portanto, não podia desdenhar da Constituição Federal que continuava em vigor e, por conseguinte, continuava a assegurar aos juízes estaduais a garantia

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Memória Jurisprudencial

da vitaliciedade como um elemento essencial da sua independência, princípio constitucional da União que os Estados são obrigados a respeitar. Mas o curioso é que esse movimento revolucionário não se julgou de todo incompatível nem mesmo com a Constituição do Estado, pois constam dos autos vários decretos da Junta Governativa dos quais se depreende que ela reputava ainda em vigor a Constituição do Estado, sendo esta a razão pela qual convocava uma nova assembléia constituinte para apenas alterar a Constituição nos pontos que jul-gasse conveniente. Mas, se, feita a revolução no Maranhão, a Constituição do Estado continuou em vigor menos na parte referente ao Poder Executivo, e a Constituição Federal nunca deixou de vigorar em nenhum dos seus pontos, como pretender que a Junta Governativa pudesse ter a faculdade de anular a vitaliciedade de juízes garantidos por ambas estas Constituições?

Alega em terceiro lugar o recorrido que a vitaliciedade dos recorrentes foi respeitada, pois que eles voltaram aos seus lugares do tempo da Monarquia. Este argumento não é sério. A vitaliciedade que aqui se discute não é a que tinham os recorrentes como juízes de direito do tempo do Império, mas a que adquiriram já na República, nos cargos de desembargadores e juiz da Capital.

Em quarto lugar alega o recorrido que nenhuma ação podem ter os re-correntes contra o Estado, porque este nunca lhes pagou vencimentos, e sim a União. É verdade, mas porque, nos termos do art. 2º do já citado Decreto 438, tal serviço devia ser custeado pela União até que o Estado votasse o seu orça-mento, e o Maranhão ainda não o havia feito. Mas ia fazê-lo e não podia deixar de fazê-lo; votado o orçamento, os vencimentos passariam a ser pagos pelo Estado: era, pois, uma obrigação a termo.

Alega finalmente o recorrido que os recorrentes se conformaram com o ato da Junta Governativa, tanto que voltaram às suas antigas comarcas e mais tarde, não tendo sido aproveitados na nova organização judiciária, foram decla-rados em disponibilidade pelo Governo Federal. Mas, primeiramente, consta dos autos que, expedido o decreto da Junta, um dos recorrentes, que era Presidente do Superior Tribunal, protestou contra ele em seu nome e no de todos os mem-bros da magistratura. Depois, é princípio inconcusso que “o ato praticado contra declarações constitucionais é nenhum” e nunca mais poderá ser revalidado, por-que “se entende que nunca, desde o seu começo, lhe assistiu a mínima autoridade legal — it is as if it had never been, na frase de Colby. Actus ipso jure nullus, convalescere non potest (Rui Barbosa, Atos Inconstitucionais, p. 220 e 221).

Já o Alvará de 6 de maio de 1765 dispunha: “Atos nulos não podem produ-zir qualquer efeito (...)”. Trata-se de uma violação constitucional, isto é, da trans-gressão de uma lei de ordem pública: trata-se, portanto, duma nulidade absoluta, isto é, duma nulidade da natureza daquelas em que, no sentir de todos os juriscon-sultos, se pode contravir ao próprio fato. “Ubi lex seu estatutum aliquid prohibet,

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Ministro Epitacio Pessôa

diz Altimari, actus contra prohibitionem factus non solum est nullus et inutilis, sed etiam habetur pro non facto et sic ipso jure nullus. Nec sustinetur etiam vo-lente eo in cujus favorem annullatur, quia tali nullitate renuntiare non potest.”

E o Supremo Tribunal assim tem entendido. Quando os juízes do tempo do Império foram violentamente aposentados pelo Decreto 2.056, de 25 de julho de 1895, todos eles se submeteram ao ato inconstitucional e passaram a receber os vencimentos da aposentadoria: não obstante, o Supremo Tribunal anulou esse decreto em favor de todos os juízes que recorreram ao Poder Judiciário, e uma só vez não invocou contra os reclamantes a circunstância de haverem eles se conformado com o ato da aposentadoria.

Em todo caso, como não é justo que os recorrentes recebam dois venci-mentos pela mesma função, eu ressalvo no meu voto o direito da União para ha-ver deles os vencimentos que lhes pagou como magistrados em disponibilidade.

Faz o recorrido grande cabedal de uma decisão do Tribunal que julgou improcedente a denúncia dada contra os membros do Governo revolucionário do Maranhão, e pretende talvez daí inferir que o Tribunal reconheceu a legiti-midade desse governo.

Mas, em primeiro lugar, o que o Tribunal fez então foi deixar de conhecer da denúncia por se tratar de matéria política, ao passo que a questão que ora se debate nada tem de política. Em segundo lugar, ainda que o Tribunal houvesse reconhecido e proclamado a legitimidade daquele Governo, não importaria isso nem poderia importar o reconhecimento da legitimidade de todos os atos que ele houvesse praticado ou viesse a praticar em detrimento de direitos indi-viduais assegurados pela carta constitucional da República. Podia o Governo do Maranhão ser um Governo perfeitamente legítimo; nem por isso estava no seu poder cassar a vitaliciedade de magistrados garantida pelo art. 15 da Constituição Federal, Constituição que não foi nem podia ter sido suspensa pela revolução local e, portanto, estava em seu inteiro vigor.

Não preciso encarecer aos olhos do Tribunal a importância deste pleito. O Tribunal tem sido, e deve continuar a sê-lo, a garantia suprema do prestígio e da independência dos magistrados locais. É ele mesmo que, consagrando uma libe-ral compreensão do regímen, tem assentado em numerosos acórdãos que tais ju-ízes não podem ser aposentados senão no caso de invalidez; que não podem ser demitidos; que não podem ser removidos. Foi ele mesmo que, ainda há pouco tempo, pelo Acórdão 385, de 31 de dezembro de 1904, resolveu a mesmíssima questão que ora se oferece ao seu exame, decidindo que as Juntas Governativas de 1892 não podiam demitir os juízes nomeados pelos governadores depostos. É de esperar que o Tribunal mantenha aqui a sua decisão de há um ano, além do mais, para que, se amanhã, com a aquiescência ou mesmo a tolerância do Governo da União, surgir em qualquer dos Estados da República um governo

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Memória Jurisprudencial

de fato, oriundo de algum movimento local, não se julgue ele com o direito de cassar a seu talante as garantias que a Constituição Federal e as dos Estados as-seguram aos membros do Poder Judiciário.

23 de janeiro de 1906.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 431

No acórdão que se vai ler e de que foi Relator o Ministro Epitacio Pessôa, consagrou o Supremo Tribunal, em uma das suas últimas sessões, a doutrina de que os vencimentos dos magis-trados dos Estados, como os dos juízes da União, não podem ser direta ou indiretamente reduzidos.

Vistos e relatados estes autos de recurso extraordinário entre partes — recorrentes Drs. Luís da Silva Gusmão e José Mariano Carneiro Bezerra Cavalcanti e recorrida a Fazenda do Estado de Pernambuco:

Havendo as leis orçamentárias de Pernambuco, votadas para os exercí-cios de 1902 a 1903 e 1903 a 1904, criado o imposto de quinze por cento sobre todos os vencimentos maiores de 4:200$000 por ano, os recorrentes, juízes de direito do Estado, com vencimentos superiores àquela quantia, ex vi da Lei 329, de 8 de julho de 1898, reclamaram perante a Justiça local a restituição das somas que lhes foram descontadas, fundando o seu pedido em que as leis que reduzem, ainda que por meio de imposto, os vencimentos dos magistrados, devem ser ti-das como contrárias à Constituição da República.

O Superior Tribunal de Pernambuco, confirmando a sentença do Juiz da primeira instância, considerou válidas as leis impugnadas e, por conseqüência, improcedente a ação.

Foi dessa decisão que se interpôs o presente recurso extraordinário.Isso posto, e,Considerando, preliminarmente, que das sentenças das Justiças dos Esta-

dos em última instância há recurso para o Superior Tribunal quando se contesta a validade de leis locais em face da Constituição Federal, e a decisão do Tribu-nal do Estado considera válidas essas leis (Constituição, art. 59, § 1º, letra b) e estas condições se verificam na espécie vertente;

E, de meritis:Considerando que a independência dos poderes políticos é um princípio

constitucional da União, que os Estados não podem violar (Constituição, art. 63);

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que a Constituição da República, procurando assegurar a independência do Poder Judiciário da União, por ela proclamada no art. 15, declarou, entre outras garantias, que os vencimentos dos juízes não podem ser diminuídos (art. 57, § 1º);

Considerando que os Estados deixariam de respeitar fielmente o princí-pio constitucional da independência do Poder Judiciário, se, na organização de sua Justiça, não a rodeassem das mesmas garantias que a Constituição Federal julgou essenciais a essa independência, e, portanto, da que consiste na irreduti-bilidade dos vencimentos;

Considerando que, no regímen consagrado pela Constituição brasileira, o Poder Judiciário dos Estados tem, como o da União, a suprema atribuição de julgar da constitucionalidade dos atos do Poder Legislativo (art. 59, § 1º, letra b) e, em tais condições, dar a este último Poder a faculdade de diminuir os venci-mentos daquele, seria colocar os juízes à mercê da legislatura e tirar-lhes assim a independência de que precisam para dizer, com verdade e justiça, da validade das leis, independência que, como já ficou dito, deve ser garantida nas organiza-ções locais, em respeito ao art. 63 da Constituição da República;

Considerando que improcedente é a objeção de que o Poder Judiciário local não julga soberanamente da validade das leis, pois das suas decisões há recurso para o Supremo Tribunal Federal, porquanto: a) este recurso só existe quando a Justiça do Estado considera válida a lei local argüida de contrária à Constituição ou às leis da República, isto é, quando homologa o ato da assem-bléia estadual, mas não quando invalida, isto é, justamente quando fulmina esse ato; b) também das sentenças dos juízes federais de primeira instância, quando julgam da validade dos atos do Congresso Nacional, há recurso para o Supremo Tribunal, e nem por isso a Constituição permite que os vencimentos desses juí-zes possam ser diminuídos;

Considerando que não destrói a procedência da doutrina exposta qualquer divergência que se note entre ela e o que porventura se pratique nos Estados Unidos, desarrazoada é a pretensão de estabelecer perfeita identidade entre a organização americana e a brasileira. Ali a União foi uma criação artificial, pos-terior aos Estados. Foi vencendo as maiores dificuldades, oriundas do exagerado amor de independência dos Estados, do seu excessivo zelo pelas prerrogativas de que se achavam investidos, que os promotores da Convenção de Filadélfia conse-guiram obter deles a renúncia de alguns desses direitos e regalias para a forma-ção de uma só e grande Nação. Em tais condições, não era prudente levar muito longe as pretensões da União; tudo aconselhava, pelo contrário, a deixar aos Estados uma larga esfera de ação, bastante para contentar o seu amor-próprio lo-cal, as suas ambições e necessidades, e respeitar os seus hábitos e tradições. Não seria, pois, de admirar que, nos Estados da União norte-americana, promulgada

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Memória Jurisprudencial

a Constituição federal, se entendesse que a garantia da irredutibilidade dos vencimentos não abrangia os juízes locais, tanto mais quanto continuaram a subsistir nos Estados os mesmos variados tipos de organização judiciária então existentes — juízes de investidura temporária, juízes eletivos, etc. — divergen-tes da organização federal e aos quais inaplicável poderia parecer aquela garan-tia. Apesar disso, o Supremo Tribunal da Pensilvânia não hesitou em declarar inconstitucional a lei que em 1841 lançou o imposto de dois por cento sobre os vencimentos dos juízes (Kent, Commentary on international law, vol. I, p. 308). Entre nós, porém, a União não foi uma criação artificial: ela existia já, fortalecida por setenta anos de independência e soberania, quando se instituiu o regímen dos Estados autônomos; nenhuma resistência houve a debelar da parte das provín-cias a quem o novo regímen não impunha a perda de nenhum privilégio e, o ao revés, cumulava de vantagens e regalias. Nós éramos uma monarquia unitária, vivíamos sob um regímen de centralização, tínhamos a unidade da legislação e da justiça, e essa situação, proclamada a República, não podia deixar de influir na organização da nova ordem de coisas; o passado e a tradição tinham por força de colaborar nessa obra. Eis por que tantas vezes tem reconhecido este Tribunal que o espírito da nossa Constituição, implícito no art. 63, foi que a magistratura nacional servisse de molde às magistraturas dos Estados, desde então com di-reito às mesmas garantias outorgadas àquela;

Considerando que os vencimentos dos magistrados não podem ser dimi-nuídos, nem diretamente por meio de uma lei especial visando a esse objeto, nem indiretamente por meio de um imposto, que, aumentado ou repetido à von-tade, conduz ao mesmo resultado, conforme tem sido uniformemente decidido pelo Tribunal:

Acordam tomar conhecimento do recurso e dar-lhe provimento para de-clarar inconstitucionais, na parte impugnada, as leis orçamentárias votadas em Pernambuco para os exercícios de 1902-1903 e 1903-1904, devendo, em conse-qüência, ser restituída aos recorrentes a importância que, a título de imposto e por força dessas leis, houver sido descontada dos seus vencimentos.

Pague as custas o Estado recorrido.Supremo Tribunal Federal, 4 de abril de 1908.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 478

Vistos, expostos e discutidos estes autos de recurso extraordinário entre partes, como recorrentes Bruce, Peebles and Company Limited, comerciantes e industriais estabelecidos na Inglaterra e recorrida a Companhia Ferro Carril de

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Ministro Epitacio Pessôa

Pernambuco. Dos mesmos autos consta que, no Juízo do Comércio de Recife, propuseram os recorrentes contra a recorrida uma ação ordinária, em que, ale-gando haverem comprado daquela a empresa de transportes por ela explorada, e não lhes tendo sido entregue nem possível receber amigavelmente o objeto da compra, pediam fosse a ré condenada a efetuar a entrega da aludida empresa e satisfazer às indenizações legais; que, posta a causa em juízo, requereu a ré, ora recorrida, a absolvição de instância sob o fundamento de não terem os autores, estrangeiros, domiciliados fora do País, prestado fiança às custas, na forma do art. 51 do vigente Regimento de Custas do Estado, requerimento que foi defe-rido, sendo decretada a pretendida absolvição de instância ut sentença (sic) à fl. 59, da qual se agravou para o Superior Tribunal de Justiça, que negou pro-vimento ao agravo, sendo do respectivo acórdão, constante de fl. 81, interposto recurso extraordinário para este Tribunal, tomado por termo pelo secretário do tribunal a quo, sem que, porém, precedesse despacho judicial, recurso com as-sento no art. 59, § 1º, letras a e b, da Constituição Federal, e art. 744, parte 3ª, combinado com o art. 13, 2, a e b, parte 1ª, da Consolidação anexa ao Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898, e fundada na alegação já de ter a decisão re-corrida se pronunciado contra a aplicação de leis federais, já de ter reconhecido como válido o Regimento de Custas do Estado, argüido de inconstitucional, que, arrazoado o recurso pelas partes, foi em tempo apresentado nesta superior instância, onde, ouvido o Sr. Ministro Procurador-Geral da República, opinou este contra a admissibilidade do mesmo recurso, por não concorrer no caso nem um só dos requisitos do supracitdo art. 59, § 1º:

Isso posto e resolvido, prejudicialmente, que não afeta a validade da inter-posição do presente recurso a falta do despacho judicial autorizando-o, visto como o art. 58 da Lei 224, de 1894, que se pretende ter sido violado, nada precei-tua sobre a forma de tal interposição, regulando apenas o prazo em que esta deve ter lugar, bem como o da apresentação dos autos na instância superior; além de não ser imprescindível a ordem do juiz para se lavrar o termo de recurso, desde que este não pode ser denegado, por competir exclusivamente ao Supremo Tri-bunal Federal decidir se tem ele ou não cabimento;

Considerando que duas são as condições essenciais para que seja ad-missível o recurso extraordinário, nos termos do art. 59, § 1º, letras a e b, da Constituição da República: 1º, que a decisão recorrida tenha sido proferida em última instância pela Justiça estadual; 2º, que essa decisão se tenha pronunciado contra a validade ou aplicação de tratados ou leis federais, resolvendo a contro-vérsia suscitada na causa a esse respeito, ou tenha considerado válidas em face da Constituição e leis federais as leis ou atos do Governo do Estado argüidos de nulos em discussão havida no feito;

Considerando que o acórdão recorrido, confirmando, mediante agravo, a sentença do Juízo do Comércio pela qual foi a ré, ora recorrida, absolvida da

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Memória Jurisprudencial

instância por terem os autores prestado fiança às custas, decidiu apenas um inci-dente do respectivo processo, o qual, satisfeita a exigência da fiança e renovada a instância perempta, pode prosseguir até aos derradeiros termos da causa, pelo que não se compreende, de forma alguma, na classe das sentenças em última instância, a que se refere o dispositivo constitucional;

Considerando, por outro lado, que a decisão recorrida não recusou a validade ou aplicação de leis federais, como se argúi, desde que a Ord. L. 3º Tít. 20, § 6º, e o Decreto 564, de 10 de julho de 1850, na parte que estabelece-ram a forma para a prestação da fiança às custas, e se diz não terem sido apli-cados pelo Juízo do Comércio, que preferiu basear sua decisão ou sentença no Regimento de Custas do Estado, art. 51, não obrigam as Justiças estaduais, visto como o assunto de que ali se trata prende-se à matéria de custas exigíveis pelos serviços prestados no foro e nos Tribunais do Estado, e a regulamentação delas, tendo nexo com a administração da Justiça estadual, incide na esfera dos pode-res locais; além de não ser exato que o Juiz da instância inferior tenha deixado de aplicar as indicadas leis federais, pois a sentença de absolvição de instância invocou como um dos seus assentos o referido Decreto de 10 de julho de 1850, que combinou com o Regimento de Custas do Estado;

Considerando, por último, que não procede a argüição contra a validade do citado Regimento de Custas em face da Constituição, sob o fundamento de invadir ele a esfera da legislação federal, porquanto, como já ficou ponderado, tudo que diz respeito às custas e ao processo concernentes à Justiça estadual é da competência dos poderes do Estado, sendo os Regimentos de Custas da União somente aplicáveis às Justiças federais, pelo que a decisão recorrida não podia deixar de considerar válido para o caso, e, como tal, aplicá-lo, o art. 51 do mesmo Regimento estadual: acordam, preliminarmente, não tomar conheci-mento do recurso intentado, condenando os recorrentes nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 19 de janeiro de 1907 — Piza e Almeida, Presidente — Manoel Murtinho, Relator para o acórdão — Amaro Cavalcanti. Não tomei conhecimento do recurso conforme o acórdão supra, e, prevalecendo da faculdade contida no art. 48 do Regimento do Tribunal, passo a declarar os motivos do meu voto individualmente.

A espécie dos autos seria, sem dúvida, caso de recurso extraordinário por ter o recorrente invocado, antes e depois da decisão recorrida, as disposições do art. 59, § 1º, letras a e b, da Constituição Federal — muito embora o dito recurso não merecesse, nas circunstâncias, o provimento pedido.

Antes de tudo, é condição preliminar, para que as disposições invocadas justifiquem a admissão do recurso extraordinário, que as mesmas incidam em sentença final de última instância do tribunal do Estado. E este primeiro ele-mento falece no caso dos autos.

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Ministro Epitacio Pessôa

O Supremo Tribunal Federal tem admitido, e com o meu voto, o recurso extraordinário de decisões de agravo; o que quer dizer decisões proferidas so-bre incidentes da causa e não decisão final da própria demanda. Mas atenda-se: decisões que, em todo o caso, põem termo ao incidente em questão. E isso se verifica nos autos? Não. Trata-se de uma decisão interlocutória, a qual, embora confirmada em última instância, nem por isso pôs termo ao incidente assim decidido. Não obstante a absolvição da instância, esta podia ser renovada pelo autor — recorrente no mesmo estado em findou, e com todas as suas qualidades (Pereira e Sousa, Primeiras Linhas, § 108). Não precisava que na Constituição viesse explícita a cláusula — decisão ou sentença final —, visto tratar de um remédio processual, já conhecido na sua natureza e fins, pela lei e jurisprudência americana, de onde fora transladado. A própria opinião ou decisão da jurisprudência americana, que se invocou na discussão perante o Tribunal, e que se procura assentar no caso Weston versus Charleston (cuja íntegra vem em Hayer, Cases, p. 1340), confirma, contraproducentemente à invocação feita, a necessidade de uma decisão terminativa do feito, ou do inci-dente, como acima se disse.

Compreende-se que, se assim não fora, o recurso extraordinário passaria a tomar o lugar do recurso ordinário de agravo, interposto das decisões inter-locutórias das Justiças estaduais — o que repugna não só à natureza desse re-curso, mas ainda ao regímen constitucional da dualidade de Justiças, federal e estadual, inteiramente autônomas (Constituição, arts. 61 e 62).

É, não há negar, verdadeira a doutrina de que o recurso extraordinário pode ser interposto de decisões sobre os incidentes da causa; mas é necessário que semelhantes decisões sejam finais do incidente. E tanto assim o admito, que, se, em vez de despacho de absolvição da instância, se tratasse de perempção da instância e da ação, eu aceitaria tal decisão, como base do recurso interposto (Ribas, Consolidação das Leis do Processo Civil, art. 245; Pereira e Sousa, ci-tado § 98 e nota 240, etc.). Além disso, se o Supremo Tribunal Federal tivesse de tomar conhecimento do mérito do recurso, veria que o ato do Governo es-tadual, impugnado, não é contrário à Constituição Federal, nem revogatório da lei federal.

Como o novo regímen político instituído — e com este a dualidade judi-ciá ria — resultou para o poder estadual o direito exclusivo de regular as matérias de processo da sua Justiça; e nada é mais pertinente a semelhante direito do que o Regimento das Custas da dita Justiça.

O fato de o regimento ou lei federal dispor diversamente sobre custas não importa a incidências no art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, por se tra-tar de atos de competências distintas e de poderes diferentes. A disposição do Regimento de Custas do Estado de Pernambuco diz:

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Memória Jurisprudencial

Os autores nacionais ou estrangeiros residentes fora da República, ou que dela se ausentarem durante a lide, são obrigados a prestar fiança às custas e a fiança será requerida ao juiz da causa em primeira instância e na segunda ao juiz relator.

É, como se vê, uma disposição idêntica à da lei federal sobre a matéria (Ribas, loc. cit., art. 525, e Decreto 3.084, de 1898, parte 3ª, art. 12, p. 133), salvo uma ou outra palavra.

E, quando assim não fosse, onde a inconstitucionalidade do ato estadual ou o seu conflito com o dispositivo da letra b do art. 59 da Constituição Federal? Inconstitucionalidade não há em se exigir mera segurança do pagamento da custa do processo dos autores, quando estes residam fora do país. Não há, se-quer, a discriminação de “autores estrangeiros”, como sucede em geral nas le-gislações dos diversos Estados europeus e americanos. Se fosse uma condição posta ao estrangeiro, para poder demandar em juízo, a lei ou ato estadual teria exorbitado da competência ou poder reservado pela Constituição aos Estados da União.

A disposição do Regimento de Custas, porém, assim não o faz; estabe-lece apenas uma condição de garantia às custas do autor em juízo, que estiver ausente — seja ele nacional, seja estrangeiro. Não há, pois, nem questão de di-reito internacional ocorrente, nem tampouco conflito algum com a lei federal, que pode dispor diversamente sobre as custas federais — nada tem que ver com o modo ou condições do pagamento das custas da Justiça estadual, por ser ma-téria de alheia competência.

É este um princípio de direito público federativo acima de contestação: “Que, quando um poder é conferido a um dos Poderes da Federação, nele se inclui, explícita ou implicitamente, o de adotar ou praticar todos os atos ou condições que forem necessários ou convenientes para tornar efetivo o poder conferido.”

É, portanto, sem razão de ser a argüição de inconstitucional que se fez ao Regimento de Custas do Estado de Pernambuco na hipótese dos autos. — Herminio do Espirito Santo — André Cavalcanti — Cardoso de Castro — Manoel Espinola — Epitacio Pessôa. Vencido por entender que o caso dos autos, quer em face da letra a, quer pela letra b do art. 59, § 1º, da Constituição, é um caso típico de recurso extraordinário.

São duas, diz o próprio acórdão, as condições exigidas pela Constituição para a admissibilidade desse recurso: 1ª, que se tenha questionado sobre a va-lidade de uma lei federal ou sobre a constitucionalidade de um ato do Governo do Estado; 2ª, que uma sentença de última instância da Justiça local considere revogada aquela lei ou constitucional esse ato.

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Ministro Epitacio Pessôa

Ora, no caso vertente se questionou sobre a validade da lei federal de 10 de julho de 1850 e sobre a constitucionalidade do decreto estadual de 29 de outubro de 1895, e a sentença de última instância considera revogada a lei e constitucional o decreto. Como, pois, concluir que o caso não é de recurso extraordinário?!

Alega-se que a decisão recorrida foi proferida sobre agravo e não consti-tui, além disso, o que em processo se chama uma sentença definitiva.

Mas, em primeiro lugar, não basta que a sentença seja de agravo para excluir ipso facto o recurso extraordinário. Nem há na Constituição palavra alguma que autorize a inteligência de que só a decisão da causa principal com-porta esse recurso.

O que a Constituição exige é tão-somente que a sentença seja de última instância e resolva, definitivamente, o ponto constitucional controvertido. É esta, aliás, em relação a agravos mesmo, a jurisprudência do Tribunal, firmada, desde 1896, por uma série já longa de julgados, dos quais o último — nú-mero 440, de 19 de setembro de 1906 — data apenas de quatro meses.

Em segundo lugar, tratando-se de recurso extraordinário, não vem ao caso indagar o que é que se chama em direito processual uma sentença defini-tiva, mas, sim, se a sentença de que se recorre é, em direito constitucional, capaz de legitimar o recurso. Ali, a sentença definitiva é a que termina o feito; aqui, é a que pôs termo à questão da validade da lei federal ou da constitucionalidade do ato local, dirima, ou não, também o ponto de direito privado que se debate. São decisões inteiramente distintas, que podem, é verdade, coexistir, e às mais das vezes coexistem, na mesma sentença, mas que também podem figurar em duas sentenças diversas. Ora, se essa última hipótese se realiza, se a questão constitucional é resolvida de modo definitivo antes da sentença final da causa, com que direito, só por essa circunstância acidental, se há de, neste caso, negar à parte — e não só à parte, mas também à soberania federal que o recurso extraor-dinário tem por fim defender — o remédio que a Constituição estabelece para todos os casos em que a Justiça do Estado julgue em última instância aquela questão? Simplesmente porque aconteceu não se decidir ao mesmo tempo a questão de direito privado? Mas que é que tem com isso o Supremo Tribunal? A matéria de direito privado é de todo indiferente ao objetivo do recurso extraor-dinário, tanto que é defeso ao Supremo Tribunal julgá-la (Regimento, art. 902); o que interessa ao Supremo Tribunal é unicamente o caso de validade da lei ou da constitucionalidade do ato, porque é só aí que a sentença do Estado pode co-lidir com as prerrogativas da União.

O recurso extraordinário tem em mira evitar que, com prejuízo da uni-dade do direito nacional e ofensa da soberania legislativa da República, uma lei federal seja declarada revogada sem o estar, ou seja, tido por válido um ato

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do governo local, que infrinja a Constituição. Eis por que, em o nosso regímen, não se pode conceber uma sentença com tais dispositivos que não esteja sujeita à revisão do Supremo Tribunal, a quem cabe, no sistema do Estatuto Federal de 24 de fevereiro, dizer a última palavra em todas as questões constitucionais que se suscitarem nas Justiças da República.

Ora, sendo assim, que importa ao caso que essa sentença seja proferida em um mero incidente ou o seja na causa principal? Que importa que, além do ponto constitucional, ela julgue também e ao mesmo tempo a questão do direito comum? Uma sentença local declarando ab-rogada uma lei da União ou válido um ato do Estado cuja constitucionalidade se contesta? É de última instância essa sentença? Não pode mais o tribunal que a proferiu ou outro qualquer dentro do Estado modificá-la? É quanto basta para que o Supremo Tribunal, uma vez provocado, possa e deva intervir.

E, se não fosse assim, chegaríamos à conseqüência de que aos Estados é lícito julgar soberanamente tais assuntos, contanto que o façam em meros inci-dentes processuais; conseqüência inadmissível, porque faria uma distinção que se não contém, nem na letra, nem no espírito do texto constitucional e antes lhe repugna; porque abriria uma exceção injustificável ao princípio que o legisla-dor, em defesa da Constituição e das atribuições do Congresso Nacional, esta-beleceu em termos absolutos; porque conferiria, em suma, aos Estados, a quem pertence a feitura das leis do processo, a faculdade de restringir arbitrariamente por meio dessas leis a admissibilidade de recurso.

Nem compreendo como se possa notar diferença, no tocante aos al-tíssimos interesses que esse remédio jurídico procura resguardar, entre uma sentença de agravo que definitivamente julga revogada uma lei federal e uma sentença de apelação que definitivamente decide a mesma coisa. Se esta não pode subsistir, porque ofende a soberania e atribuições privativas dos pode-res federais, como há de prevalecer a primeira, que incorre na mesmíssima censura? Acaso a ofensa feita a essa soberania e atribuições deixa de sê-lo só porque a sentença, embora definitiva para o caso, é uma sentença de agravo? Estranha doutrina esta em que o Estado federado é obrigado a respeitar as leis da União nas sentenças de apelação, mas nas de agravo pode violá-las a seu ta-lante, que ninguém lhe irá às mãos!

Objeta-se que a sentença recorrida não pôs termo ao incidente. Mas qual era o incidente? Saber se os recorrentes estavam ou não obrigados a prestar fiança antes de iniciada a causa e independentemente de pedido do réu. Pois não foi isso mesmo o que aquela sentença julgou do modo definitivo? Como dizer então que ela não terminou o incidente?

Resolvendo este incidente, o Supremo Tribunal de Pernambuco decidiu em última instância duas questões constitucionais: 1ª, que a Lei federal de 10

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Ministro Epitacio Pessôa

de julho de 1850 está revogada pelo Decreto estadual de 29 de outubro de 1895; 2ª, que este decreto, duas vezes acoimado de infringente da Constituição da República, é um ato perfeitamente válido. São justamente as duas hipóteses do art. 59, § 1º, da Constituição.

Não obstante, o Supremo Tribunal entendeu que não devia tomar conhe-cimento do recurso.

Qual a conseqüência de sua decisão? A conseqüência é que a sentença da Justiça do Estado fica subsistindo definitivamente, em seu inteiro vigor. Temos, pois, uma lei vigente da União declarada revogada, e um decreto inconstitucio-nal do Governo do Estado julgado válido, por um ato exclusivo de um poder local, sem que tenha homologado este ato o Supremo Tribunal, a quem, quando provocado, como foi agora, cabe pela Constituição o direito, mas não só o di-reito, como também o dever de resolver em última instância o conflito.

Pergunto: é admissível isso no sistema constitucional do Brasil?Dir-se-á, entretanto, e foi dito por ocasião da discussão, que o Supremo

Tribunal conhecerá da espécie no recurso extraordinário que a parte interpu-ser mais tarde, depois de julgada a causa principal. Mas nessa causa não ha-verá mais possibilidade de ressurgir a dúvida constitucional agora levantada. Decidido, como foi, que os recorrentes são obrigados a prestar a fiança às custas antes de qualquer procedimento e independentemente de solicitação do réu, prestada a fiança e proposto o feito, a que viria renovar-se a discussão sobre essa matéria? Um dos requisitos do recurso extraordinário é também que a questão constitucional tenha sido suscitada realmente e a propósito. Assim, nem na causa principal se discutirá mais o assunto, nem deste, portanto, se terá que ocupar mais a sentença respectiva. Nessas condições, de que sentença se inter-porá então o recurso? Da de agravo? Não, estaria fora do prazo. Da de apelação? Também não, que nenhuma questão constitucional aí se resolveu. Ficaria assim a parte, em última análise, privada de um recurso que o Tribunal em rigor con-siderara admissível, pois apenas o reputara inoportuno.

Diz o acórdão que a sentença recorrida não declarou revogada a lei de 10 de julho de 1850, tanto que nela se fundou, em combinação com o regimento de custas do Estado.

Mas, em primeiro lugar, não há combinação possível entre esses dois atos, pois ao passo que o primeiro torna a prestação da fiança dependente de requerimento do réu, o segundo, como entendeu a Justiça de Pernambuco, a declara prévia e obrigatória, queira-a ou não a parte acionada. Em segundo lugar, a sentença recorrida não é a do Juiz de primeira instância, mas a do Superior Tribunal de Justiça, e esta confirma aquela pelos seus fundamentos e os da contraminuta de fl. 75. Ora, esta contraminuta, depois de se referir à Ord. L. 3º, Tít. 20, § 6º, e ao Decreto de 10 de julho de 1850, diz, com todas as

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letras: “Essa ordenação bem como o citado decreto tratam do autor requerido, isto é, estabelecem o caso de ser a fiança, a que ele é obrigado, requerida pelo réu. O regimento de custas, porém, no mencionado art. 51 aboliu nessa parte o disposto na legislação citada.”

Ninguém contesta, como parece acreditar o acórdão, que os regimentos de custas sejam em princípio da competência dos Estados. O que os recor-rentes afirmam é que tais atos não podem conter preceitos de caráter subs-tantivo, reservados aos poderes da União, ou mesmo, quando expedidos pelo governador do Estado, disposições processuais da alçada exclusiva do Poder Legislativo local.

Afigura-se ainda ao acórdão que o Decreto Legislativo de 10 de julho de 1850 é uma lei processual, e, conseqüentemente, revogável pela legislatura do Estado.

Se o argumento procedesse, seria motivo para negar-se ao recurso o fundamento da letra a do art. 59 da Constituição, que, de fato, só compreende as leis federais substantivas; não excluiria, porém, o fundamento da letra b, também invocado pelos recorrentes, sob a alegação de que o ato local (aliás, do governador e não da legislatura) é antagônico com a Constituição da República.

Mas a verdade é que a fiança às custas não é matéria meramente pro-cessual.

A lei substantiva confere o direito, com ou sem restrições; a lei proces-sual limita-se a dar a forma, o modo de exercício desse direito, tal qual a lei substantiva o concedeu.

Por outra: a lei substantiva outorga o direito de ação; a lei processual pres-creve as regras segundo as quais esse direito se pode tornar efetivo, mas efetivo em toda a sua natural extensão, se foi conferido sem limitações, ou, no caso contrário, apenas com as restrições que a lei substantiva mesma estabeleceu.

Ora, a União dá ao estrangeiro ou nacional residente fora do País o direito de estar em juízo, de demandar perante os tribunais brasileiros.

Que pode fazer o Estado? Unicamente promulgar normas para o exercí-cio desse direito, com a extensão exata em que foi concedido, nem mais nem menos.

Vem, entretanto, o Estado de Pernambuco e diz: “Sim, o estrangeiro ou nacional naquelas condições tem esse direito; mas nos meus tribunais só o exer-cerá se prestar previamente uma fiança.”

Seria isso definir o processo, a maneira de exercício desse direito? Evidentemente não. É, pelo contrário, restringir o direito mesmo antes de se pôr em atividade, antes de entrar em ação. É limitar um direito que a União

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Ministro Epitacio Pessôa

concedeu ilimitado. É tornar condicional um direito que a União conferiu sem condição alguma. E não é só “impor uma condição ao estrangeiro”, como se exige; é mais do que isso, é privar do direito de ação a todos os que não preen-cherem aquela condição.

Podem chegar até aí as faculdades do Estado?Custa admitir uma resposta afirmativa.Se ao Estado é dado criar uma tal restrição, como ela não está subordi-

nada a limites preestabelecidos por uma autoridade superior, e, assim, pode ser mais ou menos ampla segundo o queiram os poderes locais, nada impede que, arvorado, como se arvorou o de Pernambuco, em curador forçado do devedor nacional, exija que o credor afiance não somente as custas simples, mas o tresdobro delas, pois o pedido pode ser malicioso; e mais o dobro do valor da dívida, que é possível já tenha sido paga; e ainda todos os danos e prejuízos que do processo possam resultar para o réu, no só interesse de que se criou aquele instituto. E então convenhamos logo, sem cerimônia, em reco-nhecer no Estado o poder de, por meios indiretos, anular direitos conferidos pela União.

Na Alemanha, que não é uma simples federação, mas uma confederação, a fiança às custas é matéria reservada aos poderes do Império (Labaud, Droit Public de l’Empire, p. 406).

Não é realmente curioso que aquilo que na Alemanha se recusa a ver-dadeiros Estados soberanos, queiramos nós no Brasil prodigalizar a meros Estados autônomos?

Não é somente isso. A cautio judicatum solvi, como uma limitação que é à capacidade do estrangeiro de estar em juízo, compreende-se naturalmente na órbita de ação do direito internacional privado. É matéria por sua própria ín-dole e alcance destinada a ser, e tem sido inúmeras vezes, objeto de convenções internacionais.

Pretenderá o Supremo Tribunal doar também ao Estado de Pernambuco o direito de celebrar ajustes com as potências estrangeiras?

A França, por exemplo, tem realizado acordos desta natureza com várias federações: abra-se qualquer compêndio francês de direito internacional pri-vado e ter-se-á disto a prova.

Pois bem, pergunta-se ao Governo francês com quem se tem entendido para a efetuação desses tratados, se com o Governo geral dessas federações, único que pode legislar sobre o assunto com o caráter de generalidade e uni-formidade que as relações internacionais reclamam, ou se com o Governo dos Estados federados.

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Memória Jurisprudencial

Insustentável, portanto, é a opinião de que a Lei de 10 de julho de 1850 tem feição meramente processual. Ela encerra uma restrição que só pode ser feita pela mesma autoridade a quem compete outorgar esse direito — o Congresso Legislativo da União.

Mas, se aquela lei fosse processual, não seria isso motivo bastante, como já disse, para se repelir o recurso, que invoca também em seu apoio o dispositivo da letra b do art. 59 da Constituição.

Quanto a esse fundamento, não se contesta (nem seria isso possível, em face dos autos) que os recorrentes invocaram em sua defesa a inconstitucionali-dade de um ato do Governo local, já por invadir a esfera de ação do Congresso Nacional, já por ter sido expedido por delegação do Poder Legislativo do Estado e ser até exorbitante dessa delegação, e o Superior Tribunal de Pernambuco con-siderou válido o ato impugnado.

A única razão que levou o Supremo Tribunal a recusar esse fundamento foi o não considerar definitiva a sentença da Justiça do Estado.

Ora, que esta sentença é definitiva para o fim do recurso extraordinário, presumo tê-lo claramente demonstrado.

Em conclusão, o presente recurso extraordinário enquadra-se perfeita-mente em qualquer das disposições do art. 59, § 1º, da Constituição.

Não devia, por conseguinte, o Supremo Tribunal repeli-lo preliminar-mente, como fez. Nesse sentido foi o meu voto. — Ribeiro de Almeida. De acordo com o voto supra. — Alberto Torres. De acordo com o Ministro Epitacio Pessôa. — Guimarães Natal. Vencido, de inteiro acordo com o voto do Ministro Epitacio Pessôa.

O caso é evidentemente de recurso extraordinário: sentença de última instância da Justiça local (§ 1º do art. 59 da Constituição), decidindo matéria constitucional, sobre a qual se questionou nos autos, e declarando inaplicável uma lei federal (letra a) e válido um decreto do Poder Executivo estadual, du-plamente argüido contrário à Constituição Federal (letra b), sentença que, se não é terminativa do feito, cláusula não imposta pelo § 1º do art. 59 citado, o é da questão constitucional controvertida, que não mais, e sob pretexto algum, poderá ser trazida pelo autor na ação ao conhecimento do Supremo Tribunal, que assim, pelo voto vencedor, abdicou uma das suas mais altas atribuições constitucionais, tão importante que bastaria, por si só, para explicar a criação do Supremo Tribunal e a sua existência no nosso mecanismo político federa-tivo. — Pindahiba de Mattos. De acordo com o Ministro Epitacio Pessôa. — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

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Ministro Epitacio Pessôa

RECURSO EXTRAORDINáRIO 491

O farmacêutico Rodolfo Marcos Teófilo propôs contra o Estado do Ceará uma ação ordinária em que alega que nomeado professor de Ciências Naturais da Escola Normal em 1885, foi, em 1891, transferido com aquiescência sua para a cadeira de Física e Química do Liceu do Ceará, lugar, como aquele, vitalício, e em 1894, ainda com seu assentimento, para a cadeira de Meteorologia, Mineralogia e Geologia do mesmo estabelecimento; que, suprimida em 1899 esta última cadeira, ficou em dis-ponibilidade com todos os vencimentos; que em 1905, reformando-se mais uma vez o Liceu do Ceará, designou-lhe o Governo a cadeira de Lógica para nela ter exercí-cio; que, não conhecendo essa disciplina, a qual nem sequer fazia parte, no tempo em que se formou, dos preparatórios exigidos para o curso de farmácia, e sendo ina-movível, como vitalício que era, reclamou contra essa designação, prontificando-se a aceitar qualquer outra cadeira de sua competência, como, por exemplo, a de História Natural, à qual fora incorporada a de Geologia anteriormente por ele regida, que es-tava vaga; que as suas reclamações não foram atendidas e, por ato de 17 de julho de 1905, o Governo do Ceará declarou vaga a sua cadeira e cassou-lhe os vencimentos, fundando-se para isso no Regulamento do Liceu, arts. 95, 99 e 165.

Reputando contrários à Constituição do Estado e também à da República, art. 74, o ato de sua designação para a cadeira de Lógica e o da suspensão pos-terior de seus vencimentos, bem como os artigos do Regulamento em que se fundou o Governo do Estado, pede que essa nulidade seja declarada pelo Poder Judiciário para os efeitos do direito.

Junta os seguintes documentos: nomeação de 1885; transferências de 1891 e 1894; designação para a cadeira de Lógica, etc.

Defende-se o Estado (fl. 15) com as seguintes razões: que ao Governo cabe a atribuição de atender ao interesse de todos os ramos do serviço público, entre os quais sobreleva a instrução; que lhe compete também a faculdade de aproveitar os serviços do funcionário onde, conforme o seu critério, entender mais conveniente; que assim tem entendido também o Governo da União, que, em 1898, suprimido o curso anexo de São Paulo, designou vários professores para terem exercício no Ginásio Nacional; que não está ad libitum do profes-sor escolher a cadeira que lhe convenha; que o A. recusou a designação para a cadeira de Lógica, à vista do que, de acordo com o Regulamento do Liceu, o Governo privou-o dos vencimentos declarando vaga a dita cadeira; que, desta sorte, o Governo não infringiu o art. 74 da Constituição Federal, que só garante a inamovibilidade dos empregados vitalícios quando estes estão em exercício, o que não acontecia com o A., que estava em disponibilidade; que, finalmente, também não violou a Constituição do Estado quando garante os cargos vitalí-cios, porque o A. continua de posse de seu cargo, isto é, continua a ser professor vitalício, apenas não recebe os vencimentos atribuídos a esse emprego.

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Memória Jurisprudencial

Julgada improcedente a ação na primeira instância (fl. 54), foi esta sen-tença confirmada pelo acórdão de fl. 77v., que também declarou serem constitu-cionais, em face da Constituição da União, os atos e regulamentos impugnados (A ler.).

Embargado esse acórdão, proferido por três votos contra dois, o Superior Tribunal do Ceará manteve a sua decisão pelo acórdão de fl. 98v.

Desse acórdão foi interposto em tempo o recurso extraordinário com fundamento no art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, recurso que foi aqui re-cebido em tempo e sobre o qual se manifestou assim o M. M. Procurador da República — fl. 119.

Preliminarmente, anulo o processo, por incompetência da Justiça local para o caso. O autor funda a sua ação no art. 74 da Constituição Federal, veri-ficando-se, portanto, a hipótese do art. 60, letra a, conforme tem sido julgado pelo Tribunal, notadamente nos Acórdãos 1.197, de 10 de novembro de 1906 (D.to 102, 38), e 953, de agosto de 1907, sobre casos idênticos, isto é, referentes a ações fundadas no mesmo dispositivo constitucional. (É verdade que a parte não funda o seu direito exclusiva nem mesmo primordialmente naquele disposi-tivo como nos acórdãos citados, mas antes na Constituição do Estado.)

O caso é de recurso. Discutiu-se nos autos a validade, perante a Consti-tuição Federal, dos arts. 99 e 165 do Regulamento de 5 de maio de 1904, ex-pedido para o Liceu do Ceará, a dos atos do Governo do Estado que, fundado neles, designou o recorrente, ex-professor de Ciências Naturais, para a cadeira de Lógica e posteriormente, como ele recusasse essa cadeira, o privou dos seus vencimentos, e a sentença de última instância da Justiça do Estado declarou vá-lidos os atos impugnados. É o caso da 1etra b do art. 59, § 1º, da Constituição.

O citado regulamento dispõe o seguinte: “Art. 165. Por ocasião de ser promulgado o presente Regulamento, poderá o Presidente do Estado prover livremente as cadeiras atualmente vagas, e transferir, conforme as exigências do mesmo, de uma para outras cadeiras os atuais professores.” “Art. 99. O pro-fessor em disponibilidade que, sendo designado para reger uma cadeira, não aceitar, incorrerá na perda dos vencimentos.

De meritis, dou provimento ao recurso. O ato do Presidente do Ceará, privando o recorrente dos vencimentos do seu cargo vitalício, é duplamente inconstitucional: atenta contra o art. 74 da Constituição da República, e contra o art. 11, 3.

Em um emprego público qualquer, há a distinguir o serviço a que está obri-gado o funcionário e constitui o direito da sociedade, e o vencimento que remu-nera esse serviço e constitui o direito do empregado; em bem prestar o primeiro está o dever deste, em pagar pontualmente o segundo, está o dever daquela. Se

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Ministro Epitacio Pessôa

o emprego é vitalício, o ato da nomeação seguido da posse vincula desde logo o Governo à obrigação de pagar os vencimentos do cargo ao nomeado enquanto este viver, ou enquanto o não perder por ato próprio previsto em lei, mas, escusado é dizê-lo, em lei constitucional: é essa uma das cláusulas sob as quais se presume ter sido aceita a nomeação, uma das promessas do poder público implicitamente compreendida no título mesmo da investidura. O Governo pode suprimir o em-prego, se lhe apraz, e por essa forma renunciar ao seu direito; mas nem por isso se forrará à sua obrigação, por isso mesmo que o devedor de uma obrigação não se pode eximir, por ato próprio e exclusivo, ao seu cumprimento. O contrário seria, além disso, tornar puramente nominal o predicamento da vitaliciedade, pois fica-ria ao arbítrio da administração burlá-lo, sempre que quisesse, abolindo a função. Concluo, pois, à vista dos princípios expostos (que são de verdade incontestável) que, desde o momento em que um cidadão é investido em um emprego vitalício, adquire direito, por toda a sua vida, aos proventos ligados a esse emprego, os quais passam desde então a fazer parte do seu patrimônio jurídico. Esse direito é garantido pela Constituição da República, arts. 11, 3 e 74; conseguintemente, só pode extinguir-se por motivos que não ofendam esses dispositivos. (As conside-rações acima são extraídas do meu Acórdão 1.197, de 10 de novembro de 1906, D.to 102, p. 38).

Nomeado professor de Ciências Naturais, a obrigação que o recorrente contraiu para com o poder público foi de ensinar Ciências Naturais. Assim como ele não podia exigir do Governo maiores vencimentos do que os que a lei atribuía ao seu emprego, assim também o Governo não podia exigir dele que ensinasse mais ou coisa diversa daquilo que constituía a matéria e os encargos de sua cadeira. Para isso seria mister a sua anuência, como para o aumento dos seus vencimentos se tornava necessário o voto do Poder Legislativo. Assim, transferido a princípio para a cadeira de Física e Química e mais tarde para a de Mineralogia, Meteorologia e Geologia, o recorrente aceitou a designação, tanto que entrou nas reclamações a professar essas disciplinas, e assim o ato do Governo se tornou legal. Designado para a cadeira de Lógica, recusou. Recusou, não caprichosamente, mas explicando que essa matéria não tinha a menor afi-nidade com as que ensinara desde 25 anos; que nem sequer ela fazia parte do curso de preparatórios de Farmácia, ao tempo em que se formou; que, portanto, não a conhecia; que estava pronto a lecionar qualquer outra que tivesse relações com a sua antiga cadeira, como, por exemplo, a de História Natural, à qual se incorporara a matéria da sua cadeira de Geologia, e estava vaga. Estava no seu direito: desde que o recorrente não dera jamais provas oficiais de competência em Lógica, não podia ser forçado a ensinar Lógica. Briga com o senso comum a pretensão de obrigar alguém a ensinar o que não sabe. Mas a todas as pondera-ções do recorrente foi surdo o Governo que, fundando-se no já citado art. 99 do Regulamento do Liceu, o privou dos vencimentos de seu emprego.

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Memória Jurisprudencial

Mas, assim procedendo, o Governo violou por um motivo ilegal e ile-gítimo o direito de vitaliciedade do recorrente, direito que consiste principal-mente em receber, durante a vida e salvo o caso de jubilação, os vencimentos do cargo. Que o fundamento do ato do Governo é ilegítimo, fato é que se não pode contestar. Se o Governo pudesse, a seu livre alvedrio, designar as funções dos professores, seria uma burla a vitaliciedade destes: nada mais fácil do que despojá-los dos seus cargos, obrigando-os a ensinar matérias que eles não sou-bessem nem tivessem razão de saber.

O ato do Governo do Ceará fere o art. 74 da Constituição da República, o qual garante em toda a sua plenitude os cargos inamovíveis. Esse artigo, inserto na Declaração de Direitos, é, como todos os que aí vêm, exceto os que se refe-rem a instituições puramente federais como o Exército e a Armada, obrigatório para todos os Estados da República (Acórdão 177, de 4 de dezembro de 1899, J. 165). A Constituição não obriga nem pode obrigar o Estado a criar empregos vitalícios (salvo os magistrados, por força dos arts. 15 e 63); mas, se ele os cria, é obrigado a mantê-los em toda a sua integridade.

Invoca-se João Barbalho para dizer que o art. 74 só garante os cargos vitalícios criados pela própria Constituição: juízes, membros do Tribunal de Contas, militares, membros do Supremo Tribunal Militar e, conseguinte-mente, se o emprego vitalício é criado por uma lei ordinária, outra lei ordi-nária pode suprimi-lo. É verdade. Mas o que João Barbalho quer dizer é que os cargos declarados vitalícios pela Constituição não podem ser suprimidos por lei ordinária, são garantidos em toda a sua plenitude perpetuamente; mas os criados por lei ordinária podem ser extintos quando assim entende o le-gislador ordinário. Mas isso não significa que a lei ordinária possa suprimir o cargo com prejuízo ao serventuário que o ocupa, pois se tal fizesse, infrin-giria o art. 11, 3, da Constituição, que garante os direitos adquiridos contra leis retroativas. Assim, o Congresso pode extinguir o emprego vitalício, mas com ressalva dos direitos de quem o exerce — princípio esse já proclamado no Acórdão 1.197, citado.

O art. 74 era o § 4º duma emenda apresentada pelo Deputado Retumba e que constitui hoje o art. 87. Foi aprovada essa emenda; mas, “não se referindo ela nesse § 4º somente a patentes e postos militares, porém ainda e generica-mente a cargos inamovíveis sem distinção, a comissão de redação transferiu esse parágrafo para a Declaração de Direitos (J. Barbalho, p. 341). Por esse modo, parece ter sido intenção da Constituinte torná-lo obrigatório em toda a República.

Mas, quando o ato do Governo do Ceará não infringisse o art. 74 da Cons-tituição, ele seria contrário ao art. 11, 3. O recorrente era funcionário vitalício por todas as leis da antiga Pro.ª a (sic) do atual Estado referentes ao ensino e até

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Ministro Epitacio Pessôa

por disposição expressa da Constituição estadual, art. 133. Essa vitaliciedade era para ele um direito adquirido: qualquer lei ou ato que extinga esse direito é de natureza retroativa e, portanto, proibido pela Constituição da República.

O argumento de que o Governo não tirou ao recorrente o seu lugar de professor, mas apenas os vencimentos, e, conseguintemente, não feriu essa vita-liciedade, seria um sofisma se não fosse um escárnio. São os vencimentos, como já dissemos, o que principalmente constitui o direito dos empregados vitalícios e a obrigação do Estado corresponde a esse direito, que não pode consistir no simples título honorífico de professor.

Apadrinha-se o Governo com o art. 99 do Regulamento do Liceu. Mas esse regulamento, aliás, feito pelo próprio Governo, só pode ser entendido como referindo-se a uma cadeira para a qual o professor em disponibilidade tenha dado provas oficiais de competência. Do contrário, será absurdo, porque uma administração zelosa do ensino não pode criar para si a obrigação de desig-nar para uma cadeira um cidadão que não conhece a respectiva disciplina, do mesmo modo que não pode obrigar um professor de consciência e brio a reger uma cadeira de que ele nada sabe.

Invoca ainda o Governo do Ceará o caso dos professores do Curso Anexo à Faculdade de São Paulo que, por ocasião da extinção desse curso, em 1897, foram transferidos para o Ginásio Nacional. Se o fato houvesse ocorrido como o expõe o Governo do Ceará, ainda assim não legitimaria o seu ato, porque um abuso não justifica outro. Mas o fato é muito diferente e vem em apoio das idéias que estou sustentando. O Decreto 2.857, de 30 de março de 98, aumentou no Curso do Ginásio Nacional algumas cadeiras e mandou que para elas fossem designados professores dos cursos anexos às Faculdades do Recife e de São Paulo, que tinham sido extintos. Mas esses professores, nos termos do citado decreto, viriam reger as mesmas cadeiras que lecionavam nos estabelecimentos extintos. Eis aí o respeito ao direito do professor. Não obstante, como à idéia dum professor vitalício está ligada a da inamovibilidade, a Lei 560, de 31 de dezembro do mesmo ano, art. 7º, revogou aquele dispositivo, declarando que os referidos professores não eram obrigados a aceitar nomeações ou comissão fora da sede dos seus antigos estabelecimentos.

As tradições do Governo da União são muito diversas das que lhe imputa o Estado do Ceará.

Haja vista, além do caso Capistrano de Abreu (fl. 88), a Lei 463, de 25 de novembro de 1897, art. 4º, em que se preceitua que os docentes sejam apro-veitados segundo as suas aptidões e os Decs. 3.901 e 3.902, de 12 de janeiro de 1901, art. 2º e arts. 5º, 6º e 7º das Disposições Transitórias; Lei 3.903, da mesma data, art. 5º; 3.926, de 16 de fevereiro, art. 4º; 3.987, de 13 de abril, art. 2º; nos quais, todos, se reconhece ao docente em disponibilidade o direito

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Memória Jurisprudencial

de aceitar ou não a cadeira vaga, salvo se sobre a disciplina dessa cadeira hou-ver dado provas oficiais de competência.

No meu parecer sobre a ACi 1.069 (Ulpiano) já eu reconhecia ao lente o direito de se recusar ao ensino duma cadeira em que se não habilitara, e ao Governo o dever, nesse caso, de continuar a pagar-lhe os vencimentos integrais.

Dou, pois, provimento ao recurso para declarar nulo o ato do Governo do Ceará que suspendeu os vencimentos do recorrente.

6 de setembro de 1907.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 502

A recorrente funda o seu recurso na letra b do art. 59, § 1º, da Constituição, explicando que nos autos (petição inicial, alegações de fls. 290v., 452v. e 508) se discutiu a constitucionalidade da Lei municipal da Capital de São Paulo 304, de 15 de julho de 1897, e a decisão da junta do Estado, em última instância, foi pela constitucionalidade dessa lei.

Na petição inicial nada há que autorize a afirmativa da recorrente. E as alegações de fl. 452v. nada mais são do que uma duplicata das de fl. 290v. Restam, pois, como prova de que no correr da causa se contestou a constitucio-nalidade da citada lei municipal, estas últimas alegações e as de fl. 508.

Nas de fl. 209v., a recorrente, depois de discutir abundantemente o mérito da questão, escreveu o seguinte:

O privilégio França Leite era propriedade da autora: inutilizá-lo por meio de outra concessão importou em desapropriá-lo, por verdadeira ou fictícia utilidade pública. Ora, em casos de verdadeira utilidade pública, a Constituição Federal admite a desapropriação, mas mediante prévia indenização.

À fl. 508, nas últimas linhas da contestação de embargos de fl. 490, pon-derou a recorrente:

Além do disposto nessa lei, a concessão Gualco e Sousa era e é nula por ofender direitos adquiridos; a respectiva lei não pode prevalecer diante do art. 11 nº 3 da Constituição que não permite leis retroativas.

E só.Nas ações em que se defendem direitos ofendidos por leis inconstitucio-

nais, o fundamento da inconstitucionalidade é, por sua natureza mesma, o fun-damento principal, podendo até ser o único, e constitui matéria por assim dizer preliminar ou prejudicial. Compreende-se a razão. Desde que a lei infringe a

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Ministro Epitacio Pessôa

Carta Constitucional, tudo mais quanto se possa dizer dela, a sua inoportuni-dade, inconveniência, inaplicabilidade, etc., será supérfluo e escusado.

Ora, o que se observa neste feito é que a recorrente nunca levantou pro-priamente a questão da inconstitucionalidade da lei; discutia longa, ardorosa e exaustivamente todos os outros aspectos do assunto, e só ao fechar as suas últimas alegações, na primeira e na segunda instância, é que aludiu de passa-gem, frouxa e incidentemente, à incompatibilidade entre o ato municipal e a Constituição da República.

Mas, para fazer jus ao recurso extraordinário, é mister que a parte suscite aberta e claramente a questão constitucional, de modo tal que não possa passar despercebida ao juiz e este seja forçado a se manifestar sobre ela, ou a deixar pa-tente, não o fazendo, que foi intencionalmente que o não fez, isto é, que foi pro-positadamente que deixou de dizer da validade da lei ou se recusou a aplicá-la.

Isso é que é o regular.Em todo caso, como a argüição da inconstitucionalidade não deixou de

ser feita e a sentença de última instância da Justiça do Estado parece tê-la consi-derado improcedente, amparando o direito fundado na lei impugnada, e como, por outro lado, na expressão constitucional leis dos Governos dos Estados se compreendem as leis municipais (Acórdão 373, de 5 de outubro de 1905), não me oponho a que o Tribunal conheça preliminarmente do recurso.

Fazendo-o, porém, penso que lhe deve negar provimento.A lei em discussão não é retroativa, não feriu o direito de propriedade da

recorrente, outorgado pelo contrato de fl. 25. A concessão feita por este contrato é diversa e independente da que foi dada por aquela lei: tanto basta para excluir toda idéia de colisão entre uma e outra.

Com efeito, o que a cláusula 27ª do contrato de fl. 25 proíbe é a incorpo-ração de outras companhias “para o mesmo fim e nas mesmas direções”.

Ora, qual o fim do privilégio? Di-lo o contrato logo em princípio, em frase cuja intenção é a que resulta do sentido natural e comum das palavras e não há mister de perscrutar por meio de hipóteses mais ou menos artificiosas: “(...) Compareceu o engenheiro F. a fim de contratar a construção de uma linha de diligências por trilhos de ferro, tirada por animais.”

Di-lo ainda a cláusula 1ª:O Governo concede ao engenheiro F. privilégio exclusivo (...)

Para que fim?(...) para estabelecer uma ou mais linhas de diligências por trilhos de

ferro, tiradas por animais.

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Memória Jurisprudencial

Essa condição — tirada por animais — é evidentemente de natureza res-trita; do contrário, o Governo se teria limitado a dizer: (...) concede privilégio para estabelecer linha de diligências por trilhos de ferro em tais e tais direções, deixando ao concessionário a escolha do sistema de tração.

E quais as direções? “As estações dos caminhos de ferro e dos subúrbios” (cláusula 1ª) indicadas na cláusula 7ª, e mais na cláusula 5ª do contrato de fl. 32 e na cláusula 1ª do de fl. 30. E somente essas, desde que os antecessores da re-corrente deixaram expirar sem aproveitá-lo o prazo para a instalação de outras linhas (cláusulas 3ª, 9ª e 10ª do contrato de fl. 25).

Ora, a lei da Câmara Municipal de São Paulo concedeu a Gualco e Sousa, de quem é concessionária a companhia recorrida, privilégio para a construção de linhas de bondes por tração elétrica e para outros pontos que não aqueles.

Logo, não violou o direito adquirido com o contrato de fl. 25, transferido, aliás, sem autorização do Governo, à recorrente; não transgrediu a cláusula 27ª desse contrato, uma vez que o fim da nova concessão não é a construção de li-nhas de tração animal nas mesmas direções; em uma palavra, não infringiu o art. 11, 3, da Constituição Federal.

Diz-se, porém, que a cláusula 8ª, § 1º, previu, em benefício do concessio-nário, a introdução de quaisquer aperfeiçoamentos na tração dos carros.

Não é exato. O que a citada cláusula diz é o seguinte:No estabelecimento das linhas, serão observadas as seguintes condições

técnicas:§ 1º O sistema de carris de ferro será adequado a esse gênero de vias de

transporte, com os melhoramentos mais recentes que se houverem feito.

Eis aí, trata-se apenas de melhoramentos do sistema de trilhos e, o que é mais, de melhoramentos já conhecidos ou que se descobrissem até a instalação do serviço, e não dos que se viessem a inventar posteriormente a essa época, momento este em que ou as linhas já estariam estabelecidas ou a concessão já teria caducado.

A própria recorrente, aliás, já reconheceu mais de uma vez que o seu pri-vilégio (ou mesmo o seu direito de preferência, com o qual já parece contentar-se) não é tão amplo como apregoa, tanto que, por ter direito às linhas de bondes concedidas depois das suas, se julgou no dever de comprá-las.

Mais do que isso. A 13 de setembro de 1898, isto é, mais de um ano depois da lei impugnada, a recorrente assinou o documento de fl. 153, unificando todos os seus contratos, e nele figura a seguinte cláusula:

35ª Ficam salvos os direitos adquiridos por terceiros, até a data deste contrato, para a construção de linhas de carris de ferro neste município.

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Ministro Epitacio Pessôa

Ora, esses terceiros eram justamente os antecessores da companhia re-corrida, Gualco e Sousa, pois as outras concessões haviam sido compradas pela recorrente.

Assim que é essa mesma quem se incumbe de mostrar que a lei, cuja constitucionalidade contesta, não lhe feriu realmente nenhum direito adquirido, ou, o que vale o mesmo, não infringiu o art. 11, 3, combinado com o art. 72, § 17, da Constituição da República.

31 de agosto de 1907.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 518

Os recorrentes, eleitores de Porto Alegre, recorreram para o Superior Tribunal do Estado, de acordo com a Lei ali vigente 58, de 12 de março de 1907, art. 12, do ato da comissão de alistamento que efetuou no Estado os trabalhos de recrutamento dos eleitores, e alegaram no seu recurso, além de razões de fato que não vêm ao caso, o ser a lei estadual contrária à Lei federal 1.269, de 15 de novembro de 1904, que consagrou o princípio da unidade de alistamento para todo o Brasil.

O Superior Tribunal não conheceu do recurso por não o autorizarem os fatos alegados, e nada disse quanto à questão constitucional suscitada, admi-tindo assim, implicitamente, mas de modo indubitável, a conformidade da lei do Estado com a lei da União.

Preliminarmente admito o recurso, com fundamento no art. 59, § 1º, le-tra b (e não a, como pretende o Procurador-Geral da República).

De meritis — O Estado pretende: que a Constituição Federal implici-tamente (art. 65, § 2º) lhe assegura a competência de regular as condições e o processo da eleição de seus cargos (fl. 120), que todas as constituições estaduais consagram esse direito, sem que, durante treze anos, houvesse o menor protesto; que o art. 34, 22, da Constituição da República dá compe-tência ao Congresso para regular as condições e processo das eleições fe-derais, donde resulta a dos Estados para as eleições estaduais (fl. 122); que o art. 70, § 1º, dispondo que “não podem alistar-se eleitores para eleições federais ou para as dos Estados”, mostra que, no pensamento do legislador constituinte, devia haver um alistamento para as eleições federais diferente ou distinto do alistamento para as eleições estaduais, do contrário, se uma só lei devesse regular o alistamento, escusada seria a expressão “ou para os Estados” (fl. 122v.).

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Memória Jurisprudencial

Dou provimento ao recurso para declarar que a lei rio-grandense, na parte relativa ao alistamento, não deve ser executada, porque é contrária a uma lei da União, perfeitamente constitucional.

O direito de voto, o direito eleitoral, a capacidade política, só a União pode concedê-la, como fez no art. 70 da Constituição; por conseguinte, só ela tem direito de verificar e apurar quais os cidadãos que estão no caso de recebe-rem essa outorga federal. Deixar isso aos Estados e aos Municípios seria expor esse direito aos maiores perigos, oriundos da diversidade das legislações locais, das lutas partidárias muito mais intensas nas pequenas circunscrições, das ve-leidades oligárquicas dos mandões etc.

A cidadania, como a nacionalidade, é matéria, por sua própria natureza, da exclusiva alçada da União. Não há no Brasil cidadão rio-grandense nem cida-dão paulista; só há cidadãos brasileiros. E cidadãos brasileiros somente podem sê-lo aqueles que a Constituição Federal declara tais: os Estados não podem ne-gar a esses, nos seus territórios, a qualidade de cidadãos, do mesmo modo que não podem, nos seus territórios, criar outros além dos indicados na Constituição da República. Mas, se os Estados não podem aumentar nem diminuir os cida-dãos, não podem criar novas condições de cidadania nem suprimir as atuais, não podem extinguir nem suspender os direitos de cidadão, em que consiste o direito deles de legislar sobre essa matéria? Considere em copiar literalmente o que dispõe a Constituição Federal. Mas isso não é direito, porque o direito de legislar implica necessariamente a liberdade de criar, suprimir, alterar etc.

Do mesmo modo, a Constituição declara quem é eleitor e quem não pode ser eleitor: são eleitores os maiores de 21 anos; não podem ser eleitores os mendigos, os analfabetos, os praças de pré e os religiosos sujeitos a voto de obediência. Podem os Estados alterar esses preceitos? Podem conceder a capa-cidade eleitoral a outros indivíduos que não os cidadãos maiores de 21 anos, por exemplo, aos menores ou aos estrangeiros? Evidentemente, não. Podem negá-la aos cidadãos de 21 anos ou aos naturalizados? Também não.

Qual é, pois, o direito dos Estados no tocante à capacidade eleitoral?Não pode ser nenhum; em vez de um direito, o que eles têm é o dever de

se adstringir rigorosamente ao que está previsto e regulado na Constituição da República.

Não, dizem, o direito do Estado não está em poder modificar as condições da capacidade eleitoral, mas em exigir que só possam votar nas suas eleições aqueles cuja capacidade for demonstrada perante os seus agentes.

Não pode ser.Desde que o direito de voto é outorgado pela União, é a esta que incumbe

proclamar quais os que dele se acham investidos; é ela que deve verificar quais

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cidadãos que reúnem as condições que ela própria estabeleceu para o gozo dum direito que ela própria criou e conferiu.

Mas, feita essa verificação, reconhecido o direito político do cidadão, proclamado oficialmente (permitam-me dizê-lo, federalmente) esse direito por meio do título eleitoral, não podem os Estados criar limitações, condições ou embaraços de qualquer natureza a esse direito, sob pena de admitirmos este absurdo — que é lícito aos Estados limitarem, condicionarem ou embaraçarem nos seus territórios a própria ação da União Federal. Investido pela União do direito de voto, o cidadão é eleitor em toda a República e, exibindo o seu título, pode votar em qualquer eleição federal, estadual ou municipal, independente de qualquer outro alistamento. E só o investido pela União pode votar, porque só ela pode conferir esse direito.

O que os Estados podem fazer é estabelecer as regras para o exercício desse direito nas eleições locais; é prescrever que os eleitores só possam votar na seção da sua residência, em grupos de cem ou duzentos, de tais a tais horas, em escrutínio secreto ou não, em tantos nomes, assinando tais e tais documen-tos, exibindo os seus títulos etc., etc.

E eis aí perfeitamente definidas e caracterizadas a função da União e a função do Estado em matéria eleitoral. A primeira concede o direito de voto (direito que se autentica com o título), o segundo regula o seu exercício.

É o mesmo que se dá com o direito de ação, jus agendi. A União é quem concede o jus agendi, o Estado não pode dá-lo a outras pessoas que não as favo-recidas pela lei federal, não pode, por exemplo, dá-lo aos menores de quatorze anos; o Estado não pode recusá-lo a alguma daquelas pessoas, por exemplo, aos estrangeiros ou aos condenados; o Estado não pode impor-lhe limitações, decretando, por exemplo, que o interdito recuperando não possa ser empre-gado por quem tenha viciosa a posse; o Estado, finalmente, não pode sujeitá-lo a condições, determinando, por exemplo, que a ação finim refundarum só possa ser exercida por quem tenha a sua propriedade registrada em alguma repartição estadual.

O Estado não pode fazer nada disso. Por quê? Porque seria dar onde a União nega; recusar onde a União dá; limitar e condicionar onde a União não criou limites nem condições; e a autoridade do Estado não se pode sobrepor ou contrapor à da União.

Que pode então fazer o Estado?Pode estabelecer o processo para o exercício de jus agendi; prescrevendo

que as ações serão propostas perante tais juízes, que os recursos serão dirigidos a tais outros, que as dilações serão estas, que as fórmulas serão aquelas etc., etc.

Pois o direito de voto é o jus agendi político.

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Desde que a União o confere e o autentica com o título eleitoral, seria uma incompreensível inversão dos princípios que o Estado pudesse dizer: Sim, vós tendes o direito de voto, mas não podeis exercê-lo nas mesmas eleições sem que eu mesmo verifique se a União falou a verdade ou se mentiu quando atestou nesse título que tínheis as condições de eleitor; sim, vós sois cidadãos brasilei-ros, mas não sois cidadãos estaduais, e pouco me importa que a cidadania seja uma outorga da Nação; sim, vós tendes o direito político do voto, mas eu, qual o subdelegado da comédia, rasgo a Constituição da República e suspendo esse direito político, embora não se verifique nenhuma das hipóteses do art. 71 da mesma Constituição.

Não, não é possível. O Estado não pode fazer nada disso. O Estado é obri-gado a reconhecer e acatar esse direito na mesma extensão com que o conferiu a União; o seu direito vai apenas a regular-lhe o exercício.

O bacharel em direito por uma faculdade da União está apto a exercer as funções próprias de suas letras. A sua capacidade vem da União, em cuja lei se declara que a carta de bacharel é título de aptidão para tais e tais fun-ções. O diploma aí nada mais é do que o atestado público, o reconhecimento oficial dessa capacidade. Ora, que diríamos nós se o Estado dissesse ao bacha-rel: Muito bem, a lei federal vos dá capacidade para ser juiz em qualquer parte da República; mas aqui só o sereis se prestardes um exame de suficiência na mesma Academia? Poderia o Estado fazer isso? Evidentemente não. Como lhe será licito então dizer ao eleitor que ele só poderá exercer o seu direito consti-tucional (atenda-se bem, constitucional), o seu direito constitucional de voto, se provar que tem esse direito perante os seus agentes qualificadores, apesar de a União já ter proclamado, com a entrega do título ao eleitor a existência desse direito? Se o Estado não pode restringir a capacidade forense, se não pode li-mitar a capacidade profissional, por que terá autoridade para impor condições à capacidade política?

É manifesto, pois, que em nosso regímen constitucional os Estados não têm o direito de fazer alistamentos eleitorais, de declarar quais os cidadãos bra-sileiros que em seu território podem ou não exercer o direito de voto. O que eles podem fazer é regular o exercício desse direito nas eleições de caráter local, mas nunca de legislar sobre ele, mas nunca ter a liberdade de reconhecê-lo ou negá-lo a este ou àquele cidadão, conforme ele tenha ou não observado tais ou quais formalidades estatuídas em lei local.

Nem podia deixar de ser assim. Desde que a União estabeleceu como base do sistema o regímen representativo, era da maior conveniência que presidisse à formação do corpo eleitoral a alma mater, a coellula genitrix desse regímen, imprimindo-lhe um caráter de unidade e de pureza tal que se pudesse ter como certo que da mesma fonte, que de uma só fonte (como é razoável tratando-se

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dum só país), provinham todos os representantes, qualquer que fosse o ponto da República em que se verificasse a eleição.

Os argumentos invocados pelos adversários da doutrina que sustento, não me parecem, data venia, de grande valor.

O primeiro é que até agora ninguém pôs em dúvida o direito dos Estados nesse particular, e por isso todas as Constituições estaduais consagraram ex-pressamente esse direito, sem protesto algum, o que mostra que era essa a inter-pretação dada por todos à Constituição da República.

Isso é natural em todo regímen novo. Promulgada uma Constituição, não é possível compreendê-la, interpretá-la e executá-la desde logo em todos os seus pontos, definir nitidamente os poderes e atribuições que confere etc. Passam-se os anos e cada dia se vão descobrindo novos aspectos, novos preceitos implíci-tos, que o espírito do intérprete ou a oportunidade dos fatos não haviam ainda logrado desvendar. É a elasticidade própria das Constituições e das leis sintéti-cas, elasticidade que faria da resumidíssima Constituição americana um código volumoso de preceitos, se acaso nela se introduzissem todos os desenvolvimen-tos que a sua interpretação tem produzido.

No começo da República se terá entendido que os Estados tinham o di-reito de alistar os seus eleitores. Não se terá talvez prestado grande atenção a esse ponto do nosso sistema constitucional, sem dúvida devido à influência do exagerado espírito descentralizador que então dominava e em virtude do qual os Estados, filhos-famílias escapos da tutela dum rigoroso pátrio poder, queriam a todo pretexto mostrar que eram homens emancipados e para prová-lo, usavam e abusavam do que era seu e também do que não lhes pertencia. Correm, porém, os tempos, o sistema vai sendo mais bem compreendido, os Estados vão criando mais juízo, a esfera de ação dos poderes federais e estaduais se vai traçando com mais firmeza e precisão; e quem é que veio tirar aos Estados a faculdade de que eles estavam de posse? Quem é que veio proclamar que o direito de alistar os cidadãos do Brasil é do Brasil e não da Paraíba ou da Bahia? Quem foi? Foram os próprios Estados por meio dos seus representantes na Câmara e dos seus em-baixadores no Senado.

Não há nem pode haver prescrição contra os poderes constitucionais. Durante quatorze anos os Estados estiveram na posse e livre gozo dos terrenos de marinha. Foi isso embaraço a que o Supremo Tribunal declarasse, depois de tão largo espaço de tempo, que tais terrenos pertencem à União?

Como esse, outros exemplos poderia apresentar, se o que fica dito não fosse bastante para mostrar que nada há de estranhável em que agora se recuse aos Estados um direito que os seus representantes lhes reconheceram durante uma dúzia de anos, se são os seus próprios representantes os autores dessa recusa.

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O segundo argumento é que a Constituição da República só dá direito ao Congresso Nacional de regular as condições e processo das eleições federais, donde se conclui, contrario sensu, que os Estados têm o de regular as condições e processo das eleições locais. Mas ninguém contesta esse direito aos Estados. Na expedição que estou fazendo, já o reconheci mais de uma vez, afirmando de modo bem claro, que justamente o que compete aos Estados é regular o exercí-cio do direito de voto nas eleições estaduais, isto é, estabelecer as condições e processo dessas eleições. Somente, no caso que nos ocupa, não se trata de elei-ções, mas de alistamento, donde se vê que não importa ao debate o dispositivo do art. 34, 22.

Mas, diz-se, a palavra condições, desse dispositivo, significa precisa-mente a capacidade eleitoral, donde se segue que o Congresso Nacional le-gisla sobre a capacidade eleitoral para as eleições federais, e os congressos dos Estados para as eleições estaduais. Não há tal. Antes de tudo é preciso assinalar que sobre a capacidade eleitoral propriamente dita nenhum congresso pode legislar, nem nacional nem estadual, pois é matéria regulada diretamente pela Constituição, art. 70.

Em segundo lugar, quando a Constituição se refere às condições da elei-ção para os cargos federais, alude manifestamente às condições de elegibili-dade, às causas de inelegibilidade, às incompatibilidades, etc.

O terceiro argumento é que o art. 70, § 1º, da Constituição, dispondo que não podem ser arbitrados eleitores para as eleições da União nem para as dos Estados tais e tais indivíduos, pressupõe um alistamento para as eleições da União e outro para as eleições dos Estados.

Não há dúvida que, à primeira vista, assim parece. Mas, meditando-se so-bre essa disposição e tendo-se em vista o que até aqui tenho expendido, ver-se-á que o intuito do legislador foi acentuar, por expressões em vigor dispensáveis, a exclusão com que fulminava os indivíduos enumerados no art. 70, § 1º.

Disso temos numerosos exemplos na Constituição. Logo, no art. 11, a Constituição veda aos Estados como à União subvencionar cultos, prescrever leis retroativas, etc. Ora, dissesse-se tão-somente: é vedado subvencionar cul-tos, etc., e o pensamento estaria completo. O mesmo se nota nos arts. 34, 8; 48, 8; 54, 1; 54, 8; 66, 2; 66, 4.

O quarto argumento é que, pelo art. 65, 2, é facultado aos Estados todo e qualquer poder ou direito que não lhes for negado por cláusula expressa ou implícita da Constituição, e nenhuma há que lhes recuse o direito de fazer os alistamentos.

Como não há? Já mostrei que pertence à União o poder de definir e con-ferir a capacidade política, o direito de voto, a qualidade de eleitor. É isso o

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que se acha dito em cláusulas expressas, quais os arts. 69, 70 e 71, em que a Constituição declara quem é cidadão brasileiro, quem pode ser eleitor, quem não pode sê-lo, quem não pode ser eleito, e em que casos se suspendem ou per-dem os direitos de cidadão. Mas se isso é um poder consignado em cláusula ex-pressa como pertence à União e só à União, é claro que só ela pode decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício desse poder, nos termos do art. 34, 33. Trata-se, pois, duma atribuição implícita na cláusula expressa de art. 70, e que a União exercita por força do art. 34, 33.

Invoca-se ainda (e isso era infalível) o exemplo dos Estados Unidos. Mas é mister não malbaratar o bom senso e o critério nessas analogias que a cada passo se quer estabelecer entre o Brasil e os Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, a União foi uma criação artificial e posterior aos Estados.

Havia treze Estados independentes que se combinaram em ceder um tanto dos seus direitos e regalias para a formação de um grande Estado só. Basta assinalar esse fato para ver-se desde logo que não era prudente exigir deles con-cessões muito largas.

O seu exagerado amor de independência, o seu zelo excessivo pelas prer-rogativas de que estavam investidos já tinham frustrado a obra da Confederação de 1777 e ameaçaram burlar os intuitos patrióticos dos promotores da conven-ção de Filadélfia. Esta, diz Bryce, era obrigada a ter em conta ao mesmo tempo os temores, os ciúmes, os interesses na aparência irreconciliáveis de treze re-públicas distintas, a cada uma das quais importava deixar uma esfera de ação assaz larga para satisfazer o seu amor-próprio local profundamente enraizado, mas não tanto que pudesse pôr em risco a unidade nacional. Eram tais as dificul-dades a superar, que, ainda depois de elaborada a carta federal pelos delegados dos Estados, a luta para a sua adoção definitiva foi das mais ardentes. E a causa principal da resistência que encontrou a Constituição, informa-nos o mesmo publicista, era a crença de que um governo central poderoso poria em perigo ao mesmo tempo o direito dos Estados e as liberdades individuais. Em tais condi-ções, não era de bom aviso levar muito longe as pretensões da União.

Entre nós, as coisas se passaram de modo muito diverso. A União não foi uma criação artificial: ela existia fortalecida por setenta anos de independência e soberania, quando se cuidou de erigir as suas províncias em Estados autôno-mos; nenhuma resistência séria havia a debelar da parte dos Estados, para quem o regímen federativo não acarretava a perda de privilégios de que estivessem de posse, mas, pelo contrário, traduzia a outorga de regalias de que até então não tinham gozado.

Não há, pois, como equiparar o Brasil aos Estados Unidos. Nós éramos uma monarquia, vivíamos sob um regímen de centralização, tínhamos a unidade

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da legislação eleitoral, civil, comercial e criminal: proclamada a República, a situação anterior não podia deixar de influir na organização da nova ordem de coisas; o passado e a tradição tinham por força de colaborar nessa obra. Mas essa mesma influência, por efeito da mesma lei histórica, havia de fazer-se sentir nos Estados Unidos, isto é, ali não era possível arrancar inteiramente, e de cho-fre, aos Estados direitos de que eles se achavam de posse desde que iniciaram a sua existência política, direitos inerentes aos seus hábitos, às suas tradições, aos seus costumes, às suas necessidades. Pois bem, não obstante isso, das poucas emendas feitas à Constituição americana, duas versam sobre matéria eleitoral e tendem precisamente para a unidade eleitoral: as de número 14 e 15, uma ex-tinguindo as restrições da capacidade política provenientes da raça ou da cor, a outra criando restrições ao arbítrio das Estados em relação ao direito de voto.

Assim, nos Estados Unidos, onde a dualidade eleitoral poderia decorrer naturalmente das condições especiais em que se formou a federação, a tendên-cia — produto da prática, da experiência e da observação — é para a unidade eleitoral. Como é possível que entre nós, que vimos, pelo contrário, da uni-dade não da dualidade, a tendência seja para esta e não para aquela?!

Invoca-se também a Suíça, cuja Constituição, art. 74, declara eleitor todo cidadão de 21 anos a quem a legislação do cantão respectivo não negar essa qualidade. Mas, além de que o processo da formação da confederação helvética não pode também ser equiparado ao nosso, acresce que este mesmo art. 74 da Constituição suíça termina por estas palavras: “A legislação federal, todavia, poderá regular de uma maneira uniforme o exercício desse direito.” E disso já se cogita naquele país. Ali, portanto, a tendência é também para a unidade eleitoral.

Não quero terminar sem ler ao Tribunal alguns conceitos externados so-bre esta matéria por um dos mais formosos espíritos da minha geração acadê-mica, o Sr. Anísio de Abreu:

A Constituição não deixou ao arbítrio de poder algum — federal ou es-tadual — dizer, definir, declarar o que seja a capacidade política; considerou-a matéria constitucional e, como tal, afirmou-a, definiu-a, precisou-a, clara, ex-pressa e detalhadamente como talvez constituição alguma o faça. Ela não cogita de cidadão dos Estados, do Município, da União, mas tão-somente de cidadãos brasileiros. Fez assim do direito de voto um direito político-nacional, uno, indi-visível, sempre o mesmo, quer se tenha de exercer na esfera dos interesses supe-riores e comuns da União, quer na inferior, subordinada e restrita aos interesses do Estado e do Município.

A função política por excelência, a capacidade eleitoral, o direito de su-frágio, isto é, o direito de intervir, por meio do voto, na marcha dos negócios públicos, na vida da nação, na escolha e organização dos seus poderes políti-cos — qual ele seja, quem o tem, quem o pode exercer — ela expressamente o

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declarou. Fora das condições, dos casos, dos atributos que ela prevê e enumera, nada é possível acrescentar, criar ou modificar.

Se o direito de voto está consagrado na Constituição, se os requisitos do alistamento nela estão previstos e enumerados, se ao legislador ordinário dos Estados não é dado aumentar, diminuir ou criar outros requisitos que não os definidos na Constituição, se não lhe é possível estabelecer, por qualquer forma, restrições que alterem, diminuam ou ofendam a capacidade eleitoral, a que vem esse direito dos Estados de estabelecer, paralelamente ao eleitorado da União, um eleitorado estadual? A que vem essa dualidade de processo eleitoral, essa dualidade de alistamento?

Que processo outro é esse que vai engendrar a fantasia de legislador es-tadual, capaz de realizar, de melhor forma do que o fez o federal, o objetivo de um eleitorado são e escoimado de fraudes?

Não, esse eleitorado que se quer criar, além de inconstitucional, vai tra-zer o País em uma contínua ebulição política, vai perturbar a marcha normal da distribuição da justiça.

Pelo sentido da nossa Constituição, repete, não é possível admitir-se eleitor federal, eleitor municipal, eleitor estadual, e é o art. 70 que, de modo ex-presso e imperativo, dá solução ao problema.(Anísio de Abreu, discurso nas sessões da Câmara de 13 e 15 de julho de 1905.)

Não preciso dizer mais. Apenas permitir-me-ei uma última observação. Segundo os adversários da opinião que defendo, os Estados têm o direito de, para as suas eleições, organizar, como julgarem mais conveniente, o alistamento dos eleitores. Podem, por isso, exigir que, mesmo os eleitores federais, vão pro-var nas juntas de qualificação do Estado se têm os requisitos de eleitor.

O Rio Grande do Sul, porém, quis ser condescendente e generoso; teve um rasgo de fidalguia e cavalheirismo com a União e mandou que os eleitores desta fossem inscritos, sem dependência de qualquer formalidade, na lista dos eleitores do Estado. Podia dizer a cada um destes cidadãos brasileiros: Não, se-nhor, aqui quem manda sou eu; esta é a pátria rio-grandense e vós sois cidadãos duma outra pátria, a brasileira, tendes um título que atesta a vossa capacidade política e vos foi dado pela União; mas eu, conquanto seja obrigado pelo art. 66, § 1º, da Constituição a prestar fé aos documentos públicos da União, dou a este o mesmo valor dum papel sujo; a União afirma que reunis as qualidades de eleitor, mas essa afirmativa não me merece fé, é preciso que os meus agentes qualifica-dores me informem se isso é verdade ou se é algum ardil da União para fraudar as minhas eleições.

O Estado podia dizer tudo isso. Mas não disse: com um gesto cavalhei-resco mandou que todos os eleitores federais fossem só por isso considerados também eleitores do Estado e inscritos nas listas eleitorais deste. É o máximo de concessão que pode fazer quem tem o direito de organizar um alistamento só e todo seu. É também o sistema que, na doutrina da dualidade de alistamentos,

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menos perigo oferece ao direito de voto dos cidadãos brasileiros. Que pode, com efeito, haver de mais simples do que transportar nomes duma relação escrita para outra relação escrita?

Pois bem, não obstante tudo isso, mais de duzentos eleitores federais dei-xaram de figurar no alistamento estadual cuja anulação se pede neste recurso!

Foi uma omissão involuntária, eu o creio bem. Mas o fato é que duzentos e tantos cidadãos brasileiros foram privados do direito de sufrágio, e essa pri-vação dum direito de outorga federal foi determinada por um ato do Governo estadual, foi efeito da dualidade de alistamento.

Imagine agora o Tribunal que se trata não dum Estado como o Rio Gran de do Sul, onde incontestavelmente a verdade eleitoral é quase um fato, não dum Estado que declare eleitores estaduais todos os da União sem dependência de qualquer formalidade, mas que exija que todos os cidadãos, mesmo os que já fo-rem eleitores federais, satisfaçam a todas as complicadas e maçantes formalida-des da qualificação perante as juntas estaduais; imagine o Tribunal que se trata dum Estado, como são quase todos, em que as lutas partidárias sejam as mais intensas, em que a intolerância seja a mais apaixonada, e poderá bem calcular quantas centenas de cidadãos brasileiros serão despojados, pelos poderes locais, do direito que a Constituição de República lhes conferiu. E se dos Estados pas-sarmos aos Municípios (aos quais, logicamente, não se poderá recusar o direito de organizar o seu alistamentozinho), então cerremos os olhos para não ver essa União, essa soberania caricata a distribuir ridiculamente títulos eleitorais que os edis de Santa-Rita de Passa-Quatro rasgam nas bochechas dos seus portadores, a conferir direitos de que se riem escarninhos os povos de S. Francisco de Paula de Cima da Serra!

Com o meu voto, com a minha responsabilidade, porém, é que tal não e fará. Eu dou provimento ao recurso, para se declarar que a lei estadual não pode ser executada na parte relativa ao alistamento, por ser contrária a uma lei cons-titucional da União.

11 de dezembro de 1907.Na minha ausência, conheceu-se do recurso e negou-se-lhe provimento,

em desempate, pelos votos de Herminio do Espirito Santo, Manoel Murtinho, João Pedro, André Cavalcanti e Amaro Cavalcanti, contra Pedro Lessa, Guimarães Natal, Ribeiro de Almeida, Manoel Espinola e Cardoso de Castro, em 10 de junho de 1908.

Ainda na minha ausência, manteve-se esta decisão em embargos.16 de dezembro de 1908.

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Ministro Epitacio Pessôa

RECURSO EXTRAORDINáRIO 592

Vistos e relatados estes autos de recurso extraordinário em que o Dr. Virgílio de Resende, fundado no art. 59, § 1º, b, da Constituição Federal, re-corre da sentença do Superior Tribunal do Estado de São Paulo que reconheceu como válido o ato do Governo do Estado privando o recorrente das vantagens de professor de alemão na Escola Normal da capital, emprego suprimido pela Lei 295, de 19 de julho de 1894, por não ter aceitado o de professor da mesma disciplina no Ginásio de Campinas, ato impugnado em face dos arts. 11, 3, e 74 da Constituição Federal:

Considerando que na causa se impugnou a constitucionalidade do citado ato do Governo e da lei em que ele se baseou, como se vê a fls. 118v., 119, 180, 186 e 186v., e a sentença recorrida, de última instância, confirmatória da de fl. 80, admitiu como válidos esses atos, verificando-se assim o caso de recurso extraordinário previsto no art. 59, § 1º, b, da Constituição Federal;

Considerando que a Lei paulista 88, de 8 de setembro de 1892, e o Decreto 114 B, de 30 de dezembro do mesmo ano, declaram ser inamovíveis os professores catedráticos das Escolas Normais do Estado;

Considerando que a Constituição da República, art. 74, garante em toda a sua plenitude os cargos inamovíveis, e esse preceito se aplica assim aos cargos federais como aos estaduais (Acórdãos 177, de 4 de dezembro de 1899, J. 165; 671, de 7 de junho de 1902, O Direito 89, p. 393; 1.197, de 10 de novembro de 1906 e 13 de abril de 1907, O Direito 2, vols. 102 e 103, p. 38 e 180);

Considerando que, em tais condições, não podia o Governo do Estado, sem ofensa da Constituição da República, remover o recorrente da Capital para a cidade de Campinas, embora para um emprego idêntico, pouco importando que o tenha feito em virtude da Lei 295, de 1894, que suprimira a cadeira de ale-mão da Escola Normal da Capital e autorizara o aproveitamento do recorrente em outro instituto de ensino; porquanto essa lei, entendida como a entendeu o Governo, isto é, como autorizando a nomeação do recorrente para outro esta-belecimento ainda que fora da Capital, ofende o direito de inamovibilidade do mesmo recorrente, adquirido por força de leis anteriores, e, portanto, é contrária ao art. 11, 3, da Constituição Federal, como tudo foi decidido na causa principal pela sentença de fl. 31 e acórdão de fl. 51:

Acordam, por esses fundamentos e o mais dos autos, tomar conheci-mento do recurso e dar-lhe provimento para declarar, como declaram, inconsti-tucional e, portanto, sem validade o ato do Governo do Estado de São Paulo que privou o recorrente dos vencimentos de professor da cadeira extinta de alemão da Escola Normal da Capital, por não ter aceitado a regência de idêntica cadeira no Ginásio de Campinas.

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Pague as custas o Estado recorrido.Supremo Tribunal Federal, 10 de agosto de 1910.

RECURSO EXTRAORDINáRIO 657

Tenho sempre sustentado a opinião de que só é admissível o recurso ex-traordinário depois de esgotados todos os recursos que as leis locais facultam às partes litigantes. Mas tenho tido o cuidado de explicar que só me refiro, aliás, por motivos de fácil intuição, aos recursos ordinários, entre os quais se não compreende o recurso de revista instituído na legislação baiana (Recurso Extraordinário, p. 50 e seguintes).

Assim que nenhum embaraço se me opunha a admitir a oportunidade do presente recurso extraordinário.

E, dele conhecendo, não só pela debatida questão da competência (Cons-tituição, art. 60, letras a, d e h), mas ainda porque a Justiça local deixou de apli-car, no caso, o art. 62, votei de meritis nos mesmos termos do acórdão, embora por um motivo diferente quando à segundo parte da decisão.

Pelo que diz respeito à competência, recebi os embargos para, negando provimento ao recurso, declarar competente a Justiça do Estado, pelas mesmas razões exaradas no acórdão.

O art. 60, letra a, da Constituição só tem aplicação quando a parte funda o pedido diretamente em um preceito constitucional expresso, especial e abso-luto, que, independente de outras leis, dirima por si só a controvérsia (Acórdãos 1.197 e 1.221, de 1906; 934 e 953, de 1907; 491 e 1.004, de 1908; 431, 1.118, 1.174 e 1.203, de 1909, além de outros).

Ora, a recorrida não fundou a ação diretamente na Constituição Fe-deral (como, aliás, o reconhece a própria recorrente, fl. 200v.), mas, em seus contratos garantidos por leis estaduais e municipais. Nem o art. 72, § 24, da Constituição, a que ela subsidiariamente se socorre (o que não basta para deslocar a competência — Acórdão 1.234, de 13 de abril de 1910), é da natureza daqueles que por si sós, independente de qualquer lei especial, resolvem as questões que neles buscam apoio. Se a simples invocação da Constituição Federal fosse bastante para aforar a causa na Justiça da União com fundamento no art. 60, letra a, compreende-se facilmente, como tantas e tantas vezes tem declarado o Tribunal, que anulada estaria de fato a Jus-tiça local, pois todos os direitos haurem a sua legitimidade na Constituição da República.

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Ministro Epitacio Pessôa

O art. 60, letra d, da Constituição refere-se tão-somente a partes residen-tes em Estados do Brasil. Se o Acórdão 841, de 27 de outubro de 1906, enten-deu, aliás, escusadamente para a sua decisão, que tal dispositivo compreende também os Estados estrangeiros, deve isso ser levado à conta da opinião indi-vidual do seu relator, pois a verdade é que a maioria do Tribunal não aceita essa interpretação e, para sufragar aquele julgado, teve a outra razão nele expressa, esta peremptória e indiscutível — a de se fundar a causa diretamente no art. 11, 3, da Constituição —, precisamente a razão invocada nos autos pelo Juiz da primeira instância para justificar a sua competência. Ora, as companhias con-tendoras neste processo não têm a sua sede em Estados diferentes da República: uma a tem na Bahia e a outra, na Bélgica, sendo que esta mantém naquele mesmo Estado, sede da sua exploração, uma sucursal com representante habi-litado a demandar e ser demandado (Decreto 4.188, de 30 setembro de 1901, cl. I). Logo, não podia a causa ser a orada na Justiça Federal com fundamento no art. 60, letra d, da Constituição.

Ainda menos com apoio no art. 60, letra h; recorrente, ora embargada, obrigou-se a “sujeitar todos os atos que praticar no Brasil unicamente às leis e regulamentos da República e à jurisdição dos seus tribunais, sem que em tempo algum possa reclamar qualquer exceção fundada nos seus estatutos” (cit. Decreto 4.188, cl. II). Não há, pois, nem pode haver em jogo nenhum princípio de direito civil internacional, como em hipótese perfeitamente idêntica reconhe-ceu ainda há pouco o Tribunal, no Acórdão 1.306, de 26 de setembro de 1910.

O acórdão embargado invocou também em defesa da competência da Justiça Federal os Acórdãos 844, de 1906; 171, de 1907; e 1.091, de 1908. Mas essas sentenças, aliás, proferidas em causas em que não foi parte a embargante, tiveram todas uma razão especial e por si só decisiva para se pronunciarem.

Pela competência da Justiça da União. Assim, no Agravo 844, a ação, como já disse, fundava-se direta e até exclusivamente na Constituição, sendo mesmo essa a única razão pela qual o Juiz a quo se julgava competente (fls. 518 a 522); no Conflito 171 tratava-se de uma questão conexa com outra já subme-tida à Justiça Federal (fl. 227); no Agravo 1.001, finalmente, uma das partes era a União (fl. 558). Ora, aqui não ocorre nenhuma dessas razões nem outra análoga. Além disso, àqueles acórdãos se pode contrapor vitoriosamente o de número 839, de 1906, proferido entre as mesmas companhias ora litigantes, e declarando da competência da Justiça do Estado o interdito possessório reque-rido pela embargada, em defesa igualmente do seu privilégio (fls. 334 a 337).

Pode-se contrapor, sobretudo, o Acórdão 185, de 1907 (fl. 340), no qual o Tribunal decidiu, em conflito de jurisdição, que o presente feito devia correr na Justiça local, de onde se vê que a questão da competência nesta causa es-tava soberanamente resolvida desde 1907, e não era razoável que o Tribunal

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Memória Jurisprudencial

viesse agora declarar nulo o feito, por se ter processado perante a Justiça que ele próprio proclamara a única competente.

Quanto à validade do privilégio da embargada, neguei, como o acórdão, provimento aos embargos, mas não propriamente porque a sentença recorrida ti-vesse julgado extra petita, e sim porque essa questão estava, como ainda está, sub-metida à Justiça da União, reconhecida competente para esse feito pelo Tribunal, e, portanto, à Justiça local não era lícito intervir nela (Constituição, art. 62).

AGRAVO DE PETIÇÃO 695

Vencido. O juiz federal só tem competência para conceder mandado de manutenção ou proibitório, se quem o requer é possuidor de mercadorias nacio-nais ou estrangeiras e se acha turbado ou ameaçado na sua posse em conseqüên-cia de lei estadual que tribute o intercurso dessas mercadorias quando objeto de comércio dos Estados entre si, por via marítima, fluvial ou terrestre. É a disposição expressa nos arts. 1º e 5º da Lei 1.185, de 11 de junho de 1904. O fim desta lei foi exatamente, como reza a sua ementa, declarar livres de quaisquer impostos da União ou dos Estados e Municípios o intercurso de mercadorias nas condições indicadas.

Por outro lado, somente quando se trate de lei local que estatua sobre este assunto, é que é lícito ao juiz de seção conhecer da sua validade em face da Constituição Federal (Decreto 5.402, de 23 de dezembro de 1904, art. 14), vali-dade que, nos demais casos, deve ser discutida perante a Justiça do Estado, com recurso extraordinário para o Supremo Tribunal, de acordo com o art. 59, § 1º, letra b, da Constituição e a nossa copiosa e uniforme jurisprudência.

Não entro, por escusado, na apreciação da constitucionalidade da Lei 1.185 e do seu regulamento.

Ora, o imposto de “3% sobre o valor das transações de cada estabelecimento comercial durante o ano” (Lei cearense 789, art. 1º) não é, evidentemente, um im-posto sobre o intercurso de mercadorias nacionais ou estrangeiras que constituam objeto do comércio dos Estados entre si por via marítima, fluvial ou terrestre.

Logo, nem o juiz federal tem competência legal para, no caso sujeito, tolher a ação do Estado por meio de mandados proibitórios, nem a constitu-cionalidade da lei estadual que criou o imposto pode ser debatida em primeira instância perante a Justiça da União.

Acresce que o mandado aqui não teria objeto: não há mercadorias gra-vadas por imposto nenhum; não há, portanto, ameaça ou turbação de posse de qualquer cousa móvel ou imóvel, de sorte que, em definitivo, o mandado vai ser

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Ministro Epitacio Pessôa

concedido como meio de oposição à execução de atos da autoridade administra-tiva, o que é contrário à natureza desse remédio jurídico e importa a revogação da antiga e constante jurisprudência do Tribunal neste particular.

Por estes fundamentos e outros que expendi verbalmente, neguei pro-vimento ao agravo, entendendo que o agravante devia aguardar a decisão da Justiça do Estado, já provocada, sobre a constitucionalidade da lei que criou o imposto, e recorrer oportunamente para o Tribunal se essa decisão declarasse válida a referida lei.

18 de novembro de 1905.

AGRAVO DE PETIÇÃO 750

Apólices da dívida pública não são sujeitas a penhora.

Vistos e relatados este autos de agravo de petição entre partes, agravante a Fazenda Nacional pelo seu procurador fiscal no Estado do Paraná, e agravado Francisco de Paula Ribeiro Viana.

A 27 de novembro último requereu a agravante ao Juiz Federal naquele Estado a intimação do agravado, ex-tesoureiro da Delegacia Fiscal, para, em 24 horas, pagar a quantia de 208:568$215, valor do alcance pelo qual o julgara responsável o Tribunal de Contas nos períodos de 13 de agosto de 1892 a 5 de setembro de 1894 e de 15 de maio a 30 de setembro de 1900, e, convertido em penhora o seqüestro anteriormente feito sobre os bens do agravado, a citação deste para os ulteriores termos do processo executivo.

Requereu, outrossim, que se expedisse carta precatória ao juiz compe-tente, a fim de serem também penhoradas dezesseis apólices da dívida pública nacional, que, em data de 9 de agosto de 1900, haviam sido adjudicadas ao agra-vado como legítimas no inventário e partilhas dos bens deixados por seu pai, falecido em Portugal a 29 de dezembro de 1899 (fl. 5).

O Juiz indeferiu o pedido na parte relativa às apólices, por não serem es-tas passíveis de penhora (fl. 8).

Desse despacho agravou a Fazenda Nacional com fundamento no art. 715, letra p, da parte III do Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898.

E, depois de bem ponderadas as razões de agravante e a resposta do Juiz a quo:

Considerando que o agravo interposto encontra fundamento legítimo na disposição invocada, que é a mesma do art. 54, VI, p, da Lei 221, de 1894, mas:

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Memória Jurisprudencial

Considerando que, nos termos expressos do art. 36 da lei de 15 de novem-bro de 1827, nenhuma oposição pode ser feita, senão pelo próprio possuidor, ao pagamento dos juros e capital ou à transferência das apólices da dívida pública por ela criadas; de onde se segue que tais títulos não podem ser penhorados, pois a penhora é ato de terceiro e o seu primeiro efeito seria obstar aquele paga-mento ou transferência;

Considerando que não procede a objeção de que aquele artigo de lei é res-trito às apólices possuídas por estrangeiros e não se estende às dos nacionais, por-quanto não só seria odiosa e injustificável essa distinção, mas ainda do elemento histórico da lei se evidencia que só por um lapso de redação se empregou a expres-são destas apólices, que figurava nas emendas de onde proveio o citado art. 36;

Considerando que a lei de 1827 não foi nem podia ter sido revogada nesta parte pelo Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, art. 512, § 2º, porque,

a) tratando-se de um privilégio conferido por lei especial e determinado por elevados interesses de ordem pública, somente uma disposição também es-pecial e expressa poderia revogá-lo;

b) as garantias concedidas às apólices de 1827 representam outras tantas cláusulas de um contrato entre o Tesouro e os seus credores, e, portanto, não podem ser anuladas por ato exclusivo de uma das partes contratantes;

Considerando que assim sempre entendeu o próprio Governo, mesmo de-pois de promulgado aquele regulamento, como se vê dos Avisos 206, de 17 de agosto de 1859, expedido em virtude de resolução imperial da mesma data, nú-mero 349, de 28 de junho, e número 540, de 9 de outubro de 1879; dos Decretos 5.454, de 5 de novembro de 1873, art. 23, e 9.370, de 14 de fevereiro de 1885, art. 105, que reorganizaram a Caixa de Amortização; e ainda do Decreto 9.549, de 23 de janeiro de 1886, art. 9º, que expediu o regulamento para execução da Lei 3.272, de 5 de outubro de 1885, sobre o processo civil, comercial e hipotecário;

Considerando, portanto, que o art. 512, § 2º, do Regulamento 737 deve ser entendido como referente a quaisquer outros títulos da dívida pública que não os da dívida fundada pela lei de 1827, conforme declaravam os citados avi-sos de 28 de julho e 9 de outubro de 1879;

Considerando que o caso dos autos não se compreende em nenhuma das exceções que os decretos de 1873, 1885 e 1886 abriram ao preceito da lei de 1827, em obediência, aliás, a princípios universais de direito, aos quais não pode deixar de estar subordinada a interpretação da mesma lei; porquanto as apóli-ces em questão não estavam caucionadas ou apenhadas; não foram nomeadas à penhora pelo seu possuidor; não constituíam a sua fiança; e não foram por ele adquiridas em fraude da Fazenda, mas lhe tocaram como legítima paterna em data posterior ao alcance de que é acusado;

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que a doutrina exposta foi consagrada em mais de um jul-gado dos tribunais do Império, como, por exemplo, o Acórdão 2.887, da Relação da Corte, de 18 de novembro de 1881;

Considerando que o que se diz do Regulamento 737 se aplica por igual ao Decreto 848, de 1890, que lhe reproduziu as disposições, e foi sem dúvida por isso que o Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898, que consolidou as leis referentes à Justiça Federal, considerou ainda em vigor (parte III, art. 530) o privilégio da lei de 1827, com as modificações do decreto de 1886:

Acordam negar provimento ao agravo para confirmar, como confirmam, o despacho agravado, e condenam a agravante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 18 de dezembro de 1905 — Aquino e Castro, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — A. A. Cardoso de Castro — Piza e Almeida — Ribeiro de Almeida — André Cavalcanti — Manoel Murtinho — Guimarães Natal.

AGRAVO DE PETIÇÃO 768

Manuel de Sousa Nogueira requereu ao Juiz agravado manutenção da posse do seu prédio à Travessa da Natividade, n. 1, alegando: que está amea-çado de despejo pela autoridade sanitária, apoiada do art. 91 do Decreto 5.156, de 8 de março de 1904; que essa ameaça é ilegal, porque só o Juiz dos Feitos da Saúde Pública pode ordenar o despejo dos prédios cujas condições sanitárias não sejam boas, como é expresso no Decreto 1.151, de 5 de janeiro de 1904, art. 1º, § 12, 1. O Juiz indeferiu o pedido, por não ser o interdito possessório meio hábil para obstar a ação da autoridade sanitária nas medidas prescritas pela higiene pública. Invoca os acórdãos do Supremo Tribunal de 12 de abril de 1902 e 8 de abril de 1905. A parte agravou em tempo, sendo lavrado o respec-tivo termo. O agravo foi recebido na Secretaria do Tribunal a 21 de dezembro, mas só foi preparado a 30 de março seguinte.

I — Entendo que o art. 98 do Regimento do Tribunal é embaraço a que se tome conhecimento do agravo. A meu ver a Secretaria não devia ter admitido a parte a preparar o agravo; mas, desde que o fez e desde que a parte, a quem não é lícito ignorar a lei, o quis, forçoso é que os autos subam ao Tribunal. Nem por isso, entretanto, está este adstrito a conhecer do feito, com preterição daquele preceito regimental.

II — O Juiz Federal é incompetente. Muito embora se trate de uma causa proposta contra funcionários federais e, portanto, contra o Governo da União, fundada em lei e regulamento do Poder Executivo (Constituição, art. 60, letra b),

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Memória Jurisprudencial

todavia: 1º, esses funcionários são, pela natureza de suas funções, municipais, tanto que só acidentalmente estão a cargo da União, e as suas atribuições eram exercidas por empregados municipais até 1903; 2º, que a ação do Governo aqui é também essencialmente municipal, tanto que é restrita ao Distrito Federal (Lei 1.151, art. 1º; Decreto 5.156, art. 1º, § 2º); 3º, essa lei e esse decreto, funda-mento da ação, são, quanto à higiene domiciliária, também municipais.

Era lícito, portanto, ao Congresso cometer a um juiz local o julgamento de todas as causas fundadas nessa legislação. Ora, o art. 1º, § 11, da Lei 1.151 as-sim dispõe: “É da competência do juízo dos feitos da Saúde Pública conhecer de todas as ações e processos civis e criminais em matéria de higiene e salubridade pública, concernente à execução das leis e dos regulamentos sanitários, atinen-tes à observância e efetividade dos mandados e ordens das autoridades sanitá-rias ou relativos aos atos de ofício destas.” E no § 12: “O juiz dos feitos da Saúde Pública tem jurisdição privativa em primeira instância para o processo e julga-mento: IV (sic) de qualquer ação em que a saúde pública possa ser interessada.”

Tais disposições são constitucionais, pelo menos no que disser respeito, como no caso presente, à higiene domiciliária e à profilaxia das moléstias infec-tuosas (Decreto 5.156, art. 1º, § 2º).

Sendo assim, claro é que a manutenção devia ter sido requerida ao Juiz da Saúde.

III — A autoridade sanitária administrativa não pode forçar ninguém a desocupar o prédio interdito. “A declaração de interdição de prédios, diz a lei no art. 1º, § 3º, II, por parte da autoridade administrativa, terá por efeito serem eles desocupados amigável ou judicialmente (...).” A autoridade administrativa convidará o inquilino a desocupar o prédio; mas, se o inquilino não o quer fa-zer amigavelmente, o despejo só pode ser ordenado pelo juiz. Eis por que a lei dispõe no já citado § 12: “O juiz dos feitos da Saúde Pública tem jurisdição privativa em primeira instância para o processo e julgamento das causas que têm por objeto despejo etc.” Também o Regulamento, no art. 98, §, VI, pode-se dizer que é expresso quanto à doutrina exposta. Se outras disposições do Regulamento levam a conclusão diversa, elas são exorbitantes da lei e como tais não podem ser cumpridas.

Em vista do exposto, é claro que não tem aqui aplicação o art. 1º, § 20, da lei, que proíbe os interditos possessórios contra atos de autoridade sanitária exercidos ratione imperii, quando o ato que se discute, o despejo, não entra nas atribuições legais da autoridade administrativa, pois que é privativo da autori-dade judiciária. Nem importa a segunda parte dessa disposição, que parece vedar o interdito mesmo quando o ato seja ilegal: a ilegalidade de que aí se fala só pode ser a que dimana de outra causa que não a incompetência, do contrário a autori-dade sanitária poderia chegar até à desapropriação sem indenização prévia.

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Ministro Epitacio Pessôa

Mas o agravante não produziu prova alguma de que estivesse sob a amea ça de que se queixa. Nem sequer juntou a intimação que diz lhe haver sido feita pela autoridade sanitária, intimação que é feita por escrito, como prescreve o art. 1º, § 21, da lei.

Por isso, quando não prevalecessem as duas preliminares, o agravo não mereceria provimento.

Vistos e expostos estes autos de agravo de petição em que é agravante Manuel de Sousa Nogueira e agravado o Juiz Federal da 1ª vara (sic) deste Distrito:

Acordam não tomar conhecimento do recurso por ter sido preparado de-pois de esgotado o prazo legal de cinco dias (Regimento do Supremo Tribunal, art. 98). Com efeito, o agravo teve entrada na Secretaria do Tribunal no dia 21 de dezembro de 1905 (termo de fl. 19) e só foi preparado no dia 30 de março do corrente ano (termo de fl. 19v.). Custas pelo agravante.

Supremo Tribunal Federal, 11 de abril de 1906.

AGRAVO 830

Vistos estes autos de agravo entre partes — agravantes Frota & Gentil, agravada a Fazenda do Estado do Ceará —, deles consta o seguinte:

Os agravantes, negociantes em Fortaleza, importaram no mês de maio do corrente ano as mercadorias especificadas na certidão de fl. 5v., as quais o edital de fl. 6, da Recebedoria do Estado, declarou sujeitas às taxas dos arts. 3º, 6, e 4º, 39, das Instruções expedidas para a execução da Lei 883, de 23 de setembro de 1905. Como não pagassem os agravantes essas taxas no prazo legal, moveu contra eles a Fazenda do Estado uma ação executiva, penhorando-lhes algumas daquelas mercadorias, a saber, oito encapados de fios, dois pacotes de tecidos de algodão e mais oito fardos de tecidos (auto de fl. 8). Dirigiram-se então os agravantes ao Juiz Federal pedindo, na conformidade do art. 5º da Lei 1.185, de 11 de junho de 1904, um mandado de manutenção que os garantisse na posse das ditas mercadorias. O Juiz indeferiu a petição, e desse despacho agravaram em tempo para este Tribunal os mencionados negociantes, fundados no art. 715, letras a, n e r, do Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898, parte III.

E, depois de discutida a matéria,Considerando preliminarmente que o caso é de agravo (Lei 221, de 1894,

art. 54, VI, S);E, de meritis:

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Memória Jurisprudencial

Considerando que, nos termos do citado art. 5º do Decreto legislati vo 1.185, compete aos juízes federais conceder mandado de manutenção em favor do pos-suidor de mercadorias estrangeiras ou nacionais que for turbado na sua posse em conseqüência de dispositivo de lei estadual que estabeleça impostos fora das condições do mesmo decreto;

Considerando que, segundo o disposto nos arts. 1º, 2º e 3º do referido ato legislativo, só é lícito aos Estados estabelecer taxas ou tributos que, sob qualquer denominação, incidam sobre as mercadorias estrangeiras ou sobre as nacionais de produção de outros Estados, quando concorrerem as seguintes condições: 1º, que umas ou outras mercadorias já constituam objeto do comércio interno do Estado e se achem assim incorporadas ao acervo de suas próprias riquezas; 2º, que as taxas e tributos estabelecidos incidam também, com a mais completa igualdade, sobre as mercadorias similares de produção do Estado;

Considerando que a mercadoria não constitui objeto do comércio interno do Estado e não se acha assim incorporada à massa das suas próprias riquezas, enquanto permanece nas mãos do importador, nos seus invólucros originais; só depois de vendida em grosso pelo importador ou a varejo por este ou por outrem é que perde o seu caráter de importação e pode sofrer a tributação do Estado;

Considerando que a Lei cearense 833, de 23 de setembro de 1905, in-fringe a Lei federal 1.185 (art. 2º, 1) e com ela a Constituição da República (art. 7º, 1 e 2, e art. 34, 5) quando prescreve em sua tabela 5 que as taxas sejam cobradas sobre o peso bruto dos tecidos, inclusive os papéis, capas e matérias indispensáveis ao acondicionamento dos mesmos, que o imposto recai sobre as mercadorias ainda na fase da importação, ainda não retiradas dos seus primiti-vos envoltórios;

Considerando que, da comparação entre as tabelas 3 e 5 da citada lei estadual, se depreende que o imposto sobre tecidos da última dessas tabelas se refere unicamente aos tecidos de importação, porquanto, pagando já os produtos similares do Estado a taxa de 300$ anuais da tabela 3, n. 90, não é crível que o Estado os sujeite também àquele imposto, colocando-os assim, pela dupla tribu-tação, em situação de manifesta e extraordinária desvantagem em relação aos produtos estranhos, onerados com uma só das duas taxas; e essa desigualdade constitui mais uma violação do Decreto 1.185, de 1894 (art. 2º, 2);

Considerando que as Instruções de 8 de janeiro do corrente ano, expe-didas para a execução da Lei 833, dispõem no art. 10 “que o lançamento do imposto se efetuará na primeira década de cada mês a partir do de fevereiro em diante, contanto que haja decorrido o prazo de 30 dias relativamente a cada um dos meses vencidos”; mas não se podendo ter como certo que, nesse tão curto espaço de tempo, todas as mercadorias importadas terão entrado no giro do co-mércio interior do Estado, sendo antes de presumir o contrário, sobretudo em

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Ministro Epitacio Pessôa

casos como o dos autos, em que alguns dos gêneros recebidos pelos agravantes chegaram ao porto de Fortaleza a 29 de maio, isto é, apenas poucos dias antes do lançamento do imposto, a conseqüência é que aquela lei, assim compreendida e executada, fará muitas vezes recair o tributo sobre mercadorias não incorpora-das ao acervo das riquezas do Estado; o que constitui ainda uma transgressão da lei federal de 1904 (art. 2º, 1);

Considerando que isso mesmo reconhece a agravada, quando em suas razões de fl. 17v. admite que, em face daquela disposição, só “na maioria dos casos as mercadorias estarão entregues ao consumo por intermédio dos reta-lhistas ou vendidas diretamente ao próprio consumidor”;

Considerando que efetivamente na hipótese dos autos essa transgressão da lei federal se realizou; porquanto as mercadorias que se penhoraram aos agravantes, muito tempo depois do lançamento do imposto, ainda se conserva-vam nos seus invólucros e, conseguintemente, ainda não estavam incorporadas às riquezas do Estado;

Considerando que os agravantes estão sendo realmente turbados na sua posse sobre as mercadorias tributadas;

Considerando assim que a hipótese submetida ao conhecimento do Tri-bunal é a de uma firma comercial que, possuidora de mercadorias nacionais importadas no Ceará, está sendo turbada na posse dessas mercadorias em con-seqüência de uma lei do Estado que estabelece impostos contrários aos precei-tos da Constituição e do Decreto 1.185, de 1904, e são essas precisamente as condições exigidas no art. 5º desse decreto para a concessão do mandado de manutenção:

Acordam, conhecendo preliminarmente do agravo, dar-lhe provimento para que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, conceda o mandado reque-rido. Custas pela agravada.

Supremo Tribunal Federal, 25 de agosto de 1906.

AGRAVO 852

Os negociantes J. da Costa Bastos & Filhos, estabelecidos na capital do Ceará, dizendo-se ameaçados na posse de mercadorias (fios, banha e fumo) que importaram de outros Estados por via marítima e tributadas pela Lei cea-rense 833, de 23 de setembro de 1905, tabela n. 5, fora das condições da Lei federal 1.185, de 11 de junho de 1904, requereram ao respectivo Juiz seccional, a 29 de outubro último, um mandado proibitório que os garantisse contra a ameaça constante do edital de fl. 5, da Recebedoria do Estado, que os intimava

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Memória Jurisprudencial

a pagar até o último dia daquele mês, sob pena de imediata cobrança por via executiva, os impostos lançados sobre as ditas mercadorias.

O juiz indeferiu o pedido sob o fundamento de não constituir o referido edi-tal ameaça iminente de que com razão se pudessem recear aqueles negociantes.

Desse despacho foi interposto em tempo o agravo tomado por termo à fl. 6.Relatada e discutida a matéria dos autos:Considerando que o agravo, na espécie vertente, é autorizado pela

Lei 221, de 1894, art. 54, VI, letra s;Considerando que duas são as condições estatuídas na Lei 1.185, de 1904,

art. 5º, para a concessão do mandado proibitório: 1º, que haja um imposto local contrariando aquela lei; 2º, que o dono das mercadorias alcançadas por esse im-posto esteja ameaçado na posse das mesmas mercadorias;

Considerando que os impostos da tabela 5 da Lei cearense 833, cobrados pelo modo prescrito nas Instruções de 8 de janeiro do corrente ano, infringem a Lei federal 1.185, como foi julgado pelos Acórdãos 830 e 831, de 25 de agosto último, porquanto atingem mercadorias ainda não incorporadas às riquezas do Estado e gravam outras mais onerosamente que as similares do Ceará;

Considerando que os agravantes estão realmente ameaçados na posse de suas mercadorias. O edital de fl. 5, datado de 19 de outubro, intima-os a pagar o imposto até o último dia do mês, sob pena de ser o mesmo imposto imediatamente cobrado por via executiva. Ora, a via executiva se inicia pela citação do devedor para efetuar o pagamento dentro de 24 horas, sob pena de penhora. A penhora tem de recair de preferência sobre as mercadorias tributadas: 1º, porque são os bens de que se origina a dívida, sendo natural, portanto, que, sem transgressão da ordem legal, sejam preferidos a quaisquer outros para o ressarcimento dela: é este, aliás, o espírito de nossa legislação, como se vê, entre outras, das disposições do art. 508, § 2º, do Regulamento 737 e do art. 13, parágrafo único, do Decreto 9.885, de 1888; 2º, porque as mercadorias são móveis e não pode o Estado, como temem os agravantes, penhorar, com preterição delas, imóveis do devedor (Regulamento 737, art. 512); 3º, porque é direito do executado nomear bens à penhora (citado Regulamento, arts. 507, 508 e 509) e aqui o interesse do contribuinte é pre-cisamente nomear as mercadorias antes de quaisquer outros bens para fazer jus à proteção do art. 5º da lei federal de 1904. Mas, se o imposto vai ser co-brado imediatamente por via executiva; se o executivo começa pela penhora; se a penhora tem de recair nas mercadorias tributadas; é incontestável que os agravantes estão sob a ameaça iminente de serem turbados da posse des-sas mercadorias, e assim se realiza a segunda condição prevista na lei para a concessão do mandado proibitório;

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que ainda quando fosse livre ao Estado penhorar os bens que lhe aprouvesse, bastava a simples possibilidade de incidir a penhora dum executivo iminente nas mercadorias atingidas pelo imposto, para haver uma ameaça de turbação da posse dessas mercadorias; a causa seria verossímil e ra-zoada, e é quanto basta em face da Ord. L. 3, Tit. 78, § 5º;

Considerando, porém, que o mandado proibitório visa tão-somente prote-ger a posse dos produtos que constituem o comércio interestadual, e, portanto, não pode ser concedido em favor de outros bens;

Considerando que, se a ameaça ou turbação se dirige ou atinge, apesar do que fica dito, outros bens que não as mercadorias, o meio de submeter desde logo o caso ao conhecimento da Justiça Federal não é, no sistema da lei de 1904, o interdito possessório, mas o processo indicado no art. 14 do respectivo regu-lamento (Decreto 5.402, de 23 de dezembro do mesmo ano):

Acordam dar provimento ao agravo para, reformando o despacho agra-vado, determinar que o Juiz a quo conceda o mandado requerido, no qual proibirá que a Fazenda do Estado do Ceará turbe os agravantes na posse das mercadorias a que se refere o edital de fl. 5.

Custas pela agravada.Supremo Tribunal Federal, 1º de dezembro de 1906.

REVISÃO CRIMINAL 912

Não me parecem procedentes as nulidades argüidas pelo recorrente.As circunstâncias de lugar e tempo, nas questões propostas ao Júri, são

exigidas como meio de determinar o fato.Ora, no caso em questão não houve nem se alega dúvida da parte do Júri

em relação ao fato delituoso, mas apenas um ligeiro equívoco quanto à data — 10 de outubro, em vez de 10 de setembro.

Ainda quando verdadeira a alegação de haverem servido no conselho de sentença três jurados não incluídos no edital, não tem ela importância desde que a decisão foi unânime.

Finalmente, tendo sido levadas em conta, no cálculo da pena, as atenuan-tes a que o Júri se referiu, nenhum prejuízo adveio ao recorrente de não terem sido essas circunstâncias indicadas com precisão e clareza.

Resta a declaração do Júri de ter sido sua intenção absolver o réu. Nesse ponto estou de acordo com o Juiz e o Supremo Tribunal de São Paulo (fls. 74 e

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Memória Jurisprudencial

92 dos autos apensos). O Júri não condena nem absolve; responde simplesmente às questões de fato; o juiz é que julga e aplica o direito. Nulidades apreciáveis no julgamento são somente as que decorrem dos defeitos dos quesitos ou de suas respostas ou da errada aplicação da lei penal.

E assim, estando regular o processo, não havendo nulidades no julga-mento, sendo completa a prova do delito e legal a pena imposta, opino pela confirmação da sentença.

15 de dezembro de 1905.

AGRAVO DE PETIÇÃO 962

Na ação especial do art. 13 da Lei 221, de 1894, a apelação deve ser recebida em ambos os efeitos, sempre que a Fazenda Na-cional for vencida.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de agravo de petição, vindos do Juízo da 2ª Vara Federal deste Distrito, e em que são agravantes a União e a Companhia de Loterias Nacionais do Brasil e agravada a Companhia de Loterias do Estado da Bahia:

Acordam, conhecendo do agravo à vista do disposto no art. 54, VI, letra g, da Lei 221, de 1894, dar-lhe provimento para mandar que o Juiz a quo reforme o seu despacho e receba em ambos os efeitos a apelação interposta pela União da sentença de fl. 87, porquanto o art. 59 da citada Lei 221 deve ser entendido de harmonia com o art. 13 da Lei 242, de 29 de novembro de 1841, isto é, sem apli-cação às causas em que a Fazenda Nacional for parte vencida (Acórdãos 332, de 2 de dezembro de 1899; 413, de 19 de outubro; 416, de 16 de novembro de 1901; 443, de 20 de maio de 1902; e 942, de 6 de julho do corrente ano).

Nos termos da lei de 1841, art. 13, devem ser ex officio apeladas todas as sentenças proferidas contra a Fazenda Nacional em primeira instância, e isso significa que nenhuma sentença contra a Fazenda Nacional pode ser executada, senão depois de confirmada na instância superior.

É essa, com efeito, a inteligência que sempre se deu à citada lei, e que re-sulta naturalmente da sua letra e do seu espírito (Ord. 110, de 10 de outubro de 1845; Decreto 3.084, de 1898, part. V, art. 40; Perdigão Malheiros, Man. nota 132; Sousa Bandeira, Man. § 27, § 84 e § 140; Pereira e Sousa, Primeiras Linhas, ed. de T. de Freitas, nota 634; Paula Batista, Prática do Processo, nota ao § 223).

Nem outro foi o pensamento do Governo ao apresentá-la à Assembléia Geral em 1838 (Anais da Câmara dos Deputados, de 1838, vol. I, p. 164).

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Ministro Epitacio Pessôa

Nem as comissões respectivas, e os deputados que a discutiram, a inter-pretaram jamais de modo diverso (cit. Anais, vol. I, p. 458; vol. II, p. 484 a 489, e Anais de 1841, vol. II, passim).

Nem outro efeito atribuíam à apelação ex officio as leis que a instituíram em outras causas, como é fácil ver na lei de 4 de outubro de 1831, art. 90, quanto às justificações (Ord. 227, de 30 de junho de 1840); no Decreto 2.433, de 15 de junho de 1859, art. 56, quanto às habilitações de herdeiros de defuntos e ausen-tes e às justificações e libelos de dívidas; no Decreto 3.069, de 17 de abril de 1863, art. 12, quanto à anulação de casamentos de acatólicos; no Decreto 9.885, de 29 de fevereiro de 1888, art. 36, quanto aos executivos fiscais, etc.

A objeção de que tanto o legislador de 1841 não quis dar sempre à ape-lação ex officio o efeito suspensivo, que mandou observar na sua interposição, recebimento, expedição, processo e julgamento, a legislação então em vigor, se-gundo a qual nas causas sumárias a apelação era em regra recebida no só efeito devolutivo, não tem procedência alguma.

O art. 14, do qual vem a referência a essa legislação, trata não unicamente das apelações ex officio, mas também das voluntárias, e é evidente que dos trâmites processuais por ele indicados alguns há — a interposição e o recebi-mento — que somente às últimas se aplicam.

De feito, quanto à interposição, não podia a lei prescrever para a da apela-ção ex officio o processo em vigor, quando justamente instituía outro diferente; e pelo que diz respeito ao recebimento seria extravagância conferir ao juiz a atribuição de receber a sua própria apelação, como absurdo seria dar-lhe a lei o arbítrio de receber ou não (que tanto significa o termo recebimento) um recurso que ela própria criara obrigatório.

Depois, o princípio então dominante no processo era que as apelações fossem recebidas em ambos os efeitos (Ord. L. 3, T. 73 pr.) e no devolutivo só quando a lei expressamente o determinasse.

Finalmente, a ação do art. 13 da Lei 221, de 1894, não é propriamente uma ação sumária, mas uma ação especial, que só em parte segue o curso das ações daquela natureza.

Nem se diga que a lei de 1841 foi revogada pela legislação da República ou é incompatível com o atual regímen judiciário, já porque converte o juiz em advogado da Fazenda Nacional, já porque mantém em favor desta um privilégio que se não justifica mais.

Lei especial, a Lei 242 só podia ser ab-rogada por outra da mesma natu-reza, e não o foi até agora.

Quanto ao papel do juiz na apelação ex officio, está longe de ser o de um advogado da Fazenda, desde que as únicas razões que por aquele meio ele

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Memória Jurisprudencial

produz na instância superior são as constantes da sua sentença — sentença contrária aos interesses da mesma Fazenda. Quando a Lei 2.040, de 1871, criou a apelação ex officio das sentenças contrárias à liberdade: o Decreto 3.069, de 1863, das que anulassem o casamento de pessoas estranhas à religião oficial, e o Decreto 181, de 1890, das homologatórias do acordo sobre o divórcio, ninguém jamais enxergou nisso um desvirtuamento da função do magistrado. São rele-vantíssimas razões de ordem pública — ali o zelo pela liberdade humana e pela paz das famílias, aqui o interesse da Fazenda Nacional, que é o interesse de toda a coletividade — que levam o legislador a exigir que o juiz submeta à instância superior o seu julgado. Nem o juiz com isso patrocina direitos de ninguém, pois se limita a remeter a sua decisão ao tribunal superior, nem sofre com isso a sua independência, que então se ressentiria igualmente com a apelação voluntária.

No tocante ao privilégio em si, não é de admirar que subsista ainda hoje em um regímen cujas leis reconhecem e proclamam os “privilégios da Fazenda Nacional” (Decreto 1.030, de 1890, art. 77) e até lhe conferem regalias de que ela até então não gozara (Lei 221, art. 51).

Aliás, a vigência da lei de 1841 é matéria vencida neste Tribunal (Acórdãos 41, de 2 de maio; 480, de 16 de maio; 541, de 21 de julho; e 536, de 15 de setembro de 1900; 416, de 16 de novembro de 1901; 723, de 7 de maio; 702, de 21 de junho; 733, de 9 de julho; 825, de 25 de outubro; e 760 e 762, de 22 de novembro de 1902; 658 e 698, de 24 de janeiro de 1903; 918, de 3 de setembro de 1904; 1.069, de 18 de ou-tubro; e 970, de 22 de novembro de 1905; e 1.069, de 20 de maio de 1906).

Reconhecer a vigência desta lei e ao mesmo tempo admitir que as apela-ções da Fazenda possam ser recebidas no efeito devolutivo somente, seria con-tradição e absurdo.

Acresce que são por sua natureza mesma inexeqüíveis, sem confirma-ção superior, as sentenças proferidas contra a Fazenda Nacional em primeira instância; porquanto nem é admissível que o Congresso Nacional, quando a condenação importe um desembolso pecuniário, vote uma lei para cumpri-mento provisório de uma decisão revogável, nem se compreende que uma lei ou decreto de um dos poderes da Nação possa ser de fato anulado por outro, mas apenas si et in quantum. São sentenças estas em que, por não comportarem exe-cução provisória, a apelação é suspensiva pela necessidade das cousas (Paula Batista. Prática do Processo, nota ao § 227).

O art. 59 da Lei 221 não teve nem podia ter em vista a hipótese dos autos.Disposição de caráter geral, não lhe era dado derrogar uma lei especial.

Também as leis gerais de processos posteriores a 1841 — Regulamento 143, de 15 de março de 1842, Decreto 5.467, de 12 de novembro de 1873, e outros — consagravam preceitos incompatíveis com a apelação ex officio e nem por isso eram tidas por derrogatórias da Lei 242, daquele ano.

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Ministro Epitacio Pessôa

Pague a agravada as custas.Supremo Tribunal Federal, 17 de agosto de 1907 — Piza e Almeida,

Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Ribeiro de Almeida — André Cavalcanti — Guimarães Natal — Pindahiba de Mattos. Vencido. — Herminio do Espirito Santo — A. A. Cardoso de Castro. Vencido. — Manoel Murtinho — Manoel Espinola. Vencido. — Amaro Cavalcanti. Vencido. Foi voto vencido o Ministro Alberto Martins Torres. — O secretário João Pedreira do Couto Ferraz.

APELAÇÃO CÍVEL 975

R. Cavalcanti — João Pedro — Epitacio Pessôa. Vencido. — A lide che-gou a ser contestada, e um dos efeitos da litiscontestação é perpetuar a ação: Ord. L. 3, Tit. 4º, Tit. 9º e Tit. 18º, § 12. Perpetuar a ação, explica João Monteiro, quer dizer que, contestada a lide, a relação de direito litigiosa não prescreve enquanto dura a vida da ação, que é de quarenta anos. Essa é a lei e a doutrina corrente. Além das Ordenações citadas e de João Monteiro acima transcrito (Processo Civil, vol. II, § 116, 2, e respectiva nota) é o que se pode ver em G. Pereira de Castro, Decreto 63, 8; Guerreiro, Decreto 49; Ramalho, Praxe, § 143, nota c, fl. 225; Correia Teles, Doutrina das Ações, ed. de T. de Freitas, nota 12; Mendes de Castro, Prática Lusitana, part. II, L. 3º e 6, 1; Pereira e Sousa, Primeiras Linhas, ed. T. Freitas, parágrafos c/c not. 412; Silva, Art. Ord., 1, 3º t. 151, n. 13; Morais Carvalho, Praxe, § 374; Sousa Pinto, Primeiras Linhas, n. 416; Ribas, Consolidação 260 e not. 173; Nazareth, Processo, § 396, nota 9, e na Consolidação das Leis Federais (Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898), parte III, art. 202.

Fui presente, Oliveira Ribeiro.

AGRAVO 980

A agravante, tendo salvo um carregamento de querosene que viera para Manaus no vapor Boniface, de Nova York, pede que do saldo de 4:275$424, depositado na Alfândega à disposição do Juiz Federal nos termos da 8ª disp.m do art. 291 da Consolidação das Leis das Alfândegas, se lhe mande pagar 1:466$600, importância que despendeu com as embarcações e pessoal emprega-dos no serviço de salvamento, expedindo para isso o Juiz uma carta rogatória ao Inspetor da Alfândega, requisitando o levantamento e entrega da dita quantia.

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Memória Jurisprudencial

Juntou ao seu requerimento uma certidão provando qual o saldo deposi-tado na Alfândega, uma conta das despesas e a ratificação do protesto lavrado por ocasião do naufrágio.

O Juiz indeferiu a petição (fl. 37) por falecer competência à Alfândega para arrecadar e vender salvados.

Desse despacho foi cientificado o Inspetor da Alfândega (fl. 38v.), de-pois do que, a parte replicou ao Juiz (fl. 40), que indeferiu (fl. 42v.) exigindo que o Inspetor da Alfândega comunicasse ao Juiz que o dinheiro estava à sua disposição.

Dirigiu-se então a agravante ao Inspetor, que se recusou a fazer a comu-nicação (fl. 46).

À vista disso, insistiu a agravante com o Juiz para mandar efetuar o pa-gamento (fl. 44).

O Juiz indeferiu com o seguinte despacho (fl. 47).Agravou a parte com fundamento nas letras n e s da Lei 221, art. 54, VI,

e, depois de fazer o histórico da questão, pondera o seguinte (fl. 55v.).O Juiz explica assim o seu despacho (fl. 56v.).Vistos e relatados estes autos, vindos da Seção do Amazonas, e em

que a Manaus Harbour agrava, com fundamento no art. 715, letras n e s, do Decreto 3.084, de 1898, do despacho do Juiz Federal da mesma seção que in-deferiu a petição em que ela, alegando que salvara parte de um carregamento de querosene entrado de New York em 7 de maio último, requeria que do saldo da venda dessas mercadorias, na importância de 4:257$424, depositado na Alfândega à disposição do mesmo Juiz, se lhe mandasse pagar, mediante carta rogatória dirigida àquele funcionário, a quantia de 1:466$600 que despendera com as embarcações e pessoal empregado no serviço de salvamento:

Considerando que o caso é de agravo, nos termos do Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898, art. 715, letra s;

Considerando que o Inspetor da Alfândega, arrecadando os salvados e mandando vendê-los em leilão, procedeu de acordo com os arts. 284 e seguintes da Consolidação das Leis das Alfândegas;

Considerando que, derrogada essa parte da Consolidação e competindo hoje exclusivamente ao Juiz secional aquelas providências, como entendeu o Juiz a quo, não é isso razão para se preterir o direito da agravante, que ne-nhuma culpa tem do excesso do poder daquele funcionário, tanto mais quanto o produto líquido da venda dos salvados está em depósito naquela repartição, à disposição do juízo agravado, por força do disposto no art. 291, 8, da citada Consolidação;

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que as despesas feitas com o salvamento das mercadorias constituem dívida privilegiada (Cód. Com., art. 738) e devem ser deduzidas do produto da venda das mercadorias (citado Decreto 3.084, Parte IV, art. 169, 7);

Considerando, porém, que a agravante não prova que tenha despendido efetivamente com o salvamento em questão a soma que reclama, não bastando para isso a conta de fl. 5 por ela mesma organizada e constante de três parcelas sem as especificações necessárias a cada uma delas:

Acordam tomar conhecimento do agravo e dar-lhe provimento, mas tão-somente para que o Juiz a quo mande pagar à agravante a quantia de que ela provar ser credora.

Custas ex causa.Supremo Tribunal Federal, 26 de outubro de 1907.

AGRAVO 1.000

Vistos, relatados e discutidos este autos de agravo de petição, deles consta que Jacinto Magalhães e Lopes & Freitas, proprietários de automóveis, esta-belecidos nesta Capital, requereram ao Juiz Federal da 2ª Vara um mandado proibitório contra o Chefe de Polícia e alguns dos seus subordinados, que, para fazerem cumprir a tabela de preços de automóveis ultimamente organizada, ameaçam a sua liberdade de comerciar e mesmo o seu direito de propriedade, protestando apreender aqueles dos seus automóveis que se não sujeitarem aos preços fixados; que o Juiz requerido se declarou incompetente para conceder a providência reclamada, visto considerar o Chefe de Polícia como autoridade local, sujeito, portanto, à Justiça do Distrito; e, finalmente, que desse despacho recorreram os agravantes com fundamento na Lei 221, art. 54, VI, letras n (sic) e s, e no Regulamento 737, art. 669, § 1º.

Isso posto, o Supremo Tribunal, tomando conhecimento do agravo, por estar no termo do art. 54, VI, letras a (sic) e s, da Lei 221, de 1894, dá-lhe provi-mento e manda que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, se julgue compe-tente e conceda ou não, como entender de direito, o interdito requerido.

O serviço de polícia, embora local pela índole de sua função, está neste Distrito a cargo do Governo Federal, em virtude de disposições expressas na Constituição e de leis ordinárias.

A Constituição, com efeito, no art. 34, 30, conferiu privativamente ao Congresso Nacional a atribuição de legislar sobre a polícia da Capital, como serviço que ficava reservado para o Governo da União. A Constituição não quis

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Memória Jurisprudencial

sequer deixar ao arbítrio da legislatura ordinária confiar ou não esse serviço ao Governo Federal; ela própria o fez, como que visando prevenir qualquer decisão em contrário de leis posteriores.

Mais tarde, a Lei 23, de 30 de outubro de 1891, organizando os serviços da administração federal, entregou a polícia ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores (art. 4, letra b).

Assim o serviço de polícia, ainda que local por sua natureza, na Capital da União, onde só há o poder federal e o do Município, não é um serviço municipal. E não o é, porque assim o declararam a Constituição e a lei citada; porque assim o consideraram todas as reformas por que ele tem passado; porque está “sob a inspeção suprema do Presidente da República e a superintendência geral do Ministro da Justiça” (Lei 1.631, de 3 de janeiro de 1907, art. 1º; Decreto 6.440, de 30 de março do mesmo ano, art. 1º); porque é dirigido por um chefe de livre nomeação e exoneração do Presidente da República (citada lei, art. 2º, 1; citado decreto, art. 9º) e que é obrigado a cumprir as ordens e instruções do Ministro da Justiça (citado decreto, art. 32); finalmente, porque é estipendiado pelo cofre nacional, pouco importando que o Município concorra com parte das despesas, desde que isso lhe não dá intervenção alguma na direção do serviço e se explica pelos benefícios que daí aufere.

Mas, se é ao Governo da União que, por força dum preceito constitucional, compete organizar a polícia neste Distrito, dirigi-la, superintendê-la, custeá-la, nomear e demitir o seu chefe, etc.; se o Município não tem nisso a menor inge-rência, manifesto é que a este não pode caber nenhuma responsabilidade pelas violações de direito acaso cometidas na execução desse serviço, e em tais casos não é a sua Justiça que tem de intervir.

É certo que, no crime, o Chefe de Polícia responde perante a Justiça local, como dispõe a Lei 1.338, de 1905, art. 24, X, e tem sido mais de uma vez decla-rado por este Tribunal.

No cível, porém, não é isso possível, não só pelas razões já expostas, mas ainda porque os dinheiros, com que se mantém a polícia e teriam de fazer face à composição dos danos resultantes de atos do Chefe de Polícia, são em parte da Fazenda Nacional, de sorte que a causa, pelo menos em parte, interessaria diretamente a esta Fazenda, e tanto basta para forçar a competência da Justiça Federal, à vista do art. 60, letra b, da Constituição.

A única restrição a fazer ao que até aqui se tem exposto é a da compe-tência da Justiça local para a apuração dos prejuízos que o Chefe de Polícia por ventura cause ao direito individual na execução de leis municipais, pois aí é só a Fazenda do Município e não também a da União, a interessada.

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Ministro Epitacio Pessôa

Essa função da polícia está, aliás, prevista no próprio Decreto 6.440, de 1907, já citado, em cujo art. 32, III, se lê:

É da competência do Chefe de Polícia exercer a polícia administrativa relativamente aos serviços dos Ministérios Federais e da Municipalidade do Distrito, de acordo com as respectivas autoridades.

Ora, no caso dos autos, não se trata da execução de uma lei do Município. A Lei federal 1.631, do ano passado, autorizou o Presidente da República a reformar o serviço policial, referindo-se expressamente, no art. 9º, ao regu-lamento de veículos. No Decreto 6.440, que expediu por força dessa lei, o Governo incumbiu (art. 221) o Chefe de Polícia de expedir as tabelas especiais necessárias a esse ramo de serviço.

A tabela, pois, de que se queixam os agravantes foi organizada por aquela autoridade como delegado do Governo da União, executando uma lei do Congresso Nacional e um decreto do Poder Executivo federal. Logo, os meios tendentes a evitar a sua aplicação e prevenir os danos que dessa aplicação pos-sam originar-se, devem ser pedidos, não ao juiz da Fazenda do Município, mas ao da Fazenda federal, que é o juiz da seção.

Custas pela União, agravada. 8 de janeiro de 1908.

AGRAVO DE INSTRUMENTO 1.011

Vistos e relatados este autos de agravo de instrumento interposto pelo Cel. João P. Caminha, com fundamento no art. 54, VI, letra n, da Lei 221, de 1894, do despacho pelo qual, em causa por ele movida contra a Companhia de Carris Elétricos da Bahia, o Juiz secional admitiu como sucessora desta a The Bahia Tramway Ligth and Power Company:

Acordam negar provimento ao recurso e confirmar o despacho agravado, à vista dos fundamentos da sua sustentação, à fl. 175v., que são conformes ao direito e à prova dos autos.

Custas pelo agravante.Supremo Tribunal Federal, 25 de janeiro de 1908.Unânime.

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REVISÃO CRIMINAL 1.051

Trata-se de uma revisão vinda do Estado do Pará, interposta pelo ne-gociante Robim Marques Carepa da sentença que o condenou no médio do art. 351, § 2º, do Código Penal por haver feito aplicação dos meios privilegiados por uma patente concedida a Antônio Pires Franco Barreira e Tomás Greaves.

O recorrente alega: 1º, que o processo é nulo, porque, tendo sido o privilé-gio concedido a Barreira e a Greaves, individualmente, a queixa, entretanto, foi dada pela firma comercial Barreira & Greaves; 2º, que a ação estava prescrita à data da sentença condenatória, por já haver decorrido mais de um ano da época do crime; 3º, que esse não existe, porque o privilégio concedido a Barreira e a Greaves está em desacordo com a lei e recai sobre matéria que não pode ser objeto de privilégio.

Passo agora a fazer o relatório dos autos, e por ele poderá o Tribunal ir desde logo apreciando a procedência ou improcedência desses fundamentos.

Em 1898 Antônio Pires Franco Barreira e Tomás Greaves requereram ao Governo privilégio para um meio de cravação e recravação, por sistema me-cânico, de tigelinhas destinadas a colher o látex das árvores de que se extrai a goma elástica. Esse privilégio lhes foi concedido, a cada um deles individual-mente, pela Patente 2.576, de 25 de junho de 1898 (fl. 168).

Pouco depois, o recorrente, Robim Carepa, requereu, por sua vez, ao Go -verno privilégio para um sistema de cravação de tigelinhas destinadas ao mesmo fim, e o Governo lho concedeu pela Patente 2.621, de 20 de agosto do mesmo ano de 1898 (fl. 15).

Franco Barreira e Tomás Greaves propuseram então uma ação de nu-lidade dessa patente, ação que foi julgada procedente pelo Acórdão 574 deste Tribunal, de 29 de abril de 1900 (fl. 21). Em vista disso, o Governo, pelo Decreto 3.774, de 24 de setembro de 1900, declarou nula a patente do recorrente.

Mais tarde, em 3 de agosto de 1901, Franco Barreira e Tomás Greaves formaram uma sociedade, sob a firma Barreira & Greaves, para a exploração desse privilégio (fl. 158).

Como Robim Carepa, o recorrente, continuasse a fabricar e vender as suas tigelinhas, apesar da sentença do Tribunal e do decreto do Poder Executivo, a firma Barreira & Greaves requereu, em 9 de agosto de 1904, como medida preliminar, mandado de busca e apreensão de todas as máquinas de Carepa, utensílios e mais objetos destinados à contrafação das tigelinhas privilegiadas e bem assim todas as tigelinhas que fossem encontradas no estabelecimento comercial do recorrente, nomeando-se peritos para o exame de tudo, de acordo com os arts. 69 e 70 do Decreto 8.820, de 30 de dezembro de 1882, expedido para a execução da Lei 3.129, de 14 de outubro do mesmo ano (fl. 28). Concedido

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Ministro Epitacio Pessôa

o mandado, foram apreendidas duas máquinas e 250 mil tigelinhas (fl. 37 e 37v.) no dia 17 de agosto.

No dia 19, a firma Greaves & Barreira deu queixa crime contra Robim Carepa, como incurso no grau médio do art. 351, § 2º, do Código Penal (fl. 3), avaliando o dano causado em cem contos de réis.

Essa queixa foi instruída com a carta de sentença extraída da ação cível anteriormente proposta pelos queixosos contra o recorrente (fl. 7), carta em que, além de outros documentos, se encontram a patente dos queixosos (fl. 13v.), a do querelado (fl. 15) e o acórdão do Supremo Tribunal que julgou procedente a causa (fl. 21); com o auto de busca e apreensão (fl. 37), além da procuração passada pela firma queixosa representada pelo sócio Antônio Pires Franco Barreira (fl. 29).

Jurada a queixa por esse sócio (fl. 44v.), depois de ouvido o promotor pú-blico, foi qualificado o réu (fl. 46), que juntou procuração (fl. 47), e seguiu-se a formação da culpa.

Nessa depuseram cinco testemunhas. A primeira depõe que comprou ti-gelinhas ao querelado, mas soube que elas eram imitação das da firma queixosa, só porque leu isso na petição de queixa (fl. 48v.). A segunda declara ter verifi-cado que as tigelinhas de Carepa têm o lado cravado e o fundo soldado (con-vém notar que as da firma queixosa têm o lado e o fundo cravados, sem solda alguma) (fl. 50v.). A terceira (fl. 51) afirma que as tigelinhas que ela viu fabricar na casa do recorrente têm o lado cravado e o fundo soldado, enquanto que as da firma, onde também trabalhou, são cravadas num e outro ponto. A quarta (fl. 52v.) afirma o mesmo fato, tendo tido ocasião de examinar as tigelinhas de uma e outra parte. A quinta, finalmente, depõe nos mesmos termos, tendo tipo também ocasião de examinar umas e outras tigelinhas (fl. 56v.).

Levado o processo ao Tribunal Correcional, qualificado e interrogado o réu, vieram as partes com as suas razões escritas.

O querelado, ora recorrente, alegou preliminarmente a nulidade do pro-cesso por ter sido dada a queixa por parte incompetente (fl. 69) e de meritis, que o privilégio concedido a Franco Barreira e T. Greaves é ilegal, porque a crava-ção e recravação de tigelinhas nem é um meio novo nem é a aplicação nova de meios conhecidos para a obtenção de um produto ou resultado industrial, como exige a lei (fl. 71), acrescendo ainda que, mesmo quando fosse legal o privilégio, o querelado não o teria infringido, porque, ao passo que as tigelinhas da firma queixosa são cravadas no lado e no fundo, as do querelado o são apenas no lado, conforme deixou evidente o exame pericial (fl. 80).

Instruem estas razões: um exame requerido pelo querelado (fl. 91v.), a certi-dão de um outro requerido pela firma queixosa (fl. 97) e uma certidão do memorial descritivo que acompanhou o pedido de privilégio da mesma firma (fl. 104).

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A firma queixosa nada diz em suas razões (fl. 106) quanto à preliminar da ilegitimidade da parte, mas, de meritis, defende a legalidade do privilégio por se tratar da aplicação nova de meios conhecidos para a obtenção de um resultado industrial e sustenta a doutrina de que a contrafação, mesmo parcial como se verifica, no caso, constitui o delito do art. 351 do Código Penal.

Acompanham essas razões, como documentos novos, o contrato da firma para a exploração do privilégio (fl. 158); duas fotografias representando as ti-gelinhas das duas partes (fls. 164, 165); uma aquarela figurando uma tigelinha comum, uma tigelinha da firma queixosa e uma tigelinha do recorrente (fl. 166); e o original do exame requerido por Greaves & Barreira (fl. 166).

Dos exames efetuados, quer no maquinismo dos recorrentes, quer nas suas tigelinhas, o que se deduz é que as suas máquinas são de fabricante diverso das da firma queixosa; que a cravação das tigelinhas pode ser feita pelos pro-cessos comuns; que as tigelinhas privilegiadas são cravadas no lado e no fundo, enquanto as da Carepa são cravadas somente no lado, tendo o fundo ligado por solda.

O Tribunal Correcional, julgando procedente a preliminar levantada pelo querelado, anulou o processo proferindo a sentença de fl. 169. É bom ler.

Dessa sentença apelou a firma queixosa, alegando que as sociedades são pessoas jurídicas; como tais podem estar em juízo por meio de um sócio que as represente; que, formada a sociedade para a exploração do privilégio, não houve na realidade cessão deste à firma, e, portanto, não havia mister do registro a que alude a sentença apelada (fl. 183).

A isso replicou o querelado (fl. 254) que ninguém nega a personalidade das sociedades; que a questão se resume nestes termos: ou a firma queixosa não tem a propriedade do privilégio e nesse caso não podia dar a queixa, porque o direito de queixa é personalíssimo; ou tem essa propriedade, e ainda assim não podia vir a juízo por não ter sido registrada a cessão daquela propriedade feita pelos concessionários individuais.

Levada a questão ao Superior Tribunal do Estado, deu este provimento à apelação para rejeitar a preliminar da nulidade do processo, visto que a firma queixosa é formada justa e unicamente pelos concessionários individuais do privilégio, e para julgar procedente a queixa, por isso que o fato da violação da patente está provado, não sendo mais oportuno discutir-se a validade dessa patente, que já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal: nesta conformidade, a sentença condenou o querelado, ora recorrente, à multa de 2:750$000 em favor da Nação; de 15% em favor dos concessionários da patente, e na perda dos ins-trumentos ou aparelhos, que serão adjudicados aos mesmos concessionários — grau médio do art. 351, § 2º, do Código Penal (fl. 279).

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Ministro Epitacio Pessôa

É dessa sentença que se recorre, alegando o recorrente, como já disse: 1º, que o processo é nulo por ilegitimidade de quem deu a queixa; 2º, que a ação estava prescrita à data da sentença condenatória; 3º, que o privilégio de que se trata é ilegal, e, portanto, a sua violação, quando existisse, não constituiria crime (fl. 286).

Recebido o recurso neste Tribunal, o recorrente, por despacho meu, jun-tou aos autos o documento de fl. 297, com o qual se prova que o privilégio con-cedido a Franco Barreira e a Tomás Greaves individualmente não foi transferido ou cedido à firma que eles constituíram.

Ouvido o Sr. Ministro Procurador-Geral da República, emitiu S. Exa. o seguinte parecer (fl. 298).

O primeiro ponto a examinar é o da legitimidade da parte queixosa. Pelo nosso direito a queixa compete unicamente à parte ofendida ou a quem tenha qua-lidade para representá-la, como o cônjuge, o ascendente ou o tutor. É a disposição do Código Penal, art. 407, § 1º, já inserta, aliás, no art. 72 do Código Pro cessual. É o que se observa também nas legislações estrangeiras: Código Processual da Itá-lia, arts. 107 e 105; argentino, art. 170; uruguaio, art. 170, etc. Nos crimes contra a propriedade, e o privilégio de invenção é uma propriedade, a parte ofendida é evi-dentemente o proprietário. Ora, a firma Greaves & Barreira não é a proprietária da patente de que se trata; o privilégio foi concedido individualmente a Antônio Pires Franco Barreira e a Tomás Greaves. Logo, não à firma, mas somente qual-quer dos seus concessionários individuais poderia apresentar queixa. Esta, porém, foi dada pela firma, foi dada por quem não era a parte ofendida. Logo o processo é nulo ab initio, como o reconheceu a sentença de primeira instância, por ilegi-timidade da parte que o intentou. A esse respeito diz Pimenta Bueno (Processo Criminal 131): “A primeira condição da lei é que a queixa só possa ser dada pelo ofendido — qui passus est — ou pessoa tão intimamente ligada com ele que parti-cipe da ofensa ou o represente legitimamente, como ascendente, tutor ou cônjuge (Código Processual, art. 72). Conseguinte a queixa dada por pessoa incompe-tente é nula, e como ela todo o processo, pois que obra sem direito, como parte ilegítima.”

Tudo quanto escreve a firma queixosa no sentido de demonstrar que as sociedades comerciais, como pessoas jurídicas que são, podem comparecer em juízo, por meio de seus gerentes, para intentar processos criminais con-tra quem lhes ofenda os direitos, é impertinente na espécie em debate. Não contesto que as sociedades comerciais tenham esse direito; mas também o que é incontestável é que elas o possam exercitar, é mister que sejam ofen-didas, e aqui, como já vimos, a parte ofendida não é a firma queixosa, que não é a concessionária da patente, mas Franco Barreira e Tomás Greaves, individualmente.

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Memória Jurisprudencial

Pouco importa que a firma seja formada exclusivamente pelos dois con-cessionários e se tenha constituído precipuamente para a exploração do privilé-gio. Isso não altera a questão.

A constituição da sociedade para a exploração do privilégio não podia ter a virtude de transferir à firma a propriedade desse privilégio. Essa transferência só podia ser feita por um ato regular de cessão devidamente registrado, cessão e registro que não houve, como prova o documento de fl. 297. Ora, as socie-dades têm uma personalidade distinta e independente da de cada um dos seus membros. É esse um princípio jurídico universalmente aceito: Massé, Droit Commercial, vol. II, 2.266; Revière; Répétitions sur le Code Commercial 125; Pedro Etáson, Derecho Comercial, v. II, 21, vol. 7, 93 e passim; Veiga Beirão, Parecer apresentado à Câmara Portuguesa, XXIII; todos citados pela firma queixosa. Assim, constituída a sociedade para a exploração do privilégio, pas-saram a coexistir uma ao lado da outra duas personalidades distintas e indepen-dentes, a personalidade jurídica da firma e a personalidade de cada um dos seus membros. Mas a personalidade jurídica da firma existe apenas para a explora-ção do privilégio, é essa a sua única razão de ser; ela não tem a propriedade da patente, que continuou a pertencer aos concessionários individuais. Se não tem a propriedade da patente, não pode evidentemente ser ofendida por crimes co-metidos contra essa propriedade. E se não foi ofendida, é claro que não podia, que não tinha o direito de dar a queixa.

A esse respeito, são de uma clareza iniludível as seguintes palavras de Pouillet na sua obra magistral sobre os privilégios de invenção: “Se o titular duma patente, em vez de entrar para a sociedade com a propriedade da mesma patente, não pôs em comum senão o direito de explorar a invenção, é a ele só, não à sociedade, a qual não tem qualidade de proprietário, que cabe o direito de perseguir os contrafatores.” (Brevets d’Invention 311.)

Julgo, pois, procedente essa nulidade e assim o meu voto é para que se anule o processo ab initio.

A segunda alegação do recorrente é que a ação estava prescrita já no dia em que foi proferida a sentença condenatória.

O prazo para a prescrição da ação se conta do dia em que foi cometido o crime: é a disposição expressa dos arts. 79 e 83 do Código Penal.

O Código Penal nada diz a respeito da prescrição da ação nos crimes contí-nuos e permanentes. Sobre esse ponto, porém, todos os escritores estão de acordo em que a prescrição começa a correr do momento em que cessa o estado perma-nente de criminalidade, em que se consuma o último ato da cadeia criminosa, pois só então está terminado o delito: Carrara, Droit Criminel, § 538; Bertauld, Code Penal, p. 527; Pimenta Bueno, Processo Criminal 370; Garraud, Droit

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Ministro Epitacio Pessôa

Penal, vol. 2º, 534; Mangin, Hélie, Cornot etc. Segundo Garraud, dessa opinião só diverge Nypels, que, aliás, mostra desconhecer a natureza dos delitos contínuos.

É também o que se encontra nas legislações: Código italiano, art. 92; ar-gentino, art. 91; e se acha previsto em o nosso 120, art. 275.

Ora, o crime imputado ao recorrente é um crime contínuo. Por conse-guinte, a prescrição começa a correr do dia em que ele praticou o último ato constitutivo do delito.

Vejamos, pois, qual é esse último ato.O recorrente é acusado de haver feito aplicação de meios privilegiados e

exposto à venda os produtos industriais assim obtidos (Código Penal, art. 351). Há, evidentemente, um defeito na classificação, quer da denúncia, quer da sen-tença. O Código no art. 351, § 2º, trata apenas do que faz aplicação dos meios privilegiados, mas não vende o produto; no art. 351, § 3º, daquele que vende o produto contrafeito por outrem. Ora, se se trata dum indivíduo que não só faz aplicação dos meios, mas vende o produto contrafeito, é claro que esse indiví-duo está incurso nos dois parágrafos, 2º e 3º. Houve, pois, uma omissão na sen-tença, que considerou o réu incurso somente no § 2º.

É fora de dúvida, porém, em face dos autos, que o recorrente não só fez aplicação dos meios privilegiados, mas vendia os produtos industriais assim contrafeitos. Em tais condições, o delito terminou ou com o último ato de apli-cação ou no momento em que foi interrompida a exposição à venda. Ora esse momento é aquele em que foram apreendidos os produtos que o recorrente tinha à venda em seu estabelecimento comercial. Esses produtos foram apreendidos em 17 de agosto de 1904, como faz certo o auto de fl. 37v.

É, portanto, de 17 de agosto de 1904 que começa a correr o prazo da prescrição. Esse prazo é de um ano, em face do art. 83 do Código Penal, pois se trata de um crime a que a lei inflige exclusivamente pena pecuniária. E como o prazo se conta de die ad diem, incluindo o dia a quo, o dia do crime, na frase do Código, segue-se que o prazo iria até 16 de agosto de 1905, à meia-noite.

Ora, a sentença é de 16 de agosto de 1905; logo foi proferida dentro do prazo.

Julgo improcedente, pois, a segunda nulidade.De meritis — É uma questão muito debatida, na doutrina como na juris-

prudência, a de saber se o juiz criminal pode julgar da legalidade do privilégio nos crimes de violação de patentes de invenção. O recorrente agita essa questão e alonga-se em demonstrar que a patente concedida a Franco Barreira e Tomás Greaves não se legitima em face da lei de 1882. No caso vertente, julgo ociosa essa questão, visto que a legalidade do privilégio já foi reconhecida pelo Supremo

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Memória Jurisprudencial

Tribunal no Acórdão 574, de 29 de abril de 1900, onde se declara que aqueles dois cidadãos obtiveram regular e legalmente a patente de que se trata (fl. 23).

Se há dúvida quanto ao ponto de saber se a decisão do juiz criminal em matéria de privilégios de invenção constitui coisa julgada para os tribunais civis, essa dúvida não existe quando se trata duma sentença cível para o foro criminal. Sobre esse ponto não há controvérsia, todos estão de acordo, como observa Pouillet (Brevets, 885).

Há outro ponto a elucidar. O privilégio concedido a Barreira e a Greaves foi para a cravação e recravação das tigelinhas, no lado e no fundo; a contrafação do recorrente limita-se à cravação do lado. Pergunta-se: a contrafação parcial estará compreendida no conceito do crime definido no art. 351 do Código Penal?

Entendo que sim. Na Inglaterra é esta a doutrina corrente. “Ninguém tem o direito de se apoderar nem do todo nem mesmo de parte da invenção alheia” — “A person not only has no right to steal the whole but he has no right to steal any part of a man’s invention” (Lister, v. Lealter, 8 El. v. B1. 1004).

O mesmo nos Estados Unidos, como ensina James Kurt, Comentários, 2.589. O mesmo ainda em França: “A lei, diz Pouillet, pune a contrafação par-cial do mesmo modo que a total.” (Brevets d’Invention, 4. ed., 1899.) É o que também doutrina Alcides Darros (Traité de la Contrefaçon, 849). “A contrafa-ção parcial, diz Ambroise Rendu, é tão punível quanto a total.” (Codes de la Propriété Industrielle, vol. II, 34.)

Ora, está plenamente provado nos autos, não só pelos exames periciais como pelos depoimentos das testemunhas, que o recorrente fazia aplicação, em parte essencial, dos meios privilegiados pela patente concedida a Barreira e a Greaves.

Em tais condições o meu voto é pela confirmação da sentença.30 de novembro de 1905.

AGRAVO 1.118

A Justiça Federal só é competente nos termos do art. 60, a, da Constituição quando a causa se rege diretamente por um preceito desta, expresso e especial, que, independente de leis ordinárias ou de interpretações doutrinárias, possa servir de fundamento à ação. Em tais condições não está a ação fundada no art. 68 da Constituição. A simples invocação de um artigo constitucional não basta para aforar a causa na Justiça da União.

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Ministro Epitacio Pessôa

Vistos, expostos e discutidos estes autos, vindos da Seção do Paraná e em que o Estado do mesmo nome agrava do despacho de fl. 66v., pelo qual o respectivo Juiz secional se declarou competente para a ação proposta por João Teixeira Sabóia e outros, tendente a anular o ato do Governo do Estado que, pe-los motivos constantes do ofício de fl. 42, mandou que a Câmara Municipal do Rio Negro procedesse à apuração da eleição feita no Município da Lapa:

Considerando que a Justiça Federal só é competente nos termos do art. 60, letra a, da Constituição quando a causa se rege diretamente por esta, isto é, quando a ação se funda em uma disposição expressa e especial, que por si só defina inteiramente os poderes que confere, as garantias que assegura ou as proibições que faz, independente de leis estranhas ou de interpretações doutrinárias, podendo assim, por si só, servir de fundamento jurídico da ação (Acórdãos 1.197 e 1.221, de 1906; 887, 934, 953, 989, 998 e 1.000, de 1907; e 491, de 1908);

Considerando que nessas condições não se acha o art. 68 da Constituição, que não declara precisamente em que consiste a autonomia municipal nem quais os seus limites necessários, dependendo isso de leis estaduais que definam o que, dentro do Município, constitui o interesse peculiar deste com exclusão do interesse do Estado;

Considerando que os próprios agravados reconhecem implicitamente que o preceito indefinido do art. 68 da Constituição não pode servir de fundamento direito e exclusivo da ação, tanto que invocam a combinação desse dispositivo com os arts. 6º, 2, 63 e 78, mostrando assim que fundam a sua ação, não direta-mente em uma disposição expressa da Carta Constitucional, mas em princípios resultantes da interpretação comparativa de diversas disposições;

Considerando que, se a simples invocação de um artigo constitucio-nal fosse bastante para aforar a causa na Justiça Federal, sem função ficaria a Justiça dos Estados, porquanto todo direito e, conseqüentemente, toda ação se fundam, em última análise, em uma disposição da Constituição, que é a fonte e a garantia de todos os direitos (Acórdãos 171, de 1896; 185, de 1897; 75, de 1898; 421, de 1901; e 487, de 1903);

Considerando que, se a ação proposta pelos agravados não se funda di-retamente, como ficou demonstrado, em dispositivo da Constituição, a Justiça Federal não é competente para processá-la e julgá-la, nem em face do art. 60, letra a, da mesma Constituição, nem em vista do Decreto 1.939, de 28 de agosto de 1908, art. 6º:

Acordam, verificado que o agravo tem fundamento no art. 54, VI, letra a, da Lei 221, de 1894, dar-lhe provimento para que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, se declare incompetente, pagas as custas pelos agravados.

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Memória Jurisprudencial

Supremo Tribunal Federal, 13 de janeiro de 1909 — Pindahiba de Mattos, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão — Manoel Murtinho — Herminio do Espirito Santo — João Pedro — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal. Vencido. Julguei competente o Juiz Federal para conhecer da espécie de acordo com o disposto na letra a do art. 60 da Constituição, por ser a ação fundada diretamente no art. 68 da mesma Constituição, não considerando eu, como o fez o acórdão, a autonomia municipal, garantida por esse artigo, cousa tão vaga e imprecisa, que se não pudesse, só à vista do texto constitucional, julgar da impugnação oposta ao ato do Presidente do Estado do Paraná sob o fundamento de atentar contra a autonomia do Município da Lapa, ordenando que a eleição das autoridades desse Município, já verificadas pelo poder com-petente instituído pela respectiva lei orgânica, o fossem de novo pelos membros da câmara de outros Municípios. — Manoel Espinola. Vencido. — Pedro Lessa. Vencido. — Canuto Saraiva. Vencido.

Foi voto vencedor o do Ministro André Cavalcanti.

APELAÇÃO CÍVEL 1.119

Vistos estes autos de apelação cível em que é apelante John Gordon e apelado o Estado da Bahia:

O apelante, cidadão americano domiciliado nesta Capital, requereu ao Governo da Bahia a legitimação de várias posses de terras situadas no Estado. O Governo deferiu o pedido, mas com reserva para o Estado das minas e mais riquezas que se encontrassem no subsolo, nos termos do art. 5º da Lei 436, de 23 de agosto de 1901. Com isso não se conformou o apelante, que promoveu perante o Juiz Federal daquela seção a anulação dessa cláusula pelas seguintes razões: 1º, porque a citada Lei baiana 436 é inconstitucional, desde que versa so-bre matéria de direito substantivo e viola o art. 72, § 17, da Constituição, que as-segura ao dono do solo a propriedade das minas; 2º, porque ao tempo em que foi requerida a legitimação das posses não existia ainda a mencionada lei, a qual, portanto, lhe não podia ser aplicada sem infração do art. 11, 3, da Constituição, que veda a prescrição de leis retroativas.

O Juiz Federal julgou improcedente a ação pelos fundamentos constantes da sua sentença de fl. 43v., da qual se interpôs em tempo a presente apelação.

A primeira questão a examinar é se os possuidores de terras a legiti-mar têm ou não a propriedade dessas terras. Se têm, é claro que a lei estadual não podia, sem ir de encontro ao art. 72, § 17, da Constituição, reservar para o Estado as minas existentes em ditas terras; mas, se não têm, se o domínio

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Ministro Epitacio Pessôa

direto das terras pertence ao Estado, é fora de dúvida também que nada se opu-nha a que este pusesse à alienação de sua propriedade as restrições que bem entendesse.

O regímen das sesmarias, adotado a princípio em Portugal como simples uso e mais tarde incorporado à Ordenação Filipina L. 4, T. 43, foi também se-guido no Brasil pelos primeiros donatários. A este era lícito, pelas doações e forais, dar em sesmaria as terras incultas. Como, porém, não produzisse ele os resultados esperados, a coroa portuguesa autorizou o primeiro governador ge-ral do Brasil a conceder sesmarias gratuitas, sujeitas apenas ao dízimo a Deus. Ainda assim o sistema não teve grande êxito: as formalidades a preencher, a me-dição, confirmação e cultura das terras, afugentavam os povoadores, muitos dos quais julgavam preferível instalarem-se livremente onde bem lhes aprouvesse, certos de antemão que a inesgotável abundância das terras incultas predisporia à tolerância os representantes do Governo. A partir de 1822, cessando de todo as concessões de sesmarias, esse abuso generalizou-se de modo extraordiná-rio. Para pôr-lhe um termo e regularizar o serviço das terras devolutas, veio a Lei 601, de 18 de setembro de 1850.

Começou a lei por proibir as aquisições de terras devolutas por outro tí-tulo que não o de compra, cominando aos que delas se apossassem o despejo com perda de benfeitorias e mais a pena de prisão e multa e a satisfação do dano causado. Em seguida, enumerando aquelas terras, declarou que entre elas se incluiriam as que se não achassem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título legal, viessem a ser legitimadas pelo processo nela estabe-lecido (art. 3º, § 4º). Resulta daí que, enquanto se não legitimassem, essas terras não passariam ao domínio dos posseiros, continuariam a pertencer à Nação. A lei, dada a origem irregular dessas posses, podia, sem mais satisfações aos seus detentores, ter-se limitado a reivindicar pura e simplesmente das mãos destes a propriedade nacional; mas, estacando diante da dificuldade, senão impossi-bilidade, de abolir um estado de cousas que durava desde longuíssimos anos, hesitando em ferir os valiosos interesses particulares ligados a essas posses, em-baraçar, aos demais, a cultura e povoamento do solo e quiçá anular o trabalho já feito nesse sentido, preferiu adotar um regímen de transação, pelo qual se com-prometia a reconhecer o direito de todos os posseiros que nos prazos marcados legitimassem as suas posses. Enquanto isto, porém, se não fizesse, a Nação não abriria mão de sua propriedade.

Esse pensamento da lei resulta claramente do dispositivo acima citado. Outros ainda o confirmam. Pelo art. 8º, por exemplo, os possuidores que deixas-sem de proceder à medição seriam reputados caídos em comisso e perderiam por isso o direito que tivessem a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos ou por favor da lei, cominação esta que decerto a Assembléia Geral não poderia estabelecer se o direito dos posseiros sobre as terras em questão

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Memória Jurisprudencial

fosse um legítimo direito de propriedade. Mais ainda. Segundo o art. 11, os posseiros eram obrigados a tirar os títulos dos terrenos que lhes ficassem per-tencendo por efeito da lei, e, sem eles, não poderiam hipotecar os mesmos terrenos nem aliená-los por qualquer modo. Ora, os títulos só podiam ser pas-sados depois da legitimação; portanto, antes desta, os terrenos não pertenciam aos posseiros: a legitimação, consumada com a expedição dos títulos, é que transferia o domínio, tanto que, sem estes, os posseiros não podiam hipotecar ou alienar as terras.

Assim, pela lei de 1850, os possuidores de terras sujeitas à legitimação não tinham a propriedade dessas terras; eram simples posseiros, como a lei os cha-mava; o laço jurídico que os prendia às terras era unicamente o da posse. Tais terras eram consideradas terras devolutas; só perdiam esse caráter depois de expedido o título de legitimação; até esse momento o domínio direto delas resi-dia no Estado. Essa conclusão ainda mais se avigora, atendendo-se que a lei teve o cuidado de declarar isentas de legitimação todas as terras a respeito das quais se pudesse exibir um qualquer título legítimo de aquisição, embora havidos de meros ocupantes sem título algum de domínio, o que mostra que, sujeitando àquela formalidade os simples posseiros, não os reputava senhores ou proprie-tários das terras.

Era esse o direito vigente ao tempo em que se promulgou a Constituição, que transferiu aos Estados, em plena propriedade, as terras devolutas. Esse di-reito não foi alterado, no ponto que se discute, pela legislação da Bahia. A Lei estadual 198, de 21 de agosto de 1897, que regulou especialmente o assunto, continuou a atribuir ao Estado o domínio das terras possuídas, sujeitas à legi-timação, enquanto não fossem legitimadas. É o que se vê, entre outras dispo-sições, do art. 39, que sujeita tais posses a uma determinada taxa por hectare antes da expedição do título de propriedade, e do art. 47, onde se declara que os posseiros não poderão hipotecar ou alienar por qualquer modo as suas terras, sem que estejam medidas e demarcadas e sem que o possuidor haja tirado o res-pectivo título de propriedade na repartição competente.

Mas, se ao Estado cabe o domínio direto das terras sujeitas à legitimação e se as minas pertencem ao proprietário do solo, nada obstava a que a Bahia es-tipulasse por lei que, nas transferências de domínio conseqüentes à legitimação de posses, ficassem sempre reservados para o Estado as riquezas do subsolo. Não é isso legislar sobre direito substantivo, alterar ou derrogar princípios vi-gentes no direito civil brasileiro, mas, pelo contrário, fazer aplicação legítima e fiel desses princípios, quando conferem ao proprietário a faculdade de pôr à alienação do seu domínio as limitações que quiser. Ver Carlos de Carvalho — Consolidação, arts. 278, 200 C e 214 A. Não é tampouco legislar em desacordo com o art. 72, § 17, da Constituição: a lei baiana não tirou as minas ao proprie-tário, pois o proprietário, como já se demonstrou, é o Estado; quando o posseiro

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Ministro Epitacio Pessôa

se investiu do domínio das terras, já do direito a estas estava desmembrado o direito às minas. A lei do Estado só violaria o citado preceito constitucional, se tirasse ao posseiro as riquezas do subsolo, depois de legitimada a posse e expe-dido o respectivo título.

De haver disposto a Constituição que as minas são do proprietário do solo, deduz o apelante ser impossível a separação desses dois domínios. Mas tal conclusão é arbitrária e absurda.

O fim do legislador constituinte foi pôr termo a dúvidas existentes no an-tigo regímen quanto à propriedade das minas. Antes da Constituição imperial de 1824, o princípio dominante era de que as minas faziam parte do domínio real (Ord. L. 2, T. 26, § 16 e outros). Depois da Constituição, passou-se a enten-der que, à vista do art. 179, § 22, que garantia a propriedade em toda a sua ple-nitude, as minas pertenciam ao proprietário do solo, inteligência ulteriormente corroborada por vários atos do poder público. Em 1866, porém, o Aviso 461, de 22 de outubro, expedido com audiência do Conselho de Estado e confirmado por outros de datas posteriores, restabeleceu o direito anterior à Constituição. Surgiram então, como era natural, as mais acesas disputas, defendendo uns o direito do proprietário, outros o do Estado.

Foi essa controvérsia que a Constituição republicana teve em vista re-solver, estatuindo, no art. 72, § 17, que as minas pertencem ao dono do solo. Mas depreender daí que, uma vez investido desse domínio, não pode mais o proprietário desfazer-se dele sem alienar ao mesmo tempo a propriedade do solo ou vice-versa, porque não é possível separar-se um direito de outro, porque não é possível pertencer este a uma pessoa e aquele a pessoa diversa, é eviden-temente ir muito além do intuito do legislador, atribuindo-lhe o pensamento de cercear sem razão plausível as regalias inerentes à qualidade de proprietário e ao mesmo tempo embaraçar o aproveitamento das riquezas do subsolo, cuja ex-ploração, por muito dispendiosa, nem sempre está ao alcance dos particulares proprietários da superfície.

Assim, o primeiro fundamento da ação, a inconstitucionalidade da lei do Estado por ofensiva dos arts. 34, 23 e 72, 17, da Constituição, não tem procedên-cia. Destituída igualmente de valor é a argüição de que a referida lei foi aplicada com ofensa de direitos adquiridos.

Provado, como ficou, que o Estado tem o domínio das terras a legitimar e conseqüentemente a propriedade das minas respectivas, não é possível con-ceber da parte do posseiro a existência dum direito adquirido sobre essas ter-ras e minas antes da legitimação. A lei estadual nada mais fez do que declarar um direito do Estado preexistente ao pedido de legitimação. Ofensa de direito adquirido haveria se, depois de legitimadas as posses, sem ressalva alguma, e conseguintemente depois de transferido o domínio integral das terras, isto é, da

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Memória Jurisprudencial

superfície e do subsolo, o Governo se arrogasse a propriedade deste. Não é essa, porém, a hipótese dos autos.

Diz, entretanto, o apelante que o direito que ele já havia adquirido é “o direito a obter a sua legitimação sem restrição alguma”, desde que na vigência da lei anterior preenchera todas as condições exigidas para a legitimação. Mas do fato de não haver a lei que vigorava ao tempo em que esta foi pedida limi-tado de qualquer modo o domínio a transferir, não se segue que o proprietário, não tendo prazo para conceder a legitimação, estivesse inibido de definir as condições em que traspassaria o mesmo domínio. Porque é preciso atender que o Governador não estava obrigado por lei a proferir a sua sentença dentro dum prazo determinado. Se estivesse, ainda se poderia admitir que o adiamento in-tencional da decisão além desse prazo preterira um direito que já reunia todos os seus elementos constitutivos e cuja consumação dependia apenas dum prazo fatal, dentro do qual nenhuma alteração se operara na lei em vigor. Mas, não existindo essa obrigação, a demora por parte do Governo se pode, caso tenha sido intencional, ser taxada como um ato administrativo menos correto, não ofendeu na realidade direito algum do apelante, e, chegado o momento da deci-são, ao Governo cabia o direito e corria o dever de aplicar a lei então em vigor.

Por esses fundamentos e o mais dos autos, o Supremo Tribunal confirma a sentença apelada e condena o apelante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 22 de maio de 1907.

APELAÇÃO CÍVEL 1.131

John Gordon embarga o acórdão do Supremo Tribunal sob estes dois fundamentos: 1º, que a transferência das concessões, das mãos dos embarga-dos para as suas, não foi aprovada pelo Estado; 2º, que todas as areias por ele exportadas até agora têm sido extraídas de terrenos de marinha, e não de terras devolutas do Estado, e só a estas se refere o contrato de transferência de fl. 15.

Quanto ao primeiro fundamento, não me parece procedente pelas razões do meu voto na apelação — vol. I, p. 102.

Quanto ao segundo, está efetivamente provado, com os documentos exi-bidos, que Gordon não exportou ainda areias provenientes de terras do Estado, mas só de terrenos de marinha.

Não vejo, porém, em que isso possa modificar a sua situação.No contrato de fl. 15, não se estipulou que as duas libras só fossem

pagas por areias procedentes de terras devolutas de Estado; o contrato fala

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Ministro Epitacio Pessôa

simplesmente de cada tonelada de areia a exportar, sem designação da sua pro-cedência. Nem é verossímil que os embargados, que já estavam extraindo areias de suas concessões, como se vê da cláusula 5ª, empatassem, sem vantagem al-guma pelo menos durante vinte anos, o seu material e o seu negócio, impondo a Gordon a obrigação de lhes pagar duas libras por tonelada de areias, mas dando-lhe ao mesmo tempo o direito de extrair ou não essas areias. Se Gordon só es-tava obrigado a pagar pelas areias que extraísse de terras devolutas, demasiado ingênuo seria ele se as extraísse: o seu interesse o levaria a não exportar senão areias de terrenos de marinhas, de que ele tinha uma extensa concessão, já não levando em linha de conta que a exploração destas últimas é muito mais fácil, porque as areias são mais abundantes, mais à flor da terra e mais próximas do porto de embarque, e muito mais rendosa, porque as areias contêm muito maior proporção de monazita e de tório. Assim, se o contrato tivesse a significação que hoje, e só hoje, lhe atribui Gordon, os embargados teriam por ele renun-ciado a mão beijada às suas concessões, às suas 15.000 toneladas de areias e ao seu material, contentando-se com receber ao cabo de vinte anos duas libras por tonelada, o mesmo preço que receberiam dez, quinze ou vinte anos antes! E que interesse teria Gordon em ir pagando essas contribuições de duas libras, se podia guardá-las todas em seu poder, girar com esse capital durante vinte anos, fazê-lo duplicar em seu proveito, sem por isso ficar obrigado por nem um vin-tém mais para com os embargados?! Ora, é preciso não supor que estes fossem tão inocentes!

O que se depreende das cláusulas do contrato é que Gordon, receoso da concorrência dos embargos, comprou as suas concessões, isto é, se obrigou a lhes dar duas libras de cada tonelada de areia que ele, Gordon, a partir daquela data, exportasse, até completar o número de 15.500 que lhes haviam sido con-cedidas. O que Gordon queria era ficar senhor único do mercado, e poder assim regular com maior segurança o seu comércio. Explorava ele só essa indústria; surge um concorrente; era da maior conveniência arredá-lo do mercado. Como? Prometendo pagar-lhe uma contribuição de duas libras por tonelada que ele, Gordon, exportasse até o máximo da concessão do competidor, qualquer que fosse a origem das areias — terras devolutas ou terrenos de marinha.

E tanto isso é verdade, e tanto Gordon não se considerava obrigado a só pagar as duas libras por areias extraídas de terrenos do Estado, isto é, dos ter-renos que faziam objeto das concessões dos embargados, que, de novembro de 1899 a março de 1900, pagou a estes aquela contribuição, apesar de ser a areia então exportada proveniente de terrenos de marinha, e pagou mais a importân-cia das cem toneladas de que fala a cláusula 5ª do contrato.

Se a obrigação era só quanto às areias de terras devolutas, como se compreende e explica que Gordon pagasse por areias de terrenos de marinha?

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Memória Jurisprudencial

E com que direito vem agora invocar a origem das areias para se esquivar aos pagamentos ulteriores?

Dir-se-á que Gordon foi obrigado a pagar aquelas partidas de areia? Obri-gado por quem? Pelos embargados, não é possível, pelo Governo do Estado, também não, pois este, longe de proteger os embargados, lhes era contrário, tanto que acabou por lhes cassar as concessões, exigindo do embargante que pagasse a ele as duas libras prometidas aos embargados.

E isso explica a atitude atual de John Gordon. O Governo do Estado, como acabo de notar, exigiu do embargante não só a libra esterlina que ele se obrigara a pagar ao mesmo Estado, como também as duas libras que ele se obrigara a pagar aos embargados. Gordon, não querendo lutar com o Governo, sujeitou-se, e, não querendo pagar as duas libras em duplicata, pretende que os embargados sofram as conseqüências de sua fraqueza.

Não é possível. O embargante que resistisse ao Estado ou que procure ha-ver judicialmente deste as duas libras que indevidamente lhe está pagando. Os embargados é que nada têm que ver com as exigências do Governo da Bahia, que não foi parte no contrato por eles celebrado com o embargante.

Desprezo os embargos. Em 14 de janeiro de 1908.De acordo, contra Pedro Lessa, João Pedro e Herminio do Espirito Santo.

AGRAVO 1.137

Os mandados proibitórios da Lei 1.185, de 11 de junho de 1904, só podem ser concedidos desde que concorram estas duas condições: a existência de um imposto contrário às disposições daquela lei e a ameaça de turbação da posse das mercadorias.

O Distrito Federal não pode tributar produtos de outros Estados senão depois de incorporados às suas riquezas. Em tais condições não está o gado que, procedente de um Estado, passa pelo território do Distrito com destino a outro, sendo, portanto, ilegal o imposto de trânsito lançado sobre ele pela Municipalidade.

Vistos, expostos e discutidos estes autos, em que João Pinto da Silva Tavares agrava do despacho do Juiz da 2ª Vara Federal, que lhe negou um man-dado proibitório requerido, com fundamento na Lei 1.185, de 11 de junho de 1904, contra o ato das autoridades municipais deste Distrito que lhe cobram, a título de imposto de trânsito e sob ameaça de apreensão, 6$ de cada cabeça de gado, das boiadas que ele comprou em Minas Gerais para abater em Niterói:

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que duas são as condições exigidas pela lei citada para a concessão de mandado proibitório: um imposto contrário às suas disposições e a ameaça de turbação da posse sobre as mercadorias;

Considerando que os Estados, e como eles o Distrito Federal, só podem tributar mercadorias da produção dos outros Estados quando já constituam objeto de seu comércio interno e estejam assim incorporados às suas riquezas;

Considerando que nessas condições não se acha, evidentemente, o gado de produção do Estado de Minas Gerais, que passa por este Distrito com destino ao Estado do Rio de Janeiro;

Considerando, portanto, que o imposto de trânsito, contra o qual reclama o agravante, infringe a Lei 1.185, como, antes dela, já infringia a Constituição, art. 11, 1; e assim se verifica, na hipótese vertente, a primeira condição para a concessão do mandado proibitório;

Considerando que a segunda está provada nos autos com o depoimento das testemunhas, quando afirmam que o Agente Fiscal da Prefeitura se opôs ao desembarque da primeira boiada sem o pagamento do imposto e protestou apreender todo o gado que transitasse pelo Distrito, sem que tal contribuição fosse satisfeita;

Considerando que, realizadas essas duas condições, o Tribunal tem sem-pre concedido as garantias da Lei 1.185, não as recusando senão na ausência de ambas ou ao menos de uma delas, como se pode ver nos Acórdãos 781, 830, 831, 852 e 1.221, de 1906; 906, 934, 1.353, 1.357, 1.358, 1.365, 1.374, 1.378, 1.379, 1.383, 1.390, 1.436, 1.455, 1.456, 1.464, de 1907; e 474, de 1908, além de outros, não podendo prevalecer contra tantos julgados uniformes. Acórdão isolado de 3 de setembro de 1994 (sic), proferido, aliás, quando ainda não entrara em vigor a Lei 1.185, a qual, nos termos de seu art. 11, só começou a vigorar depois de expedido o respectivo Regulamento, isto é, em data posterior àquela decisão:

Acordam, verificado que o recurso tem fundamento legal, dar-lhe provi-mento para mandar que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, ordene a ex-pedição do mandado requerido, de modo a poder o gado do agravante transitar livremente pelo território do Distrito Federal com destino ao Estado do Rio de Janeiro, independentemente do pagamento de referido imposto.

Custas na forma da lei.Supremo Tribunal Federal, 17 de abril de 1909 — Herminio do Espirito

Santo, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — João Pedro — A. A. Cardoso de Castro — Manoel Espinola — Guimarães Natal — Pedro Lessa — Manoel Murtinho — Ribeiro de Almeida.

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Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CÍVEL 1.157

Vistos estes autos de apelação cível, vindos do Juízo Federal deste Distrito e em que é apelante a União Federal e apelados os Doutores Gabriel e Ismael Dias da Silva. Pelo contrato de fl. 17, celebrado a 21 de outubro 1890, concedeu a União à Companhia Predial de São Paulo, para a fundação de nú-cleos agrícolas e localização de imigrantes, uma zona de terras devolutas de trinta mil hectares, abrangendo três territórios de dez mil hectares cada um, ao preço de dez, cinco e três mil-réis por hectare, segundo a situação das terras.

Três dias depois, em um novo acordo, substituíram-se esses preços pelo preço uniforme de cinco mil-réis.

APELAÇÃO CÍVEL 1.160

Vistos estes autos de apelação cível interposta de sentença do Juiz da 2ª Vara deste Distrito e em que é apelante a União Federal e apelado o Banco Metropolitano do Brasil, deles consta o seguinte:

Em 4 de setembro de 1890, celebrou o Governo com o Banco Ítalo-Brasileiro o contrato de fl. 17, no qual, entre outras, se lêem estas cláusulas:

1ª O Banco (...) obriga-se a transportar dos portos da Europa, durante o prazo de 3 anos, a contar desta data, 50.000 imigrantes (...) com destino aos Estados da União (...)

14ª (...) A falta de cumprimento da cláusula 1ª sujeitá-lo-á (o contratante) à pena de caducidade do contrato.

A 24 de outubro do mesmo ano, fez-se, em aditamento a este, o contrato de fl. 21, no qual, depois de se declarar que o de 4 de setembro “continuava em pleno e inteiro vigor”, se ajustou, entre outras cousas e na conformidade do Decreto 528, de 28 de junho de 1890, o seguinte:

1º O Governo concede ao Banco Ítalo-Brasileiro uma área de terras devo-lutas até o máximo de 100.000 hectares no município da capital de São Paulo (...) e nos municípios de Santo Amaro e Itapecerica, para colocação de imigrantes que forem introduzidos pelo referido Banco.

Tais concessões foram, com autorização do Governo, transferidas em 23 de maio de 1891 (fl. 24) ao Banco Metropolitano do Brasil, autor nesta causa.

Quanto à execução que teve o primeiro desses contratos, consta do pro-cesso (documento 5 à fl. 32, despacho transcrito à fl. 13) e o autor não contesta que, dos 50 mil imigrantes de que trata a cláusula 1ª, apenas 10 mil foram intro-duzidos no prazo estipulado de três anos.

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Ministro Epitacio Pessôa

Em relação ao segundo, verifica-se o seguinte dos documentos que ins-truem a petição inicial:

O Banco apelado efetuou os trabalhos de medição e demarcação das ter-ras dentro do prazo de um ano marcado no art. 40 do Decreto 528, tendo sido medidos e demarcados 26.001 hectares e 800 metros no Município da Capital de São Paulo e 108.000 hectares e 672 metros no de Itapecerica. Nada consta em relação ao Município de Santo Amaro.

Contra a medição da Capital, depois de realizada, reclamou o Coronel Licínio Carneiro de Camargo, alegando ser proprietário de 5.111 hectares e 8.306 metros no terreno demarcado, pelo que resolveu o Governo, por despa-cho de 28 de dezembro de 1891 (fl. 36v.), enviar os papéis ao Presidente de São Paulo para decidir da procedência dessa reclamação. Quanto, porém, à medição de Itapecerica, nenhuma reclamação tendo aparecido, remeteu-a o Governo àquele Presidente por Aviso de 5 de março de 1892, autorizando-o a expedir o respectivo título de propriedade, depois de reduzida a 100.000 hectares a área medida, e recolhida à Tesouraria Federal a importância das terras, como já fora ordenado ao contratante por despacho de 22 de janeiro anterior.

Reconhecida a procedência da reclamação do Coronel Camargo e feita a discriminação das terras a este pertencentes na área demarcada, foram os pa-péis devolvidos ao Governo federal. A Inspetoria Geral de Terras e Colonização, ouvida sobre eles, informou em 29 de dezembro de 1892: que a parte técnica, relativa à discriminação das terras reclamadas, estava no caso de ser aprovada, visto terem sido os trabalhos regularmente feitos; quanto, porém, aos trabalhos de medição do Banco, não podiam ser aprovados, porque não tinham sido de-terminadas as coordenadas geográficas do ponto inicial dos mesmos trabalhos, não fora calculada a declinação magnética da agulha, não se levantara a planta hidrográfica do território medido, não constavam das plantas as altitudes dos terrenos nem as plantas estavam desenhadas na escala de um por dez mil, nos termos dos arts. 8, 9 e 10 das Instruções de 15 de janeiro de 1891 (fl. 31).

Diante dessa informação, baixou o Governo a Portaria de 17 de maio de 1893, declarando caduco o contrato de 24 de outubro, por isso que o conces-sionário, dentro do prazo de um ano, não realizara os trabalhos de medição em ordem a merecerem aprovação, de acordo com a segunda parte do art. 40 do Decreto 528, a cujo regímen estava sujeito o mesmo contrato, em virtude de sua cláusula 3ª (fl. 31v.).

Contra essa Portaria, insurgiu-se o Banco apelado; mas o Governo, em 28 de janeiro de 1898, manteve a sua decisão, tornando-a então extensiva ao pri-meiro contrato, o de 4 de setembro. Eis os termos desse despacho: “Indeferido. Relativamente ao contrato de 4 de setembro de 1890, porque no prazo marcado não foi introduzido o número de imigrantes a que estava obrigado o Banco.

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Memória Jurisprudencial

Quanto ao contrato de 24 de outubro de 1890, mantenho a pena de caducidade, porque a revalidação, no caso de ser permitida, em face do art. 6º, § 1º, da Lei 429, de 10 de dezembro de 1896, revigorada pelo art. 19 da Lei 490, de 16 de dezembro de 1897, não pode ter lugar. O concessionário devia, em virtude do despacho de 22 de janeiro de 1892 e nos termos do art. 40 do Decreto 528, de 28 de junho de 1890, entrar para o Tesouro com a importância de 10$ por hec-tare, o que não efetuou até a data de 17 de maio de 1893, em que foi decretada a caducidade (fl. 13).”

Nova insistência do Banco provocou da parte do Governo o despacho de 4 de novembro de 1899, em que foram mantidas as decisões anteriores: 1º, porque os trabalhos de medição apresentados pelo Banco não estavam no caso de merecer aprovação, em vista das irregularidades apontadas no Ofício 2.352, de 29 de dezembro de 1892, e no Ofício 2.741, de 1º de dezembro de 1891, da Inspetoria de Terras, dos quais se via que os trabalhos tinham sido feitos com atropelo e tumulto, sem dúvida para serem apresentados, embora imperfeitos, dentro do prazo legal; 2º, porque, não sendo possível, à vista de tais defeitos, a aprovação dos trabalhos, ao Governo não era dado conceder novo prazo para a retificação deles, em vista do disposto no art. 6º da Lei 126 B, de 21 de no-vembro de 1892, de sorte que a caducidade estava fulminada pela lei antes de decretada pelo Governo; 3º, porque o Banco pusera em evidência a sua falta de idoneidade para cumprir o contrato: a) deixando de entrar com o preço devido pela parte do terreno cuja demarcação fora aceita; b) deixando de cumprir o contrato de 4 de setembro de 1890, que de nenhuma sorte fora atingido pela Portaria de 17 de maio de 1893 (fl. 28).

Contra essas decisões aduz na presente causa o autor apelado: 1º, que não cumpriu integralmente o contrato de 4 de setembro, porque sua execução ficara, em grande parte, dependente do de 24 de outubro, e o Governo, demorando a execução deste e por fim declarando-o caduco, impossibilitou o cumprimento daquele; 2º, que, pelo que diz respeito ao contrato de 24 de outubro, as irregu-laridades apontadas nos ofícios da Inspetoria de Terras provinham de querer esta repartição, contra todos os princípios de direito, submeter o contrato ao regímen de uma lei posterior à sua celebração, as Instruções de 15 de janeiro de 1891, e de haver confundido a mera operação da desencravação das terras do Coronel Camargo, executada em uma nova planta parcial, com a própria medi-ção geral dos terrenos, como tudo mais tarde reconheceu a mesma Inspetoria no Ofício 1.195, de 31 de agosto de 1893; 3º, que apresentou os trabalhos den-tro do prazo, como se vê deste mesmo ofício, e os apresentou em condições de merecerem aprovação, tanto que o Governo, por Aviso de 5 de março de 1892, dirigido ao Governo de São Paulo, mandou expedir títulos de propriedade para uma extensão de 100 mil hectares, totalidade da concessão, abrangendo con-seguintemente os trabalhos de medição praticados no Município da Capital

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Ministro Epitacio Pessôa

daquele Estado, os quais desta sorte foram aprovados; 4º, que não entrou para o Tesouro com o preço das terras porque, quando procurou tornar efetivo o pagamento, surgiu o conflito entre as autoridades federais e estaduais quanto à competência para recebê-lo; 5º, que, sendo a lei reguladora dos contratos em questão o Decreto 528, não cogitando este decreto da pena de caducidade e não tendo sido essa pena estipulada em nenhuma das cláusulas do contrato de 24 de outubro, não podia o Governo impô-la ao contratante, como fez; 6º, que, à vista dessas razões, os despachos do Governo foram arbitrários e ilegais e por conse-qüência deve a Fazenda Nacional ser condenada a indenizar o apelado de todos os prejuízos, perdas e danos que por tal modo lhe causou.

A ré apelante defende-se alegando que o direito do apelado está prescrito porque, pretendendo ele a anulação da Portaria de 17 de maio de 1893, só veio a juízo em novembro de 1900, mais de sete anos depois; e, de meritis, que no contrato de 4 de setembro se convencionou a cláusula de caducidade para o caso em que o apelado não introduzisse, dentro de três anos, os 50 mil imigrantes e, não o tendo feito, bem procedeu o Governo declarando insubsistente o ajus-tado; com a execução do contrato de 4 de setembro não ficou dependente do de 24 de outubro, pois neste se exarou expressamente que aquele continuaria em pleno e inteiro vigor; que, finalmente, o art. 64 da Constituição, transferindo aos Estados a propriedade das terras devolutas revogou ipso facto o Decreto 528 e em conseqüência resolveu todas as concessões que, como a dos autos, não fo-ram até 24 de fevereiro de 1891 medidas e entregues aos concessionários, con-forme decidiu este Tribunal no Acórdão 834, de 12 de maio de 1903.

A sentença da primeira instância julgou procedente a ação: 1º, porque o apelado apresentou os trabalhos dentro do prazo legal e o Governo os aprovou mandando por Aviso de 5 de março de 1892 que o Governo de São Paulo expe-disse os títulos de propriedade; 2º, porque, ainda quando assim não fosse, não podia o Governo rescindir ou declarar caduco o contrato, uma vez que nem o Decreto 528 de 1890 nem as estipulações do aludido contrato o investiam de poder para tanto.

Dessa sentença apelou a União, insistindo nas razões expostas. O apelado por sua vez reproduz os argumentos já resumidos, acrescentando, em resposta à última alegação do apelante, que a Constituição não podia resolver as conces-sões de que ora se trata, porque constituíam verdadeiros direitos adquiridos do Banco apelado.

O Sr. Ministro Procurador-Geral da República opina pelo provimento do recurso, à vista do citado Acórdão 834, de 12 de maio de 1903.

Isso posto:Considerando que bem decidiu a sentença recorrida desprezando a pre-

judicial da prescrição qüinqüenal invocada pela apelante; porquanto, após a

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Memória Jurisprudencial

Portaria de 17 de maio de 1893, o apelado continuou sem interrupção apreciável a pleitear o seu direito administrativamente, e o último e definitivo despacho proferido pelo Governo, confirmando aquela Portaria e o despacho de 28 de ja-neiro de 1898, é de 4 de novembro de 1899, um ano apenas antes da propositura da ação;

Considerando que improcedente é a alegação da apelante de que o art. 64 da Constituição, passando aos Estados as terras devolutas, resolveu todas as concessões que, como a do apelado, não foram, até a data da Constituição, me-didas e entregues aos concessionários. O contrato de 24 de outubro, celebrado legitimamente pela União de acordo com a legislação então em vigor, era um ato juridicamente perfeito e acabado ao tempo em que se promulgou o Estatuto Federal. Constituía, portanto, um direito adquirido para o concessionário e, em tais condições, não podia ser atingido e desfeito por lei posterior. Acresce que as terras, objeto desse contrato, tendo sido cedidas pelo Governo federal, com-petente para fazê-lo, por uma convenção que a 24 de fevereiro de 1891 estava em inteiro e incontestado vigor, não podiam mais ser consideradas terras devo-lutas (Lei 601, de 18 de setembro de 1850, art. 3º, § 2º) para o efeito do art. 64 da Constituição.

Mas,Considerando, quanto ao contrato de 4 de setembro, que o apelado se

obrigou, pela cláusula 1ª, a transportar dos portos da Europa com destino aos Estados da União 50 mil imigrantes dentro de três anos a contar daquela data, e não cumpriu essa obrigação, pois apenas introduziu, durante todo o tempo da vigência do contrato, cerca de 10 mil imigrantes;

Considerando que a falta de observância dessa cláusula sujeitou o contra-tante à pena de caducidade, nos termos expressos da cláusula 14ª, e assim não se pode ter por lesivo do direito do apelado o despacho de 28 de janeiro de 1898, confirmado pelo de 4 de novembro de 1899, que declarou caduco o mencionado contrato;

Considerando que não colhe a razão aduzida pelo apelado de que, depen-dendo o contrato de 4 de setembro do de 24 de outubro, foi a própria apelante quem, demorando a execução deste, tornou impossível o cumprimento daquele. Os referidos contratos, como ressalta do estudo comparativo de suas cláusu-las, são atos juridicamente distintos e independentes, em que os encargos de um nenhuma obrigação forçada ou obrigatória têm com os do outro. O de 4 de setembro foi celebrado sem que se cogitasse de possuir ou não o Banco contra-tante terras devolutas; por ele o Banco assumiu a obrigação perfeita, isenta de qualquer condição, de introduzir nos Estados da República um certo número de imigrantes em prazo determinado; e se é exato que o segundo contrato foi lavrado em aditamento ao primeiro, também é verdade que naquele se declarou

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Ministro Epitacio Pessôa

expressamente que este continuaria em pleno e inteiro vigor. Haveria entre um e outro a dependência que pretende o apelado se os imigrantes cujo transporte se ajustou no primeiro fossem destinados exclusivamente às terras cedidas no segundo. Então sim, não poderia o contratante atrair os imigrantes ao País, sem ter medidas as terras e preparados os lotes onde localizá-los. Mas não é isso o que acontece. O apelado, no primeiro contrato, se obrigou a introduzir os imi-grantes com destino aos Estados da União; ora, desde que este contrato foi man-tido pelo de 24 de outubro em todas as suas cláusulas, é evidente que o destino dos imigrantes continuava a ser o mesmo, ainda depois de feita a cessão de ter-ras e, assim, não havia razão para demorar a execução do primeiro contrato até ser executado o segundo. E tanto é isso verdade, e tanto o apelado sentia que o segundo contrato não o eximia do cumprimento imediato do anterior, que, sem ter ainda as acomodações apropriadas de que fala a cláusula 2ª daquele, sem ter sequer medido as terras da concessão, deu início à introdução dos imigrantes, chegando a transportar para o País cerca de 10 mil. Se fosse pensamento do úl-timo contrato mudar o destino dos imigrantes, destiná-los tão-somente às terras do apelado, e, em conseqüência, adiar a execução do contrato de 4 de setembro para quando os lotes estivessem demarcados e preparados, é fora de dúvida que isso mesmo se teria declarado em a nova convenção, tanto mais quanto, sendo apenas de três anos o prazo para a introdução de 50.000 imigrantes, a condição de executar-se previamente o contrato de 24 de outubro anularia de todo esse prazo ou pelo menos o encurtaria de tal sorte que o contrato de 4 de setembro se tornaria inexeqüível: basta ponderar que só a medição das terras iria absorver um terço daquele período (Decreto 528, art. 40). Entretanto foi precisamente o contrário que se estatuiu, estipulando-se que o contrato de 4 de setembro con-tinuaria em vigor. Eis por que o Governo, declarando na Portaria de 17 de maio de 1893 a caducidade do contrato de 24 de outubro, deixou subsistente o de 4 de setembro, cujo prazo de execução não havia ainda expirado, isto é, entendeu que a caducidade daquele não importava a caducidade deste, que era um ato independente, e só veio a fulminá-lo, com a pena convencionada, pelo despa-cho de 28 de janeiro de 1898. É certo que na cláusula 1ª do contrato de 24 de outubro se diz que “o Governo concede ao Banco Ítalo-Brasileiro uma área de terras devolutas (...) para colocação de imigrantes que forem introduzidos pelo referido Banco”. O contrato diz “de imigrantes” e não “dos imigrantes”. Mas o que se pode depreender daí, depois do que fica exposto, é unicamente que ao Banco se outorgava a faculdade de encaminhar para as suas terras, em vez de dirigi-las para os Estados, as levas de imigrantes que viessem a chegar quando elas já estivessem em estado de recebê-las, o que explica a expressão — em aditamento — empregada no segundo contrato, mas não que a obrigação de introduzir os imigrantes dentro do prazo de três anos, obrigação que se dizia continuar em pleno e inteiro vigor, ficaria suspensa até que o apelado se achasse em condições de instalá-los convenientemente nas terras de sua concessão.

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Memória Jurisprudencial

Acresce que a 5 de março de 1892 o Governo mandou expedir ao concessionário os títulos de propriedade das terras de Itapecerica e, faltando então ainda de-zoito meses para findar o prazo do contrato de 4 de setembro, deixara de existir a razão invocada pelo apelado para suspender a execução desse contrato, como confessa que o fez (fl. 106v.).

E, quanto ao contrato de 24 de outubro:Considerando que o apelado efetuou duas medições distintas, uma no

Município da Capital de São Paulo e a outra no de Itapecerica;Considerando, em relação à primeira, que, se foi apresentada dentro do

prazo legal, não o foi, todavia, em condições de merecer aprovação, à vista dos defeitos de que se ressentia e foram apontados ao Governo pela repartição com-petente — a Inspetoria Geral de Terras — no Ofício 2.352, de 29 de dezembro de 1892 (fl. 31). Não basta que a medição se efetue dentro de um ano, é mister que seja feita de modo a merecer a aprovação do Governo, do contrário ficaria ao arbítrio do concessionário forçar a prorrogação indefinida daquele prazo para subseqüentes e sucessivas retificações dos trabalhos, iludindo assim o pen-samento da lei e preterindo os interesses da outra parte contratante ligados ao povoamento do solo pela execução imediata do contrato;

Considerando que não demonstrou o apelado que a Inspetoria de Terras se houvesse equivocado naquele ofício confundindo a operação da desencra-vação das terras do Coronel Camargo com a operação da medição geral dos terrenos. O ofício, pelo contrário, é claro e preciso nos seus termos, refere-se a uma e outra operação separadamente, afastando assim toda a idéia de confusão. Eis as suas próprias palavras: “Sobre a parte técnica relativa à discriminação das terras reclamadas (pelo Coronel Camargo) cabe-me declarar-vos que está no caso de ser aprovada, visto terem sido os trabalhos regularmente feitos; o mesmo, porém, não acontece com os trabalhos de medição feitos pelo Banco Metropolitano para aquisição do primeiro território, os quais, a meu ver, não podem ser aprovados, porquanto (...)” e menciona as irregularidades que notou. A esta informação faz referência um outro ofício da Inspetoria de Terras, o de 31 de agosto de 1893, sem retificação alguma (fl. 33) e antes confirmando a exis-tência das faltas assinaladas;

Considerando que destituída de fundamento é a alegação de que a me-dição não podia ser pautada pelas Instruções de 15 de janeiro de 1891, por se-rem posteriores ao contrato, e sim pelo Decreto 528, arts. 21 a 23, e mais do Decreto 451 B, de 31 de maio de 1890, art. 22, de acordo com o qual deviam ser registradas, com as indicações cuja falta aquela repartição salientou, as proprie-dades destinadas à localização de imigrantes;

Considerando que não é exato que a Inspetoria de Terras tivesse reco-nhecido e confessado, no Ofício 1.195, de 31 de agosto de 1893, a confusão das

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Ministro Epitacio Pessôa

medições e o erro da aplicação das Instruções que lhe atribui o apelado: basta ler esse ofício (fl. 31v.) para ver que a dita repartição manteve as suas afirmações anteriores e apenas variou em insinuar que “as faltas encontradas eram daque-las que poderiam ser supridas por ocasião da divisão dos lotes”, alvitre este que o Governo era livre de aceitar ou não;

Considerando que também não é verdade que o Governo houvesse apro-vado, pelo Aviso de 5 de março de 1892, a medição efetuada no Município da Capital de São Paulo e em conseqüência tivesse mandado expedir os respectivos títulos de propriedade; pois o citado Aviso é restrito à medição do Município de Itapecerica, como se pode ver a fls. 33v. e 36v., e o entendeu o seu destinatário, o Presidente do Estado de São Paulo, segundo reconhece o próprio apelado em sua petição inicial à fl. 11 e nas suas razões finais à fl. 99v. O apelado argumenta com o fato de haver aquele Aviso mandado expedir títulos de propriedade de cem hectares de terras e conclui daí que, sendo essa a extensão máxima da con-cessão, o pensamento do Governo foi aprovar todos os trabalhos de medição, inclusive os praticados no Município da Capital de São Paulo. Mas qualquer que seja a explicação que possa ter esse fato, o que é indiscutível é que ele não legitima essa conclusão: 1º, porque a medição da Capital de São Paulo estava pendente da reclamação do Coronel Camargo, sobre a qual devia resolver o Presidente do Estado, na conformidade do Aviso 49, de 30 de dezembro de 1891, e que ainda não fora decidida: 2º, porque o Aviso de 5 de março de 1892, como já ficou dito, se refere determinada e exclusivamente à medição de Itapecerica;

Considerando que o argumento de que o apelado não é responsável pe-las faltas notadas nos seus trabalhos, por terem sido estes executados sob a fiscalização do engenheiro da apelante, prova demais, pois, a ser procedente, escusada e inútil seria a exigência da aprovação do Governo;

Considerando, em relação à medição de Itapecerica, que, se é certo que o Governo a aprovou e mandou expedir os respectivos títulos de propriedade, é verdade também que no mesmo ato em que tal ordenou, o Aviso de 5 de março de 1892, tornou esses títulos dependentes do pagamento ao Tesouro Nacional do preço das terras (fl. 33v.), de acordo com o art. 40 do Decreto 528, e o apelado não preencheu essa condição essencial ao implemento do contrato;

Considerando que nenhum valor tem a escusa invocada pelo apelado de que não efetuou o pagamento por terem surgido dúvidas sobre qual a reparti-ção competente para recebê-lo, se o Tesouro federal, se o estadual; porquanto: a) o fato não está provado, sendo insuficiente para atestá-lo a vaga referência do Documento 6, à fl 37v., que não diz se as dúvidas apareceram precisamente quanto ao pagamento que tinha de realizar o apelado; b) o Aviso de 5 de março de 1892, como já o fizera o despacho de 22 de janeiro anterior, determinou que o pagamento fosse feito ao Tesouro federal, segundo, aliás, preceituava o art. 40

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Memória Jurisprudencial

do Decreto 528, na conformidade do qual se ajustara o contrato, e, assim, não era lícito ao apelado, contratante com a União e não com o Estado, deixar de cumprir essa obrigação a pretexto de que o Estado reclamava o preço para si; c) as dúvidas porventura levantadas em 1892 (aliás, sem fundamento algum, porque não era justo que a União, para quem tais contratos acarretavam ônus consideráveis, ficasse privada, em benefício dos Estados, que por eles nenhum encargo assumiam, da compensação que lhe oferecia o produto da venda das terras) não tinham mais razão de ser, pois isso era assunto resolvido desde 1891, isto é, desde antes da aprovação da medição de Itapecerica, como se verifica do Aviso 31, de 29 de setembro de 1892, em que o Ministro, que o expediu, alude às decisões proferidas em favor do Tesouro da União pelos seus dois imedia-tos predecessores, um dos quais deixou a respectiva secretaria ainda no ano de 1891;

Considerando que o Aviso de 5 de março de 1892 não contém uma só pa-lavra que autorize a afirmativa da petição inicial de haver o Governo, por meio dele, pedido para São Paulo a devolução dos papéis a fim de resolver aquelas dúvidas;

Considerando que sem alcance é ainda a argüição, acolhida pela sentença apelada, de que não cogitando o Decreto 528 nem o contrato de 24 de outubro da pena de caducidade, não podia o Governo decretá-la. A superveniência da condição resolutiva rescinde pleno jure o contrato. A falta de cumprimento por uma das partes contratantes das obrigações a que se sujeitou é equiparada a uma condição dessa natureza, com a diferença, porém, de que em tal caso a rescisão deve ser promovida judicialmente pela outra parte, podendo o juiz, conforme as circunstâncias, rescindir o contrato ou conceder à parte impontual um prazo razoável para satisfazer aquilo a que se obrigou. São esses, com efeito, os prin-cípios correntes em direito. Em face deles, o objetivo da presente ação deveria ser a anulação da portaria de caducidade por falta de competência do Governo para expedi-la, sendo este condenado a ressarcir os prejuízos correspondentes ao período da indébita suspensão do contrato, só revogável por via judiciária. Então, sem se preocupar com os motivos determinantes do ato do Governo, o Poder Judiciário teria tão-somente que apreciar a competência deste e, nesse caso, pertinente seria a argumentação do apelado. Mas o apelado não se limitou a isso. O que ele pede é que o Poder Judiciário examine desde logo os funda-mentos do ato governamental para declará-los improcedentes e condenar em conseqüência a apelante não a admiti-lo à execução do contrato, compondo-lhe ao mesmo tempo os prejuízos relativos ao período da suspensão, como parecera lógico, mas a indenizá-lo de todas as perdas e danos equivalentes à inexecução integral do contrato, aceita assim a caducidade como ato definitivo e irrevogá-vel. Ora, colocada a questão nesses termos, ela tem de ser estudada não já sob o ponto de vista da competência do Governo, mas sob um aspecto diverso, qual o

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Ministro Epitacio Pessôa

de saber se o ato da apelante, pela improcedência das razões em que se baseou, feriu algum direito contratual do apelado. Descabido é, pois, investigar se, nos contratos em que figura, está o Governo subordinado, como qualquer parti-cular, ao rigor dos princípios acima expostos, apesar da fiscalização superior que lhe incumbe sobre tudo quanto respeita ao interesse público, único fim por ele colimado nos contratos que celebra; o que há a indagar é apenas se, fulmi-nado o contrato de 24 de outubro, lesou a União os direitos assegurados à outra parte por este mesmo contrato. Sobre esse ponto nenhuma dúvida pode existir quanto à resposta negativa. Desde que o contrato se fez na conformidade do Decreto 528 de 1890 e este, no art. 40, impõe ao concessionário a obrigação de, no prazo máximo de um ano, medir as terras concedidas recolhendo ao Tesouro federal a importância respectiva, claro é que o não-cumprimento, em que qual-quer de suas partes, dessa obrigação, de que depende a tradição e conseqüente domínio das terras, torna inexigível o contrato por parte do concessionário, o invalida efetivamente e lhe tira toda a capacidade de produzir efeitos. O ato do Governo foi, portanto, simplesmente declaratório duma situação de fato e de direito incontestável e, assim, nenhum gravame fez na realidade aos direitos conferidos pelo contrato ao apelado, direitos que este mesmo se descuidara de acautelar, deixando de cumprir em tempo os encargos que assumira. Que o prazo de um ano fixado na mencionada disposição do Decreto 528 se refere assim à medição das terras como ao pagamento do seu preço, é o que ressalta a toda luz do espírito e da letra da lei. Libertar da restrição criada por esse prazo o pagamento das terras seria, medidas estas, fazer do concessionário o senhor único e discricionário da execução do contrato, sendo-lhe lícito tornar sem aplicação possível, pelo tempo que bem lhe aprouvesse, uma vasta extensão de terras da nação, sem proporcionar à nação compensação de ordem alguma. Por outro lado também dos termos do art. 40 o que se pode deduzir é que o paga-mento vem logo após a medição, estando igualmente subordinado ao prazo de um ano: “(...) deverão, diz a lei, no prazo máximo de um ano, efetuar a medição das terras que lhe forem concedidas, recolhendo a respectiva importância (...) ao tesouro público (...)”. Essa inteligência é corroborada pelo artigo seguinte nas palavras preenchida esta formalidade; porquanto, tratando-se na dispo-sição antecedente de dois atos distintos, a medição e o pagamento, expressos em uma oração principal e outra subordinada, é evidente que a expressão esta formalidade, no singular, abrange o pensamento integral da frase, isto é, com-preende um e outro e conseguintemente pressupõe que eles sejam praticados ambos dentro do prazo que, sem referência exclusiva a qualquer deles, ali se fixou. Assim o regular é que o concessionário meça as terras e pague o preço no prazo máximo de um ano, estando entendido que não correrá por sua conta o tempo que o Governo tomar para a aprovação das medições e a expedição de ordem de pagamento. Uma vez, porém, expedida essa ordem, o pagamento deve ser imediato. Ora, no caso dos autos, o Governo ordenou por despacho de 22

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Memória Jurisprudencial

de janeiro de 1892 que o apelado recolhesse ao Tesouro o preço das terras; dois meses mais tarde, a 5 de março, reiterou essa ordem; quatorze meses depois, a 17 de maio de 1893, data da portaria de caducidade, isto é, decorrido mais de outro tanto do prazo determinado no art. 40 do Decreto 528, não havia ainda o apelado satisfeito o preço estipulado! O contrato estava, pois, na realidade des-feito por ato do próprio apelado, ato que não encontra justificativa, como já se mostrou, nas dúvidas que se dizem levantadas quanto ao cofre competente para receber o pagamento. Não tem base legal a objeção de que a inobservância do prazo de um ano tem apenas como efeito privar o concessionário de entrar no gozo dos favores do contrato, nos termos art. 41. Esse dispositivo o que visa é restringir a liberdade contratual da administração, impedindo que esta admita o concessionário ao gozo das vantagens estipuladas antes de demarcadas as terras e pago o seu preço dentro do período de um ano. Se assim não fosse, nenhuma significação teria a fixação do prazo do art. 40, e o legislador teria dito simples-mente: “O concessionário deverá medir as terras e pagar a sua importância e en-quanto não preencher esta formalidade, não poderá entrar no gozo dos favores convencionados”. Mas isso daria em resultado o absurdo já apontado de ficar ao só arbítrio do concessionário a execução do contrato;

Considerando que não pode o Tribunal conceder ao apelado um prazo para o cumprimento de suas obrigações. Além de que as razões em que se fun-dou o Governo provam que o concessionário não estava em condições de cum-prir o contrato, acresce que a Lei 126 B, de 21 de novembro de 1892, art. 6º, II, já em vigor ao tempo do ato cuja nulidade se pede, seria obstáculo a qualquer concessão nesse sentido;

Considerando, em face do expendido, que os atos do Governo de 17 de maio de 1893, 28 de janeiro de 1898 e 4 de novembro de 1899 nenhuma lesão fizeram aos direitos do apelado:

Acordam reformar a sentença recorrida para julgar improcedente a ação, e condenam o apelado nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 2 de janeiro de 1907.

APELAÇÃO CÍVEL 1.197

O funcionário vitalício mantém o seu direito aos vencimen-tos ainda depois de extinto o cargo.

A Lei fluminense 20, de 31 de outubro de 1892, declarou, em seu art. 3º, vitalícios e inamovíveis os membros do Tribunal de Contas do Estado.

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Ministro Epitacio Pessôa

Havendo a reforma constitucional de 18 de setembro de 1903 extinguido esse Tribunal e tendo sido, em conseqüência, dispensados de suas funções os desembargadores Antônio José de Sousa Freitas e Enéias de Araújo Torreão, membros do mesmo Tribunal, requereu o primeiro deles ao Governo do Estado que providenciasse no sentido de lhe continuarem a ser pagos os vencimentos respectivos, uma vez que só por motivo independente de sua vontade deixara de exercer o referido cargo.

Esse requerimento foi indeferido pelo despacho de 5 de março de 1904, que se lê à fl. 22.

À vista disso, propuseram os ditos desembargadores, perante o Juiz secio-nal do Rio de Janeiro, a presente ação ordinária, em que, justificando a compe-tência da Justiça Federal com ser a ação fundada em disposição da Constituição da República (caso do art. 60, letra a) e pleiteada entre um Estado e cidadãos do Distrito Federal, onde hoje residem os autores (hipótese do art. 60, letra d), pe-dem seja o Estado condenado a lhes pagar aqueles vencimentos, desde a data em que foram afastados de suas funções até serem providos em cargos equivalentes ou serem regularmente aposentados, e mais os juros da mora.

A ação foi julgada improcedente pela sentença de fl. 58, da qual apelaram em tempo os autores.

E, depois de vistos, relatados e discutidos os autos:Considerando que os apelantes não podem, ainda que atualmente residam

neste Distrito, ser considerados cidadãos de outro Estado, em causa movida para a anulação de um ato que os atingiu no caráter de membros vitalícios do Tribunal de Contas, quando, por força do cargo, residiam e eram obrigados a residir no Estado do Rio de Janeiro, e desde que é precisamente naquele caráter que intentam a ação; mas

Considerando que os apelantes fundam a sua ação diretamente em dispo-sições da Constituição Federal;

Considerando que, se a simples invocação da Carta Constitucional não basta para aforar a causa na Justiça da União, do contrário anulada ficaria a jurisdição da Justiça dos Estados, uma vez que todos os direitos encontram assento próximo ou remoto na Constituição, é certo também que o mero fato material da existência de uma lei ou decreto, estatuindo sobre o caso que faz objeto da lide, não pode ter a virtude de anular a competência da Justiça Federal, em benefício dos tribunais locais. Se tal fato fosse por si só bastante para carac-terizar a competência da Justiça estadual, sem aplicação ficaria o art. 60, letra a, da Constituição, porque toda causa fundada imediatamente na Constituição tem precisamente por fim a defesa de um direito ferido por ato legislativo ou executivo da União ou dos Estados. É mister, pois, entender o citado preceito

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Memória Jurisprudencial

constitucional qual se interpreta no direito americano a disposição de que ele é cópia, isto é, como referindo-se às causas diretamente regidas pela Constituição ou que digam respeito aos poderes que esta confere, às garantias que assegura e às proibições que faz, independente de qualquer lei especial (Acórdãos 162, de 30 de setembro de 1896, Jurisprudência, p. 101; 185, de 3 de abril de 1897, Jurisprudência, p. 71; 285, de 5 de dezembro de 1898, Jurisprudência, p. 134; 462, de 3 de janeiro, e 361, de 11 de agosto de 1900, Jurisprudência, p. 187 e 105; 1.221, de 24 de outubro de 1906, etc.);

Considerando que os apelantes invocam em apoio do seu pedido os arts. 11, 3; 63; e 74 da Constituição, e estes dispositivos contêm proibições, poderes e garantias que, para a sua efetividade, não dependem de qualquer lei ou ato especial, verificando-se assim o caso de competência definido no citado art. 60, letra a;

E, de meritis:Considerando que em um emprego público qualquer há a distinguir a

função, que constitui o interesse da sociedade, e o vencimento, que representa o interesse do funcionário: em bem cumprir a primeira está o dever deste; em pagar pontualmente o segundo se concretiza a obrigação daquela;

Considerando que, se o emprego é vitalício, o ato da nomeação seguido da posse vincula desde logo o Governo à obrigação de pagar os vencimentos do cargo ao nomeado, enquanto este viver ou enquanto o não perder por ato pró-prio, previsto em lei: é esta uma das cláusulas sob as quais se presume ter sido aceita a nomeação, uma das promessas do poder público implicitamente com-preendida no título mesmo de investidura;

Considerando que, se ao Governo é lícito suprimir o emprego, instituição de direito público, desde que o não repute mais necessário, e por esta forma re-nunciar ao que lhe deve o funcionário, não pode, todavia, esse seu ato ter como efeito forrá-lo àquela obrigação: pode o sujeito de um direito abrir mão desse direito, mas ao devedor de uma obrigação não é dado eximir-se, por ato pessoal, ao seu cumprimento;

Considerando que a vitaliciedade não tolhe somente ao Governo a liber-dade de demitir o funcionário, mas também a de extinguir-lhe o emprego, sem lhe assegurar os proventos respectivos, do contrário aquele predicamento seria uma garantia puramente nominal, pois estaria no arbítrio da administração burlá-la sempre que quisesse, abolindo a função;

Considerando, portanto, que os princípios de direito, tantas vezes pro-clamados por este Tribunal, que obrigam o poder público a pagar ao funcio-nário vitalício, a quem demite, os vencimentos do cargo, atuam com a mesma procedência e vigor na hipótese da extinção do emprego; num e noutro caso a

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Ministro Epitacio Pessôa

situação jurídica das partes é a mesma, donde a conseqüência que a supressão do cargo, quaisquer que sejam os motivos que a determinem, não exonera o Governo da obrigação contraída;

Considerando que esta conclusão encontra o mais sólido apoio assim nos ensinamentos da doutrina como nossa na longa e ininterrupta tradição admi-nistrativa e legislativa, conforme demonstraram os apelantes nas suas razões de fls. 43 e 71, em que, a par da opinião das mais conspícuas autoridades sobre o assunto, enumeram — assegurando aos funcionários públicos, na hipótese figu-rada, o estipêndio dos seus cargos, não como um ato de mera eqüidade, segundo pareceu à sentença apelada, mas como o reconhecimento de um direito preexis-tente, segundo resulta iniludivelmente dos seus termos — uma longa série de atos, entre os quais avultam pela sua importância e pela precisão e clareza com que proclamam esse direito: a Lei 1.507, de 26 de setembro de 1867, art. 36, 3; os Decretos de 21 e 28 de agosto de 1880, expedidos depois de ouvido o Conselho do Estado; os Decretos do Governo Provisório 981, de 8 de novembro de 1890, art. 77 e 1.073, de 22 do mesmo mês e ano, art. 196; a Lei 314, de 30 de outubro de 1895, art. 4º; e a Lei 756, de 5 de janeiro de 1901, art. 1º; parágrafo único, atos estes aos quais se pode juntar o art. 74 da Constituição, que garante em toda a sua plenitude os cargos inamovíveis, o que não significa outra cousa senão que o titular de um cargo vitalício não pode, em hipótese alguma, ser privado das vantagens desse cargo;

Considerando, à vista dos princípios expostos, que desde o momento em que um cidadão é investido em um emprego vitalício, adquire direito, por toda a sua vida, aos proventos ligados a esse emprego, os quais passam a fazer parte do seu patrimônio jurídico, e, sendo assim, a lei que extingue a função, sem prover quanto à situação do funcionário, ofende um direito adquirido, é uma lei retroativa e como tal incide na proibição do art. 11, 3, da Constituição Federal;

Considerando que em tais condições se acha a Lei fluminense 600, de 18 de setembro de 1903, conforme a interpretou o despacho de 5 de março de 1904, que, apesar do pensamento manifestado pelo legislador de resguardar os direi-tos dos funcionários cujos cargos extinguia, mandando desde logo aproveitar um deles em emprego equivalente, nela se fundou para recusar a um dos apelan-tes os seus vencimentos de membro vitalício do Tribunal de Contas do Estado;

Considerando que improcede a alegação do réu apelado de que, tratando-se de uma reforma constitucional, não se lhe pode negar aquele efeito sem se limitar arbitrariamente a soberania do Estado; nos regimes federativos a sobe-rania reside exclusivamente na União; os Estados, simples entidades autôno-mas, obrigados a respeitar em suas leis, quaisquer que elas sejam, os princípios constitucionais da União (Constituição, art. 63), não podem, por isso mesmo, na reforma dessas leis, rebelar-se contra as proibições que lhes são feitas na Carta

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Memória Jurisprudencial

Federal, como seja, na hipótese, a do art. 11, 3, que lhes veda expressamente prescrever leis retroativas;

Considerando o mais que dos autos consta:Acordam reformar a sentença de fl. 58v. para condenar o réu apelado, nos

termos do pedido, a pagar aos autores apelantes os vencimentos de membros do extinto Tribunal de Contas, à razão de 9:900$000 anuais, desde a data em que deles foram privados até serem providos em cargos equivalentes, ou até serem regularmente aposentados, juros da mora e custas.

Supremo Tribunal Federal, 10 de novembro de 1906 — Piza e Almeida, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Herminio do Espirito Santo — Ribeiro de Almeida — Manoel Murtinho. Votei preliminarmente pela competência da Justiça Federal, por ocorrer na espécie o caso do art. 60, letra d, da Constituição Federal. — João Pedro. Pelo fundamento de haver a lei estadual resguardado os direitos dos funcionários cujos cargos extinguiu. — A. A. Cardoso de Castro — Manoel Espinola — Amaro Cavalcanti — A. André Cavalcanti — Guimarães Natal — Alberto Tôrres — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

APELAÇÃO CÍVEL 1.221

Destes autos de apelação cível, em que é apelante o Estado do Maranhão e apelados Sousa Machado & Cia. sucessores de Alves Machado & Cia., veri-fica-se o seguinte:

Os apelados, fundados no art. 5º da Lei 1.185, de 11 de junho de 1904, requereram ao Juiz Federal do Maranhão um mandado de manutenção contra o apelante, por lhes haver este penhorado mercadorias para pagamento de impos-tos denominados de consumo, mas que na realidade recaem sobre o comércio interestadual. Expedido o mandado, veio o apelante com a exceção de fl. 59, em que, ao mesmo tempo em que defende a constitucionalidade daquele imposto, argúi de incompetente a Justiça da União para conhecer da matéria, visto ser a citada Lei 1.185 infringente dos arts. 59, § 1º, letra b, e 62 da Constituição Federal. O Juiz, declarando embora não conhecer da exceção por ser inadmis-sível em face do art. 7º desta lei, apreciou-a de meritis, declarando-a improce-dente e confirmou o mandado.

Da sentença que assim decidiu, apelou em tempo o Estado, insistindo na incompetência da Justiça Federal e na constitucionalidade do imposto.

Os apelantes por sua vez alegam: preliminarmente, que o Tribunal não deve conhecer da apelação, por não ser admissível, nem como recurso da sen-tença na parte em que rejeitou a exceção, pois em tal caso o único recurso legal

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Ministro Epitacio Pessôa

é o de agravo, nem como recurso da sentença na parte em que confirmou o man-dado, porquanto, não tendo o apelante embargado no tríduo o primitivo despa-cho, não pode ser mais ouvido na causa, segundo estatui o art. 10 do Decreto 5.402, de 23 de dezembro de 1904; e, de meritis, que a competência da Justiça Federal na espécie se firma no art. 60, letra a, da Constituição, e, quanto à lei maranhense, se de fato ela está de acordo com a Lei federal 1.185, é certo, toda-via, que o fisco estadual a ilude em sua execução, como provam os documentos de fls. 19 a 49.

Exposta a questão, resolve o Tribunal preliminarmente tomar conhe-cimento da apelação, por isso que, havendo o Juiz, na mesma sentença que desprezou a exceção de incompetência, julgado definitivamente a manutenção, lícito era ao Estado apelar da sentença nesta última parte.

Se é certo que o art. 10 do Decreto 5.402 declara que o Estado que deixa de embargar o mandado dentro de três dias não pode mais ser ouvido, é verdade também que esta disposição deve ser atendida de harmonia com a disposição correspondente da lei, o art. 8º; e esta preceitua apenas que, findo o tríduo, os embargos não poderão mais ser recebidos, nada contendo, porém, que legitime a conclusão de que ao Estado não será mais permitido defender-se em termo algum do processo, nem mesmo por via de apelação. Seria, com efeito, injus-tificável tolher à parte que, por qualquer circunstância, deixou expirar o prazo sem oferecer os seus embargos, o direito de buscar na instância superior a re-paração da injustiça que porventura lhe tivesse feito a sentença confirmatória do mandado.

E, como o Estado, aproveitando o recurso de que usou, insiste em negar a competência da Justiça Federal por ser inconstitucional a lei que lha concedeu, passa o Tribunal, antes do mais, a examinar essa questão.

Afirma o apelante que a Lei 1.185 é inconstitucional:a) porque, sempre que se contesta a validade de leis ou de atos dos

Governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federais, a Justiça competente para dirimir a controvérsia é a Justiça local, ex vi do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, e, sendo assim, não pode uma lei ordinária conferir essa atribuição em caso algum à Justiça Federal;

b) porque “a Justiça Federal não pode intervir em questões submetidas aos tribunais dos Estados, nem alterar, anular ou suspender as decisões ou or-dens destes, excetuados os casos expressamente declarados na Constituição”, e, pois, estando a questão sujeita já à Justiça local, não era dado ao Juiz Federal, embora autorizado por aquela lei, intervir no pleito, e por meio de um mandado de manutenção suspender a ação do Juiz do Estado, hipótese que se não acha “declarada expressamente” em nenhum artigo da Constituição.

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Memória Jurisprudencial

Não há dúvida que, segundo o art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, a Justiça local é competente para decidir da validade das leis do Estado, quando contestada perante ela em face da Constituição ou das leis da União. É este direito um consectário da autonomia das Justiças locais; é o que se deduz dos precisos termos da disposição citada e o que o Supremo Tribunal tem assentado em uma longa série de julgados.

Mas é incontestável também que este preceito se refere às causas que, desde a origem, por sua natureza e independente da questão constitucional que nelas se agita, são da competência da Justiça dos Estados.

Ele não compreende, porém, as causas da alçada da Justiça da União, nas quais, entretanto, é possível também surgir a questão da constitucionalidade de uma lei local.

Ora, quando tal aconteça, tornar-se-á, por acaso, só por este fato, incom-petente a Justiça Federal, até então competente? Terá, porventura, essa circuns-tância a virtude de desaforar o feito?

Certamente não; este continua a correr perante o Juiz Federal, a quem desde então assiste o direito de negar execução à lei local, cuja inconstituciona-lidade se argúi, como tem o de não cumprir uma lei da República, em condições idênticas.

Seria, com efeito, extravagante que a Justiça Federal, a quem está con-fiada a defesa da Constituição contra os atos dos outros poderes nacionais, fosse obrigada a aplicar passivamente as leis dos Estados ainda que as reconhecesse contrárias à Constituição, ou a recuar impotente diante delas, quando surgissem como um embaraço ao desempenho de sua missão.

Este ponto, aliás, já foi resolvido no sentido das considerações expostas pelos Acórdãos 948 e 949, de 10 de agosto de 1904.

É, portanto, fora de dúvida que, em uma causa de sua competência, pode a Justiça Federal conhecer da constitucionalidade de uma lei de Estado; não há aí nenhuma violação do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição, que pressupõe hi-pótese diversa.

Isso mostra que a questão foi mal posta pelo apelante.Não se pode provar a inconstitucionalidade da Lei 1.185 com o art. 59

da Constituição, porque este artigo cogita de feitos da competência da Justiça dos Estados, enquanto que as causas de que trata a lei de 1904 são da alçada da Justiça Federal.

O que se tem de investigar é se esta lei podia conferir à Justiça da União o conhecimento e julgamento dessas causas. Se podia, a lei é perfeitamente constitucional, apesar do art. 59, § 1º, letra b, da Constituição; se não podia, a

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Ministro Epitacio Pessôa

lei não deve ser aplicada, não porque o citado artigo obste que o juiz federal, em causa de sua competência, aprecie a constitucionalidade de uma lei de Es-tado, mas unicamente por uma destas duas razões: ou porque a legislatura or-dinária não pode aumentar as funções do Poder Judiciário federal, ou porque, podendo-o, outorgou, todavia, a este o conhecimento de uma causa privativa da Justiça local.

A questão, com efeito, se biparte assim:1º Pode o Congresso Nacional conferir ao Poder Judiciário atribuições

que não estejam expressas na Constituição?2º Serão os mandados de manutenção ou proibitórios da lei de 1904, por

sua natureza, da competência da Justiça Federal ou da competência da Justiça dos Estados?

Quanto ao primeiro ponto, a doutrina corrente entre nós, como no direito americano, é que as atribuições privativas e originárias do Supremo Tribunal não podem ser aumentadas nem diminuídas; não assim, porém, as atribuições da Justiça Federal da primeira instância, às quais pode a legislatura ordinária acrescentar outras causas, desde que nestas se pleiteie um interesse da União.

Eis por que o Tribunal aceitou, apesar de não exarada expressamente na Constituição, a competência atribuída aos juízes secionais, e a ele próprio por via de apelação: 1º, nas ações de marcas de fábrica, entendendo que neste caso a Lei 221, art. 12, se limitou a exprimir poderes implícitos no art. 35, 2, e no art. 72, § 25, § 26 e § 27, da Constituição; 2º, nos processos de contrabando e moeda falsa, admitindo que neste ponto a citada Lei 221, de 1894, e a 515, de 1898, nada mais fizeram do que traduzir poderes incluídos nos arts. 7º, 1 e § 3º, e 34, 4 e 5, quanto ao primeiro daqueles crimes, e nos arts. 7º, § 1º, 1; 34, 7 e 8; e 66, quanto ao segundo.

O Tribunal legitimou assim o princípio de que ao Poder Legislativo ordi-nário é lícito aditar às atribuições dos juízes secionais outras atribuições, con-tanto que estas se compreendam implicitamente nos poderes conferidos à União pela Carta Constitucional.

E nesta ordem de idéias foi ao ponto de aceitar a competência que lhe deu a lei de 24 de setembro de 1893 para julgar, em segunda instância, os recursos eleitorais, considerando-os matéria concernente a direitos políticos e, assim, implícita, senão expressamente compreendida na esfera da jurisdição federal. (Acórdão 24, de 23 de fevereiro de 1897, Jurisprudência, p. 353.)

É que existem sempre nas leis institucionais certas atribuições implícitas que são imprescindíveis para garantirem a unidade da administração. Nem era possível, sem o completo aniquilamento do sistema federativo, delegar às auto-ridades estaduais a solução de graves assuntos que entendem com os direitos

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Memória Jurisprudencial

outorgados pela Constituição aos órgãos da soberania nacional. (Acórdão de 24 de outubro de 1894.)

Tratando-se de ato lesivo à Fazenda Nacional, outra jurisdição para dele conhecer não pode ser invocada senão a federal, instituída especialmente para garantia e segurança das prerrogativas dos direitos, poderes e contratos da União, nada havendo mais incurial e ábsono da organização federal do que colocar esses direitos sob a dependência das jurisdições locais e, com tal subversão dos princípios fundamentais do regímen, sobrepor a parte ao todo, dando àquela a preponderância sobre este. (Acórdão 1.850, de 13 de setembro de 1902.)

Entra na alçada das legislaturas ordinárias definir esses poderes implí-citos, e, como conseqüência, confiar a sua salvaguarda ao Poder Judiciário da União.

Do exposto conclui-se que ao Congresso Nacional é lícito conferir aos juí-zes secionais atribuições que não estejam expressas no art. 60 da Constituição. A única restrição a esta faculdade é que a nova atribuição exista implícita em disposições da Constituição Federal.

Preenchida esta condição, tal faculdade é perfeitamente legítima, à vista do art. 65, 2, em virtude do qual só é facultado aos Estados o poder ou o direito que lhes não for negado por cláusulas expressas da Constituição, e do art. 34, 33, pelo qual compete ao Congresso Nacional decretar as leis necessárias ao exercício dos poderes que pertencem à União.

Estabelecidos esses princípios, fácil é responder à segunda questão acima formulada, a de saber se os mandados criados pela Lei de 1904 em garantia do comércio interestadual são por sua natureza causas da competência da Justiça local ou da Justiça da União.

Que são e devem ser da alçada desta última Justiça, é o que se deduz de modo iniludível, segundo a hipótese do art. 7º, 2, que declara livre o comércio de cabotagem; do art. 11, que proíbe aos Estados os impostos de trânsito, e do art. 34, 5, segundo o qual compete privativamente ao Congresso Nacional regu-lar o comércio dos Estados entre si e com o Distrito Federal.

O Estado que tributa a entrada ou a passagem de mercadorias de outros Estados ou estrangeiras em seu território viola, sem dúvida, estes preceitos constitucionais, como tantas e tantas vezes tem decidido o Supremo Tribunal, e, violando-os, fere direitos e interesses da União, embaraçando o exercício de uma função que é somente dela, diminuindo-lhe as rendas pelo retraimento for-çado da importação, que o imposto estadual afugenta, provocando talvez con-flitos interestaduais, gerando a guerra de tarifas entre os Estados, perturbando, portanto, da maneira mais nociva o seu comércio, etc.

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Ministro Epitacio Pessôa

Por conseguinte, os meios judiciais conducentes a amparar essa prerroga-tiva e proteger esse interesse da União, como sejam os mandados da Lei 1.185, entram naturalmente na esfera de ação da Justiça Federal.

Ainda quando seja essencial que a nova atribuição esteja implicitamente compreendida em alguma das que o art. 60 enumera, não se poderá recusar gua-rida à de que se trata, na letra a desse dispositivo: “Compete aos juízes federais processar e julgar as causas em que alguma das partes fundar a ação ou a defesa em disposição da Constituição Federal.”

A opinião que considera aplicável este preceito somente quando não existe uma lei ou decreto referente ao objeto da lide deve ser entendida em termos. Se é exato que a simples invocação da Carta Constitucional não basta para aforar a causa na Justiça da União, do contrário anulada ficaria a jurisdição dos tribunais dos Estados, uma vez que todos os direitos encontram assento próximo ou re-moto na Constituição, é claro também que o mero fato material da existência de uma lei ordinária ou decreto executivo estatuindo sobre o direito em litígio não pode ter como efeito anular a competência da Justiça Federal em benefício dos juízes locais. E tal aconteceria se aquele fato fosse por si só bastante para carac-terizar a competência da Justiça dos Estados, porquanto o art. 60, letra a, ficaria desde então sem aplicação possível, visto que toda causa fundada imediata-mente em disposição da Constituição tem precisamente por fim a defesa de um direito ferido por ato legislativo ou executivo da União ou dos Estados. É mister, pois, entender-se o citado preceito constitucional como se interpreta no direito americano a disposição de que ele é cópia, isto é, como sendo aplicável sem-pre que se trate de causas regidas diretamente pela Constituição, ou que digam respeito aos poderes que ela confere, às garantias que assegura e às proibições que faz, independentemente de qualquer lei especial. Nem outra é a inteligência proclamada pelo Supremo Tribunal nos Acórdãos 162, de 30 de setembro de 1896, Jurisprudência, p. 101; 185, de 3 de abril de 1897, Jurisprudência, p. 71; 288, de 5 de dezembro de 1898, Jurisprudência, p. 134; 462, de 30 de janeiro de 1900, Jurisprudência, p. 187, além de outros. Ora, não se pode contestar que os mandados da Lei 1.185 constituem uma proteção à liberdade do comércio interestadual garantida pela Constituição, visam tornar efetivos poderes que a Constituição confere à União e proibições que a Constituição fez aos Estados, poderes que não dependem de leis especiais que lhes regulem o exercício, proi-bições que, para se imporem, não precisam que os legisladores ordinários lhes definam as condições de sua realização.

Alega ainda o apelante que a Lei 1.185, de 1904, infringe o art. 62 da Constituição.

Segundo esse artigo, a Justiça Federal não pode intervir nas questões submetidas aos tribunais dos Estados, nem alterar ou suspender as decisões ou

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Memória Jurisprudencial

ordens destes, excetuados os casos expressamente declarados na Constituição. Estes casos são os de revisão, recurso extraordinário, habeas corpus e espólio de estrangeiro. (Constituição, art. 59, III; art. 59, § 1º; letra b; e art. 61.)

Basta atentar para os termos do art. 62 e daqueles em que vêm exaradas as exceções aí previstas, para ver que na expressão questões submetidas aos tribunais dos Estados, a Constituição pressupõe questões da privativa compe-tência destes tribunais. O simples fato de ser o pleito intentado perante o juiz local não previne a ação do juiz da União, se a causa é por sua natureza da competência da Justiça Federal. Do contrário, apagada de toda estaria a linha divisória das jurisdições e o princípio dominante, senão exclusivo, passaria a ser concorrente levada às suas extremas conseqüências.

Assim, o pensamento do art. 62 da Constituição é que uma Justiça não pode intervir em causas da competência da outra. Se o faz, o meio de evitar a usurpação é a avocatória (Lei 221, art. 29, 3, e art. 79), o conflito de jurisdição ou o de que usou o apelante, isto é, a exceção de incompetência. Proposta esta e levada a questão até ao Supremo Tribunal, se este entender que a Justiça Federal é incompetente, anulará o feito e restabelecerá desta sorte o preceito constitu-cional violado. Se, pelo contrário, julga competente a Justiça da União, então é que o art. 62 não foi infringido, não houve invasão da Justiça Federal nas atri-buições das Justiças dos Estados.

Ora, que a matéria de que se trata entra na alçada das Justiças da União é o que já ficou abundantemente demonstrado.

De tudo quanto até aqui se expendeu resulta que a lei de 1904, com o outorgar aos juízes federais a faculdade de conceder mandados de manutenção ou proibitórios nas condições que estabeleceu, não transgride nenhum preceito constitucional.

O que é indispensável é que o mandado se contenha dentro dos limites assinados pela lei; é que haja uma lei do Estado tributando o comércio interes-tadual, marítimo, terrestre ou fluvial (salvo o imposto de exportação e o de que trata a Constituição, art. 9º, § 3º, 4) e o dono das mercadorias tributadas esteja sendo turbado ou ameaçado de turbação na posse das mesmas mercadorias.

A primeira condição, entretanto, falhará, se as mercadorias já constituí-rem objeto do comércio interno do Estado e se acharem assim incorporadas ao acervo de suas próprias riquezas e se, além disso, os impostos incidirem com inteira igualdade nos produtos similares do Estado, ou, não havendo produtos similares, se atingirem às mercadorias quando já vendidas por grosso pelo im-portador ou expostas ao consumo a retalho.

Entende-se que a mercadoria não constitui objeto do comércio interno do Estado e não se acha assim incorporada ao acervo de suas próprias riquezas,

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Ministro Epitacio Pessôa

se e enquanto se conserva no navio ou veículo que a importou ou transporta, ou permanece nas mãos do importador nos invólucros originais. Vendida em grosso pelo importador ou a retalho por este ou por outrem, a mercadoria pode então sofrer a tributação do Estado.

Resolvida a questão da constitucionalidade e exposto o pensamento da Lei 1.185, de 1904, passa o Tribunal a examinar o merecimento da causa.

A Lei maranhense 348, de 17 de maio de 1904, dispõe em sua tabela B: “Os gêneros constantes desta tabela pagarão as taxas nela mencionadas. Em relação aos que forem de produção do Estado, essas taxas serão cobradas na capital, à boca do cofre ou por meio de lançamento ou arbitramento feito sobre as casas comerciais das cidades, vilas, povoações e outros lugares que os expu-serem à venda. Em relação aos que forem de outros Estados, essas taxas serão cobradas por meio de lançamento ou arbitramento depois que eles já constituam objeto de comércio interno do Estado e se achem assim incorporados ao acervo de suas próprias riquezas.”

Não há dúvida que, nos termos em que se acha concebida, a lei não in-fringe nem a Constituição Federal, nem a Lei 1.185; os tributos são os mesmos para os gêneros dos outros Estados e para os produtos similares do Maranhão, e a lei preceitua que, em relação aos primeiros, as taxas sejam cobradas somente depois que as mercadorias constituírem objeto do comércio interno do Estado e se acharem assim incorporadas à massa de suas riquezas. São justamente as condições em que a lei de 1904, inspirando-se na Constituição, permite a tributação.

Mas não é assim que a têm entendido e executado, pelo menos no caso dos autos, os agentes do fisco estadual. Tais agentes tomam a mercadoria ainda a bordo, recolhem-na em armazéns de propriedade do Estado e aí calculam o imposto sobre a mercadoria tal qual é importada, em sua quantidade ou peso total, isto é, arbitram o imposto antes de se incorporar à massa das riquezas locais, e em seguida cobram a importância total do imposto assim calculado, tenha ou não o importador desfeito assim os invólucros de todos os gêneros, tenha-os ou não vendido todos por grosso, estejam ou não sendo todos vendi-dos a retalho.

Ora, é manifesto que tal processo transgride o espírito e a letra da lei de 1904.Alega o Estado que os apelados não provaram esse fato. Mas, em primeiro

lugar, o apelante não nega a veracidade dele. Depois, os avisos de fls. 19 a 49 confirmam as asseverações dos apelados: neles vêm a discriminação de todos os gêneros, com a especificação do envoltório, peso, qualidade e quantidade, e esta discriminação, coincidindo exatamente com a qualidade, quantidade, peso e in-vólucros das mercadorias importadas, prova bem que estas não estavam ainda incorporadas ao comércio interno do Estado, quando foi calculado o imposto.

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Memória Jurisprudencial

Assim que, se a lei maranhense não é contrária à lei federal de 1904, contrários a esta são os atos de execução de que os autos dão notícia; pelo que o Supremo Tribunal Federal confirma a sentença que manuteniu os apelados na posse das mercadorias penhoradas e condena o apelante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 24 de outubro de 1906 — Piza e Almeida, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Amaro Cavalcanti — A. A. Cardoso de Castro — Manoel Espinola — Manoel Murtinho — Herminio do Espirito Santo — André Cavalcanti — Pindahiba de Mattos — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal. Fui presente, Oliveira Ribeiro.

APELAÇÃO CÍVEL 1.284

Vistos e relatados este autos de apelação cível em que a União Federal apela da sentença do Juiz secional do Amazonas que, na ação de força nova espoliativa contra ela movida por D. Ana Francisca Dinis, imitiu esta na posse da fazenda Flechal e condenou aquela a pagar-lhe os rendimentos e as perdas e danos que se liquidarem na execução além das custas:

Considerando que, embora não tenha sido ainda demarcada a fazenda S. Marcos, de propriedade da apelante, está provado, todavia, pela justificação de fl. 60, test. de fls. 140 e 154 e vistoria de fl. 34, que o Igarapé do Milho é ge-ralmente considerado, até pelos representantes da apelante como o limite norte daquele próprio nacional;

Considerando estar igualmente provado que a fazenda Flechal, cuja posse se atribui a apelada, demora cerca de três léguas ao norte daquele igarapé, fora, portanto, do território da de S. Marcos;

Considerando que esta prova é corroborada pelas cartas que se encon-tram na publicação oficial das Memórias apresentadas por parte do Brasil, na questão de limites com a Guiana Inglesa (3ª Memória, vol. IV, p. 238, 244 e 266) e pelo mapa geral do Estado do Amazonas impresso oficialmente em 1906, do-cumentos estes todos da lavra do Conde Ermano Stradelli, e não a destrói a de fl. 236, feita pelo mesmo Stradelli, porquanto não só esta cópia não foi conferida nos termos do Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1898, Parte III, art. 279, mas ainda é patente a divergência que existe entre ela e o mapa de onde proveio o da p. 238 da Memória acima citada;

Considerando, porém, que as terras situadas no norte do Igarapé do Milho e em que pelo filho da apelada se diz ter sido fundada em 1888 a fa-zenda Flechal, eram terras devolutas, como repetidas vezes confessa a mesma apelada;

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que a União tem a posse das terras devolutas do seu do-mínio solo animo, não sendo preciso para conservá-la que nelas esteja presente ininterruptamente por meio dos seus representantes (Acórdão ..., de ... de ... de ...; Ribas, Ac. Proc., p. 13, 14, 153);

Considerando que, em tais condições, não podia o filho da apelada ter adquirido em 1888 a posse das terras em que se acha Flechal (Lafaiete, Direito das Cousas, nota 7 ao § 10; Ribas, ob. cit. p. 154), salvo se provasse que, che-gando ao conhecimento da apelante a notícia dessa ocupação, ela abandonara por medo a sua posse ou, tentando recuperá-la, fora violentamente repelida (Lafaiete, ob. cit. § 15, n. 1), e esta prova não a fez;

Considerando que, se a Constituição cedeu aos Estados as terras devolu-tas, reservou, contudo, para a União as que fossem indispensáveis para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais (Constituição, art. 64);

Considerando que as terras cuja posse se disputa estão situadas na região da fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana Inglesa, e, conseqüente-mente, na posse da apelante, salvo ao Estado do Amazonas o direito de provar até onde pode dispensá-los a defesa nacional;

Considerando, por outro lado, que, se a fazenda Flechal não faz parte da de S. Marcos, óbvio é que o gado ali encontrado não está sujeito ao termo de concessão de fl. 240;

Considerando que o filho da apelada tinha a posse do dito gado, segundo a prova abundante dos autos, quando a apelante impediu com força armada a sua pena (sic) e retirada (documento de fl. 190) colocando assim o possuidor na impossibilidade de dispor livremente da cousa possuída;

Considerando que a ação de força nova espoliativa se aplica assim aos bens de raiz como aos móveis (Ord. L. 2, T. 1º, § 2º; Lafaiete, ob. cit. § 22, n. 1; Correia Teles, Doutrina das Ações, § 85; Ramalho, Praxe, nota b ao § 276; Ribas, ob. cit. p. 278):

Acordam dar em parte provimento à apelação para condenar a apelante tão-somente à restituição do gado com as perdas e danos que se liquidarem na execução, ficando-lhe ainda salvo o direito de, provando a verdade da denúncia de fl. 244, usar das ações que no caso couberem para reaver a propriedade ou a indenização desse gado.

Custas em proporção.Supremo Tribunal Federal, 7 de dezembro de 1907.

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Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CÍVEL 1.297

O Segundo-Tenente Astrogildo Marques de Figueiredo alega que foi pro-movido a esse posto em 3 de novembro de 1894, ao tempo em que vigorava o Decreto 1.351, de 7 de fevereiro de 1891, segundo o qual (art. 5º, parágrafo único) ,enquanto existissem alferes de infantaria ou cavalaria sem o respectivo curso, as vagas de tenente seriam preenchidas por antiguidade, 2/3 por esses subalternos e 1/3 pelos que tivessem o curso; que a Lei 1.348, de 12 de julho de 1905, modifi-cou essa proporção, estabelecendo que as promoções passariam a ser metade por antiguidade absoluta e metade por estudos, que por efeito desta lei já houve seis promoções por estudos e apenas quatro por antiguidade; que, sendo o quinto, ao tempo em que se promulgou a Lei 1.348, teria sido promovido, se esta não hou-vesse revogado o Decreto 1.351, que, portanto, esta lei feriu com (sic) seu direito adquirido, isto é, o direito de ser promovido segundo a lei vigente ao tempo em que fora promovido a alferes. Pede, à vista do exposto, que a União seja conde-nada a pagar-lhe a etapa e a gratificação de primeiro-tenente, desde a data em que pelo Decreto 1.351 lhe cabia a promoção, até ser efetivamente promovido.

Adapto ao presente caso razões de que já me servi em outra ocasião (ACi 1.069).

O oficial só tem direito à promoção depois que se abre a vaga. Enquanto esta se não abrir, ele tem apenas a esperança de que ela se verifique, para que lhe advenha então o direito de preenchê-la. Ora, ao tempo em que se publicou a Lei 1.348, não se dera ainda a vaga que o apelado disputa. Logo, não tinha ele ainda direito adquirido a essa vaga, e a lei, portanto, era livre de regular as condições do seu preenchimento. Para que se tenha direito a uma cousa, parece que a primeira condição é que esta cousa exista.

Enquanto isso não ocorrer, ter-se-á quando muito uma expectativa.Há direito adquirido (ensina Teodoriadas, Éssai sur la non rétroactivité

des lois, p. 52 a 53) quando as condições essenciais à sua existência estão todas realizadas. Entendemos por condições essenciais as que são determinadas por lei e sem as quais o direito não pode existir. Há simples expectativa ou fraca espe-rança de direito sempre que todas ou alguma das condições essenciais à existên-cia do direito ainda se não tenham realizado e seja preciso esperar o advento de acontecimentos posteriores para vê-la desenvolver-se e converter-se em verda-deiro direito. A diferença entre o direito adquirido e a expectativa está, portanto, em que o primeiro tira a sua existência de fatos passados e definitivos, enquanto que a segunda precisa do futuro para completar e converter-se em direito.

Ora, três são as condições determinadas pela lei, essenciais ao direito de ser primeiro-tenente: 1º, a qualidade de segundo-tenente; 2º, ocupar o número 1; 3º, a vaga. Dessas condições, apenas a primeira se havia realizado para o ape-lado; quando se promulgou a Lei 1.348. Onde, pois, o seu direito adquirido?

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Ministro Epitacio Pessôa

Admite-se, é verdade, um direito adquirido dependente dum fato futuro. Mas é mister que este fato valha por um termo, isto é, faz-se necessário, como diz Gabba (Teoria della Retroattività, vol. 1, p. 288): 1º, que o fato futuro seja por sua vez infa-lível; 2º, que não esteja mais no poder daquele contra quem é afirmado o direito de impedi-lo; 3º, que o direito a adquirir tenha a sua raiz em um direito já adquirido, do qual não seja mais que um desenvolvimento ou a sua transformação. Ora, no caso que se discute, além da segunda, falha evidentemente a primeira condição, pois o apelado podia reformar-se livre ou compulsoriamente antes de abrir-se a vaga.

Aberta a vaga, o alferes número 1 tem direito à promoção. Mas, antes de abrir-se a vaga, é lícito contestar ao Congresso o direito de, por exemplo, redu-zir ou mesmo suprimir o quadro dos tenentes dando assim lugar a que o alferes número 1 não seja promovido na primeira vaga.

A doutrina do apelado chegaria a este resultado. Entretanto é fato que se tem praticado entre nós sem reclamações, e que manifestamente fere um inte-resse, mas não um direito do oficial que ocupa o número 1 da lista.

Mas (e eis o principal argumento do apelado) o Decreto 1.351 representa o título dum contrato entre o Governo e o apelado, e este contrato não pode ser rompido por ato exclusivo de uma das partes. É a tão debatida questão da natu-reza das relações jurídicas entre o Estado e os seus funcionários, relações que o apelado considera contratuais.

A chamada teoria do contrato, fulminada, como bem notam os assisten-tes, por Bluntschli (Teoria Geral do Estado) e G. Giorgi (Doutrina das Pessoas Jurídicas) ainda não logrou foros de cidade.

Nos Estados Unidos é ela geralmente repelida (Amaro Cavalcanti, Responsa-bilidade do Estado, p. 560). Entre nós não pode ela medrar à sombra da disposição constitucional que dá ao Congresso o direito de criar empregos e fixar-lhes os ven-cimentos, ato unilateral que se não coaduna com o regímen contratual. Eis por que João Barbalho ensina que têm pleno efeito com relação a fatos anteriores as leis que regulam as condições de aptidão para os cargos públicos (Comentários, p. 42).

Se é certo que a Constituição garante as patentes, os postos e cargos inamoví-veis em toda a sua plenitude, é verdade também que isso se aplica somente às vanta-gens próprias do emprego — exercício, vencimentos, aposentadoria —, mas não às condições de acesso, pois isso implicaria com o poder constitucional do Congresso de estatuir as condições de capacidade especial para o acesso aos cargos públicos (art. 73) e de suprimir este cargos e estipular-lhe os vencimentos (art. 34, 25).

As doutas razões dos assistentes contêm trechos que merecem ser aqui reproduzidos, o que farei resumindo.

Direito adquirido, diz Amaro Cavalcanti, ob. cit., p. 559, é o que existe nunc et semper, diferentemente do direito em expectativa que não existe ainda

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com a devida eficácia, isto é, com força atual obrigatória erga omnes, embora haja fundada razão para se tornar efetivo.

É, segundo o Projeto do Código Civil, aquele cujo exercício depende de prazo prefixado ou de condição preestabelecida, não alterável a arbítrio de ou-trem. Segundo Hue (Direito Civil, vol. 1, 59), é toda vantagem cuja conservação ou integridade é garantida por uma ação ou uma exceção.

Mas uma obrigação dependente de condição suspensiva não é exigí-vel; enquanto esta pende, não há obrigação, há mera esperança (G. Giorgi, Obbligazioni, vol. IV, p. 301 e 304; Lacerda, Obrigações, § 34; T. de Freitas, Consolidação, nota 14 ao art. 420). Ora, quando o Estado promete ao oficial promovê-lo desde que seja o mais antigo, a promessa ou a obrigação fica de-pendente desta condição, e enquanto ela não se realiza, a obrigação do Estado não é exigível: houvera esperança, mas não direito de parte do oficial. É o que acontece com o apelado que, segundo confessa, na época da promulgação da Lei 1.348 não era ainda o mais antigo, ocupava o número 5 da escala, não tinha, portanto, direito adquirido ao acesso, donde se conclui em última análise que a citada lei não é retroativa.

Se o apelado falecesse antes de ser o número 1, teriam os seus herdeiros o direito de exigir do Tesouro o 1/2 soldo de primeiro-tenente? Se o Estado suprimisse o posto de primeiro-tenente ou reduzisse o quadro, teria o apelado ação para exigir a sua promoção na época em que esta lhe tocasse segundo a lei anterior? Certo que não. Onde está, pois, o chamado direito do apelado?

O vencimento do oficial e a antiguidade para a reforma interessam à pes-soa dele, ao seu patrimônio, e são, portanto, da esfera do direito privado; mas a nomeação, o desempenho do posto, as condições de acesso, a antiguidade para a promoção são de direito público, porque interessam à ordem pública, inspiram-se na necessidade de conciliar os interesses de todos os oficiais evitando pre-terições, injustiças e descontentamentos que fomentam a indisciplina (Ver. G. Giorgi, Persone Giuridiche, 164-6 e 183).

“O empregado a quem pela lei competia certo acesso (diz Coelho da Rocha, Direito Civil nota A ao § 4), se antes de o ter obtido, a lei nova dispõe de outra forma, não tem que argüi-la de retroativa.” E Gabba (Retroattività, vol. 1, p. 205): “As leis concernentes à capacidade dos cidadãos para adquirirem di-reitos ou exercitá-los de certo modo, são retroativas no sentido de se aplicarem imediatamente às pessoas e cousas existentes.” Este princípio sofre uma única exceção: “O grau de capacidade pessoal uma vez adquirido nos termos da lei não pode ser tirado por uma lei posterior.”

“O direito que pode ter um oficial ao posto superior (diz Perriquet, Contrats de l’Etat 534), tem por único fundamento a antiguidade relativa, isto é, a quali-dade de oficial mais antigo entre os que forem aptos a concorrer a esse posto.”

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Ministro Epitacio Pessôa

Segue-se daí que o oficial que chega ao número 1 adquire direito à pro-moção segundo a lei então em vigor, de sorte que uma lei nova não poderá mais atingi-lo. Não é isso, porém, o que pretende o apelado. O que este pretende é que, uma vez nomeado o alferes, as condições de acesso então existentes não possam mais ser alteradas até que ele chegue a marechal, é, em suma, paralisar a ação do Estado no tocante à força armada, isto é, no que diz respeito à segu-rança interna e externa da República. Levado às suas legítimas conseqüências, este princípio significa que o simples ato de verificar praça no Exército suspende desde logo a Constituição da República, na parte em que confere ao Congresso Nacional a atribuição de legislar sobre a organização da força armada (art. 34, 17), de suprimir empregos públicos (25) e de estatuir as condições de capaci-dade especial para o acesso às funções militares (art. 73); e como todos os dias há cidadãos que assentam praça no Exército, segue-se que a suspensão desses preceitos constitucionais é indefinida, vale por uma derrogação ou antes por um novo processo de reforma constitucional, não previsto no art. 90. Se a princípio não se atribui tamanho vigor, então teremos: hoje o Congresso estabelece certas condições de acesso: estas não se aplicarão aos oficiais existentes. Amanhã o interesse público exige que se modifique essa lei: já esta lei não atingirá aos ofi-ciais protegidos pelas duas leis anteriores, e assim por diante. Ao cabo de algum tempo, teremos várias fornadas de direitos adquiridos, e o poder público se verá a braços com um cipoal tão emaranhado de direitos tais, que paralisará comple-tamente a sua ação. Imagine-se agora que isso se estende a todas as repartições públicas, e digam-me se é possível assim a existência do Estado.

Eis aí o que é o tal contrato de direito público.Que o apelado não tem direito adquirido, acabamos de ver. Mas ele não

tem nem simples expectativa.O Decreto 1.351 dispôs no art. 5º: “O preenchimento das vagas de tenente

ou primeiro-tenente e o do posto de capitão nas armas combatentes será feito por ordem de antiguidade, sendo condição imprescindível para o acesso ao curso de arma.”

Eis aí, a partir de 1891 só podia ser promovido ao segundo e terceiro pos-tos quem tivesse o curso de arma.

Mas, como a esse tempo existissem alferes e tenentes sem curso, a lei, por eqüidade, acrescentou este parágrafo único: “Enquanto existirem nas armas de infantaria e cavalaria alferes e tenentes sem o respectivo curso, o preenchimento de 2/3 das vagas que se derem daqueles postos continuará a ser feito por antigui-dade e o outro terço pelos subalternos que tiveram o competente curso de arma.”

Ora, vê o Tribunal que isso é uma disposição transitória, só aplicável aos alferes e tenentes então existentes, isto é, existentes na data do Decreto 1.351, que é de 7 de fevereiro de 1891.

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Memória Jurisprudencial

Mas o apelado só veio a ser alferes mais de três anos depois, a 3 de no-vembro de 1894.

Logo, não lhe é aplicável o parágrafo único do art. 5º do cit. Decreto 1.351.O apelado já foi nomeado alferes com infração da lei (art. 4º do citado

decreto), pois nem era alferes aluno, nem tinha o curso de arma; quer agora que, ainda contra a lei, se lhe creia uma situação toda excepcional.

Não lhe sendo aplicável o parágrafo único do art. 5º do Decreto 1.351, ele, no regímen deste decreto não poderia jamais ser promovido sem ter o curso de arma, nos termos do mesmo artigo, princ.

Veio a Lei 1.348, de 1905, e tornou possível o que não era, isto é, permitiu que o apelado pudesse ser promovido sem curso, concorrendo na vantajosa pro-porção de 50% com os alferes que tivessem o curso. E o apelado ainda se queixa e quer que esta lei lhe não seja aplicável. Se tal decidisse o Tribunal, como bem notam os assistentes, o apelado ficaria em piores condições, pois, sem curso, não poderia nunca mais ser promovido.

O meu voto é: admito os assistentes, que são admissíveis em qualquer estado da causa (e aqui não são apelantes nem assistidos como no caso citado ex adverso), reformo a sentença e julgo improcedente a ação.

9 de novembro de 1907.Improcedente, contra Murtinho e Amaro em 4 de julho de 1908.

AGRAVO 1.328

Cabe agravo do despacho que admite, em ação executiva, embargo de terceiro senhor e possuidor.

Não constitui título hábil e legítimo, nos termos do art. 307 do Decreto 848, de 1890, o documento que não foi escrito pelo próprio punho do vendedor, não está assinado por duas testemunhas e foi averbado no Registro Especial de Títulos com infração do disposto no art. 78 do Decreto 4.775, de 1903.

Embargos de terceiro senhor e possuidor não devem ser recebidos quando notoriamente nulo o título em que se fundam.

Vistos e relatados este autos de agravo, vindos da Seção do Rio de Ja-neiro, nos quais Alberto Santos & Cia. agravam do despacho do Juiz secional que, na ação executiva em que contendem com Francisco Ferreira Leal, admitiu os embargos de fl. 13, de terceiro senhor e possuidor, opostos por Júlio Martins Coelho; e:

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Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que o caso é de agravo, nos expressos termos do art. 34, VI, letra k, da Lei 221, de 1894;

Considerando que o documento de fl. 14 não constitui “título hábil e legí-timo” (Decreto 848, de 1890, art. 307) capaz de transferir a posse e o domínio da cousa, pois a ele faltam manifestamente requisitos que a lei exige como con-dição indispensável para que possa valer contra terceiros;

Considerando, com efeito, que o mencionado documento não foi escrito pelo próprio punho do vendedor, nem está firmado por duas testemunhas, como prescreve o Decreto 79, de 23 de agosto de 1892, art. 2º, e a sua averbação no Registro Especial de Títulos se fez contra o terminantemente estatuído no art. 78 do Decreto 4.775, de 16 de fevereiro de 1906;

Considerando que embargos de terceiro senhor e possuidor não devem ser recebidos quando o título em que se fundam é notoriamente nulo (Ramalho, Praxe Brasileira, § 405; Teixeira de Freitas, nota 888 às Primeiras Linhas de Pereira e Sousa);

Acordam dar provimento ao agravo para mandar, como mandam, que o Juiz a quo, reformando o seu despacho, rejeite in limine os embargos. Custas pelo agravado.

Supremo Tribunal Federal, 26 de novembro de 1910 — Ribeiro de Almeida, P. I. — Epitacio Pessôa, Relator — Amaro Cavalcanti — Manoel Espinola — Oliveira Ribeiro — Leoni Ramos — Godofredo Cunha — André Cavalcanti — Canuto Saraiva — Pedro Lessa.

APELAÇÃO CÍVEL 1.346

O Governo Provisório podia declarar vitalício um serventuá-rio de justiça; não assim os seus ministros.

O escrivão vitalício, designado para uma serventia tempo-rária, por ter sido suprimido o seu cartório, não comunica a essa serventia o predicamento da vitaliciedade.

Restabelecido o cartório, é válido o ato do Governo que, mesmo sem requerimento do escrivão, manda que este volte às suas primitivas funções.

O art. 328 do Decreto 9.420, de 1885, não se aplica somente ao caso do escrivão que fica em disponibilidade, mas também ao daquele que exerce uma função temporária.

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Memória Jurisprudencial

Destes autos de apelação cível procedentes do Juízo da 1ª Vara deste dis-trito e em que são partes, de um lado, como réus apelantes, a União Federal e o Dr. Tobias Nunes Machado, e do outro, como autor apelado, José Senna de Oliveira Júnior, verifica-se o seguinte:

Por decreto de 26 de novembro de 1890, o Governo Provisório fez ao apelado “mercê da serventia vitalícia do ofício de escrivão da Provedoria, desta Capital”. Como, porém, o Decreto 1.030, expedido poucos dias antes, hou-vesse extinguido este ofício, o Ministro da Justiça, por apostila daquela mesma data, designou o apelado para o de escrivão do Juízo dos Feitos da Fazenda Municipal, criado pelo mencionado decreto. Tomou o apelado posse do pri-meiro deste ofícios a 5 de dezembro de 1890 e o exerceu até março de 1891, tempo em que, entrando em execução o Decreto 1.030, por força do disposto no art. 3º do Decreto 1.127, de 6 de dezembro de 1890, assumiu o exercício do lugar de escrivão dos feitos municipais.

Nesse lugar conservou-se até que, havendo a Lei 1.338, de 9 de janeiro de 1905, restabelecido os dois cartórios da Provedoria (pois os ofícios eram dois — Decretos 136, de 10 de janeiro de 1890) o Ministro da Justiça, por ato de 27 do mesmo mês e ano, declarou que ele continuaria na serventia vitalícia do 1º ofí-cio, em virtude do art. 328 do Decreto 9.420, de 28 de abril de 1885, que aquela lei, art. 8º, VII, mandou observar no provimento dos ofícios da justiça. Contra esse ato do Ministro da Justiça reclamou o apelado perante o Juiz da 1ª Vara por meio de uma ação sumária especial do art. 13 da Lei 221, de 1894, alegando: a) que a sua primeira nomeação de escrivão vitalício da Provedoria, se bem que feita sem concurso, fora um ato perfeitamente válido, desde que emanara do Governo Provisório, que podia fazer a lei e, conseguintemente, podia dispen-sar nela; b) que, extinto aquele ofício, nem por isso se lhe extinguira o direito de vitaliciedade, o qual acompanhara como um atributo funcional até ao cargo de escrivão dos feitos da Fazenda Municipal; c) que, sendo desta sorte serven-tuário vitalício, não mais daquele, mas deste ofício, não podia o Ministro da Justiça removê-lo para outro, por ser isso expressamente vedado pelo art. 302 do Decreto 9.420, de 1885; e d) que o art. 328 deste decreto, invocado em apoio do ato do Ministro absolutamente não o legitima, uma vez que nenhuma das con-dições previstas nesse dispositivo ocorre na espécie, porquanto: 1º, o ofício da Provedoria, restabelecido pela Lei 1.338, não é o mesmo que o Decreto 1.038 ex-tinguira; há entre um e outro diferença fundamental na competência e atribui-ções; 2º, o apelado não requereu a sua reversão ao cartório restabelecido; 3º, o título que ora o investe no 1º ofício da Provedoria não é o mesmo que lhe passou em 1890 o Governo Provisório, visto como este lhe fez mercê vitalícia de um ofício sem designação de ordem. Acresce a tudo isso que o art. 323 do Decreto 9.420 só tem aplicação quando o ofício da justiça é suprimido e o serventuário respectivo fica em disponibilidade, mas não quando este é aproveitado em outro

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Ministro Epitacio Pessôa

ofício de igual natureza, como no caso em questão. Com essas razões pediu o apelado se declarasse nulo o ato do Ministro da Justiça de 27 de janeiro de 1905, para o efeito de voltar ele ao exercício de escrivão dos feitos da Fazenda Municipal, ocupado pelo apelante Dr. Tobias Nunes Machado.

O Juiz da primeira instância, aceitando as razões expostas, julgou pro-cedente a ação, mas apenas para reconhecer ao autor direito de haver todos os proventos do cartório, enquanto lhe não fosse este restituído.

Desta sentença apelaram em tempo o Dr. Tobias Nunes Machado e a União Federal.

O que tudo visto e bem examinado:Considerando que, por mais estranho que pareça o ato do Governo

Provisório de 26 de novembro de 1890, fazendo a um cidadão, que não preen-chera as condições da lei em vigor, mercê vitalícia de um ofício cuja extinção, já decretada, se tinha de tornar efetiva em alguns meses depois, esse ato tem valor e eficácia jurídica, à vista dos poderes extraordinários que em suas mãos concentrava aquele Governo, e, sendo assim, é fora de dúvida que o referido decreto investiu legitimamente o apelado na serventia vitalícia daquele ofício;

Considerando, porém, que o mesmo efeito não se pode atribuir ao ato do Ministro da Justiça, do mesmo dia 26 de novembro de 1890, designando o ape-lado para servir no Juízo dos Feitos da Fazenda Municipal: 1º, porque este ato não tinha objeto, visto que o cartório dos feitos municipais, embora criado pelo Decreto 1.030, de 14 daquele mês, só começaria a existir realmente quando mais tarde esse decreto entrasse em execução, o que veio a ocorrer em março de 1891; 2º, porque, ainda quando fosse possível considerar-se em vigor, tão-somente para este efeito, o Decreto 1.030, a designação do apelado não podia ser feita pelo Ministro da Justiça, pois o citado decreto reservara esta competência pri-vativamente para o presidente da Corte de Apelação (arts. 27 e 213); 3º, porque o Ministro da Justiça não tinha os mesmos poderes do Governo Provisório e, conseguintemente, faltava-lhe autoridade para conceder o privilégio de vitali-ciedade, em um ofício de justiça, a quem não satisfizera as condições estabele-cidas na lei para o provimento respectivo com aquele caráter; o próprio apelado reconhece que a vitaliciedade não pode jamais ser conferida por simples ato do Ministro, mas só por um decreto do chefe do Executivo; 4º, porque, ainda que fosse lícito ao Ministro da Justiça dispensar as condições do Decreto 9.420, não violaria ele o Decreto 1.030, ato do próprio Governo Provisório, por ele mesmo referendado, considerando vitalícia uma serventia que este decreto declarara temporária, como todas as mais que criara (art. 29);

Considerando, portanto, que o apelado não era, como se inculca, escrivão vitalício dos feitos da Fazenda Municipal. A vitaliciedade é uma derrogação do direito comum, por isso mesmo somente são vitalícios os cargos a que a lei

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Memória Jurisprudencial

expressamente confere esse privilégio. Ora, nenhuma lei declarou vitalícia a função de escrivão dos feitos municipais; pelo contrário, a lei que criou essa função recusou-lhe expressamente tal qualidade. Logo, não podia o apelado tornar-se vitalício neste ofício, embora o fosse em outro; isto é, não podia se investir, na serventia dos feitos municipais, de um predicamento que ele não possuía, nem trazer para ela um atributo que a lei positivamente lhe recusava. Tanto isso é verdade que, se a designação houvesse sido feita, depois de entrar em vigor o Decreto 1.030, pelo presidente da Corte de Apelação, o apelado seria demissível de escrivão dos feitos, nos termos do art. 29 do citado decreto; pois à sua qualidade de serventuário vitalício da Provedoria não atribui a lei outro direito que não o de ficar adido a algum juízo com vencimentos correspondentes à lotação do seu ofício (art. 211, letra b). Se assim seria com a designação feita pela autoridade competente e em tempo oportuno, com maioria de razão deve sê-lo na hipótese dos autos, em que faltam ambas estas condições;

Considerando, assim, que o ato do Ministro da Justiça de 27 de ja-neiro de 1905, declarando que o apelado continuaria na serventia do 1º ofício da Provedoria, não foi propriamente uma remoção, proibida pelo art. 302 do Decreto 9.420, mas a simples observância do art. 328 do mesmo decreto;

Considerando, com efeito, que neste dispositivo se enquadra perfeita-mente a espécie dos autos — a do restabelecimento por lei de um ofício de jus-tiça que por lei fora suprimido — e, se assim não fosse, se tal dispositivo, como pretende o apelado, lhe não fosse aplicável, mais precária ainda seria a sua situ-ação, pois então o Governo teria a faculdade de privá-lo do cartório dos feitos, sem lhe dar o da Provedoria;

Considerando que as condições estabelecidas no art. 328 para a volta do serventuário ao seu antigo cartório, se realizam todas no caso ocorrente; portanto,

Considerando que o ofício restabelecido pela Lei 1.338, de 1905, é o mesmo que o Decreto 1.030 suprimira; se é certo que nele não se compreende o serviço de capelas, verdade é também, não só que tal alteração é caso previsto no mesmo Decreto 9.420, art. 16, mas ainda que já fora feita ao tempo em que o apelado foi nomeado, como se vê de seu título (fl. 6 A) e era uma conseqüên-cia do Decreto 119 A, de 7 de janeiro de 1890, que separou a Igreja do Estado. Tivesse o apelado permanecido no cartório da Provedoria até hoje, e nem por isso, as suas funções se teriam acrescido com aquele serviço;

Considerando que o requerimento de que fala o art. 328 do decreto de 1885 é uma garantia do direito de vitaliciedade do serventuário, cujo cartório foi restabelecido, e uma defesa contra o arbítrio do Governo; por isso mesmo, se o Governo vem ao encontro do serventuário e, antes de qualquer solicitação, o faz voltar ao seu ofício, nenhuma lesão, evidentemente, lhe causa; ou o escrivão não

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Ministro Epitacio Pessôa

quer mais exercer o ofício e a designação fica sem objeto, ou quer, e neste caso, o ato espontâneo do Governo não teve efeito diferente daquele que produziria um ato provocado pelo requerimento do interessado;

Considerando que o título de investidura do apelado em o novo cartório da Provedoria é o mesmo que lhe foi expedido em 1890; o ato de 27 de janeiro de 1905 é meramente declaratório; e que o apelado fora escrivão do primeiro ofício, tal como reza este ato, prova o documento de fl. 90, do qual se vê que o segundo ofício, criado pelo Decreto 136, de 10 de janeiro de 1890, estava, desde esta data, ocupado por outro cidadão, quando o apelado foi nomeado em 26 de novembro de 1890, e, sendo assim, não ocorria a hipótese do direito de opção, também invocado pelo apelado;

Considerando que nenhum motivo há para se restringir o dispositivo do citado art. 328 ao caso único do serventuário que, suprimido o ofício, fica em disponibilidade; o fato de estar o serventuário por designação e sem caráter vi-talício exercendo um outro ofício não tira ao preceito legal a sua razão de ser; o contrário seria negar ao predicamento da vitaliciedade o alcance que o direito lhe reconhece e este Tribunal mais de uma vez tem proclamado;

Considerando os fundamentos expostos e o mais dos autos:Acordam reformar a sentença recorrida para declarar improcedente a

ação e condenam o apelado nas custas.Supremo Tribunal Federal, 23 de dezembro de 1907 — Pindahiba de

Mattos, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Guimarães Natal — Amaro Cavalcanti — Pedro Lessa — Manoel Espinola — A. A. Cardoso de Castro — Manoel Murtinho — João Pedro — Herminio do Espirito Santo — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

EMBARGOS NA APELAÇÃO CÍVEL 1.346

Em data de 23 de dezembro de 1907, o Tribunal proferiu o seguinte acór-dão (fl. 120v.).

Este acórdão foi embargado pelo apelado nos seguintes termos — fl. 130.O Dr. Tobias N. Machado impugnou os embargos alegando que toda a

matéria deles já havia sido apreciada e refutada pelo acórdão, e para mostrá-la transcreveu ao lado dos artigos dos embargos os considerandos corresponden-tes do acórdão, fl. 135.

A Fazenda Nacional, a outra parte embargada, opinou pela confirmação da sentença do Tribunal, fl. 138v.

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Memória Jurisprudencial

Sustentados os embargos (fl. 140), foi ouvido o Sr. M. Procurador-Geral, que assim falou, fl. 154.

Desprezo os embargos. Toda a argumentação do embargante se apóia numa base falsa — a de que, designado para o cargo temporário de escrivão dos feitos da Fazenda Nacional, ele levava para essa função a vitaliciedade do cargo extinto da provedoria.

Aceito este ponto, não há dúvida, a ação seria procedente, o Ministro não podia tê-lo removido, sem requerimento, para um outro cartório.

Mas, provada a improcedência do argumento, escusado é apreciar as con-seqüências que dele deduz o embargante no correr dos seus embargos: a impro-cedência da ação impõe-se por si mesma.

O Decreto 1.030, de 20 novembro de 1890, extinguiu os ofícios da pro-vedoria e criou, com o caráter de temporariedade, o dos feitos da Fazenda Nacional, dispondo no art. 27 que o respectivo serventuário seria nomeado pelo Presidente da Corte de Apelação, sobre proposta do respectivo Juiz (a ler). Não obstante isso, porém, o Governo Provisório, seis dias depois da publicação da-quele decreto, fez mercê vitalícia do ofício extinto da provedoria ao embargante e, como este ofício fora suprimido como vimos, na mesma data o Ministro da Justiça designou o embargante para o cartório dos feitos municipais, que devia ser estabelecido quatro meses depois.

Ora, o ato do Ministro era um ato exorbitante, porque, pelo próprio de-creto ou lei que ele referendara, a nomeação do escrivão dos feitos, como a dos demais era privativa do presidente da Corte de Apelação.

A isso objeta o embargante que o Ministro ou o Governo fora autorizado a fazer a primeira organização nos termos do art. 206 (a ler).

Mas essa primeira organização evidentemente só podia compreender os atos da alçada do Governo; os outros continuariam dependentes das autoridades declaradas competentes por essa mesma lei, a que se procurava dar execução. O natural seria o Governo nomear os juízes — pretores, membros do Tribunal Civil e Criminal, membros da Corte de Apelação — e deixar que o Presidente desta Corte nomeasse os serventuários de justiça, ao se instalarem os tribunais nos termos dos arts. 223 e 224.

Admitamos, entretanto, que o Ministro pudesse fazer a designação do embargante para o novo cartório. Podia fazê-lo com o caráter de vitalício? Não, porque este caráter lhe era recusado expressamente pela lei em virtude da qual ele fazia a designação. Se a lei declarava temporária essa função, como é que o Ministro podia, em virtude dessa mesma lei, dar o caráter de vitalício ao fun-cionário respectivo?

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Ministro Epitacio Pessôa

Responde o embargante: a vitaliciedade não dimana do ato do Ministro, mas da própria lei, que ressalvou a vitaliciedade dos serventuários de ofício extintos. Mas ressalvou em que termos? Mandando que eles ocupassem vita-liciamente os cargos para que fossem nomeados e que ela própria declarava temporários? Não, nos termos do art. 211 e 213, 2ª parte (a ler). Assim, nomeado o embargante para o ofício da fazenda, ele seria aí mantido enquanto bem ser-visse (art. 29); se fosse dispensado, ficaria adido com vencimentos correspon-dentes à lotação do seu ofício. Não aproveitado, ficaria logo adido nas mesmas condições. Foi este e só este o direito que lhe garantiu a lei, e era, aliás, o único que lhe podia garantir.

Provado que o embargante não levou para o cartório dos feitos munici-pais a vitaliciedade de que gozava no da provedoria, rui por terra toda a sua ar-gumentação. Aliás, essa prova já havia sido feita no acórdão embargado, como no acórdão embargado já se tomara em consideração todos os demais pontos dos embargos, conforme bem assinalou o embargado Dr. Nunes Machado.

O meu voto, pois, é, como já disse, desprezar os Embargos 1.346. — Vistos e relatados os embargos opostos à fl. 130 pelo apelado ao acórdão de fl. 120v.

O Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que as razões em que se fun-dam os embargos já foram apreciadas e refutadas no julgamento da apelação, resolve desprezá-los e condena o embargante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 13 de junho de 1910.

APELAÇÃO CÍVEL 1.349

Os oficiais do Exército eleitos membros das Câmaras Muni-cipais só têm direito ao soldo da patente.

Verifica-se destes autos de apelação cível vindos da Seção da Paraíba, e em que é apelante a União Federal e apelado o Segundo-tenente de infantaria do exército Manuel da Gama Cabral:

Que o apelado foi eleito a 31 de dezembro de 1904 membro do Conselho Municipal da capital daquele Estado, sendo, por este motivo, declarado em disponibilidade pelo Aviso do Ministério da Guerra 351, de 21 de fevereiro de 1905, e entrou no exercício do seu mandato em 10 de março seguinte;

Que, mais tarde, ao ter de receber os seus vencimentos, a delegacia fiscal, fundada na circular do mesmo Ministério de 1º de dezembro de 1903, só quis

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Memória Jurisprudencial

pagar-lhe o soldo da patente, recusando-lhe a etapa, a gratificação do exercício e o quantitativo para criado;

Que, à vista disso, o apelado propôs contra a apelante esta ação ordinária, em que — alegando que, em face do art. 55, das instruções, de 1º de novembro de 1890, ampliado a todos os oficiais do quadro efetivo pela Lei 26, de 30 de dezembro de 1891, art. 7º, tem direito também àquelas outras parcelas do venci-mento militar — pede-se declare nula a dita circular e, em conseqüência, se lhe mande pagar o que, por causa dela, tem deixado de receber;

Que julgada procedente a ação pela sentença de fl. 28, desta apelou em tempo a União Federal.

O que tudo visto e bem ponderado:Considerando que a disponibilidade de que fala o art. 55 das instruções

de 1890 é a que resulta de outras causas que não o exercício de mandato polí-tico, tanto que a Lei 26, de 1891, apesar de haver estendido aos demais oficiais aquele dispositivo, não julgou que isso fosse bastante para definir a situação e determinar os vencimentos dos oficiais investidos do sobredito mandato, e se sentiu na necessidade de incluir entre os seus preceitos o art. 7º, § 1º, 6, que manda considerar em disponibilidade, com os vencimentos do art. 55 das instruções de 1890, os oficiais que forem membros do Congresso Nacional ou dos estaduais;

Considerando, com efeito, que se o legislador entendesse que os oficiais naquelas condições estavam compreendidos no art. 55 das instruções, não teria votado, por escusada, a citada disposição da lei de 1891, desde que aí não se consideravam tais oficiais em situação diferente nem se lhes mandava abonar vencimentos diversos dos daquele artigo, e só isso explicaria a disposição espe-cial do art. 7º, § 1º, 6;

Considerando, portanto, que o art. 55 das instruções de 1890, em que se apóia o apelado, não lhe é aplicável, nem o fato de haver o Ministro da Guerra, no aviso de 21 de fevereiro de 1905, usado, com relação ao apelado, da expres-são disponibilidade, pode dar a esta expressão o sentido, alcance e efeito que a lei só lhe atribui em condições que aqui se não verificam;

Considerando que a lei que regula a disponibilidade resultante do desem-penho de mandato popular é a já citada 26, de 1891, mas esta não compreende os membros dos conselhos municipais, refere-se tão-somente aos membros do Congresso da União e dos Congressos dos Estados;

Considerando que o legislador de 1891 conhecia a existência dos con-selhos municipais e facilmente podia prever o fato de para eles serem eleitos oficiais do Exército, de onde se conclui que, se deixou de abranger na Lei 26 os oficiais eleitos vereadores, foi intencionalmente que o fez, tendo em vista, sem

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Ministro Epitacio Pessôa

dúvida, os graves prejuízos que sofreria o serviço militar com o afastamento, desde então inevitável, de excessivo número de oficiais para as numerosíssimas câmaras municipais da República, onde iriam perdendo o hábito da disciplina e o gosto da carreira;

E, por outro lado:Considerando que não têm direito à etapa os oficiais empregados em

serviço estranho ao Ministério da Guerra, como é o de vereador municipal (Instruções de 1890, art. 20, § 1º);

Considerando que a gratificação de exercício é inerente à comissão respec-tiva (Instruções, art. 24), e o apelado não está exercendo nenhuma comissão militar;

Considerando que, se como exceção à regra antecedente, se abona tam-bém a referida gratificação ao oficial chamado a desempenhar serviço gratuito e obrigatório (Instruções, art. 25) isso não se entende com as funções de membro do Conselho Municipal da Paraíba, que o apelado era livre de aceitar ou não;

Considerando que ao quantitativo para criado, hoje abolido pela Lei 1.473, de 9 de janeiro de 1906, só tinham direito os oficiais empregados em serviço do seu ministério, não se podendo entender de outro modo, sem absurdo, à vista da natureza e fins daquela gratificação, o art. 7º, § 1º, 5, da Lei 26, que, aliás, a recusa em termos expressos aos oficiais que se acharem ao serviço de governos estaduais, expressão com que o legislador quis designar os oficiais empregados em serviços locais, e bastante ampla para compreender na sua generalidade os conselhos municipais, que são corporações de natureza local e, no limite de suas funções, colaboram no Governo do Estado;

Considerando, em face do exposto, que não sendo o art. 55, das instru-ções de 1890, nem o art. 7º, § 1º, 6, da Lei 26, de 1891, aplicáveis ao caso em questão, o qual se rege pelos arts. 5º, 20, § 1º, e 24 daquelas, e art. 7º, § 1º, 5, desta, perfeitamente legal é a circular de 1º de dezembro de 1903, contra a qual reclama o apelado e que lhe mandou pagar apenas o soldo da patente:

Acordam reformar a sentença de fl. 28, para julgar improcedente a ação, e condenam o apelado nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 21 de setembro de 1907 — Piza e Almeida, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão — Amaro Cavalcanti. Vencido. Votei pela confirmação da sentença apelada, que se funda em dispo-sição expressa da lei. O art. 55 das Instruções expedidas pelo Decreto 946 A, de 1º de novembro de 1890, cuja emenda é “Instruções regulando o abono dos vencimentos militares”, dispõe: “Os oficiais generais em disponibilidade ou considerados à disposição do Ministério da Guerra, perceberão, além do soldo e etapa, um terço da gratificação que competir à sua patente quando em exer-cício”. E a Lei 26, de 30 de outubro de 1891, art. 7º, § 1º: “As instruções de 1º

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Memória Jurisprudencial

de novembro de 1890, regulando o abono de vencimentos militares, serão ob-servadas com as seguintes alterações (...)”, dizendo-se no 3 do citado artigo: “São extensivas aos demais oficiais do quadro efetivo as disposições do art. 55” (acima transcrito). Ora, foi precisamente com fundamento nestas disposições que o apelado propôs a sua ação, visto ter sido declarado em disponibilidade pelo fato de ser eleito para o Conselho Municipal da cidade de Paraíba, e, em conseqüência, ter o Ministro da Guerra, por circular, mandado reduzir os seus vencimentos a simples percepção do soldo de sua patente. Pediu anulação da dita circular, como contrária ao art. 55 das citadas instruções, que é lei; e, portanto, não podia ser ele suprimido por mero ato do Ministro da Guerra. O caso é, pois, de lei expressa; e não sendo lícito distinguir entre disponibi-lidade e disponibilidade, como se pretende no acórdão, sobretudo para o fim do “odiosa amplianda”, não há como deixar de julgar procedente a ação do A. apelado. A apelante, aliás, não alegou que a disponibilidade do A. apelado fosse declarada fora dos casos previstos em lei. — Herminio do Espirito Santo — Manoel Murtinho — A. A. Cardoso de Castro — Ribeiro de Almeida — André Cavalcanti — Pindahiba de Mattos. Vencido pelas mesmas razões do voto do Ministro Amaro Cavalcanti. — Manoel Espinola. Vencido pelas mesmas ra-zões. — Guimarães Natal — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

AGRAVO 1.367

Admite agravo o despacho que recebe a apelação em um só efeito.Tendo-se mandado receber em um só efeito a apelação de um litiscon-

sorte, não é curial admitirem-se os dois efeitos para a apelação do outro.Quando o Procurador da República funciona como assistente nas ações

de nulidade da patente de invenção, é sempre ao autor, e não ao réu, que as-siste. Inteligência da Lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, art. 5º, e respectivo Regulamento, arts. 54 e 55.

Vistos e relatados este autos, em que o tenente Júlio Gaetner (sic) agrava do despacho do Juiz Federal da 2ª Vara deste Distrito, que recebeu em um só efeito a apelação por ele interposta da sentença que julgou procedente a ação de nulidade de patente de invenção movida contra o agravante e Ferreira Souto & Comp. pelos agravados Lameirão Marciano & Cia. e outros:

Considerando que o caso é de agravo (Lei 221, de 1894, art. 54, VI, g);Considerando que este agravo é inteiramente idêntico, nas razões em que

se funda, ao interposto pelos autores litisconsortes Ferreira Souto & Comp., ao qual o Tribunal negou provimento pelo acórdão unânime de fl. 336v.;

259

Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que, tendo o Tribunal mandado receber em um só efeito a apelação de um litisconsorte, não seria curial que admitisse os dois efeitos para a apelação do autor;

Considerando que o Procurador da República, quando funciona como as-sistente nas ações de nulidade de patente assiste sempre ao autor, e não ao réu, pois, nos termos da lei (Lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, art. 5º, e respectivo Regulamento, art. 54) ele deve assistir a quem promove a nulidade da patente, e este é o autor; a mesma inteligência decorre do art. 55 do citado regulamento, quando dá ao Procurador competência para continuar a ação, se o abandono ou qualquer acordo põe termo à ação particular;

Considerando, portanto, que tendo sido a sentença proferida contra os réus, não têm aplicação à espécie as leis invocadas pelo agravante;

Considerando que as demais alegações deste já foram examinadas e refu-tadas no acórdão de fl. 336v.:

O Supremo Tribunal Federal nega provimento ao agravo e condena o agravante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 2 de maio de 1911 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Amaro Cavalcanti — Godofredo Cunha — Manoel Murtinho — Manoel Espinola — André Cavalcanti — Leoni Ramos — Pedro Lessa — Guimarães Natal — Ribeiro de Almeida — Muniz Barreto.

APELAÇÃO CÍVEL 1.377

Vistos e relatados estes autos em que a União apela da sentença do Juiz Federal da 2ª Vara deste distrito que a condenou ou a fazer o registro de qua-torze apólices nominativas do empréstimo de 1897 de propriedade do Dr. João Vieira de Araújo, que ela se recusara a inscrever na Caixa de Amortização sob o pretexto de serem falsas as apólices ao portador que em troca recebera, ou a pagar ao mesmo doutor a quantia equivalente ao valor de tais títulos com os ju-ros respectivos e mais os da mora e custas:

Considerando que a prescrição do direito do apelado alegada pela ape-lante, é matéria já decidida pelo acórdão de fl. 153;

Considerando que a ação de que usou o autor é a apropriada à hipótese em litígio, desde que se trata precisamente de anular um ato de autoridade ad-ministrativa da União reputado lesivo do direito de propriedade — como im-plicitamente o reconheceu o mesmo acórdão de fl. 153 mandando que o juiz da primeira instância julgasse de meritis a ação, cuja validade assim consagrava;

260

Memória Jurisprudencial

Considerando que não figura nos autos a mais ligeira prova de serem fal-sos os títulos do apelado;

Considerando que, desde o momento em que se realize a troca das apóli-ces, a conversão se consuma e o credor entra na posse dos direitos decorrentes do novo título, não sendo mais lícito à Fazenda Nacional, parte contratante, desfazer esse ato por sua exclusiva autoridade e em detrimento da outra parte;

Considerando que o caso das apólices de 1897 não é idêntico ao das apó-lices de 1895, como pretende o apelado: estas, segundo confessa a própria ape-lante, foram subtraídas do Tesouro depois de resgatadas; eram, portanto, títulos verdadeiros; enquanto que aquelas, no dizer da mesma apelante, foram falsifica-das; conseqüentemente, se no primeiro caso a União tem apenas direito contra os seus empregados que por culpa ou dolo deixaram de inutilizar imediatamente os títulos resgatados, não se lhe pode recusar no segundo o direito de provar em juízo a argüida falsidade e anular a conversão por meio de ação competente;

Considerando que o fato de haverem sido apreendidas também 950 apó-lices de 1897 subtraídas do Tesouro depois de resgatadas não se apóia em prova regular, pois como tal não pode ser considerada a notícia constante dos reta-lhos de jornais colados à fl. 209; e quando assim não fosse, seria ainda mister demonstrar para negar à União, como quer o apelado, o direito de rescindir a conversão pelo motivo da falsidade que as 14 apólices sobre que versa a causa estão nas mesmas condições:

Acordam confirmar a sentença apelada, corrigindo apenas o valor dos tí-tulos que é de 14:490$000, e não 14:420$000, e condenam a apelante nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 28 de dezembro de 1907.Contra Cardoso de Castro.Em embargos, foi este acórdão confirmado unanimemente.

9 de setembro de 1909.

APELAÇÃO CÍVEL 1.394

Em 1894, a antiguidade dos oficiais do Exército era regulada pelo Decreto de 31 de março de 1851, art. 18, que, reproduzindo princípios consagrados na legislação desde dois séculos, mandava contar aquela antiguidade da data da promoção, e, havendo igualdade, sucessivamente da data dos postos anteriores, do tempo de serviço, da praça, da idade e, por fim, da sorte.

A comissão no posto de alferes é uma promoção provisória, só permitida em campanha. As promoções a alferes em campanha podem ser feitas: a) por

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Ministro Epitacio Pessôa

atos de bravura praticados em combate; b) por serviços relevantes; c) por defi-ciência de alferes determinada pelas eventualidades da guerra. Tudo isso é ex-presso na Lei 585, de 6 de setembro de 1850, art. 7º, e no Decreto 772, de 31 de março de 1851, art. 17.

Só quando a comissão é conferida por atos de bravura (e não por serviços de guerra; não há esta expressão como, sem dúvida por equívoco, diz o apelado; há, sim, comissão por serviços relevantes) é que a antiguidade se conta do dia da comissão, e não da promoção, isto é, do dia posterior, em que a comissão é con-firmada (Decreto 3.356, de 6 de junho de 1888, art. 1º, resolução de 11 de maio de 1889). Mas, se a comissão é dada por falta de oficiais, ou por antiguidade, ou por serviços relevantes, o cálculo da antiguidade segue a regra geral, isto é, conta-se do dia em que a comissão é confirmada. Este princípio é tão rigoroso que oficiais comissionados na campanha do Paraguai por distinção em combate não lograram contar a sua antiguidade da data da comissão (resolução de 28 de setembro de 1889).

Relembrados estes preceitos da nossa legislação militar, vejamos os fatos.

Durante a Revolta de 1893, foram comissionados em alferes numerosos inferiores. A 3 de novembro de 1894, o Governo confirmou essas comissões, em número de 1.753! Na conformidade da legislação que acabo de citar, foram estes oficiais classificados pela data da praça, pois que a da promoção era a mesma, salvo os comissionados por atos de bravura, que contaram a sua antiguidade da data da comissão.

Assim classificados, estes oficiais adquiriram direito aos seus números respectivos na escala, com todos os consectários daí decorrentes, inclusive o de serem promovidos ao posto superior logo que atingissem o número 1.

Pois bem, mais de um ano depois, a 9 de dezembro de 1895, promulga-se a Lei 350 desta data, mandando que estes oficiais, já classificados pela data de promoção de acordo com a legislação bissecular que rege o Exército, fossem classificados pela data da comissão. Foi uma balbúrdia inominável: quem era número 1 passou a ser o 20, quem era o número 50 passou a ser o 1, e assim por diante. Aqui no Tribunal tivemos há algum tempo uma ação na qual, estribado nesta lei, um alferes que era o número 663 da arma de infantaria pretendia pas-sar a ocupar o número 1!

Como era de esperar, surgiram de todos os lados as reclamações, e essas afinal se corporificaram numa representação dirigida ao Congresso Nacional. Tomando conhecimento desta representação, a Câmara dos Deputados, pelo voto unânime da Comissão de Legislação e Justiça, reconheceu que a Lei 350 “retroagira com ofensa dos direitos garantidos pela legislação até então em vi-gor e, portanto, era manifestamente inconstitucional”.

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Memória Jurisprudencial

E em conseqüência cotou a Lei 981, de 1903, restabelecendo a classifica-ção anterior.

Contra esta Lei 981, reclamaram então alguns oficiais, que haviam sido favorecidos pela de número 350. Mas o Supremo Tribunal, por Acórdãos 952, de 27 de janeiro de 1904 e 2 de maio de 1905, reconheceu, como fizera o Con-gresso, que a Lei 350 é que era inconstitucional; a de número 981, pelo contrá-rio, era uma lei de reparação e de justiça. A classificação, portanto, a prevalecer era a da confirmação da comissão (3-11-1894) e não a da própria comissão (da-tas anteriores).

Ora, qual a conseqüência dessa manifestação dos dois poderes constitu-cionais da República, o legislativo e o judiciário? Qual o alcance da Lei 981, vo-tada como uma lei de reparação? A conseqüência é que os alferes que não foram promovidos a tenentes porque, quando lhes chegou a vez, estavam ilegalmente classificados em números inferiores, devem agora ser promovidos e ir ocupar na lista dos tenentes o lugar que de direito lhes compete. Mas acontece que, du-rante o tempo da vigência inconstitucional da Lei 350, tinham sido promovidos a tenentes outros alferes, a quem ela arbitrariamente colocara nos lugares supe-riores. Que fazer então? O quadro é limitado, não comporta estas duas turmas de tenentes. Que fazer?

O Governo declarou agregados os que tinham sido promovidos sem di-reito, isto é, os que haviam sido promovidos por efeito da Lei inconstitucional 350, e incluiu no quadro aqueles a quem a promoção cabia de direito, isto é, ex vi da legislação que regula as promoções por antiguidade e da Lei 981, que a manteve.

Eis aí o fato dos autos. Basta expô-lo para mostrar a correção do ato do Governo e, portanto, a improcedência da ação, porque o que o autor pretende é que ele, que foi um dos alferes promovidos a tenente por efeito da Lei inconsti-tucional 350, isto é, sem ter direito algum, permaneça no quadro com todas as vantagens inerentes a esta situação, dele saia o outro oficial a quem ele preteriu, e cuja preterição a Lei 981 veio reparar.

Alega o autor, e é este o seu principal argumento, que o Governo não tem competência para declarar inconstitucional uma lei e deixar por isso de observá-la, nem para ampliar um julgado do Tribunal a indivíduos que não foram parte nele. Mas quem considerou inconstitucional a Lei 350 não foi o Governo, foi o Congresso, que, precisamente por esse motivo, revogou-a pela de número 981; e, por outro lado, o que o Governo aplicou ao autor não foi o ato do Supremo Tribunal, que ele invocou apenas como um reforço da sua resolução, mas o ato do Congresso, que não se manifesta in specie, mas, pelo contrário, com a mais ampla generalidade.

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Ministro Epitacio Pessôa

A promoção do autor tinha sido feita em virtude da Lei 350; veio o Congresso e declarou esta lei inconstitucional e, portanto, nula a promoção, mandando que os acessos fossem dados pela legislação anterior. Que fez o Governo? Executou o ato do Congresso, aplicando-o a todos aqueles a quem ele legitimamente abrangia. Ah! Mas fundou-se no acórdão do Supremo Tribunal. Quid inde? Fundou-se no acórdão do Supremo Tribunal para mostrar que tam-bém o Poder Judiciário, numa espécie que lhe fora submetida, julgara inconsti-tucional a lei, como o fazia o Poder Legislativo.

Alega ainda o autor que o Governo se esqueceu de dizer por que prin-cípio o comissionava, se por antiguidade, por atos de bravura ou por serviços relevantes; que por antiguidade não foi (não diz por que) e, portanto, ou foi por atos de bravura ou por serviços relevantes: no primeiro caso, a antigui-dade se conta da data do ato de bravura; no segundo da data da comissão; por conseguinte, a Lei 350, que mandou contar a antiguidade dos promovidos em 3 de novembro de 94, como autor, da data da comissão não lhe fez favor algum. Tudo isso está errado. Primeiramente, se o Governo se esqueceu de declarar o motivo da comissão não há razão para excluir in limine um des-tes princípios, como faz o apelado. Em segundo lugar, quando a comissão é por atos de bravura, a antiguidade se conta, não da data do ato, como diz o autor, mas da data da comissão. Em terceiro lugar, quando a comissão é por serviços relevantes, a antiguidade se conta não da data da comissão, como diz o autor, mas da data da confirmação. Ora, concedendo que o autor não tenha sido comissionado por antiguidade, como também não o foi por atos de bravura, pretensão que ele nunca teve, forçoso é admitir que o foi por servi-ços relevantes. Ora, nas comissões por serviços relevantes, a antiguidade se conta não da comissão, mas da confirmação. Logo, tendo a Lei 350 mandado contar a antiguidade do autor, da comissão, e não da confirmação, fez-lhe fa-vor; e como este favor foi declarado inconstitucional pelo Poder Legislativo, claro é que não pode subsistir, sobretudo com preterição daqueles a quem o favor de direito competia.

Não é exato que os comissionados depois da guerra do Paraguai te-nham contato antiguidade da data da comissão. Ver fl. 16, parecer do Supremo Tribunal Militar em contrário ao voto do Murtinho no Acórdão 952, de 2 de maio de 1905.

Se os alunos alferes contam antiguidade da data em que são despachados, e por disposição especial (sic).

Há um ponto em que o autor tem razão. É quando diz que, se era inconsti-tucional a lei de que resultou a sua promoção, esta devia ser anulada para todos os efeitos, e não somente para o fim de ficar agregado sem contar antiguidade. É verdade. O autor devia voltar à sua condição de alferes. Isso é que seria lógico,

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Memória Jurisprudencial

mas são tais os privilégios dos militares, que nem sempre a lógica consegue pe-netrar nos seus domínios.

O Governo de 1893 demitiu vários lentes vitalícios e nomeou indivíduos estranhos para regerem as cadeiras. No Governo imediato, os professores espo-liados reclamaram ao Poder Judiciário, este deu-lhes ganho de causa; eles vol-veram às suas cadeiras, e os ocupantes, que tinham sido nomeados com ofensa da Constituição, foram simplesmente dispensados, sem mais direito algum. Isto é lógico: um ato inconstitucional não podia conferir direitos.

Mas o mesmo Governo de 1893 reformou violentamente o Marechal Al-meida Barreto e promoveu para o seu lugar o General de Divisão Bernardo Vas-ques. No Governo imediato, o Marechal Barreto reclamou ao Poder Judiciário, este deu-lhe ganho de causa; o Marechal tomou o seu posto efetivo; mas o Ge-neral Bernardo Vasques não voltou à sua condição de General de Divisão; não, continuou Marechal, apenas agregado por excedente do quadro; isto é, como ele era militar, e não pobre paisano como aqueles professores, um ato inconstitucio-nal podia produzir efeitos para ele.

Como quer que seja, porém, se o Governo atual não privou o apelado de todas as vantagens do seu posto, mas somente da antiguidade até ser regular-mente promovido, é fora de dúvida que com isso, longe de lhe fazer agravo, lhe faz favor: podia prejudicá-lo na razão de dez e o prejudica apenas na ra-zão de um. Não é certamente o apelado quem tenha direito a reclamar contra este ato.

Depois, é preciso esclarecer que o Governo assim procedeu em obediên-cia à lei, que manda que, quando o oficial exceda do quadro, seja agregado sem contar antiguidade até chegar a sua vez. Será ilógica e, se quiserem, in-conveniente esta lei; mas é lei. E o autor que nega ao Governo o direito de não cumprir uma lei que o Poder Legislativo e o Judiciário declararam inconstitu-cional, não há de querer agora conferir-lhe a estupenda faculdade de não cum-prir uma lei vigente e que ainda não foi, nem sequer, suspeitada de contrária à Constituição.

Julgo improcedente a ação.23 de novembro de 1907.

De acordo.Em embargos, reformou-se o acórdão contra Lessa, Natal e André.

13 de julho de 1908.

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Ministro Epitacio Pessôa

APELAÇÃO CÍVEL 1.410

Na expressão “funcionário público” do art. 75 da Consti-tuição compreendem-se os magistrados, os quais, portanto, só podem ser aposentados em caso de invalidez, devendo ter-se por inconstitucional a lei que estabelece a aposentação forçada do juiz que atinge uma certa idade. O citado artigo, porém, não abrange os militares.

A invalidez é relativa às funções especiais dos cargos.A garantia do art. 75 estende-se também às magistraturas

locais.O funcionário vitalício tem direito ao aumento de vencimen-

tos votado pelo Congresso no tempo em que ele esteve afastado do emprego por um ato inconstitucional.

A União é responsável pelos danos resultantes da adminis-tração da Justiça local do Distrito Federal.

Vistos e relatados este autos de apelação cível, vindos do Juízo da Primeira Vara deste Distrito e em que é apelante a União Federal e apelado o desembargador Guilherme Cordeiro Coelho Sintra.

A Lei 1.338, de 9 de janeiro de 1905, que regula a organização da Justiça local do Distrito Federal, autoriza o Presidente da República a aposentar o ma-gistrado desde que atinja a idade de 70 anos (art. 9º, 3, letra b).

De acordo com esta disposição, o Governo, por decreto de 30 de novem-bro do mesmo ano, aposentou o apelado no cargo de desembargador da Corte de Apelação, com todos os vencimentos, por contar mais de 30 anos de serviço.

Para anular este ato, que reputa contrário ao art. 75 da Constituição, propôs o apelado, nos termos do art. 13 da Lei 221, de 1894, a presente ação sumária especial, exibindo atestados médicos de sua validade e pedindo seja a Fazenda Nacional condenada a restituir-lhe o que dos seus vencimentos descon-tou a título de selo da aposentadoria, a indenizá-lo das perdas e danos que se li-quidarem na execução e, finalmente, a pagar-lhe os vencimentos que atualmente percebem e de futuro venham a perceber os membros da Corte de Apelação.

A ação foi julgada procedente pela sentença de fl. 26 da qual apelou em tempo a União Federal.

E, bem ponderadas as alegações das partes litigantes e os princípios que regem a espécie dos autos:

Considerando que a aposentadoria só pode ser dada aos funcionários pú-blicos em caso de invalidez no serviço da Nação (Constituição, art. 75);

266

Memória Jurisprudencial

Considerando que na expressão “funcionários públicos” se compreendem os magistrados. É assim que os chama a Constituição no art. 33, c/c o art. 52, § 2º, e pode-se dizer, também no art. 82, que irrecusavelmente os abrange. É assim que os considera o Código Penal quando, tratando das malversações, abu-sos e omissões dos funcionários públicos, define os crimes dos juízes (art. 207, 1, 2, 4, 5, e 8, § 1º e § 2º; art. 214, § 3º; art. 216; e art. 235).

É assim, finalmente, que tem entendido este Tribunal, como se vê dos Acórdãos 288, de 5 de dezembro de 1898 (Jurisprudência, p. 134), 177, de 4, e 532, de 16 dezembro de 1899 (Jurisprudência, p. 165 e 305), e 671, de 17 de ju-nho de 1902 (O Direito, vol. 89, p. 390);

Considerando, portanto, que os magistrados só podem ser aposentados quando se invalidarem no serviço da Nação, como, aliás, foi declarado no Decreto Legislativo 372, de 16 de julho de 1896, ainda hoje em vigor na parte referente aos juízes federais;

Considerando que a invalidade é um estado de fato, que pode e precisa ser provado por exame direto e pessoal;

Considerando que a idade de 70 anos, só por si, constituirá quando muito uma presunção, mas não a prova desse fato, e tanto assim é que não são raros os casos de juízes septuagenários que se conservam física e intelectualmente aptos para o desempenho de suas funções. Invalidade quer dizer incapacidade, impossibilidade de exercer, como convém, os deveres do cargo. Mas, desde que há, e com relativa freqüência, magistrados de 70 anos que dão perfeita conta desses deveres, é fora de dúvida que essa idade não oferece um critério seguro para se julgar da validade do juiz. E uma prova disso está na divergência que se nota entre as próprias leis que regulam a matéria, adotando como base da aposentação compulsória ora a idade de 70 anos (Lei 1.338, de 1905), ora a de 75 (Decreto 3.309, de 1886, Lei 221, de 1894). O art. 9º, 3, letra b, da Lei 1.338, arvora em princípio absoluto que todo magistrado aos 70 anos está impossibili-tado de exercer o seu cargo. Ora, visto que esse princípio não é verdadeiro, se-gundo atestam os fatos; forçoso é concluir, como já ficou dito, que aquela idade será a presunção, mas não a certeza da invalidade;

Considerando, porém, que dar a aposentadoria “só em caso de invalidez” não é o mesmo que dá-la desde que esta se presuma;

Considerando que a última condição é evidentemente mais ampla do que a primeira, o que vale dizer que a que a consagra é inconstitucional, porque al-tera, modifica, alarga incompetentemente o preceito da Constituição, substitui a realidade, que esta pressupõe como condição da aposentadoria, pela simples possibilidade, a certeza pela mera presunção, legitimando assim casos de apo-sentação em circunstâncias não previstas pela lei constitucional, e antes por ela excluídas;

267

Ministro Epitacio Pessôa

Considerando que não poderia estar nas vistas dos autores da Constituição deixar ao legislador ordinário a faculdade de afastar dos seus cargos os mem-bros do Poder Judiciário à simples presunção de invalidade resultante de idade mais ou menos avançada; porquanto, se esta presunção se funda, em grande parte, no arbítrio do Congresso, como atesta a divergência já assinalada entre as leis que regem o assunto, nada impediria que, para excluir dos tribunais este ou aquele juiz ou para dar neles ingresso a este ou àquele cidadão, se alterasse em dado momento a lei para fixar uma idade mais baixa, constituindo assim aquela faculdade uma ameaça permanente à independência do Poder Judiciário, e, até certo ponto, à vitaliciedade dos juízes;

Considerando que não têm aplicação ao caso vertente as decisões deste Tribunal julgando não contrária à Constituição a reforma compulsória. A pri-meira regra, para a boa interpretação da lei, é tomar as suas palavras no sentido próprio e usual. Ora, nem na linguagem vulgar, nem na linguagem das nossas leis, dos atos do Poder Executivo, dos livros de doutrina ou da jurisprudência dos tribunais, jamais a palavra aposentadoria se aplicou a militares, não sendo, pois, de presumir que dela, neste sentido inusitado, se servisse o legislador, so-bretudo tendo-se em consideração que o autor do art. 75 da Constituição foi um militar, o qual, pelo hábito da linguagem relativa à sua classe, poderia incorrer no vício oposto, isto é, estender a palavra reforma a civis, mas nunca, na elabo-ração de uma lei de tamanha importância, aplicar à sua classe uma expressão que ele, mais do que ninguém, sabia inadequada e imprópria; porquanto de mi-litares, o que se diz é reforma, em português, como nas línguas que possuem este vocábulo. Do mesmo modo, a qualificação funcionários públicos, empre-gada também no dispositivo constitucional, não abrange os militares como é corrente em direito administrativo. Tudo isso mostra que não estava no pensa-mento do legislador constituinte abolir, com o dispositivo do art. 75, a reforma compulsória, já então adotada em nossa legislação; nem podia ele esquecer que a reforma compulsória é requisito indispensável a uma boa organização militar e é de uma boa organização militar que em grande parte depende a segurança e a independência da pátria. Sem valor é a objeção de que também aos professores não se aplica comumente o termo aposentadoria; porquanto não só os profes-sores são funcionários públicos, na acepção peculiar da expressão, como ainda é incontestável que, o modo comum de falar, não faz entre aposentadoria e ju-bilação uma diferença tão marcada quanto entre reforma e aposentadoria: diz-se, com efeito, sem chocante impropriedade, que um lente foi aposentado, mas não se diz que foi aposentado um coronel ou que um escriturário do Tesouro se reformou;

Considerando que, se a compulsória dos magistrados é, como se diz, tão ou mais conveniente que a dos militares, razão será isso para que uma as-sembléia constituinte derrogue o art. 75 da Constituição e dele expressamente

268

Memória Jurisprudencial

exclua os juízes, mas não para que um tribunal, adstrito à lei como ela é, e não como devia ser, subtraia ao seu dispositivo indivíduos ou classes que ela mani-festamente abrange;

Considerando que, se é da maior inconveniência para a administração da justiça manter em exercício juízes abatidos, senão inutilizados, física ou intelec-tualmente, o remédio para esse mal não é arredar dos tribunais, de envolta com tais juízes, magistrados ainda perfeitamente válidos, e sim mandar submeter à inspeção de saúde, sem desfalecimentos nem condescendências, todos quantos, maiores ou não de 70 anos, se mostrarem incapazes do serviço, como, aliás, está previsto e determinado na própria Lei 1.338, art. 9º, III, letra a, e privar do exer-cício do cargo realmente inválidos, conciliando-se assim com o pensamento da Constituição os interesses da justiça. E tanto mais eficaz será esta providência quanto se deverá ter em vista que a invalidez de que fala a Constituição não é a incapacidade absoluta, que inconciliável com a vida, nem mesmo a incapa-cidade para os cargos públicos em geral, mas a invalidade relativa às funções especiais do emprego;

Considerando que o art. 6º das disposições transitórias da Constituição, com o qual também se argumenta, não pode ser invocado em defesa da medida consagrada pela Lei 1.338, pois não adotou como critério para a aposentação a idade, mas sim o tempo de serviço, e se também dispensou a prova de invali-dade para os que contassem trinta anos de exercício, fê-lo por um favor excep-cional aos magistrados do antigo regímen que, apesar de todos os seus títulos de preferência, não fossem aproveitados na organização judiciária da União ou dos Estados;

Considerando que o art. 153 do Regimento deste Tribunal bem como o art. 22, letra c, V, da Lei 221, invocados nesta instância pela apelante e que tra-tam da aposentação forçada dos Ministros do Supremo Tribunal e dos juízes federais que completarem 75 anos de idade, estão revogados desde 1896 pelo Decreto Legislativo 372, de 16 de julho desse ano, que mandou respeitar na aposentadoria da magistratura da União a condição da invalidez. Acresce que tais dispositivos se referiam a juízes federais, e, na causa ora em julgamento, o autor é um magistrado local. Por último, ainda que estivessem em vigor, estas leis seriam inconstitucionais, pelas razões já expostas;

Considerando que o art. 75 da Constituição abrange em seu preceito os membros das magistraturas locais. Se é certo que a aposentadoria é matéria es-tranha à Declaração de Direitos e, por isso, a disposição constitucional parece à primeira vista restrita aos funcionários da União, não é menos verdade que o fato mesmo de inserir o legislador tal preceito aí, e não nas Disposições gerais, mostra que o seu intuito foi dar-lhe o mesmo caráter de generalidade que têm as garantias nesse lugar declaradas, para que se entendesse que, reunidos neste

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Ministro Epitacio Pessôa

capítulo todos os direitos prometidos pela República aos seus cidadãos, assim como os direitos que não se referem a uma classe determinada são extensivos a todos os brasileiros, qualquer que seja o ponto do país em que este se achem, assim também os que se referem a uma classe, como, por exemplo, a dos fun-cionários, são aplicáveis a todos os membros dela, sejam federais ou estaduais;

Considerando que assim já decidiu o Tribunal, precisamente em relação aos juízes locais, nos Acórdãos citados, 288, de 1898; 177 e 532, de 1899; e 671, de 1902, sendo além disso de notar que, se o juiz da Corte de Apelação, como era o apelado, é magistrado local pela natureza de suas atribuições, recebe, to-davia, a sua nomeação do Presidente da República e é pago da metade dos seus vencimentos pelos cofres da União, sendo a outra metade provida com rendas que pertencem ao Município, mas que são também arrecadadas pelo Governo Federal;

Considerando que o decreto, de 30 de novembro de 1905, causou dano ao apelado, embora o tenha aposentado com todos os vencimentos, porquanto, não só o sujeitou ao pagamento imediato do selo da aposentadoria, mas, ainda, o privou das custas que pelo regimento competem aos desembargadores, e o im-pediu de gozar do aumento de vencimento que para este votou posteriormente o Congresso Nacional, aumento a que incontestavelmente tem direito todo fun-cionário vitalício privado, por um ato inconstitucional, do exercício de seu cargo (Acórdãos 635, de 30 de agosto de 1905, O Direito, vol. 98, p. 370, e 1.234, de 28 de setembro de 1907);

Considerando que por esse dano deve responder a apelante, embora se trate de um juiz local, pois dela é que partiu o ato contra o qual reclama o ape-lado como inconstitucional e lesivo dos seus direitos. A Lei 23, de 30 de outubro de 1891, art. 4º, de acordo com a Constituição, arts. 67 e 34, 30, reservou para o Governo Federal a administração da Justiça local neste Distrito, sendo ele, por conseguinte, e não também o Governo municipal, o responsável pelos danos que causar na direção desse serviço;

Considerando o mais que dos autos consta:Acordam confirmar a sentença da primeira instância e condenam a ape-

lante nas custas.Supremo Tribunal Federal, 2 de dezembro de 1907 — Piza e Almeida,

Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Herminio do Espirito Santo — João Pedro — André Cavalcanti — Guimarães Natal — Amaro Cavalcanti — Pedro Lessa — Manoel Espinola — A. A. Cardoso de Castro. Vencido. — Ribeiro de Almeida — Pindahiba de Mattos — Manoel Murtinho — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

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Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CÍVEL 1.421

Vistos e relatados estes autos de apelação cível vindos da Seção do Ceará e em que são apelantes Reishofer Frères e apelada a Fazenda Nacional:

Deles consta que em agosto de 1902 os apelantes submeteram a despacho na alfândega do Ceará uma partida de leques, que o Inspetor taxou à razão de 6$000 a dúzia, em divergência com a comissão de tarifa, que os considerara sujeitos à taxa de 2$000.

Não se conformando com essa decisão, recorreram os apelantes para a comissão arbitral que, por unanimidade de votos, se manifestou pela clas-sificação da comissão de tarifas. À vista disso, o Inspetor mandou entregar a mercadoria mediante o pagamento da menor daquelas taxas, mas oficiou so-bre o caso ao Ministro da Fazenda, que lhe respondeu concordando com a sua opinião. Foram então intimados os apelantes a pagar a diferença do imposto e, não o tendo feito, contra eles moveu a Fazenda Nacional o presente executivo. Defenderam-se os réus com os embargos de fl. 11, e o juiz julgou procedente a causa por não ser admissível nos executivos fiscais outra defesa que não a con-sistente em nulidade do processo, quitação ou prescrição.

Isso posto e

Considerando que da decisão da comissão arbitral não há outro recurso senão o recurso voluntário da parte (Consolidação das Leis das Alfândegas de 1894, art. 517, Lei 813, de 23 de dezembro de 1901, art. 3º);

Considerando, portanto, que o ofício dirigido pelo Inspetor ao Ministro da Fazenda não vale como recurso e, do mesmo modo, a resposta do Ministro não pode ser tida como decisão regular, aplicável ao caso, que já fora e estava com-petente e soberanamente julgado;

Considerando, à vista do exposto, que os apelantes, pagando a taxa de 2$400 (sic), como fizeram e a apelada não contesta, é claro que pagaram o imposto legal e devido, e, sendo assim, os embargos de fl. 11 são verdadei-ros embargos de quitação, precisamente dos que a lei admite aos executivos fiscais;

Considerando que a alegação da apelada de que os apelantes podiam ainda recorrer administrativamente da intimação que lhes foi feita, depois da resposta do Ministro, para entrarem com a diferença do imposto. Ainda que aproveitasse à solução da questão, não tem procedência alguma, porquanto para tais intimações a lei não criou recurso algum:

271

Ministro Epitacio Pessôa

Acordam dar provimento à apelação para julgar a ação improcedente, e condenam a apelada nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 21 de setembro de 1907.

Na sua ausência negou-se provimento, contra Pedro Lessa, Guimarães Natal e Amaro Cavalcanti.

APELAÇÃO CÍVEL 1.422

As entrelinhas não regularmente ressalvadas ou supridas só anulam as escrituras quando se referem a ponto substancial do contrato. Dessa natureza não é, numa escritura de venda de terras, a entrelinha que declara nelas existen-tes uma mina que não foi condição de venda.

Não se pode considerar parte “ideal” de um terreno aquela que tem limi-tes certos e conhecidos — ao nascente, ao poente, ao norte e ao sul —, traçados em acordo amigável e reproduzidos na escritura de venda.

No direito anterior à Constituição não era lícito ao proprietário vender as minas do seu subsolo.

Vistos, relatados e discutidos os embargos de f l. 832, opostos pela Baronesa de Ibiapaba, herdeira universal do apelado Barão de Ibiapaba, ao acórdão de fl. 822, que julgou não provada a ação por este proposta contra os apelantes Antônio Rodrigues Carneiro, Boris Frères e a Fazenda Nacional:

Considerando que no correr da causa nenhuma questão constitucional se debateu e, pois, não era indispensável a presença de dez juízes desimpedidos para o julgamento da apelação;

Considerando que as entrelinhas não regularmente ressalvadas ou supri-das só anulam as escrituras quando se referem a ponto substancial do contrato (Ord. 1. 3. t. 60, § 3º, Reg. 737, de 1850, art. 146) e dessa natureza não é a entre-linha feita na escritura de fl. 23 do 1º vol. dos autos, porquanto o fim principal, senão exclusivo, deste instrumento foi transferir dos vendedores para o compra-dor o domínio das terras nele indicadas e sobre essa transferência, que é o que constitui a sua substância, claro é que nenhuma influência pode ter a declaração de que uma determinada mina, que não foi condição do acordo entre as partes, está situada nas ditas terras;

Considerando, portanto, que a mencionada escritura é válida, para o efeito de transferir do domínio de Joaquim Alves Malheiros e sua mulher, para o do Barão de Ibiapaba, as terras que os primeiros houveram por herança de

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Memória Jurisprudencial

seus sogros e pais, mediante partilhas amigáveis com os outros herdeiros, e em tais condições não pode o dito barão deixar de ser reconhecido e declarado proprietário das referidas terras e, assim, único concessionário das minas por-ventura aí existentes, ex vi do Decreto 10.000, de 8 de agosto de 1888, junto ao primeiro volume dos autos (fl. 6);

Considerando que estas terras não eram possuídas em comum por Joaquim Alves e os outros co-proprietários; tinham, ao invés disto, tal como as que o embargado Carneiro comprara a outros co-herdeiros (2º vol., fl. 25), limi-tes certos e conhecidos que são os mesmos claramente assinalados na escritura de fl. 23 e no depoimento prestado por aquele embargado à fl. 315 do 2º vol. e em parte corroborados pelo exame de fl. 504, e foram traçados em acordo amigável, depois do qual cada condômino “tomou posse da parte que lhe fora reservada”, como confessa o próprio Carneiro (2º vol., fls. 15 e 316) de sorte que o Barão de Ibiapaba não comprou uma parte ideal das terras que pertenceram ao sogro de Joaquim Alves, mas uma parte real, devidamente confrontada, de que Alves estava de posse exclusiva e cujos limites o embargado Carneiro não contesta e antes reconhece e proclama;

Considerando que contra o domínio do Barão de Ibiapaba nas terras com-pradas a Joaquim Alves nada provam as cartas e telegramas de fls. 63 a 67 do 2º vol., que são todas anteriores à escritura de fl. 23 e nenhuma palavra contêm, além disso, que direta ou indiretamente atribua a outra pessoa a propriedade das referidas terras; aliás, Carneiro mesmo repetidamente reconhece aquele domí-nio (1º vol., fl. 168; 2º vol., contest. de fl. 13, passim, e fls. 99, 316 e seguintes, 681 e seguintes, etc.);

Considerando que dos títulos exibidos pelo embargado Antônio Carneiro apenas um, o de fl. 34 do 2º vol. (pelo qual o dito embargado comprou a Joaquim Alves todo direito sobre as minas de cobre porventura existentes nas terras por este vendidas mais tarde ao Barão de Ibiapaba), colide com a escritura de fl. 23, mas esse título não tem nenhum valor jurídico, porque, segundo o di-reito vigente, ao tempo em que foi lavrada, não podiam os proprietários vender as minas do seu subsolo;

Considerando que o autor, ora representado pela embargante, não conse-guiu provar, como se propusera a fazê-lo, que a chamada mina da Pedra Verde está situada, e situada exclusivamente, nas terras por ele compradas a Joaquim Alves; não podendo constituir essa prova nem a entrelinha feita na escritura de fl. 23, ainda que tivesse sido oportunamente ressalvada, porque a simples declara-ção do proprietário não basta para que se tenha por incontestável a existência de tesouros no seu imóvel; nem os depoimentos das testemunhas do autor, porque as do réu Carneiro depõem no sentido de se achar a dita mina encravada nas terras deste; nem finalmente a planta de fl. 435 do 2º volume, porque a esta se contrapõe

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Ministro Epitacio Pessôa

a de fl. 21; e, pelo contrário, o que parece resultar dos autos é que a mina que se encontra nessa região do Município de Viçosa tenha o nome de Pedra Verde ou qualquer outro nome, se estende por terrenos contíguos das propriedades de Ibiapaba e de Carneiro, que são confinantes e esta presunção encontra apoio: a) na declaração de Joaquim Alves, antecessor do Barão de Ibiapaba, de que só parte da mina está localizada nas suas terras (1º vol., fl. 158v.); b) na informação da Câmara Municipal de Viçosa (2º vol., fls. 175 e 177v.) de que a mina tem mais de quatro léguas e, portanto, não se pode encerrar nos estreitos limites (2º vol., fl. 435) de nenhuma daquelas duas propriedades; c) na oposição feita ao mesmo tempo por Joaquim Alves e Carneiro (2º vol., fl. 175) às pretensões de Marcelino Maia, quando procurou minerar naquela região; d) no empenho de cada um dos contendores em estender a sua concessão às terras do outro, o Barão de Ibiapaba, pretendendo que se lhe reconheça o direito de, se as suas próprias terras não bas-tarem para completar a sua data mineral, inteirá-la em terras limítrofes e explorar as minas aí existentes (2º vol., fl. 84) e Antônio Carneiro efetuando a compra de minas de cobre, acaso localizadas nas terras de Joaquim Alves (2º vol., fls. 15 in fine e 34), minas, cuja existência ele atesta (vol. 1º, fl. 168);

Considerando que não há nos autos prova segura de que o embargado Carneiro e os seus associados Boris Frères tenham lavrado minas em terras do Barão de Ibiapaba;

Considerando que a concessão feita ao Barão de Ibiapaba, bem como ao embargado Carneiro, foi para lavrarem minas de cobre só em terras de sua respectiva propriedade (1º vol., fls. 6 e 174) e desde que entre eles se levanta-ram contestações sobre o domínio das terras da situação das minas, nada mais razoá vel do que a resolução da embargada União Federal de suspender os traba-lhos tendentes a tornar efetiva a concessão, até que perante o poder competente se dirimisse a questão da propriedade;

Considerando o mais dos autos:Acordam em receber em parte os embargos de fl. 832 e dar-lhes provi-

mento para o fim tão-somente de, declarando o Barão de Ibiapaba proprietário das terras que constituíam a posse de Joaquim Alves Malheiros, condenar os embargados Antônio Rodrigues Carneiro, e seus sócios Boris Frères, que delas estão de posse, a restituí-las à herdeira do dito barão, a quem compete o direito exclusivo de lavrar as minas porventura existentes nas mesmas terras. Paguem as partes, menos a União Federal que não foi vencida, as custas em proporção.

Supremo Tribunal Federal, 21 de dezembro de 1910 — Herminio do Espirito Santo, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão. Como con-seqüência natural da procedência da reivindicação condenava ainda Carneiro e Boris Frères à indenização das perdas e danos e restituição dos rendimentos das terras especialmente dos provenientes da exploração da mina ou parte da mina aí

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Memória Jurisprudencial

existente, exploração confessada da petição de fl. 168 do 1º vol. — Pedro Lessa. O autor, Barão de Ibiapaba, e o réu Antônio Rodrigues Carneiro, obtiveram licença para explorar, cada um, minas de cobre em terras de sua respectiva propriedade. Os litigantes são proprietários de terras limítrofes, terras que não foram jamais de-marcadas e que não têm limites conhecidos, pois a escritura de fl. 23 do primeiro volume dos autos apenas alude a um pé de cajazeiro que extrema pela nascente as terras do autor das do réu e a outro pé de cajazeiro que pelo poente também serve de divisa às duas propriedades. Autor e réu compraram suas respectivas terras a in-divíduos que as haviam adquirido por herança, não se tendo nunca feito uma divi-são regular entre eles. Nessas condições, pareceu-me que o despacho do Ministério da Agricultura, que mandou que averiguassem pelos meios judiciais em terras de qual dos dois confinantes está a mina de cobre, é perfeitamente jurídico, e deve ser cumprido. Sem uma ação de demarcação, e talvez sem uma ação de divisão, não é possível determinar em terras de qual dos dois litigantes está a mina. Opinando desse modo, está bem patente que não negava, mas pelo contrário reconhecia, que o autor é dono de terras limítrofes com as do réu. Nem este o nega em sua contesta-ção. Tão jurídico é esse voto, que a medida ordenada pelo Governo da União, e que o mesmo voto julgava que é indispensável pôr em prática, ainda continua a ser ne-cessária, a despeito da decisão proferida neste acórdão. É a que impõe a ordem na-tural das cousas. Não há outro meio de solver o pleito ou a contenda, entre os dois litigantes, autor e réu, nesta causa. Não condenava o réu a pagar qualquer indeniza-ção; porquanto estando decidido, e bem decidido, que não ficou provado que a mina de cobre esteja nas terras de qualquer das partes contendentes, não é absolutamente possível condenar qualquer delas a indenizar a outra de quaisquer perdas e danos sem essa prévia verificação judicial. Dada a incerteza acerca da situação da mina, é possível que a indenização deva ser paga pelo autor. — Ribeiro de Almeida. Além de reconhecer, conforme o acórdão, a propriedade do Barão de Ibiapaba sobre as terras que lhe foram vendidas pela escritura de fl. 23, condenava os embargados a pagarem perdas e danos pela exploração das minas existentes nas mesmas terras, exploração que eles têm feito na persuasão em que estão, como declara Carneiro no depoimento a fl. 315 e petição a fl. 167, de que a superfície dessas terras pertence ao Barão de Ibiapaba, mas o subsolo a eles. Condenava também a União, visto que interveio: 1º, pelo aviso de 1º de fevereiro de 1889, que impediu os trabalhos preli-minares a que estava procedendo Ibiapaba; 2º, pelo aviso de 6 de setembro de 1890, que suspendeu o uso das concessões, enquanto a propriedade das terras não fosse liquidada, perante o Poder Judiciário, quando nenhuma dúvida havia, visto que Carneiro confessava ser Ibiapaba dono da superfície. — Leoni Ramos — Canuto Saraiva — Manoel Espinola. Vencido. — André Cavalcanti — Godofredo Cunha. Vencido na preliminar de se converter o julgamento em diligência para se proceder à vistoria como único meio seguro de se averiguar se a mina de cobre em questão se acha ou não nas terras do embargante, rejeitei os embargos para confirmar o acórdão embargado, cujo dispositivo não se compreenderia, ou seria ilógico, se

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Ministro Epitacio Pessôa

não reconhecesse o domínio do embargante às terras a que se refere a escritura à fl. 23. — Guimarães Natal. Vencido. Rejeitei os embargos. A questão debatida na ação versou sobre saber-se se a mina de cobre da Pedra Verde se acha ou não loca-lizada em terras do embargante. O acórdão embargado decidiu que a localização da mina em tais terras não fora provada, sendo assim improcedente a ação. Este o seu dispositivo. A diversa conclusão não chegou este acórdão com relação à ques-tão principal em debate, porquanto declarou não provada a localização da mina da Pedra Verde em terras do embargante, limitando-se a considerar válida a escritura de fl. 23, como única para provar a aquisição pelo embargante das terras compra-das a Malheiros. Mas o acórdão embargado não contestara a realidade da aquisição atestada pela referida escritura, porque não estava em questão a propriedade das terras, mas a propriedade da mina da Pedra Verde, que se dava como localizada nessas terras e, como prova dessa localização, o acórdão embargado declarou nula a escritura de fl. 23, porque, nesse ponto, o essencial do litígio, estava ela eivada de vício substancial — uma entrelinha não devidamente ressalvada. Assim o acórdão embargado não foi reformado em seu dispositivo, foi antes declarado. Teria rece-bido os embargos se fossem de declaração; rejeitei-os, porque eram infringentes. A maioria que os recebeu, o fez para declarar o acórdão embargado, não para reformá-lo no seu dispositivo, que em substancia foi mantido. — Fui presente, A. A. Cardoso de Castro.

APELAÇÃO CÍVEL 1.428

O Decreto 3.622, de 26 de março de 1900, art. 1º, § 14, letra g, bem interpretou o pensamento da Lei 641, de 14 de novembro de 1890 (sic), compreendendo entre os tecidos tributados a aniagem de juta.

Vistos e relatados estes autos de apelação cível, vindos da Seção de São Paulo, e em que a Fazenda Nacional apelada da sentença que a condenou a res-tituir a Alfredo Campos a quantia de 24:467$000, que dele cobrara a título de imposto de consumo de aniagem e registro da fábrica respectiva:

Considerando que a palavra aniagem significando a princípio tão-so-mente um certo pano grosseiro de linho cru, próprio para fardos ou sacos, foi mais tarde sendo empregada para designar também tecidos semelhantes, desti-nados ao mesmo fim, fabricados de outras fibras, como o cânhamo e a juta, mas não para denominar tecidos de lã ou algodão;

Considerando que o tecido inferior de lã se chama estamenha, e quanto ao de algodão não tem nome especial, sendo, entretanto, correto o uso da locu-ção sacos de algodão, precisamente para distinguir de sacos de aniagem;

276

Memória Jurisprudencial

Considerando que a linguagem de nossas leis jamais confundiu tecidos de algodão para sacos com aniagem;

Considerando que a própria Lei 641, de 14 de novembro de 1899, que es-tabelece o processo para a arrecadação do imposto de consumo, quando quer designar o pano inferior de algodão, é da expressão tecido de algodão cru e não da palavra aniagem que se serve (art. 3º);

Considerando que o elemento histórico desta lei mostra que no espírito do legislador jamais existiu a confusão que lhe atribui o apelado: é o que se pode ver, nos Anais da Câmara dos Deputados de 1899, vol. 6º das emendas e pare-ceres que se lêem a p. 268 e 269;

Considerando que, sendo o intuito da lei de 1899, haver de pronto das indústrias nacionais uma contribuição real e efetiva para fazer face à crítica si-tuação financeira que atravessava o país, não se compreende que fosse tributar um artigo que as nossas fábricas nunca houvessem produzido, qual a pretendida aniagem de lã e algodão;

Considerando que a Lei 641 distingue (art. 3º) os artigos de lã dos de al-godão, sujeitando aqueles a uma taxa mais elevada; ilógico seria, pois, que na letra g confundisse os tipos inferiores desses tecidos e os sujeitasse a um im-posto igual, em vez de, com o mesmo critério adotado para os outros artefatos, fixar taxas diferentes para a aniagem de lã e a aniagem de algodão;

Considerando que, se a aniagem paga 20 réis por metro e 10 réis o algo-dão cru (art. 3º) admitir que aniagem é tecido inferior de algodão para sacos seria imputar ao legislador o absurdo e a iniqüidade de gravar com um imposto muito mais pesado o artigo inferior feito da mesma matéria-prima, destinado aos usos das classes menos favorecidas; além de que não haveria razão para que a aniagem figurasse em uma classe à parte, teria sido incluída entre os tecidos de algodão sujeitos à taxa de 20 réis (art. 3º, § 13, 2ª alínea);

Considerando que é absurdo supor que o legislador quisesse favorecer os tecidos de juta, de produção estrangeira, em detrimento do algodão, de pro-dução nacional, isentando de qualquer imposto a aniagem que se fabrica com aquela fibra e que é a única que se conhece no mercado;

Considerando, à vista do exposto, que o Decreto 3.622, de 26 de março de 1900, art. 1º, § 14, letra g, bem interpretou o pensamento da Lei 641, de 14 de no-vembro de 1899, compreendendo entre os tecidos tributados a aniagem de juta, como, aliás, já o declarou o Acórdão 1.266 e o 1.391, de 16 de dezembro de 1907;

Acordam dar provimento à apelação para julgar a ação improcedente e condenar o apelado nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 14 de dezembro de 1910 — Herminio do Espirito Santo, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Ribeiro de

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Ministro Epitacio Pessôa

Almeida — Godofredo Cunha — Manoel Espinola — Canuto Saraiva — Leoni Ramos — Pedro Lessa. Na linguagem comum dos nossos lavradores e comercian-tes de café, nos Estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, o que se chama ania-gem é exatamente o tecido de juta. — André Cavalcanti. Vencido. — Guimarães Natal.

REVISÃO CRIMINAL 1.431

Não é nulo o julgamento em que tomam parte dois jurados estrangeiros, qualificados em tempo oportuno pela junta com-petente, legalmente convocados para a sessão e sorteados regu-larmente convocados para o conselho de sentença, se a condição de estrangeiros é de todos ignorada. O brocardo error communis jus facit, mesmo entendido nos termos mais restritos, tem apli-cação ao caso em que o erro versa sobre um direito ou inabili-dade pessoal.

O fato de não se recolherem as testemunhas a uma sala re-servada não constitui nulidade, se é patente que dele nenhum pre-juízo resultou para a defesa do réu.

Vistos, relatados e discutidos este autos de revisão criminal, em que Antônio José de Albuquerque, condenado, por sentença do júri de Mococa, de 12 de março de 1908, confirmada pelo Superior Tribunal de São Paulo, a dez anos de prisão celular, grau médio do art. 294, § 2º, c/c os arts. 13 e 63 do Código Penal, pede a anulação de seu julgamento: primeiro, por haverem to-mando parte nele dois estrangeiros, Tomás Pricoli e Carlos Hintz; segundo, por se não terem recolhido as testemunhas do plenário a lugar separado do público:

O Supremo Tribunal nega provimento ao recurso para confirmar, como confirma, a sentença recorrida.

Na época em que se verificou o julgamento do recorrente, 12 de março de 1908, Pricoli e Hintz eram jurados qualificados pela junta competente desde, pelo menos, o dia 14 de novembro anterior (Decreto paulista 123, de 10 de no-vembro de 1892, art. 40), sem que eles ou qualquer outro cidadão tivessem re-corrido dessa qualificação, como facultava o citado decreto, art. 43, § 1º. Como jurados foram regularmente convocados para a sessão e a ela compareceram, como jurados, pontualmente e sem protesto. Ao serem sorteados para o conse-lho de sentença, nenhuma reclamação formularam, e foram admitidos também sem observação alguma da parte do recorrente, que nem lhes denunciou então a qualidade de estrangeiros nem os recusou sequer como podia fazê-lo, desde

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Memória Jurisprudencial

que em toda a formação do conselho as suas recusações não excederam de qua-tro. Mais ainda. Feita a revisão do recenseamento de jurados em maio de 1908 (Decreto 1.575, de 19 de fevereiro desse ano) nenhum recurso tentaram ainda Hintz e Pricoli contra a conservação dos seus nomes na lista. Foi só um ano depois de 4 de maio de 1909, que contra ela reclamaram, sendo atendidos por decisão de 5 de agosto seguinte.

Vê-se, pelo exposto, que na ocasião em que tomaram parte no julgamento do recorrente, Pricoli e Hintz eram jurados competentemente qualificados, le-galmente convocados para a sessão e sorteados regularmente para o conselho de sentença.

Eram, portanto, juízes competentes.Com efeito, organizada definitivamente a lista de jurados os termos do

art. 44 do citado decreto de 1892, os mencionados indivíduos, como todos nela incluídos, adquiriram desde então a qualidade de juízes de fato e o direito de exercer essa função, enquanto a sua condição de estrangeiros permanecesse ignorada. Ora, essa condição era desconhecida de todos no dia do julgamento, como o era desde meses antes e o foi ainda até mais de um ano depois.

Tanto basta para que a inabilidade pessoal de tais juízes não possa inqui-nar de nulidade o seu voto, pela regra de direito segundo a qual error communis jus facil, regra que nos vem do direito romano entre outros textos, Código de Constantino, 2ª de sententiis et interlocutionibus, VII, 45 e Dig. Fl. 3 de ofício Prot. I, 14, que não é estranha à nossa lei positiva (Ord. L. 4. T. 85, pr.) nem ao direito e jurisprudência dos povos cultos e à qual, mesmo os que a entendem nos termos mais restritos, não recusam aplicação aos casos, como o dos autos em que o erro versa sobre um defeito ou inabilidade pessoal.

“O erro sobre um defeito ou incapacidade da condição pessoal de um in-divíduo, diz João Monteiro, desde que é comum, isto é, tão geral, que ninguém conheça a verdade em contrário, é, como dizem os escritores, erro invencível e por isso não prejudica os atos em que, se reconhecida fosse a verdade, não po-deria o indivíduo tomar parte.

Em todos os tempos e em todas as legislações, diz um julgado francês ditado pelo mesmo jurisconsulto, “o erro comum em boa-fé basta para sanar, nos atos e mesmo nos julgamentos, irregularidades que as partes não tenham podido prover nem impedir.”

A jurisprudência belga tem como válida a sentença de um tribunal, em que toma parte um juiz que se acredita nacional, e é estrangeiro, desde que tal juiz tenha publicamente exercido as suas funções sem observação, contradição ou protesto (Pandectes Belges, vol. 37, p. 466).

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Ministro Epitacio Pessôa

É, como se vê, o mesmo ponto que aqui se discute, com a diferença que a hipótese dos autos se reveste de circunstâncias ainda mais características da aplicação da citada regra.

Quanto ao segundo fundamento do recurso, também não é bastante nesta instância para determinar a nulidade do julgamento, porquanto, como bem ob-serva o Sr. Ministro Procurador-Geral da República, do fato de se não haverem recolhido as testemunhas a uma sala reservada, nenhum prejuízo resultou para a defesa do recorrente: os depoimentos do plenário, de fato, não divergem dos que as testemunhas prestaram nas outras fases do processo.

Pague o recorrente as custas. — Supremo Tribunal Federal, 7 de de-zembro de 1910 — Herminio do Espirito Santo, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão — Amaro Cavalcanti, vencido. Está provado nos autos que do júri, que condenou o requerente, fizeram parte um italiano e um alemão, não naturalizados, e que por descuido, ou culpa, do juiz da co-marca, foram inconstitucionalmente alistados como jurados. Está mais provado que o peticionário foi condenado por oito votos (fls. 11 e 11v.). Bem podia, pois, ter sido diverso o resultado do julgamento, se do júri não tivesse seis votos a seu favor, estaria absolvido. É esse é o fato.

O art. 81 da Constituição Federal, estatuindo a revisão, confia ao legis-lador ordinário, de modo expresso (§ 1º), a missão de determinar os casos em que os processos podem ser revistos. É a Lei 221, de 20 de novembro de 1894, no art. 74, § 1º e § 3º, que preceitua que tem cabimento a revisão “quando a sen-tença condenatória tiver sido proferida por juiz incompetente”.

O júri no Estado de São Paulo compõe-se 12 jurados.Um conselho formado de dez jurados não seria, em hipótese alguma,

considerado regular, válido, ou competente, por não ser o tribunal que a lei criou, e ao qual outorgou competência para julgar certas classes de delitos. Um conselho constituído de dez jurados brasileiros e dois estrangeiros, não natura-lizados, é tanto ou mais manifestamente incompetente.

Na espécie dos autos, julgou-se válida ou legal a formação do júri, por-que, ao tempo em que se compôs esse tribunal era ignorada a qualidade de estrangeiro dos dois jurados aludidos, e assim se julgou sob a invocação da má-xima — error communis jus facit.

Essa pretensa regra de direito, pura criação dos comentadores, como bem a denominou João Monteiro, no lugar citado no acórdão, regra que Cujácio dizia ser admissível somente quando não se opõe ao direito público, não tem aplicação ao caso; visto como não é possível dar-se em relação à qualidade de estrangeiro de um indivíduo, o erro invencível que se deu no caso tão citado do escravo romano, que foi pretor. Os dois estrangeiros que fizeram parte do júri

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Memória Jurisprudencial

que julgou o peticionário só podiam naturalizar-se brasileiros, ou tacitamente, em virtude do disposto no art. 69, § 4º, da Constituição Federal, e isso era fácil verificar que não se realizou pela declaração de que queiram conservar sua na-cionalidade, feita de acordo com o decreto de 15 de maio de 1890; ou mediante petição e título de naturalização, o que consta no Ministério da Justiça e Negó-cios Interiores. Não se pode dizer erro.

APELAÇÃO CÍVEL 1.444

O Sr. Ministro Epitacio Pessôa: O ano de reserva é uma garantia esta-tuída, sobretudo em benefício do oficial. Se este pede a reforma e, declarado incapaz, insiste logo após em que ela lhe seja concedida, é irrecusável que abre mão da garantia que a lei lhe oferece e, portanto, não viola esta garantia o ato do Governo que atende ao seu requerimento.

Fui presente, A. A. Cardoso de Castro.14 de janeiro de 1911.

A resolução de 25 de agosto de 1887 declara que o oficial agregado não pode ser reformado, sem o pedir, antes de completar um ano de agregação.

AGRAVO DE PETIÇÃO 1.472

Cabe agravo do despacho proferido sobre embargos de in-competência opostos à carta precatória citatória.

Para que o foro do contrato prefira ao do domicílio, é indis-pensável que no contrato se faça expressa renúncia deste.

Vistos e relatados este autos, deles se verifica: que Luckhaus & Cia., esta-belecidos nesta Capital, requereram ao Juiz Federal da Segunda Vara a citação de Francisco Luís de Sousa Serpa, domiciliado no Estado de Minas Gerais, para vir perante ele prestar contas de quantias que recebera na qualidade de caixeiro-viajante dos mesmos requerentes:

que, expedida precatória citatória para aquele Estado, veio o citado com embargos de incompetência do Juízo, sob o fundamento de que, tendo ele o seu domicílio em Minas, só ali podia a causa ser processada;

que Luckhaus & Cia. impugnaram esses embargos, alegando que entre o patrão e o caixeiro-viajante há um contrato, escrito ou tácito, que se efetua,

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Ministro Epitacio Pessôa

na sede dos negócios daquele e para cuja execução o foro competente não pode deixar de ser o dessa sede, ou na hipótese vertente, o desta Capital;

que o Juiz julgou procedente os embargos, por entender que só mediante renúncia expressa do foro do domicílio pode prevalecer o do contrato, renúncia que não consta dos autos;

que desta decisão agravaram Luckhaus & Cia., com fundamento no art. 715, a, do Decreto 3.084, de 1898, parte III, citando como lei ofendida a Ord. L. 3, título 2º, § 3º, e o art. 24 do mesmo decreto.

O que tudo visto e bem examinado:Considerando que o agravo tem fundamento legal (Lei 221, de 1894,

art. 51, VI, a; Regulamento 737, de 1850, art. 669, § 1º; Regimento do Supremo Tribunal, art. 16, § 3º e, 1; Acórdão 968, de 14 de setembro de 1907);

Considerando que foro de contrato é aquele em que a parte expres-samente se obrigou a responder (Regulamento 737, art. 62), não bastando o fato material da celebração do contrato fora do domicílio para preterir o foro domiciliário;

Considerando que é esse hoje o conceito geralmente admitido (Morais Carvalho, Praxe, § 33; Paula Batista, Prática do Processo, § 55; João Monteiro, Processo, volume I, § 39) e é o que resulta de modo inequívoco do citado art. 62 do Regulamento 737;

Considerando que a opinião que fazia prevalecer sobre o foro do domicí-lio o do lugar em que definitivamente se constituíra a obrigação, além de des-toante da lei, tinha, como bem observa Morais Carvalho (obra citada, nota ao § 34) o inconveniente de arvorar em foro comum o do contrato que, entretanto, é apenas uma das exceções do foro do domicílio;

Considerando que mesmo aqueles que, como Melo Freire, Pereira e Sousa, Teixeira de Freitas e Ramalho, invocados pelos agravantes, estendem o foro do contrato também ao lugar da realização deste, exigem, para que tal foro prevaleça, que o réu se encontre nesse lugar (Melo Freire, Instituto Jurídico Civil, lei IV, título VII, § XVII; Pereira e Sousa, Primeiras Linhas, nota 41; T. de Freitas, nota 54 ao § 27 de Pereira e Sousa; Ramalho, Praxe, § 9º);

Considerando que a Ord. L. 3, Tit. II, § 3º e o art. 24 do Decreto 3.084, de 1898, em que se apóiam os agravantes, não têm aplicação ao presente caso, porquanto o que estes dispositivos proclamam é o direito de demandar os admi-nistradores de negócios alheios no lugar da administração e por obrigações pes-soais dela oriundas, e logo se vê que, se a espécie dos autos devesse ser decidida de acordo com tais preceitos, o agravado teria de ser demandado não aqui, mas nos Estados em que houvesse liquidado negócios dos patrões;

282

Memória Jurisprudencial

Considerando que aplicável à questão é a citada ordem, mas no § 1º, em que dispõe que o juiz poderá mandar citar qualquer pessoa fora do seu território, se lhe for mostrada escritura pública, pela qual ela se tenha obrigado a respon-der ou pagar no lugar em que ele é juiz; assim como a Ord. L. 3, T. 6º, § 2º, que contém análogo preceito;

Considerando que o agravado tem, desde muito tempo, o seu domicílio no Estado de Minas Gerais, como se vê do processo e reconhecem os agravantes;

Considerando que nos autos não há prova alguma de que ele tenha renun-ciado expressamente, em contrato porventura celebrado com os seus patrões, ao seu foro domiciliário;

Considerando que, se esse contrato é apenas tácito ou presumido, é óbvio que se lhe não pode atribuir uma cláusula que a lei positiva exige terminante-mente que seja expressa:

Acordam negar provimento ao agravo e condenam os agravantes nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 30 de dezembro de 1911 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Godofredo Cunha — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal — Oliveira Figueiredo — Canuto Saraiva — Manoel Espinola — Oliveira Ribeiro — André Cavalcanti — Leoni Ramos — Pedro Lessa — Amaro Cavalcanti.

APELAÇÃO CÍVEL 1.482

Vistos e relatados estes autos de apelação cível vindos do Juiz da Primeira Vara deste distrito e em que é apelante a União Federal e apelados os segundos-tenentes João José Ferreira de Brito, Cândido Carolino Chaves e outros em nú-mero de dezesseis:

Havendo o Governo em 1893, devido à Revolta da Armada, fechado as Escolas Militares, o Congresso Nacional, querendo reparar quanto possível os prejuízos que tal medida acarretara para os alunos, votou o Decreto 206, de 26 de setembro de 1894, autorizando o Poder Executivo a considerar como apro-vados os alunos da Escola Militar desta Capital e da Escola Naval que houves-sem freqüentado com aproveitamento as aulas até 6 de setembro de 1893, data em que rebentara a Revolta. Este favor foi estendido à Escola Militar de Porto Alegre pelo Decreto 220, de 14 de novembro de 1894. E, como surgissem dú-vidas na execução do Decreto 207, não só porque na sua última parte ele man-dava admitir os alunos a exames de generalidades e exame finais, mas também porque, a 6 de setembro de 1893, ainda se não haviam iniciado em alguns anos

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Ministro Epitacio Pessôa

os estudos do segundo período dos cursos, faltando, assim, uma base para se julgar da freqüência e aproveitamento dos alunos, o Congresso explicou pelo Decreto 263, de 30 de dezembro ainda de 1894, que os alunos deviam ser tidos por aprovados em todas as cadeiras e não somente naquelas de que tivessem conta de ano.

Interpretado assim o Decreto 206, reuniu-se a congregação da escola desta Capital e organizou a relação dos alunos favorecidos, a qual foi publicada em 11 de janeiro de 1895. Igual providência tomou a escola de Porto Alegre em março do mesmo ano.

O Governo, porém, deixou de despachar alferes-alunos aqueles a quem tocava esse galardão, sem dúvida porque todos eles eram já alferes do quadro por promoção de 3 de novembro de 1894.

Com esta omissão do Governo, porém, não se conformou o segundo-tenente de engenharia Francisco Fontes da Silva, a quem pareceu que, se o des-pacho de alferes-aluno não tinha mais significação quanto ao posto, pois que todos os interessados já haviam sido promovidos, era, todavia, do maior alcance em relação à antiguidade, porquanto, como alferes-aluno, a sua antiguidade se contaria da data do decreto que lhe outorgara esse favor, isto é, 26 de setembro de 1894, ao passo que, sem o reconhecimento daquela qualidade, o seu tempo de oficial seria contado apenas do dia da promoção, ou seja, de 3 de novembro daquele ano. E nesses termos dirigiu ao Governo, em 23 de julho de 1895, a re-presentação de fl. 103, verso, a qual não teve despacho.

Mais tarde o Poder Legislativo, pela Lei 350, de 9 de dezembro do mesmo ano, de 1895, mandou que a antiguidade dos alferes promovidos a 3 de novem-bro de 1894 fosse contada do dia das comissões respectivas.

Ora, o tenente Fontes fora comissionado em 20 de fevereiro de 1894 (fls. 13v. e 76) de sorte que, por essa lei, veio ele a ficar mais antigo do que se considerava na reclamação que dirigira ao Governo, e na qual, portanto, não insistiu.

Aconteceu, porém, que um novo ato do Congresso, Lei 981, de 7 de ja-neiro de 1903, restabeleceu a situação anterior à Lei 350, isto é, determinou que a antiguidade daqueles oficiais fosse contada, como dantes, da promoção ou da praça, e não da comissão, à vista do que o tenente Fontes voltou à sua antiga reclamação e dirigiu ao Governo em 6 de setembro de 1903 o requerimento de fl. 103v., no qual pede se lhe conte antiguidade de alferes-aluno, não já de 26 de setembro de 1894, data do Decreto 206, mas do dia que o Governo julgar mais apropriado no ano de 1893, a que o mesmo decreto se refere.

Sobre este requerimento ouviu o Governo o Supremo Tribunal Militar, o qual, de acordo com as opiniões do diretor-geral de artilharia da 4ª Seção do

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Memória Jurisprudencial

Estado Maior e do chefe desta repartição, opinou unanimemente pelo deferi-mento do pedido.

Com essa opinião conformou-se o Presidente da República pela resolução de 10 de junho de 1903.

Para anular essa resolução, propuseram os apelados a presente ação, na qual alegaram, preliminarmente, que, segundo o Decreto 772, de 31 de março de 1851, art. 31, o oficial que, por errônea contagem de antiguidade, se sente preterido na ordem da escala, só tem direito de reclamação dentro de seis me-ses, a contar do ato da promoção que o prejudicou, e esta prescrição tem sido aplicada a todas as reclamações análogas, como provam as resoluções e despa-chos constantes dos documentos de fls. 19, 22 e 25; ora, os decretos em que se fundou o tenente Fontes para pedir maior antiguidade são de 26 de setembro e 20 de dezembro de 1894, e o seu requerimento é de 23 de julho de 1895, mais de seis meses depois; logo o seu direito estava prescrito e não podia mais ser reconhecido pelo Governo; e, de meritis, que o Decreto 206, de 1894, ficou sem objeto desde que, ao entrar em execução em 11 de janeiro de 1895, data em que a Escola Militar desta Capital organizou a lista dos alunos por ele favorecidos, já tais alunos eram oficiais de patente, promovidos desde 3 de novembro de 1894; que, assim, não tendo havido nesse ano nomeação de alferes-alunos, não podia a resolução impugnada mandar contar a antiguidade do tenente Fontes da sua no-meação de alferes-aluno, e fazendo-o, feriu o direito dos autores, ora apelados, à antiguidade, pela data de praça, assegurado no citado Decreto 772, art. 18, e violou o art. 11, 3, da Constituição, que veda a aplicação das leis a épocas ante-riores à sua promulgação.

O Juiz da primeira instância, sem cogitar da preliminar da prescrição, julgou procedente a ação pelos fundamentos dos apelados. Da sua sentença ape-lou em tempo a União Federal.

O que tudo ponderado:Considerando que o Decreto 206, de 26 de setembro de 1894, interpre-

tado pelo de 263, de 20 de dezembro do mesmo ano, dependia para entrar em execução, quanto aos alferes-alunos como reconhecem os próprios apelados (fl. 9), da relação de que trata o art. 206 do Decreto 330, de 12 de abril de 1890, então em vigor nas Escolas Militares e, portanto, é da data desta relação, e não da dos decretos citados, que se poderia contar o prazo da prescrição;

Considerando que a dita relação, organizada na Escola desta Capital em janeiro de 1895, só mais tarde, em março de mesmo ano, o foi na Escola de Porto Alegre;

Considerando que a primeira reclamação do tenente Francisco Fontes da Silva, aluno da Escola de Porto Alegre, é de 23 de julho de 1895, por

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Ministro Epitacio Pessôa

conseguinte, quatro meses apenas depois de publicada a relação em que figu-rava o seu nome;

Considerando que, promulgada a Lei 350, de 9 de dezembro de 1895, fi-cou sem razão de ser essa reclamação, desde que, por efeito dessa lei, passara o interessado a ser mais antigo do que pretendia;

Considerando que, revogada a Lei 350 pela de 981, de 7 de janeiro de 1903, o tenente Fontes, a 6 de abril seguinte, isto é, antes também de decorrido o prazo de seis meses, dirigiu ao Governo a sua segunda reclamação, a mesma que servira de matéria à consulta e resolução que se pretende anular;

Considerando, portanto, que nem em relação à primeira, nem quanto à se-gunda reclamação, os fatos justificam a prescrição invocada pelos apelados; mas,

Considerando que, ainda quando assim não fosse, o dito oficial não teria incorrido na sanção que se deduz do art. 31 do Decreto 772, de 31 de março de 1851; porquanto este dispositivo cogita apenas das reclamações por preterição de promoção, e, como preceito stricti juris que é, não pode ser ampliado a casos diversos, como é o dos autos; nem sufragam a interpretação dos apelados os documentos a que se reportam, que em última análise se referem precisamente a preterições por promoções já efetuadas;

E, de meritis:Considerando que o citado Decreto 206, de 1894, considerou como apro-

vados os alunos que houvessem freqüentado as aulas com aproveitamento até 6 de setembro de 1893, disposição mais tarde ampliada mesmo às cadeiras onde não tivessem sido obtidas contas de ano;

Considerando que o tenente Fontes, a 5 de outubro de 1893, data em que se fechou a sua escola, tinha como conta de ano final em todas as disciplinas do segundo ano do curso geral que freqüentava, a nota de plenamente, e como anteriormente havia sido aprovado com a mesma nota em todos os exames do primeiro ano, veio assim, por força daquele decreto, a ficar com aprovações ple-nas em todas as cadeiras e aulas dos dois primeiros anos do curso geral;

Considerando que os alunos, praças de pré, que a esse tempo tinham aprovações plenas em todas as cadeiras e aulas dos dois primeiros anos do curso geral, eram logo despachados alferes-alunos (Decreto 330, de 12 de abril de 1890, art. 806);

Considerando, portanto, que, em face das disposições invocadas, o citado oficial adquiriu a qualidade de alferes-aluno a partir de 1893 (ano em que ocor-reu o fato regulado pelo Decreto 206, de 1894, e ao qual este, por isso mesmo, retrotrai e, com aquela qualidade, o direito de contar da mesma data a sua anti-guidade de oficial, como é expresso no art. 208 do Decreto 330, de 1890;

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Memória Jurisprudencial

Considerando que, se o Decreto 206 não podia, na época que entrou em execução, ter mais o efeito de investir da qualidade de alferes-aluno o tenente Fontes, porque este já era oficial, lhe aproveitava, entretanto, no tocante à anti-guidade de posto, direito este que a promoção de modo algum excluía, e conse-qüentemente, não ficará, por efeito dela, prejudicado, como o outro;

Considerando que, ao tempo em que o tenente Fontes adquiriu pela lei o direito de ser considerado alferes-aluno, isto é, em 1893, os apelados não eram ofi-ciais, não tinham, por conseguinte, direito à antiguidade de que trata o art. 18 do Decreto 772, de 1851, eram, sim, alunos do primeiro ano do curso geral, mais atra-sados do que o colega contra quem ora reclamam, que freqüentava o segundo ano;

Considerando, pois, que sem valor é a argüição de retroatividade formu-lada contra o Decreto 206: lei destinada a regular fatos passados, é de direito que a sua ação retroaja até a época em que esses fatos ocorreram;

Considerando, à vista das razões expendidas, que a resolução de 10 de junho de 1893 é perfeitamente constitucional:

Acordam reformar a sentença apelada para declarar improcedente a ação e condenam os apelados nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 18 de abril de 1908 — Pindahiba de Mattos, Vice-Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Herminio do Espirito Santo. Vencido. — Guimarães Natal — Amaro Cavalcanti — Manoel Murtinho — João Pedro. Vencido. — André Cavalcanti — Manoel Espinola — Ribeiro de Almeida — Fui presente, Oliveira Ribeiro.

AGRAVO 1.485

O que autoriza o agravo é a sentença da exibição propria-mente dita, proferida na causa especial de exibição, e não o sim-ples despacho que ordena o exame de livros requerido na dilação, de acordo com o protesto final da contrariedade.

Dano irreparável não há nesse despacho, sendo o exame res-trito ao ponto em questão (Cód. Com., art. 19), e tendo por fim verificar a verdade ou não de um fato que deve constar dos livros.

Nada se opõe em direito a que se admita como testemunha, tratando-se da anulação de uma venda, a pessoa que, como pro-curador dos vendedores, assinou a escritura.

Vistos e relatados estes autos, procedentes do Juízo Federal da 2ª Vara deste distrito e nos quais D. Maria (sic) Lacerda de Vergueiro e seus filhos

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Ministro Epitacio Pessôa

agravam do despacho de fl. 260, pelo qual o mesmo Juízo — nos autos de uma ação ordinária proposta pelos agravantes contra Gaffrée & Guinle e a Compa-nhia Docas de Santos, agravados, para anular, por lesão enormíssima, a venda da Fazenda Pelaes, feita aos primeiros agravados por Afonso Vergueiro, marido da primeira agravante, já falecido, e por esta — deferiu o requeri-mento apresentado pelos agravados na dilação probatória, de acordo com o protesto final da sua contrariedade, para que se procedesse ao exame dos livros do referido Vergueiro e se inquirisse como testemunha a pessoa que, na qualidade de procurador de Vergueiro e sua mulher, assinara a escritura de venda:

Considerando que os agravantes fundam o seu recurso nas disposições das letras m e n do art. 54, VI, da Lei 221, de 1894, que permitem agravar da sentença de exibição e do despacho interlocutório que contenha dano irrepará-vel nos termos da Ord. L. 3, t. 69, pr. e § 1º;

Considerando que na espécie vertente não se trata de uma sentença de exibição propriamente dita, proferida no processo especial de exibição, que é a decisão a que se refere a lei, mas de um simples despacho ordenando o exame de livros requerido na dilação probatória, de acordo com o protesto feito na contrariedade;

Considerando que os agravantes, autores naquela causa, alegaram haver despendido, só em benfeitorias, na fazenda cuja venda pretendem anular, mais de duzentos contos de réis;

Considerando que o meio de verificar mais pronta e facilmente a proce-dência ou falsidade dessa alegação é precisamente o exame dos livros de Afonso Vergueiro, marido da primeira agravante, dos quais, se é verdadeira a despesa, deve constar o lançamento respectivo, que Vergueiro era comerciante sob firma individual e devia, por conseguinte, lançar no seu diário tudo quanto, por qualquer título, recebesse ou despendesse de sua ou alheia conta (Cód. Com., art. 12);

Considerando que do exame, assim restrito ao ponto em questão, não pode resultar dano para os agravantes (Acórdão 914, de 10 de abril de 1907);

Considerando, por outro lado, que nada se opõe em direito a que seja ad-mitida a depor como testemunha a pessoa que, na qualidade de procurador de Vergueiro e sua mulher, assinou a escritura de venda, de cuja anulação se trata;

Considerando que recusar estes meios de prova dos agravados seria coar-tar-lhe o direito de defesa e impedi-los, sem motivo legal, de justificar os fatos que articularam na sua contrariedade;

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Memória Jurisprudencial

Considerando, à vista do exposto, que dano irreparável não há nem na primeira nem na segunda parte do despacho agravado:

Acordam não tomar conhecimento do agravo, e condenam os agravantes nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 31 de janeiro de 1912 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator — Godofredo Cunha — André Cavalcanti — Manoel Murtinho — Oliveira Figueiredo — Leoni Ramos — Oliveira Ribeiro — Canuto Saraiva — Manoel Espinola — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal — Pedro Lessa.

APELAÇÃO CÍVEL 1.564

A União, de acordo com a apelada, rescindiu uns contratos de burgos desta mediante o pagamento de trezentas inscrições de 3% — 18 de abril de 1901. Só a 24 de março de 1902 foram entregues esses títulos, mas sem juros. A apelada reclamou esses juros na importância de nove contos e mais os juros da mora. O Juiz da primeira instância julgou procedente a ação.

Não dou pela prescrição, suscitada na apelação. As inscrições foram en-tregues a 24 de março de 1902, sem juros; só então começou a correr o prazo para a reclamação desses juros, e a ação foi proposta em janeiro de 1907, por-tanto menos de cinco anos depois.

Confirmo a sentença. O Supremo Tribunal em acórdãos unânimes — 1.156, de 17 de outubro de 1906; 1.326, de 10 de julho de 1907; 1.209, de 26 de dezembro de 1906; e 1.359, de 24 de agosto de 1907 —, confirmou sentenças idênticas.

Compreendo na condenação os juros da mora. Não vejo razão no que pensa o Procurador-Geral, aliás, invocando Maynz, “que nas restituições [que, aliás, não parece ser bem o caso] só se paguem juros da mora em caso de dolo ou má-fé”. Entretanto, o Acórdão 139, de 25 de novembro de 1896, J. 74, decidiu que não são devidos juros pelo possuidor de boa-fé sobre a importância dos fru-tos que tem de restituir ao proprietário reivindicante; o de 1.073, de 19 de julho de 1905, Dtº 106, 398, que não paga juros da mora a União quando restitui im-postos cobrados ilegalmente sobre vencimentos de juízes federais aposentados, nesse (Acórdão 1.372, de 9 de novembro de 1907, Dtº 106, 428) quando paga apólices ao portador que, depois de resgatadas, foram lançadas novamente na circulação. — 14 de junho de 1909.

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Ministro Epitacio Pessôa

Confirmou-se, contra Godofredo Cunha. — 16 de junho de 1910. (Em minha ausência.)

APELAÇÃO CÍVEL 1.654

O Dr. Melo Reis comprou, por meio do corretor, cinco apólices, que mais tarde foram apreendidas pela Caixa de Amortização e reconhecidas falsas em três exames sucessivos. Propôs contra a União uma ação para haver a impor-tância destas apólices. O Juiz de primeira instância deu-lhe razão, por não estar provada a falsidade dos títulos (os exames só foram juntos mais tarde) e por-que o emissor dum título ao portador só não é responsável pelo seu pagamento quando a falsidade do título é notável do próprio título.

O Supremo Tribunal reformou a sentença, à vista da falsidade dos títulos.

Confirmo o acórdão do Tribunal. Nesta matéria sigo a doutrina do Có-digo alemão, art. 796, segundo a qual o emissor pode opor ao pagamento a invalidade da emissão, como, por exemplo: diz a nota de La Grasserie, a falsi-dade da assinatura. O Acórdão 1.372, de 9 de novembro de 1907 (Direito 106, p. 428), reproduz mal o Código alemão, dando a entender que este exige que a invalidade da emissão seja notável do próprio título. Não há tal, a disposição citada o que diz é que o emissor pode opor as exceções da invalidade da emis-são ou resultantes do título mesmo. Obrigar o emissor a pagar o título falso, porque quando o emissor é o Estado, é preciso resguardar o crédito público — nos levaria, por identidade da razão, a obrigar o Estado a pagar a nota que não fosse evidentemente falsa. No caso dos autos, o direito do embargante é contra o corretor, responsável pela veracidade do título, e não contra o Estado. — So-bre esta matéria o Tribunal já proferiu os seguintes Acórdãos: 1.377 e 1.388, de 28 de dezembro de 1907; 1.372, de 9 de novembro do mesmo ano; 1.471, de 4 de abril de 1908; e 1.663, de 30 de junho de 1910. Mas nos dois primeiros as apólices não tinham sido reconhecidas falsas e a hipótese era outra: a União entregara apólices nominativas em troca de apólices ao portador e não queria inscrevê-las; nos outros, eram apólices verdadeiras que tinham sido resgatadas, mas lançadas de novo na circulação. Nos Acórdãos 1.377 e 1.388 acentuei bem que a falsidade do título seria exceção atendível.

7 de janeiro de 1911.

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Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS 2.327

Vistos e relatados estes autos de recurso de habeas corpus interposto em favor de Francisco Garcia da Silveira de decisão do Superior Tribunal de Justiça de Mato Grosso: alega o recorrente que Francisco Garcia da Silveira, pronun-ciado por crime de homicídio cometido na Comarca de Santana do Paranaíba em princípio do ano passado, foi, por ordem do Governo do Estado, e quando já havia sido convocado o júri para o seu julgamento, transferido para a cadeia de Cuiabá; que, ao cabo de algum tempo, obteve permissão para voltar à Comarca do delito a fim de ser julgado, e para ali efetivamente embarcou no dia 27 de ju-lho, mas, ao chegar a Corumbá, foi, ainda por ordem do Governo do Estado, re-colhido à cadeia dessa cidade, onde ainda se conserva sem julgamento. Havendo pedido habeas corpus ao Superior Tribunal do Estado, foi-lhe a ordem de sol-tura denegada pelo acórdão de fl. 7, sob o fundamento de se achar o impetrante pronunciado por um juiz competente e não ter comprovado as suas alegações quanto à ilegalidade da prisão.

Mas, considerando que o fato de estar o recorrente detido na cadeia de Corumbá por ordem do Governo do Estado foi confirmado pelo Procura-dor-Geral do Estado, que o explicou pelo temor que sentia o Governo de não poder garantir o paciente no trajeto para a Comarca de Santana do Paranaíba (fl. 8);

Considerando que esse motivo, que, aliás, pode perdurar indefinida-mente, não justifica a conservação do recorrente na prisão daquela cidade, que não é o distrito da culpa; porquanto o Governo do Estado é obrigado a prestar as necessárias garantias ao réu e deve ter meios para isso;

Considerando o mais que dos autos consta:Acordam dar provimento ao recurso para mandar, como mandam, que

o paciente Francisco Garcia da Silveira seja submetido imediatamente a julga-mento perante o tribunal competente. Custas ex causa.

Façam-se por telegrama as necessárias comunicações.29 de novembro de 1905.

HABEAS CORPUS 2.654

Vistos, expostos e discutidos estes autos de habeas corpus preventivo impetrado em favor do cirurgião capitão-de-fragata Dr. João Francisco Lopes Rodrigues, ameaçado de constrangimento ilegal, por isso que, tendo sido eleito, quando se achava nesta Capital, membro do conselho municipal da cidade do

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Ministro Epitacio Pessôa

Rio Grande do Sul, do Estado de igual nome, e havendo, para ir exercer o res-pectivo cargo, solicitado licença ao Ministro da Marinha, este lha recusara, ex-pondo-o, assim, à prisão, que o impetrante reputa ilegal desde que ao Governo não é lícito embaraçar o exercício do mandato popular de que se ache investido um militar, quando este, pela Constituição e leis do país, goza de plena capa-cidade eleitoral, tanto mais que pelo Ministério da Guerra tem sido permitido a oficiais do exército tomar assento em câmaras municipais, do que é exemplo um oficial do corpo de engenheiros, capitão Juvenal Miller, que faz parte do mesmo conselho municipal, do qual se pretende a afastar o paciente, havendo, assim, no seio do próprio Governo dois procedimentos divergentes em relação ao mesmo assunto: não vencida a preliminar de se pedirem esclarecimentos ao Ministério da Marinha por considerá-los o Tribunal dispensáveis, visto ser o presente habeas corpus perfeitamente idêntico ao requerido em favor do mé-dico da armada Dr. Galdino Santiago, sobre o qual informou o dito Ministro e foi indeferido pelo Acórdão deste Tribunal, 2.629, de 21 de outubro de 1908:

Acordam denegar a ordem impetrada pelos mesmos fundamentos do acórdão supracitado, os quais não foram destruídos pelo que alegou o impe-trante, quer por escrito, quer verbalmente. Custas ex causa.

Supremo Tribunal Federal, 2 de janeiro de 1909 — Pindahiba de Mattos, Presidente — Manoel Murtinho. Vencido na preliminar. — Amaro Cavalcanti — Ribeiro de Almeida. Vencido na preliminar. — André Cavalcanti — Pedro Lessa — Manoel Espinola — Canuto Saraiva. Vencido na preliminar. — João Pedro. Vencido na preliminar e de meritis. — Herminio do Espirito Santo. Vencido. Não conhecia do recurso. Guimarães Natal — Epitacio Pessôa. Vencido na preliminar e de meritis. O acórdão não tem fundamentos próprios, reporta-se às razões de decidir de um outro, o de número 2.629, de 21 de outubro último.

Essas razões são duas:Primeira, o militar pode ser eleito conselheiro municipal, em vista da

Constituição e mais leis em vigor, mas isso não o desliga dos seus deveres mi-litares nem da obediência devida aos seus superiores, do contrário o Governo veria a cada passo coarctada a sua ação sobre o pessoal do exército e armada e, em dado momento, não saberia mesmo quando e de quantos oficiais poderia dispor.

Segunda, a Lei 26, de 30 de dezembro de 1891, art. 7º, § 1º, 6, concedendo que militares fossem postos em disponibilidade quando eleitos para dados cargos, especificou logo e unicamente os lugares de “membros do Congresso Federal e dos Congressos Estaduais”, de onde se deve concluir a exclusão dos demais cargos. Nesse sentido manifestou-se já o Tribunal no Acórdão 1.349, de 21 de setembro de 1907.

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Memória Jurisprudencial

Essas razões, que foram as mesmas invocadas na discussão do presente acórdão, não me parecem procedentes.

Que o militar pode ser eleito vereador é incontestável. O próprio acór-dão em que o Tribunal ora firma a sua decisão reconhece-o em termos explí-citos, citando “a Constituição e mais leis em vigor”. Essa capacidade resulta, com efeito, da Carta constitucional, que só a recusa aos não alistáveis, e das leis de eleição municipal, que não incluem entre as incompatibilidades a de ser militar.

Mas, se o militar “tem capacidade para ser eleito conselheiro municipal em vista da Constituição e das leis em vigor” como se exprime o acórdão, não se pode admitir sem flagrante contradição que ao ministro seja lícito burlar essa capacidade, sobrepor-se à Constituição e às leis e impedir que o militar exerça as funções para que foi escolhido. Não seria cousa séria a legislação que dissesse ao oficial “podeis ser eleito” e logo ao ministro “podeis proibir que ele tome posse do cargo”. Do mesmo modo, seria um escárnio o sistema represen-tativo em que o exercício de um mandato político dependesse do “favor, con-descendência ou simples arbítrio” (o conceito é do acórdão) de um secretário do presidente da República!

Perdoe-me a maioria do Tribunal, se não posso dominar o meu assombro diante de uma tal doutrina.

Pela Constituição e leis em vigor, o militar pode ser eleito vereador; a Cons tituição adota, como base do regímen, o sistema representativo; a mesma Cons tituição consagra em termos insofismáveis o princípio da autono-mia municipal; ainda a Constituição estatui que ninguém pode ser obrigado a deixar de fazer alguma cousa senão em virtude de lei. Em tais condições, como declarar perfeitamente correto e legal o procedimento de um ministro de Es-tado que, sem apoio em lei alguma, por “simples arbítrio”, cassa a elegibilidade de um oficial, mistifica o voto popular, priva os eleitores do seu legítimo repre-sentante, anula a autonomia municipal, desrespeitando-lhe as leis, em virtude das quais o oficial foi eleito e tinha de exercer as funções, em suma, viola uma, duas, três vezes a Constituição?!

Não, semelhante decisão não pode, não deve figurar nos volumes da ju-risprudência do Tribunal, como sua opinião definitiva.

Uma vez eleito, seja para que cargo for, vereador ou presidente da Repú-blica, uma vez reconhecido e proclamado tal pelo poder competente, o oficial está ipso facto desligado dos seus deveres militares. É um representante do povo, e tanto basta para não poder continuar às ordens da administração. Não tem que pedir licença ao ministro; comunica-lhe apenas que vai ocupar o posto que lhe designou a vontade popular.

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Ministro Epitacio Pessôa

Se o oficial eleito vereador “não tem direito à disponibilidade”, porque “não há lei expressa em que se funde essa pretensão”; se a licença do ministro é indispensável e constitui ato de mero “favor, condescendência ou simples arbí-trio”, de sorte que o ministro pode recusá-la sem violar “nenhuma disposição de lei” nem cometer nenhuma “exorbitância de atribuição”, então sejamos lógicos e, como por igual nenhuma lei “concede” expressamente a disponibilidade ao oficial eleito governador do Estado ou presidente da República, reconheçamos que tal oficial está também obrigado ao pedido de licença! E, como o deferi-mento deste é ato de “simples arbítrio” do ministro, proclamemos ainda que o ministro pode negá-la e impedir assim que assuma as funções de governador do Estado ou de presidente da República o oficial que o Estado ou a Nação haja escolhido para esse cargo!

Eis a que maravilhas conduz a doutrina do acórdão.Quanto ao mal que resultaria do afastamento simultâneo de muitos ofi-

ciais para os conselhos de Município, consideração é esta que estaria bem em uma assembléia legislativa, jamais em um tribunal judiciário. Se esse fato pre-judica ao serviço federal e coarcta a ação do Governo, é ao Congresso Nacional que cumpre dar-lhe remédio, não ao Supremo Tribunal, que não tem entre as funções constitucionais a de procurador dos interesses da administração.

O segundo fundamento do acórdão não tem mais procedência do que este.

A Lei 26, de 1891, com o considerar em disponibilidade os militares elei-tos deputados ou senadores, não lhes “concedeu” cousa alguma, como pensa o acórdão, reconheceu simplesmente uma situação de fato, necessária, iniludível.

A disponibilidade resulta do fato mesmo da eleição. Desde que é eleito, o oficial tem forçosamente de deixar o serviço militar, porque, com o rigor deste e a sua severa disciplina é materialmente incompatível e absolutamente incon-ciliável o exercício da função eletiva, qualquer que ela seja. Admitida a ilegi-bilidade do militar, a disponibilidade é um consectário forçado, não pode ser um mero favor, do contrário, a sua recusa tornaria aquela faculdade uma cousa platônica e ridícula.

O direito à disponibilidade confunde-se, pois, com o direito à eleição; negar aquele é recusar este, ao contrário do que fez o acórdão que, mais uma vez contraditório, reconhece que o oficial tem direito a ser eleito intendente municipal, mas não tem direito a, depois de eleito, ficar em disponibilidade e exercer a função.

Tudo isso mostra com a máxima evidência que a citada Lei de 1891 não teve por fim especificar quais as funções eletivas que, únicas, acarretariam a disponibilidade; não — lei orçamentária —, o seu objetivo foi outro, foi

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Memória Jurisprudencial

(resolvendo dúvidas que haviam surgido na Câmara dos Deputados em 1891 e das quais fui testemunha, tanto que figurei entre os proponentes da idéia) in-dicar os vencimentos que deviam caber aos oficiais eleitos para os congressos legislativos. Eis a disposição invocada pelo acórdão: “Art. 7º As instruções de 1º de novembro de 1850, regulando o abono de vencimentos militares, serão observadas com as seguintes alterações (...)”

Seguem-se sete números, dos quais o sexto é o que fixa os vencimentos dos oficiais senadores ou deputados.

Vê-se assim, claramente, que a lei não veio criar e definir a situação de disponibilidade e declarar quais os militares com direito a ela, caso em que o acórdão teria razão e a inclusão de uns autorizaria “a exclusão dos demais”; não, veio apenas alterar a lei vigente sobre o abono de vencimentos militares.

Obedecendo ao seu intuito estatuiu ela que aqueles oficiais seriam con-siderados em disponibilidade com os vencimentos do art. 55 das Instruções, de 1890 (que era a disposição que regulava os vencimentos dos generais em disponibilidade).

Como os oficiais eleitos para aquelas funções tinham necessariamente de ficar em disponibilidade, a lei mandou abonar-lhes a mesma espécie de venci-mentos a que tinham direito os generais em disponibilidade. Eis tudo.

Daí em diante não poderia haver mais dúvida: os oficiais eleitos depu-tados ou senadores teriam direito ao soldo, etapa e um terço da gratificação; os que o voto popular escolhesse para outros cargos, continuariam sujeitos à regra geral estabelecida para todos os militares empregados em funções estranhas ao ministério respectivo, isto é, perceberiam somente o soldo (Instruções, arts. 5º, 20, § 1º, e 24).

Do fato, pois, de não se referir a lei de 1891 aos militares eleitos vereado-res, o que se podia concluir é tão-somente que tais militares não tinham direito aos vencimentos ali taxados para os senadores e deputados, mas nunca, como fez o acórdão... que os oficiais eleitos conselheiros municipais não têm direito à disponibilidade!

Se tal conclusão fosse lógica, lógico seria igualmente o que já assinala-mos, isto é, que o presidente da República e o governador do Estado, quando militares, não têm direito à disponibilidade, visto que a lei de 1891 também não trata dessas funções!

A “exclusão dos demais cargos”, que o acórdão lobrigou na lei, é quanto aos vencimentos, e não quanto à disponibilidade.

Aliás, essa interpretação já foi declarada em termos os mais precisos pelo Acórdão 1.349, de 21 de setembro de 1907.

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Ministro Epitacio Pessôa

O que é curioso é que a maioria do Tribunal invoca esse acórdão em apoio da sua opinião.

Ora, basta notar, para patentear o desarrazoado dessa pretensão, que, na ação julgada pelo Acórdão 1.349, não estava em questão a disponibilidade, a qual já fora declarada por ato do Governo.

O caso é este: um oficial foi eleito conselheiro municipal em 1904 e logo declarado em disponibilidade pelo Ministério da Guerra. Indo receber os seus vencimentos, a Delegacia Fiscal pagou-lhe unicamente o soldo.

Propôs ele então uma ação para haver a etapa e a gratificação de exercí-cio, alegando que, posto em disponibilidade, tinha direito aos vencimentos do art. 55 das Instruções, de 1890, nos termos da Lei 26, de 1891. O Acórdão 1.349, de que fui Relator designado, ponderou então: que as Instruções de 1890 se re-feriam à disponibilidade resultante de outras causas que não o mandato político; que a lei de 1891 só tratava dos oficiais senadores e deputados; que o autor não estava nem em um nem em outro caso; que, portanto, não tinha direito aos ven-cimentos que reclamava, mas só ao soldo, como oficial empregado em serviço estranho ao Ministério da Guerra.

E, explicando a severidade da lei, que não tornara extensivas aos conse-lheiros municipais as vantagens prodigalizadas aos membros dos congressos, o Acórdão 1.349 observava que o legislador tivera em vista sem dúvida os graves prejuízos que sofreria o serviço militar com o afastamento de excessivo número de oficiais para as numerosíssimas câmaras municipais da República, onde iriam perdendo o hábito da disciplina e o gosto da carreira.

Ora, como foi possível à maioria do Tribunal descobrir aí apoio para a sua conclusão, de que os militares eleitos vereadores não têm direito à dis-ponibilidade?!

Não sei.

Há, porém, cousa ainda mais curiosa na decisão que estou combatendo, e é que, procurando medir a regra da disponibilidade pela exceção de vencimen-tos especiais, foi o Tribunal pedir inspirações a uma lei já revogada, fechando os olhos à lei vigente que, submetida ao mesmo processo lógico, contrariaria abertamente as suas conclusões.

Com efeito, a Lei 26, de 1891, foi revogada pela 1.473, de 9 de janeiro de 1906.

Ora, se porque a lei revogada só cogita (aliás, para o efeito único de lhes marcar vencimentos especiais) de militares eleitos senadores ou deputa-dos, conclui o acórdão que não têm direito à disponibilidade os oficiais eleitos

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Memória Jurisprudencial

intendentes municipais, forçoso é admitir a conclusão contrária em face da lei vigente, que já não cuida só de deputados e senadores, mas admite também que militares possam exercer quaisquer “funções eletivas, federais ou estaduais” (art. 17, 5). É fora de dúvida que entre as “funções eletivas estaduais” se incluem as municipais, do mesmo modo que as eleições do Estado compreendem as do Município (Constituição, art. 70, § 1º).

Isso faz crer que outra seria a sentença do Tribunal se em vez de uma lei revogada há três anos, se houvesse ele inspirado na lei em vigor.

O que fica dito é bastante para mostrar que o ato contra o qual reclama o impetrante do habeas corpus é ilegal e, conseguintemente, ilegal o constran-gimento em que se acha o paciente, ameaçado de ser preso como desertor se se empossar das funções para que foi eleito em um conselho onde — significativo constraste! — as está exercendo tranqüilamente um outro militar, oficial do Exército, eleito ao mesmo tempo que ele!

O Ministro da Marinha não pode opor-se a que um seu subordinado exerça a vereança. A única restrição a esse direito, no estado atual da nossa legislação, é que o oficial vereador perde parte dos seus vencimentos mi-litares. Se esta restrição não basta, o Poder Legislativo que crie outras. O ministro é que não pode criá-las a seu talante e menos ainda obstar de todo o desempenho do cargo, sem cometer uma ilegalidade, e ao Supremo Tribunal falece autoridade para homologar os atos ilegais do ministro, ofensivos da liberdade individual e de direitos políticos assegurados na Constituição.

HABEAS CORPUS 3.004

Em face do art. 166 do Código do Processo Penal do Rio Grande do Sul, a testemunha tem o direito de ser inquirida no lugar do seu domicílio, ainda que resida fora da jurisdição do juiz.

A exceção contida no final deste dispositivo não é uma limitação a um direito, mas a exigência da citação das partes para o processo.

Nos termos dos arts. 78 e 79 do citado código, só na fase do julgamento, e não na da formação da culpa, pode o processo ser desaforado.

Uma decisão do Supremo Tribunal do Estado desaforando ab initio o pro-cesso não constitui embaraço legítimo à ação do Supremo Tribunal Federal para amparar por meio de habeas corpus a liberdade das testemunhas ameaçadas,

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Ministro Epitacio Pessôa

por força daquela decisão, de serem conduzidas debaixo de vara para deporem em comarca estranha à do seu domicílio.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que o Dr. Plínio de Castro Casado recorre do acórdão do Superior Tribunal do Rio Grande do Sul, que lhe negou a ordem de habeas corpus por ele impetrada para que os Drs. Pedro Simões Pires, Serafim Prates Garcia e outros, arrolados como testemunhas em denúncia oferecida por crimes cometidos em Santana do Livramento, não sejam obrigados a ir depor em Porto Alegre, para o que foram agora intimados, sob as cominações legais:

Considerando que é direito da testemunha ser inquirida no lugar do seu domicílio, ainda quando resida fora da jurisdição do juiz. O Código do Processo Penal do Estado (art. 166) dispõe, com efeito, que “as testemunhas residentes fora do lugar da jurisdição do juiz são inquiridas no lugar do seu domicílio, com citação das partes, menos no período da instrução secreta”;

Considerando que esta última frase — menos no período da instrução secreta — não é uma limitação daquele direito, mas gramaticalmente e logica-mente, uma exceção à exigência da citação das partes para o processo, citação, de fato, dispensável na instrução secreta, porque a esta não podem as partes assistir, como é expresso no art. 344 do mesmo código;

Considerando, porém, que dos termos expressos e positivos dos arts. 78 e 79 do citado código, o processo só pode ser desaforado na fase do julgamento, não sendo curial, em matéria da restrição de direitos, como esta, estender tais disposições a outras fases do processo, qual a da instrução, de que elas não cogitam;

Considerando que a esta interpretação, única que comportam os termos da lei, não se opõem nem a emenda nem o trecho da exposição de motivos a que se refere o acórdão de fl. 8; porquanto, nem uma nem outra se ocupam precisa-mente do ponto em debate, a saber, se os arts. 78 e 79 compreendem também os processos no período da formação da culpa, mas cogitam de assuntos outros, qual a inclusão dos crimes políticos a significação das palavras legítima suspei-ção etc;

Considerando que o acórdão do Tribunal recorrido, desaforando ab initio o processo, não constitui embaraço legítimo à ação do Supremo Tribu-nal, autorizada na espécie sem limitação alguma, como não podia deixar de ser, pelo art. 61 da Constituição e, assim, contida nas exceções da última parte do art. 2:

Acordam dar provimento ao recurso para conceder, como concedem, a ordem impetrada.

Custas ex causa.

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Memória Jurisprudencial

Supremo Tribunal Federal, 5 de abril de 1911 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — Epitacio Pessôa, Relator para o acórdão — Leoni Ramos. Vencido. — Canuto Saraiva — Oliveira Ribeiro — André Cavalcanti — Manoel Espinola — Manoel Murtinho — Amaro Cavalcanti — Ribeiro de Almeida — Guimarães Natal — Godofredo Cunha — Pedro Lessa.

Contra Leoni.

HABEAS CORPUS 3.020

É ilegal a prisão decretada em conseqüência de processo evidentemente nulo, ainda que o preso esteja pronunciado por juiz competente.

Não podem os Estados autorizar o procedimento ex officio do juiz antes de verificar a falta da denúncia do Ministério Público no prazo da lei; o disposto no art. 407, § 3º, do Código Penal é matéria do direito substantivo.

Em 1907, no Município de Vila Bela, Estado de Pernambuco, deram-se graves acontecimentos: uma família, acesa em ódios contra outra, armou três grupos numerosos e trucidou vários membros desta, incendiando também algu-mas de suas propriedades.

O Governador do Estado, fundado no art. 122 da Constituição pernam-bucana, que dispõe precisamente para o caso em que em algum Município se perpetrem crimes que, por sua gravidade, número de culpados ou patrocínio de pessoas poderosas, tolham a ação regular das autoridades locais, determinou que para ali se transportasse um magistrado estranho, a fim de proceder a rigo-roso inquérito e à formação da culpa e pronúncia dos criminosos.

Assim se fez. O Juiz enviado para Vila Bela formou culpa ex officio aos indiciados delinqüentes e, por despacho de 8 de janeiro de 1908, pronun-ciou a muitos deles. A 20 de março do corrente ano, o advogado Sérgio Nunes Magalhães requereu ao Supremo Tribunal de Pernambuco uma ordem de habeas corpus em favor de Manuel Pereira da Silva Filho, João Pereira da Silva e outros desses pronunciados, alegando ser evidentemente nulo o processo que se lhes formara, visto que o procedimento ex officio só é permitido quando, decorrido o prazo legal, não se apresenta a denúncia, como estatui o Código Penal, art. 407, § 3º, que é lei federal substantiva e não pode ser modificada por uma Constituição local. O Tribunal do Estado declarou-se incompetente para resolver sobre o pedido, porque, tendo confirmado a pronúncia dos pacientes, não lhe era dado conhecer do seu próprio ato. Desta decisão recorreu o referido advogado para o Supremo Tribunal.

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Ministro Epitacio Pessôa

O que tudo visto e bem examinado:Considerando que ilegal é a prisão decretada em conseqüência do pro-

cesso evidentemente nulo (Código do Processo, art. 353, § 3º; Regimento do Supremo Tribunal Federal, art. 112), embora esteja o paciente pronunciado por juiz competente (Acórdãos 2.448 e 2.501, de 1907; 2.631, de 1908; 2.657 e 2.686, de 1909; 2.900 e 2.960, de 1910);

Considerando que o Código Penal dividiu a ação em pública e particular, confiando aquela ao Ministério Público em todos os crimes (exceto alguns que enumera) ou ao próprio juiz nos crimes inafiançáveis, quando faltar a denúncia no prazo da lei;

Considerando que esse preceito em ambas as suas partes é de direito subs-tantivo, pois contém a outorga do próprio direito de ação, do jus persenquendi; aqui conferido ao Ministério Público, ali ao juiz, se aquele se conserva inativo;

Considerando que à lei formal é lícito tão-somente fixar o prazo dentro do qual deve a denúncia ser apresentada, mas não prescindir desse prazo ou dessa formalidade, do contrário viria a autorizar o exercício do direito de ação em um momento em que este direito ainda não existe, o qual valeria outorgá-lo ela pró-pria, quando tal concessão é privativa do poder federal;

Considerando, portanto, que infringe o art. 407, § 3º, do Código Penal, e com ele o art. 34, 23, da Constituição da República, o disposto no art. 122 da Constituição pernambucana, na parte em que autoriza o procedimento ex officio do juiz, antes de se verificar a falta da denúncia do Ministério Público no prazo da lei; e, assim,

Considerando que o processo a que respondem os pacientes, formado com violação de lei federal expressa, é manifestamente nulo;

Considerando que em casos perfeitamente idênticos ao dos autos, já o Tribunal proclamou a nulidade desse processo e achou cabido e procedente o pedido de habeas corpus contra as prisões nele decretadas (citados Acórdãos 2.900 e 2.960, de 1910):

Acordam dar provimento ao recurso para mandar que fique sem efeito a ordem de prisão expedida contra os pacientes em conseqüência do aludido processo.

Custas na forma da lei.Supremo Tribunal Federal, 2 de maio de 1911.Contra Lessa.

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Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS 3.137

Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que os advogados Rui Barbosa e Metódio Coelho impetram originariamente uma ordem de habeas corpus em favor do Dr. Aurélio Rodrigues Viana, segundo Vice-Governador em exercício do Estado da Bahia; do Cônego Manuel Leôncio Galrão, pri-meiro Vice-Governador; dos Senadores estaduais Dr. Venceslau de Oliveira Guimarães, Coronel José Abraão Cuhim, Dr. Carlos Augusto Freire de Carvalho, Dr. Landulfo Caribé de Araújo Pinho, Dr. João dos Reis de Sousa Dantas, Monsenhor Hermelino Marques de Leão, Dr. Virgílio de Lemos, Dr. Antônio Batista de Oliveira, Cônego Gustavo Adolfo Marinho das Neves e João Moreira Pinto; e dos Deputados Dr. João Pacheco de Oliveira, Professor Cincinato Ricardo Pereira Franco, Dr. Alfredo Pereira Mascarenhas, Dr. Artur da Costa Pinto; Coronel Geciliano da Silveira Gusmão, Dr. Carlos de Luna Pedreira, Dr. João Gomes de Oliveira Carvalho, Dr. José Alves Pereira, Dr. Liderico dos Santos Cruz, Dr. Pedro de Alcântara Ramos, Dr. Teotônio Martins de Almeida, Dr. Quintiliano Francelino da Silva, Coronel Francisco de Sales e Silva, Dr. José Basílio Justiniano da Rocha, Dr. Joaquim Venâncio de Castro, Dr. João Diogo de Sá Barreto, Dr. Homero Pires de Oliveira e Silva, Dr. Guilherme Pereira Rebelo, Dr. José Gabriel de Lemos Brito, Dr. Pedro Rodrigues dos Santos, Coronel José Joaquim de Almeida Júnior, Dr. Antônio Pereira da Silva Moacir e Dr. Manuel Francisco de Sousa Filho.

Alegam os impetrantes:Que o primeiro paciente, Dr. Aurélio Rodrigues Viana, sofre, na capital

do seu Estado, bombardeada e militarmente ocupada por forças da União en-viadas pelo Senhor Presidente da República, violento constrangimento, consis-tente não só no obstáculo posto ao desempenho das funções do seu cargo pelo General Sotero de Meneses, que se apoderou da cidade e empossou no Governo do Estado um outro cidadão, como ainda na impossibilidade em que está de protestar contra isso, porque o Sr. Ministro da Viação, com o apoio do Senhor Presidente da República, submete a uma censura arbitrária todos os despachos oriundos da cidade de S. Salvador;

Que o segundo paciente, Cônego Manuel Leôncio Galrão, não havendo logo após a renúncia do Dr. Araújo Pinto, assumido o exercício do cargo do Governador, como primeiro substituto que é, por motivo de passageiro impedi-mento, está agora inibido de fazê-lo assim que cessar esse impedimento, por força da ocupação guerreira praticada pelo General Sotero de Meneses, como agente do Governo Federal, e da atitude ameaçadora em que se conserva o mesmo General depois de haver empossado em tumulto o terceiro substituto do governador;

Que os demais pacientes, membros do Congresso Legislativo da Bahia e presentemente reunidos, em sessões preparatórias na cidade de Jequié, para

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Ministro Epitacio Pessôa

onde, nos termos estritos da Constituição baiana, convocara o Governador, pelo Decreto 979, de 22 de dezembro de 1911, a Assembléia Geral, se acham sob a ameaça de coações e violências praticadas pelo Governador, empossado à força, para assegurar contra a verdadeira Assembléia Geral, a ascendência da falsa Assembléia constituída sem convocação regular na capital do Estado, onde fun-ciona, dizem telegramas, sob as armas do General Sotero e fingindo um quorum que não tem, sendo o fim do habeas corpus para este pacientes assegurar-lhes a liberdade e o respeito precisos para que continuem a exercer, sem o constran-gimento ora iminente, o mandato de que estão investidos, em Jequié ou onde a dita Assembléia deliberar reunir-se ulteriormente, como é de seu direito, e isentá-lo da perseguição e vinganças que a força ocupadora da capital, incitada pelos próprios crimes que acaba de praticar com escândalo geral, exercerá con-tra eles no seu regresso.

Instruem a petição exemplares dos jornais A Noite, Correio da Noite, O Século, A Notícia, A Imprensa e O País, de 12 do corrente, nos quais se encontram artigos e telegramas sobre os acontecimentos a que se referem os impetrantes.

O que tudo visto e bem examinado:Considerando que o constrangimento de que se queixam os impetrantes

procede de autoridade cujos atos estão sujeitos à jurisdição do Tribunal, e, por conseguinte, irrecusável é a competência deste para conhecer originariamente do pedido (Lei 221, de 1894, art. 23);

Considerando que está nas atribuições do Poder Judiciário garantir com habeas corpus a liberdade individual necessária para o exercício de funções po-líticas (Acórdãos 2.517, 2.519, 2.520, 2.533 a 36, de 1908; 2.793, de 1909; 2.990 e 3.061, de 1911);

Considerando que os impetrantes não provam suficientemente que o Dr. Aurélio Rodrigues Viana tenha deixado o exercício do cargo de Governador por violência de ameaças contra ele exercidas pelas forças federais; eles pró-prios confessam que, devido à censura telegráfica que dizem estar o Governo exercendo, não têm meios de apurar a verdade dos fatos, sendo certo ainda, pelo que expõem, que a ação das forças federais teve por objeto não a deposi-ção do Governador do Estado, mas a execução de uma ordem de habeas cor-pus, concedida pelo Juiz secional a Senadores e Deputados estaduais, e tais circunstâncias são bastantes para gerar a incerteza a respeito do constrangi-mento alegado;

Considerando que em relação aos demais pacientes nenhum fato invocam os impetrantes que faça presumir a intenção por parte do Governo Federal de se opor a que eles exerçam as funções, eventuais ou efetivas, de que se acham investidos;

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Memória Jurisprudencial

Considerando que a revogação do decreto que convocou a Assembléia Geral do Estado para a cidade de Jequié, revogação que os requerentes prevêem será decretada pelo novo Governador, só poderia importar um constrangimento ilegal contra a Assembléia convocada, provando-se que o Dr. Aurélio Viana fora forçado a abandonar o seu cargo, sendo, portanto, ilegítimo o exercício do seu sucessor, e é isso precisamente o que está em causa;

Considerando que a alegação de ser incompetente o Juiz secional da Bahia para conceder o habeas corpus acima referido, sendo, portanto, nula a or-dem concedida, não pode ser agora apreciada, pois, ainda quando ela fosse pro-cedente, não seria lícito ao Tribunal, conhecendo este processo, dar nele como nula uma decisão, de que apenas tem notícia vaga, proferida em outro processo ainda não submetido ao seu exame;

Considerando, entretanto, que a ação das tropas federais estacionadas na Bahia para forçar o cumprimento daquela ordem de habeas corpus, pelo modo por que se manifestou, pode ter criado efetivamente uma situação de constran-gimento em que aos pacientes faleça a liberdade necessária para exercerem as suas funções;

Considerando que o meio de conhecer a verdade e esclarecer o caso dos autos é requisitar informações das autoridades a quem os impetrantes atribuem o constrangimento de que se queixam, e ouvir os pacientes;

Considerando, porém, que a exigência do comparecimento pessoal dos pacientes poderia acarretar graves prejuízos ao exercício das funções de que se acham investidos, individual ou coletivamente;

Considerando que o Tribunal pode dispensar esse comparecimento, ha-vendo justa causa (Lei 221, art. 23, parágrafo único, c), e no caso vertente supri-lo com a requisição de esclarecimentos escritos dos Presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados da Bahia:

Acordam mandar que se requisitem do Presidente da República, do Go-vernador do Estado da Bahia e dos Presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados do mesmo Estado, para a sessão de 27 do corrente, os esclarecimen-tos necessários sobre o pedido de fl. 2.

Supremo Tribunal Federal, 13 de janeiro de 1912.Vistos os esclarecimentos prestados em virtude da requisição constante

do acórdão de fls. eQuanto ao primeiro paciente, Dr. Aurélio Viana:Considerando que o constrangimento que sofre o paciente consiste, se-

gundo as próprias expressões dos impetrantes, “no obstáculo posto ao desem-penho das funções do seu cargo de governador pelo General Sotero de Meneses,

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Ministro Epitacio Pessôa

que se apoderou da cidade e empossou no Governo do Estado um outro cida-dão”; mas

Considerando que o Poder Executivo, conforme declara na informação prestada ao Tribunal, logo que teve conhecimento exato de que o Dr. Aurélio Viana passara o exercício do seu cargo ao terceiro substituto, não voluntaria-mente, mas coagido pela ação das forças federais na execução de uma ordem de habeas corpus do Juiz secional, ordenou que, com urgência, se transmitis-sem ao General Inspetor da Bahia ordens terminantes para procurar o mesmo Dr. Aurélio Viana e pôr à sua disposição todos os elementos de força necessá-rios ao seu restabelecimento e manutenção do Governo do Estado;

Considerando, à vista disto, que a coação de que se queixam os impetran-tes em relação a este paciente deixou de existir;

Considerando que o fato de “permanecerem na Bahia os mesmos elemen-tos que forçaram a passagem do Governo” (telegrama do Dr. Aurélio Viana, à fl.), ou de ser “ao próprio General Sotero que S. Exa., o Sr. Presidente da República comete a incumbência de repor o Governador e cercá-lo de garantias (segunda petição dos impetrantes à fl.), não se pode inferir que aquela coação perdure ainda, porquanto as forças federais, subordinadas diretamente à auto-ridade do Poder Executivo, agem não por deliberação própria, mas na confor-midade das ordens deste, e o Senhor Presidente da República, como ficou dito, já deu as ordens necessárias para a reposição do Dr. Aurélio Viana, isto é, para cessação do obstáculo posto ao desempenho das funções do seu cargo;

Considerando que a ação do habeas corpus não pode, como se pretende, ir ao ponto de obrigar o Presidente da República, quando é a autoridade coatora, a fazer cessar a coação por meios que não sejam de sua livre eleição: na escolha dos instrumentos ou aparelhos que a Constituição e as leis põem ao serviço de sua ação administrativa, a autoridade do Presidente da República é soberana, não está sujeita às indicações de outro poder ou dos indivíduos, não tendo, por conseguinte, o Supremo Tribunal atribuição legal para determinar que o Poder Executivo reponha e garanta o Governo da Bahia, por meio deste ou daquele general, deste ou daquele batalhão de Exército, segundo as preferências do Tribunal ou dos pacientes, assim como não tem para impor a retirada das tropas federais de lugares onde estacionam por força da lei;

Considerando que o fato ora comunicado ao Tribunal (fls.) de haver o Barão de S. Francisco assumido o Governo do Estado na qualidade de Presidente do Senado, eleito pelos Senadores reunidos na capital e como tal primeiro substituto do Governador, com precedência sobre o Dr. Aurélio Viana, não pode constituir aos olhos do Governo, como não constitui aos olhos do Tribunal, um embaraço legal à execução das suas ordens: desde que foi sob coação que o Dr. Aurélio Viana abandonou o exercício das suas funções, como

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Memória Jurisprudencial

reconhece o Poder Executivo, incontestável é a ilegitimidade do Governo que lhe sucedeu, e, conseqüentemente, írrito e nulo é o ato pelo qual este Governo, revogando o decreto do seu antecessor que convocara a Assembléia Geral para a cidade de Jequié, a convocou para a capital, como nulos e írritos igualmente são todos os efeitos decorrentes desse ato, entre os quais a eleição daquele se-nador, tanto mais quanto, pelo protesto de fls., transmitido ao Tribunal pelo Juiz de Direito da Vara Cível de S. Salvador e assinado por onze Senadores recém-vindos de Jequié, verifica-se que na capital não se podia ter reunido a maioria do Senado necessária para aquela eleição, pois o Senado se compõe apenas de 21 membros.

Quanto ao segundo paciente, Cônego Manuel Leôncio Galrão:Considerando que o paciente, Presidente do Senado, é primeiro Vice-

Governador da Bahia, de nenhum constrangimento se queixa, não manifes-tando sequer, no telegrama que dirigiu ao Tribunal, a intenção de assumir o Governo do Estado, que recusou há pouco tempo, por motivo de moléstia, para se conservar na Presidência do Senado, em cujo exercício ainda se acha, como declara; nem dos autos consta qualquer fato que possa fazer supor da parte do Senhor Presidente da República o intuito de lhe impedir o exercício de qualquer das funções;

Considerando que, ainda quando o mesmo paciente se pudesse sentir coa c to com a nova ordem de cousas resultantes da intervenção das forças federais no cumprimento do habeas corpus do Juiz secional, essa coação não teria mais razão de ser hoje, após as ordens dadas para o Estado pelo Senhor Presidente da República.

E quanto aos demais pacientes, membros da Assembléia Geral:Considerando que o habeas corpus é pedido para protegê-los contra

“as ameaças e violências do Governador empossado à força” (petição de fl. 2), que sem dúvida as praticaria “para assegurar, contra a verdadeira Assembléia Geral, a ascendência da falsa Assembléia constituída sem convocação regular na Capital do Estado” (citada petição); mas

Considerando que, por efeito das ordens do Poder Executivo, ao “Gover-nador empossado à força” sucede agora o Governador legítimo, o mesmo que convocou a Assembléia para Jequié e cujo decreto convocatório subsiste em vi-gor enquanto pelas autoridades competentes e processos legais não for anulado ou revogado;

Considerando, portanto, que não existem mais os motivos que justifica-vam as apreensões e receios dos pacientes;

Considerando que, pelo fato de se acharem alguns Deputados e Senadores garantidos por um habeas corpus do Juiz secional para se reunirem na capital,

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Ministro Epitacio Pessôa

não podem os pacientes, como se objetou na discussão, julgar-se constrangidos, desde que tal habeas corpus não tem, não teve, e não pode ter o efeito de con-verter a minoria em maioria e impedir que os pacientes que, mesmo desconta-dos os dois signatários dos telegramas de fls., constituem a maioria funcionem como a verdadeira e legítima Assembléia do Estado na cidade de Jequié, para onde foram convocados;

Considerando que inadmissível é a solução, também alvitrada na dis-cussão, de conceder o Tribunal o habeas corpus ora impetrado para anular o que foi dado pelo Juiz secional aos adversários dos impetrantes e fazer cessar assim o constrangimento que daí lhes possa nascer, porquanto nem é curial que se reforme uma sentença fora dos autos em que foi proferida, nem da sentença do Juiz pode provir qualquer constrangimento ilegal aos pacientes, como já se demonstrou;

Considerando que, se foi porque lhe pareceu coacta a Assembléia na Capital do Estado, que o Governo a convocou a 22 de dezembro último para Jequié, não é isso motivo, como ainda se sugeriu na discussão, para se conceder a ordem ora impetrada, pois esta ordem não é pedida contra o constrangimento porventura existente naquela época, mas, como dizem os próprios impetrantes, contra a coação de que agora se arreceia a Assembléia por parte do “Governador empossado à força” e das tropas federais, tendo justamente por objetivo “asse-gurar aos pacientes a liberdade e o respeito precisos para que continuem a exer-cer, sem o constrangimento ora iminente, o mandato de que estão investidos, em Jequié ou onde a dita Assembléia Geral deliberar reunir-se ulteriormente, e isentá-los da perseguição e vinganças que a força ocupadora da capital, in-citada pelos próprios crimes que acaba de praticar, exercerá contra eles no seu regresso” (petição de fls.);

Considerando que nada nos autos autoriza a presunção de que o Senhor Presidente da República tenha o pensamento de obstar o funcionamento da Assembléia do Estado em qualquer outro ponto em que ela delibere reunir-se ulteriormente:

Acordam declarar prejudicado e sem mais objeto o pedido de habeas corpus e condenam os impetrantes nas custas.

Supremo Tribunal Federal, 20 de janeiro de 1912.

HABEAS CORPUS 3.148

Vistos estes autos de habeas corpus, impetrado pelos Dr. Rui Barbosa e Dr. Metório Coelho em favor dos pacientes Cônego Manuel Leôncio Galrão e

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Memória Jurisprudencial

Dr. Aurélio Viana, primeiro e segundo substitutos do Governador do Estado da Bahia, os quais dizem estar sofrendo ilegal e violento constrangimento para, na ordem da sucessão, ocupar aquele cargo em virtude da renúncia feita pelo efetivo:

Considerando que os pacientes alegam falta de garantias, não obstante ter o Presidente da República recomendado terminantemente ao General Ves-pasiano de Albuquerque para fazer assumir o Governo do Estado, na ordem de preferência, ao Cônego Leôncio Galrão, na qualidade de Presidente do Senado;

Considerando que, achando-se este no lugar Areia, mandou o mesmo General seu assistente Capitão Raimundo Rodrigues Barbosa e o ajudante de ordens Primeiro-Tenente Oscar Lisboa de Sousa, em trem expresso, entende-rem-se com ele, a fim de oferecer-lhe todas as garantias de que necessitasse para investir-se no Governo do referido Estado;

Considerando que, apesar disso ainda, em ofício dirigido ao General, se mostrou hesitante aquele Cônego, tanto que deixou de vir à Capital, não ace-dendo assim ao convite que lhe fora feito;

Considerando, pois, que os pacientes não quiseram aceitar as garantias amplas e ilimitadas postas à sua disposição, conforme se vê das informações de fls., prestadas pelo Senhor Presidente da República e dos documentos que as instruem;

Considerando afinal que o Governo se mantém disposto a restabelecer um ou outro na administração do Estado da Bahia desde que se resolvam a uti-lizar das ditas garantias:

Acordam julgar prejudicado o pedido de habeas corpus, pagas as custas pelos impetrantes.

Supremo Tribunal Federal, 9 de março de 1912 — Herminio do Espirito Santo, Presidente — André Cavalcanti, Relator — Ribeiro de Almeida — Oliveira Figueiredo — Amaro Cavalcanti. Vencido. Concedi o habeas corpus por entender que subsistia a coação conforme os meus votos anteriores.

— Manoel Espinola. Neguei a ordem pedida, pois, não querendo os pa-cientes assumir o Governo do Estado, apesar das garantias que lhes foram ofe-recidas, este ato, que somente a si devem imputar, exclui a suposta coação em que se fundam para fazer este novo pedido os impetrantes.

— Manoel Murtinho. Vencido. Persistindo o constrangimento ilegal por não ter podido nenhum dos pacientes assumir o Governo do Estado da Bahia, conforme a ordem da substituição constitucional, não obstante as solenes pro-messas de garantias por parte do Governo Federal, contraídas, mais de uma vez ao prestar ele informações a este Tribunal sobre os habeas corpus impetrados,

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os quais deixaram de ser cumpridos fielmente, votei concedendo de novo a or-dem para os fins requeridos.

— Canuto Saraiva. Vencido. Votei pela concessão da ordem de habeas corpus impetrada, por entender que enquanto subsistir a coação ou constrangi-mento ilegal contra quem foi requerida a providência constitucional, não pode ser julgado prejudicado o pedido, nos mesmos termos de meus votos anteriores.

— Godofredo Cunha.— Pedro Lessa. Vencido. Votei concedendo a ordem de habeas corpus

impetrada. Perdura a coação dos pacientes, como sabe perfeitamente toda a na-ção brasileira.

— Epitacio Pessôa. Julguei também prejudicado o habeas corpus em perfeita coerência com os meus votos anteriores.

Nos acórdãos de 20 e 29 de janeiro o Supremo Tribunal assim decidiu, por ter o Presidente da República informado que dera ordem para o restabeleci-mento da normalidade constitucional na Bahia. Ora, nas informações prestadas agora, afirma o Presidente que os pacientes não aceitaram as garantias ofereci-das, mas, não obstante, as mantém à sua disposição, até que eles se resolvam a voltar ao Governo do Estado.

Juridicamente, pois, a espécie é a mesma; a mesma, por conseguinte, não podia deixar de ser a decisão.

Esta decisão foi criticada nos primeiros acórdãos, sob o fundamento de que, tendo o Tribunal reconhecido a existência de coação, não lhe era lícito denegar o habeas corpus, porque o art. 72, § 22, da Constituição instituiu esse remédio jurídico precisamente para todo caso em que o indivíduo sofrer violên-cia ou coação.

A crítica não tem procedência. Em primeiro lugar não é verdade que o Tribunal tenha reconhecido a existência atual da coação, indispensável no habeas ordinário; pelo contrário, no acórdão de 20 de janeiro ele negou-a nada menos de seis vezes, proclamando que a coação, se existira, desaparecera com as ordens dadas pelo Presidente da República às tropas federais, de quem ela provinha. Em segundo lugar, quando mesmo o fato fosse verdadeiro, nem por isso teriam mais razão os censores, que, para darem às suas palavras visos de plausibilidade, começam por truncar o artigo constitucional em que se fundam. A Constituição, com efeito, não diz que se dará o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer coação, mas, sim, que o habeas corpus terá lugar sempre que o indivíduo sofrer coação por ilegalidade ou abuso de poder. Pressupõe, por-tanto, uma situação jurídica complexa, formada de dois elementos distintos, a coação de um lado e do outro a ordem exorbitante ou ilegal da autoridade. Sem que tal situação se defina claramente na coexistência desses dois elementos,

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Memória Jurisprudencial

inadmissível é o habeas corpus. Um governador é deposto por um movimento popular, um indivíduo é seqüestrado por malfeitores; eis aí caso de coação pa-tente. Entretanto, ninguém dirá que sejam casos de habeas corpus. Por quê? Porque lhes falta a outra condição, pressuposta no texto constitucional, a auto-ridade coatora.

Ora, desde que o Presidente da República, logo que tivera conhecimento da coação feita por forças de seu comando, providenciara para que ela cessasse, onde mais a autoridade coatora a quem, por lei, devia ser expedida a ordem?

Não basta a afirmação do Presidente, diz-se, do contrário ter-se-ia de aceitar a de qualquer outra autoridade, e o habeas corpus poderia ser burlado a cada passo.

O argumento briga com a lógica, raciocina às avessas e esquece que o Presidente da República não é uma qualquer autoridade, mas um poder sobe-rano, com direito ao acatamento e à confiança dos outros poderes da nação.

Acresce que o Supremo Tribunal tem, em casos idênticos e com acordo de todos os seus membros, aceitado inúmeras vezes como bastantes as afirma-ções das autoridades inferiores, e o que seria de estranhar é que recusasse agora, aliás, sobre fatos de notoriedade pública, as do Presidente da República, por se-rem da primeira autoridade da nação!

Como manifestação de confiança política, poderia tal incoerência justifi-car-se; mas o Tribunal (será preciso lembrá-lo?) não é uma assembléia política, é uma corporação judiciária.

Além da razão de ordem geral exposta em começo, um ligeiro exame dos fatos e dos documentos e só dos documentos e dos fatos, com referência a cada um dos pacientes bastará para mostrar que este novo pedido de habeas corpus não tem sequer vislumbre de procedência.

Coagido o Dr. Aurélio Viana a deixar o poder pela segunda vez, o Pre-sidente da República deu ordens imediatamente ao Coronel Inspetor interino da região para restabelecer o Governo legal, e resolveu enviar à Bahia um emissário com a incumbência de assegurar ali a ordem constitucional. Antes, porém, de serem postas em execução essas medidas, isto é, a 27 de janeiro o Dr. Aurélio Viana escreveu e assinou de seu próprio punho o documento de fl. 19, no qual declara “renunciar definitivamente e sem coação, ao cargo de governador do Estado” e pede que o inspetor da região comunique o fato ao Presidente da República, para que “fique sem efeito a ordem de reposição que lhe fora oferecida”. Este documento está firmado por duas testemunhas da mais alta respeitabilidade, a juízo dos próprios impetrantes, o Dr. Pacífico Pereira, Professor da Faculdade de Medicina, e o Sr. Manuel Conde Júnior, negociante na Capital.

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Ao mesmo tempo em que assim procedia, o Dr. Aurélio Viana convidava, por um ofício em que se lêem as mesmas declarações, o terceiro substituto, Desembargador Bráulio Xavier, a assumir o Governo (documento de fl. 17, in fine).

Ora, se o próprio Dr. Aurélio Viana, espontânea e definitivamente, abriu mão de seu direito de substituição, onde o fundamento jurídico do habeas corpus? Como pretenderem os impetrantes que o Tribunal garanta a um ci-dadão o exercício de funções que ele não quer exercer, ou obrigue o Poder Executivo a dar a esse cidadão garantias que ele recusa?!

Ante a evidência desse absurdo, afirmam os impetrantes que a renúncia foi extorquida por violência, e quando se objeta que ela está assinada por dois cidadãos de absoluta integridade moral e que gozam na Bahia da maior estima, respondem que também esses cidadãos foram coagidos sob ameaças de morte.

Ora, isso não é exato, e a prova de que o não é está no documento de fl. 17, uma carta dirigida por aqueles cidadãos ao emissário do Governo Federal, General Vespasiano, escrita oito dias após a chegada desse General, quando desde muito haviam cessado na Bahia as desordens coatoras, e na qual afirmam que a sua intervenção foi amigável e espontânea, que espontânea e livre foi tam-bém a renúncia do Dr. Aurélio Viana, a quem já encontraram resolvido a não reassumir o Governo, conforme declaração que já havia escrito, aguardando apenas em deferência ao Governo Federal, a chegada do seu emissário para tor-nar efetiva e pública a renúncia.

Ainda mais. A prova de que não é verdadeira a alegada coação está no telegrama expedido a 28 de janeiro pelo Deputado Alfredo Rui Barbosa ao pri-meiro signatário da petição de fl. 2, telegrama lido há dias no Tribunal e assim concebido: “Aurélio ontem instâncias amigos, apesar meu protesto enérgico renunciou definitivamente.”

Eis aí, são as próprias testemunhas abonadas pelos impetrantes que asse-guram — em carta escrita em momento, lugar e condições que excluem toda a idéia de constrangimento — que as tais violências e ameaças de morte são pura fantasia, e é a palavra insuspeitíssima do Deputado Alfredo Rui Barbosa que, em telegrama íntimo, confirma esse testemunho.

Aliás, o fato da renúncia está plenamente corroborado com o procedi-mento ulterior do Dr. Aurélio Viana, já se esquivando a entrar em relações com o General Vespasiano, a ponto de não poder ser encontrado nem na sua residência, nem em casa dos amigos, nem em outros pontos fora da cidade, quando o natural é que estivesse aguardando a chegada daquele General e com ele procurasse logo entender-se sobre a sua volta ao Governo do Estado, se re-almente era essa a sua resolução, já recusando-se de fato, quando afinal se avis-tou com o General Vespasiano, a reassumir o Governo, sob pretexto de caber a

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substituição ao Cônego Galrão, que desde o princípio se dizia enfermo e de cuja precedência até então o Dr. Aurélio Viana não cogitara.

Mas ainda não é tudo. Outros documentos figuram nos autos atestando que o Dr. Aurélio Viana muito deliberadamente não quis servir-se das garantias postas à sua disposição pelo Governo Federal.

Com efeito, como o Cônego Galrão não aceitasse o convite do General Vespasiano para vir assumir o Governo, o General dirigiu-se de novo ao Dr. Aurélio Viana, e este escreveu então, em presença do General — e na do Dr. Pacífico Pereira, Conde Júnior e Capitão Rodrigues Barbosa, que assina-ram como testemunhas — a declaração de fl. 7, recusando pela segunda vez o Governo da Bahia.

Acodem os impetrantes que esta declaração foi também o resultado de uma coação, como se deprende de certas expressões nela empregadas, e coagi-dos foram igualmente os três cidadãos que a testemunharam.

A afirmação é tudo o que pode haver de mais inverossímil, tratando-se de um ato realizado num período de ordem e tranqüilidade, em presença de um general de elevado conceito e de cidadãos respeitáveis que até hoje nenhum protesto levantaram contra a violência de que, no dizer dos impetrantes, foram vítimas. Mas a prova de que tal coação é ainda uma fantasia, são os próprios impetrantes que inadvertidamente a fornecem no telegrama que a 9 de fevereiro dirigiu o Dr. Aurélio Viana ao Senador Rui Barbosa, telegrama lido também ao Tribunal, embora para outros efeitos, e em que o seu signatário assim se ex-prime: “Ontem, em longa conferência com o General Vespasiano, declarei que, caso Galrão recusasse o Governo, eu o não assumiria.”

É, pois, o Dr. Aurélio Viana mesmo quem, em telegrama particular, con-fessa ao seu advogado, chefe e amigo, a veracidade e espontaneidade da sua declaração.

Resulta assim do exposto que o Dr. Aurélio Viana não se utilizou das garan-tias oferecidas pelo Governo da República porque não quis, e, portanto, a outros motivos e intuitos que não os de ordem pública e legal, únicos que o Tribunal pode ter em consideração, se deve atribuir o seu singular pedido de habeas corpus.

Em relação a esse paciente, a ordem deveria mesmo ser negada em ab-soluto, se não fosse a circunstância de haver ele conservado a sua qualidade de Presidente da Câmara dos Deputados, de onde lhe vem o direito de substituição, de modo que as suas renúncias não podem ser tidas senão como meras manifes-tações de não querer no momento assumir o Governo, com ressalva, porém, de poder fazê-lo em outra ocasião.

Passo agora ao outro paciente, o Cônego Galrão.

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Atendendo à exigência do Dr. Aurélio Viana — de convidar em primeiro lugar para assumir o Governo o Cônego Galrão —, o General Vespasiano te-legrafou a esse senhor pedindo-lhe uma conferência na Capital. O Cônego escusou-se; está doente e, além disso, tinha no mesmo dia recebido um tele-grama do Arcebispo aconselhando-o a não ir a S. Salvador. À vista disso, o General mandou-lhe os seus ajudantes com um ofício de convite para assumir o Governo (documento de fl. 3) e um telegrama do Presidente da República pondo à sua disposição, para esse efeito, todas as garantias necessárias.

Vale a pena transcrever esse telegrama. Ei-lo: “Mantenho as ordens an-teriores da reposição no Governo do Estado, do Dr. Aurélio Viana, ou de se-rem dadas todas as garantias ao Cônego Galrão, Presidente do Senado, a fim de assumir o Governo. Prestando ontem informações a propósito do habeas corpus a favor do Dr. Aurélio Viana e Cônego Galrão, afirmei que daria todos os elementos de força, a fim de que um ou outro tomasse conta do Governo do Estado, restabelecendo-se assim a ordem constitucional. Diante dessas positivas e terminantes declarações o Tribunal, confiante na ação do Governo, julgou pre-judicado o habeas corpus. Cumpre, pois, que presteis a um ou outro daqueles substitutos do Governador todo eficaz auxílio, a fim de que assuma o Governo aquele deles que a isso se prontificar, e, de posse do Governo, deveis prestar-lhe todo o apoio para que nele se mantenha. Confio na vossa prudência, critério e energia, e estou certo que agirei de forma a ser cumprida a palavra do Governo da República.”

Entregando esse documentos ao Cônego Galrão, os ajudantes do General Vespasiano acrescentaram: que tinham ordem de o acompanhar a S. Salvador, para o que dispunha de um trem especial, e haviam de empregar na defesa de sua pessoa toda a energia de que fossem capazes; mas, se S. Rev.ma não se sen-tia suficientemente garantido por eles sós, quisesse então marcar um dia para a viagem e o General Vespasiano mandaria força para garanti-lo do modo mais eficaz e tranqüilizador (documento de fl. 20).

O Cônego Galrão respondeu, após cinco horas de insistência por parte dos ajudantes do General Vespasiano, que só podia e devia assumir o Governo com garantias absolutas e completas (como se não fossem completas e absolutas as que lhe eram oferecidas), e resumiu em três condições o que como tal consi-derava (documento de fl. 6).

Ora, depois do que se passara e à vista dos termos do telegrama do Presidente da República e das declarações dos enviados do General Vespasiano, é evidente que essa resposta não traduz os verdadeiros sentimentos e intenções do Cônego Galrão.

Era talvez uma evasiva, com a qual S. Rev.ma tinha por fim prolongar a agitação partidária que se estava fazendo em torno do Governo da República, ou

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disfarçar a sua descabida e excessiva docilidade aos conselhos do arcebispo, ou dissimular a convicção em que estava, e confessara aos ajudantes do General Vespasiano (documento de fl. 21), de que “a opinião pública do Estado se voltara contra a sua pessoa”.

O que não se concebe é que S. Rev.ma, tendo sincero empenho em in-vestir-se no Governo da Bahia, respondesse assim ao emissário do Presidente da República, um general conhecido pela sua calma energia, pela sua rigorosa compreensão da disciplina, extreme de qualquer preferência nas lutas da polí-tica local e que vinha, em nome do mesmo Presidente e para cumprir a palavra do Governo solenemente empenhada, pôr à disposição do Cônego Galrão todas as garantias, todos os elementos de força, todo o apoio, todo o auxílio eficaz de que necessitasse para se restabelecer e manter-se na administração do seu Estado.

Ou o Cônego Galrão tinha confiança no General Vespasiano ou não ti-nha. Se tinha, o natural é que aceitasse as garantias que lhe eram oferecidas e mais tarde requisitasse as medidas especiais de que houvesse mister. Se não tinha, inconcebível, então, é que lhe viesse pedir tais e tais providências, como fez no seu ofício de resposta.

Se não era uma evasiva, que é então que significava a resposta do Cônego Galrão? Significaria um estado de dúvida e desconfiança, que o levava a exigir do Presidente da República a promessa escrita de garantias, ditadas e especifi-cadas por S. Rev.ma, exigência sobremodo humilhante, desconfiança altamente ofensiva da dignidade do Chefe da Nação, hipotecadas em documento oficial à reposição do Governo da Bahia.

Mas o Tribunal nada tem que ver com as desconfianças pessoais do Cô-nego Galrão; para o Tribunal, o Poder Executivo é uma abstração constitucional e lhe inspira, e lhe deve inspirar sempre, a mais perfeita confiança, qualquer que seja a pessoa que o represente e a opinião particular que dessa pessoa tenha este ou aquele cidadão.

Se não era evasiva nem desconfiança, seria acaso a resposta do Cônego Galrão o resultado de um modo particular de compreender a sua situação jurí-dica em face do Presidente da República, compreensão que o induzia a supor que, no caso constitucional que se lhe antolhava, o Poder Executivo está adstrito e subordinado às determinações do Governador coacto?

Mas o Presidente da República intervinha na Bahia por força do art. 6º, 3, da Constituição, isto é, no uso de uma atribuição que lhe é própria, se não pri-vativa. Ora, na escolha e emprego dos meios dessa intervenção, o Presidente é o único juiz, por isso mesmo que é o único responsável: não pode, conseguin-temente, estar sujeito a cláusulas e condições impostas por uma autoridade es-tranha e subalterna.

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Não nos percamos, porém, em conjecturas. Qualquer que tenha sido o móvel que atuou no ânimo do Cônego Galrão ou a razão verdadeira da sua res-posta ao General Vespasiano, uma cousa ressalta dos autos como um fato pal-pitante de clareza e de verdade, manifesto e insofismável, e é que o Presidente da República pôs à disposição do primeiro substituto do Governador da Bahia todos os elementos de força de que carecesse para assumir o Governo e nele manter-se; que o dito substituto, por motivos, talvez muito respeitáveis, mas de ordem pessoal, deixou de aceitar essas garantias; que, não obstante, o Presidente, segundo a sua última mensagem ao Tribunal, continua pronto a re-por o Governo legal do Estado e garantir-lhe a permanência, logo que o Cônego Galrão se decida a servir-se das providências oferecidas pelo Governo Federal.

Duvido que haja um espírito de jurista que, conhecendo os fatos como acabo de extraí-los fielmente dos autos, e não como os tem ajeitado a manha das conveniências políticas, seja capaz de encontrar aí as condições preestabeleci-das na lei para a concessão de uma ordem de habeas corpus.

Pode parecer o contrário à paixão partidária, sob cujo pernicioso influxo as mais elementares noções se transformam ou se obliteram; para quem os cri-minosos se transmudam em heróis e os feitos judiciais se devem julgar ao sa-bor das desconfianças, dos ódios ou dos apetites de partido, e cuja intervenção, sempre indelicada e irritante nas causas sub judice, nesta chegou ao desvario de pretender forçar a consciência jurídica do Tribunal com as mais pungentes cominações na imprensa e tumultos e assuadas no próprio recinto das sessões.

Pode ainda, digo-o com todo o respeito, uma coerência mal-entendida ou uma compreensão, sincera embora, da espécie jurídica, mas defeituosa, por incompleto conhecimento dos autos, pensar que o Supremo Tribunal devia con-ceder a ordem impetrada.

Mas tenho para mim que, esclarecidos devidamente os fatos, como eles constam do processo e acabo de fazê-lo, uma tal decisão não justificaria jamais a interpretação desapaixonada da lei nem a serena consciência do juiz.

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ÍNDICE NUMÉRICO

Recurso Eleitoral 124 Rel. Min. Pindahiba de Mattos ........................... 131CJ 186 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 131RC 238 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 134 RC 250 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 135CJ 252 Rel.: Min. André Cavalcanti ............................... 138ACr 287 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 139ACr 309 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 140ACr 352 Rel.: Min. Canuto Saraiva ................................... 141ACr 357 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 142RE 425 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 143RE 426 Rel. Min. André Cavalcanti ................................ 145RE 431 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 152RE 478 Rel. p/ o ac.: Min. Manoel Murtinho ................ 154RE 491 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 165RE 502 Rel.: Min. Guimarães Natal ................................ 170RE 518 Rel.: Min. André Cavalcanti ............................... 173RE 592 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 183RE 657 Rel.: Min. Manoel Espinola ................................ 184AgP 695 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 186AgP 750 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 187AgP 768 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 189Ag 830 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 191Ag 852 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 193RvC 912 Rel. Min. João Pedro ............................................ 195AgP 962 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 196ACi 975 Rel.: Min. Manoel Murtinho ............................... 199Ag 980 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 199Ag 1.000 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 201AI 1.011 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 203RvC 1.051 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 204

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Ag 1.118 Rel. p/ o ac.: Min. Epitacio Pessôa ..................... 210ACi 1.119 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 212ACi 1.131 Rel.: Min. Alberto Torres .................................... 216Ag 1.137 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 218ACi 1.157 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 220ACi 1.160 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 220ACi 1.197 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 230ACi 1.221 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 234ACi 1.284 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 242ACi 1.297 Rel.: Min. Manoel Murtinho ............................... 244Ag 1.328 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 248ACi 1.346 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 249ACi 1.346-Embargos Rel.: Min. Ribeiro de Almeida ........................... 253ACi 1.349 Rel. p/ o ac.: Min. Epitacio Pessôa ..................... 255Ag 1.367 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 258ACi 1.377 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 259ACi 1.394 Rel.: Min. Manoel Murtinho ............................... 260ACi 1.410 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 265ACi 1.421 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 270ACi 1.422 Rel.: Min. Guimarães Natal ................................ 271ACi 1.428 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 275RvC 1.431 Rel.: Min. Manoel Espinola ................................ 277ACi 1.444 Rel.: Min. Amaro Cavalcanti .............................. 280AgP 1.472 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 280ACi 1.482 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 282Ag 1.485 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 286ACi 1.564 Rel.: Min. André Cavalcanti ............................... 288ACi 1.654 Rel.: Min. André Cavalcanti ............................... 289HC 2.327 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 290HC 2.654 Rel. Min. Manoel Murtinho ................................ 290HC 3.004 Rel. p/ o ac.: Min. Epitacio Pessôa ..................... 296

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Ministro Epitacio Pessôa

HC 3.020 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 298HC 3.137 Rel.: Min. Epitacio Pessôa ................................... 300HC 3.148 Rel.: Min. André Cavalcanti ............................... 305