Morgan Le Fay_A Herança Da Deusa

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    1/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 1www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    Revista ISSN 1646-740X

    online Nmero 9| Janeiro - Junho 2011

    Titulo: Apresentao de Tese

    M organ L e F ay : A H erana da Deusa . As Faces do Fem in in o na M i to l og ia

    A r t u r i a n a .

    Tese de Mestrado em Literatura Inglesa apresentada Faculdade de Letras da Universidade de

    Lisboa, em Setembro de 2010. Orientao da Prof. Doutora Anglica Varandas.

    Autor(es):Ana Rita Martins

    Enquadramento Institucional: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    Contacto: anna.r i ta .mart@gmail .com

    Fonte: Medievalista [Em linha]. N9, (Dezembro 2010). Direc. Jos Mattoso. Lisboa: IEM.

    Disponvel em: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/

    ISSN: 1646-740X

    F

    IC

    H

    A

    T

    C

    N

    IC

    A

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    2/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 2www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    Apresentao de Tese

    Morgan L e Fay: A Herana da Deusa. As Faces do Feminino na M itologia

    Arturiana.

    Tese de Mestrado em Literatura Inglesa apresentada Faculdade de Letras da

    Universidade de Lisboa, em Setembro de 2010. Orientao da Prof. Doutora Anglica

    Varandas.

    Ana Rita Martins

    A presente tese tem por objectivo fazer um estudo aprofundado da figura de Morgan le

    Fay analisando os primrdios e a evoluo desta personagem dentro do perodo

    medieval e o seu desenvolvimento a partir dessa altura at aos tempos modernos.

    Efectivamente, a problemtica que rodeia a origem da personagem parece nunca ter

    deixado de seduzir autores e leitores que, desde cedo, procuraram explicar, ou justificar,

    a natureza enigmtica e ambgua desta figura.

    Neste trabalho, comemos por explorar as origens de Morgan le Fay, procurando

    tambm encontrar nos textos medievais alguma justificao para o carcter contraditrio

    da personagem. De facto, embora a figura de Morgan revele j transformaes muito

    claras e evidentes durante a Idade Mdia, a verdade que, ao longo dos sculos,

    continuou a ser alvo de modificaes as quais, por sua vez, contriburam para a formacomo para ela olhamos na actualidade. Partindo, pois, da Idade Mdia, tramos um

    percurso cronolgico pelos textos que se detiveram na figura enigmtica de Morgan le

    Fay, tentando perceber os modos e causas das suas representaes, interpretaes e

    reinterpretaes, que, naturalmente, afectaram o papel assumido por esta na arte

    contempornea e na forma como ela hoje encarada.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    3/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 3www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    A primeira referncia ao famoso rei Artur surge na crnica Historia Brittonumescrita

    pelo monge gals Nennius1, cerca de 849-50, a no havendo, no entanto, qualquer

    referncia a uma personagem que sequer se assemelhe a Morgan le Fay. De facto,

    Morgan, ou Morgen, s surgir no panorama arturiano pela mo de Geoffrey of

    Monmouth, em 1150, na obra Vita Merlini (A Vida de Merlin). Todavia, ao examinar

    este texto, deparmo-nos com um factor que muito nos surpreendeu: onde est a figura

    da feiticeira cruel e ambiciosa tradicionalmente associada a Morgan? Quem esta

    Morgen cuja descrio se assemelha de uma rainha com poderes extraordinrios? Qual

    afinal a sua relao com Artur? ela sua irm ou sua amante? ela humana ou

    sobrenatural? Perante tantas dvidas, ficou claro ser necessria uma pesquisa que se

    concentrasse em textos anteriores ao de Geoffrey of Monmouth. Neste sentido, de modo

    a tentar descobrir os primrdios de Morgan e encontrar uma possvel explicao para as

    suas caractersticas aparentemente paradoxais, inicimos a nossa reflexo pelas fontes

    das lendas arturianas: os mitos clticos preservados, ao longo da Idade Mdia, nos

    manuscritos irlandeses e tambm nos manuscritos galeses2. A anlise destes textos e de

    vrios estudos crticos medievais sobre as origens de Morgan le Fay, permitiu-nos

    concluir que esta personagem possui afinidades profundas com a deusa A Morrgan da

    mitologia cltica irlandesa. Ao percebermos ainda ser a figura feminina extremamente

    relevante para a religio dos Celtas, os quais viam nos fenmenos naturais a presena de

    uma divindade suprema que assumia um rosto e um corpo femininos, compreendemos

    que importava conhecer melhor o povo cltico e os seus mitos.

    Os mitos clticos fazem parte dos mais antigos cultos de vegetao e fertilidade das

    comunidades primitivas para quem o divino se revelava como encarnao da prpria

    terra, capaz de se manifestar de diferente formas, mas sempre sob um semblante

    1Os manuscritos so annimos, havendo actualmente crticos que tenham posto em causa a autoria deNennius, da, que alguns se refiram ao autor deHistoria Brittonumcomo Pseudo-Nennius.2Os mitos clticos irlandeses esto preservados em mltiplos manuscritos, sendo de destacar: O Livro de

    Dun Cow(anterior a 1106); O Livro de Leinster(escrito antes de 1160); o Rawlinson B 502 (contendopginas produzidas antes do sculo XI e XII); e O Livro Amarelo de Lecan, O Grande Livro de Lecan, OLivro de Hy Manye O Livro de Ballymotede finais do sculo XIV e princpios do sculo XV. Entre asfontes galesas, de destacar The Mabinogion, um conjunto de histrias bastante antigas com origem natradio oral cltica acreditando-se que, e embora no haja consenso entre os crticos quanto a datasexactas,Os Quatro Ramos do Mabinogitenham sido escritos na segunda metade do sculo XI enquantoos restantes textos tero sido registados mais tardiamente. Primeiro traduzidos para ingls por LadyCharlotte Guest, responsvel pela introduo de Taliesinna coleco, os contos do The Mabinogions se

    tornaram conhecidos no sculo XIX.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    4/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 4www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    feminino. O mundo natural ganhava, pois, uma dimenso divina: a terra era uma Grande

    Deusa, ou Deusa Me, ora meiga e frtil, como a Primavera; ora cruel e estril como o

    Inverno. Assim, o primeiro captulo desta dissertao funciona como contextualizao

    scio-cultural, explorando a cultura, crenas e organizao social dos Celtas.

    De modo geral, as tribos clticas organizavam-se em grupos, famlias, provncias ou

    reinos, estando, cada um, submetido a um rei e a um druida cuja relao

    imprescindvel para o bom funcionamento da comunidade. A organizao scio-cultural

    das tribos era, por sua vez, baseada numa estrutura tripartida herdada do povo Indo-

    Europeu. Alm do rei, cada comunidade tinha trs grupos sociais distintos: a classe

    sacerdotal, a classe guerreira e a classe produtora.

    A classe sacerdotal inclua druidas, sacerdotes, adivinhos, curandeiros, bardos e poetassendo altamente hierarquizada e com vrios graus de especializao. Os druidas, em

    especial, detinham grande prestgio e desempenhavam funes do foro religioso,

    cabendo-lhe o papel de representantes dos deuses. A sua associao ao rei, detentor do

    poder temporal, era crucial, como prova, alis, a relao entre Merlin e Artur no ciclo

    arturiano. O rei, por seu lado, provinha da classe guerreira e era responsvel pelo

    cumprimento das leis adoptadas em assembleia, estando, porm o poder deste limitado

    por uma srie de proibies de carcter mgico e religioso (geasa). Era ainda seu devergarantir o bem-estar do reino sendo da sua sade fsica e mental que dependia o vigor da

    terra. Efectivamente, para assegurar a fecundidade, era necessrio garantir o casamento

    ritual entre o Deus Tribal, papel desempenhado pelo monarca, e a Grande Deusa,

    representada por uma mulher ou qualquer outro smbolo da terra. O lao entre o rei e a

    Grande Deusa assemelhava-se, pois, a um contrato matrimonial que caso quebrado dava

    incio a um perodo de destruio e infertilidade. Por fim, a classe produtora era

    composta, em grande parte, por artfices, embora pudesse compreender qualquer pessoa

    com um dom natural ou artstico. de realar a importncia deste grupo, porque, nas

    comunidades clticas, todos os que conseguissem trabalhar o ferro eram louvados,

    chegando alguns membros a ostentar ttulos semelhantes ao de doutor ou mesmo de

    druida.

    Ao atestar a centralidade da figura feminina na cultura e na religio dos Celtas,

    pudemos ento avaliar a importncia de A Morrgan, na mitologia cltica irlandesa, a

    sua relao com Modron, figura paradigmtica dos mitos galeses, e como ambas

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    5/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 5www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    participam na gnese de Morgan le Fay. A Morrgan particularmente relevante, pois

    da sua ligao com O Dagda3, um dos lderes dos Tuatha D Danann4, que renasce a

    ordem e o equilbrio da natureza. Alm disso, esta tambm notvel por ser, juntamente

    com Macha e Badb ou Nemain, uma das faces das Morrgna, divindade associada

    guerra e responsvel por incentivar o esprito blico dos guerreiros e influenciar os

    acontecimentos no campo de batalha. De facto, ainda que alguns crticos tenham vindo

    recentemente desacreditar a relao A Morrgan/Morgan, a verdade que as lendas

    arturianas e suas personagens radicam, na sua maioria, na mitologia e principais

    divindades clticas. Tal como a figura de Merlin, criada por Geoffrey of Monmouth em

    Prophetiae Merlini (Profecias de Merlin), cerca de 1135, encontra eco na figura do

    profeta gals Myrdin, tambm Morgan le Fay, que surge pela primeira vez na obra Vita

    Merlini, do mesmo autor, remonta s deusas do passado cltico, possuindo claras

    afinidades com A Morrgan e com Modron. Com efeito, A Morrgan est ainda ligada

    divindade aqutica galesa Modron a qual partilha com Morgan le Fay uma aparente

    origem comum, pois Morgan, nome que pode querer dizer mulher que veio do mar,

    tambm de origem marinha, o que reflecte igualmente a sua ligao com Avalon.

    Adicione-se o facto de as duas (Modron e Morgan) se terem unido a Urien e de com ele

    terem um filho, Owain ou Yvain.

    Contudo, convm ter sempre presente que, embora a cultura cltica seja pag, os

    manuscritos que contm as principais narrativas e poemas relacionados com os Celtas

    pertencem j era crist. Na verdade, as primeiras referncias s comunidades clticas

    so feitas por historiadores helnicos visto as anteriores no recorrerem escrita para

    registar a sua histria. Os textos clssicos, no entanto, so fragmentados, pouco

    desenvolvidos e no revelam com pormenor a organizao social dos Celtas. Apenas

    sculos mais tarde que os mitos e lendas deste povo foram registados, no por aqueles

    3O deus tribal, O Dagda, figura de tal forma importante que o seu nome, tal como o de A Morrgan, surgenormalmente antecedido pelo artigo definido, um dos lderes dos Tuatha D Danann. Quando JlioCsar primeiro identifica as divindades clticas, O Dagda comparado a Jpiter, imperador dos cus,sendo reconhecido como patrono dos druidas, mdicos e deus da amizade. Adicionalmente, esta deidade

    preside s estaes e colheitas, tendo, todavia, na forma de Ogma, o seu par indissocivel, uma partenegra e sombria. O Dagda tambm pai de engus ou Mac c, ou ainda, Mabon.4Os contos mitolgicos irlandeses situam nos Tuatha D Danann, povo da deusa Ana, Dana ou Danu, aorigem do povo cltico. De acordo com o Livro das Invases (sculo XII), esta tribo foi a quinta ainstalar-se na Irlanda e, por isso, responsvel pela derrota dos Fir Bolg. Porm, o seu reinado terminoucom a chegada dos Milesianos que obrigou o povo de Ana a refugiar-se em locais isolados e recnditos.

    Com o passar do tempo, os Tuatha D Dannan transformaram-se nos Sdheou fadas.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    6/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 6www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    que lhes deram origem, mas por monges que viriam a suprimir das narrativas alguns

    elementos que poderiam abalar os fundamentos da f crist. Do mesmo modo, Morgan

    le Fay, enquanto criao literria de Geoffrey of Monmouth, no obstante as suas

    antepassadas mticas, uma personagem que emerge da civilizao medieval judaico-

    crist.

    A disseminao da religio crist na Europa traz consigo uma profunda alterao na

    mentalidade e comportamentos, pois, ao contrrio do que acontecia nas comunidades

    clticas onde as mulheres detinham um estatuto semelhante ao dos homens, o gnero

    feminino passa a ser visto como inferior e o seu papel limitado ao servio dos homens.

    Com efeito, aquando da difuso da religio crist, assiste-se ao engrandecimento de um

    Pai omnisciente e omnipresente. A Virgem Maria torna-se na nica mulher apresentadacomo excepcional e inigualvel, mas mortal, embora seja ela que possibilita a redeno

    ao dar luz o Messias. Alm disso, a narrao do Gnesis, onde Deus criou Eva a partir

    de uma costela de Ado, torna-se num momento chave para estabelecer o que a Igreja

    Catlica apelida de ordem natural, segundo a qual a mulher deve submeter-se ao

    homem. Ao mesmo tempo, estabelece-se uma viso do gnero feminino essencialmente

    dominada por duas figuras: Eva, a pecadora, e Maria, a santa.

    Eva, representante do sexo feminino no Paraso, encarada como a grande culpada pelaQueda da humanidade, e responsabilizada pela propagao do pecado aos seus

    descendentes. A Virgem Maria, por seu lado, a nica capaz de conceber sem pecado.

    Livre da maldio do acto de procriar, ela mpar entre as mulheres, tornando-se, por

    isso, um modelo impossvel de seguir. Ser apenas entre os sculos XI e XII, e a partir

    da necessidade de recompensar as boas crists casadas, que surge uma terceira via:

    Maria Madalena, a pecadora arrependida. ela a responsvel pela abertura das portas

    do Paraso para qualquer penitente. Transformada num smbolo da fragilidade humana,

    Madalena perfila-se entre Eva, a mulher real, e Maria, a mulher ideal. Contudo, o papel

    da mulher como smbolo do pecado no se modifica de modo significativo dado a

    salvao s poder advir do arrependimento e da penitncia.

    Aps reunir esta informao, regressmos, inevitavelmente, obra de Geoffrey of

    Monmouth, Vita Merlini, sendo, no entanto, evidente que outro texto do mesmo autor

    teria de ser considerado: Histria dos Reis Britnicos (Historia Regum Brittaniae) de

    1136. Este ltimo, anterior a Vita Merlini, influenciou, em larga escala, as narrativas

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    7/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 7www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    arturianas, estabelecendo a rvore genealgica de Artur e mencionando, pela primeira

    vez, a irm de Artur Pendragon, Anna ou Anne. Estvamos, logo, perante duas figuras

    distintas: por um lado, Anna ou Anne, irm de Artur, e, por outro, Morgen, soberana

    com poderes sobrenaturais. Colocava-se assim um novo problema: Morgan le Fay

    parece reunir caractersticas tanto de Anna ou Anne, quanto de Morgen. Teriam as duas,

    de algum modo, sido interligadas, dando origem a uma s personagem? A esta questo

    dedicmos o segundo captulo, onde conclumos dever-se esta alterao s semelhanas

    entre as deusas A Morrgan e Ana, Dana ou Danu, me divina dos Tuatha D Danann.

    A similitude entre os nomes, Anna, a irm de Artur, e Ana, divindade, parece indiciar

    uma possvel ligao entre as duas figuras feminina que comprovada na obra The

    White Goddess, de Robert Graves, na qual o autor declara que Anna, cujo significadopode ser rainha ou deusa me, faz parte da mitologia irlandesa, aparecendo

    precisamente sob a forma da deusa Ana ou Anan. Adicionalmente, Graves defende que

    esta divindade, semelhana de outras na mitologia cltica, podia assumir dois

    semblantes: por um lado, existia Danu ou Ana, a beneficente, e, por outro, Ana, a

    malfica, que, com Badb e Macha, fazia parte das Morrgna. Estando as Morrgna

    ligadas ao campo de batalha, Ana, um dos seus rostos, pode, por certo, ser considerada

    uma deusa da guerra. Mas e A Morrgan? Na sua explicao, Graves no menciona esta

    divindade indissocivel das Morrgna, parecendo haver quase que uma substituio de

    A Morrgan por Ana. Deste modo, e caso tenha havido de facto uma troca de

    identidades entre as duas, Ana e A Morrgan, susceptvel assumir que as personagens,

    Anna e Morgen dos contos arturianos, foram tambm afectadas. Esta mudana

    justificaria, alis, por que razo esta ltima, na sua descrio inicial em Vita Merlini,

    no tem qualquer relacionamento com a famlia do rei. A difuso das narrativas

    arturianas vai assim apagar o nome de Anna, a irm de Artur de acordo com a

    genealogia estabelecida por Geoffrey of Monmouth, e dar lugar a Morgan le Fay, a Fada

    Morgana que passar a assumir a mesma relao familiar com o rei.

    Adicionalmente, o segundo captulo visa analisar como o desenvolvimento da cortesia e

    o papel da magia na Idade Mdia muito contriburam para o aumento significativo do

    nmero de irms, ou meias-irms, de Artur. Numa poca em que os casamentos eram

    um negcio conveniente, a ligao afectiva das mulheres aos seus irmos e parentes

    muito interessante, verificando-se que, mesmo aps o casamento, as esposas e mes

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    8/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 8www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    eram, em grande parte, leais famlia da qual provinham, e da encontrarem-se

    sobrinhos cuja fidelidade para com o tio, irmo da sua me5. Todavia, no sculo XIII,

    no podemos deixar de notar uma baixa, ou estabilizao, da quantidade de irms do rei

    Artur. Para explicar este fenmeno, alguns crticos tm apontado a reduo da

    importncia cultural dos laos entre irmos, o que levaria a uma menor necessidade de

    cavaleiros notveis pertencerem linhagem de Artur. Alm disso, assistiu-se a um

    aumento do poder da nobreza e ao progressivo destaque da cavalaria enquanto

    manifestao do poder divino. O valor e autoridade do sangue real comeam a perder

    importncia. Desta forma, podemos reduzir as meias-irms de Artur a um grupo de trs:

    Elaine, Morgause/Morcades ou a Rainha de Orkney e Morgan le Fay, todas filhas de

    Igraine.

    Continuando a traar o percurso cronolgico, chegmos pois o momento de nos

    determos no perodo medieval entre o sculo XII e o sculo XV, altura em que foram

    produzidos inmeros textos (ingleses, franceses e no s) cuja fonte de inspirao eram

    as lendas relacionadas com Artur e com todo o imaginrio cavaleiresco nascia a

    Matria da Bretanha6.

    Na impossibilidade de abordar todos esses textos, optmos por analisar a figura de

    Morgan nas duas obras inglesas medievais mais representativas do universo arturiano enas quais a feiticeira de Avalon desempenha um papel de destaque, so elas: Sir Gawain

    and the Green Knight (SGGK) e Le Morte DArthur de Thomas Malory. O terceiro

    captulo tem, assim, por intuito compreender e explorar a(s) diferena(s) e

    semelhana(s) entre a Morgan (Morgne) descrita pelo Gawain-Poete a Morgan le Fay

    de Malory.

    Tanto SGGK como Le Morte DArthur so duas obras fundamentais para a

    compreenso de Morgan le Fay: a primeira, porque, inserindo-se no Revivalismo Celtado sculo XIV, vai invocar o papel primordial de Morgan enquanto um dos rostos da

    Grande Deusa cltica. SGGK um texto arturiano raro no mundo medieval ingls por

    5Ao unirmos esta questo social importncia da linhagem matriarcal na cultura cltica percebemos oporqu da lealdade de Gawain a Artur em Sir Gawain and TheGreen Knight(SGGK) onde o cavaleiroperspectiva o seu valor em relao ao tio, Artur, e no ao pai.6 As histrias sobre Artur foram levadas para territrio francs pelos conteurs que, descendentes doCeltas, haviam fugido da Gr-Bretanha para a Armrica (hoje a Bretanha francesa) aps a ocupao

    anglo-saxnica e l disseminaram a fama de Artur. A designao Matria da Bretanha deve-se, noentanto, ao poeta francs do sculo XII, Jean Bodel.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    9/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 9www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    vrias razes. Primeiro, porque so escassas as obras escritas em Inglaterra sobre Artur;

    segundo, por ser um dos poemas medievais mais elaborados, no havendo o grande

    nmero de incoerncias normalmente encontrado em fontes britnicas e francesas;

    terceiro, por recuperar a tradio cltica e usar motivos caractersticos da cultura inglesa

    (como por exemplo o ciclo das estaes); e quarto, porque restaura a identidade pr-

    crist de algumas das personagens principais do ciclo arturiano: Gawain (Gawayn) e

    Morgan le Fay.

    O Gawain-poetatribui a Morgan vrias caractersticas tradicionais: ela filha de Igraine

    e do Duque de Tintagel, que podemos presumir ser Gorlois; meia-irm do rei Artur e

    irm da me de Gawain; foi aluna de Merlin (Merlyn), que por ela se apaixonou, e com

    ele aprendeu magia. Feiticeira influente, Morgan detm um papel indispensvel nodesenrolar da narrativa. ela afinal a instigadora da aco. Porm, devemos lembrar

    que Morgan uma figura silenciosa. Ao longo do poema, a sua presena mantm-se

    escondida, mas por trs dos movimentos das restantes personagens, a vontade desta

    mulher suprema pondo e dispondo, qual jogo de xadrez, as peas em movimento. a

    ela a quem atribuda a responsabilidade da ida do Cavaleiro Verde corte de Artur

    onde o primeiro ir desafiar os heris de Camelot a participar num jogo de decapitao

    que depressa se tornar num desafio de coragem, f e um teste aos valores da cavalaria e

    s normas e valores sociais implementadas pelo meio-irmo da feiticeira. Morgan le Fay

    , em SGGK, uma figura ambgua: envia o Cavaleiro Verde (que mais tarde se revelar

    ser Sir Bertilak) para perturbar a paz da corte de Artur e assustar Guinevere (Guenore)

    de morte, mas, no obstante, os seus propsitos vo alm do rancor pela rainha. As

    aces por si levadas a cabo visam testar, principalmente, o seu meio-irmo e

    demonstrar haver algo de podre em Camelot. Contudo, Morgan no consegue atingir os

    seus intuitos, porque, de facto, no assusta Guinevere e, acima de tudo, no consegue

    levar a corte de Artur a questionar os valores pelos quais se rege.

    O restaurar da figura de Morgan reflecte-se, mais obviamente, em dois momentos do

    texto. Primeiro, no epteto que lhe dado por Sir Bertilak/Cavaleiro Verde a deusa,

    e goddess the Goddess (SGGKverso 2452) invocando o papel primordial de

    Morgan enquanto Senhora de Avalon. Alguns crticos tm argumentado ser o ttulo de

    deusa apenas um cognome dado a Morgan por camponeses que viam nos seus poderes

    mgicos uma origem divina. De facto, o epteto de deusa atribudo a Morgan surge,

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    10/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 10www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    originalmente, pela mo de Giraldus Cambrensis (Gerald of Wales), na obra Speculum

    Ecclesiae (1216), onde o autor se refere a Morgan como dea phantastica (deusa

    imaginria). Segundo, o Gawain-Poet descreve Morgne e a Dama de Hautdesert em

    termos comparativos. Estas mulheres parecem mesmo ser duplos uma da outra e,

    mesmo no sendo unas, relembram os dois possveis rostos da Grande Deusa que

    encarnava a prpria terra e podia assumir uma face jovem e bela, trazendo a

    prosperidade, abundncia e paz (Primavera) ou envelhecida e horrenda, portadora da

    esterilidade, conflito e morte (Inverno). Todavia, em SGGK, os dons mgicos da

    feiticeira so resultado da aprendizagem formal com Merlin o que coincide com a

    progressiva racionalizao da personagem e consequente afastamento das origens pags.

    Alm disso, embora SGGK recupere temas e motivos de origem cltica, o autor no

    pode fugir sua poca, expressando, no discurso de Gawain sobre as mulheres,

    sentimentos ou ideais misginos caractersticos do sculo XIV. Morgan revela j

    possuir poder sobre as outras personagens e vontade dominadora, mas no parece a

    feiticeira totalmente prfida do universo francs e do que viria a acontecer na obra de

    Thomas Malory.

    A segunda obra, Le Morte DArthur, escrita entre 1469 e 1470, uma das mais

    importantes obras medievas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Tvola Redonda na qual

    vrios textos so recontados, nomeadamente: Suite de Merlin, Morte Arthure, Tristan,

    Queste del Saint Graal, Lancelot en Prose e Mort de le Roi Artu. Malory usou, em

    grande parte e ao contrrio do Gawain-poet, a tradio literria continental presente no

    Ciclo da Vulgata e da Ps-Vulgata. Assim, o autor deu continuidade ao processo de

    degradao que algumas das personagens mais antigas das lendas arturianas j tinham

    vindo a sofrer (Gawain , de resto, disso exemplo) e reformulou as aventuras dos

    cavaleiros da Tvola Redonda luz do conceito de heri promovido pela Igreja Crist.

    No centro das diversas histrias esto os cavaleiros, logo, no de espantar que a trama

    seja dominada por juzos de valor masculinos. Ao homem cabe o papel activo, estando,

    de modo geral, nas suas mos, o destino das damas. Seres secundrios, as mulheres em

    Le Morte DArthur vivem em funo de uma cultura patriarcal onde os direitos

    femininos so reduzidos convenincia do homem por quem so representadas, seja

    esse seu pai, irmo ou tutor. A funo primria da mulher , pois, a de suporte dos

    heris. Contudo, a proximidade com os cavaleiros e, muitas vezes, a sua presena,

    aquando do incio e desenrolar dos mais extraordinrios feitos cavalheirescos, vo

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    11/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 11www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    garantir s damas um lugar de destaque enquanto foras motrizes por detrs das

    aventuras dos protagonistas.Le Morte DArthur tambm uma obra fundamental, pois

    foi sobretudo a partir de Thomas Malory que Morgan Le Fay (Morgan le Fey) ficou

    para a histria como a feiticeira m capaz de tudo para prejudicar o irmo.

    No comeo de Le Morte DArthur, Morgan tem uma boa relao com o meio-irmo,

    Artur, de tal forma que ele lhe confia a espada Excalibur e a bainha, ambas objectos

    sobrenaturais7. No entanto, o bom relacionamento com Artur no impede Morgan de

    conspirar contra a vida do rei e do marido, o rei Urien (Uryens), falsificando os

    acessrios mgicos deixados sua guarda e atraindo Artur para uma batalha com

    Accolon, amante da feiticeira. Ser, alis, este ltimo quem confessa o terrvel esquema

    elaborado para derrotar Artur, atribuindo a Morgan toda a culpa: foi ela quem decidiuatentar contra a vida de ambos os monarcas. atravs de um homem, o qual se declara

    apaixonado pela esposa de Urien, mas facilmente a denuncia, que sabemos o porqu da

    rebelio da feiticeira. O amor por Sir Accolon, o desejo de se tornar rainha suprema e

    ocupar um lugar que a sociedade no lhe permitia servem de justificao para o

    comportamento da feiticeira. No obstante, todos os planos de Morgan falham, no lhe

    restando seno o exlio imposto pelos homens da sua famlia. O conhecimento mgico

    permite-lhe, contudo, iludir Artur e continuamente minar o reinado dele. O poder dos

    encantamentos, ou necromancia, d feiticeira um estatuto similar ao do meio-irmo,

    visto ela conseguir impor a sua vontade independentemente da aprovao dele.

    Em Le Morte DArthur, Morgan le Fay afasta-se da figura benfica presente em Vita

    Merlini e do papel ambguo representado em SGGK, assumindo-se agora como uma

    personagem negativa, uma das vils da narrativa. Poderosa pelas foras sobrenaturais

    que consegue manipular, ela maligna, invejosa, ambiciosa e cruel, tentando por todos

    os meios prejudicar Artur. Porm, os verdadeiros motivos de Morgan mantm-se

    envoltos em mistrio e as suas aces no so, de modo geral, satisfatoriamente

    justificadas. Todavia, aquando da morte do rei, causada por Mordred, filho de Artur e da

    sua irm Morgause (Margawse), Morgan quem vem, numa barca, buscar o irmo para

    o curar, havendo um regressar ao papel desempenhado em Vita Merlini. Com a

    destruio da Tvola Redonda, o modelo de comportamento promovido por Artur

    7

    Segundo Thomas Malory, a espada Excalibur, sempre que desembainhada numa luta, causava feridasaos seus oponentes, enquanto a bainha impedia aquele que a carregava de sofrer ferimentos.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    12/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 12www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    arruinado j no restando quaisquer motivos para continuar o conflito entre os dois.

    Perante a iminente morte do meio-irmo, a personagem Morgan le Fay transforma-se

    numa figura sobrenatural (quer reconheamos nela a Grande Deusa dos Celtas ou no),

    passando a ser a responsvel pela passagem para o Outro Mundo cltico que Avalon,

    ou simplesmente para a morte.

    O episdio da vinda da barca para buscar Artur bastante interessante na medida em

    que combina diversos factores e nos leva a problematizar, de novo, o desempenho de

    Morgan, porque embora descrita desde o incio como feiticeira maligna, a meia-irm de

    Artur passa, nas ltimas pginas de Le Morte DArthur, a rainha de Avalon, suprema

    conhecedora das artes curativas. Podemos, portanto, deduzir estarmos perante duas

    verses da figura Morgan le Fay: por um lado, a feiticeira cruel e ambiciosa que dominaquase todo o texto, e, por outro lado, a Senhora de Avalon, figura sobrenatural pag.

    Parece-nos pois ter Malory tentado conjugar duas tradies distintas e opostas da

    mesma personagem, uma, de origem continental, onde Morgan , basicamente, a vil, e

    outra, proveniente da herana inglesa, na qual a mesma personagem tem caractersticas

    que, embora ambguas, so positivas. Cria-se assim um dualismo mpar nas narrativas

    arturianas que ir marcar o comportamento de Morgan ao longo dos sculos.

    Aps o sculo XV at ao sculo XIX h um perodo de interregno das lendas arturianasdevido a) ao crescente interesse pela cultura clssica, agora, entendida como Idade de

    Ouro; e b) ao repdio pelas lnguas brbaras (vernculas) e pela cultura e literatura

    medievais. O quarto e ltimo captulo visa, portanto, olhar para sculos recentes e

    perceber como Morgan le Fay representada por autores ou artistas modernos,

    procurando ainda identificar os textos medievais que lhes serviram de fonte.

    De facto, as lendas sobre Artur s sero recuperadas a partir de finais do sculo XVIII,

    perodo de revivalismo marcado por uma crescente curiosidade pelas culturas etradies primitivas. Em Inglaterra, particularmente, este interesse reflectiu-se na busca

    de um passado nacional. Ao mesmo tempo, assistem-se a grandes mudanas na cena

    literria e intelectual (bem como no panorama poltico-social) que iro culminar no

    despontar do Romantismo. O movimento romntico8vai pautar as primeiras dcadas do

    8O movimento romntico vai marcar, de forma incontornvel, as primeiras trs dcadas do sculo XIX,

    sendo o prefcio de William Wordsworth reedio das Lyrical Ballads(1800), obra escrita com SamuelTaylor Coleridge, considerado o incio do Romantismo ingls.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    13/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 13www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    sculo XIX e ter como fonte de inspirao o mundo natural, a magia, os mitos antigos

    e a poca medieva. neste contexto que se assiste ao reaparecimento das narrativas

    arturianas, sendo Le Morte DArthur alvo de especial interesse por parte do pblico

    vitoriano. Baseando-se na narrativa de Thomas Malory, os autores novecentistas vo

    produzir inmeras obras, contribuindo para a popularizao das lendas arturianas. Com

    efeito, a maioria vai ficar a conhecer as narrativas sobre o rei Artur via as

    reinterpretaes feitas pelos escritores e nos quadros produzidos pelos artistas da poca,

    nomeadamente pelos Pr-Rafaelitas.

    A primeira fase do que, mais tarde, seria reconhecido como o movimento Pr-Rafaelita

    inicia-se em 1848, data do incio da Irmandade Pr-Rafaelita (Pre-Raphaelite

    Brotherhood, PRB)

    9

    . A PRB ambicionava inovar em diversos campos procurandoassociar-se a um perodo histrico e artstico muito particular, o da era antes de Rafael,

    ou seja, a Idade Mdia. Todavia, a viso destes oito Pr-Rafaelitas a de um passado

    idealizado, pois a Idade Mdia era para eles um perodo harmonioso durante o qual o

    Homem e a natureza viviam em equilbrio. Alm disso, a PRB identifica-se com os

    ideais de cavalaria, em especial os princpios de lealdade, fraternidade e coragem

    perpetuados pelas narrativas sobre os cavaleiros da Tvola Redonda. Utilizando,

    maioritariamente, Le Morte DArthur, mas tambm os poemas de Lord Tennyson, os

    Pr-Rafaelitas dedicar-se-o a representar nos seus quadros cenas descritas pelos dois

    escritores. O fim da PRB d-se em 1854; porm, os princpios defendidos pela

    Irmandade vo ser alvo de admirao por parte de um grupo disperso, dando origem

    chamada segunda fase do movimento Pr-Rafaelita que vai incluir artistas de renome,

    distinguindo-se: Edward Burne-Jones, John William Waterhouse, William Morris,

    Evelyn De Morgan e Frederic Sandys.

    A arte Pr-Rafaelita ir continuar a influenciar pintores: a sua viso de Morgan le Fay

    como a mulher independente, misteriosa e malfica cujo conhecimento, neste caso sobre

    magia, lhe permite impor-se e contrariar os desejos do tutor masculino, o irmo, Artur,

    permaneceu e, em larga escala, contribuiu para a formao da imagem actual da

    9 A PRB conta com oito artistas: William Holman Hunt, John Everett Millais, Dante Gabriel (DG)

    Rossetti, Thomas Woolner, James Collinson, Frederic George Stephens e William Michael Rossetti,irmo mais novo de DG Rossetti.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    14/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 14www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    personagem10. Alm disso, saliente-se que a perspectiva romntica Pr-Rafaelita ir

    igualmente dominar a fico europeia e americana do sculo XX.

    No sculo XX, os textos ligados ao rei Artur e aos cavaleiros da Tvola Redonda

    tiveram enorme popularidade, havendo inmeros autores a escreverem, e reescreverem,as aventuras dos heris arturianos, dando maior preponderncia a vrias personagens

    femininas. Tambm a nvel visual h cada vez um maior interesse em representar

    figuras associadas a Camelot, em particular, Morgan le Fay e Guinevere. O incio do

    sculo XX assistiu, pois, produo de numerosas obras sobre a Matria da Bretanha,

    entre as quais salientamos: A Connecticut Yankee in King Arthurs Court de Mark

    Twain, que, produzida ainda no sculo XIX ( datada de 1889), considerada a

    primeira narrativa moderna sobre o rei Artur; The Once and Future Kingde T.H. White,coleco que comea a ser publicada em 1938; e Taliessin Through Logres(1938) e The

    Region of the Summer Stars(1944) de Charles Williams. Adicionalmente, com o rpido

    desenvolvimento da indstria cinematogrfica a partir de ento, comeam a surgir

    vrios filmes onde a corte de Camelot central para o guio11. De destacar Excalibur

    (1981), de John Boorman, no qual dado a Morgan ou Morgana um papel fulcral.

    Nos anos 70 do sculo XX, o revivalismo produzido pelo sculo XIX veio a ser

    assimilado para o cinema e msica popular. Os mitos, e os mitos arturianos, emparticular, estavam no centro da cultura da juventude. O gosto pelo primitivo e

    elementar, pela viso romntica da Idade Mdia, explorada (e, em parte, criada) pelos

    Pr-Rafaelitas, reflectiu-se nas salas de cinema. Uma dcada mais tarde, nos anos 80, a

    mitologia e o imaginrio medieval j integravam a cultura popular europeia e

    americana, manifestando-se nas mais diversas reas. O filme Excaliburdistingue-se de

    outras representaes cinematogrficas da corte arturiana, pois este filme, alm de

    colocar Morgan numa posio de poder, possivelmente uma das melhores

    interpretaes, ou reinterpretaes, da Matria da Bretanha.

    10Entre as inmeras obras Pr-Rafaelitas dedicadas temtica arturiana so destacadas: Morgan Le Fay(1862-3) de Anthony Frederick Sandys e a ilustrao Morgan le Fay was put to school in a nunnery, andthere she learned so much that she was a great clerk of necromancy (1910-11)de William Russell Flint.Alm disso, ainda de referir a ilustrao de Aubrey Beardsley, Morgan le Fay gave a shield to SirTristam(1893-94).11 Entre os filmes dedicados Matria da Bretanha conta-se: Knights of the Round Table (1953), deRichard Thorpe; The Sword in the Stone (1962), de Wolfgang Reitherman; Camelot (1967), de Joshua

    Logan;Monty Python and the Holy Grail(1975), de Terry Gilliam e Terry Jones;First Knight(1995), deJerry Zucker; eKing Arthur(2004), de Antoine Fuqua.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    15/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 15www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    Baseando-se na obra Le Morte DArthur de Thomas Malory, Boorman centra-se no

    desenvolvimento de figura de Artur desde a concepo (atravs de um feitio de Merlin)

    at morte (via a interferncia mgica de Morgan). Neste filme, Morgan claramente, a

    figurao do Mal, que, excepto pelo trauma de infncia causado quando o pai morre e a

    me enganada, no tem quaisquer caractersticas redentoras dela nem sequer o

    papel (tradicionalmente desempenhado pela feiticeira) de levar Artur para Avalon, pois

    no parece estar dentro da barca que vem buscar o rei no fim do filme. Movida pela

    ganncia e desejo de poder, Morgan assume, sem dvida, o papel da mulher activa e

    dominadora a predadora que surge para trazer a vingana e a destruio. Esta

    representao de Morgan, ser, contudo, contrariada por uma das mais influentes obras

    literrias dedicada temtica arturiana The Mists of Avalon(1982) de Marion Zimmer

    Bradley.

    The Mists of Avalon, publicado apenas um ano depois de Excalibur, possivelmente o

    mais famoso e influente recontar das lendas arturianas do sculo XX. Composta por

    quatro livros:Mistress of Magic, The High Queen, The King Stage The Prisoner in the

    Oak, a coleco de Marion Zimmer Bradley revolucionou a forma como as personagens

    femininas haviam sido representadas e interpretadas, em particular Morgaine, ou

    Morgan le Fay. Ao recontar o mito arturiano sob uma perspectiva (at ento)

    completamente inovadora, Bradley consegue criar uma empatia entre o leitor e Morgan

    e redesenha a hierarquia de Camelot, criando uma da sociedade na qual a figura

    masculina se submete s influncias, decises e posturas dos elementos femininos a

    verdadeira fonte de poder por detrs dos eventos principais. O trabalho de Marion

    Zimmer Bradley , porm, uma excepo porque procura veicular uma viso alternativa,

    dando-se proeminncia a uma cultura centrada na mulher. H, por isso, uma

    contextualizao diferente presente em SGGK, Le Morte DArthureExcalibur(bem

    como nos restantes quadros e ilustraes mencionados ao longo da dissertao). Bradley

    criou um argumento distinto dos anteriores, mas no transformou nem Artur, nem os

    seus cavaleiros em viles. De facto, em The Mists of Avalon, no se pode traar uma

    fronteira definida entre personagens boas e ms. A prpria Morgan foi humanizada,

    pelo que no a podemos considerar uma personagem de caractersticas totalmente

    positivas. Embora muitos considerem Morgan uma das grandes heronas de The Mists of

    Avalon, inegvel que ela nem sempre se comporta como tal. Morgan, mesmo descrita

    enquanto tolerante e generosa, continua a ser quem contribui, directa ou indirectamente,

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    16/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 16www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    para a morte de vrias outras personagens masculinas e femininas e aquela que tenta

    assassinar o meio-irmo. Ela no , com certeza, uma herona por completo, mas pela

    sua complexidade de emoes e pensamentos, e pelo facto de se assumir como narrador

    principal da obra, est, sem dvida, mais perto do leitor ou espectador do que antes.

    Todavia, The Mists of Avalon, por mais preponderante que seja, no vai alterar por

    completo a representao de Morgan le Fay, verificando-se continuar a feiticeira, na

    maioria das obras literrias e cinematogrficas, a ser vista sob uma luz negativa. Um

    bom exemplo disso a banda desenhada onde Morgan assume quase sempre o papel de

    vil cruel e ambiciosa. Mencionada, desde os anos 50, sob diferentes pseudnimos em

    inmeras publicaes de grande editoras americanas como a Marvel e DC Comics, -lhe

    dado particular destaque na coleco Camelot 3000 de Mike Barr e Brian Bolland.Baseada em Le Morte DArthur, Camelot 3000 foi publicada entre 1982 e 1985,

    combinando elementos da obra de Thomas Malory com um cenrio futurista.

    No ano 3000, a Terra invadida por seres aliengenas, iniciando uma srie de eventos

    que iro levar descoberta do tmulo de Artur Pendragon, libertao de Merlin e ao

    restaurar da Tvola Redonda. Morgan le Fay aparece nesta coleco num papel no

    muito diferente do representado em Excalibur: ela maligna, egosta, gananciosa e

    inveja o trono do meio-irmo. Visualmente as duas so parecidas, pois, embora Morgan(em Excalibur) seja loira e Morgan le Fay (em Camelot 3000) morena, ambas so

    mulheres fatais, cuja sensualidade usada como um trunfo. Morgan le Fay, conforme

    no filmeExcalibur, a predadora, a devoradora de homens.

    Verificamos, deste modo, que, embora no sculo XX, tenha havido uma reinterpretao

    das aces e motivos de Morgan le Fay, para os quais, de resto, se procurou alguma

    justificao, vindo a personagem adquirir algumas caractersticas positivas, ainda assim

    a imagem que dela permaneceu foi a de uma figura malfica. O percurso da feiticeira,agora, de modo geral, marcado por um desejo de reconhecimento pessoal e de igualdade

    para com os homens, continua a ser pautado por uma viso negra.

    Concluindo, Morgan le Fay continua a ser encarada como vil, primeiro, porque na

    passagem para o sculo XX, as representaes dos mitos arturianos feitas pelos artistas

    Pr-Rafaelitas contriburam, em larga escala, para a viso de outros pintores,

    ilustradores, realizadores cinematogrficos e escritores. Assim, a degradao da imagem

    de Morgan le Fay perseverou e dada continuidade figura da bruxa malfica, mas

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    17/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 17www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista

    sensual, j presente na imaginao do pblico vitoriano. , portanto, essa forma que

    chega at ns no filmeExcalibure no livro de banda desenhada Camelot 3000, ambos,

    de resto, expressamente baseados na narrativa de Thomas Malory. De facto, de

    salientar a extrema importncia de Le Morte DArthur como obra de referncia para

    quem queira estudar, escrever ou fazer qualquer trabalho sobre o ciclo arturiano. A

    narrativa de Malory um texto incontornvel para o desenvolvimento das lendas

    arturianas conforme as conhecemos nos dias de hoje e, da, que a representao feita de

    Morgan le Fay no texto seja tambm difcil de ser alteradaela est enraizada no nosso

    imaginrio colectivo.

    Segundo, relacionado com o ponto atrs mencionado, o rei Artur e os seus cavaleiros,

    Gawain, Lancelot, Galahad, Bors, Percival, etc., so heris por excelncia, os maiscorajosos e justos. Estando o renome destes cavaleiros alm de qualquer suspeita, os

    que a eles se opem so, diramos, obrigatoriamente maus. Os romances, e os de

    cavalaria em particular, esto ligados a ideias pr-definidas sobre o Bem e o Mal. Os

    bons so destemidos, protegem os inocentes e as suas aces so honestas, logo, todos

    quanto tiverem posturas diferentes e que, de algum modo, se contraponham aos

    anteriores so, por norma, os maus ou viles. Assim, se Artur o heri, ento Morgan,

    como sua declarada inimiga, (e, de certo modo, s pode ser) a vil.

    Terceiro, parece-nos haver quase uma incapacidade de reavaliar o papel desempenhado

    por Morgan le Fay que, por mais incongruncias que lhe possamos encontrar, no nos

    parece ser possvel de alterar. A feiticeira ambiciosa, diablica, sem escrpulos est

    interligada com a imagem da femme fatalee curandeira sobrenatural, rainha do Outro

    Mundo que Avalonrepetimos por isso que esta representao de Morgan le Fay est

    presente no nosso imaginrio colectivo e dificilmente ser alterada, tem o peso de

    sculos de tradio.

  • 7/23/2019 Morgan Le Fay_A Herana Da Deusa

    18/18

    A p r e s e n t a o d e T e s e A n a R i t a M a r t i n s

    MedievalistaonlineN 9| Janeiro - Junho 2011 IEM - Instituto de Estudos Medievais 18

    COMO CITAR ESTE ARTIGO

    Referncia electrnica:

    MARTINS, Ana RitaMorgan Le Fay: A Herana da Deusa. As Faces do Feminino

    na Mitologia Arturiana.Tese de Mestrado em Literatura Inglesa apresentada

    Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Setembro de 2010.Medievalista[Em

    linha]. N9, (Dezembro de 2010). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponvel em

    http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA9\martins9008.html.

    ISSN 1646-740X.