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Movimento do Dia do Senhor: organização feminina entre táticas e estratégias
para a conquista da libertação da mulher.
VIVIANE PRADO BEZERRA1
O Movimento do Dia do Senhor foi se configurando a partir de 1965, por
iniciativa de Padre Albani Linhares, na diocese de Sobral, cidade situada na região
noroeste do estado do Ceará. Tal Movimento, que assumia a feição de CEB –
Comunidade Eclesial de Base, via na capacitação de camponeses e camponesas, uma
alternativa laica que, naquele momento, suprisse a carência de padres da Diocese,
garantindo, assim, a celebração da palavra de Deus aos domingos nas comunidades
rurais. Por isso o nome “Dia do Senhor”, em referência ao domingo, seguindo a tradição
católica. Esse Movimento esteve atuando nas comunidades rurais da zona Norte do
estado até meados dos anos 1990, quando se fragmentou devido às mudanças estruturais
do Movimento. Fator decisivo também para seu enfraquecimento foram as mudanças
conjunturais advindas com a “vitória” do projeto teológico “conservador” da Igreja-
Rito, na década de 1980, que cada vez mais suprimia os espaços da Igreja-Povo,
conquistados desde o Concílio Vaticano II (1962-1965).
Sabe-se que durante a segunda metade do século XX a Igreja Católica
encontrou-se internamente dividida entre um projeto “conservador”, dogmático e uma
vertente cada vez mais secularizada, aberta à participação efetiva de leigos e da
comunidade, expressando sua “opção preferencial pelos pobres”. De acordo com Scott
Mainwaing “a divisão fundamental dentro da Igreja brasileira não provém de uma
oposição entre a base e a hierarquia, mas envolve, antes, diferentes concepções de
missão de Igreja...”. (MAINWARING, 1989: 10) Thomas Bruneau informa sobre a
“missão profética” assumida pelo clero “progressista” quando frente às tensões sociais,
vivenciadas no contexto de ditaduras da América Latina, a Igreja Católica representava
um dos poucos canais de crítica à repressão e de reivindicação por justiça e defesa dos
1 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
2
direitos humanos. Momento em que diversos sacerdotes tiveram comprometidos com o
“papel de falar, de denunciar e de pregar a verdade”. (BRUNEAU, 1974: 410).
Nesse sentido, com a abertura política na década de 1980, observou-se um
estrangulamento da ação progressista do clero brasileiro, ao passo que o rito, o dogma e
o espiritual voltavam a imperar nas missas e na formalidade das relações entre clero e
povo. Dessa forma, o Movimento do Dia do Senhor se esboça nos quadros dos
movimentos sociais do campo, embasados pelos teóricos da Teologia da Libertação e da
pedagogia de Educação Popular, característicos de sua época.
Ao rememorar sua própria inserção no Dia do Senhor, a religiosa norte-
americana da Congregação de Notre Dame, Maria Alice MacCabe, nos oferece pistas
sobre o momento histórico que propiciou o surgimento desse Movimento:
Naquela época, fim dos anos 1960, houve um apelo do papa, nem me lembro
qual papa... mas, o apelo do papa foi para mais evangelização na América
Latina. Então, muitas congregações responderam este apelo e, nossa
congregação, respondeu. Isso Coincidiu com o Conselho de Medellín, que foi
o primeiro Conselho Episcopal da América Latina e que, foi a partir do
Conselho de Medellín que realmente a Teologia da Libertação, foi
desenvolvida, começou-se a ser desenvolvida. Teólogos da América Latina
começou a desenvolver essa metodologia e nasceu a idéia de desenvolver
Comunidade Eclesiais de Base. Isso nos anos sessenta. Então, o Movimento
do Dia do Senhor nasceu dessa inspiração. O Albani, sempre foi muito em
comunicação com pessoas que, que lia e estudava os documentos de
Medellin, e os documentos também que estavam saindo do Concílio
Vaticano. Meddelín, eu vim também por causa do Concílio Vaticano, que era
anterior. Então a nossa vinda como grupo de irmãs coincidiu com este
momento. (Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009,
em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.)
A memória de Maria Alice recupera os rumos que parte da Igreja Católica tomou
a partir da década de 1960, com o Concílio Vaticano II (1962-1965). Tal Concílio
dialogava com os sinais do mundo pós-segunda guerra, inserido na lógica da Guerra
Fria. Do Vaticano II saiu “a opção preferencial pelos pobres”, compromisso pastoral
assumido por muitos religiosos da Igreja Latino-americana a partir de então.
Inicialmente, esteve à frente do Vaticano II o papa João XXIII, o referido papa que
aparece na narrativa de Maria Alice. Foi ele quem conclamou pelo aggiornamento da
3
Igreja e pelo compromisso missionário dos conciliares com as regiões menos
desenvolvidas do mundo. Assim como a congregação de Notre Dame, muitas outras
enviaram seus missionários para a América Latina.
Nesse contexto, o papa João XXIII conclamava para que religiosos e religiosas
de origem européia, canadense, norte-americana adentrassem a realidade cultural,
política e econômica de regiões completamente diferentes das suas. Se os Estados
Unidos, através da Congregação de Notre Dame, e a Espanha2 responderam
prontamente ao chamado do papa, enviando para a América Latina uma quantidade
significativa de missionários, a Alemanha se manifestou garantindo apoio apostólico e
financeiro, através da criação da Adveniat.
A criação da Adveniat na Alemanha é fruto desta conjuntura eclesial, assim
como a de outros organismos de solidariedade, seja no plano dos recursos
materiais, seja no dos recursos humanos, tais como o Seminário de Verona,
o Centro do Episcopado Italiano para a América latina (CEIAL) na Itália; o
Colégio para a América Latina de Louvain, na Bélgica; o Comité Episcopal
France Amérique Latine (CEFAL), na França, a Comissão Episcopal
Canadense da América Latina (C.E.C.A.L), no Canadá, o Secretariado para
a América Latina no seio da Conferência Episcopal norte-americana. (BEOZZO, pdf, Acesso: 21/03/2016, p.05).
É interessante salientar que durante o Concílio, João XXIII falece, sendo o papa
Paulo VI o novo responsável pela condução de Vaticano II, ao que parece, seguindo a
mesma opção de Igreja. Nesse sentido, a memória de Maria Alice situa a importância
desse Concílio para a aproximação entre os mundos, naquela conjuntura, polarizados
entre primeiro e terceiro mundo. O Conselho Episcopal de Medellín, ocorrido em 1968,
e a formulação de uma Teologia da Libertação, como situa Maria Alice em sua
2 “Esta já contava, naquela ocasião, com 18.000 religiosos, religiosas e irmãos leigos, além de 650 padres
seculares e 50 missionários leigos trabalhando nos vários países da América Latina. Em 1963, João
XXIII pede aos bispos espanhóis que enviem outros 1.500 padres seculares, ao longo de três anos”.
BEOZZO, Oscar. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. IN:
http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso: 21/03/2016. p. 5
4
narrativa, vieram aprofundar a aproximação da Igreja Católica nacional e internacional
com os pobres e desvalidos do mundo de então, aproximando os contrastes entre campo
e cidade; cultura formal e não-formal. Ainda com Maria Alice, percebe-se as tensões e
os conflitos culturais sentidos em decorrência de tal aproximação:
Interessante. Eu diria, choque de cultura, eu tive muito mais com a classe
média do que com o povo do campo. ... Eu diria, e eu tento dizer isso com
uma certa humildade, mas o que eu descobri em mim mesma, desde os
primeiros tempos aqui no Brasil, é que eu tinha uma comunicação boa com o
povo do campo. ... e eu aprendi muitas coisas, eu diria, como jogo de
cintura, ah... aprendi, por exemplo, não fazer julgamentos, não usar todos os
meus pontos de referências americanos em cima deste povo... Também, nós
americanas, embora que a gente não tinha muitas brasileiras em nossa
congregação, mas nós aprendíamos muita pedagogia, em português, sempre
usamos português, não usamos inglês entre nós e a gente... nos questionamos
tanto sobre nossa... nossas limitações culturais... a parte política, por
exemplo, nós, por nascer num país em que a gente não tinha... uma ditadura,
nós não temos isso. A gente não tinha o mesmo nível de cautela e medo que o
povo aqui tinha naquela época, e ainda tem, e isso pode ser mais negativo do
que positivo. Porque a gente pode dizer besteira, pode jogar o povo numa
situação que eles não são tão prontos de assumir. Eu posso lembrar mil
questões, assim, que a gente avaliava e isso foi um processo, não foi
imediato, eu fiz muitas besteiras.( Risos) (Entrevista com Maria Alice
MacCabe realizada em 06/06/2009, em Itapipoca – Ce. Arquivo da autora.)
Por esse caminho, quando Maria Alice MacCabe adentra o universo do
Movimento do Dia do Senhor, convidada por padre Albani Linhares, já existia um
campo3 cultural, político, pastoral e pedagógico constituído. Nesse sentido, é válido
lembrar que no Movimento os sujeitos que o compunham ocupavam diferentes lugares
nesse campo, desde a equipe de coordenação, formada por religiosos e leigos, oriundos
de classe média, com uma vivência urbana, letrados, com uma visão de mundo
informada por outros valores que não somente os do mundo rural e, no caso específico
de Maria Alice e outras religiosas norte-americanas que permearam o Dia do Senhor,
3 “O campo de poder (que não deve ser confundido com o campo político) não é um campo como os
outros: ele é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital, ou mais precisamente, entre
os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo
correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é
posto em questão.(...)” In: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP:
Papirus, 1996. P. 52.
5
destacam-se as diferenças da língua e da experiência vivenciada em países
culturalmente diferenciados.
Os dirigentes, como eram chamados os camponeses, líderes comunitários, que
assumiam o papel de pregar o evangelho e manter vivo o Movimento nas suas
comunidades rurais. Na maioria das vezes, eram sujeitos sem uma educação formal,
cujas experiências de vida restringiam-se à realidade rural. Tinham as orientadoras,
também camponesas que se engajavam no Movimento, inicialmente, ocupando um
lugar secundário nesse campo, exercendo a função de catequista e que, com o fazer-se
do Movimento passam a assumir novo lugar de atuação, conforme observamos com os
Encontros de Esposas. E por fim, tinha-se a base do Movimento, ou seja, àqueles
camponeses e camponesas que participavam do Dia do Senhor, mas não ocupavam
nenhuma posição de destaque na estrutura do Movimento. Cabe salientar que tal
Movimento tinha como proposta político-pedagógica a “conquista da autonomia”, ao
passo que no decorrer dos trinta anos de atuação do Dia do Senhor, já nos anos 1980, a
equipe de coordenação foi saindo da linha de frente, fazendo com que os próprios
dirigentes e orientadoras assumissem todas as funções no Movimento.
Assim, a religiosa norte-americana viria compor a equipe de coordenação do
Movimento, juntamente com Padre Albani Linhares, Gustavo Lira e Lídia Ferreira. É
interessante que se diga que Gustavo era filósofo e Lídia, socióloga, ambos não eram do
Ceará e foram convidados por padre Albani para contribuir com o Dia do Senhor por
conta de sua experiência em movimentos populares, já desenvolvida no estado do
Maranhão. Durante os anos 1970, o Movimento atinge a Diocese de Itapipoca, que
chegava até suas comunidades rurais através do programa de rádio do Movimento,
“Encontro das Comunidades”, transmitido pela rádio Educadora do Nordeste, da
diocese de Sobral. No intuito de assistir tanto à Diocese de Sobral quanto de Itapipoca, a
equipe se dividiu, ficando Gustavo e Lídia, responsáveis pela Diocese de Sobral e Padre
Albani e Maria Alice, pela de Itapipoca.
Ainda apropriando-se do conceito de campo de Bourdieur, faz-se necessário
considerar que o próprio Dia do Senhor estava inserido em um campo ainda maior e
6
mais tensionado: o meio rural do nordeste do Brasil, mais precisamente, da região norte
e noroeste do Ceará. Região fortemente marcada pela cultura patriarcalista, bem como,
pelo latifúndio, o que propiciou para que os camponeses e as camponesas do
Movimento protagonizassem alguns conflitos de terra. São emblemáticos desse período
o conflito de Queimadas4, comunidade pertencente ao município de Coreaú, diocese de
Sobral e o conflito no vale Salgado dos Compridos5, pertencente ao município de
Itarema, diocese de Itapipoca. Ambos os conflitos marcaram profundamente a memória
de homens e mulheres que constituíram o Movimento e demarcaram claramente o lugar
que cada um dos envolvidos, camponeses e latinfundiários, ocupavam nesse campo de
poder. Desse modo, Bourdieu chama a atenção para a atuação dos diferentes sujeitos
que interagem no campo, ao passo que estes vão constituindo uma identificação cada
vez maior se estiverem organizados em um espaço social.
Algo como uma classe ou, de modo mais geral, um grupo mobilizado para e
pela defesa de seus interesses, não pode existir se não ao preço e ao termo de
um trabalho coletivo de construção inseparavelmente teórico e prático; mas
nem todos os agrupamentos são igualemente prováveis e esse artefato social
que é sempre um grupo social tem tanto mais oportunidades de existir e
subsistir de maneira durável quanto mais os agentes que se agrupam para
constituí-lo já estejam mais próximos no espaço social(...) (BOURDIEU,
1996: 50)
Faz-se necessário ressaltar que durante os anos 1970, além dos conflitos de
terras espalhados pelo interior do Brasil, evidenciava-se também, em âmbito
internacional, a efervescência de movimentos sociais, dos quais se destacam o
movimento negro e o movimento feminista, nos Estados Unidos. Nesse sentido, a
organização de mulheres se tornava uma realidade cada vez mais presente nos Estados
Unidos e na Europa, compondo, inclusive, os temas da pauta de conferências da
4 O conflito agrário foi noticiado pelo Jornal O POVO, em 08 de agosto de 1986. Nº. 18715. Fortaleza –
CE. Desse conflito resultou a morte de um jovem camponês, conhecido por Benetito Tonho, uma forte
liderança do Dia do Senhor. Tal episódio foi aprofundado no livro, fruto de minha dissertação:
BEZERRA, Viviane Prado. ‘Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no mundo”: O MEB
e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). 5 Tal conflito se estendeu por mais de décadas, ocasionando mortes de trabalhadores rurais da região.
Ganhou notoriedade na imprensa na sessão de Polícia do jornal o Povo com o título: “Itarema sob
tensão”. Jornal o Povo. Fortaleza – CE. 20 de dezembro de 1992. Arquivo Movimento do Dia do Senhor.
Diocese de Sobral – CE.
7
Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a determinação do ano de 1975
como Ano Internacional da Mulher, outros fatores dão visibilidade às questões
femininas, como o debate em torno da contracepção e do aborto.
No Brasil, o quadro não parece ter sido diferente. Formavam-se diversos grupos
de mulheres, na maioria das vezes, classe média e intelectuais, nos quais se reuniam
para pensar a condição feminina, refletir sobre direitos, discutir problemas, falar do
cotidiano e de suas vidas. Com esses grupos, as mulheres criavam espaços de identidade
e cultura feminina, entoando sua voz, paradoxalmente, quando o direito à liberdade de
expressão fora extirpado da população civil latino-americana, posto que, nesse
momento, vivia-se sob a tensão política das ditaduras militares ali instaladas. Nesse
contexto, surgiu e fortaleceu-se o Movimento do Dia do Senhor em Sobral e Itapipoca,
compondo, assim, o campo de atuação das camponesas, problematizadas nessa
pesquisa.
Nesse Movimento reunia-se uma grande quantidade de homens e mulheres que
foram se configurando em sujeitos que assumiram o Dia do Senhor como parte de suas
vidas e luta social. Com o fazer-se dessa experiência coletiva, nos anos 1970,
vislumbra-se a organização de mulheres camponesas, que passaram a se reunir
anualmente nos chamados Encontros de Esposas, lugar de afirmação da identidade
feminina no Movimento, onde suas falas, angústias e sonhos ressoavam nas dificuldades
cotidianas e na dura vida de privações, comum às mulheres do meio rural.
O trabalho de organização feminina era feito por Maria Alice em conjunto com
Lídia, responsável pelo Movimento na diocese de Sobral. Uma vez por ano, essas
mulheres se encontravam no Encontro de Esposas, onde somavam em torno de cem ou
mais mulheres oriundas de comunidades das duas Dioceses, reunidas no Centro de
Treinamento da Diocese de Sobral (CETRESO), localizado na serra da Meruoca,
próximo de Sobral. Em entrevista MacCabe rememora o teor dos temas que norteavam
as discussões nos Encontros dessas mulheres, sendo os temas de cunho social e a
educação dos filhos muito debatidos.
8
Os encontros das esposas só era uma vez por ano, porém, tinha uma
articulação sobre a pergunta chave porque, como eu disse, tinha meses de
preparação e depois meses de leituras de cartas e relatórios. Os relatórios
dos encontros das esposas iam para todas as comunidades, aí tinham mais
conversas entre as mulheres e as suas comunidades sobre o que acontecia
nos encontros das esposas... Não me lembro que tinha este tipo de roteiro
não, só para mulheres não, eu acho que a maior parte do tempo as
discussões estavam em torno de problemas, problemas sociais que é o que
aconteceu nessa época... Agora, estruturado um roteiro durante o ano só
para mulheres não, mas as mulheres começaram a produzir livrinhos,
produziam sobre educação, a Conceição... a mulher do Abdias... a Fausta.
Começaram a produzir livrinhos e estes livrinhos levavam uma coisa
diferente do que os homens estavam dizendo. Servia, porque tocavam em
como estamos educando nossos filhos, será... acho que foi Conceição que
puxou: será que estamos criando nossos meninos para ser machão? Essa
discussão foi por muito tempo: como estamos criando nossos filhos?
(Entrevista com Maria Alice MacCabe realizada em 06/06/2009, em
Itapipoca – Ce. Arquivo da autora)
Interpelada sobre a existencia de um roteiro de temas a serem debatidos nos
encontros de esposas, a memória de Maria Alice não recupera tal fato. Talvez, porque
essas temáticas não fossem pensadas todas de uma só vez, previamente, como um
planejamento anual, mas fossem surgindo a cada novo momento de preparação para
esses encontros com as mulheres. No entanto, o que fica claro, a partir da documentação
escrita do Movimento é que, de início, a organização e a pauta eram responsabilidade da
equipe de coordenação, com o tempo, de acordo com o ideal de autonomia presente no
Dia do Senhor, isso passa a compor as atividades das próprias camponesas,
orientadoras. As primeiras questões a serem lançadas pela equipe foram do tipo “qual o
valor da mulher e sua participação no mundo”.6
Dos Encontros de Esposas participavam, em sua maioria, as esposas dos
dirigentes do Dia do Senhor, sendo que algumas, já vinham engajadas no Movimento
desde as primeiras reuniões nas comunidades. O diferencial de um grupo de esposas
veio pela necessidade de as mulheres discutirem assuntos referentes às próprias
6 De acordo com os relatórios dos Encontros de Esposas de 1969-1973 vemos as pautas que marcaram os
Encontros dos respectivos anos: 1969 – Conteúdo: Valor da Mulher, sua participação no mundo. 1970 –
Conteúdo: Valor da mulher. Relacionamento: mulher x marido, pais x filhos, família x comunidade. 1971
– Conteúdo: Valor da mulher, relacionamento e atuação no mundo. 1972 – Conteúdo: Higiene e Saúde.
1973 – Conteúdo: Libertação da mulher; higiene e saúde. Arquivo Movimento do Dia do Senhor.
Diocese de Sobral.
9
questões femininas, coisas sequer vislumbradas nos Encontrões ou em reuniões mistas,
envolvendo homens e mulheres. Questões delicadas como a opressão dos maridos e as
formas de libertação da mulher, bem como, a sexualidade feminina marcam os pontos
altos das discussões travadas em vários desses encontros.
É muito forte nas narrativas das mulheres o aspecto relacional de gênero, ou
seja, elas estão constantemente fazendo comparações entre a “realidade” masculina e a
feminina, ressaltando as diferenças culturais que, tradicionalmente, marcaram a criação,
a visão de mundo, as lutas de ambos os sexos. Nesse sentido, as mulheres do campo
tentavam superar o machismo e o autoritarismo de “seus homens”, o que se evidencia
na idéia de que o “homem precisava se libertar da opressão do patrão, enquanto, as
mulheres precisavam se libertar tanto da opressão do patrão quanto da dos maridos.”
De acordo com Rosa Pires, uma das camponesas com forte atuação no
Movimento, os Encontros de Esposas ajudavam as mulheres a se tornar mais ativas,
participativas na comunidade e na relação com os maridos, ao passo que “as mulher
eram assim muito paradas. Elas parece que tinham medo de tudo”. A questão da
opressão masculina e da violência simbólica (por vezes física também) aparece na
narrativa de Rosa expondo os tipos de “sofrimento” por que as mulheres passavam, pois
“tinha mulher que sofria muito até dos maridos e não tinha coragem de butar aquilo pra
fora, de dizer o que sentia... As mulher sofria muito mais do que os homem...eu achava
assim, tinha homem que era muito machão”. Com os grupos de esposas, ia-se tentando
romper as barreiras dos conflitos de gênero, constituindo um novo contorno para a
relação homem-mulher, em que essas mulheres ultrapassavam a fronteira da submissão,
passividade e “decidiram que elas tinham que participar e que cobrar também a parte
delas”, exigindo respeito e a valorização de seu trabalho, conforme salienta Rosa ao
definir a intenção desse movimento de esposas:
Ai foi assim que a gente foi criando esse movimento, e para ver se se
valorizava mais os trabalho da gente. Porque tinha homem que dizia assim:
ah a minha mulher só faz as coisas em casa. E eu já acho que a gente fazer
as coisas dentro de casa, cuidar de filho já é um grande trabalho,
principalmente se a gente participar da luta lá fora, assim, com a terra,
cuidando na alimentação dos filhos mais ele. Aí é que completa mesmo. E
10
tem muita mulher que é forte nisso aí, ás vezes, até mais forte de que certos
homens. (Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE.
Arquivo da autora.)
De outro modo, esses encontros abriam espaço para se tocar numa discussão
sobre a intimidade feminina, e mesmo, do casal. Maria Alice rememora que com o
fortalecimento dos grupos de esposas, nos anos 1980, “começou a se mexer com a
questão da sexualidade”. De sua narrativa, é possível compreender a dificuldade que era
para essas camponesas falarem de sua relação conjugal, ao mesmo tempo, em que se
percebe que esse tipo de discussão era bem aceito entre o grupo, pois abria espaço para
a voz feminina, seus desabafos, suas agruras, suas dúvidas. Nesse processo, iam se
descobrindo sujeitos da relação, com vontades e desejos próprios, com direitos sobre
seu corpo, seu prazer e, principalmente, passaram a romper seus silêncios dizendo “não”
aos maridos.
Isso significava, em grande parte, superar a opressão masculina, que se
manifestava veladamente no âmbito da sexualidade, no sentido em que muitas das
mulheres do campo não tinham autonomia sobre seu corpo, viam-se subjugadas à
vontade do marido, pois de certo modo, entendiam o sexo como sua obrigação de
esposa. De modo que “...era simples objeto. Nada de prazer, nada de conhecimento e
nada de participação. Só uma vasilha, que algumas delas dizem, até usam essa palavra
né. (...) Mas para elas, falar isso, quando elas estão só, elas falam. Agora, em grupo
misto não fala. E falavam com muito cuidado que essas conversas não espalhassem”.
(Maria Alice MacCabe, entrevista realizada no dia 06/06/2009. Itapipoca – CE. Arquivo
da autora.)
De certo modo, participar dos Encontros de Esposas significava a conquista da
autonomia feminina, da liberdade de ir e vir, da igualdade de direitos entre maridos e
esposas, pois do mesmo modo como eles viajavam e passavam semanas fora de casa
participando das atividades do Movimento do Dia do Senhor, agora, elas (suas
mulheres) também se organizavam e dividiam o tempo entre as lutas da casa e a luta no
Movimento, reunindo-se em grupos de esposas, viajando para realizarem reuniões em
outras comunidades, passando de semanas na Serra da Meruoca, quando dos Encontros
de Esposas anuais.
11
Nesse sentido, Rosa rememora que, no início, os homens estranhavam a
ausência de suas mulheres em casa, mas acabavam aceitando porque entendiam como
parte da luta que era assumida no Movimento. Recupera a curiosidade dos maridos para
saber dos assuntos discutidos nesses encontros de esposas, ao passo que
muitas vezes as mulher falavam que os homens perguntavam o que é que
vocês conversam tanto nesses encontros de esposas. E aí criava um certo...
mas aí elas diziam: não ninguém não ta fazendo nada demais, a gente ta se
organizando pra nossa família. Tudo dava certo porque elas conversavam
em casa”. (Rosa Pires, entrevista realizada em 06/06/2009. Itapipoca- CE.
Arquivo da autora.)
Tais mulheres começaram a se utilizar de certas “estratégias e táticas”7 para
conquistarem sua liberdade, autonomia e libertação dentro do casamento, como
também, com relação aos conflitos de terra que vivenciavam. Algumas dessas mulheres
enfrentavam uma relação conjugal opressora em que a vontade do marido imperava.
Nesse tipo de relação que marcava muitos casamentos de homens e mulheres do meio
rural, entendia-se que a mulher era para se resguadar ao seu papel de mãe, esposa e dona
do lar, sendo negado seu direito de atuar fora do âmbito privado. A história das
mulheres, tanto urbanas quanto rurais, está permeada por representações do feminino
que reforçam essa dicotomia entre público/privado e razão/emoção.
Nesse sentido, o Movimento do Dia do Senhor, com seu Encontros de Esposas
vem tocar exatamente nessa limitação historicamente imposta ao papel que a mulher
representa na sociedade, fazendo com que as mulheres camponesas extrapolassem os
limites do lar, da sua comunidade rural e da submissão aos ditos do marido. Irismar, da
comunidade de Trairi, diocese de Itapipoca foi uma das muitas mulheres do campo que
tiveram que enfrentar seu marido para participar do Movimento e demarcar sua atuação
fora do espaço doméstico. Em sua narrativa, apresenta sua trajetória no Dia do Senhor,
bem como, suas artimanhas para driblar o ciúme e a dominação de seu esposo:
7 Aqui apropriome- dos conceitos formulados por Certeau que, em linhas gerais, define que “... a tática é
determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder.
(...)” In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP: Vozes,
2012. P. 95
12
Começei assim, foi nos anos oitenta, até antes logo, mas eu falo logo do
oitenta. Era difícil né, era difícil sair de casa, por causa do marido né. Que o
marido não queria que a gente saísse. Primeiro, eu me espelhei na Dalva,
que a Dalva foi a mais velha que começou a sair de casa. Com dificuldade
também. Aí eu já me espelhei nela, né? Aí comecei a participar deste
encontro do Dia do Senhor, através da Maria Alice, do Padre Albani. Aí veio
esses encontro de esposas através da Maria Alice, porque ela via que as
mulher era muito escravas do marido, e aí tinha esses encontros de esposas
pra elas ficarem mais livre... teve uns que eu nem fui, com medo, que o
marido me ameaçou se eu fosse, sabe pegou uma corda e drobou e disse se
eu teimasse, ele me alampiava né? E aí teve uns que eu não fui, mas só que
eu não desisti não. Continuei pra frente, não fui nesse dia mas... fui tentar
né? Fui tentar e até que, assim, encontrei a libertação junto com as outras.
(Entrevista realizada em 12/10/2015 com Irismar, conhecida como Mazinha,
do município de Trairi, Diocese de Itapipoca. Arquivo da autora.)
Mazinha, como era conhecida no Movimento, recupera alguns dos momentos de
tensão e as ameaças que sofria do marido quando o assunto era sua ausência de casa. O
ciúme, a força física masculina, o porte de arma, como uma faca, e o apelo ao poder
aquisitivo do macho provedor, dono da casa e da família, se impunham como
argumentos na tentativa de despertar o medo e a obediência feminina. Na experiência
vivida por Mazinha, isso se revela claramente, conforme se evidencia em sua narrativa:
Tinha ciúme de mim, queria que eu vivesse só em casa né. Só fazendo as
coisas pros filhos e cuidando de casa e eu não queria só assim. Queria
participar das coisas fora, da associação também na comunidade. Assim, eu
não desisti, fui em frente... quando eu chegava, tinha vez que ele fechava até
as portas sabe. Aqui tu não entra mais não, aí eu dizia: eu entro, que eu não
fiz nada demais... teve vez que a porta era fechada mesmo e eu batia: abre a
porta, mas assim, rezando e me encomendando a Deus né. Sei que nas três
vezes ele abria a porta, aí eu entrava, ficava ali. ...Só ameaçava, mas ameaçou
foi muitas vezes, foi só uma vez não. Teve um dia que ele pegou uma faca,
eu andava pra uma reunião aqui da Itapipoca, uma reunião da Associação...aí
quando eu cheguei... aí ele foi e disse assim: aqui tu não entra mais não, eu
vou vender essa casa e vou mimbora pra São Paulo. Aí eu fui e ri, com
sangue quente mesmo e disse assim: rapaz, quem comprar ela vai perder
porque aqui nós somo casado, eu tenho direito, eu tenho meus filhos e eu não
fiz nada demais. Aí quando eu disse isso, pegou uma faca e deu uma carreira
atrás de mim sabe? Aí ficou assim bem pertim: fala, fala... eu me calei... e
assim, eu vencia sabe? Chegava, ficava na minha, rezando, me
encomendando a Deus e não tocava mais naquele assunto mais. (idem)
13
Entende-se que Irismar não se deixando intimidar pelas constantes ameaças do
marido se utilizava de argumentos legais, como seus direitos de esposa e mãe para
demarcar seu lugar na relação, relembrando ao esposo que a casa que lhe estava sendo
negada a entrada, também era sua. Outro ponto que se destaca na fala da entrevistada é a
vontade de atuar na sociedade, ou seja, fazer parte da associação, ocupar um espaço
público, em alguns casos, marcadamente masculino. A fé, a providência divina, também
é marcante em sua fala, o que situa o lugar social, político e religioso em que estava
inserida. Assim, como Certeau sugere que “a tática é a arte do fraco”, Irismar
desenvolvia diversas táticas para permanecer na sua luta por autonomia e libertação
feminina, driblando o ciúme, o machismo e a violência com que convivia.
Sem enfrentar diretamente os arroubos de violência do marido, ela se
“movimentava dentro do campo de visão do inimigo”, se apropriando de artimanhas
como o silêncio, a oração e a proteção dos filhos e de outros familiares. Assim, a tensão
acalmava e a normalidade da rotina fazia parecer que tudo estava resolvido. Nesse
ritmo, Irismar conseguia se desdobrar entre seu papel de esposa, mãe e dona de casa e
suas funções no Movimento do Dia do Senhor e na associação comunitária. Para situar
melhor a relação entre a postura adotada pela entrevistada e o conceito de táticas, é
interessante destacar a própria definicão de Mechel de Certeau:
... a tática é o “movimento dentro do campo de visão do inimigo”, como
dizia Von Bullow, e num espaço por ele controlado... Ela opera golpe a
golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base
para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela
ganha não se conserva... Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as
conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí
vai caçar; cria ali surpresas. Consegue estar aonde ninguém espera. É
astúcia.( CERTEAU, 2012:95)
Por esse caminho, é possivel encontrar a atuação feminina para além dos
conflitos no âmbito privado, referentes às relações familiares ou conjugais, mas
também, nos conflitos contra o latifúndio. Em entrevista, Elita, uma das participantes do
Dia do Senhor situa a atuação das mulheres da comunidade de Salgado dos Nicolau, no
município do Trairi, na luta pela posse da terra. Percebe-se que, se haviam divergências
internas na comunidade, bem como, nas relações entre marido e mulher, nos momentos
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de luta pela terra, tais divergências se apaziguavam em nome de uma causa comum à
própria sobrevivência de todos. Nesses conflitos, as mulheres participavam e
conquistavam o respeito dos companheiros pela força e coragem demonstradas.
Conforme a narrativa de Elita, evidencia-se o papel da mulher nessa luta:
Começou a luta da terra lá nos anos oitenta, começou a luta da terra e eu
fiquei nessa luta diretamente, era vinte e quatro horas. A gente lutou uns dez
anos, mais de dez anos, pra gente conseguir a terra que nós tem hoje lá no
Salgado dos Nicolau, município do Trairi. E assim, morreu gente, três
pessoas duma casa, um pai e dois filhos na luta pela terra; e a gente fazia
cerca e eles queimavam e a gente se juntava... a comunidade, as mulheres em
ciranda ia na frente e, se precisasse, os homens ia atrás. Eu sei que foi uma
luta de muita coragem que nós tinha e mais era as mulher... Era do
fazendeiro chamado Hermenegildo, ele chegou lá dizendo que a terra era
dele, nós dissemos que a terra era nossa, nós dissemos que não tinha
documento de terra, ele disse que tinha e a gente continuou, ele derrubando
as cercas e nós fazendo... Lá tinha um cobra d’água, que eles mandaram
esse cobra d’água ir pra lá pra expulsar a gente da terra porque se o cobra
d’água conseguisse queimar essa cerca, botar gado dentro do nosso roçado,
aí eles sabiam que a gente ia embora. E mesmo com isso nós ficamos lá e
eles tocaram fogo no cercado mas mesmo assim a gente não saiu de lá,
ficamos três meses sem nada...na época, era quarenta e cinco famílias
(Entrevista realizada em 15/10/2015 com Elita, moradora da Comunidade
salgado dos Nicolau, Trairi. Diocese de Tianguá. Arquivo da autora.)
Se na narrativa de Irismar destacaram-se as táticas que as mulheres
desenvolviam para demarcar seu espaço no casamento e nas relações privadas, em seu
relato, Elita demonstra um enfrentamento direto das mulheres contra o poder do
latifundio. Desse modo, entende-se que as mulheres de Salgado dos Nicolau
desenvolveram estratégias próprias para lidar com o inimigo. A tomada da linha de
frente pelas mulheres significa um posicionamento consciente sobre o poder simbólico
que o gênero feminino exerce.
Ou seja, tomava-se o lugar dos homens pois sabiam que as representações,
historicamente ensinadas sobre o feminino, de fragilidade, emoção e irracionalidade, de
alguma forma iriam contar a seu favor, pois moralmente, na realidade do campo, não
seria aceitável se confrontar com mulheres, numa luta que se considerava desigual.
Nesse sentido, tanto os donos da terra, quanto os capangas contratados para expulsar o
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povo da comunidade, como também, a polícia acionada para garantir a legalidade do
latifundiário não teriam legitimidade para se chocar contra as mulheres da comunidade,
pois pressupunha-se um embate somente entre homens. Apropriando-se desses códigos
simbólicos que permeiam o universo das relações de gênero, as mulheres da
Comundade de Salgado dos Nicolau procuravam tirar vantagem na luta pela defesa de
sua terra e de seus homens. Como informa Certeau “... é mais exato reconhecer nessas
‘estratégias’ um tipo específico do saber, aquele que sustenta e determina o poder de
conquistar para si um lugar próprio”.
Elita rememora o episódio, em que se evidencia a coragem de uma mulher ao
enfrentar o policial, ao mesmo tempo em que, percebe-se um desdém da coragem
feminina ao passo que o policial lhe diz para “cozinhar seu feijão” numa clara
associação da mulher ao espaço do lar e da passividade.
Sim, eles chamaram a polícia. Na vez que eles queimaram a cerca que a gente
foi fazer a cerca de noite, eles chamaram a polícia e a polícia ficou lá atirando
nos pés da gente e nessa noite... eles levavam uma pessoa, uma pessoa da
gente... Eu acredito que o confronto era o mesmo, só que eles tinham um
pouco de receio com a gente. Porque assim, a gente tinha medo, mas a gente
tinha aquela confiança tão grande em Deus que vc ia espontaneamente, não
queria nem saber se ia acontecer alguma coisa. Eu até hoje fico assim me
perguntando como era que a gente tinha aquela coragem de enfrentar aquele
povo? Eu tinha uma tia... a Tereza de Souza que faleceu... que ela
esculhambava eles, esculhambava. Ai eles dizia assim: mulher vai cozinhar
teu feijão. E ela esculhambava eles, afrontava assim, butava era o dedo na
cara deles. Mas foi muito bom essa experiência que a gente teve. (Idem)
Torna-se claro na narrativa de Elita que as mulheres da comunidade sabiam dos
riscos que enfrentavam ao desafiar o poder da polícia e do latifúndio, mas apostavam no
“receio” que o inimigo tinha do confronto direto com elas. Ao mesmo tempo, se destaca
a dimensão da fé, talvez o elemento que norteasse toda a ação dessas mulheres contra as
injustiças que estavam sofrendo, ao passo que Elita ressalta “mas a gente tinha aquela
confiança tão grande em Deus que vc ia espontaneamente, não queria nem saber se ia
acontecer alguma coisa”. A proteção divina e a crença de que as mulheres na linha de
frente do conflito iriam intimidar a truculência do confronto fazia com que mulheres
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comuns, em que, na maioria das vezes, seu único campo de ação era o espaço
doméstico, tomassem consciência de si, de sua função política e social, durante conflitos
dessa dimensão, assumindo papéis antes considerados inapropriados para o feminino.
Nesse sentido, o conceito de estratégia de Certeau ajuda a entender o posicionamento
tomado por essas mulheres.
(...)Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças
que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e
poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica)
pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito
como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma
exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou concorrentes, os inimigos,
o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa, etc.) Como
na administração de empresas, ‘toda racionalização estratégica procura em
primeiro lugar distinguir de um ‘ambiente’ um ‘próprio’, isto é, o lugar do
poder e do querer próprios. .( CERTEAU, 2012:93)
O que fica evidente é que, entre táticas e estratégias, as mulheres que
compunham o Movimento do Dia do Senhor ultrapassaram a dimensão da submissão e
da passividade que historicamente foram designadas ao feminino, subvertendo tais
representações a seu favor. A conquista da autonomia e da libertação feminina foi se
configurando com o fazer-se do próprio Movimento, em uma dimensão paralela à luta
pela terra e pelas demandas de trabalho e de justiça social dos camponeses. Nessa luta,
também, as mulheres se inseriam e, ora explicitamente, ora astuciosamente,
demarcavam seus espaços e garantiam ganhos de suas lutas específicas.
Referências Bibliográficas
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http://www7.uc.cl/facteo/centromanuellarrain/download/beozzo.pdf. Acesso:
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BEZERRA, Viviane Prado. ‘Porque si nóis não agir o pudê não sabe si nóis isiste no
mundo”: O MEB e o Dia do Senhor em Sobral (1960-1980). Sobral - CE: Edições
ECOA, 2014.
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BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas – SP: Papirus,
1996.
BRUNEAU, Thomas C. O Catolicismo Brasileiro em Época de Transição. São
Paulo: Edições Loyola, 1974.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. As artes de fazer. Petópolis – SP:
Vozes, 2012.
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo:
Editora Brasiliense. Trad. Heloisa Braz de Oliveira Prieto. 1989.