17
Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre táticas e estratégias para a conquista da libertação da mulher. VIVIANE PRADO BEZERRA 1 O Movimento do Dia do Senhor foi se configurando a partir de 1965, por iniciativa de Padre Albani Linhares, na diocese de Sobral, cidade situada na região noroeste do estado do Ceará. Tal Movimento, que assumia a feição de CEB Comunidade Eclesial de Base, via na capacitação de camponeses e camponesas, uma alternativa laica que, naquele momento, suprisse a carência de padres da Diocese, garantindo, assim, a celebração da palavra de Deus aos domingos nas comunidades rurais. Por isso o nome “Dia do Senhor”, em referência ao domingo, seguindo a tradição católica. Esse Movimento esteve atuando nas comunidades rurais da zona Norte do estado até meados dos anos 1990, quando se fragmentou devido às mudanças estruturais do Movimento. Fator decisivo também para seu enfraquecimento foram as mudanças conjunturais advindas com a “vitória” do projeto teológico “conservador” da Igreja- Rito, na década de 1980, que cada vez mais suprimia os espaços da Igreja-Povo, conquistados desde o Concílio Vaticano II (1962-1965). Sabe-se que durante a segunda metade do século XX a Igreja Católica encontrou-se internamente dividida entre um projeto “conservador”, dogmático e uma vertente cada vez mais secularizada, aberta à participação efetiva de leigos e da comunidade, expressando sua “opção preferencial pelos pobres”. De acordo com Scott Mainwaing “a divisão fundamental dentro da Igreja brasileira não provém de uma oposição entre a base e a hierarquia, mas envolve, antes, diferentes concepções de missão de Igreja...”. (MAINWARING, 1989: 10) Thomas Bruneau informa sobre a “missão profética” assumida pelo clero “progressista” quando frente às tensões sociais, vivenciadas no contexto de ditaduras da América Latina, a Igreja Católica representava um dos poucos canais de crítica à repressão e de reivindicação por justiça e defesa dos 1 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense UFF.

Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre táticas e estratégias

para a conquista da libertação da mulher.

VIVIANE PRADO BEZERRA1

O Movimento do Dia do Senhor foi se configurando a partir de 1965, por

iniciativa de Padre Albani Linhares, na diocese de Sobral, cidade situada na região

noroeste do estado do Ceará. Tal Movimento, que assumia a feição de CEB –

Comunidade Eclesial de Base, via na capacitação de camponeses e camponesas, uma

alternativa laica que, naquele momento, suprisse a carência de padres da Diocese,

garantindo, assim, a celebração da palavra de Deus aos domingos nas comunidades

rurais. Por isso o nome “Dia do Senhor”, em referência ao domingo, seguindo a tradição

católica. Esse Movimento esteve atuando nas comunidades rurais da zona Norte do

estado até meados dos anos 1990, quando se fragmentou devido às mudanças estruturais

do Movimento. Fator decisivo também para seu enfraquecimento foram as mudanças

conjunturais advindas com a “vitória” do projeto teológico “conservador” da Igreja-

Rito, na década de 1980, que cada vez mais suprimia os espaços da Igreja-Povo,

conquistados desde o Concílio Vaticano II (1962-1965).

Sabe-se que durante a segunda metade do século XX a Igreja Católica

encontrou-se internamente dividida entre um projeto “conservador”, dogmático e uma

vertente cada vez mais secularizada, aberta à participação efetiva de leigos e da

comunidade, expressando sua “opção preferencial pelos pobres”. De acordo com Scott

Mainwaing “a divisão fundamental dentro da Igreja brasileira não provém de uma

oposição entre a base e a hierarquia, mas envolve, antes, diferentes concepções de

missão de Igreja...”. (MAINWARING, 1989: 10) Thomas Bruneau informa sobre a

“missão profética” assumida pelo clero “progressista” quando frente às tensões sociais,

vivenciadas no contexto de ditaduras da América Latina, a Igreja Católica representava

um dos poucos canais de crítica à repressão e de reivindicação por justiça e defesa dos

1 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF.

Page 2: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

2

direitos humanos. Momento em que diversos sacerdotes tiveram comprometidos com o

“papel de falar, de denunciar e de pregar a verdade”. (BRUNEAU, 1974: 410).

Nesse sentido, com a abertura política na década de 1980, observou-se um

estrangulamento da ação progressista do clero brasileiro, ao passo que o rito, o dogma e

o espiritual voltavam a imperar nas missas e na formalidade das relações entre clero e

povo. Dessa forma, o Movimento do Dia do Senhor se esboça nos quadros dos

movimentos sociais do campo, embasados pelos teóricos da Teologia da Libertação e da

pedagogia de Educação Popular, característicos de sua época.

Ao rememorar sua própria inserção no Dia do Senhor, a religiosa norte-

americana da Congregação de Notre Dame, Maria Alice MacCabe, nos oferece pistas

sobre o momento histórico que propiciou o surgimento desse Movimento:

Naquela época, fim dos anos 1960, houve um apelo do papa, nem me lembro

qual papa... mas, o apelo do papa foi para mais evangelização na América

Latina. Então, muitas congregações responderam este apelo e, nossa

congregação, respondeu. Isso Coincidiu com o Conselho de Medellín, que foi

o primeiro Conselho Episcopal da América Latina e que, foi a partir do

Conselho de Medellín que realmente a Teologia da Libertação, foi

desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina

começou a desenvolver essa metodologia e nasceu a idéia de desenvolver

Comunidade Eclesiais de Base. Isso nos anos sessenta. Então, o Movimento

do Dia do Senhor nasceu dessa inspiração. O Albani, sempre foi muito em

comunicação com pessoas que, que lia e estudava os documentos de

Medellin, e os documentos também que estavam saindo do Concílio

Vaticano. Meddelín, eu vim também por causa do Concílio Vaticano, que era

anterior. Então a nossa vinda como grupo de irmãs coincidiu com este

momento. (Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009,

em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.)

A memória de Maria Alice recupera os rumos que parte da Igreja Católica tomou

a partir da década de 1960, com o Concílio Vaticano II (1962-1965). Tal Concílio

dialogava com os sinais do mundo pós-segunda guerra, inserido na lógica da Guerra

Fria. Do Vaticano II saiu “a opção preferencial pelos pobres”, compromisso pastoral

assumido por muitos religiosos da Igreja Latino-americana a partir de então.

Inicialmente, esteve à frente do Vaticano II o papa João XXIII, o referido papa que

aparece na narrativa de Maria Alice. Foi ele quem conclamou pelo aggiornamento da

Page 3: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

3

Igreja e pelo compromisso missionário dos conciliares com as regiões menos

desenvolvidas do mundo. Assim como a congregação de Notre Dame, muitas outras

enviaram seus missionários para a América Latina.

Nesse contexto, o papa João XXIII conclamava para que religiosos e religiosas

de origem européia, canadense, norte-americana adentrassem a realidade cultural,

política e econômica de regiões completamente diferentes das suas. Se os Estados

Unidos, através da Congregação de Notre Dame, e a Espanha2 responderam

prontamente ao chamado do papa, enviando para a América Latina uma quantidade

significativa de missionários, a Alemanha se manifestou garantindo apoio apostólico e

financeiro, através da criação da Adveniat.

A criação da Adveniat na Alemanha é fruto desta conjuntura eclesial, assim

como a de outros organismos de solidariedade, seja no plano dos recursos

materiais, seja no dos recursos humanos, tais como o Seminário de Verona,

o Centro do Episcopado Italiano para a América latina (CEIAL) na Itália; o

Colégio para a América Latina de Louvain, na Bélgica; o Comité Episcopal

France Amérique Latine (CEFAL), na França, a Comissão Episcopal

Canadense da América Latina (C.E.C.A.L), no Canadá, o Secretariado para

a América Latina no seio da Conferência Episcopal norte-americana. (BEOZZO, pdf, Acesso: 21/03/2016, p.05).

É interessante salientar que durante o Concílio, João XXIII falece, sendo o papa

Paulo VI o novo responsável pela condução de Vaticano II, ao que parece, seguindo a

mesma opção de Igreja. Nesse sentido, a memória de Maria Alice situa a importância

desse Concílio para a aproximação entre os mundos, naquela conjuntura, polarizados

entre primeiro e terceiro mundo. O Conselho Episcopal de Medellín, ocorrido em 1968,

e a formulação de uma Teologia da Libertação, como situa Maria Alice em sua

2 “Esta já contava, naquela ocasião, com 18.000 religiosos, religiosas e irmãos leigos, além de 650 padres

seculares e 50 missionários leigos trabalhando nos vários países da América Latina. Em 1963, João

XXIII pede aos bispos espanhóis que enviem outros 1.500 padres seculares, ao longo de três anos”.

BEOZZO, Oscar. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. IN:

http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso: 21/03/2016. p. 5

Page 4: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

4

narrativa, vieram aprofundar a aproximação da Igreja Católica nacional e internacional

com os pobres e desvalidos do mundo de então, aproximando os contrastes entre campo

e cidade; cultura formal e não-formal. Ainda com Maria Alice, percebe-se as tensões e

os conflitos culturais sentidos em decorrência de tal aproximação:

Interessante. Eu diria, choque de cultura, eu tive muito mais com a classe

média do que com o povo do campo. ... Eu diria, e eu tento dizer isso com

uma certa humildade, mas o que eu descobri em mim mesma, desde os

primeiros tempos aqui no Brasil, é que eu tinha uma comunicação boa com o

povo do campo. ... e eu aprendi muitas coisas, eu diria, como jogo de

cintura, ah... aprendi, por exemplo, não fazer julgamentos, não usar todos os

meus pontos de referências americanos em cima deste povo... Também, nós

americanas, embora que a gente não tinha muitas brasileiras em nossa

congregação, mas nós aprendíamos muita pedagogia, em português, sempre

usamos português, não usamos inglês entre nós e a gente... nos questionamos

tanto sobre nossa... nossas limitações culturais... a parte política, por

exemplo, nós, por nascer num país em que a gente não tinha... uma ditadura,

nós não temos isso. A gente não tinha o mesmo nível de cautela e medo que o

povo aqui tinha naquela época, e ainda tem, e isso pode ser mais negativo do

que positivo. Porque a gente pode dizer besteira, pode jogar o povo numa

situação que eles não são tão prontos de assumir. Eu posso lembrar mil

questões, assim, que a gente avaliava e isso foi um processo, não foi

imediato, eu fiz muitas besteiras.( Risos) (Entrevista com Maria Alice

MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.)

Por esse caminho, quando Maria Alice MacCabe adentra o universo do

Movimento do Dia do Senhor, convidada por padre Albani Linhares, já existia um

campo3 cultural, político, pastoral e pedagógico constituído. Nesse sentido, é válido

lembrar que no Movimento os sujeitos que o compunham ocupavam diferentes lugares

nesse campo, desde a equipe de coordenação, formada por religiosos e leigos, oriundos

de classe média, com uma vivência urbana, letrados, com uma visão de mundo

informada por outros valores que não somente os do mundo rural e, no caso específico

de Maria Alice e outras religiosas norte-americanas que permearam o Dia do Senhor,

3 “O campo de poder (que não deve ser confundido com o campo político) não é um campo como os

outros: ele é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital, ou mais precisamente, entre

os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo

correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é

posto em questão.(...)” In: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP:

Papirus, 1996. P. 52.

Page 5: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

5

destacam-se as diferenças da língua e da experiência vivenciada em países

culturalmente diferenciados.

Os dirigentes, como eram chamados os camponeses, líderes comunitários, que

assumiam o papel de pregar o evangelho e manter vivo o Movimento nas suas

comunidades rurais. Na maioria das vezes, eram sujeitos sem uma educação formal,

cujas experiências de vida restringiam-se à realidade rural. Tinham as orientadoras,

também camponesas que se engajavam no Movimento, inicialmente, ocupando um

lugar secundário nesse campo, exercendo a função de catequista e que, com o fazer-se

do Movimento passam a assumir novo lugar de atuação, conforme observamos com os

Encontros de Esposas. E por fim, tinha-se a base do Movimento, ou seja, àqueles

camponeses e camponesas que participavam do Dia do Senhor, mas não ocupavam

nenhuma posição de destaque na estrutura do Movimento. Cabe salientar que tal

Movimento tinha como proposta político-pedagógica a “conquista da autonomia”, ao

passo que no decorrer dos trinta anos de atuação do Dia do Senhor, já nos anos 1980, a

equipe de coordenação foi saindo da linha de frente, fazendo com que os próprios

dirigentes e orientadoras assumissem todas as funções no Movimento.

Assim, a religiosa norte-americana viria compor a equipe de coordenação do

Movimento, juntamente com Padre Albani Linhares, Gustavo Lira e Lídia Ferreira. É

interessante que se diga que Gustavo era filósofo e Lídia, socióloga, ambos não eram do

Ceará e foram convidados por padre Albani para contribuir com o Dia do Senhor por

conta de sua experiência em movimentos populares, já desenvolvida no estado do

Maranhão. Durante os anos 1970, o Movimento atinge a Diocese de Itapipoca, que

chegava até suas comunidades rurais através do programa de rádio do Movimento,

“Encontro das Comunidades”, transmitido pela rádio Educadora do Nordeste, da

diocese de Sobral. No intuito de assistir tanto à Diocese de Sobral quanto de Itapipoca, a

equipe se dividiu, ficando Gustavo e Lídia, responsáveis pela Diocese de Sobral e Padre

Albani e Maria Alice, pela de Itapipoca.

Ainda apropriando-se do conceito de campo de Bourdieur, faz-se necessário

considerar que o próprio Dia do Senhor estava inserido em um campo ainda maior e

Page 6: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

6

mais tensionado: o meio rural do nordeste do Brasil, mais precisamente, da região norte

e noroeste do Ceará. Região fortemente marcada pela cultura patriarcalista, bem como,

pelo latifúndio, o que propiciou para que os camponeses e as camponesas do

Movimento protagonizassem alguns conflitos de terra. São emblemáticos desse período

o conflito de Queimadas4, comunidade pertencente ao município de Coreaú, diocese de

Sobral e o conflito no vale Salgado dos Compridos5, pertencente ao município de

Itarema, diocese de Itapipoca. Ambos os conflitos marcaram profundamente a memória

de homens e mulheres que constituíram o Movimento e demarcaram claramente o lugar

que cada um dos envolvidos, camponeses e latinfundiários, ocupavam nesse campo de

poder. Desse modo, Bourdieu chama a atenção para a atuação dos diferentes sujeitos

que interagem no campo, ao passo que estes vão constituindo uma identificação cada

vez maior se estiverem organizados em um espaço social.

Algo como uma classe ou, de modo mais geral, um grupo mobilizado para e

pela defesa de seus interesses, não pode existir se não ao preço e ao termo de

um trabalho coletivo de construção inseparavelmente teórico e prático; mas

nem todos os agrupamentos são igualemente prováveis e esse artefato social

que é sempre um grupo social tem tanto mais oportunidades de existir e

subsistir de maneira durável quanto mais os agentes que se agrupam para

constituí-lo já estejam mais próximos no espaço social(...) (BOURDIEU,

1996: 50)

Faz-se necessário ressaltar que durante os anos 1970, além dos conflitos de

terras espalhados pelo interior do Brasil, evidenciava-se também, em âmbito

internacional, a efervescência de movimentos sociais, dos quais se destacam o

movimento negro e o movimento feminista, nos Estados Unidos. Nesse sentido, a

organização de mulheres se tornava uma realidade cada vez mais presente nos Estados

Unidos e na Europa, compondo, inclusive, os temas da pauta de conferências da

4 O conflito agrário foi noticiado pelo Jornal O POVO, em 08 de agosto de 1986. Nº. 18715. Fortaleza –

CE. Desse conflito resultou a morte de um jovem camponês, conhecido por Benetito Tonho, uma forte

liderança do Dia do Senhor. Tal episódio foi aprofundado no livro, fruto de minha dissertação:

BEZERRA, Viviane Prado. ‘Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB

e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). 5 Tal conflito se estendeu por mais de décadas, ocasionando mortes de trabalhadores rurais da região.

Ganhou notoriedade na imprensa na sessão de Polícia do jornal o Povo com o título: “Itarema sob

tensão”. Jornal o Povo. Fortaleza – CE. 20 de dezembro de 1992. Arquivo Movimento do Dia do Senhor.

Diocese de Sobral – CE.

Page 7: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

7

Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a determinação do ano de 1975

como Ano Internacional da Mulher, outros fatores dão visibilidade às questões

femininas, como o debate em torno da contracepção e do aborto.

No Brasil, o quadro não parece ter sido diferente. Formavam-se diversos grupos

de mulheres, na maioria das vezes, classe média e intelectuais, nos quais se reuniam

para pensar a condição feminina, refletir sobre direitos, discutir problemas, falar do

cotidiano e de suas vidas. Com esses grupos, as mulheres criavam espaços de identidade

e cultura feminina, entoando sua voz, paradoxalmente, quando o direito à liberdade de

expressão fora extirpado da população civil latino-americana, posto que, nesse

momento, vivia-se sob a tensão política das ditaduras militares ali instaladas. Nesse

contexto, surgiu e fortaleceu-se o Movimento do Dia do Senhor em Sobral e Itapipoca,

compondo, assim, o campo de atuação das camponesas, problematizadas nessa

pesquisa.

Nesse Movimento reunia-se uma grande quantidade de homens e mulheres que

foram se configurando em sujeitos que assumiram o Dia do Senhor como parte de suas

vidas e luta social. Com o fazer-se dessa experiência coletiva, nos anos 1970,

vislumbra-se a organização de mulheres camponesas, que passaram a se reunir

anualmente nos chamados Encontros de Esposas, lugar de afirmação da identidade

feminina no Movimento, onde suas falas, angústias e sonhos ressoavam nas dificuldades

cotidianas e na dura vida de privações, comum às mulheres do meio rural.

O trabalho de organização feminina era feito por Maria Alice em conjunto com

Lídia, responsável pelo Movimento na diocese de Sobral. Uma vez por ano, essas

mulheres se encontravam no Encontro de Esposas, onde somavam em torno de cem ou

mais mulheres oriundas de comunidades das duas Dioceses, reunidas no Centro de

Treinamento da Diocese de Sobral (CETRESO), localizado na serra da Meruoca,

próximo de Sobral. Em entrevista MacCabe rememora o teor dos temas que norteavam

as discussões nos Encontros dessas mulheres, sendo os temas de cunho social e a

educação dos filhos muito debatidos.

Page 8: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

8

Os encontros das esposas só era uma vez por ano, porém, tinha uma

articulação sobre a pergunta chave porque, como eu disse, tinha meses de

preparação e depois meses de leituras de cartas e relatórios. Os relatórios

dos encontros das esposas iam para todas as comunidades, aí tinham mais

conversas entre as mulheres e as suas comunidades sobre o que acontecia

nos encontros das esposas... Não me lembro que tinha este tipo de roteiro

não, só para mulheres não, eu acho que a maior parte do tempo as

discussões estavam em torno de problemas, problemas sociais que é o que

aconteceu nessa época... Agora, estruturado um roteiro durante o ano só

para mulheres não, mas as mulheres começaram a produzir livrinhos,

produziam sobre educação, a Conceição... a mulher do Abdias... a Fausta.

Começaram a produzir livrinhos e estes livrinhos levavam uma coisa

diferente do que os homens estavam dizendo. Servia, porque tocavam em

como estamos educando nossos filhos, será... acho que foi Conceição que

puxou: será que estamos criando nossos meninos para ser machão? Essa

discussão foi por muito tempo: como estamos criando nossos filhos?

(Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em

Itapipoca – Ce. Arquivo da autora)

Interpelada sobre a existencia de um roteiro de temas a serem debatidos nos

encontros de esposas, a memória de Maria Alice não recupera tal fato. Talvez, porque

essas temáticas não fossem pensadas todas de uma só vez, previamente, como um

planejamento anual, mas fossem surgindo a cada novo momento de preparação para

esses encontros com as mulheres. No entanto, o que fica claro, a partir da documentação

escrita do Movimento é que, de início, a organização e a pauta eram responsabilidade da

equipe de coordenação, com o tempo, de acordo com o ideal de autonomia presente no

Dia do Senhor, isso passa a compor as atividades das próprias camponesas,

orientadoras. As primeiras questões a serem lançadas pela equipe foram do tipo “qual o

valor da mulher e sua participação no mundo”.6

Dos Encontros de Esposas participavam, em sua maioria, as esposas dos

dirigentes do Dia do Senhor, sendo que algumas, já vinham engajadas no Movimento

desde as primeiras reuniões nas comunidades. O diferencial de um grupo de esposas

veio pela necessidade de as mulheres discutirem assuntos referentes às próprias

6 De acordo com os relatórios dos Encontros de Esposas de 1969-1973 vemos as pautas que marcaram os

Encontros dos respectivos anos: 1969 – Conteúdo: Valor da Mulher, sua participação no mundo. 1970 –

Conteúdo: Valor da mulher. Relacionamento: mulher x marido, pais x filhos, família x comunidade. 1971

– Conteúdo: Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo. 1972 – Conteúdo: Higiene e Saúde.

1973 – Conteúdo: Libertação da mulher; higiene e saúde. Arquivo Movimento do Dia do Senhor.

Diocese de Sobral.

Page 9: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

9

questões femininas, coisas sequer vislumbradas nos Encontrões ou em reuniões mistas,

envolvendo homens e mulheres. Questões delicadas como a opressão dos maridos e as

formas de libertação da mulher, bem como, a sexualidade feminina marcam os pontos

altos das discussões travadas em vários desses encontros.

É muito forte nas narrativas das mulheres o aspecto relacional de gênero, ou

seja, elas estão constantemente fazendo comparações entre a “realidade” masculina e a

feminina, ressaltando as diferenças culturais que, tradicionalmente, marcaram a criação,

a visão de mundo, as lutas de ambos os sexos. Nesse sentido, as mulheres do campo

tentavam superar o machismo e o autoritarismo de “seus homens”, o que se evidencia

na idéia de que o “homem precisava se libertar da opressão do patrão, enquanto, as

mulheres precisavam se libertar tanto da opressão do patrão quanto da dos maridos.”

De acordo com Rosa Pires, uma das camponesas com forte atuação no

Movimento, os Encontros de Esposas ajudavam as mulheres a se tornar mais ativas,

participativas na comunidade e na relação com os maridos, ao passo que “as mulher

eram assim muito paradas. Elas parece que tinham medo de tudo”. A questão da

opressão masculina e da violência simbólica (por vezes física também) aparece na

narrativa de Rosa expondo os tipos de “sofrimento” por que as mulheres passavam, pois

“tinha mulher que sofria muito até dos maridos e não tinha coragem de butar aquilo pra

fora, de dizer o que sentia... As mulher sofria muito mais do que os homem...eu achava

assim, tinha homem que era muito machão”. Com os grupos de esposas, ia-se tentando

romper as barreiras dos conflitos de gênero, constituindo um novo contorno para a

relação homem-mulher, em que essas mulheres ultrapassavam a fronteira da submissão,

passividade e “decidiram que elas tinham que participar e que cobrar também a parte

delas”, exigindo respeito e a valorização de seu trabalho, conforme salienta Rosa ao

definir a intenção desse movimento de esposas:

Ai foi assim que a gente foi criando esse movimento, e para ver se se

valorizava mais os trabalho da gente. Porque tinha homem que dizia assim:

ah a minha mulher só faz as coisas em casa. E eu já acho que a gente fazer

as coisas dentro de casa, cuidar de filho já é um grande trabalho,

principalmente se a gente participar da luta lá fora, assim, com a terra,

cuidando na alimentação dos filhos mais ele. Aí é que completa mesmo. E

Page 10: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

10

tem muita mulher que é forte nisso aí, ás vezes, até mais forte de que certos

homens. (Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE.

Arquivo da autora.)

De outro modo, esses encontros abriam espaço para se tocar numa discussão

sobre a intimidade feminina, e mesmo, do casal. Maria Alice rememora que com o

fortalecimento dos grupos de esposas, nos anos 1980, “começou a se mexer com a

questão da sexualidade”. De sua narrativa, é possível compreender a dificuldade que era

para essas camponesas falarem de sua relação conjugal, ao mesmo tempo, em que se

percebe que esse tipo de discussão era bem aceito entre o grupo, pois abria espaço para

a voz feminina, seus desabafos, suas agruras, suas dúvidas. Nesse processo, iam se

descobrindo sujeitos da relação, com vontades e desejos próprios, com direitos sobre

seu corpo, seu prazer e, principalmente, passaram a romper seus silêncios dizendo “não”

aos maridos.

Isso significava, em grande parte, superar a opressão masculina, que se

manifestava veladamente no âmbito da sexualidade, no sentido em que muitas das

mulheres do campo não tinham autonomia sobre seu corpo, viam-se subjugadas à

vontade do marido, pois de certo modo, entendiam o sexo como sua obrigação de

esposa. De modo que “...era simples objeto. Nada de prazer, nada de conhecimento e

nada de participação. Só uma vasilha, que algumas delas dizem, até usam essa palavra

né. (...) Mas para elas, falar isso, quando elas estão só, elas falam. Agora, em grupo

misto não fala. E falavam com muito cuidado que essas conversas não espalhassem”.

(Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06/06/2009. Itapipoca – CE. Arquivo

da autora.)

De certo modo, participar dos Encontros de Esposas significava a conquista da

autonomia feminina, da liberdade de ir e vir, da igualdade de direitos entre maridos e

esposas, pois do mesmo modo como eles viajavam e passavam semanas fora de casa

participando das atividades do Movimento do Dia do Senhor, agora, elas (suas

mulheres) também se organizavam e dividiam o tempo entre as lutas da casa e a luta no

Movimento, reunindo-se em grupos de esposas, viajando para realizarem reuniões em

outras comunidades, passando de semanas na Serra da Meruoca, quando dos Encontros

de Esposas anuais.

Page 11: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

11

Nesse sentido, Rosa rememora que, no início, os homens estranhavam a

ausência de suas mulheres em casa, mas acabavam aceitando porque entendiam como

parte da luta que era assumida no Movimento. Recupera a curiosidade dos maridos para

saber dos assuntos discutidos nesses encontros de esposas, ao passo que

muitas vezes as mulher falavam que os homens perguntavam o que é que

vocês conversam tanto nesses encontros de esposas. E aí criava um certo...

mas aí elas diziam: não ninguém não ta fazendo nada demais, a gente ta se

organizando pra nossa família. Tudo dava certo porque elas conversavam

em casa”. (Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE.

Arquivo da autora.)

Tais mulheres começaram a se utilizar de certas “estratégias e táticas”7 para

conquistarem sua liberdade, autonomia e libertação dentro do casamento, como

também, com relação aos conflitos de terra que vivenciavam. Algumas dessas mulheres

enfrentavam uma relação conjugal opressora em que a vontade do marido imperava.

Nesse tipo de relação que marcava muitos casamentos de homens e mulheres do meio

rural, entendia-se que a mulher era para se resguadar ao seu papel de mãe, esposa e dona

do lar, sendo negado seu direito de atuar fora do âmbito privado. A história das

mulheres, tanto urbanas quanto rurais, está permeada por representações do feminino

que reforçam essa dicotomia entre público/privado e razão/emoção.

Nesse sentido, o Movimento do Dia do Senhor, com seu Encontros de Esposas

vem tocar exatamente nessa limitação historicamente imposta ao papel que a mulher

representa na sociedade, fazendo com que as mulheres camponesas extrapolassem os

limites do lar, da sua comunidade rural e da submissão aos ditos do marido. Irismar, da

comunidade de Trairi, diocese de Itapipoca foi uma das muitas mulheres do campo que

tiveram que enfrentar seu marido para participar do Movimento e demarcar sua atuação

fora do espaço doméstico. Em sua narrativa, apresenta sua trajetória no Dia do Senhor,

bem como, suas artimanhas para driblar o ciúme e a dominação de seu esposo:

7 Aqui apropriome- dos conceitos formulados por Certeau que, em linhas gerais, define que “... a tática é

determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder.

(...)” In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP: Vozes,

2012. P. 95

Page 12: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

12

Começei assim, foi nos anos oitenta, até antes logo, mas eu falo logo do

oitenta. Era difícil né, era difícil sair de casa, por causa do marido né. Que o

marido não queria que a gente saísse. Primeiro, eu me espelhei na Dalva,

que a Dalva foi a mais velha que começou a sair de casa. Com dificuldade

também. Aí eu já me espelhei nela, né? Aí comecei a participar deste

encontro do Dia do Senhor, através da Maria Alice, do Padre Albani. Aí veio

esses encontro de esposas através da Maria Alice, porque ela via que as

mulher era muito escravas do marido, e aí tinha esses encontros de esposas

pra elas ficarem mais livre... teve uns que eu nem fui, com medo, que o

marido me ameaçou se eu fosse, sabe pegou uma corda e drobou e disse se

eu teimasse, ele me alampiava né? E aí teve uns que eu não fui, mas só que

eu não desisti não. Continuei pra frente, não fui nesse dia mas... fui tentar

né? Fui tentar e até que, assim, encontrei a libertação junto com as outras.

(Entrevista realizada em 12/10/2015 com Irismar, conhecida como Mazinha,

do município de Trairi, Diocese de Itapipoca. Arquivo da autora.)

Mazinha, como era conhecida no Movimento, recupera alguns dos momentos de

tensão e as ameaças que sofria do marido quando o assunto era sua ausência de casa. O

ciúme, a força física masculina, o porte de arma, como uma faca, e o apelo ao poder

aquisitivo do macho provedor, dono da casa e da família, se impunham como

argumentos na tentativa de despertar o medo e a obediência feminina. Na experiência

vivida por Mazinha, isso se revela claramente, conforme se evidencia em sua narrativa:

Tinha ciúme de mim, queria que eu vivesse só em casa né. Só fazendo as

coisas pros filhos e cuidando de casa e eu não queria só assim. Queria

participar das coisas fora, da associação também na comunidade. Assim, eu

não desisti, fui em frente... quando eu chegava, tinha vez que ele fechava até

as portas sabe. Aqui tu não entra mais não, aí eu dizia: eu entro, que eu não

fiz nada demais... teve vez que a porta era fechada mesmo e eu batia: abre a

porta, mas assim, rezando e me encomendando a Deus né. Sei que nas três

vezes ele abria a porta, aí eu entrava, ficava ali. ...Só ameaçava, mas ameaçou

foi muitas vezes, foi só uma vez não. Teve um dia que ele pegou uma faca,

eu andava pra uma reunião aqui da Itapipoca, uma reunião da Associação...aí

quando eu cheguei... aí ele foi e disse assim: aqui tu não entra mais não, eu

vou vender essa casa e vou mimbora pra São Paulo. Aí eu fui e ri, com

sangue quente mesmo e disse assim: rapaz, quem comprar ela vai perder

porque aqui nós somo casado, eu tenho direito, eu tenho meus filhos e eu não

fiz nada demais. Aí quando eu disse isso, pegou uma faca e deu uma carreira

atrás de mim sabe? Aí ficou assim bem pertim: fala, fala... eu me calei... e

assim, eu vencia sabe? Chegava, ficava na minha, rezando, me

encomendando a Deus e não tocava mais naquele assunto mais. (idem)

Page 13: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

13

Entende-se que Irismar não se deixando intimidar pelas constantes ameaças do

marido se utilizava de argumentos legais, como seus direitos de esposa e mãe para

demarcar seu lugar na relação, relembrando ao esposo que a casa que lhe estava sendo

negada a entrada, também era sua. Outro ponto que se destaca na fala da entrevistada é a

vontade de atuar na sociedade, ou seja, fazer parte da associação, ocupar um espaço

público, em alguns casos, marcadamente masculino. A fé, a providência divina, também

é marcante em sua fala, o que situa o lugar social, político e religioso em que estava

inserida. Assim, como Certeau sugere que “a tática é a arte do fraco”, Irismar

desenvolvia diversas táticas para permanecer na sua luta por autonomia e libertação

feminina, driblando o ciúme, o machismo e a violência com que convivia.

Sem enfrentar diretamente os arroubos de violência do marido, ela se

“movimentava dentro do campo de visão do inimigo”, se apropriando de artimanhas

como o silêncio, a oração e a proteção dos filhos e de outros familiares. Assim, a tensão

acalmava e a normalidade da rotina fazia parecer que tudo estava resolvido. Nesse

ritmo, Irismar conseguia se desdobrar entre seu papel de esposa, mãe e dona de casa e

suas funções no Movimento do Dia do Senhor e na associação comunitária. Para situar

melhor a relação entre a postura adotada pela entrevistada e o conceito de táticas, é

interessante destacar a própria definicão de Mechel de Certeau:

... a tática é o “movimento dentro do campo de visão do inimigo”, como

dizia Von Bullow, e num espaço por ele controlado... Ela opera golpe a

golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base

para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela

ganha não se conserva... Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as

conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí

vai caçar; cria ali surpresas. Consegue estar aonde ninguém espera. É

astúcia.( CERTEAU, 2012:95)

Por esse caminho, é possivel encontrar a atuação feminina para além dos

conflitos no âmbito privado, referentes às relações familiares ou conjugais, mas

também, nos conflitos contra o latifúndio. Em entrevista, Elita, uma das participantes do

Dia do Senhor situa a atuação das mulheres da comunidade de Salgado dos Nicolau, no

município do Trairi, na luta pela posse da terra. Percebe-se que, se haviam divergências

internas na comunidade, bem como, nas relações entre marido e mulher, nos momentos

Page 14: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

14

de luta pela terra, tais divergências se apaziguavam em nome de uma causa comum à

própria sobrevivência de todos. Nesses conflitos, as mulheres participavam e

conquistavam o respeito dos companheiros pela força e coragem demonstradas.

Conforme a narrativa de Elita, evidencia-se o papel da mulher nessa luta:

Começou a luta da terra lá nos anos oitenta, começou a luta da terra e eu

fiquei nessa luta diretamente, era vinte e quatro horas. A gente lutou uns dez

anos, mais de dez anos, pra gente conseguir a terra que nós tem hoje lá no

Salgado dos Nicolau, município do Trairi. E assim, morreu gente, três

pessoas duma casa, um pai e dois filhos na luta pela terra; e a gente fazia

cerca e eles queimavam e a gente se juntava... a comunidade, as mulheres em

ciranda ia na frente e, se precisasse, os homens ia atrás. Eu sei que foi uma

luta de muita coragem que nós tinha e mais era as mulher... Era do

fazendeiro chamado Hermenegildo, ele chegou lá dizendo que a terra era

dele, nós dissemos que a terra era nossa, nós dissemos que não tinha

documento de terra, ele disse que tinha e a gente continuou, ele derrubando

as cercas e nós fazendo... Lá tinha um cobra d’água, que eles mandaram

esse cobra d’água ir pra lá pra expulsar a gente da terra porque se o cobra

d’água conseguisse queimar essa cerca, botar gado dentro do nosso roçado,

aí eles sabiam que a gente ia embora. E mesmo com isso nós ficamos lá e

eles tocaram fogo no cercado mas mesmo assim a gente não saiu de lá,

ficamos três meses sem nada...na época, era quarenta e cinco famílias

(Entrevista realizada em 15/10/2015 com Elita, moradora da Comunidade

salgado dos Nicolau, Trairi. Diocese de Tianguá. Arquivo da autora.)

Se na narrativa de Irismar destacaram-se as táticas que as mulheres

desenvolviam para demarcar seu espaço no casamento e nas relações privadas, em seu

relato, Elita demonstra um enfrentamento direto das mulheres contra o poder do

latifundio. Desse modo, entende-se que as mulheres de Salgado dos Nicolau

desenvolveram estratégias próprias para lidar com o inimigo. A tomada da linha de

frente pelas mulheres significa um posicionamento consciente sobre o poder simbólico

que o gênero feminino exerce.

Ou seja, tomava-se o lugar dos homens pois sabiam que as representações,

historicamente ensinadas sobre o feminino, de fragilidade, emoção e irracionalidade, de

alguma forma iriam contar a seu favor, pois moralmente, na realidade do campo, não

seria aceitável se confrontar com mulheres, numa luta que se considerava desigual.

Nesse sentido, tanto os donos da terra, quanto os capangas contratados para expulsar o

Page 15: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

15

povo da comunidade, como também, a polícia acionada para garantir a legalidade do

latifundiário não teriam legitimidade para se chocar contra as mulheres da comunidade,

pois pressupunha-se um embate somente entre homens. Apropriando-se desses códigos

simbólicos que permeiam o universo das relações de gênero, as mulheres da

Comundade de Salgado dos Nicolau procuravam tirar vantagem na luta pela defesa de

sua terra e de seus homens. Como informa Certeau “... é mais exato reconhecer nessas

‘estratégias’ um tipo específico do saber, aquele que sustenta e determina o poder de

conquistar para si um lugar próprio”.

Elita rememora o episódio, em que se evidencia a coragem de uma mulher ao

enfrentar o policial, ao mesmo tempo em que, percebe-se um desdém da coragem

feminina ao passo que o policial lhe diz para “cozinhar seu feijão” numa clara

associação da mulher ao espaço do lar e da passividade.

Sim, eles chamaram a polícia. Na vez que eles queimaram a cerca que a gente

foi fazer a cerca de noite, eles chamaram a polícia e a polícia ficou lá atirando

nos pés da gente e nessa noite... eles levavam uma pessoa, uma pessoa da

gente... Eu acredito que o confronto era o mesmo, só que eles tinham um

pouco de receio com a gente. Porque assim, a gente tinha medo, mas a gente

tinha aquela confiança tão grande em Deus que vc ia espontaneamente, não

queria nem saber se ia acontecer alguma coisa. Eu até hoje fico assim me

perguntando como era que a gente tinha aquela coragem de enfrentar aquele

povo? Eu tinha uma tia... a Tereza de Souza que faleceu... que ela

esculhambava eles, esculhambava. Ai eles dizia assim: mulher vai cozinhar

teu feijão. E ela esculhambava eles, afrontava assim, butava era o dedo na

cara deles. Mas foi muito bom essa experiência que a gente teve. (Idem)

Torna-se claro na narrativa de Elita que as mulheres da comunidade sabiam dos

riscos que enfrentavam ao desafiar o poder da polícia e do latifúndio, mas apostavam no

“receio” que o inimigo tinha do confronto direto com elas. Ao mesmo tempo, se destaca

a dimensão da fé, talvez o elemento que norteasse toda a ação dessas mulheres contra as

injustiças que estavam sofrendo, ao passo que Elita ressalta “mas a gente tinha aquela

confiança tão grande em Deus que vc ia espontaneamente, não queria nem saber se ia

acontecer alguma coisa”. A proteção divina e a crença de que as mulheres na linha de

frente do conflito iriam intimidar a truculência do confronto fazia com que mulheres

Page 16: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

16

comuns, em que, na maioria das vezes, seu único campo de ação era o espaço

doméstico, tomassem consciência de si, de sua função política e social, durante conflitos

dessa dimensão, assumindo papéis antes considerados inapropriados para o feminino.

Nesse sentido, o conceito de estratégia de Certeau ajuda a entender o posicionamento

tomado por essas mulheres.

(...)Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças

que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e

poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica)

pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito

como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma

exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou concorrentes, os inimigos,

o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa, etc.) Como

na administração de empresas, ‘toda racionalização estratégica procura em

primeiro lugar distinguir de um ‘ambiente’ um ‘próprio’, isto é, o lugar do

poder e do querer próprios. .( CERTEAU, 2012:93)

O que fica evidente é que, entre táticas e estratégias, as mulheres que

compunham o Movimento do Dia do Senhor ultrapassaram a dimensão da submissão e

da passividade que historicamente foram designadas ao feminino, subvertendo tais

representações a seu favor. A conquista da autonomia e da libertação feminina foi se

configurando com o fazer-se do próprio Movimento, em uma dimensão paralela à luta

pela terra e pelas demandas de trabalho e de justiça social dos camponeses. Nessa luta,

também, as mulheres se inseriam e, ora explicitamente, ora astuciosamente,

demarcavam seus espaços e garantiam ganhos de suas lutas específicas.

Referências Bibliográficas

BEOZZO, Oscar. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. IN:

http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso:

21/03/2016.

BEZERRA, Viviane Prado. ‘Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no

mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições

ECOA, 2014.

Page 17: Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre ... · desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina ... materiais, seja no dos recursos humanos,

17

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP: Papirus,

1996.

BRUNEAU, Thomas C. O Catolicismo Brasileiro em Época de Transição. São

Paulo: Edições Loyola, 1974.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP:

Vozes, 2012.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo:

Editora Brasiliense. Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto. 1989.