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TÓPICO Enos Picazzio MODELOS PLANETÁRIOS I 5 5.1 Os movimentos aparentes decorrem da visão geocêntrica 5.2 Geocentrismo 5.2.1 Aperfeiçoamentos de Ptolomeu 5.3 Heliocentrismo 5.3.1 Órbitas circulares (Copérnico) 5.3.2 A importância de Tycho Brahe LICENCIATURA EM CIÊNCIAS · USP/ UNIVESP

MODELOS PLANETÁRIOS I · Este esboço genérico repete-se para cada um dos planetas / Fonte: ... se encontrar no centro de ... foram propostas teorias planetárias em que a Terra

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38Licenciatura em Ciências · USP/Univesp

TÓPI

CO

Enos Picazzio

MODELOS PLANETÁRIOS I 5

5.1 Os movimentos aparentes decorrem da visão geocêntrica 5.2 Geocentrismo

5.2.1 Aperfeiçoamentos de Ptolomeu5.3 Heliocentrismo

5.3.1 Órbitas circulares (Copérnico) 5.3.2 A importância de Tycho Brahe

Licenciatura em ciências · USP/ Univesp

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5.1 Os movimentos aparentes decorrem da visão geocêntrica

Durante séculos a concepção humana do cosmos foi discutida à luz da filosofia e dos conhe-

cimentos científicos da época.

Embora as concepções geocêntrica e heliocêntrica do Universo sejam praticamente con-

temporâneas, a mudança de paradigma só ocorreu no século XVI, com a chamada Revolução

Copernicana. Nicolau Copérnico defendia o modelo heliocêntrico, em que a Terra girava em

torno do Sol. A primeira descrição escrita do seu trabalho ocorreu por volta de 1510, mas seu

trabalho mais importante, De revolutionibus orbium coelestium (Das revoluções das esferas celestes),

foi publicado em 1543, após sua morte.

Figura 5.1: Um dos telescópios construídos por Galileu Galilei / Fonte: http://www.scitechantiques.com/Galileotelescope/. Acesso em: 09/02/2011

Seu modelo não apresentava resultados mais precisos

das posições dos planetas, porém os cálculos matemá-

ticos eram bem mais simples. Medidas precisas de

posições só vieram a ocorrer após Galileu Galilei in-

troduzir o telescópio como instrumento astronômico,

no início do século XVII.

Ao propor que a Terra era apenas mais um

planeta girando em torno do Sol, Copérnico

não mudou apenas o paradigma de localização da

Terra, mas levantou a possibilidade de existência

de planetas orbitando outras estrelas. Hoje, os exo-

planetas são uma realidade.

Hoje sabemos que a discussão de modelos referia-se,

basicamente, à estrutura e à dinâmica do sistema solar.

O Universo, objeto de estudo da Cosmologia, é algo

bem maior e bem mais complexo. No entanto é

importante lembrar que o Universo aparente é geo-

cêntrico, pois o observador o vê da Terra.

As concepções antigas do Universo, da Antiguidade à Idade Média, serão abordadas à parte. Neste

capítulo abordaremos as concepções cosmológicas a partir dos trabalhos de Cláudio Ptolomeu.

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5.2 Geocentrismo A proposta do geocentrismo baseava-se essencialmente em dois princípios: o da excelência

dos movimentos circulares (posteriormente contestada pela primeira lei de Kepler) e o da

inalterabilidade do cosmos (possibilidade da representação dos movimentos cíclicos por meio

de movimentos em forma de círculos idênticos), que Tycho Brahe colocou em discussão ao

observar a explosão de uma supernova, em 1572.

5.2.1 Aperfeiçoamentos de Ptolomeu

Cláudio Ptolomeu nasceu no Egito, morreu em Alexandria e viveu aproximadamente entre

os anos 85 e 165. Segundo os historiadores, esse período foi particularmente rico para o Império

Romano do ponto de vista econômico, social, cultural e intelectual. A obra de Ptolomeu abarca

vários domínios: Matemática, Geografia, Ótica, Harmonia (música), Astronomia e Astrologia.

Astronomia e Astrologia eram, nessa época, termos sinônimos que se referiam ao estudo de um

mesmo objeto: os corpos celestes e suas propriedades. Ptolomeu distinguia o método do que cha-

mamos Astronomia como aquele que fornece os aspectos dos movimentos dos corpos celestes e

da Terra, enquanto o método do que chamamos Astrologia como o que, através do caráter natural

daqueles aspectos, investiga as mudanças que trazem naquilo que cercam. A origem comum provi-

nha do Egito e da Babilônia, mas teve no trabalho de Ptolomeu o ápice de seu desenvolvimento.

Mathematik Sintaxis ou Megale Sintaxis é uma das suas obras mais divulgadas, especialmente

a partir dos séculos VIII e IX, quando é traduzida para o árabe com o título de Al Madjiristi,

mais conhecida pelo nome latino de Almagestum. Nesta obra de 13 volumes, Ptolomeu siste-

matizou o sistema geocêntrico, compilou os conhecimentos de 500 anos de astronomia grega

e desenvolveu teorias próprias. A sua singularidade reside em ter descrito matematicamente os

movimentos dos planetas de modo a possibilitar o cálculo preciso dos movimentos observados

nos céus. Uma das preocupações de Ptolomeu era o público destituído de conhecimentos

matemáticos, por isso, ele publicou versões de sua teoria em linguagem simplificada. Em grande

medida, a coerência matemática da teoria tornou as ideias de Ptolomeu a matriz do pensamen-

to astronômico sobre o Universo durante 17 séculos.

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Figura 5.2: Diagrama do Universo, segundo Aristóteles e Ptolomeu, da edição de 1539 da Cosmographia, de Peter Apian / Fonte: ??????

O modelo de Universo de Ptolomeu era essencialmente

o aristotélico, ou seja, um cosmo finito, constituído de

esferas concêntricas, com a Terra imóvel no centro. A at-

mosfera chegaria até a altura da Lua, definindo o espaço

do mundo “sublunar”, constituído por quatro elementos,

terra, água, fogo e ar. A partir da esfera da Lua, no mundo

“supralunar”, constituído de um “quinto elemento”, o

éter, haveria uma série de esferas transparentes (que foram

chamadas orbes) girando em torno da Terra e levando

consigo os planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e

Saturno (os planetas conhecidos na época), além do Sol.

A última das esferas conteria as chamadas “estrelas fixas”,

o primum mobile, “primeiro motor”. Para além deste, não

haveria movimento, nem tempo, nem lugar (espaço), daí a noção de um cosmo finito ou “mundo

fechado” (Figura 2.2). Aristóteles usou um conceito filosófico, metafísico (abstrato), o “motor

imóvel”, para referir-se à causa que impulsionaria rotação no primeiro motor, o qual transmitiria seu

movimento às demais esferas. Os planetas estavam dotados de movimentos próprios que se somavam

ao do primum mobile. Ptolomeu afirmava que os planetas descreviam órbitas circulares chamadas epi-

ciclos em torno de pontos centrais que, por sua vez, orbitavam de forma excêntrica ao redor da Terra,

em órbitas chamadas deferentes (Figura 2.3). Portanto, os planetas descreviam órbitas perfeitamente

circulares, embora as trajetórias aparentes se justificassem pelas excentricidades.

Figura 5.3: O sistema geocêntrico utilizava como artifício deferentes e epiciclos para explicar o movimento retrógrado dos planetas. Este esboço genérico repete-se para cada um dos planetas / Fonte: Cepa

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5.3 Heliocentrismo 5.3.1 Órbitas circulares (Copérnico)

Nicolau Copérnico nasceu em 19 de fevereiro de 1473 na cidade de Thorn (hoje Torun),

na Polônia. Sob a orientação de seu tio materno – bispo Lukasz Watzenrode – foi educado nas

melhores universidades e faleceu na cidade de Frombork, em 1543. Em 1491, ingressou na

Universidade de Cracóvia, no curso de Artes, onde também estudou matemática e astronomia.

Transferiu-se para a Itália, em 1497, para estudar Direito Canônico na Universidade de Bolonha

(embora o seu título de doutor em Direito Canônico tenha sido emitido pela Universidade de

Ferrara, em 1503). Em 1500, ministrou aulas e proferiu palestras de Matemática, possivelmente

de Astronomia. No ano seguinte, inicia estudos de Medicina em Pádua (mesma universidade

onde Galileu ensinou um século depois).

Seu interesse por observações astronômicas ocorreu no período em que estava em Bolonha

e logo mostrou grande habilidade para esse tipo de trabalho. Nesse período comprou e leu um

resumo do Almagesto, de Ptolomeu. Porém, os seus estudos levaram- no a conhecer os trabalhos

de pensadores gregos da Antiguidade, entre outros, Aristarco de Samos (310-230 a.C.), que

defendia o heliocentrismo. Como veremos adiante, estudando as fases lunares e os eclipses,

Aristarco concluiu que o Sol era muito maior que a Terra e,

a Lua, que estava bem mais distante que esta, por isso, deveria

se encontrar no centro de Universo. A Terra, que girava uma

vez por dia sobre seu eixo, completava cada ano uma volta

em torno dele1. Embora as ideias de Aristarco não tenham

sido aceitas em sua época, elas são evidência de que surgiu

uma teoria heliocêntrica na Antiguidade, assim como também

foram propostas teorias planetárias em que a Terra se move.

O modelo heliocêntrico proposto por Copérnico tem o Sol como centro em torno do

qual se movem todos os planetas, incluindo a Terra. Esse modelo segue em diversos aspectos a

estrutura do modelo de Ptolomeu, como a crença em esferas (orbes) transparentes concêntricas,

órbitas circulares e movimentos uniformes. Os antigos deferentes, que Copérnico denominava

orbes, são circulares e centrados no Sol. Os deferentes heliocêntricos dão melhores resultados

1 Tanto a ideia de que a Terra não é imóvel, apre-sentando, seja uma rotação axial, seja uma transla-ção ao redor do centro do Universo, onde está o Sol, quanto a própria ideia heliocêntrica foram defendidas por outros autores da Antiguidade. Heráclides de Pontos (387-315/310 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles e talvez aluno de Platão, propunha um semi-heliocentrismo, em que Vênus e Mercúrio girariam como satélites em torno do Sol, enquanto este e outros corpos celestes girariam em torno da Terra. A rotação da Terra em torno de seu próprio eixo em 24 horas também aparece nos pitagóricos Philolaus (séc. IV a. C.) e Ecphantus de Siracusa (séc. IV a. C.) e Hicetas (?-338 a. C.), também de Siracusa.

43 Licenciatura em Ciências · USP/Univesp

que os deferentes geocêntricos de Ptolomeu. Os

epiciclos também presentes no modelo coperni-

cano introduzem correções menores, podendo

tornar as previsões de posição dos planetas pró-

ximas daqueles previstas através de uma órbita

elíptica. Copérnico descartou o equante.

A primeira descrição de sua teoria foi redigida

em torno de 1510, o Commentariolus (Pequeno

comentário) em oito folhas na versão latina e cir-

culou sob forma manuscrita até o final do século

XVI. Porém, o trabalho principal seria publicado

bem mais tarde, no ano de sua morte, em 1543, sob

o título De revolutionibus orbium coelestium (Sobre as

revoluções das esferas celestes).

Embora as previsões de posição dos planetas

forneciam praticamente os mesmos resultados que

o modelo de Ptolomeu, os cálculos eram bem

mais simples no modelo copernicano. Note-se que a oposição da Igreja Católica ao copernica-

nismo surgiu apenas quando adeptos do heliocentrismo, como, por exemplo, Giordano Bruno

(1548-1600), serviram-se da teoria para criticar a filosofia escolástica da Igreja, isto é, o ensino

filosófico próprio da Idade Média ocidental, fundamentado na tradição aristotélica e inseparável

da Teologia. A obra de Copérnico serviu de base de estudo para Galileu Galilei, Tycho Brahe,

Johannes Kepler e Isaac Newton, que serão expostos a seguir.

5.3.2 A importância de Tycho Brahe

Tycho Brahe, dinamarquês de família nobre, viveu entre os anos de 1546 e 1601. Ele estudou

nas Universidades de Copenhagen e Leipzig e posteriormente em universidades alemãs. Foi

nessa época que surgiu seu interesse pela Astronomia e pelo desenvolvimento de instrumentos

astronômicos. Neste aspecto, o seu trabalho foi importante também por ter desenvolvido uma

metodologia de calibração e checagem periódica da acuidade desses instrumentos. Ele é consi-

derado o maior astrônomo observador da era pré-telescópica.

Figura 5.4: Estrutura do Universo segundo Copérnico - De revo-lutionibus orbium coelestium, 1543 / Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:CopernicSystem.png. Acesso em: 06/4/2011

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Em 1563, a observação de uma conjunção entre Saturno e Júpiter foi considerada mais tarde

por Tycho como o momento de definição pela carreira de astrônomo. Em 1572, ele observou

uma supernova (morte explosiva de uma estrela de grande massa) na constelação Cassiopeia.

Como o modelo aristotélico ptolomaico implicava a imutabilidade celeste, a supernova teria que

ser interpretada como um fenômeno que ocorresse na única esfera sujeita a mudanças, a sublunar.

Ao tentar determinar a distância da supernova, observada por ele durante cerca de um ano e

meio, Brahe notou que ela apresentava paralaxe (diferença na posição aparente de um objeto visto

por observadores em locais distintos), o que o levou a concluir que a estrela estava além das esferas

dos planetas, na esfera das estrelas fixas. Ele publicou a descoberta em 1573 no livro De nova et

nullius aevi memória prius visa stella (Sobre a nova e nunca antes vista estrela), que incluía uma seção

sobre as significações astrológicas da estrela e a introdução de um calendário astrológico.

Com o apoio do rei dinamarquês Frederick II, em 1576, Brahe construiu na ilha de Hven

– hoje território sueco – o maior observatório de sua época, e o denominou Uraniborg (Cidade

do céu). Ele o dotou de instrumentação potente e moderna para a época, algumas das quais

projetadas por ele próprio, tais como, quadrantes murais, sextantes, esferas armilares, esquadros e

gnomos, todas elas com escalas graduadas enormes para permitirem maior precisão nas medidas.

Seu observatório tornou-se um centro de visitações dos estudiosos da época, de modo que

Tycho Brahe foi responsável pela formação de toda uma geração de astrônomos observadores.

Em 1577, Tycho Brahe mediu a paralaxe de um cometa e determinou sua distância em

aproximadamente 230 raios terrestres (3,8 vezes a distância da Lua), assolando com isso a

crença de que os cometas tinham natureza atmosférica. Com este caso, somado ao da su-

pernova, Brahe colocou em questão a ideia aristotélica da divisão entre os mundos sublunar

e supralunar, crítica essa retomada por Galileu. Além disso, Tycho mostrou que os cometas

moviam-se entre as esferas celestes, contribuindo para a sua eliminação do sistema celeste, o

que ocorreu entre os anos de 1575 e 1625.

Contudo, apesar de a eliminação da divisão entre os mundos sub e supralunar contribuir

para o heliocentrismo de Copérnico, assim como outros astrônomos do período, Tycho refutava

o sistema copernicano. Sua posição tinha coerência com suas observações: se a Terra circulava o

Sol em uma órbita, como propunha Copérnico, nós deveríamos notar um deslocamento anual

(paralaxe) nas posições das estrelas fixas da esfera. Essa paralaxe era imperceptível nas observa-

ções, logo a Terra estava no centro. Para resolver o impasse, Brahe propôs um sistema híbrido:

os cinco planetas conhecidos orbitavam o Sol (como dizia Copérnico), mas este, juntamente

com a Lua, orbitava a Terra (mantendo a física aristotélica, a única disponível na época). Apesar

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dos cuidados de Brahe com o uso dos instrumentos, comparando-os uns com os outros e

corrigindo erros, ele considerou que a refração (mudança na direção da luz ao passarem pela

atmosfera) era desprezível para alturas acima de 70°, o que, sabemos hoje, acarretou enganos.

De todo modo, vale ressaltar que a precisão alcançada (de menos de um minuto de arco) só foi

superada após a invenção do telescópio.

Devido a desentendimentos com o novo rei, em 1597, Brahe deixou a Dinamarca, levando

consigo seus instrumentos e livros. Depois de dois anos de viagem, mudou-se para o castelo de

Benatky, nas imediações de Praga, e passou a trabalhar como matemático oficial do imperador

Rodolfo II. Em 1600, ele convidou Kepler, que já tinha feito fama de excelente matemático, para

ser seu assistente e calcular as órbitas planetárias a partir de suas observações. O maior legado de

Brahe foi sem dúvida o conjunto de medidas coletadas ao longo de décadas de observação. A

precisão obtida por Brahe era em média 10 vezes maior que a do Almagesto. Tycho Brahe faleceu

em 1601, tendo seus instru-

mentos guardados e eventu-

almente extraviados. Kepler

foi empossado no cargo de

matemático imperial – su-

cedendo Brahe na tarefa de

calcular e publicar as Tabelas

Rudolfinas, com a previsão das

posições dos planetas – posto

que ocupou por 11 anos. Os

dados astronômicos levanta-

dos por Tycho foram usados

por Kepler para deduzir as leis

do movimento planetário.

Figura 5.5: Diagrama do Universo, segundo Aristóteles e Ptolomeu, da edição de 1539 da Cosmographia / Fonte: Peter Apia