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DAIANA STURSA DE QUEIROZ MORALIDADE E COGNIÇÃO: UM ESTUDO COM CRIANÇAS DE 7 E 10 ANOS EM SITUAÇÃO DE RISCO SOCIAL Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos Ortega e coorientação do Prof. Dr. Sávio Silveira de Queiroz. UFES Vitória, 31 Outubro de 2014.

MORALIDADE E COGNIÇÃO: UM ESTUDO COM …portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_5101_Tese_DaianaStursaQueiroz.pdf · Um amor tão puro carregou meu pensamento Olha, um tico-tico mora

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  • DAIANA STURSA DE QUEIROZ

    MORALIDADE E COGNIO: UM ESTUDO COM CRIANAS DE 7 E 10 ANOS EM SITUAO DE RISCO SOCIAL

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Psicologia, sob a orientao do Prof. Dr. Antnio Carlos Ortega e coorientao do Prof. Dr. Svio Silveira de Queiroz.

    UFES Vitria, 31 Outubro de 2014.

  • Ficha catalogrfica

  • Moralidade e Cognio: um estudo com crianas

  • DEDICATRIA

    A todas as crianas que merecem um mundo melhor

    (Chovendo na roseira Tom Jobim)

    Olha, est chovendo na roseira Que s d rosa, mas no cheira

    A frescura das gotas midas Que de Betinho, que de Paulinho, que de Joo

    Que de ningum! Ptalas de rosa carregadas pelo vento

    Um amor to puro carregou meu pensamento Olha, um tico-tico mora ao lado

    E passeando no molhado adivinhou a primavera Olha, que chuva boa, prazenteira Que vem molhar minha roseira

    Chuva boa, criadeira

    Que molha a terra, que enche o rio, que lava o cu Que traz o azul!

    Olha, o jasmineiro est florido E o riachinho de gua esperta

    Se lana embaixo do rio de guas calmas

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todas as pessoas que direta ou indiretamente colaboraram

    para que este trabalho pudesse ser realizado. E, em destaque, manifesto minha

    gratido:

    Ao meu orientador Antnio Carlos Ortega a quem muito admiro e estimo,

    pelo incentivo, carinho, ateno, dedicao e generosidade.

    s professoras Claudia Broetto Rossetti e Helosa Moulin de Alencar, pelas

    crticas construtivas e pelas sugestes feitas por ocasio do Exame de

    Qualificao e em outros momentos da elaborao deste trabalho.

    secretria do Programa de Ps-Graduao Maria Lcia Ribeiro Fajli

    pelo acolhimento desde o primeiro ano de mestrado e por sempre ser to

    prestativa ao me auxiliar nos assuntos acadmicos.

    direo, coordenao, aos professores e ao corpo tcnico das

    instituies onde a coleta foi realizada. Aos familiares das crianas que se

    dispuseram e autorizaram seus filhos a participar de meu estudo. E, em especial,

    s crianas que me permitiram aprender a respeito de suas aes e

    pensamentos, o que originou a existncia desta pesquisa.

    s alunas da graduao que me auxiliaram, parcialmente, na transcrio e

    anlise dos dados: Adriana Canal de Vasconcellos e Luana Cantarela.

    Ao professor Francisco Peixoto pela preciosa reviso do texto.

    A Hannah Queiroz pela elaborao do Abstract e do Resum.

    minha companheira de orientao Alice Melo Pessotti que permitiu o uso

    de instrumental desenvolvido em seu mestrado e que descobriu, desbravou e

    venceu conjuntamente os obstculos interpostos por uma pesquisa de cunho

    qualitativo.

    s minhas queridas amigas Letcia Pires Dias e Camila Carlos Maia por

    compartilhar o universo psi desde a graduao.

    Aos meus pais, Penha e Carlos, por todo amor, apoio e carinho. Tambm

    pelo reconhecimento da importncia que devemos ter pela busca do

    conhecimento.

  • A minha irm Carla Stursa e ao meu cunhado Alessandro Vargas pelo

    incentivo ao estudo e por mostrar que devemos buscar nossos sonhos

    profissionais.

    Aos meus familiares e aos meus amigos em geral pela convivncia

    prazerosa, fundamental para a vida.

    CAPES e ao PPGP-UFES, pela bolsa de doutorado.

    Por fim mas em primeiro lugar no corao ao meu querido marido Svio

    Silveira de Queiroz! Homem que teve a sabedoria (de acreditar) e a coragem para

    transformar uma relao docente em uma perfeita relao de amor e

    cumplicidade. Deixou de ensinar contedos acadmicos para transmitir a alegria

    de viver e de compartilhar.

  • Queiroz, Daiana Stursa de. (2014). Moralidade e Cognio: um estudo com

    crianas de 7 e 10 anos em situao de risco social. Tese de doutorado,

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Universidade Federal do Esprito

    Santo. 234 p.

    RESUMO

    Esta tese objetivou investigar e descrever, em uma perspectiva psicogentica, relaes entre aspectos morais e cognitivos de crianas em situao de risco social, com base na teoria de Piaget. Participaram da pesquisa 20 crianas de 7 e 10 anos, de ambos os sexos, frequentadores de um projeto, mantido pela prefeitura municipal, que funciona no contraturno escolar na cidade de Vitria-ES. Foram utilizados dois instrumentos, aplicados na seguinte ordem: (1) Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Moral (IANDM) e (2) Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Cognitivo (IANDC). Foram elaborados critrios de anlise de dados ajustando anlise quantitativa e qualitativa, por meio dos quais foram estabelecidos (1) os nveis de resposta ao item (NRI) para cada um dos oito itens dos instrumentos; (2) o Nvel Geral de Desenvolvimento Moral (NGDM), (3) o Nvel Geral de Desenvolvimento Cognitivo (NGDC). Os resultados obtidos em relao ao IANDM permitiram verificar que a maioria das crianas de 7 anos alcanou o Nvel IB e a maioria das de 10 anos o Nvel IIA. Os resultados obtidos em relao ao IANDC permitiram verificar que a maioria das crianas de 7 anos alcanou o Nvel IB e a maioria das de 10 anos o Nvel IIIA. Assim, os principais resultados obtidos permitiram verificar que as crianas de 10 anos apresentaram nveis superiores em relao s de 7 anos nos dois instrumentos. Conclumos que os resultados encontrados permitem a ampliao do conhecimento sobre temtica de risco social por meio de uma metodologia original e que os instrumentos IANDM e IANDC so importantes ferramentas para diagnstico em Psicologia do Desenvolvimento.

    Palavras-chave: Desenvolvimento, Moralidade, Cognio, Piaget, Risco Social.

  • Queiroz, Daiana Stursa de. (2014). Morality and Cognition: a study of children between 7 and 10 years in social risk. PhD thesis, Graduate Program in Psychology, Federal University of Esprito Santo. 234 p.

    ABSTRACT

    This thesis aim was to investigate and describe, under a psychogenic perspective, the relationship between moral and cognitive aspects of children at social risk, based on the theory of Piaget. Participating were twenty children, of both genders, between 7 and 10 years, goers a project, maintained by the municipal government, which works after school in Vitria-ES, Brasil. Two tools were chosen, and applied in the following order: (1) Assessment Instrument of Moral Level Development (IANDM) and (2) Assessment Instrument of Cognitive Level Development (IANDC). Data analysis criteria were developed observing their quantity and quality, which established (1) the Response Levels to Item (NRI) for each of the eight items of the instruments; (2) the General Level of Moral Development (NGDM), (3) the General Level of Cognitive Development (NGDC). Results showed that with regard to IANDM it enables us to confirm that most of the 7 year old children reached the IB level and most of the 10 year old ones the level IIA. Results showed that with regard to IANDC it enables us to confirm that most of the children who are 7 years old reached the IB level and most of the 10 years the Level IIIA. Therefore, the principal results showed that 10 year olds had higher levels when compared to 7 year olds, in both instruments. We concluded a broadening knowledge on the scope of social risk, through a unique methodology, and that IANDM and IANDC are essential tools in the diagnosis of Developmental Psychology. Keywords: Development, Morality, Cognition, Piaget, Social Risk.

  • Queiroz, Daiana Stursa de. (2014). La morale et la cognition: une tude sur les enfants entre 7 et 10 ans en situation de risque social. Thse de doctorat, programme d'tudes suprieures en psychologie, Universit fdrale de Espirito Santo. 234 p.

    RSUM

    Cette recherche a lobjectif dtudier et dcrire, dans une perspective psychogne, la relations entre les aspects moraux et cognitifs des enfants sur risque social, base sur la thorie de Piaget. Les vingt participants, des deux genres, taient des enfants entre les ges 7 et 10, les clients d'un projet, maintenu par le gouvernement municipal, qui travaille aprs l'cole en Vitria-ES, Brsil. Deux instruments ont tait choisi et appliqus dans l'ordre suivante: (1) Instrument d'valuation du niveau de dveloppement moral (IANDM) et (2) Instrument d'valuation du niveau de dveloppement cognitif (IANDC). Des critres pour l'analyse des donnes instruments ont t tablis, par la mise en analyse quantitative et qualitative, au moyen desquels c'tait trouvait (1) ) les niveaux l'objet de rponse (NRI) pour chacun des huit lments des instruments; (2) le niveau gnral de dveloppement moral (NGDM), (3) le niveau gnral du dveloppement cognitif (NGDC). Les rsultats obtenus par rapport IANDM aid confirment que la plupart des enfants de 7 ans ont atteint le niveau IB et la plupart des 10 ans, le niveau IIA. Les rsultats obtenus par rapport IANDC aid confirment que la plupart des enfants de 7 ans ont atteint le niveau IB et la plupart des 10 ans, le niveau IIIA. Ainsi, les principaux rsultats obtenus ont montr que les enfants de 10 ans ont des niveaux plus levs par rapport que ils ont avec lge 7, avec les deux instruments. Nous avons conclu que les rsultats obtenus permirent le dveloppement de la science sur les thmes de risque social grce une mthodologie unique, et que IANDM et IANDC sont des instruments essentiels pour le diagnostique dans la Psychologie du Dveloppement. Mots-cls: Dveloppement, La morale, La cognition, Piaget, Risques sociaux.

  • SUMRIO

    Apresentao.......................................................................................................17

    1. Referencial terico...........................................................................................19

    1.1. Desenvolvimento moral segundo a teoria de Jean Piaget...................19

    1.1.1. Estudos brasileiros contemporneos sobre moralidade

    infantil................................................................................................30

    1.2. Desenvolvimento cognitivo segundo a teoria de Jean Piaget..............45

    1.2.1. Estdios de desenvolvimento cognitivo..................................50

    1.3. Mtodo Clnico na investigao do desenvolvimento segundo a

    perspectiva piagetiana.................................................................................56

    1.4. Risco social e suas consequncias para o desenvolvimento...............60

    2. Posio do problema e Objetivos..................................................................65

    2.1. Objetivo geral.......................................................................................68

    2.2. Objetivos especficos............................................................................68

    3. Aspectos metodolgicos................................................................................69

    3.1. Participantes.........................................................................................69

    3.2. Instrumentos.........................................................................................70

    3.2.1. Roteiro de Anamnese.............................................................70

    3.2.2. Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Moral

    (IANDM)............................................................................................71

    3.2.3. Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento

    Cognitivo (IANDC)............................................................................75

    3.3. Procedimento.......................................................................................84

    3.4. Critrios de anlise de dados...............................................................86

    3.5. Aspectos ticos..................................................................................130

    4. Resultados e Discusso................................................................................132

  • 4.1. Resultados obtidos no IANDM...........................................................132

    4.2. Resultados obtidos no IANDC............................................................169

    4.3. Comparao entre os resultados obtidos no IANDM e no IANDC.....195

    5. Consideraes Finais....................................................................................200

    6. Referncias Bibliogrficas............................................................................209

    Apndices Impressos........................................................................................218

    Apndice A. Roteiro de entrevista de Anamnese......................................219

    Apndice B. Desenhos que ilustram as estrias-dilemas do IANDM........221

    Apndice C1. Carta de solicitao para realizao da pesquisa junto

    Secretaria de Ao Social do municpio de Vitria-ES.............................228

    Apndice C2. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para

    participao em pesquisa.........................................................................230

    Apndice C3. Termo de assentimento Livre e Esclarecido para participao

    em pesquisa.............................................................................................232

    Apndice D. Tipificao do Nvel Geral de Desenvolvimento segundo nveis

    evolutivos dos itens do IANDC e IANDM..................................................234

    Apndices Digitalizados em CD

    Apndice E. Tabelas E1 a E8 com exemplos de classificao por NRI para

    os itens do IANDC

    Apndice F. Planilha com classificao dos dados do IANDM

    Apndice G. Planilha com classificao dos dados do IANDC

    Apndice H. Tabelas com anlise de contedo dos panoramas resumidos

    das respostas dadas pelos participantes no IANDM

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Categorias de respostas de uma entrevista clnica pelo Mtodo Clnico...............................................................................................57

    Figura 2 Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Moral IANDM..............................................................................................71

    Figura 3 Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Cognitivo IANDC...............................................................................................76

    Figura 4 Modelo explicativo do quadro de critrios de anlise...............................................................................................87

    Figura 5 Proporo dos trs Nveis de Respostas ao Item nos Nveis Gerais de Desenvolvimento do IANDM e IANDC.......................................126

    Figura 6 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 1 do IANDM............................................................................................132

    Figura 7 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 2 do IANDM............................................................................................136

    Figura 8 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 3 do IANDM............................................................................................140

    Figura 9 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 4 do IANDM............................................................................................143

    Figura 10 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 5 do IANDM............................................................................................148

    Figura 11 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 6 do IANDM............................................................................................151

    Figura 12 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 7 do IANDM............................................................................................157

    Figura 13 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 8 do IANDM............................................................................................164

    Figura 14 Frequncia dos Nveis Gerais de Desenvolvimento Moral (NGDM) ........................................................................................................167

    Figura 15 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 1 do IANDC.............................................................................................169

    Figura 16 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 2 do IANDC.............................................................................................173

  • Figura 17 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 3 do IANDC.............................................................................................177

    Figura 18 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 4 do IANDC.............................................................................................180

    Figura 19 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 5 do IANDC.............................................................................................183

    Figura 20 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 6 do IANDC.............................................................................................185

    Figura 21 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 7 do IANDC.............................................................................................188

    Figura 22 Frequncia dos Nveis de Respostas ao Item 8 do IANDC.............................................................................................191

    Figura 23 Frequncia dos Nveis Gerais de Desenvolvimento Cognitivo (NGDC) ..........................................................................................193

    Figura 24 Frequncia dos Nveis Gerais de Desenvolvimento Moral e Cognitivo segundo as idades dos participantes..............................................195

    Figura 25 Relao entre os Nveis Gerais de Desenvolvimento alcanados pelos participantes no IANDM e IANDC.........................................196

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Caracterizao dos participantes da pesquisa de acordo com idade e sexo..................................................................................................69

    Tabela 2 Critrios de anlise para o Item 1 do IANDM...................................90

    Tabela 3 Nveis de resposta ao Item 1 do IANDM...........................................90

    Tabela 4 Critrios de anlise para o Item 2 do IANDM...................................91

    Tabela 5 Nveis de resposta ao Item 2 do IANDM...........................................91

    Tabela 6 Critrios de anlise para o Item 3 do IANDM...................................92

    Tabela 7 Nveis de resposta ao Item 3 do IANDM...........................................92

    Tabela 8 Critrios de anlise para o Item 4 do IANDM...................................93

    Tabela 9 Nveis de resposta ao Item 4 do IANDM...........................................93

    Tabela 10 Critrios de anlise para o Item 5 do IANDM...................................94

    Tabela 11 Nveis de resposta ao Item 5 do IANDM...........................................94

    Tabela 12 Critrios de anlise para o Item 6 do IANDM...................................95

    Tabela 13 Nveis de resposta ao Item 6 do IANDM...........................................96

    Tabela 14 Critrios de anlise para o Item 7 do IANDM...................................97

    Tabela 15 Nveis de resposta ao Item 7 do IANDM...........................................98

    Tabela 16 Critrios de anlise para o Item 8 do IANDM...................................98

    Tabela 17 Nveis de resposta ao Item 8 do IANDM...........................................99

    Tabela 18 Critrios de anlise para o Item 1 do IANDC..................................100

    Tabela 19 Nveis de resposta ao Item 1 do IANDC.........................................101

    Tabela 20 Critrios de anlise para o Item 2 do IANDC..................................102

    Tabela 21 Nveis de resposta ao Item 2 do IANDC.........................................103

    Tabela 22 Critrios de anlise para o Item 3 do IANDC..................................104

    Tabela 23 Nveis de resposta ao Item 3 do IANDC.........................................105

    Tabela 24 Critrios de anlise para o Item 4 do IANDC..................................106

  • Tabela 25 Nveis de resposta ao Item 4 do IANDC.........................................107

    Tabela 26 Critrios de anlise para o Item 5 do IANDC..................................108

    Tabela 27 Nveis de resposta ao Item 5 do IANDC.........................................109

    Tabela 28 Critrios de anlise para o Item 6 do IANDC..................................110

    Tabela 29 Nveis de resposta ao Item 6 do IANDC.........................................111

    Tabela 30 Critrios de anlise para o Item 7 do IANDC..................................112

    Tabela 31 Nveis de resposta ao Item 7 do IANDC.........................................113

    Tabela 32 Critrios de anlise para o Item 8 do IANDC..................................115

    Tabela 33 Nveis de resposta ao Item 8 do IANDC.........................................114

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ANPEPP Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Psicologia

    CAJUNS Caminhando Juntos

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    C+ coerncia forte

    C- coerncia fraca

    DA domnio ausente

    DP domnio presente

    DVD disco digital verstil

    GT Grupo de Trabalho

    IANDM Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Moral

    IANDC Instrumento de Avaliao do Nvel de Desenvolvimento Cognitivo

    LA legitimao argumentada

    LNA legitimao no argumentada

    NGD Nvel Geral de Desenvolvimento

    NGDC Nveis Gerais do Desenvolvimento Cognitivo

    NGDM Nveis Gerais do Desenvolvimento Moral

    NRI Nvel de Resposta ao Item

    PC perguntas de controle

    PCT pergunta de contraposio

    PE perguntas de explorao

    PJ perguntas de justificao

    PPGP Programa de Ps-Graduao em Psicologia

    SUAS Sistema nico de Assistncia Social

    T- contradio fraca

    T+ contradio forte

    UFES Universidade Federal do Esprito Santo

    UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    http://www.vitoria.es.gov.br/prefeitura/assistencia-social-e-gerenciada-por-sistema-unico-e-participativo

  • 17

    APRESENTAO

    A situao de risco social aparece na literatura como condio para

    agravamento, desencadeamento e fomento de prejuzo e transtornos do

    desenvolvimento infato-juvenil ligados ao funcionamento interindividual e

    intraindividual, bem como social (Cecconello, 2003; Hutz & Koller, 1997; Hutz &

    Silva, 2002; Maia & Williams, 2005; Montoya, 1996; Oliveira, 1998; Paludo, 2008;

    Poletto & Koller, 2008; Yunes e Szimansky, 2005). Tais efeitos podem tanto

    estender-se vida adulta quanto ser nulos diante de indivduos ditos resilientes.

    Nesse sentido, pesquisas sobre tal problemtica tm sido realizadas nas ltimas

    dcadas, a fim de entender a interao dos multifatores que esto como

    vulnerabilidade e caractersticas do desenvolvimento dos sujeitos. No entanto,

    constata-se, em breve busca em bancos de dados de pesquisas cientficas, que

    muitas questes ainda necessitam serem respondidas sobre o tema (Hutz &

    Koller, 1997; Hutz & Silva, 2002). Alm disso, contata-se a escassez de

    metodologia ajustada para a abordagem de avaliao e de interveno dos

    processos de desenvolvimento de crianas e adolescentes (Montoya, 1996; Moro,

    1986; Perosa e Gabara, 2004; Roazzi, 1986; Yunes e Szimansky, 2005).

    Seguindo esse caminho, esta tese visa contribuir para a temtica com base

    no (1) desenvolvimento de pesquisa exploratria sobre desenvolvimento moral e

    cognitivo com sujeitos em situao de risco social e no (2) desenvolvimento de

    instrumentao de diagnstico do desenvolvimento infantil. Para tanto,

  • 18

    esboamos como problema de pesquisa a questo geral: Quais so as relaes,

    de acordo com a Psicologia e Epistemologia Gentica de Jean Piaget, que podem

    existir entre aspectos do desenvolvimento moral e cognitivo de crianas em

    situao de risco social?

    Os captulos que compem este trabalho so apresentados pelos

    respectivos contedos. Inicialmente, no primeiro captulo, realizamos um conciso

    panorama do Referencial Terico em que este trabalho est fundamentado, ou

    seja, retratamos aspectos da Epistemologia e da Psicologia Gentica Piagetiana,

    ligadas ao desenvolvimento moral e cognitivo, alm de pesquisas com

    aproximao temtica ao nosso trabalho e investigaes similares s nossas.

    No segundo captulo, o Problema de Pesquisa situado e o Objetivo

    Geral e os Especficos so apresentados. Em seguida, apresentamos e

    discutimos no terceiro captulo, os Aspectos Metodolgicos com descrio dos

    participantes, instrumentos e procedimentos utilizados para coleta de dados, bem

    como os critrios de anlise de dados estabelecidos, entre outros pontos. J o

    quarto captulo trata dos Resultados e Discusso dos dados, com itens dividindo

    os resultados oriundos de trs dos quatro instrumentos utilizados, e as

    comparaes entre eles. E, finalmente, no quinto captulo apresentamos as

    Consideraes Finais em que procuramos discutir pontos deste trabalho que

    no se configuram como resultados, retomamos os resultados mais relevantes

    com a formulao de hipteses sobre os dados, e sugerimos direes para novas

    pesquisas.

  • 19

    1. REFERENCIAL TERICO

    1.1. DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO A TEORIA DE JEAN PIAGET

    Atribui-se s investigaes de Jean Piaget (1932/1994) no livro O juzo

    moral na criana o pioneirismo no estudo da temtica da moralidade no campo da

    Psicologia. Ainda assim, possvel encontrar discusses das implicaes do

    desenvolvimento afeto-moral infantil em outras produes do autor (Piaget,

    1964/1978; Piaget & Inhelder, 1966/1998; Piaget, Menin, Arajo, La Taille &

    Macedo, 1996). Entretanto, em vrios autores clssicos encontram-se reflexes

    acerca desse tema. Destacamos dois filsofos como os principais expoentes que

    influenciaram a psicologia da moralidade o grego Aristteles (384-322 a.C./1996),

    o qual definiu moral como a busca do bem e da felicidade, e o alemo Emmanuel

    Kant (1788/2008), que teorizou a verdadeira moral como aquela baseada no

    dever de agir de acordo com princpios universais.

    Mais recentemente, temos o norte-americano Lawrence Kohlberg

    (1984/1992) que, para Alencar (2003), o autor que mais tem influenciado os

    estudos em psicologia do desenvolvimento moral. Kohlberg (1984/1992) criou um

    modelo psicogentico de desenvolvimento moral diferenciado da perspectiva

    piagetiana. Descreveu uma sequncia hierrquica e universal de trs grandes

    estgios que se subdividem em dois subestgios, totalizando, assim, seis nveis.

    Resumidamente, no estgio pr-convencional a moral interpretada como

    obedincia autoridade e orientada pela avaliao sobre as punies e

    javascript:nova_pesquisa(%2217241804.%22,%2257644%22,100);

  • 20

    recompensas que a ao ter; no segundo estgio, denominado convencional, a

    moral est relacionada pratica de aes ligadas ao que esperado pelo grupo,

    independentemente da consequncia que a ao provocar. No ltimo estgio,

    denominado de ps-convencional, a moral interpretada como exerccio

    autnomo dos princpios universais (de justia e role-taking, por exemplo).

    Em decorrncia do antagonismo entre as correntes universalista e

    relativista, Biaggio (1999) aponta diversos autores que se destacam em estudos

    sobre juzo moral. Para a autora, os norte-americanos Elliot Turiel e Larry Nucci

    distinguem-se de Kohlberg. Turiel por considerar a manifestao da moral ps-

    convencional em pr-escolares e por assinalar trs domnios em relao esfera

    das regras (pessoal, convencional e moral); e Nucci por enfatizar pesquisas sobre

    valores a partir do domnio pessoal. A autora ainda destaca pesquisas

    desenvolvidas por James Rest, aproximando-as da teoria kohlbergiana, por

    considerar uma sequncia natural do desenvolvimento moral (que no depende

    de ensinamentos essencialmente culturais) atingida por meio da reflexo sobre a

    experincia, e afastando-as das concepes de sequncia evolutiva defendidas

    por Turiel. Quanto ao portugus Orlando Loureno e ao alemo Lutz

    Eckensberger, a referida autora os posiciona, respectivamente, em uma

    perspectiva universalista e transcultural defensora das propostas kohlbergiana e

    piagetiana. Por fim, Biaggio (1999) discute a posio universalista da tica do

    cuidado de Carol Gilligan, demonstrando que estudos transculturais no

    evidenciam com preciso diferenas de gnero.

    No Brasil notria a teoria moral desenvolvida por La Taille (2010). O autor

    prope a personalidade tica para apreender os planos moral e tico envolvidos

  • 21

    na ao moral. Assim, considera o plano moral relacionado ao sentimento de

    obrigatoriedade, pois sempre est ligado a valores, princpios e regras e expresso

    pela mxima: que vida eu devo viver?. Por sua vez, o plano tico alinha-se

    vida realizada ou vida boa, com a mxima: que vida vale a pena viver?.

    Portanto, o entendimento da personalidade tica possibilita saber a motivao

    para agir ou no dentro da moral vigente. Assim, para o autor a busca pela vida

    realizada, ou seja, para que a vida faa sentido, liga-se possibilidade de

    expanso de si1. Sobre isso, La Taille (2006) conclui que

    a hiptese de que a vida somente pode fazer sentido para quem experimenta o sentimento de nela auto afirmar-se, expandir-se, em uma palavra, atribuir-se valor. Pela recproca, quem no consegue, seja l por que motivo for, atribuir a si prprio valor, no consegue dar sentido sua vida e, logo, no usufrui de uma vida boa. (p.112)

    La Taille (2006) ainda discute que a personalidade tica composta de

    representaes de si (o que o sujeito considera ser) que se estabelecem com

    base em valores. Por conseguinte, o autor assinala que primordial para a vida

    humana buscar representaes de si com valor positivo. Conclumos que o autor

    desenvolve uma teoria sobre a moralidade que considera aspectos afetivos

    (expanso de si condio necessria, mas no suficiente), sem desconsiderar

    outras fontes de motivao, para o entendimento de uma perspectiva tica que

    respalda os comportamentos ou condutas morais do sujeito.

    Vale (2006) destaca que a produo nacional acerca do desenvolvimento

    sociomoral procedeu, nas ltimas duas dcadas, em sua grande maioria da

    1 La Taille (2006) apoia-se em Piaget (1954) para resgatar o conceito de expanso de si prprio

    como tendncia superao de si mesmo, enquanto um vetor do desenvolvimento e da motivao principal dos comportamentos.

  • 22

    Universidade Federal da Paraba (Abreu, Moreira & Rique, 2011; Sampaio,

    Camino & Roazzi, 2007) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (Biaggio, 1999; Freitas, 1999, 2002; Koller, 1994; Koller & Bernardes, 1997).

    Como o estudo de aspectos do juzo moral atualmente tema de crescente

    interesse dentro da psicologia do desenvolvimento, no podemos deixar de fazer

    referncia s investigaes e publicaes relacionadas aos pesquisadores do

    Grupo de Trabalho (GT) Psicologia e Moralidade da Associao Nacional de

    Pesquisa e Ps-Graduao em Psicologia (ANPEPP), do qual outros ncleos

    surgiram com importantes produes de cunho acadmico. Elencamos os

    trabalhos da Universidade de So Paulo coordenados por La Taille (2001, 2006,

    2010), da Universidade Federal do Esprito Santo (Alencar, 2003; Pessotti, Ortega

    & Alencar, 2011; Vale, 2006; Vale & Alencar, 2008), da Universidade Estadual

    Paulista (Menin, 2013; Menin, Bataglia & Moro, 2013) e da Universidade Estadual

    de Campinas (Tognetta & Assis, 2006).

    A respeito de Piaget (1932/1994), destacamos que o autor considerou os

    jogos infantis excelentes instituies sociais, dispondo de um sistema real e

    complexo de regras e contendo uma moral implcita. Para tanto, investigou os

    jogos Bola de gude, Pique e Amarelinha (populares entre meninos e meninas na

    poca do estudo) a fim de compreender como as crianas se relacionam com as

    regras e qual a relao disso com a formao do juzo moral. Observou,

    descreveu e analisou dois fenmenos ligados s regras: a prtica e a conscincia

    das regras (Queiroz, Ronchi e Tokumaru, 2009). A prtica das regras consiste na

    forma pela qual as regras so aplicadas no jogo pelas crianas de diferentes

    idades e a conscincia das regras significa a maneira pela qual as crianas

  • 23

    apresentam o carter sagrado, indispensvel, ou acordado. Ressalta que as

    relaes existentes entre a prtica e a conscincia da regra so, de fato, as que

    melhor permitem definir a natureza psicolgica das realidades morais (Piaget,

    1932/1994, p. 24).

    Por meio de suas investigaes, caracterizou quatro estgios consecutivos

    acerca da prtica das regras, a saber: motor e individual, egocntrico, de

    cooperao nascente, e com codificao das regras. No primeiro estgio, a

    criana pequena manuseia os objetos que envolvem a brincadeira de acordo com

    as prprias aspiraes e hbitos motores, no configurando nenhum tipo de regra

    compartilhada. As regras assimiladas do exterior no interferem na busca por

    adversrios quando a criana, na prtica egocntrica, brinca sem uniformizar os

    modos de jogar e sem procurar vencer. Na cooperao nascente, reconhece as

    regras, unifica-as e as controla mutuamente com os demais adversrios,

    procurando venc-los. Por fim, no estgio da codificao das regras, a criana as

    compartilha com os demais, regulamentando-as at em suas mincias.

    Com relao conscincia das regras, estipulou trs fases ou estgios que

    ocorrem intercalados aos estgios da prtica das regras. No primeiro deles, a

    regra ou puramente motora, ou experimentada para fins de interesse, sem

    vigorar como condio obrigatria para jogos e brincadeiras, apresentando-se no

    incio do estgio egocntrico da prtica das regras. Em seguida, em meio aos

    estgios de prtica egocntrica e de cooperao nascente, observa-se uma

    preocupao para praticar a regra, j que esta entendida como consagrada,

    imutvel (mudanas so consideradas transgresses) e eterna, pois

    fundamentalmente advm da criao adulta. No ltimo estgio da conscincia das

  • 24

    regras (inicia-se em meados da cooperao nascente, fortalecendo-se no estgio

    da prtica codificada das regras), o respeito mtuo s regras torna-se obrigatrio,

    mas elas podem ser modificadas desde que todos concordem. Desse modo, nota-

    se que a regra passa de algo exterior ao sujeito para, assim que interiorizada,

    tornar-se expresso de uma conscincia livre e respaldada pelo consentimento

    mtuo (Queiroz et al, 2009).

    Depois de ter estudado a relao das crianas com o jogo, Piaget

    (1932/1994) investigou, por meio de interrogatrio sobre diversas histrias,

    aspectos do juzo moral infantojuvenil, tais como responsabilidade,

    desajeitamento e intencionalidade, roubo, mentira, justia, problemas que

    envolvem punio e respeito autoridade em oposio busca por relao de

    igualdade, entre outros. Expe trs fases distintas de entendimento e de

    vinculao com as regras denominadas anomia, heteronomia e autonomia

    (Piaget, 1932/1994; Freitas, 2002; Queiroz et al, 2009). Contudo, enfocaremos os

    aspectos sociais nelas envolvidas, mesmo que anlogos conscincia das regras

    dos jogos conforme apresentada.

    Piaget (1932/1994) afirma que no existem estgios globais capazes de

    determinar a vida psicolgica de um sujeito num dado momento de sua vida.

    Complementa declarando que ocorrem simultaneamente continuidades e rupturas

    que tanto perpetuam certa continuidade funcional quanto refletem em diferenas

    qualitativas e estruturais na relao com cada novo conjunto de cdigos e normas

    e em cada novo plano de conscincia e reflexo do sujeito.

    Sobre isso, Piaget e Inhelder (1966/1998) discutem que, assim como os

    processos cognitivos, a moralidade humana se constitui pela interao social e

  • 25

    possui vnculos com a etapa em que se encontra o desenvolvimento do

    pensamento. Os autores ressaltam, assim como Piaget (1932/1994), que, mesmo

    no sendo adequado estabelecer idades fixas para as fases de desenvolvimento

    moral, observam-se reaes afetivas e estruturas tpicas da heteronomia antes

    dos 78 anos e de processos ligados autonomia aps os 10 anos de idade.

    Contudo, Alencar (2003) adverte que h pessoas que nunca ultrapassam o

    estgio do desenvolvimento ligado moral heternoma.

    Em um primeiro momento, o beb ou a criana pequena no aderem s

    normas institudas coletivamente, experimentando as regras a ttulo de

    curiosidade e em nvel motor. Esse estgio denominado de fase de anomia,

    pois o sujeito considerado pr-moral. Como a criana nasce imersa em um meio

    regulado por normas e princpios de vrios contextos, torna-se difcil (para no

    dizer que o egocentrismo torna essa tarefa impossvel) distinguir o que vem de si

    prpria e o que vem das outras coisas e pessoas, das regularidades do ambiente

    e da imposio do meio social. Na interao com outras crianas e adultos, a

    criana conseguir perceber e interiorizar as primeiras regras que lhe so

    impostas, adentrando o segundo estgio de conscincia das regras.

    A fase da moralidade heternoma est baseada na coao realizada por

    adultos e crianas mais velhas. Assim, as regras que comeam a ser conhecidas

    (inicialmente a criana s utiliza para si prpria suas novas descobertas) so

    aplicadas com flexibilidade pela criana pequena, pois esto resguardadas pela

    autoridade adulta. No entanto, imitadas ou inventadas, repetem-se atingindo, em

    algum momento, a concordncia tanto do sujeito quanto do meio. Desde ento, as

  • 26

    regras so acompanhadas de um sentimento de obrigao e praticadas com o

    status de sagradas, intocveis e imutveis.

    Tais regras externas, que paulatinamente esto sendo internalizadas pela

    criana, alm de serem impostas pela coao, so-no pelo respeito unilateral de

    autoridade e de prestgio (Piaget, 1932/1994; Freitas, 1999). Assim, o respeito

    unilateral caracterizado pelo temor do castigo e pelo receio da perda de amor da

    pessoa que personifica a autoridade. Quanto a isso, Alencar (2003) destaca que o

    medo sobressai ao amor e, quando o sujeito sinaliza algo a respeito desse

    sentimento, porque as regras so causadas pelo amor do outro.

    Observa-se, concomitantemente fase de heteronomia, o apego ao

    realismo moral. Este se refere a uma realidade (com deveres e os valores a ela

    relacionados) que obrigatoriamente deve ser preservada independentemente da

    conscincia e das circunstncias que envolvem o sujeito. Tal realismo moral

    acarreta, por sua vez, uma concepo objetiva sobre os atos, ou seja, a atribuio

    da chamada responsabilidade objetiva que se caracteriza por um juzo que no

    considera a motivao e a relao que levou prtica de determinada ao

    danosa. Alencar (2003) destaca que a responsabilidade objetiva ainda tem

    relao direta com a qualidade ou quantidade do dano causado ou de qualquer

    outra transgresso.

    Assim, o reconhecimento e a prtica cotidiana das regras e convenes

    sociais promovem a modificao do status de obrigatoriedade e eternidade delas

    para tornarem-se essenciais a ttulo de regulamentar as relaes entre os sujeitos

    (Freitas, 1999). A frequncia de repetio faz que a regra seja legitimada no

    mais como uma lei exterior, mas como resultado de uma livre deciso e como

  • 27

    digna de respeito medida que mutuamente consentida (Piaget, 1932/1994, p.

    60).

    Por sua vez, essa mudana de posio e de relao com a regra (de

    extrnseca para a interioridade do sujeito) fruto de uma construo progressiva e

    autnoma, passvel de modificaes e adaptaes segundo as necessidades e

    disposies do grupo no qual o sujeito se insere. Por conseguinte, inaugura-se a

    possibilidade de acordos, de construo e elaborao conjunta, de trocas e

    variaes, isto , articulaes prprias do exerccio cooperativo. Tal perspectiva

    origina a entrada na fase da moral autnoma porque o sujeito legisla sobre sua

    conduta, assim como sobre a dos demais, pois compartilha posio igualitria

    com seus pares.

    A igualdade de condio prpria de uma relao baseada na cooperao

    (Freitas, 1999; Piaget, 1932/1994; Menin, 2013). Essa atuao em um novo

    papel possui caractersticas apropriadas para possibilitar a construo do

    respeito mtuo em substituio ao respeito unilateral que at ento regularizava a

    interao do sujeito com as outras pessoas. No entanto, Alencar (2003, citando

    Piaget, 1932/1994) adverte que o respeito mtuo e a cooperao plena nunca se

    verificam completamente no sujeito, mantendo-se enquanto status utpico. Por

    outro lado, essa perspectiva til para entendermos a disposio com que se

    orienta o respeito quando no s fundamentado na coao e obedincia.

    Sobre isso, Piaget e Inhelder (1966/1998) afirmam que o respeito mtuo e

    a reciprocidade provocam uma espcie de produto, que o sentimento de justia,

    Piaget (1932/1994) considerou a noo de justia como a mais racional sem

    dvida de todas as noes morais, que parece resultar diretamente da

  • 28

    cooperao (p.156). Ainda sobre a noo de justia, Piaget (1932/1994) verificou

    quatro diferentes concepes, a saber: justia imanente, justia retributiva, justia

    distributiva e justia por equidade. Em um primeiro momento, as crianas

    apresentam a crena de que as coisas promovem punies automticas, quase

    como reflexos, e com forte carga de realismo moral e responsabilidade objetiva, o

    que plausvel porque se atribuem caractersticas humanas aos objetos

    (animismo, artificialismo). Em seguida, considerado (at aproximadamente os 8

    anos de idade) justo o que est convencionado pela autoridade. Sucede-se uma

    concepo em que o sentimento de igualdade comea a suplantar a autoridade e

    vigora at os 1011 anos. A quarta concepo pode ter incio por volta dos 11

    anos de idade e caracteriza-se pela manifestao da justia por meio do

    sentimento de equidade, que exercita a igualdade levando em considerao as

    diferenas entre as pessoas e a proporcionalidade das aes.

    Similarmente a esse processo, o autor observou o desenvolvimento da

    noo de mentira. Inicialmente, o erro involuntrio encontra-se associado ao ato

    intencional, de modo que a criana at os 7 anos tende a considerar ambos como

    mentira e a julgar o ato segundo as consequncias que provoca. Nessa fase, a

    criana tambm associa a mentira aos palavres, por ver os adultos recriminarem

    as grosserias, como eles fazem com as palavras falsas. Em um segundo

    momento, a mentira torna-se to maior quanto maior a distncia da realidade.

    Ento, a mentira somente superada pelo entendimento de que to mais grave

    quanto mais se conseguiu enganar, quebrando a prtica do respeito mtuo e da

    reciprocidade.

  • 29

    Conforme foi exposto acima, Piaget (1932/1994) investigou aspectos

    relacionados ao juzo moral por meio de um mtodo baseado em interrogatrio,

    proposto ao longo do referido livro. Discute tambm que o juzo moral do

    indivduo, a que se tem acesso pelas histrias e perguntas, relaciona-se ao juzo

    verbal sem se opor ao juzo efetivo. Assim, o autor no descarta que

    ocasionalmente o juzo verbal esteja atrasado em relao ao juzo ou

    pensamento ativo, este ltimo relacionado ao juzo atingido em razo de

    vivncias cotidianas anteriores. Isso porque o autor considera que o

    desenvolvimento do juzo moral se d pelo processo de tomada de conscincia

    progressiva no qual converge para reconstrues de fatos concretos no plano do

    pensamento.

    Entretanto, no descreveremos os processos ligados ao desenvolvimento

    dos diferentes tipos de respeito, as concepes de roubo, os tipos de sano e

    suas intensidades - por exemplo, entre os demais aspectos da moralidade

    humana discutidos por Piaget (1932/1994, 1964/1978) e Menin (2013) para no

    tornar o texto exaustivo. Por outro lado, trataremos de destacar trs pontos

    fundamentais na perspectiva piagetiana sobre a moralidade: (1) o autor descreve

    o decurso de mudanas observadas nas crianas de diferentes idades em direo

    a autonomia, porm esclarece que comum observar adultos que se mantm

    com juzo arraigado moral heternoma; (2) o comeo da formao da

    moralidade se d pela fase de heteronomia e, ainda que ela seja imposta e

    reforada pelas normas dos diferentes grupos sociais em que o sujeito tenha

    pertencimento, considerada como produto da interao do indivduo com o

    meio, semelhantemente como o referido terico prope o desenvolvimento da

  • 30

    cognio; (3) como a moralidade rene conjunto de valores e sentimentos morais,

    o autor observou que o entendimento, ou seja, a concepo de um determinado

    aspecto moral, no necessariamente est desenvolvido em harmonia e no mesmo

    estgio de outro aspecto.

    1.1.1. ESTUDOS BRASILEIROS CONTEMPORNEOS SOBRE MORALIDADE

    INFANTIL

    Dentre os vrios estudos sobre diferentes aspectos do juzo, valores ou

    virtudes morais, podemos destacar os que seguem justia (Dell'Aglio & Hutz,

    2001; Menin, Bataglia & Moro, 2013; Sales, 2000; Sampaio, Camino & Roazzi,

    2007; Trevisol, Rhoden & Hoffelder, 2009); regras (Caiado, 2012; Dias e Harris,

    1990; Ferraz, 1997); influncia do ambiente (Arajo, 1993; Kliemann, Damke,

    Gonalves & Szymansky, 2008); trapaa (Pessotti, Ortega & Alencar, 2011);

    roubo (Martins, 1997); roubo e mentira diante da fidelidade (Silva, 2004); culpa

    (Loos, Ferreira & Vasconcelos, 1999); generosidade (La Taille, 2006; Vale e

    Alencar, 2008); perdo (Abreu, Moreira & Rique, 2011); e solidariedade

    (Tognetta & Assis, 2006).

    Sales (2000) utilizou uma situao hipottica de distribuio de

    recompensa (com duas histrias) para investigar o conceito de justia distributiva

    e noes de certo e errado. Participaram do estudo 90 crianas e adolescentes,

    com idade entre 9 e 14 anos, estudantes de terceira, quinta e stima sries do

    ensino fundamental de escola pblica. Os resultados encontrados revelaram que

    a maior parte dos participantes (e principalmente os mais novos) respondeu s

    perguntas realizadas em conformidade com as regras sociais e julgou as aes

    dos personagens das histrias baseando-se nas consequncias dos atos. Por

  • 31

    outro lado, um maior nmero de participantes, de maior escolarizao, considerou

    as intenes dos personagens. A autora concluiu que foi possvel observar um

    desenvolvimento progressivo da heteronomia para a autonomia,

    concomitantemente com evoluo na utilizao dos princpios de justia

    distributiva e dos conceitos de certo e errado referentes s normas escolares.

    Com o intuito de pesquisarem o uso de princpios de justia distributiva,

    Dell'Aglio e Hutz (2001) utilizaram como instrumento quatro mini-histrias que

    eram acompanhadas de desenhos e que apresentavam diferentes condies de

    desempenho entre dois personagens em situaes hipotticas de distribuio de

    recompensa. Os autores entrevistaram individualmente 240 crianas na faixa

    etria de 5 a 6 anos, 220 de 9 a 10 anos, e 220 adolescentes de 13 a 14 anos,

    totalizando 680 participantes divididos igualmente quanto ao sexo. Os resultados

    mostraram que o grupo das crianas mais novas utilizou predominantemente

    regras de autoridade (95,3%) na utilizao dos princpios distributivos. Por outro

    lado, a maior parte do grupo de participantes de 9 a 10 anos, utilizaram regras de

    igualdade para operar a distribuio de recompensa aos personagens. Por fim, a

    maior parte dos adolescentes fez uso de regras de equidade. Os autores

    concluem que os resultados evidenciaram uma sequncia evolutiva de trs nveis

    no desenvolvimento da justia distributiva e que eles esto em concordncia com

    o modelo piagetiano de juzo moral.

    A justia distributiva tambm foi investigada por Sampaio, Camino e Roazzi

    (2007), mas com objetivo principal de pesquisar os tipos de justia utilizados por

    crianas de diferentes faixas etrias. Os participantes do estudo foram 120

    estudantes, de ambos os sexos, de duas escolas particulares e nas seguintes

  • 32

    faixas etrias: 5 a 6 anos, 7 a 8 anos e 9 a 10 anos de idade. O instrumento

    utilizado foi um dilema que continha quatro histrias (com variaes de

    caractersticas dos personagens), nas quais dois personagens tinham que decidir

    dar ou no mais blocos de brinquedo a outro que chegava posteriormente ao local

    reservado para brincadeiras. Os resultados revelaram que no houve diferena

    estatisticamente significativa quanto ao sexo e idade dos participantes diante da

    frequncia de respostas de conceder ou no o brinquedo ao terceiro personagem.

    Os participantes utilizaram diferentes justificativas para compartilhar ou no o

    brinquedo com o personagem atrasado, e as crianas mais novas foram capazes

    de construir argumentos com base na importncia da cooperao e da

    reciprocidade, o que seria esperado apenas para as crianas mais velhas. Os

    autores concluem que no foi constatada a existncia de estgios de

    desenvolvimento moral delimitados e as crianas foram capazes de incorporar

    informaes contextuais aos seus julgamentos morais sobre justia distributiva.

    Trevisol, Rhoden e Hoffelder (2009) investigaram a compreenso da

    justia por meio de uma fbula (histria de uma galinha que solicita auxlio de

    outros animais para o cultivo de trigo, no entanto os outros animais querem

    desfrutar o po, mesmo no tendo ajudado a amiga galinha, que se recusa a

    compartilhar o alimento) com 14 crianas na faixa etria entre 6 e 7 anos,

    estudantes de uma escola pblica. A coleta de dados foi realizada em dois

    momentos: primeiramente, a fbula era contada e, em seguida, uma entrevista

    semiestruturada realizada. Os resultados foram estes: a maioria (dez) dos

    participantes optou pela justia retributiva, pois, considerou justa a atitude final da

    galinha (comer o po todo sozinha); os demais (quatro) optaram pela diviso do

  • 33

    alimento, considerando a possibilidade do perdo. Quando perguntados sobre

    como se podem ser justo, os participantes demonstraram forte presena de

    respeito unilateral e coao adulta porque se dividiram entre os seguintes

    julgamentos: quatro declararam dividir as coisas, trs no brigar, dois obedecer,

    dois no souberam responder, um respeitar as pessoas, outro brincar e um outro

    fazer a tarefa escolar. Aos discutirem os resultados, os autores concluem que a

    justia expiatria foi observada nos participantes que se encontravam sob forte

    presena de uma moral heternoma.

    Menin, Bataglia e Moro (2013) publicaram uma investigao sobre a

    adeso ao valor da justia. Para tanto, aplicaram questionrio que continham

    histrias na forma de situao-problema com cenas compatveis com o cotidiano

    de crianas e jovens e questes que envolviam justia distributiva, retributiva e

    comutativa (nove itens para o grupo de participantes mais novos e 18 para o de

    mais velhos). As alternativas oferecidas no questionrio foram construdas em

    nveis crescentes de descentrao de perspectiva social inspirados na teoria de

    Kohlberg (abordagem construtivista em que os nveis demonstram o modo como

    se adere a favor ou contra um valor) e contemplavam trs possibilidades

    favorveis ao valor investigado e duas contrrias a ele. Participaram da pesquisa

    111 crianas de 10 a 13 anos e 121 adolescentes de 14 a 17 anos, oriundos de

    escolas pblicas e particulares da cidade de So Paulo.

    Os resultados revelaram que os participantes mais velhos obtiveram 70%

    ou mais de respostas consideradas corretas (alternativa P3 pr-valor de nvel 3)

    em dez dos 18 itens e que os participantes mais novos obtiveram o mesmo

    percentual em trs dos nove itens. Os autores concluem que esse fato evidenciou

  • 34

    uma progresso na escolha das respostas em relao aos nveis entre crianas e

    adolescentes.

    Dias e Harris (1990) realizaram uma pesquisa sobre domnio moral de

    regras que envolviam nove problemas silogsticos com os seguintes contedos:

    trs violavam regras morais, trs violavam regras convencionais e trs violavam

    regularidades factuais. Para tanto, participaram 100 crianas de 5 anos de idade

    divididas em trs diferentes grupos, a saber: 40 crianas eram de classe de

    alfabetizao de uma escola de primeiro grau de Recife; 20 de classe de

    alfabetizao de uma escola de primeiro grau da Inglaterra; e 40 de um orfanato

    na cidade de Recife.

    Alm disso, os participantes foram subdivididos em grupo verbal (GV) e

    grupo de brincadeira (GB), uma vez que a apresentao de brincadeira de faz de

    conta foi usada para induzir as crianas a criar um mundo independente, onde os

    eventos sucedessem diferentemente daqueles do mundo emprico (para facilitar a

    ocorrncia de raciocnio dedutivo com base em premissas contrrias aos fatos).

    Os resultados mostraram que o contexto de brincadeira favoreceu o desempenho

    dos estudantes da classe de alfabetizao das crianas inglesas e brasileiras; as

    crianas de orfanatos raciocinaram similarmente em ambos os contextos; em

    nenhuma dos trs grupos de participantes houve distino entre regras morais e

    convencionais. Em face disso, os autores discutem que os resultados foram

    semelhantes aos encontrados por uma investigao de Turiel (realizada em 1983)

    e que o contedo dos problemas se relacionou com a experincia dos sujeitos.

    J com o intuito de identificar os nveis de desenvolvimento da noo das

    regras que compem o jogo de futebol, Ferraz (1997) observou a prtica do

  • 35

    futebol em 40 crianas e adolescentes (estudantes de diferentes escolas pblicas

    e particulares), com idades entre 4 e 19 anos, divididos por faixa etria em cinco

    diferentes grupos contendo oito participantes. Alm de observarem a prtica do

    jogo, os participantes foram entrevistados aos pares, por meio do mtodo clnico

    piagetiano, sobre a origem e uso das regras do jogo e sobre caractersticas

    relacionadas ao bom jogador. Os resultados possibilitaram a identificao de uma

    sequncia evolutiva de desenvolvimento das regras em paralelo aos diferentes

    tipos de jogos (exerccio, egocntrico, codificao de regras).

    Caiado (2012) investigou diferentes formas de interao com a regra em

    distintos contextos de jogos. Para tanto, participaram dessa pesquisa 64 crianas

    com idades entre 7 e 8 anos, divididas em 14 grupos. O procedimento da

    pesquisa foi o seguinte: (1) cada participante passou por trs diferentes contextos

    de jogos de regras (jogo Ludo, jogo Uno e jogo acordado entre participantes) e (2)

    em seguida, uma entrevista clnica serviu para serem contados quatro dilemas

    hipotticos em formato de estrias-dilema (relacionadas responsabilidade

    objetiva/subjetiva; justia retributiva/distributiva; sano; mentira) como contexto

    hipottico sobre regras. Os dados foram apresentados e discutidos por meio de

    categorizao de aes realizadas pelos participantes para que, em seguida, se

    realizassem trs anlises: relaes entre indicadores, relaes entre contextos e

    estudo de caso.

    Vamos retratar os resultados mais gerais, aqueles referentes ao contexto,

    os quais demonstraram diferentes manifestaes de uso e compreenso da regra

    de acordo com cada contexto proposto. Na situao fechada (jogo Ludo), os

    participantes procuraram entender e cumprir a regra colocada, alm de elaborar

  • 36

    estratgias para ganhar o jogo sem burl-las. Na situao intermediria (jogo Uno

    com adio de regras distintas das comumente usadas) os participantes

    demonstraram jogar bem e assumir e defender posio diante das regras e dos

    adversrios (evidncias de princpios de reciprocidade nas relaes). Na situao

    aberta (jogo acordado entre participantes), as crianas demonstraram interpretar

    as regras estipuladas e se dividiram entre compreend-las e reter ateno para

    praticar o jogo e legislar as regras. Alm disso, houve maior correspondncia da

    situao hipottica com a aberta do que com a situao fechada. A autora conclui

    que isso se deve aos aspectos interacionais e de reflexo que somente a situao

    de jogo aberto proporciona em oposio ao contexto fechado de jogo.

    Arajo (1993) investigou a influncia do ambiente escolar em 56 crianas

    pr-escolares de 6 a 7 anos de idade. Para tanto, aplicou, com o uso do Mtodo

    Clnico Crtico piagetiano, oito estrias-dilema adaptadas do livro Juzo Moral de

    Piaget (1994/1932) e investigou, por meio de observaes semanais, aspectos

    morais do cotidiano escolar de alunos de trs escolas diferentes, a saber: (1)

    Escola A: pr-escola pblica, com crianas de classe socioeconmica baixa,em

    que se priorizavam relaes cooperativas; (2) Escola B: escola particular com

    crianas de classe mdia e alta, em que vigoravam relaes autoritrias; (3)

    Escola C: escola pblica com crianas de mesmo nvel socioeconmico da escola

    A, mas com relaes estabelecidas pela coao e autoridade. Os resultados

    mostraram que as 23 crianas da escola A, comparativamente s 12 crianas da

    escola B e s 21 da escola C, apresentaram progresso gradativo das trocas

    sociais, com comportamentos que se relacionam com cooperao e respeito ao

    outro, comparativamente as 12 crianas da escola B e as 21 da escola C. Da

  • 37

    mesma forma, as crianas da escola A apresentaram mais comportamentos

    relacionados autonomia durante as respostas s estrias-dilemas do que os

    participantes das outras duas escolas. O autor discute que o ambiente

    cooperativo encontrado na escola A favorece o desenvolvimento do julgamento

    moral em crianas, confirmando um pressuposto piagetiano no qual o referido

    trabalho foi pautado.

    Kliemann, Damke, Gonalves e Szymansky (2008) realizaram um estudo

    exploratrio para observar se possvel a criana ter autonomia sem romper

    limites no ambiente escolar. Participaram da pesquisa 30 crianas divididas

    igualmente entre as faixas etrias de 3 anos, de 5 e 6 anos, e de 9 e 10 anos. Os

    resultados revelaram que as crianas de 3 anos se encontravam em fase de

    anomia, mostrando-se dependentes dos adultos para estabelecimento de

    disciplina, atividades diversas (inclusive brincadeiras) e cuidados pessoais; j as

    crianas de 5 e 6 anos tambm dependiam dos adultos, mas, quando se

    organizavam sozinhas, demonstravam necessidade de incluso de regras nas

    atividades; e os participantes mais velhos mostravam caractersticas autnomas

    nas atividades escolares. Os autores concluem que os resultados confirmaram a

    perspectiva terica piagetiana do processo de desenvolvimento moral em fases

    de cumprimento de normas e realizao de jogos que envolvem variadas regras.

    Pessotti, Ortega e Alencar (2011) investigaram o juzo moral sobre a

    trapaa em uma situao de jogos de regras com base em uma perspectiva

    psicogentica. Para isso, entrevistaram 40 crianas estudantes de escolas

    particulares, divididas igualmente quanto idade e ao sexo, em dois grupos com

    idades de 5 e 10 anos, distribudas igualmente de acordo com a idade e o sexo.

  • 38

    Os instrumentos utilizados foram uma histria e um roteiro de entrevista que

    envolvia uma situao de trapaa no jogo da Velha. Os resultados mostraram que

    a totalidade dos participantes declarou que a atitude de trapacear estava errada.

    As justificativas dadas pela maior parte dos participantes menores foram

    baseadas em argumentos circulares (categoria de repostas tais como: no sei,

    porque sim, porque no pode, entre outras), enquanto os participantes de 10

    anos, em maior quantidade, declararam que a ao do personagem desobedecia

    s regras do jogo. Os autores concluem que crianas j demonstram o julgamento

    da trapaa como algo errado e que associam suas concepes a outros aspectos

    morais tambm conhecidos, tais como o roubo e a mentira.

    Pesquisando sobre o julgamento moral sobre o roubo, Martins (1997)

    utilizou uma histria de um pequeno roubo (adaptada de Piaget, 1932/1994) e

    perguntas sobre ela mesma com 80 crianas na faixa etria de 5 a 6 anos,

    estudantes de duas pr-escolas (uma pblica em bairro de classe mdia baixa e

    outra particular sendo de cooperativa entre pais). Os resultados mostraram que

    todos os participantes tm noo da norma de que o roubo est associado a algo

    errado. Desse modo, justificaram suas respostas por meio de cinco tipos de

    argumentos: 1 regra simples (ligada ao costume social); 2 respostas

    estereotpicas ( feio); 3 para evitar punio (seno vai para a cadeia); 4

    apelo religio ( pecado); 5 indiferenciadas (no pode). O autor observou

    que os participantes da escola cooperativa tiveram maior percentual (23 crianas

    em comparao a 12 do outro grupo) de respostas vinculadas regra social

    (argumento tipo 1). Os participantes da escola cooperativa tambm atriburam, em

    maior porcentagem, a proibio como algo inerente ao ato de roubar, uma vez

  • 39

    que 33 crianas declararam que, se a regra deixasse de existir, o ato continuaria

    errado, em comparao a 26 crianas de escola pblica. O autor concluiu que um

    contexto com indicadores de maior grau de escolaridade dos pais e de interaes

    pautadas em uma postura de respeito mtuo, como pode ser constatado na

    escola cooperativa, contribuiu para as diferenas observadas entre os dois grupos

    de participantes.

    Com o propsito de observar o juzo hipottico sobre a manuteno da

    fidelidade (de compromisso verbal) confrontada aos contextos morais de roubo e

    mentira, Silva (2004) realizou uma pesquisa com 186 estudantes de escola

    pblica, de ambos os sexos. Os participantes tinham 6, 9 e 12 anos de idade e

    possuam nvel socioeconmico desfavorecido. Foi realizada entrevista individual

    baseada no mtodo clnico piagetiano para aplicao de instrumento com seis

    pequenas histrias sobre dilemas morais. Tais histrias confrontaram a fidelidade

    palavra declarada (cumprimento de promessa de sigilo declarado verbalmente)

    aos dois contextos morais propostos. Aproximadamente 25% dos participantes

    apresentaram juzo com adeso promessa da palavra dada. Alm disso, no se

    verificou influncia da idade no julgamento desta fidelidade. Da mesma forma,

    no houve diferena nos julgamentos segundo o tipo de envolvimento entre os

    personagens (irmos em detrimento da relao entre amigos ou colegas) nos dois

    contextos analisados. Silva (2004) chegou as seguintes concluses: no foi

    possvel observar uma psicognese da fidelidade palavra empenhada; os

    participantes apresentaram aspectos de uma tica mais intimamente associada

    justia do que a fidelidade; as meninas foram proporcionalmente mais fiis do que

  • 40

    os meninos em relao denncia do autor de uma mentira, enquanto os

    meninos foram mais favorveis honestidade e veracidade.

    Loos, Ferreira e Vasconcelos (1999) verificaram diferenas na emergncia

    do sentimento de culpa de 32 meninos, na faixa etria de 6 a 12 anos, oriundos

    de famlias de baixa renda da cidade do Recife. Os participantes eram originrios

    de dois grupos distintos, metade de comunidade carente e outra metade de

    instituio que atende crianas sob o risco e abandono, tambm divididos em

    duas faixas etrias: de 6 a 8 anos e de 9 a 12 anos. Utilizou-se roteiro de

    entrevista para aplicao de duas histrias ilustradas sobre julgamento de

    personagem em situao de dano acidental e intencional, bem como uma escala

    com cinco nveis de culpa para o julgamento da culpa do personagem. Os

    resultados mostraram diferena significativa do sentir culpa entre as duas faixas

    etrias (c=6,111; df=1; p=0,01), com predominncia desse sentimento nas

    crianas mais novas. Tambm constataram uma tendncia considerao da

    inteno nos participantes mais velhos (c= 0,500; df=1; p=0,47). As autoras

    concluem que o estudo revelou concepes distintas de culpa relacionada idade

    (perspectiva evolutiva), mas sem estar relacionada ao grupo de origem.

    La Taille (2006), buscando analisar o papel da generosidade no universo

    moral infantil, realizou duas pesquisas: a primeira sobre atribuio de sentimentos

    a personagens no generosos de uma estria-dilema por 30 crianas de 6 anos e

    32 crianas de 9 anos, estudantes de escola particular; a segunda com 32

    sujeitos de 6 anos e 36 crianas de 9 anos, estudantes de outra escola particular,

    mas expostas histria relacionada conduta no generosa (idntica ao primeiro

    estudo) e a uma outra referente situao de injustia. Os resultados mostraram

  • 41

    que a maioria (16 e 27 participantes, respectivamente, nos estudos 1 e 2) das

    crianas de 6 anos atribui sentimentos negativos ao personagem no generoso e

    sentimentos positivos personagem no justa (23 participantes no estudo 2).

    Semelhantemente, a maioria dos participantes de 9 anos tambm atribuiu

    sentimentos negativos ao personagem no generoso (respectivamente, 17 e 31

    participantes nos estudos 1 e 2). No entanto, a maior parte deles (20 participantes

    no estudo 2) imputou sentimentos negativos personagem injusta. Assim, os

    dados mostraram que a grande maioria dos participantes, de ambas as idades,

    atriburam sentimentos negativos a quem falta com generosidade. Por outro lado,

    as crianas de 6 anos atriburam sentimentos positivos a personagem que age

    injustamente. O autor discute que a generosidade uma virtude que se comprova

    presente na gnese da moral infantil e que, por ser menos subordinada s regras

    adultas, pode se integrar-se conscincia moral infantil antes da justia.

    Ao investigarem tambm a generosidade, Vale e Alencar (2008) estudaram

    se a ausncia dessa virtude merecedora de punio em 30 estudantes de

    escola pblica, divididos igualmente quanto ao sexo, com idades de 7, 10 e 13

    anos. Foram utilizados como instrumentos uma estria-dilema sobre a ausncia

    de generosidade e perguntas que foram feitas em entrevista individual. Os

    resultados mostraram que a maioria dos participantes (22) preferiu o dilogo

    (repreenso) ao invs de algum tipo de punio, a fim de se lidar com a falta de

    generosidade. Constatou-se tambm o aumento da porcentagem dessa escolha

    em razo da idade (4, 8 e 10 ocorrncias, respectivamente, nos participantes de

    7, 10 e 13 anos). Alm disso, o participante mais novo, que no optou por

    nenhum tipo de punio, diferenciou a ausncia de generosidade de outras

  • 42

    transgresses nas quais se aplica algum tipo de castigo, mas apenas quatro

    participantes de 10 anos e oito de 13 anos declararam caractersticas de

    especificidade dessa virtude. As autoras concluem que a generosidade faz parte

    do universo moral dos participantes e que ela esperada e admirada, ao passo

    que sua falta merece reprovao em vez de punio.

    Abreu, Moreira e Rique (2011) verificaram o pensamento do perdo

    interpessoal e as condies para que o perdo ocorra por meio do Dilema de

    Joo, que uma adaptao do Dilema de Heinz, que contm um livro de gravuras

    e uma entrevista semiestruturada com 12 questes. Alm disso, avaliaram a

    capacidade de role-taking (capacidade de se colocar no lugar do outro e entender

    que o outro tem pensamentos, desejos e comportamentos diferentes do seu).

    Para isso entrevistaram 20 crianas com idades entre 6 a 8 anos, de ambos os

    sexos, estudantes de escola pblica e de uma instituio de educao

    complementar com orientao religiosa ecumnica. Os resultados evidenciaram

    integralidade da capacidade de role-taking nos participantes, porm somente oito

    crianas souberam definir o sentimento de perdo e decidir se o personagem

    central (Joo) deveria perdoar ou no o personagem que o magoou (sete deles

    decidiram perdoar em diferentes graus). Alm disso, a passagem do tempo e o

    perdo foram vistos como estratgia para diminuir a raiva ou como uma

    consequncia natural da diminuio da raiva. J a concesso de perdo foi

    associada a pedir desculpas, voltar a brincar, reparar o erro cometido, e sentir

    presso social de amigos e da religio. Os autores concluem que a capacidade de

    role-taking no envolve o conhecimento de formas de soluo para dilemas

    relacionados justia e ao perdo.

  • 43

    Tognetta e Assis (2006) desenvolveram um estudo a fim de investigar o

    julgamento infantil acerca da solidariedade em ambiente escolar. Participaram da

    pesquisa 46 estudantes de ensino pblico e com nvel socioeconmico baixo. Os

    participantes situavam-se na faixa etria de 6 a 7 anos de idade e foram

    igualmente divididos quanto ao sexo. Alm disso, metade da amostra estudava

    em uma escola baseada em relaes autoritrias (escola A), e a outra metade

    oriunda de uma instituio em que seus professores aplicam um programa de

    educao infantil, baseado em pressupostos piagetianos (escola B). Os

    instrumentos utilizados foram provas de diagnstico do comportamento operatrio

    sobre as noes de conservao de quantidades discretas, de lquido e da

    massa, e de classificao e seriao; ficha de observao das relaes

    interpessoais entre professores e alunos; e quatro dilemas morais criados e

    adaptados, divididos em dois blocos, a fim de constatar o julgamento da

    solidariedade entre pares e na presena da autoridade.

    Os resultados dos participantes da escola A revelaram que, (1) quanto s

    provas de diagnstico de comportamento operatrio se constatou, 30,43% se

    encontravam no estgio pr-operatrio e 69,57% em transio entre os estgios

    pr-operatrio e operatrio; (2) quanto s fichas de caracterizao de ambiente, a

    escola A recebeu 76 pontos, caracterizando-se como ambiente coercitivo,

    pautado em relaes unilaterais; (3) quanto s estrias-dilema, 76,19% dos

    participantes no souberam responder ao primeiro dilema, enquanto 92,86%

    dessas crianas no apresentaram solidariedade no terceiro dilema que, assim

    como o primeiro envolvia uma situao de solidariedade entre pares. Os dados

    tambm mostraram que 71,43% das respostas dos participantes optaram pela

  • 44

    ausncia de solidariedade para no se opor autoridade, porm 28,54% das

    crianas apresentaram solues que no desobedeciam ordem paterna, mas

    capazes de executar a ao solidria diante da segunda estria-dilema. Por outro

    lado, 75,86% dos participantes no optaram pela prtica da ao solidria pela

    obedincia ordem adulta.

    J os resultados dos participantes da escola B foram os seguintes: (1)

    56,52% dos participantes apresentavam diferentes nveis de transio entre os

    estgios pr-operatrio e operatrio e 43,48% j demonstravam pensamento

    reversvel quanto s provas de diagnstico de comportamento operatrio; (2)

    quanto s fichas de caracterizao de ambiente a escola B recebeu 162 pontos,

    caracterizando-se como ambiente cooperativo, regulado por relaes de

    cooperao e respeito mtuo; (3) 23,81% dos participantes no souberam

    responder ao primeiro dilema que envolvia solidariedade entre pares, enquanto

    7,14% deles no apresentaram solidariedade no julgamento sobre o terceiro

    dilema.

    Quanto ao segundo dilema, que investigava a solidariedade diante do

    enfrentamento autoridade, Tognetta e Assis (2006) constataram que 28,57%

    dos sujeitos no enfrentaram a autoridade, 34,04% tentariam ser solidrios sem

    desobedecer autoridade paterna e 12 respostas indicaram crena de confiana

    na relao com a autoridade, independentemente da quebra do contrato. J no

    quarto dilema, 24,41% dos participantes no optaram pela prtica da ao

    solidria pela sujeio ordem. Portanto, as autoras concluem que h uma

    perspectiva evolutiva na disposio dos sujeitos para serem solidrios e que essa

    condio est ligada a experincias significativas de reciprocidade e respeito

  • 45

    mtuo (escola B). Da mesma forma, apontam que o desenvolvimento de

    estruturas cognitivas e de aspectos afetivos no ambiente escolar fomenta a

    construo de aspectos morais, tais como a solidariedade na infncia.

    Dando sequncia ao embasamento terico de nosso trabalho trataremos, a

    seguir, de aspectos do desenvolvimento cognitivo.

    1.2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO SEGUNDO A TEORIA DE JEAN

    PIAGET

    O legado terico de Jean Piaget em sua Psicologia e Epistemologia

    Genticas foi incansavelmente buscar e descrever como o sujeito processa seu

    conhecimento e desenvolve estruturas logicamente mais organizadas nos

    aspectos motor-intelectual e afetivo nas dimenses intraindividual e interindividual

    (1964/1978, 1970/2002). Para tanto, investigou como o sujeito interage com as

    diversas coisas (outras pessoas, ideias, objetos materiais de todas as ordens) que

    esto no mundo que o cerca, ou seja, com os variados objetos a fim de construir

    seu conhecimento e procurar equilbrios sucessivos de suas estruturas lgicas de

    pensamento. A pesquisa desse processo originou o conceito de equilibrao que,

    por sua vez, abarca outros dois conceitos piagetianos fundamentais, j que

    complementares, irredutveis e indissociveis (Macedo em Piaget, 1980/1996, p.

    8), a saber: assimilao e acomodao.

    A assimilao entendida como incorporao do objeto aos esquemas e

    estrutura mental; a acomodao aparece na teoria como uma atividade capaz de

    diferenciar um esquema a fim de vencer as resistncias que se interpem entre o

    sujeito e o objeto para, assim, ascender assimilao. O autor afirma que a

  • 46

    equilibrao uma das fontes do progresso no desenvolvimento dos

    conhecimentos (e) deve ser procurada nos desequilbrios como tais, que por si s

    obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e a procurar o que quer que

    seja em direes novas (Piaget, 1976, p.18).

    nesse sentido que o terico anunciou que o conhecimento no est nem

    no sujeito, nem no objeto, mas como possibilidade de construo para esse

    sujeito que age em busca do conhecimento (Macedo, 1980), tal como enfatiza na

    introduo de um de seus livros sobre epistemologia gentica:

    o conhecimento no pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito, porquanto estas resultam de uma construo efetivas e contnua, nem nas caractersticas preexistentes do objeto, uma vez que elas s so conhecidas graas mediao necessria dessas estruturas, e que estas, ao enquadr-las, enriquecem-nas (Piaget, 1970/2002, p. 1).

    A assimilao inicia-se nos atos reflexos do beb, mas logo se aprimora

    pelas assimilaes reprodutivas (reaes circulares primrias, secundrias e

    tercirias) e pela constituio de novos esquemas motores, os quais, por sua vez,

    integram estruturas que podem organizar-se cada vez mais e apresentar

    equilbrios que no se fecham em si mesmos, porque podem servir de base para

    o estabelecimento de novas estruturas com coordenao e funcionalidade mais

    organizadas, pois, no h nem comeo absoluto nem uma estrutura terminal

    (Piaget, 1964/1978, 1970/2002, 1976; Piaget, Beth & Mays, 1957/1974).

    Ramozzi-Chiarottino (1988) adverte que, para superar uma possvel

    dicotomia entre sujeito e objeto, Piaget defendeu que as estruturas mentais so

    orgnicas porque esto a priori no sujeito, mas seu aperfeioamento e construo

  • 47

    ocorrem pelas diferenciaes progressivas que a interao do sujeito com o meio

    incita.

    Nesse sentido, considera-se que uma estrutura mental pode ser inferida,

    visto que caracteriza o domnio de certo comportamento (capacidade de

    apresentar certa conduta). Quanto a isso, Piaget (1972) afirmou que as estruturas

    do conhecimento esto relacionadas como o desenvolvimento e que so

    observadas por perodos especficos e distintos, denominados de estdios sobre

    os quais o entendimento constri e coordena modos peculiares de se relacionar

    (entender e agir) com o mundo. Fica claro, portanto, que as estruturas mentais

    sofrem variaes e so construdas com base em desequilbrios que se

    interpem. O equilbrio e o desequilbrio, tambm pares dialticos do conceito de

    equilibrao na teoria piagetiana, fazem parte de um processo funcional que

    engloba a(s) estrutura(s), visando organizao e coordenao da experincia.

    Piaget (1972) aponta quatro fatores envolvidos na promoo do

    desenvolvimento (construo de uma estrutura mais desenvolvida) e dos estdios

    de desenvolvimento cognitivo por ele descritos, so eles: maturao, experincia,

    transmisso social e equilibrao. Sobre a maturao o autor evidencia que se

    trata de pr-condio biolgica vinculada s possibilidades e condies de

    amadurecimento do sistema nervoso que possibilitam ao sujeito interagir com o

    meio. Quanto experincia, o autor observa que por meio dela que se pode

    construir o conhecimento em suas vertentes fsica, social e lgico-matemtica.

    Apesar disso, a coordenao das aes do sujeito desempenha papel

    fundamental para vencer obstculos que a prpria experincia lhe apresenta. Esta

    deixa de ser necessria e d lugar operao e construo de estruturas

  • 48

    abstratas. O fator de transmisso social valioso em virtude de sua condio de

    prover a difuso do conhecimento, facilitado pelas trocas verbais, mas por si s

    no capaz de promover a construo de estruturas lgicas que a prpria

    linguagem possui e necessita para cumprir sua funo aceleradora da aquisio

    do conhecimento.

    Por fim, os trs fatores citados necessitam da autorregulao, a qual

    realizada pelo quarto e ltimo fator. A autorregulao ou equilibrao ocupa papel

    central na teoria de Piaget, pois integra o que externo ao sujeito (experincia e

    transmisso social) ao que lhe interno (fator maturao, enquanto esquemas

    hereditrios e funcionamento peculiar), evidenciando esquemas e estruturas

    anteriores que se modificam medida que assimilao e acomodao engendram

    processos de antecipao e retroaes que levam a progressos do

    desenvolvimento.

    H um fator no mencionado por Piaget na obra de 1972, mas est

    presente em trabalhos anteriores fazendo parte do conceito de equilibrao, que

    a afetividade (sentimentos, emoes, tendncias e vontade). Encontramo-lo em

    Piaget (1954/2005) e em Piaget e Inhelder (1966/1998) quando interpem a

    afetividade como elemento energtico que intervm na regulao da conduta,

    influenciando a busca constante pelo conhecimento, seja por provoc-la, seja por

    impedi-la (Macedo, 1980). Os autores analisam que os aspectos afetivos e

    cognitivos da conduta so inseparveis e irredutveis, mesmo quando no esto

    sendo levados em considerao reciprocamente.

    Ainda sobre a equilibrao, Piaget (1972) ressalta que utiliza esse termo

  • 49

    no sentido em que ele usado na ciberntica, isto , no sentido de processos com retroalimentao (feedback e feedforward), de processos que se regulam a si prprios mediante uma compensao progressiva dos sistemas. Este processo de equilibrao toma a forma de uma sucesso de nveis de equilbrio, de nveis que tem uma certa probabilidade que chamarei de probabilidade sequencial, isto , as probabilidades no so estabelecidas a priori. H uma sequncia de nveis. No possvel alcanar o segundo nvel a no ser que o equilbrio tenha sido alcanado no primeiro nvel, e o equilbrio do terceiro nvel s se torna possvel quando o equilbrio do segundo nvel tenha sido alcanado, e assim por diante. Isto , cada nvel determinado como o mais provvel, dado que o nvel precedente tenha sido alcanado. No o mais provvel no incio, mas o mais provvel uma vez que o nvel precedente tenha sido atingido (Piaget, 19722).

    Portanto, devido ao recproca desses quatro (ou cinco) fatores, os

    estdios de desenvolvimento cognitivo ocorrem de forma mais lenta ou acelerada;

    mais coesa ou com defasagens; apresentando mudanas quantitativas

    (crescimento) ou atingindo as qualitativas (desenvolvimento). No entanto, a

    Epistemologia Gentica piagetiana (Piaget, 1970/2002; Piaget, Beth & Mays,

    1957/1974) ao descrever o sujeito epistmico mostrou que a ocorrncia dessa

    evoluo invariante, pois se d mediante quatro grandes perodos ordenados,

    com aspectos comuns e acumulativos, mas com apario de estruturas originais

    que permitem a distino entre eles. Esses perodos foram estabelecidos com

    base nas investigaes realizadas pelo autor e sua equipe de colaboradores

    (1926/1993, 1947/1983), sendo denominados sensrio-motor, pr-operacional,

    operacional concreto e das operaes formais. Alm disso, Piaget considerou os

    seguintes parmetros para estabelecer os estdios: (1) as aquisies devem

    seguir uma ordem constante, pois uma caracterstica, capacidade ou estrutura

    2 Informamos que no temos paginao precisa deste texto, pois obtivemos o trabalho (captulo

    escrito por Piaget em livro organizado por outros autores) por meio de traduo fornecida na internet, conforme consta no captulo de referncias bibliogrficas.

  • 50

    no aparecero antes de outra que fora observada em vrias crianas; (2) os

    perodos possuem o carter de integrar estruturas construdas anteriormente s

    estruturas do novo estdio; (3) os perodos so caracterizados por estruturas em

    conjunto prprias de cada estdio; (4) cada perodo contm um nvel inicial,

    denominado de nvel de preparao e um final denominado de terminao; (5) os

    processos de gnese e equilbrio (parcial) necessitam de distino entre os

    perodos, pois aquisies posteriores podem influenciar simultaneamente mais de

    um estdio (sobreposies diversas e com alcances distintos) e produzir formas

    divergentes de estabilidade (Dolle, 1974/1995).

    1.2.1. ESTDIOS DE DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

    O perodo sensrio-motor fora assim denominado por Piaget por ser

    predominantemente provido de uma inteligncia prtica que faz uso de aparatos

    sensoriais e motores para construir esquemas e estruturas desde os reflexos

    iniciais (1947/1983, 1964/1978, 1970/2002). Constitui, portanto, uma etapa pr-

    verbal que ocorre, em mdia, do nascimento aos dois primeiros anos de vida.

    Essa inteligncia prtica considerada como o cerne do progresso da inteligncia

    que se desenrolar ao longo da vida do sujeito (Piaget, 1926/1993, 1947/1983,

    1949/1976).

    Piaget (1970/2002) adverte que, neste momento, existe uma

    indiferenciao entre o sujeito e os objetos com que se relaciona,

    a ponto de o primeiro no se conhecer como origem de suas aes, por que centram-se estas no prprio corpo, quando a ateno est fixada no exterior. (...) Segue-se ento uma falta de diferenciao, pois o sujeito s se afirmar quando, posteriormente, coordenar livremente suas aes e o

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    objeto s se constituir ao submeter-se ou ao resistir s coordenaes de movimentos ou de posies num sistema coerente. Por outro lado, como cada ao ainda forma um todo isolvel, sua nica referncia comum e constante s pode ser o prprio corpo, da uma centrao automtica sobre ele, embora nem deliberada nem consciente. (p. 10)

    Por conseguinte, neste perodo so as coordenaes graduais que formam

    ligaes por meio de assimilaes recprocas, capazes de unir aes at ento

    separadas, para estabelecer o sujeito como fonte das aes com condutas

    inteligentes. Da mesma forma, a coordenao das aes possibilita coordenar os

    deslocamentos a que so submetidos os objetos. Estes, por sua vez, possibilitam

    conferir posies e relaes espao-temporais que apresentam constncia, mas

    tambm espacializao e objetivao das relaes causais entre sujeito e objeto.

    Tanto que essa diferenciao promove a constituio de uma perspectiva do

    sujeito enquanto objeto entre os demais com que troca relaes. O autor conclui

    que ao se chegar ao mximo da descentrao de si e das coordenaes de

    ordem espao-temporal e causal torna-se possvel ao sujeito chegar capacidade

    representativa e, portanto, ao pensamento (Piaget, 1970/2002) sem, contudo criar

    conceitos. Sendo assim, esperado o desenvolvimento das seguintes noes

    nesse perodo: objeto permanente; de espao, tempo e causalidade.

    O conhecimento prtico ainda utilizado para originar estruturas e

    esquemas que usam a funo simblica (representao e linguagem) no perodo

    pr-operatrio. Isso porque a capacidade de simbolizar objetos fornece uma

    representao interiorizada, apta para reconstituir aes pregressas, bem como

    antecipar aes futuras em forma de narrativas e imagens mentais (Piaget,

    1964/1978). No entanto, Piaget (1970/2002) afirma que uma conceituao leva a

    construes parciais e atrasadas pelo processo de tomada de conscincia. Por

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    outro lado, considera que medida que a capacidade de representao coordena

    as aes sucessivas envolvendo