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Monteiro Lobato - O Saci
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7/21/2019 Monteiro Lobato - O Saci
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Monteiro
Lobato
_________________________________________________________________
O Saci
___________________________________________________
editora brasiliense
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Copyright © by herdeiros de Monteiro LobatoNenhuma parte desta publicação pode ser gravada,armazenada em sistemas eletrÎnicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecùnicos ou outros quaisquersem autorização prévia da editora.
56ÂȘ edição, 199417ÂȘ reimpressĂŁo, 2005
Lay-out de capa: Jacob Levitinas IlustraçÔes de capa e miolo: Manoel Victor Filho
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
(CĂąmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lobato, Monteiro, 1882-1948.O Saci / Monteiro Lobato; [ilustraçÔes de capae miolo Manoel Victor filhos]. â SĂŁo Paulo :Brasiliense, 2005. â SĂtio do Picapau Amarelo).
17ÂȘ reimpressĂŁo da 56ÂȘ Ed. De 1994. ISBN 85-11-19018-X
1. Literatura infanto-juvenil I. Victor Filho, Manoel.II. TĂtulo. III SĂ©rie.
05-6607 CDD- 028.5
Ăndices para catĂĄlogo sistemĂĄtico:1. Literatura infantil 028.5
2. Literatura infanto-juvenil 028.5
Editora brasiliense s.a.Rua Airi, 22 â TatuapĂ© â CEP 03310-010 â SĂŁo Paulo â SP
Fone/Fax: (0xx11) 6198-1488WWW.editorabrasiliense.com.br
Livraria brasiliense s.a.Rua EmĂlia Marengo, 216 â TatuapĂ© â CEP 03336-000 â SĂŁo Paulo - /SP
Fone/Fax: (0xx11) [email protected]
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ĂNDICE
___________________________________________________
I. EM FĂRIAS .................................................. 07II. O SĂTIO DE DONA BENTA ........................... 09III. MEDO DO SACI ........................................... 16IV. TIO BARNABĂ ............................................. 18
V. PEDRINHO PEGA UM SACI ......................... 21VI. A MODORRA ............................................... 25VII. A SACIZADA ................................................ 28VIII. A ONĂA ....................................................... 30IX. A SUCURI .................................................... 32X. A FLORESTA ................................................ 34XI. DISCUSSĂO ................................................. 36XII. O JANTAR .................................................... 38XIII. NOVAS DISCUSSĂES ................................... 40
XIV. O MEDO........................................................ 44XV. O BOITATĂ ................................................... 48XVI. O NEGRINHO................................................ 49XVII. MEIA-NOITE ................................................ 51XVIII. SAĂDA DOS SACIS ....................................... 53XIX. LOBISOMEM ................................................ 54XX. A MULA SEM-CABEĂA ................................. 55XXI. MĂS NOTĂCIAS ............................................. 56XXII. CHEGAM AO SĂTIO ....................................... 60
XXIII. A CUCA ......................................................... 64XXIV. O NOVELO DE CIPĂS ................................... 67XXV. O PINGO DĂGUA .......................................... 69XXVI. A IARA .......................................................... 71XXVII. NA CAVERNA DA CUCA ................................ 74XXVIII. DESENCANTAMENTO .................................. 76
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O SACIMonteiro Lobato
___________________________________________________
CapĂtulo I
Em férias
Quando naquela tarde Pedrinho voltou da escola e disseà Dona Tonica que as férias iam começar dali uma semana, aboa senhora perguntou:
â E onde quer passar as fĂ©rias deste ano, meu filho? Omenino riu-se.
â Que pergunta, mamĂŁe! Pois onde mais, se nĂŁo nosĂtio de vovĂł.
Pedrinho nĂŁo podia compreender fĂ©rias passadas emoutro lugar que nĂŁo fosse no SĂtio do Picapau Amarelo, emcompanhia de Narizinho, do MarquĂȘs de RabicĂł, do Viscondede Sabugosa e da EmĂlia. E tinha de ser assim mesmo,porque Dona Benta era a melhor das vovĂłs; Narizinho, a maisgalante das primas; EmĂlia, a mais maluquinha de todas asbonecas; o MarquĂȘs de RabicĂł, o mais rabicĂł de todos osmarqueses; e o Visconde de Sabugosa, o mais "cĂŽmodo" detodos os viscondes. E havia ainda tia NastĂĄcia, a melhorquituteira deste e de todos os mundos que existem. Quemcomia uma vez os seus bolinhos de polvilho, nĂŁo podia nemsequer sentir o cheiro de bolos feitos por outras cozinheiras.
Pedrinho tinha recebido carta de sua prima, dizendo:"Nosso grupo vai este ano completar sĂ©culo e meio de idade eĂ© preciso que vocĂȘ nĂŁo deixe de vir pelas fĂ©rias a fim decomemorarmos o grau de acontecimento."
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Esse sĂ©culo e meio de idade era contado assim DonaBenta, 64 anos; tia NastĂĄcia, 66; Narizinho; 8; Pedrinho, 9.EmĂlia, o MarquĂȘs e o Visconde, l cada um. Ora, 64 mais 66mais 8 mais 9 mais 1 mais l mais l, fazem 150 anos, ou seja,
um século e meio.Logo que recebeu essa carta, Pedrinho fez a conta numpapel para ver se a pilhava em erro: mas não pilhou.
â E uma danada aquela Narizinho! â disse ele. â NĂŁohĂĄ meio de errar em contas.
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CapĂtulo II
O sĂtio de Dona Benta
O sĂtio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. Acasa era das antigas, de cĂŽmodos espaçosos e frescos. Haviao quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o deNarizinho, que morava com sua avĂł. Havia ainda o "quarto dePedrinho", que lĂĄ passava as fĂ©rias todos os anos; e o da tiaNastĂĄcia, a cozinheira e o faz-tudo da casa. EmĂlia e oVisconde nĂŁo tinham quartos; moravam num cantinho doescritĂłrio, onde ficavam as trĂȘs estantes de livros e a mesa de
estudo da menina.A sala de jantar era bem espaçosa, com janelas dando
para o jardim, depois vinha a copa e a cozinha. â E sala de visitas? Tinha? â Como nĂŁo? Uma sala de visitas com piano, sofĂĄ de
cabiĂșna, de palhinha tĂŁo bem esticada que "cantava" quandoPedrinho batia-lhe tapas. Duas poltronas do mesmo estilo eseis cadeiras. A mesa do centro era de mĂĄrmore e pĂ©stambĂ©m de cabiĂșna. Encostadas Ă s paredes havia duas
meias mesas tambĂ©m de mĂĄrmore, cheias de enfeites: trĂȘscasais de içås vestidos, vĂĄrios caramujos e estrelas-do-mar,duas redomas com velas dentro, tudo colocado sobre os"pertences" de miçangas feitos por Narizinho. Hoje ninguĂ©mmais sabe o que Ă© isso. Pertences eram umas rodelas decrochĂȘ que havia em todas as casas, para botar bibelĂŽs emcima; para o lavatĂłrio de Dona Benta; Narizinho fizerapertences de crochĂȘ; e para a sala de visitas fizera aqueles demiçanga de vĂĄrias cores; da bem miudinha.
Antes da sala de visitas havia a sala de espera, comchão de grandes ladrilhos quadrados; "cor de chita cor-de-rosa desbotada". A sala de espera abria para a varanda. Quevaranda gostosa! Cercada dum gradil de madeira, muitosingelo, pintado de azul-claro. Da varanda descia-se para oterreiro por uma escadinha de seis degraus. Nas férias do anoanterior Pedrinho havia plantado em cada canto da varandaum pé de "cortina japonesa", uma trepadeira que då uns fiosavermelhados da grossura dum barbante, que depois ficam
amarelos e descem até quase ao chão, formando umaverdadeira cortina viva. Aquela varanda estava se
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transformando em jardim, tantas eram as orquĂdeas que omenino pendurara lĂĄ os vasos de avenca da miĂșda que ele foicolocando junto Ă grade.
O jardim ficava nos fundos da sala de jantar, um
verdadeiro amor de jardim, sĂł de plantas antigas e fora damoda. Flores do tempo da mocidade de Dona Benta;esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-de-macaco, dois pĂ©s de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-manga. Plantado na calçada e a subir pela parede, ovelhĂssimo pĂ© de flor-de-cĂȘra, planta que os modernos jĂĄ nĂŁoplantam porque custa muito a crescer. AtĂ© cravo-de-defuntohavia lĂĄ, flor com que Narizinho se implicava por ter "cheirode cemitĂ©rio". Bem no centro do jardim havia um tanque
redondo com uma cegonha de louça, toda esverdeada de limo,a esguichar ĂĄgua pelo bico. Mas a cegonha jĂĄ estava semcabeça, em conseqĂŒĂȘncia das pelotadas do bodoque dePedrinho. E um velho regador verde morava perto do tanque,porque era com a ĂĄgua do tanque que tia NastĂĄcia regava asplantas no tempo da seca.
â E o pomar? â O pomar ficava nos fundos da casa, depois do
"quintal da cozinha", onde havia um galinheiro, um tanque de
lavar roupa e o puxado da lenha. O poço velho fora fechadodepois que Dona Benta mandou encanar a ĂĄgua do morro.Passado o quintal vinha o pomar â aquela delĂcia de
pomar! â Por que delĂcia? â Porque as ĂĄrvores eram muito velhas, e ĂĄrvore quanto
mais velha melhor para a beleza e a frescura da sombra.Ărvore nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas,baixinhas e fĂĄceis de apanhar. Mas para a beleza nĂŁo hĂĄ
como uma ĂĄrvore bem velha, bem craquenta, com os galhosrevestidos de musgos, liquens e parasitas. Certas ĂĄrvores dopomar tinham donos. Havia a cĂ©lebre pitangueira da EmĂlia,as trĂȘs jabuticabeiras de Pedrinho, a mangueira de manga-espada de Narizinho e os pĂ©s de mamĂŁo de tia NastĂĄcia. AtĂ© oVisconde tinha sua ĂĄrvore â um pezinho de romĂŁ muito feioe raquĂtico. O resto das ĂĄrvores nĂŁo eram de ninguĂ©m â eram de todos. E quantas! Cambucazeiros, duas jaqueiras, ospĂ©s de cabeluda e grumixama, os trĂȘs pĂ©s de sapotis e aquele
de fruta-do-conde que "nĂŁo ia por diante."
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Era tão antigo aquele pomar que os vizinhos atécaçoavam. Viviam dizendo: "O pomar de Dona Benta estå tãovelho que qualquer dia se pÔe a caducar. As jaqueirascomeçam a dar manga e as mangueiras a dar laranjas." Mas
Dona Benta nĂŁo fazia caso. NĂŁo admitia que se cortasse umasĂł ĂĄrvore â nem o pobre pĂ© de fruta-do-conde encarangado.Dizia que cada uma delas lembrava qualquer coisa da suameninice ou mocidade.
â Este pĂ© de laranja-baiana â costumava dizer â foi oprimeiro que tivemos aqui, e dele saĂram os enxertos dosoutros. Naquele tempo laranja-baiana era uma grandenovidade. A muda foi presente do defunto ZĂ© das Bichas, umportuguĂȘs muito trabalhador que morava numa chĂĄcara
perto da vila.ImpossĂvel haver no mundo lugar mais sossegado efresco, e mais cheio de passarinhos, abelhas e borboletas.Como Dona Benta nunca admitiu por ali nenhum menino deestilingue, a passarinhada se sentia Ă vontade e fazia seusninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. O prĂłpriobodoque de Pedrinho nĂŁo funcionava no pomar.
â E que passarinhos havia? â Oh, tantos!... No tempo das laranjas o pomar enchia-
se de sabiĂĄs de peito vermelho, amigos de cantar a cĂ©lebremĂșsica-de-sabiĂĄ que os pais vĂŁo ensinando aos filhotes,sempre igualzinha, sem a menor mudança. E havia ossanhaços cor de cinza clara. E as saĂras azuis. E as graĂșnaspretĂssimas. E muito canĂĄrio-da-terra, muito papa--capim,tisio, pintassilgo, rolinha, corruĂla...
As corruĂlas eram o encanto da menina, que vivia aobservar o jeitinho delas no constante escarafunchamentodos muros carunchados em busca de pequenas aranhas e
outros bichinhos moles. Bichinho duro corruĂla nĂŁo quer. Esempre com as penas da cauda erguidas, ninguĂ©m sabe porquĂȘ. CorruĂlas cor de telha e mansĂssimas. HĂĄ tambĂ©m alinda corruĂla do brejo, que faz aqueles enormes ninhosespinhentos â mas essas nunca apareciam no pomar.Moravam nos brejos.
Ăs vezes pousavam lĂĄ, de passagem, um ou outro tiĂ©-sangue, o passarinho mais lindamente vermelho que existe.Mas nĂŁo se demoravam. Eram arisquĂssimos.
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â Por que, vovĂł, justamente os passarinhos maisbonitos sĂŁo os mais ariscos? â perguntou certa vez amenina.
â Justamente por serem bonitos, minha filha. Os
homens perseguem os passarinhos bonitos porque sĂŁobonitos â quem quer saber de passarinho feio? Os tico-ticos,por exemplo: vivem na maior paz em todos os terreiros justamente porque ninguĂ©m os persegue. SĂŁo feinhos, oscoitados. Mas apareça aqui um tiĂ©-sangue, ou uma saĂradaquelas lindas: todos se pĂ”em atrĂĄs deles, querendoapanhĂĄ-los vivos ou mortos. Para a felicidade neste nossomundo, minha filha, nĂŁo hĂĄ como ser tico-tico, isto Ă©, feinhoe insignificante ...
Mas o rei do pomar era o joĂŁo-de-barro. Na paineiragrande, bem lĂĄ no fundo, moravam dois num ninho feito deargila, em forma de forno de assar pĂŁo. Era o casal maisamigo possĂvel. NĂŁo se largavam nunca. Onde estava um,tambĂ©m estava por perto o outro. E se por acaso um seafastava um pouco mais, volta e meia soltava uns gritos comoquem pergunta: "Onde vocĂȘ estĂĄ" â e o outro respondia:"Estou aqui". E de vez em quando cantavam juntos aquelesterrĂvel dueto que mais parece uma sĂ©rie de marteladas
estridentes e alegres,. â Que coisa interessante, vovĂł! â disse Pedrinho umdia. â Repare que eles sempre cantam ou gritam juntos. Umfaz uma parte e outro faz o acompanhamento, como nopiano...
E era assim mesmo. São tão amigos que até para cantar"cantam a duas mãos", como dizia a boneca.
Certo ano o casal resolveu construir um ninho novo emoutro galho da paineira, e durante quinze dias o divertimento
dos meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho. Osdois passarinhos traziam da beira do ribeirão um pelote debarro no bico, e ficavam ali a colocar aquela massa no lugarpróprio, e a bicå-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha.Enquanto um se ocupava naquilo, o outro voava em busca demais barro. Nunca estavam os dois no mesmo serviço;revezavam-se. à tardinha interrompiam o trabalho, cantavamo dueto com toda a força e depois se acomodavam no ninhovelho. Tia Naståcia vivia dizendo que nos domingos eles não
trabalhavam, mas infelizmente os meninos nĂŁo puderam tirara prova duma coisa tĂŁo linda.
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O mais curioso foi que depois de acabado o ninho novo,eles, em vez de se mudarem, resolveram fazer um segundoninho em cima daquele. Quem primeiro notou isso foi oVisconde, que foi, todo assanhado, contar a Dona Benta.
â Venham ver â disse o sabuguinho. â Elesterminaram ontem a construção do ninho novo, mas nĂŁo semudaram do velho; em vez disso estĂŁo a construir umsegundo ninho sobre o novo â uma espĂ©cie de segundoandar.
Dona Benta foi com os meninos e viu. â Por que serĂĄ, vovĂł? â quis saber Pedrinho. â NĂŁo sei, meu filho, mas eles devem ter lĂĄ as suas
razÔes.
â Eu sei â berrou EmĂlia. â Ă para alugar!... Todos riram-se. â Eu acho â disse Narizinho â que Ă© para acomodar
os filhotes quando chegarem ao ponto de voar. â Isso nĂŁo â observou Dona Benta. â Porque se os
pais construĂssem casa para os filhos, estes nĂŁo aprenderiama arte da construção e essa arte se perderia. Ă fazendo que seaprende, jĂĄ disse o velho CamĂ”es.
â Mas entĂŁo esses passarinhos raciocinam, vovĂł â tĂȘm
inteligĂȘncia... â EstĂĄ claro que tĂȘm, meu filho. A inteligĂȘncia Ă© umafaculdade que aparece em todos os seres, nĂŁo sĂł no homem.AtĂ© as plantas revelam inteligĂȘncia. O que hĂĄ Ă© que ainteligĂȘncia varia muito de grau. Ă pequeninĂssima nasgalinhas e nos perus, mas jĂĄ bem desenvolvida no joĂŁo-de-barro â e Ă© um colosso num homem como Isaac Newton,aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.
No terreiro do sĂtio, em frente Ă varanda, havia sempre
um mastro de São João, que Pedrinho fincava na véspera dodia desse santo, a 24 de junho, quando vinha pelas férias. Elemesmo cortava o pau no mato, ele mesmo o descascava epintava inteirinho, com arabescos vermelhos, amarelos eazuis. No topo do mastro colocava a "bandeira de São João",que era um quadrado de sarrafo, espécie de moldura, na qualpregava com tachinhas um retrato de São João meninote comum cordeirinho no braço. Essas bandeiras, estampadas emmorim, custavam $1,50 na venda do Elias Turco, lå na
estrada.
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O terreiro era vedado por uma cerca de paus-a-pique â rachĂ”es de guarantĂŁ. Bem no centro ficava a porteira. Para lĂĄda porteira era o pasto, onde havia um cĂ©lebre cupim demetro e meio de altura; e mais adiante, um velho cedro ainda
do tempo da mata virgem. AtravĂ©s do pasto seguia o"caminho" â ou a estrada que ia ter Ă vila, a lĂ©gua e meiadali. No fim do pasto, perto da ponte, apareciam a casinha dotio BarnabĂ© e a figueira grande; e bem lĂĄ adiante, o CapoeirĂŁodos Tucanos, uma verdadeira mata virgem onde atĂ© onça,macucos e jacus havia.
E que mais? Ah, sim, o ribeirĂŁo que passava pela casado tio BarnabĂ© cortava o pasto e vinha fazer as divisas dopomar com as terras de plantação. ImpossĂvel haver no
mundo um ribeirĂŁo mais lindo, de ĂĄgua mais limpa, comtantas pedrinhas roliças de todas as cores no fundo. Emcertos pontos viam-se pequenas praias de areia branca. Nascurvas a ĂĄgua quase que parava, formando os cĂ©lebres"poços" onde Pedrinho pescava lambaris e bagres. As beirasde ĂĄgua rasa eram a zona dos guarus â o peixinho menorque existe.
Aos domingos tia NastĂĄcia saĂa a mariscar de peneira.Os meninos davam pulos de alegria. A boa negra metia-se na
ĂĄgua atĂ© Ă cintura e ia descendo o ribeirĂŁo, com eles aacompanhĂĄ-la da margem, aos gritos. â Aqui, NastĂĄcia, aqui nestes capinzinhos...A negra, muito cautelosamente, mergulhava a peneira
por baixo dos capinzinhos boiantes e suspendia-a de repente,de surpresa. A ĂĄgua escoava-se pelos furos e na peneiraaparecia uma porção de vidinhas aquĂĄticas, a saltar eespernejar: guarus barrigudinhos, lambarizinhos novos,pequeninas traĂras e de vez em quando um baratĂŁo-d'ĂĄgua
muito casquento e feio. E outros bichinhos ainda,incompreensĂveis e sem nome. Certo dia a peneira trouxeuma cobra-d'ĂĄgua verde, que a negra jogou sob o capim damargem. Foi uma gritaria e uma correria das crianças.
â NĂŁo tenham medo que nĂŁo Ă© venenosa! â disse anegra rindo-se com toda a gengivada vermelha de fora. Masos meninos nĂŁo quiseram saber de nada. Ficaram a espiar delonge. A cobra verde foi coleando por entre os capins e sesumiu de novo na ĂĄgua.
O mais importante daquelas mariscagens eram oscamarÔezinhos de ågua doce, moles e transparentes, que tia
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Naståcia apanhava em quantidade A carregadeira dosamburå (a cestinha redondinha que os mariscadores usampara recolher o peixe) era sempre Narizinho. A menina iapassando os camarÔes da peneira para o samburå, com
muito medo de ser mordida. SĂł os agarrava pelos fios dabarba. Pedrinho ria-se: "Boba! Onde se vĂȘem camarĂŁomorder?" E ela: "A gente nunca sabe ..."
No jantar daqueles domingos, quando aparecia na mesao prato-travessa cheio de camarĂ”ezinhos fritos, bempururucas e vermelhos, as crianças atĂ© sapateavam de gosto.E se com os camarĂ”ezinhos vinha alguma pequena traĂra oubagre, a disputa era certa.
â A traĂra Ă© minha! â berrava um.
â Ă minha, Ă© minha! â gritava outro. O remĂ©dio erasempre uma das cĂ©lebres sentenças de SalomĂŁo de DonaBenta.
â Como vocĂȘs sĂŁo dois e a traĂra Ă© uma sĂł, eu como atraĂra e vocĂȘs repartem os camarĂ”es.
Cessava incontinenti a disputa, e a travessa de camarãoia diminuindo, diminuindo, até não ficar nem um fio debarba.
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CapĂtulo III
Medo de saci
Pedrinho, naqueles tempos, costumava passar as fĂ©riasno sĂtio de Dona Benta, onde brincava de tudo, como estĂĄ nasREINAĂĂES de Narizinho e na VIAGEM AO CĂU. SĂł nĂŁo estĂĄcontado o que lhe aconteceu antes da famosa viagem ao cĂ©u,quando andava com a cabeça cheia de sacis.
A coisa foi assim. Estava ele na varanda com os olhos nohorizonte, postos lĂĄ onde aparecia o verde-escuro doCapoeirĂŁo dos Tucanos, a mata virgem do sĂtio. De repente,
disse: â VovĂł, eu ando com idĂ©ias de ir caçar na mata virgem.Dona Benta, ali na sua cadeirinha de pernas cotĂłs,
entretida no tricĂŽ, ergueu os Ăłculos para a testa. â NĂŁo sabe que naquela mata hĂĄ onças? â disse com
ar sĂ©rio â Certa vez uma onça pintada veio de lĂĄ, invadiuaqui o pasto e pegou um lindo novilho da vaca Mocha.
â Mas eu nĂŁo tenho medo de onça, vovĂł! â exclamouPedrinho, fazendo o mais belo ar de desprezo.
Dona Benta riu-se de tanta coragem. â Olhem o valentĂŁo! Quem foi que naquela tarde entrou
aqui berrando com uma ferroada de vespa na ponta do nariz? â Sim, vovĂł, de vespa eu tenho medo, nĂŁo nego â mas
de onça, não! Se ela vier do meu lado, prego-lhe umapelotada do meu bodoque novo no olho esquerdo; e outrabem no meio do focinho e outra...
â Chega! â interrompeu Dona Benta, com medo delevar tambĂ©m uma pelotada. â Mas alĂ©m de onças existem
cobras. Dizem que atĂ© urutus hĂĄ naquele mato. â Cobra? â e Pedrinho fez outra cara de pouco caso
ainda maior. â Cobra mata-se com um pedaço de pau, vovĂł.Cobra!... Como se eu lĂĄ tivesse medo de cobra...
Dona Benta começou a admirar a coragem do neto, masdisse ainda:
â E hĂĄ aranhas caranguejeiras, daquelas peludas,enormes, que devoram atĂ© filhotes de passarinho.
O menino cuspiu de lado com desprezo e esfregou o pé
em cima.
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â Aranha mata-se assim, vovĂł â e seu pĂ© pareciamesmo estar esmagando vĂĄrias aranhas caranguejeiras.
â E tambĂ©m hĂĄ sacis â rematou Dona Benta.Pedrinho calou-se. Embora nunca o houvesse
confessado a ninguém, percebia-se que tinha medo de saci.Nesse ponto não havia nenhuma diferença entre ele, que erada cidade, e os demais meninos nascidos e crescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as histórias correntesa respeito do endiabrado moleque duma perna só.
Desde esse dia ficou Pedrinho com o saci na cabeça.Vivia falando em saci e tomando informaçÔes a respeito.Quando consultou tia Naståcia, a resposta da negra foi,depois de fazer o pelo-sinal e dizer "Credo!".
â Pois saci, Pedrinho, Ă© uma coisa que branco dacidade nega, diz que nĂŁo hĂĄ â mas hĂĄ. NĂŁo existe negrovelho por aĂ, desses que nascem e morrem no meio do mato,que nĂŁo jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quemviu.
â Quem? â O tio BarnabĂ©. Fale com ele. Negro sabido estĂĄ ali!
Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem â de tudo.
Pedrinho ficou pensativo.
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CapĂtulo IV
Tio Barnabé
Tio BarnabĂ© era um negro de mais de oitenta anos quemorava no rancho coberto de sapĂ© lĂĄ junto da ponte.Pedrinho nĂŁo disse nada a ninguĂ©m e foi vĂȘ-lo. Encontrou-osentado, com o pĂ© direito num toco de pau, Ă porta de suacasinha, aquentando sol.
âTio BarnabĂ© eu vivo querendo saber duma coisa eninguĂ©m me conta direito. Sobre o saci. SerĂĄ mesmo queexiste saci?
O negro deu uma risada gostosa e, depois de encher defumo picado o velho pito, começou a falar:
â Pois, Seu Pedrinho, saci Ă© uma coisa que eu juro que"exĂ©ste". Gente da cidade nĂŁo acredita â mas "exĂ©ste". Aprimeira vez que vi saci eu tinha assim a sua idade. Isso foino tempo da escravidĂŁo, na Fazenda do Passo Fundo, que erado defunto Major TeotĂŽnio, pai desse Coronel Teodorico,compadre de sua avĂł, Dona Benta. Foi lĂĄ que vi o primeirosaci. Depois disso, quantos e quantos!...
â Conte, entĂŁo, direitinho, o que Ă© o saci. Bem tiaNastĂĄcia me disse que o senhor sabia â que o senhor sabetudo...
â Como nĂŁo hei de saber tudo, menino, se jĂĄ tenhomais de oitenta anos? Quem muito "vĂ©ve", muito sabe...
â EntĂŁo conte. Que Ă©, afinal de contas, o tal saci?E o negro contou tudo direitinho. â O saci â começou ele â Ă© um diabinho de uma perna
só que anda solto pelo mundo, armando reinaçÔes de toda
sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre naboca um pito aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. Aforça dele estå na carapuça, como a força de Sanção estavanos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça deum saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.
â Mas que reinaçÔes ele faz? â indagou o menino. â Quantas pode â respondeu o negro. â Azeda o leite,
quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas deunha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das
costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima ofeijĂŁo que estĂĄ no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando
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encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espeteo pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece deruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, tambématormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os
cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não fazmaldade grande, mas não hå maldade pequenina que nãofaça.
â E a gente consegue ver o saci? â Como nĂŁo? Eu, por exemplo, jĂĄ vi muitos. Ainda no
mĂȘs passado andou por aqui um saci mexendo comigo â porsinal que lhe dei uma lição de mestre...
â Como foi? Conte... Tio BarnabĂ© contou.
â Tinha anoitecido e eu estava sozinho em casa,rezando as minhas rezas. Rezei, e depois me deu vontade decomer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga demilho bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus acaçarola no fogo e vim para este canto picar fumo pro pito.Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que nĂŁo me engana."Vai ver que Ă© saci!" â pensei comigo. â E era mesmo. Dali apouco um saci preto que nem carvĂŁo, de carapuça vermelha epitinho na boca, apareceu na janela. Eu imediatamente me
encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espioude um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veiovindo, chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos econvenceu-se de que eu estava mesmo dormindo. Entãocomeçou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulhervelha, sempre farejando o ar com o seu narizinho muitoaceso. Nisto o milho começou a chiar na caçarola e eledirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da caçarola,fazendo micagens. Estava "rezando" o milho, como se diz. E
adeus, pipoca! Cada grĂŁo que o saci reza nĂŁo rebenta mais,vira piruĂĄ.Dali saiu pra bulir numa ninhada de ovos que a minha
carijó calçuda estava chocando num balaio velho, naquelecanto. A pobre galinha quase que morreu de susto. Fez cró,cró, cró ... e voou do ninho feito uma louca, mais arrepiadaque um ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos etodos goraram.
Em seguida pĂŽs-se a procurar o meu pito de barro
Achou o pito naquela mesa, pĂŽs uma brasinha dentro e
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paque, paque, paque ... tirou justamente sete fumaçadas. Osaci gosta muito do nĂșmero sete.
Eu disse cĂĄ comigo: "Deixe estar, coisa-ruinzinho, queeu ainda apronto uma boa para vocĂȘ. VocĂȘ hĂĄ de voltar outro
dia e eu te curo."E assim aconteceu. Depois de muito virar e mexer, osacizinho foi-se embora e eu fiquei armando o meu planopara assim que ele voltasse.
â E voltou? â inquiriu Pedrinho. â Como nĂŁo? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui
outra vez Ă s mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meusroncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, comoda primeira vez, e depois foi atrĂĄs do pito que eu tinha
guardado no mesmo lugar. PĂŽs o pito na boca e foi ao fogĂŁobuscar uma brasinha, que trouxe dançando nas mĂŁos. â Ă verdade que ele tem as mĂŁos furadas? â Ă, sim. Tem as mĂŁos furadinhas bem no centro da
palma; quando carrega brasa, vem brincando com ela,fazendo ela passar de uma para a outra mĂŁo pelo furo. Trouxe a brasa, pĂŽs a brasa no pito e sentou-se de pernascruzadas para fumar com todo o seu sossego.
â Como? â exclamou Pedrinho arregalando os olhos. â
Como cruzou as pernas, se saci tem uma perna sĂł? â Ah, menino, mecĂȘ nĂŁo imagina como saci Ă© arteiro!... Tem uma perna sĂł, sim, mas quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! SĂŁo coisas que sĂł ele entende eninguĂ©m pode explicar. Cruzou as pernas e começou a tirarbaforadas, uma atrĂĄs da outra, muito satisfeito da vida. Masde repente, puff! Aquele estouro e aquela fumaceira! ... O sacideu tamanho pinote que foi parar lĂĄ longe, e saiu ventandopela janela a fora.
Pedrinho fez cara de quem nĂŁo entende. â Mas que puff foi esse? â perguntou. â NĂŁo estouentendendo...
â Ă que eu tinha socado pĂłlvora no fundo do pito â exclamou tio BarnabĂ© dando uma risada gostosa. A pĂłlvoraexplodiu justamente quando ele estava tirando a fumaçadanĂșmero sete, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-separa nunca mais voltar.
â Que pena â exclamou Pedrinho. â Tanta vontade
que eu tinha de conhecer esse saci...
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â Mas nĂŁo hĂĄ sĂł um saci no mundo, menino. Esse lĂĄ sefoi e nunca mais aparece por estas bandas, mas quantosoutros nĂŁo andam por aĂ? Ainda na semana passadaapareceu um no pasto de Seu Quincas Teixeira e chupou o
sangue daquela Ă©gua baia que tem uma estrela na testa. â Como Ă© que ele chupa o sangue dos animais? â Muito bem. Faz um estribo na crina, isto Ă©, dĂĄ uma
laçada na crina do animal de modo que possa enfiar o pĂ© emanter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias dopescoço e chupar o sangue, como fazem os morcegos. Opobre animal assusta-se e sai pelos campos na disparada,correndo atĂ© nĂŁo poder mais. O Ășnico meio de evitar isso Ă©botar bentinho no pescoço dos animais.
â Bentinho Ă© bom? â Ă um porrete. Dando com cruz ou bentinho pelafrente, saci fede enxofre e foge com botas-de-sete-lĂ©guas.
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CapĂtulo V
Pedrinho Pega Um Saci
Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversaque dali por diante só pensava em saci, e até começou aenxergar sacis por toda parte. Dona Benta caçoou, dizendo:
â Cuidado! JĂĄ vi contar a histĂłria de um menino quede tanto pensar em saci acabou virando saci...
Pedrinho não fez caso da história, e um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar um. Foi de novo em procura dotio Barnabé.
â Estou resolvido a pegar um saci â disse ele â equero que o senhor me ensine o melhor meio.
Tio BarnabĂ© riu-se daquela valentia. â Gosto de ver um menino assim. Bem mostra que Ă©
neto do defunto sinhÎ velho, um homem que não tinha medonem de mula-sem-cabeça. Hå muitos jeitos de pegar saci,mas o melhor é o de peneira. Arranja-se uma peneira decruzeta...
â Peneira de cruzeta? â interrompeu o menino. â Que
Ă© isso? â Nunca reparou que certas peneiras tĂȘm duas
taquaras mais largas que se cruzam bem no meio e servempara reforço? Olhe aqui â e tio BarnabĂ© mostrou ao meninouma das tais peneiras que estava ali num canto. Pois bem,arranja-se uma peneira destas e fica-se esperando um dia devento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhassecas. Chegada essa ocasiĂŁo, vai-se com todo o cuidado parao rodamoinho e zĂĄs ! â joga-se a peneira em cima. Em todos
os rodamoinhos hå saci dentro, porque fazer rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.
â E depois? â Depois, se a peneira foi bem atirada e o saci ficou
preso, Ă© sĂł dar jeito de botar ele dentro de uma garrafa earrolhar muito bem. NĂŁo esquecer de riscar uma cruzinha narolha, porque o que prende o saci na garrafa nĂŁo Ă© a rolha esim a cruzinha riscada nela. Ă preciso ainda tomar acarapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem
carapuça é como cachimbo sem fumo. Eu jå tive um saci nagarrafa, que me prestava muitos bons serviços. Mas veio aqui
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um dia aquela mulatinha sapeca que mora na casa docompadre BastiĂŁo e tanto lidou com a garrafa que a quebrou.Bateu logo um cheirinho de enxofre. O perneta pulou emcima da sua carapuça, que estava ali naquele prego, e âatĂ©
logo, tio BarnabĂ©!âDepois de tudo ouvir com a maior atenção, Pedrinhovoltou para casa decidido a pegar um saci, custasse o quecustasse. Contou o seu projeto a Narizinho e longamentediscutiu com ela sobre o que faria no caso de escravizar umdaqueles terrĂveis capetinhas. Depois de arranjar uma boapeneira de cruzeta, ficou Ă espera do dia de SĂŁo Bartolomeu,que Ă© o mais ventoso do ano.
Custou a chegar esse dia, tal era sua impaciĂȘncia, mas
afinal chegou, e desde muito cedo Pedrinho foi postar-se noterreiro, de peneira em punho, Ă espera de rodamoinhos. NĂŁoesperou muito tempo. Um forte rodamoinho formou-se nopasto e veio caminhando para o terreiro.
â Ă hora! â disse Narizinho. â Aquele que vem vindoestĂĄ com muito jeito de ter saci dentro.
Pedrinho foi se aproximando pĂ© ante pĂ© e, de repente,zĂĄs! â jogou a peneira em cima.
â Peguei! â gritou no auge da emoção, debruçando-se
com todo o peso do corpo sobre a peneira emborcada. â Peguei o saci!...A menina correu a ajudĂĄ-lo. â Peguei o saci! â repetiu o menino vitoriosamente. â
Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixeina varanda. Depressa!
A menina foi num pĂ© voltou noutro. â Enfie a garrafa dentro da peneira â ordenou
Pedrinho â enquanto eu cerco dos lados. Assim! Isso!...
A menina fez como ele mandava e com muito jeito agarrafa foi introduzida dentro da peneira. â Agora tire do meu bolso a rolha que tem uma cruz
riscada em cima â continuou Pedrinho. â Essa mesma. DĂȘcĂĄ.
Pela informação do tio BarnabĂ©, logo que a gente pĂ”e agarrafa dentro da peneira o saci por si mesmo, entra dentrodela, porque, como todos os filhos das trevas, tem atendĂȘncia de procurar sempre o lugar mais escuro. De modo
que Pedrinho o mais que tinha a fazer era arrolhar a garrafa eerguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitĂłria de quem
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houvesse conquistado um império que levantou no ar agarrafa para examinå-la contra a luz.
Mas a garrafa estava tĂŁo vazia como antes. Nem sombrade saci dentro...
A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho, muitodesapontado, foi contar o caso ao tio BarnabĂ©. â E, assim mesmo â explicou o negro velho. â Saci na
garrafa Ă© invisĂvel. A gente sĂł sabe que ele estĂĄ lĂĄ dentroquando a gente cai na modorra. Num dia bem quente,quando os olhos da gente começam a piscar de sono, o sacipega a tomar forma, atĂ© que fica perfeitamente visĂvel. Edesse momento em diante que a gente faz dele o que quer.Guarde a garrafa bem fechada, que garanto que o saci estĂĄ
dentro dela.Pedrinho voltou para casa orgulhosĂssimo com a suafaçanha.
â O saci estĂĄ aqui dentro, sim â disse ele a Narizinho, â Mas estĂĄ invisĂvel, como me explicou tio BarnabĂ©. Para agente ver o capetinha Ă© preciso cair na modorra â e repetiuas palavras que o negro lhe dissera.
Quem nĂŁo gostou da brincadeira foi a pobre tiaNastĂĄcia. Como tinha um medo horrĂvel de tudo quanto era
mistĂ©rio, nunca mais chegou nem na porta do quarto dePedrinho. â Deus me livre de entrar num quarto onde hĂĄ garrafa
com saci dentro! Credo! Nem sei como Dona Benta consentesemelhante coisa em sua casa. NĂŁo parece ato de cristĂŁo...
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CapĂtulo VI
A modorra
Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que ia visitar otio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgemde seus sonhos. Nem o bodoque levou consigo. "Para quebodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhordo que quanto canhão ou metralhadora existe?"
Que beleza! Pedrinho nunca supĂŽs que uma florestavirgem fosse tĂŁo imponente. Aquelas ĂĄrvores enormes,velhĂssimas, barbadas de musgos e orquĂdeas; aquelas raĂzes
de fora dando idéia de monstruosas sucuris; aqueles cipóstorcidos como se fossem redes; aquela galharada, aquelafolharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra,lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou.
Volta e meia ouvia um rumor estranho, de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a folhagem, ou entĂŁo, de algumgalho podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço â brah, ah, ah... â esborrachar-se no chĂŁo.
E quantas borboletas, das azuis, como cauda de pavĂŁo;
das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, cor de gemade ovo!
E pĂĄssaros! Ora um enorme tucano de bico maior que ocorpo e lindo papo amarelo. Ora um pica-pau, queinterrompia o seu trabalho de bicar a madeira de um troncopara atentar no menino com interrogativa curiosidade.
AtĂ© um bando de macaquinhos ele viu, pulando de galhoem galho com incrĂvel agilidade e balançando-se, penduradospela cauda, como pĂȘndulos de relĂłgio.
Pedrinho foi caminhando pela mata adentro atĂ© alcançarum ponto onde havia uma ĂĄgua muito lĂmpida, que corria,cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedrasverdoengas de limo. Em redor erguiam-se as esbeltassamambaiaçus, esses fetos enormes que parecem palmeiras.E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelochĂŁo!
Encantado com a beleza daquele sĂtio, o menino paroupara descansar. Juntou um monte de folhas caĂdas; fez
cama; deitou-se de barriga para o ar e mĂŁos cruzadas nanuca. E ali ficou num enlevo que nunca sentira antes,
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pensando em mil coisas em que nunca pensara antes,seguindo o vĂŽo silencioso das grandes borboletas azuis eembalando-se com o chiar das cigarras.
De repente notou que o saci dentro da garrafa fazia
gestos de quem quer dizer qualquer coisa.Pedrinho nĂŁo se admirou daquilo. Era tĂŁo natural que ocapetinha afinal aparecesse...
â Que aconteceu que estĂĄ assim inquieto, meu carosaci? â perguntou-lhe em tom brincalhĂŁo.
â Aconteceu que este lugar Ă© o mais perigoso dafloresta; e que se a noite pilhar vocĂȘ aqui, era uma vez o netode Dona Benta...
Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe pelo fio da
espinha. â Por quĂȘ? â perguntou, olhando ressabiadamentepara todos os lados.
â Porque Ă© justamente aqui o coração da mata, pontode reuniĂŁo de sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e atĂ© damula-sem-cabeça. Sem meu socorro vocĂȘ estarĂĄ perdido,porque nĂŁo hĂĄ mais tempo para voltar para casa, nem vocĂȘsabe o caminho. Mas o meu auxĂlio eu sĂł darei sob umacondição...
â JĂĄ sei, restituir a carapuça â adiantou Pedrinho. â Isso mesmo. Restituir-me a carapuça e com ela aliberdade. Aceita?
Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a perder um sacique tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outroremédio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci olivrasse dos perigos da noite e pela manhã o reconduzisse,são e salvo, à casa de Dona Benta.
â Muito bem â disse o saci. â Mas nesse caso vocĂȘ
tem de abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidadede ação. VocĂȘ jurou que me liberta; eu dou minha palavra desaci que mesmo solto o ajudarei em tudo. Depois oacompanharei atĂ© o sĂtio para receber minha carapuça edespedir-me de todos.
Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventuratratou-o mais como um velho camarada do que como umescravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pÎs-se adançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino
ficou arrependido de por tantos dias ter conservado presauma criaturinha tĂŁo irrequieta e amiga da liberdade.
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â Vou revelar os segredos da mata virgem â disse-lhe osaci â e talvez seja vocĂȘ a primeira criatura humana aconhecer tais segredos. Para começar, temos de ir aoâsacizeiroâ onde nasci, onde nasceram meus irmĂŁos e onde
todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o solestĂĄ fora. O sol Ă© o nosso maior inimigo. Seus raiosespantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternosnamorados da lua. Ă por isso que os poetas nos chamam defilhos das trevas. Sabe o que Ă© trevas?
â Sei. O escuro, a escuridĂŁo. _ Pois Ă© isso. Somos filhos das trevas, como os beija-
flores, os sabiĂĄs e as abelhas sĂŁo filhos do Sol.Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada
moita de taquaraçus existente num dos pontos mais espessosda floresta.Pedrinho assombrou-se diante das dimensÔes daqueles
gomos quase da sua altura e grossos que nem uma laranja deumbigo.
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CapĂtulo VII
A sacizada
â Ă aqui, dentro destes gomos, que se geram e crescemmeus irmĂŁos de uma perna sĂł â disse o saci. â Quandochegam em idade de correr mundo, furam os gomos e saltamfora. Repare quantos gomos furados. De cada um deles jĂĄsaiu um saci.
Pedrinho viu que era exato o que ele dizia, mostroudesejos de abrir um gomo para espiar um sacizinho novoainda preso lĂĄ dentro.
â Vou satisfazer a sua curiosidade, Pedrinho, mas nĂŁoposso revelar o segredo de furar os gomos; portanto, vire-sede costas.
O menino virou-se de costas, assim ficando atĂ© que osaci dissesse â âPronto!â SĂł entĂŁo desvirou-se e com grandeadmiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.
â Posso espiar? â perguntou. â Espie, mas com um olho sĂł â respondeu o saci. â Se
espiar com os dois, o sacizinho acorda e joga nos seus olhos a
brasa do pitinho.O menino assim fez. Espiou com um olho sĂł e viu um
sacizinho do tamanho de um camundongo jå de pitinho acesona boca e carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido nofundo do gomo.
â Que galanteza! â exclamou Pedrinho. â Que pena opovo lĂĄ de casa nĂŁo estar aqui para ver esta maravilha!
â Esse sacizinho ainda fica aĂ durante quatro anos. Aconta da nossa vida dentro dos gomos sĂŁo de sete anos.
Depois saĂmos para viver no mundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade viramos cogumelos venenosos,ou orelhas-de-pau.
Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizinhoadormecido e ali ficaria horas se o saci nĂŁo puxasse pelamanga.
â Chega â disse ele. â Vire-se de costas outra vez, queĂ© tempo de fechar a janelinha.
Pedrinho obedeceu, e quando de novo olhou nĂŁo
conseguiu perceber no gomo do taquaruçu o menor sinal da janelinha.
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Justamente nesse instante um formidĂĄvel miado de gatoferiu os seus ouvidos.
â Ă o jaguar! â exclamou o saci. â Trepemos depressanuma ĂĄrvore, porque ele vem vindo nesta direção.
Pedrinho, tomado de pĂąnico, fez gesto de subir naprimeira ĂĄrvore que viu Ă sua frente, um velho jacarandĂĄcoberto de barbas-de-pau.
â Nessa, nĂŁo! âberrou o saci. â Ă muito grossa; o jaguar treparia atrĂĄs de nĂłs. Temos que escolher uma decasca bem lisa e tronco esguio. Aquele guarantĂŁ ali estĂĄĂłtimo â concluiu, apontando para uma ĂĄrvore bastante altae magrinha de tronco, que se via Ă esquerda.
Subiram â e nunca em sua vida Pedrinho subiu tĂŁo
depressa em uma ĂĄrvore! Tinha a impressĂŁo de que o terrĂveltigre dos sertĂ”es estava atrĂĄs dele, jĂĄ de boca aberta, para oengolir vivo. Mas era ilusĂŁo apenas, filha do medo, pois a feramiou outra vez e o saci calculou pelo som que ainda deveriaestar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como pĂŽde numaforquilha da ĂĄrvore, lĂĄ ficando quietinho ao lado do saci.
Preparou-se para ver uma fera sobre a qual vivia falandomas sem ter a respeito idéia justa. Ia ver a famosa onça-pintada, esse gatão que muito lembra a pantera das matas da
Ăndia.
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CapĂtulo VIII
A onça
O miado soou de novo, desta vez bem perto, e logodepois surgiu, por entre as folhas a cabeça de uma formidĂĄvelonça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tĂŁogrande como o tigre de Bengala. Parou; farejou o ar. Depoisergueu os olhos para a ĂĄrvore. Dando com o menino e o sacilĂĄ em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz:"Achei o meu jantar!" E tentou subir Ă ĂĄrvore. Vendo que issolhe era impossĂvel, sacudiu o tronco tĂŁo violentamente que
por um triz Pedrinho nĂŁo veio abaixo, como se fosse jacamadura. Mas nĂŁo caiu, e a onça, desanimada, resolveuesperar que ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e alificou quieta, sĂł movendo a cauda e passando de quando emquando a lĂngua pelos beiços.
â Ela Ă© capaz de permanecer nessa posição trĂȘs dias etrĂȘs noites â disse o saci. â Temos que inventar um meio deafugentĂĄ-la.
Olhou em redor, examinando as ĂĄrvores como quem
estĂĄ com uma idĂ©ia na cabeça. Depois saltou para a maisprĂłxima e foi de copa em copa atĂ© uma que estava cheia degrandes vagens. Escolheu meia dĂșzia das mais secas e voltoupara junto do menino.
â Apare nas mĂŁos o pĂł que vou deixar cair destasvagens â disse ele, abrindo com os dentes uma delas.
Pedrinho estendeu as mĂŁos em forma de cuia e o sacisacudiu dentro um pĂł amarelado. O mesmo foi feito com asoutras vagens.
â Bem. Agora derrame este pĂł bem a prumo, de modoque vĂĄ cair sobre a cara da onça.
Pedrinho colocou-se em linha vertical com ĂĄ fera ederramou de um jato o pĂł amarelo.
Foi uma beleza aquilo! Quando o pó caiu sobre os olhosda onça, ela deu tamanho pinote que foi parar a cinco metrosde distùncia, sumindo-se em seguida pelo mato adentro, aurrar de dor e a esfregar os olhos como se quisesse arrancå-los.
Pedrinho deu uma risada gostosa.
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â Que diabo de pĂł Ă© este, amigo saci? â perguntou. â Vejo que vale mais que uma boa carabina...
â Isso se chama pĂł-de-mico. Arde nos olhos comopimenta e dĂĄ na pele uma tal coceira que a vĂtima atĂ© se
coçara com um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance damão.Pedrinho escorregou da årvore abaixo, ainda a rir-se da
pobre onça. Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dadoalguns passos, recuou espavorido.
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CapĂtulo IX
A sucuri
â Um monstro! Acuda, saci! Um monstro com corpo decobra e cabeça de boi!... â gritou Pedrinho, trepando de novono guarantĂŁ com velocidade ainda maior que da primeira vez.
O saci foi ver o que era e voltou dizendo: â Ă uma sucuri que acaba de engolir um boi. Desça
que nĂŁo hĂĄ perigo. Ela estĂĄ dormindo e dormirĂĄ assim doisou trĂȘs meses atĂ© que o boi esteja digerido.
Apesar da confiança que o saci lhe merecia, o menino foi
pulando de årvore em årvore para só descer a cem passosdali. Mas como a tentação de ver a sucuri fosse grande, foivoltando, voltando, até chegar em ponto de onde pudesseobservå-la à vontade.
Era das maiores que se poderiam encontrar, devendo terpelo menos uns trinta metros de comprimento e a grossurada cabeça de um homem. Pedrinho não podia compreendercomo um boi inteiro pudesse caber dentro dela.
â Muito simples â explicou o saci. âA sucuri enlaça o
boi, quebra-lhe todos os ossos e amassa-o de tal maneira queo torna comprido como chouriço. Depois cobre-lhe o corpo deuma baba muito lubrificante e começa a engoli-lo sem pressa.Vai indo, vai indo, atĂ© que dĂĄ com o boi inteiro no estĂŽmago;sĂł ficam de fora a cabeça e os chifres. E leva meses assim,atĂ© que a digestĂŁo se complete. Quando estĂĄ nesse estado, asucuri nĂŁo oferece perigo nenhum, porque fica inerte, caĂdaem estado de sonolĂȘncia.
E nĂŁo foi sĂł essa cobra que Pedrinho conheceu naquele
dia. Logo depois percebeu um ruĂdo seco de guizos. Era umacascavel que passava; muito aflita, como que fugindo dealgum inimigo.
â Que serĂĄ que a estĂĄ perseguindo? â indagou ele. â Alguma muçurana â respondeu o saci. â As
muçuranas são cobras sem veneno que só se alimentam decobras venenosas. Lå vem uma!
De fato, uma muçurana de cor escura surgiu no rastroda cascavel, que foi alcançada logo adiante.
Luta terrĂvel! Pedrinho nunca imaginou um talespetĂĄculo. A muçurana enleou-se na cascavel e as duas
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rebolaram no chão como minhocas loucas. Muito tempoestiveram assim. Finalmente a cascavel morreu sufocada, e amuçurana engoliu-a inteirinha, apesar de serem ambas domesmo tamanho.
â Que horror! â exclamou Pedrinho. â A vida nestafloresta nĂŁo tem sossego. SĂł agora compreendo porque osanimais selvagens sĂŁo tĂŁo assustados. A vida deles corre umrisco permanente, de modo que sĂł escapam os que estĂŁo comtodos os sentidos sempre alertas.
â Ă o que os sĂĄbios chamam a luta pela vida. Umacriatura vive da outra. Uma come a outra. Mas para que umacriatura possa comer a outra, Ă© preciso que seja mais forte â do contrĂĄrio vai comer e sai comida.
â Mais forte sĂł? â Mais forte ou mais esperta. Aqui na mata todosprocuram ser fortes. Os que nĂŁo conseguem ser fortes,tratam de ser espertos. Na maior parte dos casos a espertezavale mais do que a força. Os sacis, por exemplo, nĂŁo sĂŁofortes â mas ninguĂ©m os vence em esperteza.
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CapĂtulo X
A floresta
â Pois assim Ă© â continuou o saci. â A lei da floresta Ă©a lei de quem pode mais â ou por ter mais força, por sermais ĂĄgil, ou por ser mais astuto. A astĂșcia, principalmente,Ă© uma grande coisa na floresta. EstĂĄ vendo ali aquelegalhinho seco?
â Sim. Um galhinho como outro qualquer â respondeuo menino.
â Pois estĂĄ muito enganado â replicou o saci. â NĂŁo Ă©galho nenhum, sim um bichinho que finge de galho seco paranĂŁo ser atacado pelos inimigos.
Pedrinho nĂŁo quis acreditar, mas cutucando o galhinhoviu que ele se mexia. Ficou assombrado da esperteza.
â Bem diz vovĂł que a mata Ă© perigosa! Um que nĂŁosabe hĂĄ de levar cada logro aqui...
â E aquilo? â perguntou o saci apontando para umafolha. â Que parece a vocĂȘ que aquilo Ă©?
Pedrinho olhou; viu bem que era uma folha de årvore;mas como jå estava ficando sabido nas traiçÔes da floresta,piscou para o saci e disse:
â Desta vez nĂŁo caio na esparrela. Parece que Ă© umafolha, mas com certeza Ă© outro bichinho que se disfarça emfolha.
E cutucou-a para ver se mexia. A folha, porém, não semexeu.
â Ă folha mesmo, bobinho! â disse o saci dando uma
risada. â Ainda Ă© muito cedo para vocĂȘ "ler" a mata. Isto Ă©livro que sĂł nĂłs, que aqui nascemos e vivemos toda vida,somos capazes de interpretar. Um menino da cidade, comovocĂȘ, entende tanto da natureza como eu entendo de grego.
â Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata souum perfeito bobinho. Mas deixe estar que ainda ficarei tĂŁosabido como vocĂȘ.
â Sim, com o tempo e muita observação. Quem observae estuda, acaba sabendo. Aqui, porĂ©m, nĂłs nĂŁo precisamos
estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto de tudo.Qualquer desses bichinhos que vocĂȘ vĂȘ, mal sai dos casulos e
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jĂĄ se mostra espertĂssimo, nĂŁo precisando dos conselhos dospais. Bem consideradas as coisas, Pedrinho, parece que nĂŁohĂĄ animal mais estĂșpido e lerdo para aprender do que ohomem, nĂŁo acha?
O orgulho do menino ofendeu-se com aquelaobservação. Um miseråvel saci a fazer pouco caso do rei dosanimais! Era só o que faltava...
â O que vocĂȘ estĂĄ dizendo â replicou Pedrinho â Ă©tolice pura sem mistura. O homem Ă© o rei dos animais. SĂł ohomem tem inteligĂȘncia. SĂł ele sabe construir casas de todo jeito, e mĂĄquinas, pontes, e aeroplanos, e tudo quanto hĂĄ.Ah, o homem! VocĂȘ nĂŁo sabe o que o homem Ă©, saci! Erapreciso que tivesse lido os livros que eu li em casa da vovĂł...
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CapĂtulo XI
DiscussĂŁo
O saci deu uma gargalhada. â Que gabolice! â exclamou. â Casas? Qual Ă© o
bichinho que nĂŁo constrĂłi sua casa na perfeição? Veja a dasabelhas, ou das formigas, ou os casulos. PoderĂŁo existirhabitaçÔes mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cadaum inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos,portanto, tĂȘm suas casinhas, onde ficam muito mais bemabrigados do que os homens lĂĄ nas casas deles. O caramujo,
esse então até inventou o sistema de carregar a casa à scostas. à o mais esperto. Vai andando. Assim que o perigo seaproxima, arreia a casa e mete-se dentro.
â Casa, vĂĄ lĂĄ â disse Pedrinho meio convencido. â Mas aeroplano? Que bichinho daqui seria capaz de construiraviĂ”es como nĂłs homens os construĂmos?
Outra risada do saci. â , Pedrinho, vocĂȘ estĂĄ-me saindo tĂŁo bobo que atĂ© me
causa dĂł. AviĂ”es! Pois nĂŁo vĂȘ que o aviĂŁo Ă© a mais atrasada
mĂĄquina de voar que existe? Aqui os bichinhos de asas estĂŁode tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengoscomo o tal aviĂŁo. Todos possuem no corpo um aparelho devoar aperfeiçoadĂssimo. NĂŁo vĂȘ que voam, bobo? Outro diaassisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto dumalagoa cheia de patos, quando um aviĂŁo passou voando porcima das nossas cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. VocĂȘ sabe, Pedrinho, que bicho estĂșpido Ă© o pato. Poismesmo assim um deles disse com muita sabedoria: "Parece
incrĂvel que os homens se gabem de ter inventado uma coisaque nĂłs jĂĄ usamos hĂĄ tantos milhares de anos..."
â Sim â continuou Pedrinho â mas nĂłs sabemos ler evocĂȘs nĂŁo sabem.
â Ler! E para que serve ler? Se o homem Ă© a mais bobade todas as criaturas, de que adianta saber ler? Que Ă© ler?Ler Ă© um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas queadianta a um bobo saber o que outro bobo pensou?
Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se de cĂłlera.
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â NĂŁo continue, saci! VocĂȘ estĂĄ me ofendendo. Ohomem nĂŁo Ă© nada do que vocĂȘ diz. O homem Ă© a glĂłria danatureza.
â GlĂłria da natureza! â exclamou o capetinha com
ironia. â Ou estĂĄ repetindo como papagaio o que ouviualguĂ©m falar ou entĂŁo vocĂȘ nĂŁo raciocina. Inda ontem ouviDona Benta ler num jornal os horrores da guerra na Europa.Basta que entre os homens haja isso que eles chamamguerra, para que sejam classificados como as criaturas maisestĂșpidas que existem. Para que guerra?
â E vocĂȘs aqui nĂŁo usam guerras tambĂ©m? NĂŁo vivem aperseguir e comer uns aos outros?
â Sim; um comer o outro Ă© a lei da vida. Cada criatura
tem o direito de viver e para isso estĂĄ autorizada a matar ecomer o mais fraco. Mas vocĂȘs homens fazem guerra sem sermovidos pela fome. Matam o inimigo e nĂŁo o comem. EstĂĄerrado. A lei da vida manda que sĂł se mate para comer.Matar por matar Ă© crime. E sĂł entre os homens existe isso dematar por matar â por esporte, por glĂłria, como eles dizem.Qual, Pedrinho, nĂŁo se meta a defender o bicho homem, quevocĂȘ se estrepa. E trate de fazer como Peter Pan. queembirrou de nĂŁo crescer para ficar sempre menino, porque
nĂŁo hĂĄ nada mais sem graça de que gente grande. Se todosos meninos do mundo fizessem greve, como Peter Pan, enenhum crescesse, a humanidade endireitaria. A vida lĂĄentre os homens sĂł vale enquanto vocĂȘs se conservammeninos. Depois que crescem, os homens viram umacalamidade, nĂŁo acha? SĂł os homens grandes fazem guerra.Basta isso. Os meninos apenas brincam de guerra.
Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abaladopelas estranhas idéias do saci. Quando voltasse para casa
iria consultar Dona Benta para saber se era assim mesmo ounĂŁo.
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CapĂtulo XII
O jantar
O sol jĂĄ estava descambando e o menino sentiu fome.Havia esquecido de trazer matalotagem. â Amigo saci, estou sentindo uma coisa chamada fome.
Mostre-me a sua habilidade em sair-se de todos os apuros,arranjando um jantar.
â Nada mais fĂĄcil â respondeu o capetinha. Gosta depalmito?
â Gosto, sim. Mas como poderemos derrubar uma
palmeira tĂŁo alta para colher o palmito? Sem machado Ă©impossĂvel.O saci deu uma risada. â NĂŁo hĂĄ impossĂveis para mim, quer ver? â e metendo
dois dedos na boca tirou um agudo assobio.Imediatamente um enorme besourĂŁo, chamado serra-
pau, surgiu do seio da floresta. O saci fez-lhe uns sinais e obesourĂŁo, voando para o alto duma palmeira de tronco fino,mas muito alta, abarcou a base do palmito entre os seus
ferrĂ”es dentados como um serrote e começou a girar comgrande velocidade, zunindo como um aeroplano â zunnn...Em menos de cinco minutos o tronco da palmeira estava
serrado, e o palmito, acompanhado da copa, veio com grandeestardalhaço ao chão.
â Bravos! â exclamou o menino. â Nunca imaginei quenesta mata houvesse serrador tĂŁo hĂĄbil. Quero agora vercomo vocĂȘ prepara o petisco.
â Muito fĂĄcil â disse o saci. â Fogo nĂŁo falta. Tenho
sempre fogo no meu pitinho. Panelas tambĂ©m nĂŁo faltam. EsĂł procurar por aĂ alguma casca de tatu. Ăgua temos dentrodos gomos de taquara; basta rachar um ou dois. E paragordura, Ă© sĂł quebrar uma porção de coquinhos e espremerentre duas pedras o Ăłleo das amĂȘndoas.
â E sal? â E o mais difĂcil; mas como hĂĄ mel, vocĂȘ comerĂĄ
palmito preparado sob forma de doce, que Ă© ainda maisgostoso.
E assim foi feito. Em menos de vinte minutos estavadiante de Pedrinho uma casca de tatu cheia de um doce de
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palmito muito bem preparado. O menino comeu a fartar eainda teve uma sobremesa de amoras do mato, que o sacicolheu ali mesmo.
â HĂĄ muito tempo que nĂŁo como com tanto apetite! â
comentou Pedrinho depois que encheu o papo. â VocĂȘ Ă© umcozinheiro ainda melhor que tia NastĂĄcia, que Ă© a primeiracozinheira do mundo.
E, dando tapinhas na barriga, pĂŽs-se a palitar os dentescom um comprido espinho de brejaĂșva.
A tarde ia morrendo. Não tardou que Pedrinho vissebrilhar no céu, por entre uma nesga aberta na copa dasårvores, a primeira estrelinha,
Que coisa impressionante era a noite! Até aquele
momento Pedrinho ainda nĂŁo havia prestado atenção nisso.Noite em casa nĂŁo Ă© noite. Acende-se o lampiĂŁo, fecha-se aporta da rua â e que Ă© da noite?
Mas ali, oh, ali a noite o era de verdade -â das imensas,das completamente escuras, apenas com aqueles vaga-lumesparados no cĂ©u que os homens chamam estrelas...
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CapĂtulo XIII
Novas discussÔes
Tinham de esperar a meia-noite, porque só a essa hora,é que os duendes da floresta saem de suas tocas. Para mataro tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era avida na natureza.
â VocĂȘ nunca poderĂĄ fazer idĂ©ia da vida encantada quetemos por aqui â disse ele.
â Ora, ora! â exclamou o menino. â NĂŁo hĂĄ o que oshomens nĂŁo saibam. VovĂł tem lĂĄ uma HistĂłria Natural que
conta tudo.O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho. â Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como esses nĂŁo contam
nem isca do que é, e estão cheios de invençÔes ou erros.Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteirosó para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantosinsetos existem? MilhÔes...
â Em todo caso â volveu Pedrinho â nĂłs, homens,pomos o que sabemos nos livros e vocĂȘs sacis nĂŁo escrevem
coisa nenhuma. Nunca houve livros entre vocĂȘs, e quem nĂŁoescreve obras nĂŁo pode ensinar aos filhos o que sabe.
â NĂŁo temos livros â disse o saci â porque nĂŁoprecisamos de livros. Nosso sistema de saber as coisas Ă©diferente. NĂłs adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoriade nossos pais, como vocĂȘs, homens herdam propriedades oudinheiro. Nascer sabendo! Isso Ă© que Ă© o bom. Um pernilongo,por exemplo. Sabe como Ă© a vidinha dele? Nasce na ĂĄgua,saĂdo de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda nĂŁo Ă©
pernilongo â Ă© o que vocĂȘs chamam "larva" â uma espĂ©ciede peixinho que nada e mergulha muito bem. Um dia essalarva cria asas, pernas compridas e voa. E que faz quandovoa?
â Vai cantar a mĂșsica do fiun e picar as pessoas queestĂŁo dormindo em suas camas. E isso o que essesmalvadinhos fazem.
â Muito bem! â tornou o saci. â E quem ensina opernilongo a fazer isso? Os pais? NĂŁo, por que depois de
soltar os ovos na ĂĄgua os pais dos pernilonguinhos morrem.Os livros? NĂŁo, porque eles nĂŁo tĂȘm livros. Pois apesar disso
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sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo dasgentes hĂĄ sangue, e que o sangue Ă© o alimento deles. Sabemque as gentes moram em casas. Sabem que a melhor hora desugar o sangue das gentes Ă© de noite, porque estĂŁo dormindo.
E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que asaprendam nos livros, os pernilonguinhos logo que saem daĂĄgua vĂŁo em busca das casas, entram, escondem-se nosescuros, esperam que todos durmam e sossegadamentepicam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas.Depois escapam pelas janelas e voltam Ă mata ou outrossĂtios, em procura de agĂŒinhas paradas onde porem os ovos.E assim eternamente. Sabem tudo direitinho â e ninguĂ©m osensina. Logo, eles tĂȘm a ciĂȘncia de tudo dentro de si mesmos,
como vocĂȘs tĂȘm tripas e estĂŽmago e pacuera.Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. Osaci continuou:
â E como fazem os pernilongos, assim tambĂ©m fazemtodas as outras vidinhas aqui da floresta. Cada qual nascesabendo fazer o certo â e nĂŁo erram. Os grilos nascemsabendo abrir buracos. HĂĄ um inseto chamado bombardeiro.Se outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe nofocinho um lĂquido que se evapora imediatamente e tonteia o
inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro jĂĄ estĂĄ longe.Quem o ensina a fazer isso? NinguĂ©m. Nasce sabendo. Certosbesouros, quando querem pĂŽr ovos, fazem o seguinte: pegamuma pequena quantidade de esterco e a vĂŁo rolando pelochĂŁo com as patas detrĂĄs. Para quĂȘ? Para formar uma bola.Quando o esterco estĂĄ uma bola bem redondinha, eles afuram e botam lĂĄ dentro os ovos. Quem ensina essesbesouros a fazer essas bolas tĂŁo redondinhas? Os pais? NĂŁo!Algum livro? NĂŁo! Eles nascem sabendo.
â Sim â disse Pedrinho. â Nascem sabendo e nĂłstemos de aprender com os nossos pais ou nos livros. Isso sĂłprova o nosso valor. Que mĂ©rito hĂĄ em nascer sabendo?Nenhum. Mas hĂĄ muito mĂ©rito em nĂŁo saber e aprender peloestudo.
â Perfeitamente â concordou o saci. â NĂŁo nego omĂ©rito do esforço dos homens. O que digo Ă© que eles sĂŁoseres atrasadĂssimos â tĂŁo atrasados que ainda precisamaprender por si mesmos. E nĂłs somos seres
aperfeiçoadĂssimos porque jĂĄ nĂŁo precisamos aprender coisanenhuma. JĂĄ nascemos sabidos. Que Ă© que vocĂȘ preferia: ter
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nascido jĂĄ com toda a ciĂȘncia da vida lĂĄ dentro ou ter de iraprendendo tudo com o maior esforço e Ă custa de muitoserros?
O menino foi obrigado a concordar que o mais cĂŽmodo
seria nascer sabendo. â Sim, nesse ponto vocĂȘ tem razĂŁo, saci. Mas que Ă© quefaz todas essas vidinhas viverem? EstĂĄ aĂ uma coisa queminha cabeça nĂŁo compreende.
â Ah, isso Ă© o segredo dos segredos! â respondeu osaci. â Nem nĂłs sabemos. Mas o que acontece Ă© o seguinte:dentro de cada criatura, bichinho ou plantinha, hĂĄ uma forçaque a empurra para a frente. Essa força Ă© a Vida. Empurra ediz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A vida
Ă© uma fada invisĂvel. E ela que faz o pernilongo ir picar aspessoas nas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco;e que ensina o bombardeiro a bombardear seus atacantes.
â Mas Ă© invisĂvel atĂ© para vocĂȘs sacis, que enxergammais coisas do que nĂłs homens? â perguntou Pedrinho.
â Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fadaVida. SĂł vejo os efeitos dela. Quando um passarinho voa, euvejo o vĂŽo do passarinho, mas nĂŁo vejo a fada dentro dele aempurrĂĄ-lo.
â EntĂŁo ela deve ser como a gasolina dos automĂłveis.Sem gasolina os carros nĂŁo andam. â Perfeitamente â concordou o saci â mas com uma
diferença: nos automĂłveis a gente vĂȘ e cheira a gasolina, masa Gasolina-Vida ninguĂ©m ainda conseguiu ver nem cheirar.
â E morrer? Que Ă© morrer? A Vida entĂŁo acaba, como agasolina do automĂłvel?
â A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser jĂĄ estĂĄ muito velho e escangalhado, a Vida acha que nĂŁo vale
mais a pena continuar lidando com ele e abandona-o. Vaimovimentar um novo ser. A fada invisĂvel diverte-se com isso.Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisĂvel
tambĂ©m morava dentro dele, e o empurrava para a frente. Eraquem o fazia ter fome e comer, ter sede e beber, ter sono edormir, querer coisas e procurĂĄ-las. Mas um dia essa boafada se enjoaria dele. Por quĂȘ? Porque ele jĂĄ estaria decabelos brancos e sem os dentes naturais, e com reumatismonas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o
coração tão fraco que até para subir a escadinha da varandaseria uma proeza. E então a fada torceria o nariz e se enjoaria
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dele: â "Sabe que mais, Senhor Pedrinho, VocĂȘ estĂĄ um cacovelho e eu nĂŁo gosto disso. Vou procurar outro ente" â e oabandonaria e ele entĂŁo morreria.
Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não
entristece ninguĂ©m Ă© bem outra: Ă© a idĂ©ia de nĂŁo morrernunca, nunca...Conversou a respeito com o saci. â Ora, ora! â disse este. â O que morre Ă© o corpo sĂł, a
parte que em nĂłs tem menos importĂąncia. A grande coisa quehĂĄ em nĂłs, e nos diferencia das pedras e dos paus podres,que Ă©? A Vida. E essa nĂŁo acaba nunca â muda-se dum serpara outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateriadaquela lĂąmpada elĂ©trica que vocĂȘ tem se descarrega, a
bateria morre â mas morreu a eletricidade? NĂŁo. Apenasmudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi paraas nuvens, ou foi para onde quis. Assim como a eletricidadenĂŁo morre, a Vida tambĂ©m nĂŁo morre. A Vida Ă© uma espĂ©ciede eletricidade.
â Mas eu nĂŁo queria que fosse assim â lamentouPedrinho. â Tenho dĂł do meu corpo. Estas mĂŁos, porexemplo, disse ele abrindo-as. Estou tĂŁo acostumado comelas... Desde pequenininhos que estas mĂŁos fazem tudo o que
eu quero, e fico triste de lembrar que um dia vĂŁo ficarparadas, mortas.. . â Pior do que perder as mĂŁos Ă© perder os olhos â disse
o saci. â JĂĄ reparou como Ă© triste nĂŁo ter olhos, ou tĂȘ-los enĂŁo ver nada? Feche os olhos bem fechados.
Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse; â Pois quando a fada invisĂvel abandonar o seu corpo,
Pedrinho, seus olhos vĂŁo ficar assim, cegos â como se nĂŁoexistissem, e nunca mais serĂŁo olhos, que hoje vĂȘem tanta
coisa, verĂŁo coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais ...Pedrinho sentiu uma tristeza tĂŁo grande que quasechorou â mas o saci deu uma grande risada.
â Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, nĂŁo sĂŁo osolhos: Ă© a fada invisĂvel que hĂĄ dentro de vocĂȘ. A fada Ă© comoo astrĂŽnomo no telescĂłpio; e os olhos sĂŁo como o telescĂłpiodo astrĂŽnomo. Qual Ă© o mais importante: o telescĂłpio ou oastrĂŽnomo?
â E o astrĂŽnomo â disse Pedrinho.
â Pois entĂŁo alegre-se, porque o astrĂŽnomo nĂŁo morrenunca. O telescĂłpio Ă© que se desarranja e quebra...
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CapĂtulo XIV
O medoLongamente filosofaram os dois, lĂĄ debaixo da grande
peroba que os abrigava do sereno da noite. A vida noturnatão intensa quanto a vida diurna. Entre os homens tudo påradurante certa parte da noite, mas na floresta a vida continua,porque uns seres dormem de dia e vivem de noite e outrosdormem de noite e vivem de dia. Assim que os sabiås,sanhaços e tico-ticos se recolhem aos seus pousos ou ninhos,
começam a sair das tocas as corujas e morcegos. E asborboletas e mariposas noturnas vĂȘm substituir asborboletas e mariposas diurnas, que adormecem logo quechega a noite. E as caças medrosas, tĂŁo perseguidas peloshomens, saem de noite a pastar e beber ĂĄgua nos rios. E osvaga-lumes que de dia nĂŁo deixam os lugares escuros,começam a piscar por toda parte com as suas lanterninhas.
â Esses eu sei â disse o menino. â A vida dessesanimais eu conheço mais ou menos. O que me interessa
agora Ă© a vida dos tais "entes das trevas", como diz tiaNastĂĄcia â os misteriosos â os que uns dizem que existem eoutros juram que nĂŁo existem.
â Compreendo â disse o saci. â VocĂȘ refere-se aoschamados "duendes", "monstros", "capetas", "gnomos" etc ...
â Isso mesmo, amigo saci. Ando desconfiando que tudonĂŁo passa de sonho. Eu nĂŁo via nada na garrafa, antes de tercaĂdo naquela modorra. Assim que a modorra chegou, vocĂȘapareceu na garrafa e começou a falar. Desconfio que estou
sonhando... Desconfio que isto Ă© um pesadelo... Nospesadelos Ă© que aparecem monstros horrĂveis. Por quĂȘ? Porque Ă© que hĂĄ coisas horrĂveis?
â Por causa do medo, Pedrinho. Sabe o que Ă© medo?O menino gabava-se de nĂŁo ter medo de nada exceto de
vespa e outros bichinhos venenosos. Mas não ter medo é umacoisa e saber que o medo existe é outra. Pedrinho sabia que omedo existe porque diversas vezes o seu coração pulara demedo. E respondeu:
â Sei, sim. O medo vem da incerteza.
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â Isso mesmo â disse o saci. â A mĂŁe do medo Ă© aincerteza e o pai do medo Ă© o escuro . Enquanto houver escurono mundo, haverĂĄ medo. E enquanto houver medo, haverĂĄmonstros como o que vocĂȘ vai ver.
â Mas se a gente vĂȘ esses monstros, entĂŁo eles existem. â Perfeitamente. Existem para quem os vĂȘ e nĂŁoexistem para quem nĂŁo os vĂȘ. Por isso digo que os monstrosexistem e nĂŁo existem.
â NĂŁo entendo â declarou Pedrinho. â Se existem,existem. Se nĂŁo existem, nĂŁo existem. Uma coisa nĂŁo pode aomesmo tempo existir e nĂŁo existir.
_ Bobinho! â declarou o saci. â Uma coisa existequando a gente acredita nela; e como uns acreditam em
monstros e outros não acreditam, os monstros existem e nãoexistem.Aquela filosofia do saci jå estava dando dor de cabeça no
menino, o qual suspirou e disse: â Basta, amigo saci. NĂŁo quero mais saber de filosofias,
quero conhecer os segredos da noite na floresta. Mostre-meos filhos do medo que vocĂȘ conhece. Desde que hĂĄ tantagente medrosa no mundo, deve haver muitos filhos do medo.
â Se hĂĄ! â exclamou o saci. â Os medrosos sĂŁo os
maiores criadores das coisas que existem. NĂŁo tem conta oque lhes sai da imaginação. As mitologias daqueles velhospovos estĂŁo cheias de terrĂveis criaçÔes do medo. Aqui nestasAmĂ©ricas, temos tambĂ©m muitas criaçÔes do medo, nĂŁo sĂłdos Ăndios chamados aborĂgenes, como dos negros quevieram da Ăfrica.
Pedrinho lembrou-se do tio BarnabĂ©, que era africano. â Tio BarnabĂ©, por exemplo â disse ele â Ă© um danado
para saber essas coisas. Conhece todos os filhos do medo. Foi
ele quem me explicou o caso dos sacis. Conte-me no que Ă©que os Ăndios acreditavam. â Os Ăndios â começou o saci â nĂŁo usavam durante a
noite aquelas luzes que Dona Benta usa lĂĄ no sĂtio â aqueleslampiĂ”es de querosene. Nem usavam a luz elĂ©trica que hĂĄnas cidades. SĂł usavam fogueirinhas de pouca luz e, por issoo medo entre os Ăndios era grande. Quanto maior Ă© o escuro,maior o medo; e quanto maior o medo, mais coisas aimaginação vai criando. JĂĄ ouviu falar no Jurupari?
â NĂŁo...
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â Pois Ă© o diabo dos Ăndios, o espĂrito mau que aparecenos sonhos e transforma os sonhos em pesadelos horrĂveis.InsĂŽnia, mal-estar, inquietação, tudo que Ă© desagradĂĄvel, vemdesse Jurupari.
â Mas como Ă© ele? â Um espĂrito sem forma, tipo o espĂrito mau que sediverte em agarrar os que estĂŁo dormindo e causar-lhes todosos horrores dos pesadelos. E parece que segura as vĂtimaspela garganta, porque elas esperneiam e se debatem, mas nĂŁopodem gritar.
â Oh, eu jĂĄ tive um pesadelo assim! â disse o menino. â Lembro-me muito bem. Eu ia caindo num buracĂŁoenorme. Quis gritar por vovĂł, mas foi inĂștil. A voz nĂŁo saĂa...
â Pois era o Jurupari que estava apertando a suagarganta. O divertimento dele Ă© esse. Anda de casa em casaprovocando pesadelos horrĂveis nos que encontra dormindo.
Nesse momento um ruĂdo entre as folhas chamou aatenção de ambos.
â Psit!... â fez o saci. â Atenção... Qualquer coisa vemvindo...
Ficaram os dois imóveis. O coração de Pedrinho batiaapressado.
â O Curupira! â sussurrou o saci, quando um vultoapareceu. â Veja... Tem cabelos e pĂ©s virados para trĂĄs. â Parece um menino peludo â murmurou Pedrinho. â E Ă© isso mesmo. Ă um menino peludo que toma conta
da caça nas florestas. SĂł admite que os caçadores cacempara comer. Aos que matam por matar, de malvadeza, e aosque matam fĂȘmeas com filhotes que ainda nĂŁo podem viverpor si mesmos, o Curupira persegue sem dĂł.
â Bem feito! Mas como os persegue?
â De mil maneiras. Uma das maneiras Ă© disfarçar-seem caça e ir iludindo o caçador atĂ© que ele se perca no mato emorra de fome. Outra maneira Ă© transformar em caça osamigos, os filhos ou a mulher do caçador, de modo que sejammortos por ele mesmo.
Pedrinho achou que nĂŁo podia haver nada mais justo. Osaci prosseguiu:
â Esse que vai passando estĂĄ a pĂ©, mas em regra oCurupira anda montado num veado e traz na mĂŁo uma vara
de japecanga. â Que Ă© japecanga?
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â Uma planta que Ă© remĂ©dio para doença do sangue. TambĂ©m Ă© conhecida como salsaparrilha.
â E por que anda com essa vara de japecanga? QueidĂ©ia!
â NĂŁo sei. Ele Ă© que sabe. E o Curupira tem umcachorro de nome Papamel que nĂŁo o larga. Assim que avistaum caminhante na estrada, começa logo a cantar:
Currupaco, papaco Currupaco, papaco...
â Isso Ă© cantiga de papagaio! â lembrou Pedrinho. â Na casa do Coronel Teodorico hĂĄ um que sĂł diz isso.
â Pois foi com o Curupira que os papagaios aprenderamo currupaco. Papagaio nĂŁo inventa palavras, apenas repete asque ouve.
Mas o Curupira, com os seus pés voltados para trås,não se demorou muito por ali. Descobriu um rasto de paca elå se foi, com certeza para ver como ela ia passando em suatoca.
â Que horas serĂŁo? â perguntou o menino.O saci respondeu que faltava pouco para meia-noite.
â Como sabe? â Por aquela flor â respondeu o saci indicando umaflor que nĂŁo estava de todo aberta. â Ă o meu relĂłgio aqui.SĂł abre completamente Ă meia-noite...
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CapĂtulo XV
O BoitatĂĄ
â Eu ouço falar na Iara e no BoitatĂĄ. SerĂĄ que podereiver um deles hoje? â perguntou Pedrinho.
â A Iara pode â respondeu o saci â porque hĂĄ umaque mora por aqui em certo ponto do rio; mas BoitatĂĄ, nĂŁo.SĂł existe lĂĄ pelo Sul.
â Como Ă©? â Pois o BoitatĂĄ Ă© um monstro muito interessante.
Quase que sĂł tem olhos â uns olhos enormes, de fogo. De
noite vĂȘ tudo. De dia nĂŁo enxerga nada âtal qual as corujas.Dizem que certa vez houve um grande dilĂșvio em que asĂĄguas cobriram todos os campos do Sul, e o BoitatĂĄ, entĂŁo,subiu ao ponto mais alto de todos. LĂĄ fez um grande buraco ese escondeu durante todo o tempo do dilĂșvio. E tantos anospassou no buraco escuro que seu corpo foi diminuindo e osolhos crescendo â e ficou como Ă© hoje, quase que sĂł olhos.Afinal as ĂĄguas do dilĂșvio baixaram e o BoitatĂĄ pĂŽde sair doburaco, e desde esse tempo nĂŁo faz outra coisa senĂŁo passear
pelos campos onde hĂĄ carniça de animais mortos. Dizem queĂ s vezes toma a forma de cobra, com aqueles grandes olhosem lugar de cabeça. Uma cobra de fogo que persegue osgaĂșchos que andam a cavalo de noite.
â Eu sei dessa histĂłria. Ă o fogo-fĂĄtuo. VovĂł jĂĄ nosexplicou que esses fogos sĂŁo fosforescĂȘncias emitidas pelaspodridĂ”es. No Sul tambĂ©m existe a cĂ©lebre histĂłria doNegrinho do Pastoreio. Conhece? NĂŁo serĂĄ uma espĂ©cie desaci dos Pampas?
â NĂŁo. Trata-se de coisa muito diferente. Esse negrinhofoi apenas um mĂĄrtir. Sofreu Os maiores horrores dumsenhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.
â Conte a histĂłria dele.E o saci contou.
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CapĂtulo XVI
O negrinho
â Havia um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lĂĄno Sul, que era muito mau para os escravos â isso foi notempo em que havia escravidĂŁo neste PaĂs. Uma vez comprouuma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Erainverno, um dos piores invernos que por lĂĄ houve, de tantofrio que fazia.
â âNegrinhoâ â disse o estancieiro para um molecote dafazenda, que andava por ali. â "Estes novilhos precisam
acostumar-se nos meus pastos, por isso vocĂȘ vai tomar contadeles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para ocurral, onde dormirĂŁo fechados, depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um sĂł queseja, vocĂȘ me paga."
O pobre molecote só tinha quatorze anos de idade;mesmo assim não teve remédio senão ir para o campo tomarconta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciadonaquela fazenda, de modo que, para começar, logo no
primeiro dia um dos novilhos faltou na contagem.O estancieiro não quis saber de explicaçÔes. Vendo que
o nĂșmero nĂŁo estava certo, botou o cavalo em que estavamontado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremendasova de chicote. Depois disse:
â âE agora Ă© ir procurar o novilho que falta. Se nĂŁo meder conta dele, eu dou conta de vocĂȘ, seu grandĂssimo patife!â
E left! â outra lambada por despedida.O moleque, com as costas lanhadas e em sangue,
montou no seu cavalinho e saiu pelos campos atrĂĄs donovilho. Depois de muito procurar, encontrou por fim o fujĂŁo,escondido numa moita.
â âE agora?â â pensou consigo. â âTenho de laçar estenovilho, mas meu laço estĂĄ que nĂŁo vale nada, de tĂŁo velho, eeu estou tĂŁo escangalhado pela sova que ainda valho menosque o laço. Mas nĂŁo hĂĄ remĂ©dio. Tenho que ir atĂ© o fim...â
E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de
trazer o boizinho por diante, atĂ© o curral. Teria ele forças paraisso? O laço agĂŒentaria?
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NĂŁo agĂŒentou. Com meia dĂșzia de sacĂ”es o novilhodesembaraçou-se do laço, arrebentando-o, e lĂĄ se foi peloscampos a fora, na volada.
E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O
furor do estancieiro iria explodir como bomba.Voltou. â "Que Ă© do novilho?" â indagou o patrĂŁo assim que o
negrinho apareceu no terreiro. â "Escapou, patrĂŁo. Lacei ele, mas o laço estava podre e
nĂŁo agĂŒentou, como sinhĂŽ pode ver por este pedaço."Se o estancieiro nĂŁo fosse um monstro de maldade,
convencer-se-ia logo, vendo pela ponta do laço que o negrinhoandara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa
escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nadamais claro no mundo. Mas o estancieiro, que tinha comidocobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido, maiscolérico ainda ficou.
â "Cachorro!" â exclamou espumando de raiva. â "VocĂȘ vai ter o castigo que merece."
O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos péscom a ponta do laço e depois de bater nele com o cabo dorelho até cansar, teve uma idéia diabólica: botå-lo num
formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.Assim fez. Arrastou-o para um sĂtio onde existia umenorme formigueiro de formigas carnĂvoras, arrancou asroupas do coitadinho e deixou-o amarrado lĂĄ.
No dia seguinte foi ver a vĂtima, com a idĂ©ia decontinuar o castigo, caso o grande criminoso nĂŁo estivessemorto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou umgrande susto. Em vez do negrinho, viu uma nuvem que seerguia da terra e logo se sumiu nos ares.
A notĂcia desse acontecimento correu mundo. Oshomens daquelas bandas começaram a considerar o negrinhocomo um mĂĄrtir que tinha ido direto para o cĂ©u.
Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem querqualquer coisa, na campanha do Rio Grande, antes de pedi-laa Santo AntĂłnio ou a outro santo qualquer, pede logo aoNegrinho do Pastoreio.
â E ele faz? â EstĂĄ claro que faz â sempre que pode. Como sofreu
muito, sabe avaliar os apertos dos outros e ajuda-os nopossĂvel.
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CapĂtulo XVII
Meia-noite
Nesse ponto da prosa a flor que servia de relĂłgio abriu-se toda.
â Ă hora! â exclamou o saci. â Estamos justamente nomeio da noite.
Apesar de valente, Pedrinho nĂŁo deixou de sentir umcerto arrepio pelo corpo. Primeira vez na vida em que iapassar uma noite inteira na mata â e nĂŁo seria uma noitecomum, pelo que dizia o saci.
â NĂŁo se arreceie de coisa nenhuma. Deixe tudo porminha conta, que nada de mal hĂĄ de acontecer â disse osaci, correndo os olhos em redor como em procura de algumacoisa. â Venha comigo. HĂĄ ali uma peroba minha conhecida,onde encontraremos o melhor dos refĂșgios.
De fato. Na tal peroba havia um oco a doze pés acima dochão, muito próprio para esconderijo. Dentro dele os doisacomodaram-se à vontade e de modo a tudo poderem ver semperigo de serem vistos.
â Muito bem â disse o menino â mas sĂł quero sabercomo poderei enxergar qualquer coisa de noite, dentro destafloresta que de dia jĂĄ Ă© tĂŁo escura.
â Para tudo hĂĄ remĂ©dio â foi a resposta do saci. â Espalharei pelas ĂĄrvores vizinhas centenares de lanternasvivas, de modo que vocĂȘ enxergarĂĄ como se fosse dia. Masantes Ă© preciso que coma estas sete frutinhas vermelhas â concluiu apresentando ao menino um punhado de frutinhasdo tamanho de amoras bravas.
Pedrinho desconhecia aquelas frutas e foi com umacareta que mordeu a primeira, tĂŁo amarga era. Mas comeu assete, e logo em seguida sentiu uma deliciosa tonteira invadirlhe o corpo, deixando-o num esquisito estado de consciĂȘncia jamais sentido. Era como se estivesse dormindo acordado ,
Enquanto isso, o saci repetiu em tom diferente o assobiocom que chamara o serra-pau; mas dessa vez nĂŁo veio serra-pau nenhum, sim uma enorme quantidade de vaga-lumes,dos grandes e dos pequenos. Vieram e foram pousando nas
folhas e galhos das ĂĄrvores vizinhas, como se algum invisĂvelguia lhes estivesse a indicar os lugares. O coração da floresta
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clareou num cĂrculo de cem metros de diĂąmetro, como sefosse batido pelo luar da lua cheia.
Pedrinho estava a gozar o espetĂĄculo da florestailuminada pelas lanterninhas vivas, quando surgiu na
claridade o primeiro saci. E logo outro e outro, e todo umbando de mais de cem. Começaram a pular, a dançar e aconversar numa linguagem que o menino muito sentiu nãoentender.
â EstĂŁo combinando as travessuras que vĂŁo fazerdurante a noite. Daqui a pouco todos partem, sĂł ficando ospequeninos que ainda nĂŁo podem correr mundo â explicou osaci cochichando-lhe ao ouvido.
Pedrinho enxergou um de cara chamuscada â com
certeza o que fora vĂtima da explosĂŁo do pito do tio BarnabĂ©.Mas os sacis foram se dispersando, de modo que ao cabo dealguns minutos sĂł se viam por ali os pequeninos comocamundongos.
â Para onde foram? â perguntou Pedrinho. â Oh, eles espalharam-se por toda parte. Ainda estĂĄ por
haver um lugarzinho onde saci nĂŁo entre. â AtĂ© nas garrafas... â disse o menino, sorrindo.
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CapĂtulo XVIII
SaĂda dos sacis
Nem em sonhos Pedrinho jamais esperou que pudesseobservar um quadro mais curioso. Aqueles minĂșsculoscapetinhas eram as mais travessas e irrequietas criaturasque se possam imaginar. NĂŁo paravam um sĂł instante.Cabriolavam nos musgos do chĂŁo, pulavam como pulgas,dançavam, inventavam mil travessuras. E tudo faziam sempor um sĂł instante tirarem o pitinho da boca.
Deram-se cenas muito engraçadas. TrĂȘs deles ficaram
muito atentos, de narizinho para o ar, observando ummorcego que despreocupadamente comia frutinhas de umaenorme figueira. Depois de cochicharem entre si, treparam Ă figueira, com todas as cautelas para nĂŁo assustar o morcego.Foram por trĂĄs dele e, de repente â zĂĄs!... pularam-lhe aolombo, como perfeitos cow-boys ! O morcego levou um grandesusto e começou a corcovear no ar, em vĂŽos tontos, enquantoos trĂȘs cavaleiros, firmes na sela como carrapatos, davamassobios agudĂssimos num grande contentamento.
Outro havia trepado a um arbusto e descoberto umninho de beija-flor com trĂȘs ovinhos. Imediatamente deubrado de alarma, chamando os companheiros. Reuniu-se umbando em redor do ninho, cujos ovos foram retirados elevados para o chĂŁo. LĂĄ acenderam uma minĂșsculafogueirinha e assaram os ovos e os comeram com grandealegria e gulodice.
E quantas outras travessuras nĂŁo observou Pedrinho!Os que agarraram um pobre caramujo pelos chifrinhos e
fizeram prodĂgios para arrancĂĄ-lo da casca. Os que sedivertiam em caçar vaga-lumes, matĂĄ-los e esfregar pelocorpo a substĂąncia fosforescente que os torna luminosos. Osque cavavam a terra, descobriam minhocas, emendavam trĂȘse quatro para fazer uma corda de pular...
Pedrinho estava completamente absorvido naquelecurioso espetĂĄculo; e assim passaria a noite, se em certomomento o saci nĂŁo o puxasse para o fundo do oco.
â Cuidado! â disse ele. â Estou sentindo catinga de
lobisomem. Meu faro nunca se engana...
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CapĂtulo XIX
Lobisomem
Nem bem acabara o saci de pronunciar estas palavras ePedrinho notou grande rebuliço entre os sacizinhos. Pareceque também pressentiram qualquer coisa, pois largaram dasbrincadeiras e desapareceram na floresta, como por encanto.
Era tempo. O mato começou a estalar, como se algumanimalão por ele viesse rompendo, e por fim surgiu naclareira a carantonha sinistra de um lobisomem. Parou,farejou o ar como se estivesse sentindo cheiro de carnehumana. O saci, porém, tivera a precaução de emitir um
certo cheirinho a enxofre, e isso iludiu o lobisomem, quecontinuou o seu caminho e passou. O cheiro a enxofredisfarça o da carne humana, explicou mais tarde o saci.
Apesar do medo que sentira, Pedrinho pĂŽde notar que omonstro tinha a pele virada, isto Ă©, o pelo para dentro e acarne para fora â uma coisa horrĂvel! No mais, era umperfeito lobo, embora de dimensĂ”es muito mais avantajadas.
Assim que o lobisomem deixou a clareira, o meninorespirou um ah! de alĂvio, e pediu o saci que lhe contasse
alguma coisa desses monstros. â Dizem â respondeu o saci â que quando uma
mulher tem sete filhos machos, o sĂ©timo vira lobisomem nanoite das sextas-feiras. Sai entĂŁo pelos campos, invade osgalinheiros (onde come um produto das galinhas que nĂŁo Ă© oovo) e tambĂ©m assalta e devora os cĂŁes e as crianças queencontra pelo caminho. Se alguĂ©m ataca um lobisomem ecorta-lhe uma das patas, ele vira imediatamente no homemque Ă© â e esse homem fica por toda a vida aleijado do
membro correspondente à pata cortada.Pedrinho não resistiu à tentação de ver de perto as
pegadas do monstro e apesar das advertĂȘncias do saci saiudo oco para examinĂĄ-las Ă luz de vaga-lume. Mas nĂŁo tevetempo. Assim que saiu do oco, ouviu um estranho rumor aolonge, seguido do agudo assobio do saci chamando-o. Voltouprecipitadamente.
â Que hĂĄ? â indagou.O saci, que tambĂ©m parecia amedrontado, puxou-o bem
para o fundo do esconderijo, murmurando: â A mula-sem-cabeça!
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CapĂtulo XX
A Mula-sem-cabeça
A mula-sem-cabeça!Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o
apavorava mais que esse estranho e incompreensĂvelmonstro, a mula-sem-cabeça que vomita fogo pelas ventas .Muitas histĂłrias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos dosertĂŁo e aos negros velhos, embora Dona Benta vivessedizendo, que tudo nĂŁo passava de crendice.
A galopada aproximava-se; jĂĄ se ouvia o estalar dos
arbustos que em seu desenfreado galopar a mula-sem-cabeçavinha quebrando. SĂșbito, parou.
â Vai mudar de rumo! â murmurou o saci com caramais alegre.
E de fato foi assim. A mula retomou a galopada, mas emoutra direção, e embora passasse por perto não chegou aoalcance dos olhos do menino.
â Que pena! â exclamou ele. â Tanta vontade que eutinha de conhecer esse monstro...
â Que pena? â repetiu o saci. â Que felicidade, devevocĂȘ dizer! A mula-sem-cabeça Ă© o mais sinistro duende quehĂĄ no mundo; tem o dom de transtornar a razĂŁo de todos quea vĂȘem. Por isso Ă© que, tive medo â nĂŁo por mim, mas porvocĂȘ...
â Mas qual Ă© a origem dessa mula? â Uma histĂłria muito velha. Dizem que antigamente
houve um rei cuja esposa tinha o misterioso håbito depassear certas noites pelo cemitério, não consentindo que
ninguĂ©m a acompanhasse. O rei incomodou-se com isso ecerta noite resolveu segui-la sem que ela o percebesse. NocemitĂ©rio deu com uma coisa horrenda: a rainha estavacomendo o cadĂĄver de uma criança enterrada na vĂ©spera eque por suas prĂłprias mĂŁos, cheias de anĂ©is, haviadesenterrado! O rei deu um grito. Vendo-se pilhada, a rainhadeu outro grito ainda maior â e imediatamente virou nessamula-sem-cabeça, que desde aquele momento nunca maisparou de galopar pelo mundo, sempre vomitando fogo pelas
ventas.
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E foi assim que Pedrinho perdeu a Ășnica oportunidadeque teve de ficar conhecendo pessoalmente o estranhomonstro que tanto impressiona a imaginação dos nossossertanejos.
Ela corre sem cessar, espalhando a loucura por ondepassa. Não existe criatura, seja bicho do mato ou gente, quenão prefira ver o diabo em pessoa a ver a tal mula-sem-cabeça. à horrenda!
â Mas como serĂĄ que vomita fogo pelas ventas, se asventas estĂŁo na cabeça e ela nĂŁo tem cabeça?
â TambĂ©m nĂŁo entendo; mas Ă© assim â disse o saci.
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CapĂtulo XXI
MĂĄs notĂcias
Parece que a mula-sem-cabeça tem a propriedade deafugentar os outros duendes da floresta, porque depois dasua passagem tudo por ali ficou deserto de seres. Só umahora mais tarde é que os sacizinhos foram reaparecendo, umpor um e ainda ressabiados. Mas reapareceram todos, afinal,e recomeçaram as travessuras, apenas interrompidas pelapassagem da Porca dos Sete LeitÔes e do Caipora.
A Porca dos Sete LeitÔes é uma misteriosa porca alva
como paina, que passeia acompanhada dos seus seteleitÔezinhos, fossando o chão em procura de um anelenterrado. Só quando achar esse anel poderå quebrar oencanto e virar na baronesa que jå foi. Por suas maldades notempo em que havia escravos, um feiticeiro negrotransformou-a em porca e virou seus sete filhos em leitÔes.
O Caipora Ă© um duende peludo, meio homem, meiomono, que costuma cavalgar os porcos-do-mato e deter osviajantes para exigir fumo.
Aquele que por ali passou vinha montado num soberboqueixada de enormes presas salientes, tĂŁo corpulento e forteque para passar nem se desviava das pequenas ĂĄrvores â iaderrubando-as.
Nisto um pio de coruja fez-se ouvir de perto. O saciapurou os ouvidos, com cara de quem nĂŁo estava gostandonada daquilo.
â Aquela coruja estĂĄ me chamando. EstĂĄ dando sinalde que aconteceu qualquer coisa lĂĄ no sĂtio de Dona Benta.
Tenho de ir ver o que Ă©.E vai deixar-me sozinho aqui? â murmurou o menino
de dentro do seu esconderijo, procurando dominar o medo.Com o amigo perneta ao lado sentia-se seguro; mas
ficar, por minutos que fosse, entregue a si próprio, naquelamata cheia de mistérios e ainda mais naquela hora sinistrada meia--noite, era duro de roer. Pedrinho, entretanto,dominou-se e disse, fazendo das tripas o coração:
â Pois vĂĄ, mas nĂŁo se demore muito porque... porque
gosto muito da sua prosa, ouviu?
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Dando uma risadinha de quem compreendiaperfeitamente o que se passava dentro do seu companheiro, osaci foi falar com a coruja.
Minutos depois regressou, visivelmente inquieto.
Percebendo a mudança, Pedrinho indagou ansioso: â Que hĂĄ? â Coisa muito grave. Quando saĂ do sĂtio de Dona
Benta, deixei lĂĄ uma coruja, que Ă© minha escrava, com ordemde avisar-me de qualquer coisa fora do comum queacontecesse. Pois bem: a coruja acaba de chegar com umanotĂcia nada agradĂĄvel.
â Que Ă©? Conte logo... â A Cuca apareceu no sĂtio e furtou Narizinho...
â NĂŁo diga! â exclamou o menino, com os cabelosarrepiados. âTemos que salvĂĄ-la, saci! Darei tudo quantovocĂȘ quiser, se me ensinar o meio de arrancar Narizinho dasunhas desse horrendo monstro...
A Cuca! Pedrinho ainda tinha bem fresca namemĂłria a lembrança dessa bruxa das histĂłrias que a amalhe contara nos primeiros anos de sua vidinha. Lembrava-seatĂ© duns versos que ela cantava para adormecĂȘ-lo:
"Durma, nené, que a Cuca jå lå vem,Papai estå na roça; mamãezinha,No Belém."
Lembrava-se que ouvindo essa cantiga sentiauma ponta de medo e fechava os olhos e logo dormia. Depoisque cresceu, nunca mais ouviu falar na Cuca, a nĂŁo serminutos antes, quando o saci lhe contou que a Cuca era aRainha das Coisas Feias. Seria verdade? Verdade ou nĂŁo,
tinha de voltar ao sĂtio incontinenti e de qualquer maneira. â Vamos embora, saci! Precisamos chegar ao sĂtio oquanto antes, para saber com certeza o que hĂĄ. Pode ser quea coruja esteja mentindo, mas tambĂ©m pode ser verdade.
â Mentira nĂŁo Ă© â disse o saci. â Minha coruja nĂŁomente. Mas pode ser que a menina tenha sido raptada poroutro duende que nĂŁo a Cuca. E o ponto que temos deverificar.
â E se for a Cuca mesmo? Que havemos de fazer?
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â NĂŁo sei. Tenho de pensar nisso. A Cuca Ă© bastantepoderosa, e mĂĄ como ela sĂł. Mas havemos de dar um jeito. Tenho cĂĄ uma idĂ©ia. Venha comigo.
SaĂram do oco da peroba e tomaram o caminho do sĂtio
de Dona Benta. A escuridão da noite não embaraçava emnada ao saci, que, como filho das trevas, enxergava no escuroainda melhor do que ao sol. Mas o pobre Pedrinho padeceuum bocado. Só podia guiar-se pela brasa do cachimbo dosaci, de modo que tropeçou em muito cipó e toco de paupobre, afundando os pés em formigueiros e buracos de tatu,espinhando-se na cara e nos braços. Mas era tal a sua ùnsiade chegar, que nem sequer a dor das arranhaduras sentiu.
â Nesta andadura chegaremos tarde â disse de repente
o saci. â Se vocĂȘ Ă© bom cavaleiro, poderemos ir montadosnum porco-do-mato. â Sou. JĂĄ montei atĂ© num garrote bem taludo, que deu
os maiores corcovos do mundo sem conseguir derrubar-me. â Pois entĂŁo, tudo estĂĄ resolvido. Olhe! LĂĄ vem em
nosso rumo uma vara de porcos. Suba a esta ĂĄrvore; assimque eu der sinal, atire-se de perna aberta para cima do lombodo que vem na frente. Eu irei na garupa.
Assim fizeram. Subiram os dois a uma ĂĄrvore baixa; logo
que o porco chefe passou por debaixo da ĂĄrvore, Pedrinho e osaci atiraram-se sobre ele, agarrando-se aos compridos pelosdo cangote. Assustado com aquela manobra, o pobre porcodisparou numa galopada louca pela mata a fora, na direçãodesejada pelo saci. Este habilĂssimo duendezinho tinha jeitopara tudo, inclusive dirigir porcos-do-mato como se ostrouxesse seguros por um bom par de rĂ©deas. Pedrinho nĂŁopercebeu de que modo o saci conseguia isso, nem teve tempode o perguntar. Todas as suas energias eram poucas para
manter-se firme no lombo da cavalgadura de nova espécie.Aquela corrida com o saci dentro da noite iria constituir amais arrojada aventura da sua vida. Por mais anos que sepassassem, ele jamais poderia esquecer-se dela.
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CapĂtulo XXII
Chegam ao sĂtio
Depois de comprida Caminhada, o menino percebeu que jĂĄ estava em terras do sĂtio. Viu o rancho do tio BarnabĂ©perto da ponte. Em seguida os pastos. Finalmente a casa desua querida vovĂł.
No terreiro saltaram do porco-do-mato, o qual, aliviadoda carga, prosseguiu na correria com maior velocidade ainda.
Foram entrando. A casa estava silenciosa, de luzesacesas â coisa muito esquisita Ă quela hora da madrugada.
â Temos novidade â murmurou o menino. â Luz acesaa estas horas Ă© mau sinal...
Na sala de jantar encontrou Dona Benta sentada na suacadeirinha, com a cabeça apoiada nas mãos. Ao lado dela, tiaNaståcia escarrapachada no chão. De tal modo absorvidasestavam as duas velhas que nenhuma percebeu a chegadados valentes salvadores.
â Que hĂĄ, vovĂł? â foi gritando Pedrinho.Dona Benta ergueu a cabeça e arregalou os olhos, como
se a aparição de Pedrinho fosse um sonho. Tia Naståcia fez omesmo, mais assustada do que admirada de ver o meninooutra vez.
â Pedrinho! â exclamou a pobre avĂł com expressĂŁo deesperança nos olhos vermelhos de tanto chorar. â AtĂ© queenfim vocĂȘ apareceu! Estava eu aqui desesperada, porqueperder um neto jĂĄ era demais, mas perder dois seria coisaacima das minhas forças ...
â Perder dois? Quer dizer que Narizinho sumiu?
â Sim, meu filho! Logo que vocĂȘ desapareceu desta casada maneira mais misteriosa, nada dizendo a ninguĂ©m,Narizinho saiu a dar uma volta pelos pastos para ver se oencontrava. Andou por lĂĄ gritando "Pedrinho! Pedrinho!" umaporção de tempo, atĂ© que de repente se calou. Julgamos quetivesse achado o fujĂŁo e ficamos muito contentes. Mas otempo foi passando e nada de Narizinho voltar. Tia NastĂĄcia eeu demos uma volta pelo pasto, chegamos atĂ© Ă casa do tioBarnabĂ© e nada. Isso, Ă s trĂȘs horas da tarde. JĂĄ sĂŁo duas da
madrugada e nĂŁo tivemos ainda o menor indĂcio de ondepossa estar a coitadinha da minha querida neta...
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Dizendo isto Dona Benta rompeu de novo em choro,acompanhada de tia NastĂĄcia.
Pedrinho contou onde estivera e, depois de consultar emsegredo o saci, consolou Dona Benta e a preta, dizendo que
sabiam onde Narizinho estava e iam buscĂĄ-la. â Ă verdade isso ou vocĂȘ estĂĄ fantasiando para meconsolar?
Pedrinho, que nunca mentia, sentiu tanto dĂł das pobresvelhas que pela primeira vez na vida resolveu enganĂĄ-las comuma mentira de bom tamanho. Deu uma risada e disse:
â NĂŁo se assuste, vovĂł! Narizinho e eu resolvemospregar uma grande peça na senhora, mas essa peça Ă© umsegredo que nĂŁo posso contar. SĂł amanhĂŁ, ao clarear do dia
â e deu uma grande risada.Dona Benta sossegou um pouco e ralhou severamentecom o menino, fazendo ver o transtorno que aquela estranha"surpresa" lhe causara. Disse que sofria do coração e que secoisas assim se repetissem o certo era ir para a cova antes dotempo.
Pedrinho sossegou-a como pĂŽde e saiu para o terreiro,gritando que se acalmasse porque dentro de uma ou duashoras estaria de volta com a menina.
LĂĄ no terreiro, sĂł com o saci outra vez, voltou-se paraele e disse: â E agora, amigo saci, que iremos fazer? â Estou armando o meu plano â respondeu o diabrete.
âJĂĄ fiz uma inspeção pela casa toda e pelo terreiro. Estou napista do raptor.
â Raptor? â repetiu o menino sem nada compreender. â Sim. Narizinho foi raptada pela Cuca. Descobri o
rasto da horrenda bruxa perto da porteira. Temos de ir Ă
caverna onde mora a Cuca e ver o que hĂĄ. â Mas se a Cuca Ă© poderosa como vocĂȘ diz, quepoderemos fazer?
â NĂŁo sei. LĂĄ veremos. O que Ă© preciso Ă© nĂŁodesanimar. Se ela Ă© poderosa, eu sou astucioso. A astĂșciainĂșmeras vezes vence a força. Faça das tripas coração eacompanhe-me. O mau foi termos deixado escapar o porcoque nos trouxe, Precisamos descobrir nova montaria.
â Isso Ă© fĂĄcil. O meu cavalinho pangarĂ© estĂĄ no pasto
de dentro. Manso como Ă©, podemos pegĂĄ-lo e cavalgĂĄ-lo empelo.
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â Pois vamos pegar o pangarĂ© â concordou o saci.NĂŁo foi difĂcil. Logo que o cavalinho reconheceu o dono,
veio na direção dele no trote. Pedrinho montou, com o saci na
garupa, e lĂĄ partiu na galopada.Pedrinho logo percebeu que qualquer animal montadopelo saci mudava de modos, ficando nĂŁo sĂł mais ligeiro doque nunca e fogoso, como ainda com um senso de direçãoque parecia sobrenatural. InĂșmeras vezes tinha cavalgado opangarĂ© e galopado nele; nunca, porĂ©m, o vira assim tĂŁoardente e veloz. Era como se o saci lhe comunicasse algumaforça mĂĄgica, que nĂŁo Ă© prĂłpria dos cavalos, Tal foi avelocidade desenvolvida que Pedrinho nĂŁo pĂŽde deixar de
dizer: â Mais parece o famoso PĂ©gaso do que meu velho elerdo pangarĂ©! Estou estranhando isto...
â NĂŁo estranhe coisa nenhuma â aconselhou o saci. â Tudo sĂŁo mistĂ©rios que sĂł eu sei e que nĂŁo vale a penaexplicar agora. NĂŁo fale comigo, nĂŁo me atrapalhe. Estoufazendo um grande esforço de cabeça para aperfeiçoar o meuplano de nĂŁo sĂł lograr a Cuca malvada como ainda castigĂĄ-lacomo merece.
â Conte ao menos um pedacinho dessa grande idĂ©ia,para me consolar. â Ă uma idĂ©ia que aprendi com Dona Benta â
respondeu o saci. â Com vovĂł? â inquiriu o menino admirado. â Como
isso, se vovĂł jamais teve coragem de falar com vocĂȘ? â Sim, nunca falou comigo, mas muita coisa do que ela
disse, eu ouvi de dentro da garrafa. Meus ouvidos sĂŁoapuradĂssimos. Lembro-me da histĂłria dum pingo dâĂĄgua que
ela contou certa noite... â HistĂłria dum pingo dâĂĄgua? â repetiu o menino, cadavez entendendo menos. â NĂŁo posso perceber aonde vocĂȘquer chegar.
â Quero chegar Ă caverna da Cuca! â respondeu o sacibrincalhonamente.
Vendo que ele se recusava a contar o plano que tinha nacabeça, o menino calou-se. Esporeado pelo saci, o pangaréaumentou ainda mais a velocidade do galope, de modo que
antes de meia hora jĂĄ se achavam numa regiĂŁo inteiramentenova para o menino.
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â Onde estarei eu? â ia ele pensando, sem coragem deinterrogar o saci, de tal modo o via concentrado nascombinaçÔes do seu cĂ©lebre plano.
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CapĂtulo XXVIII
A Cuca
SĂșbito o saci exclamou: â Ă lĂĄ! â Ă lĂĄ o quĂȘ? â perguntou Pedrinho. â A caverna da Cuca, naquela montanha de pedras
nuas. Conheço bem estes sĂtios.Pedrinho olhou na direção apontada e sĂł viu grandes
massas de sombras. Apesar de ser noite de lua, havia névoasno céu, de modo que a claridade não dava para perceber mais
que o vulto da montanha estendida Ă sua frente. Que a regiĂŁoera pedregosa, isso Pedrinho logo percebeu, tais faĂscas tiravado chĂŁo o seu cavalinho pangarĂ©. Entretanto, nĂŁo tropeçava,o que seria naturalĂssimo num animal acostumado a sĂł trotarpor bons caminhos ou campos livres de pedras.
â Estou estranhando este cavalo! â NĂŁo pĂŽde deixar dedizer o menino. â Positivamente nĂŁo Ă© o mesmo. Nem sequertropeça...
â E que lhe dei a comer sete folhas de uma planta que
sĂł eu sei para que serve. â Logo vi. Seria Ăłtimo que me ensinasse o segredo
dessa planta. Com ela a gente poderia até transformar umburro morto em Bucéfalo...
O saci, apesar das suas habilidades e espertezas dedemoninho, ignorava a história dos cavalos célebres, e poisficou na mesma com a citação do tal Bucéfalo.
â Que bicho Ă© esse? â perguntou. â Oh, era o cavalo de Alexandre, o Grande, um cavalo
bravĂssimo, que nenhum homem, fora Alexandre, jamaisconseguiu domar. Um dia, quando estivermos sossegados,hei de contar a histĂłria dos grandes cavalos.
â Sim â interrompeu o saci â mas agora feche o bico.Estamos nos domĂnios da Cuca, onde qualquer imprudĂȘncianos pode custar caro. Essa horrenda bruxa tem ouvidosainda mais apurados que os meus.
Pedrinho calou-se.Nisto a lua saiu detrĂĄs das nuvens e ele pĂŽde ver melhor
o sĂtio onde se achava. Bem Ă frente erguia-se a muralhaduma montanha de pedras negras, com arvoredo retorcido
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brotando das brechas. Era uma paisagem diabĂłlica, quepunha nos nervos das criaturas os mais esquisitos arrepios.Lugar bom mesmo para morada de monstros como a Cuca...
â Ă ali! â murmurou baixinho o saci, apontando para
uma abertura negra. â Ă ali a entrada da caverna da grandemalvada. â Como sabe? â perguntou Pedrinho tolamente. â Que pergunta! â respondeu o saci com ironia. â Sei
porque sei. Tinha graça que um saci nĂŁo soubesse onde moraa Cuca... Mas, silĂȘncio! Temos que entrar com mil cautelas,de arrasto, como se fĂŽssemos cobras. NĂŁo! NĂŁo! O melhor Ă©nos disfarçarmos em folhagem.
â Como isso?
â Nada de perguntas. Faça o que eu fizer, sem discutir â ordenou o diabrete, afastando-se dali para arrancarbraçadas de folhas da ĂĄrvore mais prĂłxima.
Pedrinho fez o mesmo. Em seguida o saci lascou damesma ĂĄrvore umas embiras, com as quais amarrou afolhagem em redor do seu corpinho. O menino fez o mesmo.
Ficaram tal qual dois arbustos móveis e, assimdisfarçados, dirigiram-se para a caverna do horrendomonstro, pé ante pé, tão devagarzinho que levaram vinte
minutos para caminhar uns poucos metros.SĂșbito, ao dobrarem uma curva, viram lĂĄ num canto arainha. Estava sentada diante duma fogueira, de modo que aclaridade das chamas permitia que as "folhagens" lhe vissema carantonha em toda a sua horrĂvel feiĂșra. Que bicha! Tinhacara de jacarĂ© e garras nos dedos como os gaviĂ”es, Quanto Ă idade, devia andar para mais de trĂȘs mil anos. Era velhacomo o Tempo.
â Estamos de sorte â disse o saci ao ouvido do menino.
â A Cuca sĂł dorme uma noite cada sete anos e chegamos justamente numa dessas noites. â Como sabe? â indagou Pedrinho, cuja curiosidade
não tinha limites.O saci danou e ameaçou-o, se continuasse com tais
perguntas, de deixĂĄ-lo ali sozinho para ser devorado pelomonstro. Em seguida queimou na brasa do pito umamisteriosa folha, que havia apanhado pouco antes sem que omenino o percebesse.
â Esta fumaça vai fazer que o sono da rainha seja maispesado do que todas as pedras desta gruta. Depois de estar
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completamente adormecida, temos de amarrĂĄ-la muitĂssimobem amarrada,.
Logo que a fumaça alcançou o focinho da Cuca, esta,que jå estava dando mostras de sono, pendeu a cabeça de
lado e roncou. â JĂĄ caiu no sono â disse o saci. â Podemos agoratirar nossa roupa de folhas e sair em busca de cipĂłs.Conheço um cipĂł que vale por quanta corda existe â atĂ©parece cipĂł prĂłprio de amarrar cucas...
Despiram-se das folhas e saĂram da caverna muitosatisfeitos, porque as coisas estavam correndo Ă s milmaravilhas.
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CapĂtulo XXIV
O novelo de cipĂłs
Cortado o cipó, trouxeram-no em dois grandes rolos, esem receio nenhum, pois os roncos da Cuca mostravam queela estava a dormir como quem não dormia hå sete anoscomeçaram a amarrå-la dos pés à cabeça.
Mais uma vez teve Pedrinho de reconhecer como erahåbil e arteiro o seu amigo saci. Amarrar parece coisa fåcil,mas não é. Se Pedrinho houvesse amarrado a Cuca, o maiscerto era que com dois safanÔes a bruxa se livrasse da
cipoada num minuto. Mas com o saci deu-se coisa diferente.O diabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida.Amarrou-a com a mesma ciĂȘncia com que as aranhasamarram as moscas nas suas teias, sem deixar um pontofraco. O segredo, explicou ele, era estudar a amarração demodo que ao despertar a Cuca nĂŁo pudesse fazer o menormovimento. Porque se a criatura amarrada puder fazer umpequeno movimento, por menor que seja, afrouxarĂĄ um pontono amarrilho; e depois afrouxarĂĄ outro ponto â e assim irĂĄ
até libertar-se duma vez. Terminada a obra, em vez de Cuca viu-se no chão um
verdadeiro carretel de cipĂł. â Sim, senhor! â exclamou Pedrinho. â Aprendi mais
hoje do que em toda a minha vida. Esta diaba pode ter aforça de cem elefantes, mas duvido que escape da "nossa"amarração.
O saci sorriu daquele "nossa", mas calou-se. Limitou-sea enxugar o suor da testa.
â Temos agora de acordĂĄ-la â disse depois. â Deixe esse ponto comigo â pediu o menino. â Com
um bom pau de guatambu, eu acordo-a bem acordada. â Nada de paus! VocĂȘ nĂŁo conhece a Cuca. Um monstro
de trĂȘs mil anos, como ela, havia de rir-se das pauladas dummenino como vocĂȘ. Ă força, Ă© impossĂvel lutar com ela. Temosde usar da astĂșcia. A arma a empregar vai ser o pingo dâĂĄgua.
â LĂĄ vem o pingo dâĂĄgua outra vez! â exclamou omenino. â AtĂ© parece caçoada, querer com um pobre pingo
dâĂĄgua dominar uma bruxa destas... â Pois fique sabendo que Ă© o Ășnico meio.
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Pedrinho não entendeu, ficando de boca aberta a ver asmanobras do saci. A engenhosa criaturinha trepou que nemmacaco pelas estalactites gotejantes da gruta até alcançar aque ficava bem a prumo sobre a cabeça da Cuca. E lå, então,
encaminhou um fiozinho dâĂĄgua de modo que gotejasselentamente bem no meio da testa da Cuca. â Basta isso â disse ele. â No começo ela nem sente;
mas com a continuação a dor vai ficando tamanha que hå dedar-se por vencida.
â Sim, senhor! â murmurou o menino. â EstĂĄ aĂ umainvenção que nunca imaginei, mas agora me lembro que vovĂłnos contou uma histĂłria assim...
â Pois Ă© â disse o saci. â Ambos ouvimos essa
histĂłria; mas sĂł eu prestei atenção e jĂĄ estou tirando partidodo que aprendi. Sou dez vezes mais esperto que vocĂȘ,Pedrinho. NĂŁo acha?
O menino não teve remédio senão achar que era mesmo.Os pingos começaram a cair. Os cem primeiros
nenhuma impressĂŁo fizeram na bruxa, cujo sono parecia dosmais gostosos. DaĂ por diante jĂĄ esse sono nĂŁo pareceu maistĂŁo calmo. Começou a fazer caretas, como se estivessesonhando algum sonho horrĂvel. Por fim abriu um olho e
depois o outro.Por vĂĄrios minutos permaneceu apatetada vendo diantede si aquelas duas criaturas de mĂŁo na cintura, a olharempara ela sem dizer coisa nenhuma. Depois a sua inteligĂȘnciafoi acordando notou o pingo a lhe cair na testa. Quis mudarde posição. NĂŁo pĂŽde. SĂł nesse momento viu que estavaamarradinha como se fosse um carretel condenada Ă maisabsoluta imobilidade.
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CapĂtulo XXV
O pingo dâĂĄgua
A cólera da Cuca foi medonha. Deu um urro de ouvir-sea dez léguas dali, tamanho e tão horrendo que por um trizPedrinho não disparou na corrida. E outro urro, e outro, emais de cem.
â Berre, demĂŽnio!âgritou o saci.âBerre atĂ© rebentar.Pingo dâĂĄgua nĂŁo tem ouvidos, nem tem pressa. Esse quebotei pingando nessa horrenda caraça vai divertir-se empingar no mesmo lugarzinho por cem anos, se for preciso. Sei
que Cuca Ă© bicho duro, mas quero ver se pode com um pingodâĂĄgua que nĂŁo tem pressa nenhuma, nem tem outra coisa afazer na vida senĂŁo pingar, pingar, pingar...
A dor que a queda de um pingo atrĂĄs do outro jĂĄ estavacausando nos miolos da bruxa começava a crescer ponto porponto. Cada novo pingo era um ponto mais de dor. Naqueleandar ela nĂŁo suportaria o suplĂcio nem um mĂȘs, quantomais os cem anos com que a ameaçara o saci.
â Parem com esse pingo dâĂĄgua! â berrou a bruxa.
O saci deu uma risada de escĂĄrnio. â Parar? Tinha graça! Se estamos apenas começando,
como quer vocĂȘ que paremos? JĂĄ arrumei tudo, de modo queo pingo pingue durante cem anos, e se nĂŁo for suficiente,arranjarei as coisas de modo que depois desses cem anospingue outros cem. Duzentos anos de pingo na testa parece-me uma boa conta, nĂŁo acha?
A Cuca ainda urrou como cem mil onças feridas, eespumou de cólera, e ameaçou céus e terras. Por fim viu que
estava fazendo papel de boba, pois havia encontrado afinalum adversĂĄrio mais inteligente do que ela; e disse:
â Parem com este pingo que jĂĄ estĂĄ me pondo louca! Tenham dĂł duma pobre velha...
â Pobre velha! A coitadinha... Quem nĂŁo a conhece quea compre, bruxa duma figa! SĂł pararemos com a ĂĄgua se vocĂȘnos contar o que fez de Narizinho.
â Hum! â exclamou a bruxa, percebendo afinal acausa de tudo aquilo. â JĂĄ sei...
â Pois se sabe, desembuche. Do contrĂĄrio, a sua sinaestĂĄ escrita; hĂĄ de morrer no maior suplĂcio que existe. E
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nada de tentar enganar-nos. Ă melhor ir dizendo onde estĂĄ amenina, o mais depressa possĂvel.
â Farei o que quiserem, mas primeiro hĂŁo de desviar deminha testa este maldito pingo que me estĂĄ deixando louca.
â Assim serĂĄ feito â disse o saci trepando de novo Ă sestalactites e desviando o fiozinho dâĂĄgua para um lado.A Cuca deu um suspiro de alĂvio. Tomou fĂŽlego,
descansou um bocado; depois disse: â Encantei essa menina que vocĂȘs procuram, mas sĂł
poderei romper o encanto se vocĂȘs me trouxerem um fio decabelo da Iara. Sem isso Ă© impossĂvel.
â NĂŁo seja essa a dĂșvida â respondeu o saci. Iremosbuscar o fio de cabelo da Iara. As, se ao voltarmos, vocĂȘ nĂŁo
quebrar o encanto, juro que deixarei o pingo pingar nessatesta horrenda, nĂŁo cem anos, mas cem mil anos, estĂĄouvindo?
E, dizendo isto, tomou Pedrinho pela mĂŁo e retirou-secom ele da caverna.
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CapĂtulo XXVI
A Iara
â Vamos Ă cachoeira onde mora a Iara â disse. â Essarainha das ĂĄguas costuma aparecer sobre as pedras nasnoites de lua. E muito possĂvel que possamos surpreendĂȘ-la apentear os seus lindos cabelos verdes com o pente de ouroque usa.
â Dizem que Ă© criatura muito perigosa â murmurouPedrinho.
â PerigosĂssima â declarou o saci. â Todo o cuidado Ă©
pouco. A beleza da Iara dĂłi tanto na vista dos homens que oscega e os puxa para o fundo dâĂĄgua. A Iara tem a mesmabeleza venenosa das sereias. VocĂȘ vai fazer tudo direitinhocomo eu mandar. Do contrĂĄrio, era uma vez o neto de DonaBenta! ...
Pedrinho prometeu obedecer-lhe cegamente.Andaram, andaram, andaram. Por fim chegaram a uma
grande cachoeira cujo ruĂdo jĂĄ vinham ouvindo de longe. â Ă ali â disse o perneta apontando. â Ă ali que ela
costuma vir pentear-se ao luar. Mas vocĂȘ nĂŁo pode vĂȘ-la. Temde ficar bem quietinho, escondido aqui atrĂĄs desta pedra esem licença de pĂŽr os olhos na Iara. Se nĂŁo fizer assim, hĂĄ dearrepender-se amargamente. O menos que poderĂĄ acontecerĂ© ficar cego.
Pedrinho prometeu, e de medo de nĂŁo cumprir oprometido foi logo tapando os olhos com as mĂŁos.
O saci partiu, saltando de pedra em pedra, para logodesaparecer por entre as moitas de samambaias e begĂŽnias
silvestres.Vendo-se sĂł, Pedrinho arrependeu-se de haver
prometido conservar-se de olhos fechados. Jå tinha visto oLobisomem, o Caipora, o Curupira, a Cuca. Por que nãohavia de ver a Iara também? O que diziam do poder fatal dosseus encantos certamente que era exagero. Além disso,poderia usar um recurso: espiar com um olho só. O gosto decontar a toda gente que tinha visto a famosa Iara valia bemum olho.
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Assim pensando, e não podendo por mais tempo resistirà tentação, fez como o saci: foi pulando de pedra em pedra,seguindo o mesmo caminho por ele seguido.
SĂșbito, estacou, como fulminado pelo raio. Ao galgar
uma pedra mais alta do que as outras, viu, a cinqĂŒentametros de distĂąncia, uma ninfa de deslumbrante beleza, emrepouso numa pedra verde de limo, a pentear com um pentede ouro os longos cabelos verdes cor do mar. Mirava-se noespelho das ĂĄguas, que naquele ponto formava uma bacia desuperfĂcie parada. Em torno dela centenas de vaga-lumesdescreviam cĂrculos no ar eram a coroa viva da rainha dasĂĄguas. JĂłia bela assim, pensou Pedrinho, nenhuma rainhada terra jamais possuiu. A tonteira que a vista de Iara causa
nos mortais tomou conta dele. Esqueceu atĂ© do seu plano deolhar com um olhe sĂł. Olhava com os dois, arregaladĂssimos,e cem olhos que tivesse, com todos os cem olharia.
Enquanto isso, ia o saci se aproximando da mĂŁe-d'ĂĄgua,cautelosamente, com infinitos de astĂșcia para que ela nadapercebesse. Quando chegou a poucos metros de distĂąncia,deu um pulo de gato e nhoque ! furtou-lhe um fio de cabelo.
O susto da Iara foi grande. Desferiu um grito eprecipitou-se nas ĂĄguas, desaparecendo.
O saci nĂŁo esperou por mais. Com espantosa agilidadede macaco, aos pinotes, saltando as pedras de duas em duas,de trĂȘs em trĂȘs, num momento se achou no ponto ondePedrinho, ainda no deslumbramento da beleza, jazia de olhosarregalados, imĂłvel, feito uma estĂĄtua.
â Louco! â exclamou o saci lançando-se a eleesfregando-lhe nos olhos um punhado de folha colhidas nomomento. â NĂŁo fosse o acaso ter posto aqui ao meu alcanceesta planta maravilhosa e vocĂȘ estaria perdido para sempre.
Louco, dez vezes louco, louquĂssimo, que vocĂȘ Ă©, Pedrinho!Por que me desobedeceu? â NĂŁo pude resistir â respondeu o menino logo que a
fala lhe voltou. â Era tĂŁo linda, tĂŁo linda, tĂŁo linda, que meconsiderei feliz de perder atĂ© os dois olhos em troca doencantamento de contemplĂĄ-la por uns segundos.
â Pois saiba que cometeu uma grande falta. NĂŁo deviapensar unicamente em si, mas tambĂ©m na pobre DonaBenta, que Ă© tĂŁo boa, e na sua mĂŁe e em Narizinho. Eu,
apesar de um simples saci, tenho melhor cabeça do que vocĂȘ,pelo que estou vendo...
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Aquelas palavras calaram no menino, que nada teve adizer, achando que realmente o saci tinha toda razĂŁo.
â Bem â continuou o duendezinho â agora que operigo jĂĄ passou, trataremos de voltar Ă caverna da Cuca. E
depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos aDona Benta estar no sĂtio com a menina sumida logo aoromper da manhĂŁ.
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CapĂtulo XXVII
Na caverna da Cuca
Voltando os dois na maior pressa para os domĂnios daCuca, encontraram-na com um estranho ar de riso nahorrenda boca, a falar sozinha, como se estivesse muitosatisfeita da vida. Assim, porĂ©m, que os viu de novo por lĂĄ, abruxa estremeceu e o seu sorriso transformou-se numacareta de cĂłlera e desespero.
â Conseguiram voltar? â exclamou traindo os seusmaus pensamentos.
â EstĂĄ claro que sim! â respondeu o saci. â E trouxeram o fio de cabelo da Iara? â EstĂĄ claro que sim! â repetiu o saci. â Ei-lo aqui,
disse, apresentando Ă horrenda megera o verde fio de cabeloda mĂŁe-d'ĂĄgua.
A Cuca estorceu-se toda dentro do novelo de cipĂłs numsupremo arranco para libertar-se daquela prisĂŁo. Nadaconseguindo, pĂŽs-se a vociferar e a soltar pela horrĂvel bocauma espuma venenosa.
Aquela história da Iara e do fio de cabelo tinha sidoapenas um embuste de que lançara mão para perder o saci emenino, na certeza de que nenhum deles resistiria aosencantos da Iara. Mas vendo que se tinha enganado, debatia-se no maior acesso de cólera e desespero, sentindo-secompletamente vencida. E por quem! Por um menino de noveanos e mais um sacizinho...
Entretanto, pĂ©rfida como era, tentou ainda usar daastĂșcia. Acalmou-se e disse, num tom muito amĂĄvel:
âMuito bem. Mas esse fio de cabelo da Iara nĂŁo bastapara romper o encanto da menina. Preciso ainda de um fio debarba do Caipora.
â Perfeitamente, Senhora Cuca. Ali em cima daquelasestalactites estĂĄ o fio de barba do Caipora de que vocĂȘ precisa â disse o saci, apontando para o pingo dâĂĄgua. â Vou jĂĄbuscĂĄ-lo...
Vendo pela firmeza das palavras do saci que era inĂștiltentar enganĂĄ-lo segunda vez, a Cuca deu um profundo ai e
confessou-se vencida.
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â Meus parabĂ©ns. VocĂȘs descobriram a Ășnica arma nomundo capaz de vencer uma Cuca â esse miserĂĄvel pingodâĂĄgua... Farei como querem. Desencantarei a menina.Voltem ao sĂtio, procurem perto do pote dâĂĄgua uma flor azul
que lå deixei, arranquem-lhe as pétalas e lancem-nas aovento logo ao romper da manhã. Narizinho, que deixeitransformada em pedra, reaparecerå imediatamente.
â E se isso for um embuste como da primeira vez? â perguntou Pedrinho.
â NĂŁo Ă©, reconheço que fui vencida em teimar. Voltemao sĂtio, façam o que eu disse e depois venham desamarrar-me. Juro que jamais perseguirei qualquer pessoa lĂĄ do sĂtio.
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CapĂtulo XXVIII
Desencantamento
A madrugada jĂĄ vinha rompendo quando os doisaventureiros chegaram de novo ao sĂtio. Dona Benta e tiaNastĂĄcia, estavam ainda acordadas, porĂ©m mais calmas doque da primeira vez. Assim que os viram entrar, exclamaramambas ao mesmo tempo:
â Trouxeram Narizinho? â Sim, vovĂł â respondeu Pedrinho sem ter a certeza de
que ela se desencantaria ou nĂŁo. â Espere mais um minuto
que vai ver de novo sua neta, forte e corada como sempre.Falou e correu a ver se atrĂĄs do pote existia alguma flor
azul.LĂĄ estava ela, a tal flor azul â esquisitĂssima e diferente
de todas as flores conhecidas. O menino tomou-a, desfolhou-a e lançou as pétalas ao vento, como a Cuca mandara.
Mal acabou de fazer isso, um fato maravilhoso se deu.Uma pedra do terreiro, que ninguém se lembrava de ter vistoali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente.
Segundos depois essa forma de gente começou a apresentaros traços de Narizinho, que, por fim, reapareceu tal qual era,forte e corada como Pedrinho o prometera a Dona Benta.
Foi uma alegria. As duas velhas atiraram-se Ă menina echoraram quantas lĂĄgrimas ainda tinham dentro de si â masdesta vez do mais puro contentamento.
â EntĂŁo, minha filha, que foi que aconteceu? â perguntou Dona Benta.
Narizinho, ainda tonta, de pouco se recordava. Minutos
após, entretanto, suas idéias principiaram a aclarar-se e pÎdecontar o que havia sucedido.
â Estou me lembrando, â disse levando a mĂŁo pelatesta. â Foi assim. Eu estava com a EmĂlia debaixo da jabuticabeira. De repente, uma velha, muito velha e coroca,aproximou-se de mim com um sorriso muito feio na cara.
â "Que Ă© que a senhora deseja?" â perguntei-lhenaturalmente.
â "Desejo apenas oferecer Ă menina esta linda flor" â
respondeu ela, apresentando-me uma flor azul muitoesquisita. â"Cheire; veja que maravilhoso perfume tem."
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â Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma, cheirei a talflor â e imediatamente meu corpo principiou a endurecer.Perdi a fala; virei pedra. De nada mais me lembro senĂŁo que,de repente, fui revivendo outra vez e aqui estou...
SĂł entĂŁo Dona Benta compreendeu que Pedrinho atinha enganado para evitar que ela morresse de dor â eperdoou-lhe aquela boa mentira. Depois fez-lhe grandeselogios, quando soube do muito que ele tivera de lutar paraque a horrenda Cuca revivesse a menina.
â Vejo, Pedrinho, que vocĂȘ Ă© um verdadeiro herĂłi. Essaproeza que acaba de realizar atĂ© merece aparecer num livrocomo uma das mais notĂĄveis que um menino da sua idadeainda praticou.
â Espere, vovĂł â disse Pedrinho com modĂ©stia. â Se asenhora emprega essas palavras para mim, que palavrasempregarĂĄ para o meu amigo saci? Na verdade foi ele quemfez tudo. Sem a sua astĂșcia e conhecimento da vidamisteriosa da floresta e dos hĂĄbitos da Cuca, eu sozinho nadateria conseguido. Absolutamente nada. Agradeça ao saci, quenĂŁo faz senĂŁo dar o seu ao seu dono, como diz tia NastĂĄcia.
Todos se voltaram para o saci. Mas ... â Que Ă© do saci? â exclamaram a um tempo.
Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O herĂłicoduendezinho duma perna sĂł havia desaparecido. â Ingrato! â exclamou Narizinho com tristeza. â Foi-se
embora sem nem ao menos despedir-se de mim...De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido
injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho demiosĂłtis que nĂŁo podia ter sido posto lĂĄ senĂŁo pelo saci.MiosĂłtis em inglĂȘs Ă© forguet-me-not â que significa ânĂŁo-te-esqueças-de-mimâ.
â Que alma poĂ©tica ele tem! â murmurou a menina,comovida.
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