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MINISTROLEITÃO DE ABREUDISCURSOS PROFERIDOS NO STF,
NA SESSÃO DE 30 DE SETEMBRO DE 1981
POR MOTIVO DE SUA APOSENTADORIA
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
BRASÍLIA – 1981
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
JOÃO LEITÃO DE ABREU
Discursos proferidos no STF, a 30 de setembro de 1981,
por motivo de sua aposentadoria
BRASÍLIA 1981
Carta do Sc::nhor Ministro JOÃO LEITÃO DE ABREU,
lida na Sessão de 12 de agosto de 1981
Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente Xavier de Albuquerque.
Durante sete anos, tive a honra de servir, no Supremo Tribunal Federal, com ferrenha dedicação, à causa da Justiça. Mais serviria se não fora convocado para bater-me sob outra forma e outro processo, mas com igual obstinação e fervor, pela mesma causa. Não largo, pois, a bandeira, que nos congrega, nem o meu coração pulsará, no exercício desse sacerdócio, de modo menos vivo.
Poderia sair, pois, da Casa da Justiça para a Casa do Governo, de alma leve, se não tivesse criado aqui vínculos indesmancháveis. São vínculos, em grande parte, de ordem pessoal e afetiva. Mas serão, de outro lado, certamente, vínculos igualmente fortes com a grande instituição que Vossa Excelência, Senhor Ministro Xavier de Albuquerque, preside com singular lustre e elegância.
Não declino, até porque me parece supérfluo fazê-lo, as virtudes que achei cultuadas, com intransigência, nesta Corte de Justiça. Direi somente que o orgulho - que não será tão grande pecado porque já foi pecado angélico - com que assumi uma das cátedras deste Tribunal só é excedido pelo orgulho que me fica de poder dar testemunho da irredutível austeridade que aqui reina, bem como do modo impessoal e altivo com que os Juízes do Supremo Tribunal se mostram fiéis aos ditados da sua consciência jurídica na maneira de interpretar o Direito e servir aos seus fins.
Evoco, neste momento, a figura dos insignes magistrados que aqui encontrei e que, durante o exercício do meu cargo, se foram partindo, aos poucos, compulsoriamente, deixando, entre nós, vácuo impreenchível .
Cumpre-me prestar homenagem, ainda, ao modelar corpo de funcionários que, neste órgão j udicante, colaboram, com inexcedível dedicação, cada qual na sua esfera de atribuições, para que as prestações de j ustiça se efetuem sem maiores entraves. Destaco, especialmente, como é natural, o quanto sou
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grato aos que integram, ou integraram, o meu Gabinete, pela dedicação com que me prestaram, nos seus respectivos lugares, a sua inestimável cooperação. É privilégio, que me desvanece, tê-los a todos como amigos, desde o agente de segurança e motorista José Guedes até o meu mais antigo assessor Doutor Nilson Naves, em quem se casam o jurista experimentado e o cavalheiro impecável .
Palavras do Senhor Ministro XA VIER DE ALBUQUERQUE, Presidente
A primeira parte da sessão plenária de hoje é dedicada à homenagem que o Tribunal presta ao Exmo. Sr. Ministro Leitão de Abreu, por motivo de sua recente aposentadoria.
Para falar em nome do Tribunal, concedo a palavra ao eminente Ministro Rafael Mayer.
Discurso do Senhor Ministro RAFAEL MA YER
Senhor Presidente
Senhores Ministros
Cumpre-se, mais uma vez, venerável praxe desta Corte. O momento da investidura de seus juízes se envolve de dignificante e austero silêncio, num gesto preciso e breve, como que uma expressão litúrgica que contivesse na forma o conteúdo da significação, a sugerir, sem palavras, a meditação sobre a grave responsabilidade de quem, naquela hora, tem assento.
A palavra somente se tem por oportuna, numa devida e justa homenagem, quando os ministros se despem de suas togas e já não têm voz no recinto da Corte. Ouvem o que se lhes diz, mas para guardá-lo, como um registro de seus passos, como um certificado da memória da Casa, liberado, para tanto, do seu poder de julgar, para se dar tão-somente ao seu dever de depor.
Honroso é o encargo de fazê-lo, em nome do Tribunal. Particularmente honroso é fazê-lo, neste momento, ao Ministro que se despede, porque não será somente pelo título, mas pelo título dos títulos, que é a altura de um desempenho funcional ao nível das exigências desse dignificante, e quase terrificante, encargo.
A compreensão da figura de um magistrado que exornou esta Corte pode remontar-se, ainda em sumário, às raízes de sua formação intelectual e jurídica e aos prismas de sua experiência humana, como sementes e suportes que vieram ao desdobramento e aplicação em sua judicatura, pois um julgamento, uma sentença, um voto é um átimo de convergência de um universo de valores, de concepções e de vida.
Se disse o poeta maior que no princípio era a ação, verdade e beleza mais antigas, intemporais, ensinam que no princípio era o verbo, o pensamento, que é o próprio degrau de consistência que categoriza e distingue o ser humano.
Tanto é verdade o velho dito escolástico de que é preciso primeiro filosofar e depois viver, quanto o corolário de que os homens vivem, consciente ou inconscientemente, uma metafísica.
A vida humana, nas suas manifestações qualificadas, é sempre uma atitude primordialmente intelectual de uma construção de sentido, e nem se poderia explicar a conduta sem a precedência lógica dessa atitude fundamentaI.
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A apreensão dessa verdade humana se faz mais impositiva em nosso homenageado, porque essas são as linhas com que se estruturou, em obséquio à razão como instrumento apto para alcançar a verdade, e a verdade do ser real, como meta alcançável pelo espírito.
Homem de pensamento, de peregrina formação humanística, de amplo raio de interesse intelectual, o Ministro Leitão de Abreu, colhe de uma concepção filosófica fundamental diante do mundo, as linhas de coerência e unidade que interligam os reflexos e difrações conceituais presentes nos momentos e colocações diversas do seu equipamento intelectual.
Sem que possa testemunhar por uma convivência de que o duro labor nos priva, a todos, é possível, porém, pelas manifestações diversas do pensamento, surpreender os traços, em sutis indícios, das grandes linhas do pensamento e das diretrizes de uma formação cultural. Percebese aí subjacente o primordial de uma filosofia de tradição, desde as nascentes aristotélicas da abordagem do ser e da essência, a qual se acresceu, aberta e organicamente, com a meditada absorção de novos conceitos e prismas aduzidos pela história do pensamento ocidental. Aliás, critério metodológico a que se confessa obediente o Ministro Leitão de Abreu, em mais de uma passagem dos seus escritos, é o de conciliar o velho e o novo. Cuido que não seria infiel, pois seria conseqüência desse balizamento, atribuir ao seu espírito a íntima convicção de que o trato filosófico é o mais nobre saber e a mais cativante visão das coisas, pelas suas causas profundas.
Ele mesmo se reporta, explícito, à filosofia e ao direito, como a dois temas «em condições de proporcionar emprego a todas as energias e faculdades do espírito humano», dizendo, em sua obra fundamental, que «se a investigação metafísica desafia o espírito, enquanto este se mantenha alerta, o direito o espicaça, igualmente, em face de sua coextensão a todos os interesses da humanidade» (<<Validade da Ordem Jurídica», pág. 39).
Esse é o roteiro firme, que tem desdobramento e implicações, facetas diferentes de realização, mas sempre a se reencontrar, pela confirmação.
Professor de Direito, a sólida bagagem cultural e a sensibilidade para os temas mais altos se refletem na escolha de sua cátedra, - «Introdução à Ciência do Direito» - que exerceu, como titular, tanto na Faculdade de Direito da Universidade Federal, quanto na Pontifícia Universidade Católica, ambas do Rio Grande do Sul.
Por mister e por gosto, já que o nível da análise confere com os seus instrumentos de saber filosófico, a elaboração de sua obra sobre «A Validade da Ordem Jurídica» traduz cabal expressão do seu pensamento jurídico nuclear, ao mesmo tempo que insinua, ao longo da argumentação crítica, um indisfarçável comportamento de acessibilidade a doutrinas díspares, mediante uma síntese em que o destaque de cada apreensão não esmaeça a verdade das demais.
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Tanto se põe nessa linha o seu impulso intelectual básico que, ao discriminar os critérios que se alternam na teorização do fundamento da validade do Direito, - o lógico-formal, o sociológico e o filosófico, -disse, nesse livro, serem legítimas, sem dúvida, essas três formas de considerar o fenômeno jurídico, mas indagando, com ênfase, que o que «importa saber é se o jurista, enquanto se ocupa, cientificamente, com o direito, pode, sem ultrapassar os limites de sua atividade científica, examinar o direito, j untamente, sob esses três aspectos» (Ob. cit.124).
A resposta vem logo, fruto de sua compreensão abrangente, do fenômeno jurídico, seqüência de sua compreensão ampla do real. Enfeitiçado pela teoria Kelseniana do direito puro, até pelas afinidades de sua própria formação lógica e de seu discurso silogístico, embora a considere demoradamente em todo o curso do seu trabalho, não se rende ao unilateralismo de sua formulação. É que embora reconheça que a atividade do jurista não pode prescindir da consideração lógico-formal das normas em vigor, o ilustre Ministro tem por certo que «não estão estas normas desligadas da realidade social, achando-se, ao revés, em conexão incindível com esta» (Ob. cit./28).
É a tese que desenvolve, assegurando que «nessa conformidade entre os comportamentos sociais e as normas que presidem o seu desenrolar configura-se, aliás, momento capital da efetividade, que se implanta na ordem social e pela qual esta se converte em ordem j urídica» , pois é nesta correlação entre fato e norma, conjugados para formar a unidade, onde se corporifica a existência da ordem jurídica.
Sob esse enfoque, reflexo de um mais amplo quadro conceitual, se desenvolve essa obra, que é o momento capital do teórico do direito, e onde difícil destacar, além da inegável valia científica da doutrina, se a segurança da exposição e a lógica do argumento, se a erudita familiaridade com filosófos e juristas, desde os clássicos aos de nossos dias.
O professor e teórico do Direito tem acentuações, em um e outro passo de seu discurso, sobre a hermenêutica e interpretação das leis, atividade constante de quem tem como matéria-prima do trabalho um produto lógico do pensamento, e a cujas regras e diretrizes cotidianamente voltará como Juiz, com o freqüente destaque dos seus preceitos, trazendo à luz os instrumentos de aferição para explicar melhor a segurança dos resultados obtidos.
O mesmo e geral propósito de compreensão abrangente dos fatores complexos do dado jurídico, constante de um .pensamento que não quer desfigurar o real, depreciar o axiológico e infringir a necessidade lógica, se reflete nesse tema pertinente, prestante e presente nos argumentos do futuro magistrado, objeto de consideração nos livros e nos cuidados do professor.
Ao inspirar e dirigir, na Faculdade de Direito da Universidade de Porto Alegre, a partir de 1962, o «Instituto de Interpretação Emílio
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Bettí», reafirmou o nível e o amplo endereço dessas cogitações, até pela significativa escolha do patrono da instituição, este que precedeu a sua «Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos» de uma celebrada «Teoria Geral da Interpretação», interessando a todas as ciências do espírito, da lingüística à interpretação musical, espectro que vai bem a gosto da formação humanística do homenageado.
Reiterando e aplicando as lições, e como que por premomçao em 1965, no artigo sobre «A Função Política do Judiciário», destacou a aplicação dos princípios da hermenêutica, emergentes de sua doutrina, à atividade j udicante, repudiando a concepção de que o juiz é o aplicador mecânico e frio do texto por uma operação mental, pois lhe confere, pelos j uízos de feição axiológica, e pela auscultação da «dramaticidade inerente ao caso concreto», certa margem de liberdade para, embora guardando as palavras, dar ao j ulgamento a significação de formar «a real, verdadeira e viva ordem j urídica de que aquele diploma abstrato não é mais do que plano e projeto».
Pressente aí, dimensionando-a em grau eminente, a metodologia do controle da constitucionalidade dos atos do Congresso, observando que é função que se não acusa, via de regra, nos períodos de estabilidade, senão, precipuamente, nos períodos de crise, durante os quais, sob a pressão dos acontecimentos, se infiltram, princípios novos no ordenamento jurídico, criando-se «para o órgão j udiciário, a melindrosa tarefa de conciliar o passado com o presente, sem infidelidade a seu nobre mister». Nem é preciso dizer, para ter-se o seu entendimento sobre a magnitude dessa missão do Poder Judiciário, ser a crise, que denuncia, não uma conjuntura dos dias, mas o sintoma de uma época em que vêm sendo postos em causa os valores fundamentais do viver em face das inusitadas realidades históricas de um mundo em transformacão.
Todavia, a cabal explicação do seu pensamento e de sua formação jurídica, não se terá, sem a consideração de outra vertente da experiência humana, que lhe ofereceu à apreensão intelectual a força dos fatos de uma realidade diuturna e dinâmica, palpitante na atividade j urídica e social do Estado, na ampla área de sua função administrativa, compondo, ao lado daqueloutra, um coeficiente indeclinável à compreensão do estilo do futuro magistrado.
Em sucessivos desempenhos de encargos administrativos, o Ministro Leitão de Abreu teve diante de si, antes de tudo, a problemática jurídica que se põe à Administração Pública no seu cotidiano mister de fazer atuar e executar a lei, segundo o inconcusso princípio de integral subordinação à sua observância.
É a dedicação inaugural de sua vida pública, logo que concluído o curso de ciências jurídicas e sociais, na Faculdade de Direito de Porto Alegre, da Universidade do Rio Grande do Sul. Em 1947, foi nomeado
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Conselheiro do Conselho do Serviço Público do Estado, órgão incumbido, por disposição constitucional, de examinar a legalidade dos atos referentes ao serviço civil, produzindo, então, inúmeros pareceres sobre matéria administrativa e constitucional, e dando contribuição principal ao plano de classificação de cargos do Estado, reforma pioneira no País. Da mesma época, é a publicação de trabalhos jurídicos, representativos de vigilante estudo e elaboração, e inspirados no compromisso de uma dedicação plena à missão do j urista na área da Administração Pública, delineando os temas jurídicos que se propõem a cada dia. «Da Prescrição Administrativa» consubstancia uma indagação, uma tentativa bem sucedida de abordagem de todos os aspectos do instituto, segundo uma concepção específica. E o tratamento proficiente da delicada matéria, no condicionamento do ato administrativo, trouxe-lhe o mérito de prêmio pela Faculdade de Direito ao trabalho «Da Discrição Administrativa». A mesma vinculação à problemática da atividade administrativa, de ordem impositiva, mas com amplitude metodológica, está presente na «Função Social do Imposto» onde reúne, com pertinência, as razões extra-fiscais do regime tributário, nos seus reflexos sobre a organização social.
Dentre as missões que o Estado, então,� lhe confiou, atento à valia de sua contribuição j urídica, conta-se a designação como membro de Comissão para propor a reforma da Constituição Estadual, em vista de adaptá-la à normas da Carta Política de 1967, nos termos do seu art. 188, problema jurídico que, então, se tornou objeto de lucubrações de juristas de escol. E como réplica dessa tarefa, lhe foi igualmente confiada a postulação, como advogado, perante a Corte Suprema, de declaração de inconstitucionalidade de vários dispositivos daquele diploma estadual, argüição aqui j ulgada procedente na sua maior parte.
Essa experiência, realizada no seu Estado natal, já de si mesma significativa, veio a receber nova dimensão, com a transposição, para o plano federal, de sua atuação de homem público, primeiro, como Chefe de Gabinete do Ministério da Justiça, e, finalmente, com uma ótica da globalidade da atuação da Administração Pública, como Ministro de Estado para os Assuntos do Gabinete Civil.
A vivência dos problemas no cume do Poder Executivo Federal enfatiza as suas meditações sobre a estrutura básica dos Poderes, fazendo com que anotasse, mais de uma vez, no resultado de seus estudos, a nova e mais ampla fisionomia que vem adquirindo o Poder Executivo, quer na França, por força de expressão constitucional, quer nos Estados Unidos, pela flexibilidade de sua evolução j urídica, face aos encargos acrescidos dessa área de atuação, pelos objetivos sociais e prestacionais aditados aos fins clássicos do Estado de Direito.
A ótica propiciada por esse ponto de observação, sob o crivo dos seus estudos sobre o direito constitucional, onde está a sua preferência no campo jurídico positivo, fez com que viesse, com freqüência, ao cerne
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do problema institucional, abordando seguidamente, nos seus escritos, o tema sobre a crise da Constituição, como fez em 1969, ao termo de análise das transformações operadas nos regimes constitucionais de mais venerável tradição na história.
A perplexidade, nesta matéria, dizia o ilustre Ministro Leitão de Abreu, não resulta apenas dos escombros a que se reduzia a antiga ordem constitucional, senão em que ainqa não se cristalizaram «princípios novos que se substituam aos velhos postulados constitucionais».
Torna, mais tarde, a esse diagnóstico, para acentuar a significação que assumiu, nas constituições contemporâneas a nova face social do Estado, deduzida em programas ou em garantias com que não sonhara o liberalismo clássico, novo ordenamento em que os «direitos sociais adquirem, assim, status constitucional, sob o influxo da idéia de que a igualdade principalmente a econômica, é condição de liberdade civil e política».
Nessa amplitude e densidade emprestadas às funções básicas do ordenamento estatal, bem pôde o ilustre jurista constatar o quanto «o texto constitucional ganha, desse modo, em extensão e complexidade, crescendo as dificuldades para lhe dar cumprimento, porquanto o poder público é arrancado de sua relativa quietude para assumir, como responsável pela promoção do bem-estar geral, obrigações avassaladoras». E como conseqüência inarredável dessa realidade, aponta o correspondente e simultâneo aumento dos encargos do judiciário, «pois dilatado o campo de sua vigilância como guarda das constituições».
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Assim se compõe, diante de nossa visão, o perfil do jurista, forjado pelo trato seguro das sutis abstrações, atento às imposições do real, e voltado, como termo e mira de suas cogitações, - pois o direito não é simples exercício lógico senão palpitante realidade humana, - para a análise e conceituação das instituições básicas do ordenamento jurídico e social, onde se insere a pessoa humana, como razão de ser e fim último de toda organização política.
Não estariam completas as linhas desse esboço sem assinalar a conotação de que há um valor que envolve e polarlza as composições conceituais. Latente nessas colocações jurídicas, porque ingrediente indissociável da concepção do direito, a que adere, denotado desde as suas primeiras investigações e constante no seu pensamento filosófico, o princípio ético prende, envolve e vivifica os comportamentos humanos que fazem a tessitura do fenômeno jurídico. É como se ao jurista se impusesse como diretriz a palavra de um de seus mestres prediletos, Rudolf Stammler, ao dizer «A cultura é um desenvolvimento no sentido do justo».
Palavras de 1973, do Ministro Leitão de' Abreu, revestidas de fino lavor, repisam conceitos de eterna ressonância, ao expressar:
«Na idéia da suma importância que, na ordem espiritual, se assina ao homem, no postulado da sua eminente dignidade,
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no princípio da sua vinculação e comandos éticos de caráter superior, imperativos inextirpáveis do seu ser, Il,esses velhos dogmas, cuja força magnética se conserva íntegra, está, ainda, porém, o fundamento em que hão de assentar os esforços para restaurar a paz no inquieto coração do homem e suscitar, na ordem social, a harmonia de que se há mister».
Assegura, então, que mesmo ambígua ou confusa a noção da justiça, não é por defeito de limpidez conceitual que a idéia do justo deixa de implantar-se na sociedade, de forma satisfatória, «a fim de proporcionar a felicidade, hoje não unicamente sonhada, mas exigida com veemência crescente». É sob outro prisma, essencialmente ético e portanto humano que põe a razão de suas falhas, quando diz:
«A imperfeição, no que respeita à justiça, não será sempre, assim, de sua idéia, porém do sistema positivo que se constrói à sombra dessa noção peregrina, ou da forma pela qual esse complexo normativo pode vir a aplicar-se».
Desse modo se completa, com a luminosidade desse valor fundamental, inerente não só ao Direito mas a toda'a � tessitura humana e social, a inteira arquitetura de uma concepção jurídica.
Empossou-se Leitão de Abreu na cátedra do Supremo Tribunal, em junho de 1974. A elevada formação intelectual, o amplo e atualizado cultivo das humanidades, a elaborada doutrina jurídica sob o pálio do sentimento do justo e do envolvimento ético, a integridade, a dedicação e o êxito do desempenho do homem público, não aparecem apenas como respaldo e justiça de uma escolha, reconhecimento de aptidão incontestável para a insigne investidura. Igualmente asseguravam o prognóstico da atuação do magistrado que se iniciava, mas prognóstico no sentido em que o diz Karl Jaspers, como «previsão especulante do homem que quer fazer algo», possibilidade aberta ao futuro, a que um homem se prende como um motivo de ação, uma potencialidade que se orienta por um desígnio.
Momentos da atividade judicante devem ser ressaltados, exponenciais de sua arte de julgar, caracterizados sempre pelo equilíbrio e segurança, e pelo suporte cultural, mas também registráveis pela marcante e definida posição a respeito de temas de singular relevo no direito aplicado. Dedicado e exato, no exame de todos os casos a seu encargo, acrescem sempre os seus cuidados de juiz, quando os temas tocavam os magnos postulados de ordem constitucional, maiores dentre os magnos temas desta Casa.
São decerto destacáveis, como expressões de alta doutrina, alguns dos seus votos, em memoráveis julgamentos da Corte, no período em que se cumpriu a sua judicatura, temas que são representativos dessa linha de preocupações e de teses que emergem harmonicamente do sedimento de sua ciência jurídica.
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Contribuição erudita, como a qualificou o eminente Ministro Thompson Flores, está, por exemplo, no voto do Ministro Leitão de Abreu, proferido nos debates em torno do conceito de ato do governo local, para o pressuposto do recurso extraordinário pela letra c, a saber se compreensivo tão-somente dos atos normativos e não dos individuais. Em análise comparativa com símile norte-americano, concluiu pela abrangência maior do conceito brasileiro, mas afastando, de modo flexível a obrigatoriedade de conhecimento que é inerente a essa via recursal, «quando se tratar de ato individual cuja prática não ponha em risco, de modo significativo, a preeminência do Direito Federal». (RE 80.896).
Ao declarar-se a inconstitucionalidade de lei regulamentadora da profissão de corretores de imóveis, o seu voto enfocou, de modo singular, o critério de razoabilidade a utilizar na hermenêutica do direito constitucional, para aferir se a lei ordinária «se manteve dentro em limites próprios, convenientes ou apropriados ao fim que teve em vista a Carta Política . . . ». Sob pena de constituir letra morta o direito individual ao livre exercício da profissão, os requisitos que o legislador lhe ponha devem ser compatíveis com o critério de razoabilidade, contrariado, no caso, de modo invalidante (Rp n? 930) com o que dava destaque a um critério prestante.
Apenas chegado a esta Corte, o ilustre Ministro , com a clarividência de abordagem dos temas constitucionais e de direito administrativo, contribuiu com o seu voto, de maneira decisiva, para o deslinde de questão, que vinha debatida, de há muito, a que diz respeito a imunidade tributária do IHC no tocante às operações de revenda do café adquirido aos produtores. Ressalta, desse voto, de larga erudição, o rigor lógico em estabelecer a fina e precisa discriminação entre finalidade essencial e não essencial dos entes menores, índice da imunidade recíproca que lhes é extensiva pelo texto constitucional (MS 19.097).
Em se tornando relator, na Representação n? 921, o Ministro Leitão de Abreu, enfatiza um dos temas de sua predileção, o da hermenêutica constitucional, para tirar a conseqüência do decisum. É que, invocando precedentes do Corpus Juris Secumdum, entendeu que, embora não vinculantes da Corte a interpretação administrativa ou judiciária precedente, cumpre, na determinação do sentido de uma norma ambígua, recorrer a subsídio de caráter extrínseco consistente na averiguação da exegese de tal norma dada ao tempo de sua adoção, e daí por diante, por aqueles cujo dever tem sido de interpretá-Ia, executá-Ia e aplicá-Ia na prática, cabendo emprestar-lhe grande peso (Rp 921).
Deteve-se, demoradamente, nos conceitos constitucionais do direito tributário, numa pertinente e completa distinção entre taxa e contribuições especiais, postas em face dos elementos conotativos do imposto. Nessa análise dos dados configurantes da taxa florestal do Estado de Minas Gerais, permitiu que os identificasse com o fato gerador do ICM, o
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que fez o Tribunal, seguindo o seu entendimento, declarar-lhe a inconstitucionalidade (RE 78.6(0).
A linha dominante de suas preocupações com o tema constitucional refletil1-se no seu trato do processo penal, no entender que a garantia de ampla defesa dos acusados posta na Constituição se sobrepunha a considerações da lei ordinária, devendo ir às últimas implicações. Cuidou, sob esse ângulo, que a falta de alegações finais, ainda por culpa de defensor constituído, viola o princípio constitucional (RHC n? 56.373). Nesse mesmo sentido, posto diante da Súmula 352, teve-a como inaplicável ao caso em que existia defensor constituído pelo réu menor, mas se lhe não dera curador (HC n? 56.550). Exigiu, mais de uma vez, que a intimação para o sumário de culpa, sob pena de nulidade, deveria endereçar-se tanto ao defensor como ao acusado, por igualação da importância da defesa técnica e da autodefesa, face à garantia constitucional (HC 54.217; HC 54.43 1).
Merecem consideração desta Corte, pela integridade e excelência intelectual da formulação, proposições jurídicas que suscitaram memoráveis polêmicas, a servirem de demonstrar, nos votos em contraposição, o nível intelectual e cultural dos eminentes manifestantes de então, conferindo respeitabilidade e confiança ao empenho do Tribunal em sua busca exaustiva da verdade jurídica.
Em julgamento que se propôs conferir a constelação de valores do Estado do Direito, no ponto nevrálgico dos direitos fundamentais, a Corte Suprema debateu, à luz de elevada conceituação e doutrina erudita, e sob o prisma da constitucionalidade de dispositivo de lei complementar, na parte que torna inelegível quem responda a processo judicial, a amplitude e eficácia do princípio da presunção de inocência inserido no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Colocando-se, na polêmica questão, na vertente dos que, vencidos, admitiam a inconstitucionalidade do preceito, busca embasamento primordial, não na pertinente locução da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que não tem, aliás, por inócua ou retórica, mas na conceituação genérica do § 36 do art. 153 do texto maior, pois seria um valor jurídico e social ínsito na índole democrática do nosso ordenamento constitucional.
Registrável, ainda, como posição doutrinária, defendida nos debates que então se feriram nesta Casa, o entendimento de que as acusações a autoridade administrativa, no exercício do mandato parlamentar, consistentes em haver aquela, no exercício do cargo, praticado várias e graves irregularidades, não constituem crimes contra a honra, - então excepcio nados do princípio da inviolabilidade, - pois assim considerar seda admitir que a exceção invalidasse a função congressual de natureza informativa, crítica e controladora das atividades públicas, não apenas direito mas dever do parlamentar, razão de sua inviolabilidade (Apn 230). Correlacionada, a concepção de que não constitui crime o «agravo verbal quando intercorrente entre membros do corpo legislativo, no exercício do
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mandato, respondendo o parlamentar, disciplinarmente, por ofensa dessa ordem, perante a sua corporação». Fora disso, nas suas palavras, da prerrogativa constitucional de inviolabilidade, «pouco mais sobraria do que o galanteio de homenagem puramente verbal» (Apn 222).
Esse registro, como um perfil, contém apenas alguns índices representativos da eSl ala, de sua atividade judicante, impossível de condensar, na oportunidade, quer pelo número das manifestações, quer pela diversidade das proposições. Possível, no entanto, é obter, pela análise do seu trabalho de sete anos, nesta Corte, a confirmação e a conseqüência dos conceitos e valores pelos quais, culturalmente, se guiou e formou, agora aprofundados e desdobrados a uma nova luz, ao crivo desse grave encargo de julgar. Em seus votos, na verdade, repercutem, ao revérbero dos fatos e das situações concretas, os princípios cristalizados de sua experiência jurídica, sob nova dimensão.
Assim, ao longo das formulações de uma cultura solidamente construída, de um seguro raciocínio silogisticamente discorrido, de ampla apreensão intelectual do complexo mundo das realidades, das normas e dos valores, nos sucessivos planos de sua atividade intelectual e jurídica, o Ministro Leitão de Abreu realiza aquela coerência das diversidades no todo de um universo intelectual e moral, aquela unidade espiritual e dinâmica, que faz a marca indelével de uma presença.
Em sua carta de despedida, endereçada a esta Corte, disse o Ministro Leitão de Abreu:
«Durante sete anos, tive a honra de servir no Supremo Tribunal Federal, com ferrenha dedicação, à causa da Justiça. Mais serviria se não fora convocado para bater-me sob outra forma e outro processo, mas com igual obstinação e fervor,
pela mesma causa. Não largo, pois, a bandeira, que nos congrega, nem o meu coração pulsará, no exercício desse sacerdócio, de modo menos vivo».
Esta renovação de uma fidelidade à justiça, que aí está, e que tem fonte nas perspectivas de sua formação espiritual e cultural, e que se fez vivência diuturna do magistrado, faz-nos ver o seu compromisso fundamental, como a dizer com Del Vecchio que a «Justiça tem, por própria natureza, uma validez transcendente e subjetiva, de maneira que quem a invoca se submete a ela e quase se abandona virtualmente a si mesmo, como qualquer elemento empírico e antes de qualquer outra coisa». Com isso se põe em consonância com a própria inspiração institucional do Poder Judiciário, com quem não quebra, assim, os vínculos espirituais, ao cessarem os vínculos funcionais.
Pelo que trouxe, de uma cultura sólida e de um pensamento jurídico consistente; pelo que deixou, de trabalho impregnado de seriedade, dedicação e objetividade; pelo que nela admirou, do austero empenho de ver-
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dade e de justiça, podemos dizer, aos termos da sua carta, que, ao sair desta Casa, não se desfaz o registro de sua presença».
REFER�NCIAS E CONSULTAS
«Da Prescrição em Direito Administrativo» 1961 (Publicação do CSP); «A Validade da Ordem Jurídica», 1964 (Livraria Globo); Representação ao Supremo Tribunal Federal,
1967 (Livraria Globo); «A Filosofia da Revolução», «<Correio do Povo» - 7.3.1965); «A Função Política do Judiciário» (CP - 14.9.1965); «A Função Política do Judiciário» (CP - 14.9.1965); «O Jurisconsulto Pontes de Miranda» (CP - 16.10.1966); «Guerra Perpétua» (CP - 12.3.1968); «A Crise da Constituição» (CP - 4.1.1969); «Aula Magna da
UFRJ» (CP - 15.3.1973); «A Crise da Constituição na III Jornada de Direito Americano» (CP - 13.8.1978); RE 86.296; HC 57.173; Apn 230; Rp 1.006; RE 80.896; RE 94.252; Rp 921; Rp 930; Rp 936; RE 82.300; RE 85.550; Extr 347; MS 19.097; RE 78.600; RE 83.600; RE 86.787; RHC 54.217; RHC 54.439; RE 85.530; RHC 54.294; RHC 54.168; RvCr 4.609; RCr 1.381; HC 56.373; HC 56.550; RE 79.682; RE 79.714; RE 81.429.
Discurso do Dr. INOC�NCIO MÁRTIRES COELHO,
Procurador-Geral da República
Senhor Presidente, Senhores Ministros:
Mantendo solene tradição, aqui e agora se reúne o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, para render homenagem _. a todos os títulos respeitável e merecida -, a um magistrado singular - o insigne
Ministro Leitão de Abreu -, recém-aposentado no exercíc,o da judicatura
na mais alta Corte de Justiça do País.
Homem público por excelência e chefe de família exemplar, o Ministro Leitão de Abreu é dessas figuras de quem se pode afirmar, sem exagero retórico, ter dedicado toda a sua fecunda existência ao serviço da República, sem dela nada exigir.
Bacharelado pela tradic.ional Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul no ano de 1946 - quando o País engatinhava os primeiros passos no rumo da reconstitucionalização -, desde cedo o vemos dedicado à faina do Direito, tanto na advocacia quanto no magistério, sem prejuízo de laboriosa atividade administrativa, desenvolvida em diferentes âmbitos de atuação no Governo de sua terra natal, onde exerceu praticamente todos os cargos públicos de relevo, inclusive o de Chefe da Casa Civil do saudoso Governador lido Meneghetti.
Ao serviço do Governo Federal desde 1966, vêmo-Io, de início, a chefiar o Gabinete do seu amigo e companheiro de ideais, o ínclito Ministro Mem de Sá, época em que dedicou à Pasta da Justiça todo o brilho de sua inteligência. Desse tempo datam seus primeiros e marcantes esforços pela reorganização institucional do País.
No ano de 1968, em momento particularmente grave da vida nacional, convocado pelo eminente Presidente Emílio Médici, assumiu o Ministro Leitão de Abreu a Chefia do Gabinete Civil da Presidência da República, cargo em que se notabilizou pela habilidade e firmeza das decisões, funcionando a um só tempo como amigo, conselheiro e auxiliar direto do Presidente, a quem assistia a todo momento com desassombrado espírito público.
Consciente da grave crise por que passavam as instituições republicanas naquela conjuntura adversa, foi sem favor um dos maiores artífices
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do grande projeto de que resultou a preservação da própria unidade nacional, então posta sob risco pela ação pertinaz de grupos extremados, comprometidos com soluções violentas de todo incompatíveis com as tradições e a índole do nosso povo.
À luta armada e desagregadora, que então se pregava, contrapunha, sob o comando enérgico e esclarecido do Presidente, o desenvolvimento econômico e o bem-estar social, a tal ponto exitosos que até mesmo os críticos mais apaixonados já não lhe poupam, elogios.
Missão cumprida no Executivo - pelo menos assim pensava e mesmo desejava -, o ilustre homem público aceita convite do eminente Presidente Ernesto Geisel para ingressar na magistratura e, a partir de 1974, passa a dedicar sua vida ao ofício da Justiça, na mais alta Corte do País - o Supremo Tribunal Federal -, onde logo desponta como magistrado exemplar, seja pela perspicácia dos diagnósticos, seja pela agudeza das soluções que formula para todas as causas que é chamado a julgar.
Juiz profundamente técnico, nem por isso deixou de impregnar seus julgados de um elevado sentimento de justiça, haurido no dia a dia de uma vida, toda ela, dedicada ao trato dos mais graves problemas sociais e humanos.
A esta altura da existência - cercado de amigos e admiradores, que justamente granjeou - bem poderia o homem público exemplar retirarse para o convívio da família e dos livros - as duas paixões de sua vida -. E tudo levava a crer fosse esse o passo derradeiro de sua fecunda caminhada.
Quis o destino, no entanto, mais uma vez testar-lhe o espírito público, fazendo-lhe novo e irrecusável desafio, para, como ele mesmo disse, levá-lo da Casa da Justiça para a Casa do Governo.
Convocado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, novamente em momento difícil - pois que para momentos fáceis não se fazem grandes apelos - assume outra vez a Chefia do Gabinete Civil, a fim de emprestar ao Chefe do Governo o apoio, de que tanto necessita, para levar adiante o grande projeto de reconstrução institucional do País.
O sucesso das primeiras missões, de tamanha evidência, é do conhecimento público e dispensa elogios.
Mais não preciso dizer para justificar as primeiras palavras com que iniciei a saudação - a homenagem ao Ministro Leitão de Abreu é, a todos os títulos, respeitável e merecida.
Discurso do Dr. JOSÉ PAULO SEPÚLVEDA PERTENCE,
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Senhor Presidente Egrégio Tribunal Senhor Procurador-Geral
Colegas advogados Senhoras e Senhores Em solenidade semelhante, quando honrava esta tribuna dos advo
gados, coube a V. Exa. sublinhar, Sr. Presidente, «o acerto dessa praxe inveterada» - a de reservar para o momento da despedida o louvor aos membros da Corte - «que celebra no dever cumprido, mais que na honraria da investidura, a glória dos supremos juízes da Nação».
Aos advogados, nos compraz, mais que a ninguém, essa tradição do Supremo Tribunal: já despido do poder da .judicatura o objeto de nossa homenagem, desta se afasta qualquer suspeita de laudações interesseiras, que aborreceria o justo orgulho da nossa independência.
Sob esse aspecto, a solenidade de hoje é incomum, com pouquíssimos precedentes na história da Alta Corte. O eminente Ministro Leitão de Abreu não deixou a toga, como sói acontecer, para o justo descanso da missão cumprida na vida pública. Deixou-a, sim, para assumir novamente o alto cargo, em cujos titulares a prática da vida republicana, no último decênio, nos acostumou a identificar um verdadeiro partícipe da solidão presidencial, numa fase em que, persistente, a essência autoritária do regime ainda concentra na chefia do Poder Executivo um feixe inédito de poderes quase imperiais.
Não me constrange a circunstância. Sabem os que me conhecem que a vida não me ensinou a cultuar o Poder. Temo somente - e disso antecipadamente me escuso - que a singularidade da sàída do Ministro Leitão de Abreu possa inconscientemente empalidecer as cores justas da exaltação devida às suas notáveis qualidades de magistrado.
Não obstante, Sr. Presidente, devo confessar que esta é uma das missões mais delicadas que até hoje recebi da Ordem dos Advogados.
Seria fácil abstrair-me do contexto em que Leitão de Abreu chegou ao Supremo Tribunal, e daquele em que, faz pouco, se despediu da Corte; e cingir-me ao grande juiz que foi, nesses sete anos corridos entre a primeira e a nova fase de sua ascensão a um dos postos culminantes do Governo. Seria talvez conveniente, para garantir-me contra a infringência da regra de discrição política, que o ambiente do Tribunal impõe e, para
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alguns, o papel de intérprete da OAB faria recomendável. Essa abstinência de qualquer alusão aos marcos biográficos que, concretamente, antecederam e agora sucedem à sua passagem por esta Augusta Casa, seria fácil e conveniente, se antes não fora falsa, enquanto representação da Ordem, e ao mesmo tempo injusta, na medida em que necessariamente apoucaria as d:mensões reais da homenagem devida ao magistrado.
É que esta homenagem, para ser justa, há de começar com a lembrança das apreensões com que, os advogados, recebemos a investidura na Corte do Ministro Leitão de Abreu. O seu nome - sem embargo dos títulos incontestáveis de reconhecido saber e de imaculada reputação de honradez pessoal - vinha, à época, inevitavelmente associado ao governo que há pouco findara, cujos extremos de autoritarismo haviam chocado a nossa consciência liberal, que nos acostumáramos a identificar na tradição dessa Suprema Corte.
Assinalo como simples fato a lembrança desses passados temores. A História da época, ainda por fazer, não propicia qualquer juízo fundado sobre a sua origem, nem estes seriam a ocasião e o local para tentá-lo. Tanto mais quanto, hoje, para o julgamento da consciência democrática do País, a luminosa trajetória do Ministro Leitão de Abreu pelo Supremo Tribunal Federal é o fato mais importante a considerar.
Poderia estranhá-lo o observador iludido pelo mito do apoliticismo do Poder Judiciário. Equivocadamente, porém.
Na galeria dos ministros da Corte, ao lado de eminentes juízes de carreira, de figuras exponenciais da advocacia e da cátedra universitária, sempre formaram - mais ou menos numerosos, conforme o período considerado -, os que provieram da política militante. E a pesquisa que se fizer não desmentirá que, muitas vezes, na altitude da judicatura do Supremo Tribunal, a verdadeira face política desses homens públicos se desvelou com mais limpidez do que na tarefa dos governos ou nas porfias partidárias. Jungido pela fidelidade às facções e comprometido no jogo de transigências de que, necessariamente e sem desdouro, se tece a vida política, o estadista há de exprimir com freqüência, por palavras ou ações, menos o seu pensamento do que as imposições da conjuntura. (E quantas vezes, para lembrar o saudoso Milton Campos, parecerá ter estado solidário ao que se fez, quando o relevo de seu papel esteve no impedir que se fizesse mais). Ao contrário do político militante, o verdadeiro juiz - mormente o das cortes supremas -, mais vezes pode revelar-se, na sua judicatura, o homem só com as suas verdadeiras convicções.
E, assim se revelou, em sete anos de trabalho intenso no Supremo Tribunal, o Ministro Leitão de Abreu, abrindo horizontes que lhe ficam definitivamente creditados na tarefa histórica de reconquista de espaços liberais, no caminho da construção da democracia brasileira.
Falo após o eminente Ministro Rafael Mayer e o douto ProcuradorGeral, Professor Inocêncio Mártires Coelho. Por isso, de certo seria ocioso repisar a enumeração dos títulos e das obras; o louvor da cultura
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profunda e da erudição polimorfa, a expressão da saudade já sentida da simpatia humana, que a timidez - buscando esconder - acentua; e mesmo a análise global dos numerosos votos e da variada e inestimável contribuição que todas essas qualidades do Ministro Leitão de Abreu trouxeram, nos mais diversos setores, à jurisprudência do Tribunal e, através dos seus anais, ao direito brasileiro.
Fixo-me, assim, em uns poucos votos, que, embora vencidos, assinalarão quiçá alguns dos momentos mais marcantes de sua judicatura, avaliada prospectivamente com olhos feitos de esperança, quando já não se possa comemorar, aqui e agora, a sua subseqüente ou previsível transformação em direito positivo.
Recordem-se os seus votos a respeito da inviolabilidade parlamentar, ainda na vigência da redação original do art. 32 da Carta de 69, que, assegurando-a nominalmente, dela excluia, no entanto, alé'll dos crimes contra a segurança nacional, as acusações de calúnia, injúria e difamação. Quer ao sustentar a irresponsabilidade penal de um congressista por ofensa a outro, que «não transcenderia do âmbito das questões interna
corporis do Parlamento, resolúveis dentro nos seus muros, por via disciplinar» (APn. 222, RT J 78/5, 17), quer ao rejeitar denúncia contra deputado acusado de ofensa a autoridades administrativas, que traduziriam «opinião manifestada por parlamentar no desempenho de função inerente ao mandato» (APn 240, RT J 83/659, 662), lutou, com brilho e pertinácia excepcionais, o Ministro Leitão de Abreu: tentou contra a confessada clareza da norma, que se reduzisse a exceção «aos limites mais rigorosos que o texto constitucional, explicado liberalmente, possa admitir» (RT J 78/17), para evitar que a regra da imunidade, solenemente garantida, se convertesse - dizia - «no que já se chamou a sombra de uma sombra, pois que, dessa prerrogativ,a constitucional, em última análise, pouco mais sobraria do que o galanteio de homenagem puramente verbal».
Na mesma linha das liberdades políticas, tornou-se célebre a sua manifestação, igualmente minoritária, pela inconstitucionalidade da LC 5/70, no ponto em que faz inelegível não só o condenado, mas o cidadão apenas denunciado por determinados crimes (RE 86.297, RTJ 79/671, 695). O voto, de impressionante grandeza, extrai, da norma que assegura, além dos especificados, os direitos e garantias implícitos nos princípios do regime, a consagração positiva da presunção de inocência, nos [ermos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, para daí deduzir a ilegitimidade constitucional da lei questionada. Responde à contradita de que a presunção de inocência estaria desmentida pela admissão da prisão provisória que «não vale argumentar com normas do direito comum para estabelecer limites a princípios fundamentais» ( . . . ): «Em lugar de se argumentar da lei ordinária para a norma fundamental, a fim de limitar-lhe o sentido e a eficácia» - redargue - «o que cumpre é argumentar dos princípios estabelecidos na declaração de direitos para
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os preceitos de lei ordinária, para subordinar estes últimos aos primeiros».
O mesmo raciocInIO - da prevalência da substância e da força de expansão dos princípios fundamentais de segurança da liberdade - retoma, mais ou menos explicitamente, em numerosos votos seus. Particularmente naqueles em que, versando questões aparentemente rotineiras de processo penal comum, o Ministro Leitão de Abreu prestou testemunho de aguda sensibilidade para a democratização dos direitos humanos, fazendo-os descer dos páramos dos direitos políticos para a planície da violência cotidiana da repressão penal cumum sobre o homem indefeso das multidões anônimas.
Os exemplos seriam incontáveis. Recorde-se o papel decisivo do nosso homenageado, aqui vitorioso, na interpretação da L. 5.941, para firmar como direito subjetivo, não como mero arbítrio do juiz, a liberdade provisória do réu primário e de bons antecedentes.
Releia-se o seu voto vencido pela extensão do direito de apelar em liberdade ao réu anteriormente preso em flagrante ou preventivamente, quando não subsistam, à sentença condenatória, motivos que imponham a manutenção do encarceramento (RHC 53 .603 , RTJ 79/791, 793). É sem favor um trabalho magistral - gificilmente superável no direito brasileiro - seja a respeito do caráter estritamente cautelar de todas as modalidades de prisão provisória, seja no tocante à natureza restrita do poder discricionário da autoridade judicial, insuscetível de equiparação ao conferido à autoridade administrativa.
Na mesma área, e com o mesmo sentido profundamente liberal que identificou a sua judicatura, refiram-se ainda - sempre derivados do princípio constitucional da ampla defesa, contra textos legais de sabor restritivo -, os votos do Ministro Leitão de Abreu, sobre o caráter absoluto da nulidade oriunda da ausência do réu preso à instrução do processo (HC 54.543 , RT J 79/110); ou sobre a obrigatoriedade, para o defensor dativo, da apelação contra sentença condenatória (RHC 57.091, RTJ 92/1109), orientação depois alterada pela maioria do ego Plenário.
Senhor Presidente.
Não foi por acaso que me detive preferencialmente em votos vencidos do eminente j uiz que hoje louvamos. Essa preferência não teve, porém, obviamente a pretensão de crítica à maioria que, em cada exemplo mencionado, considerou impossível declarar, como direito vigente, as teses, sempre liberais, da minoria. Teve, sim, o sentido de frisar o compromisso com os valores fundamentais da liberdade, aqui firmados pelo Ministro Leitão de Abreu. Valores fundamentais da liberdade, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, por sua maioria, reputou inatendíveis pela ordem positiva. Ocorre que o eminente autor dos admiráveis votos vencidos é de novo chamado às culminâncias do poder político, ao qual retoma em conjuntura marcada por inegáveis avanços de abertura liberalizante e pelo reiterado juramento presidencial de democratização.
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Desse modo, a passagem do Ministro Leitão de Abreu pela magistratura do Supremo Tribunal Federal, muito mais que simples desfazer a apreensão inicial com que o recebemos, a converteu na esperança confiante de que - tendo significado, embora, a perda inesperada de um grande j uiz -, a sua volta ao poder político signifique um passo decisivo, no caminho das aspirações democráticas que, com S. Exa., comungamos nesta Corte.
Proclamar a sinceridade dessa esperança, Egrégio Tribunal, é o testemunho mais expressivo sobre a grandeza da judicatura de Leitão de Abreu e a homenagem maior que os advogados poderiam trazer a esta despedida.
Palavras do Senhor Ministro XA VIER DE ALBUQUERQUE, Presidente, suspendendo a Sessão
Para que os Senhores Ministros possam cumprimentar os familiares do eminente Ministro Leitão de Abreu, presentes a esta cerimônia, e as dignas autoridades que trouxeram a sua solidariedade ao eminente Magistrado, suspendo a sessão por cinco minutos.