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1 Publicado em: LIMA, H. M. R. “Mulheres e emoções em cena”. In: Glaucia Proença Lara (Org.), Rita Pacheco Limberti (Org.). (Org.). Discurso e Desigualdade Social. 1ed.São Paulo: Contexto, 2014, v. 1, p. 161-178. Mulheres e emoções em cena Helcira Lima A temática do amor e do abandono se fazem presentes de maneira expressiva na obra do diretor de cinema Karim Aïnouz, cujo lugar conferido às mulheres também é privilegiado. Dois de seus filmes nos interessam de modo particular, justamente por colocarem em cena a deambulação de duas jovens mulheres, após serem abandonadas por seus companheiros: O céu de Suely (2006) e O abismo prateado (2011). Os filmes, assim como o restante da produção do diretor, parecem enquadrar-se em um movimento denominado “estética do fluxo”, conforme Oliveira Junior (2010). Esse cinema, segundo o autor, segue narrativas flutuantes e dramas mudos do cotidiano, além da relação afetiva entre câmeras e atores. Há um privilégio do não julgamento das situações e dos personagens, mais atenção ao corpo que à psicologia. A ausência de linearidade nas narrativas e sua diluição trazem outra dimensão ou mesmo outra significação para o que há de mais comum na vida humana. Os filmes não abordam amplos questionamentos, nada têm de panfletários, mas se debruçam sobre o que é íntimo nos personagens: seus desejos, suas frustrações, suas buscas. Exatamente por isso, há uma recorrência de um tom melancólico captado, sobremaneira, em closes e primeiros planos. Como afirma o jornalista André Miranda, o cinema de Aïnouz “arquiteta seus planos para extrair poesia de onde aparentemente só há aridez. Seus filmes são uma mistura de construção e emoção”. O próprio Aïnouz afirma, nesse momento, que a grande semelhança entre ele, Marcelo Gomes e Sérgio Machado, todos promissores diretores, é a paixão pelo que fazem: “Os filmes vêm ao mesmo tempo da cabeça e do coração” e ainda “os personagens atuais são mais protagonistas do que vítimas”. i Nesse sentido, ao voltar suas lentes para as emoções e, mais especificamente em relação aos dois filmes em destaque, ao tematizar as emoções experimentadas por duas personagens femininas, as obras acabam por abordar a relação entre emoções e mulheres. São narrativas que seguem o fluxo do pensamento e das emoções. Entretanto, como enfatiza Aïnouz, não se trata de apresentar mulheres-vítimas, mas sim mulheres que protagonizam sua própria história. Assim, ele foge do senso comum e apresenta figuras bem próximas da realidade, o que se verifica em toda a sua obra, cujo movimento de construção de personagens comuns manifesta-se na escolha minuciosa de atores capazes de representar homens, mulheres e a vida comum. Nosso objetivo consiste, pois, em, a partir dos dois longas-metragens citados, captar elementos que apontem para as relações de gênero em nossa sociedade e mesmo no mundo contemporâneo, já que vivemos um momento de diluição de fronteiras físicas e simbólicas. Trata-se de um movimento que, do mesmo modo que as duas personagens em destaque – Hermila/Suely e Violeta – não se pretende único e acabado. São movimentos, gestos de interpretação.

Mulheres e emoções em cena

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LIMA, H. M. R. “Mulheres e emoções em cena”. In: Glaucia Proença Lara (Org.), Rita Pacheco Limberti (Org.). (Org.). Discurso e Desigualdade Social. 1ed.São Paulo: Contexto, 2014, v. 1

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1 Publicado em: LIMA, H. M. R. Mulheres e emoes em cena. In: Glaucia Proena Lara (Org.), Rita Pacheco Limberti (Org.). (Org.). Discurso e Desigualdade Social. 1ed.So Paulo: Contexto, 2014, v. 1, p. 161-178. Mulheres e emoes em cena Helcira Lima A temtica do amor e do abandono se fazem presentes de maneira expressiva na obradodiretordecinemaKarimAnouz,cujolugarconferidosmulherestambm privilegiado.Doisdeseusfilmesnosinteressamdemodoparticular,justamentepor colocarememcenaadeambulaodeduasjovensmulheres,apsseremabandonadas por seus companheiros: O cu de Suely (2006) e O abismo prateado (2011). Os filmes, assim como o restante da produo do diretor, parecem enquadrar-se em um movimento denominadoestticadofluxo,conformeOliveiraJunior(2010).Essecinema, segundooautor,seguenarrativasflutuantesedramasmudosdocotidiano,almda relaoafetivaentrecmeraseatores.Humprivilgiodonojulgamentodas situaesedospersonagens,maisatenoaocorpoquepsicologia.Aausnciade linearidadenasnarrativasesuadiluiotrazemoutradimensooumesmooutra significaoparaoquehdemaiscomumnavidahumana.Osfilmesnoabordam amplosquestionamentos,nadatmdepanfletrios,massedebruamsobreoque ntimonospersonagens:seusdesejos,suasfrustraes,suasbuscas.Exatamentepor isso,humarecorrnciadeumtommelanclicocaptado,sobremaneira,emclosese primeiros planos.ComoafirmaojornalistaAndrMiranda,ocinemadeAnouzarquitetaseus planosparaextrairpoesiadeondeaparentementesharidez.Seusfilmessouma misturadeconstruoeemoo.OprprioAnouzafirma,nessemomento,quea grandesemelhanaentreele,MarceloGomeseSrgioMachado,todospromissores diretores, a paixo pelo que fazem: Os filmes vm aomesmo tempo da cabea e do corao e ainda os personagens atuais so mais protagonistas do que vtimas.i Nesse sentido, ao voltar suas lentes para as emoes e, mais especificamente em relao aos dois filmes em destaque, ao tematizar as emoes experimentadas por duas personagensfemininas,asobrasacabamporabordararelaoentreemoese mulheres. So narrativas que seguem o fluxo do pensamento e das emoes. Entretanto, comoenfatizaAnouz,nosetratadeapresentarmulheres-vtimas,massimmulheres queprotagonizamsuaprpriahistria.Assim,elefogedosensocomumeapresenta figurasbemprximasdarealidade,oqueseverificaemtodaasuaobra,cujo movimento de construo de personagens comuns manifesta-se na escolha minuciosa de atores capazes de representar homens, mulheres e a vida comum.Nossoobjetivoconsiste,pois,em,apartirdosdoislongas-metragenscitados, captar elementos que apontem para as relaes de gnero em nossa sociedade e mesmo no mundo contemporneo, j que vivemos um momento de diluio de fronteiras fsicas e simblicas. Trata-se de um movimento que, do mesmo modo que as duas personagens emdestaqueHermila/SuelyeVioletanosepretendenicoeacabado.So movimentos, gestos de interpretao.2 Tais gestos visam apresentao de uma anlise sobre a relao entre mulheres eemoesnasduasobras,apartirdosparmetrosnosquaisseancoraaanlisedo discursoetambmdeperspectivascontemporneassobreoassunto,vindas,entre outros,dosdomniosdafilosofiaedaantropologia.Nessepercurso,tomaremoscomo princpio o fato de que lidar com emoes no cinema no algo simples. Ao contrrio, trata-se de ummovimento ousado e complexo, visto que engendra uma discussomais amplasobreaconstruosocialdasemoes,apartirdedimensesenunciativas distintas.iiAlmdisso,aleituranoperderdevistaofatodequesetratadeobras ficcionaiseaindaqueaanlisedodiscurso,emseudilogocomoutrosdomnios, possui arcabouo terico para lidar com as emoes suscitadas e com as expressas, mas no com as emoes sentidas. Cu e abismo: Hermila/Suely e Violeta NaobraOcudeSuely(2006),quesegueoaclamadoMadameSat(2002), entramosnatramaatravsdeHermila/Suely,quenosapresentapartedesuabiografia emumanarrativaemoff,momentoemquerelatacomoengravidoudomarido, Matheusiii. Eufiqueigrvidanumdomingodemanh.Tinhaumcobertorazuldelescura.Matheus mepegounobraoedissequeiamefazerapessoamaisfelizdomundo,medeuumCD gravado com todas as msicas que eu mais gostava. Ele disse que queria casar comigoou, ento, morrer afogado. Osdetalhesrememoradosporelacordocobertor,CDgravadocomsuas msicaspreferidasnoencontramlugarnomomentoatual,poiselacaptadapelas lentes da cmera em um longo plano geral, ao descer sozinha de um nibus com o filho pequeno (Matheus) no colo, no meio de uma estrada, no serto cearense. Em um posto degasolinaperdidonaestrada,elaesperapelacelibatriatiaMariaquealevaparaa casa da av, em uma motocicleta. TiaMariatrabalhacomomotoboy/girlnapequenacidadedeIguatueaav, Zezita, cozinheira. As duas cuidaram de Hermila/Suely aps a partida de sua me. Na chegada ao posto, a cmera capta Maria de modo a delinear silenciosamente seu perfil. Elatrajaroupassimples,exibeumafiguramasculinizadaesemisturaaosoutros motoboyscomumanaturalidadepoucofamiliarsmulheres.Comoafirmamosem outromomento,inquietanteofatodesefazeralusosuasexualidade,deforma indireta,nanarrativaflmica.Nadaverbalizado,massuaposturacorporal,suas roupas,abolsasempreatadacinturafuncionamcomosignosindiciaisda homossexualidade. Na verdade, diz-semuito sem dizer; ela , de algum modo, narrada nas imagens. Apenas em um determinado momento algo se explicita em sua fala sobre o biqunicom o qual desejava presentear Georgina amiga e desejada namorada , bem como sobre seu desejo de v-la vestida nele em uma praia de Fortaleza.Assim,apsviverporumperodonacapitaldeSoPaulo,Hermila/Suely retorna sua cidade natal, Iguatuiv, com a expectativa (e a promessa) de que o marido a acompanhassenanovainvestida.Todavia,Matheusnoretorna,eela,abandonada, sentindo-seestrangeiratambmemIguatu,decidepartirnovamente.Comonodispe derecursosparaarcarcomaviagemparaacidadequeficavamaisdistantede Iguatuv, decide, em uma atitude ousada, rifar o prpriocorpo, nomeandoo prmio de uma noite no paraso. Nessa aventura, talvez na tentativa de proteger sua identidade ou mesmodecriare/oufazerapareceroutraidentidade,elaadotaonomedeSuely.O 3 ganhadordarifateriadireito,ento,aumanoitenoparasocomSuely-Hermilaou Hermila-Suely (Lima, 2013).O outro filme em destaque O abismo prateado retrata a trajetria de Violeta, uma dentista quevive na cidade do Rio de Janeiro com omarido e o filho de 14 anos. Umdia,nointervaloentreaacademiaeotrabalho,elaouveumamensagemdeixada pelomaridoemseucelular,naqualelepefimaocasamentoaoafirmarquevai embora para Porto Alegre para nunca mais voltar. AssimcomoSuelynomequeusaremosdoravanteparanosreferirmos personagem,Violeta,abandonadacovardemente,saiembuscadeexplicaesedo prpriomarido.OqueseevidenciaemOabismoprateadoasaga,urbanae desdramatizada, dessa mulher que, primeira vista, parece muito diferente do marido e tambm de Suely, mas que, na trama, delineada como uma mulher que, como eles, se deixa seduzir pelo movimento provocado pelas incertezas da vida.Comojafirmamos,domesmomodoqueemOcudeSuely,Anouzprocura fugir dolugar-comum da mulhervtima para apresentar umamulhercolocada prova, que pode superar o abandono e seguir em frente. Evidentemente, os dois percursos no estoisentosdasdificuldadeseimposiesprpriassmulheres,poisarennciatotal deumaheranaquesepautaemumavisoditadapordicotomiascomomulhervs. homem,emoovs.razo,linguagemvs.pensamento,entreoutras,aindaquase impossvel. Isso porque vivemos em um pas em que o lugar de inferioridade conferido smulheresseverificaemdiversossegmentosdasociedade:anaturalizaoda diferenaseestabelecedesdepostosdetrabalhomenosremuneradosviolncia simblica e fsica.Inseridonanovalinhagemdocinemanacional,Anouzsedistanciadealguns dos diretores do denominado Cinema da Retomada, na medida em que no prioriza em suas temticas a esttica da violncia, to evidenciada em produes como Carandiru (HectorBabenco),Ohomemdoano(JosHenriqueFonseca),CidadedeDeus (FernandoMeirelles),enemtampoucoovisdacomdiadecostumescomgrande apelocomercial,comoocasodeSeeufossevoc(DanielFilho),Depernasproar (RobertoSantucci),Cr(BrunoBarreto),Minhameumapea,(AndrPellenz), entretantosoutros.Seucinema,derivadodeumavertentemaisautoral,focalizaa condio damulher, o amor, a sexualidade, os desejos comuns ao ser humano,mesmo em Madame Sat, primeiro longa do diretor, de 2002. Os temas e personagens de Karim Anouz falam do contemporneo, sob a luz de um novo realismo construdo pelo novo cinema nacional. Tal movimento, que encontra um de seus vrtices na obra de Walter Salles, ganha adeptos de outras linhagens, como MarceloGomes,ClaudioAssis,ElianeCaffe,KleberMendonaFilhoetantosoutros. Parauns,humaaproximaomaiorcomumcinemadocumental,comoocasode CaoGuimares;paraoutros,umdesejodecaptar,atravsdaslentesdesuascmeras, umadura,maspoticafacetadarealidadedonossopas,comoClaudioAssis,por exemplo.Se,porumlado,aproduodocinemabrasileirocontemporneoapresenta um panorama do pas, com seus diretores oriundos de diversas regies; por outro, no se trata de um cinema que coloca em debate as contradies de nossa sociedade atravs de alegorias,comopretendeuoCinemaNovo.Esteherdeiro,naverdade,dediferentes tradiesnacionaiseestrangeiras;elevemcomoutrapoticaeumdesejodecerta aproximao com a realidade.vi No se trata de um realismo ao p da letra, mas, mesmo assim,valelembraraspalavrasdePasolini,quedesejosodaaproximaomaisdireta com a realidade, afirmou: Enquantotodasasoutraslinguagensseexprimematravsdesistemasdesignos simblicos,ossignosdocinematogrficonooso;elessoiconogrficos(ou 4 icnicos),sosignosdevida,seousodiz-lo;ditodeoutraforma,enquantotodosos outrosmodosdecomunicaoexprimemarealidadeatravsdesmbolos,ocinema exprime a realidade atravs da realidade (Pasolini, 1983: 25; grifo nosso) O que Teixeira (2012) defende sobre os documentrios poderia ser usado para se pensaressecinemabrasileirocontemporneoquepretendelidarcomarealidade,mas quenocaptaorealdomesmomodoqueosdocumentriosdramticosdateleviso, nem os reality shows. Para o autor, o documentrio contemporneo, se porumladoconstriumalinha defuga doexcessode realidadequenosinvade,poroutro,volta-senadireodeumrealquenosescapae desafiaemsuainextricvelexterioridade.Daafrequentesensaodeconfuso,de indiscernibilidadeentreo documentaleoficcionaldequesomos hojetomados.(Teixeira, 2012: 285; grifo nosso) Assim,emrelaoaosfilmesemdestaque,interessantenotarque,pormais que a cmera capte umacidade como o Rio de Janeiro em seucotidianomais comum, quemapeieapequenacidadedeIguatuelidecomatoresdeaparnciacomum,sem muita afetao, o real sempre dever escapar. Pois no se trata de capt-lo com preciso, mas sim de provocar as fronteiras, de propor e pensar o movimento. O movimento e os sonscomunsdascidadesestopresentesnoslongas,masoquesedestacamesmoo movimentodaspersonagens,seuscorpos,olhares,expresses.Inclusive,oprimeiro plano,privilegiadoparacaptaraemoo,muitorecorrentenosfilmesdirigidospor Anouz, apesar de ele se valer tambm do plano geral ao flagrar a paisagem esmagadora do serto, em O cu de Suely, por exemplo. Na verdade, a obra do diretor aponta para o fato de que estamos divididos dentro de uma mesma nao. A ideia de uma unidade nacional se desfaz, haja vista as diversas facetasdenossopasedesuapopulao,frutodamisturaoriginal,mastambm, agora,dostrnsitosemigraescomunscontemporaneidade.Emsuatrajetria, AnouzvaiaocentropobreeviolentodeumRiodeJaneirodaprostituio(Madame Sat),aumapequenacidadeperdidanointeriordoCear(OcudeSuely),para,em seguida, voltar ao serto em outra viagem por seus rinces (Viajo porque preciso, volto porqueteamo).Del,partenovamenteparaumRiodeJaneirodeclassemdia(O abismoprateado)para retornaraoCear,mas,agora,suacapitaletambmcapital da Alemanha (Praia do futuro).Ospersonagensperambulamporesseslugaresevotecendo,cadaumaseu modo,algumaslinhasdefuga,atravsdasquaispodemescapar.ConformeLima (2013),apesardeDeleuzeeGuattari(1996)consideraremqueaslinhasdefuganada tmdeimaginrionemdesimblico,talvezessesespaosconstituamaslinhasde fuga. Nessas linhas no h forma, nada alm de uma pura linha abstrata. porque no temosmaisnadaaesconderquenopodemosmaisserapreendidos.Elasno consistememumaformadefugirdomundo,mas,antes,defaz-lofugir,talcomo estoura um cano, e no h sistema social que no fuja/escape por todas as extremidades, mesmoseseussegmentosnoparamdeendurecerparavedaraslinhasdefuga (Deleuze; Guattari, 1996: 78). NaobraOabismoprateado,anarrativaflmicaseiniciaapartirdaticado marido Djalma queassume, nessemomento, o posto de protagonista,mas, como o prpriodiretorafirmaementrevistavii,comoseelepassasseobastoVioletaeela tomasse o lugar do marido, protagonizando a prpria busca. Na primeira cena, a cmera capta Djalma na praia de Copacabana, nadando sozinho durante a noite. H uma tenso emseurosto,captadaemprimeiroplano,enquantoelecaminha,comliberdade,pelas 5 ruasdobairro.Emseguida,acenainterrompidapelarelaosexualentreeleea esposa, momento em que ela nos apresentada e j assume seu posto na obra.Opersonagemmasculinopoucofala,masacmerapasseiaporseurostoe corpo, de modo a delinear seu perfil e a levar o espectador a preencher algumas lacunas. Djalmaumhomemcorpulento,demeiaidade;suaposturaeseumododeandar indicamcaminhosdeumaleiturasobresuamasculinidade.Seucorpopreencheatela, atravsdoenquadramentofrontal.Eleapresentadonumesmoemnudianteiro,ou seminucomonapraiaouaousarumatoalhaapsobanho.ofalo,opoder desfilando pela casa.Essanaturalidadecomqueopersonagemcirculanascenasmarcaalgotpico desse cinema produzido por Anouz, fruto de diversas heranas, que busca lidar com o ordinrio,cujamisturacarregamarcasdoneorrealismoitalianoedanouvellevague francesa,paraaqualocorpoesttotalmenteemevidncia.Bastalembrarcomoa personagem-conedessecinemaBrigitteBardotcirculavapelastelasdecinema.viii Desse modo, Djalma caminha com a naturalidade de quem caminha nu em casa, sem se preocupar em fazer muita pose, sem afetao. Alis, tal como j foi dito, uma marca da direodeAnouzestjustamentenaconstruodepersonagensquenoparecem muitoafetados,quenofazemmuitaposee,dessemodo,mostram-semaisnaturais, maisprximosdavidacomoela.AssimsoDjalma,Violeta,BeleNassir(O abismo prateado) e tambm o so, em outro momento, Hermila/Suely, Joo, Georgina e a tia Maria (O cu de Suely), para destacar apenas alguns deles.Outroelementoqueapontaparaarelaocomoordinrioatrilhasonora. Tantoemumfilmequantoemoutro,asmsicasvodobregaaopop contemporneo, passando pelo sertanejo, pelo rap e pelo funk. So trilhas sonoras que misturam gneros musicais distintos. Entretanto, no somente o que ordinrio parece estar em destaque, poisessastrilhasremetemaumaporosidade,aumaimpossibilidadededelimitar fronteiras e, sobretudo, aos estranhamentos, sensao de ser estrangeiro em qualquer lugar,construodeumasubjetividademarcadapeladiferena.Osmovimentos,o estranhamentoeanecessidadedemudanaacompanhamtantoSuelyquantoVioleta, sem mencionar os outros personagens. Naverdade,asimagensfalamporsiss.Sopoucososdilogos,etudo apresentado a partir do olhar e das expresses faciais dessas duas mulheres. Atravs dos primeiros planosemesmo dos super closes, possvelmarcarmelhora expresso das emoes dessas personagens. Nesse sentido, outro trao recorrente nas obras o fato de seprivilegiaremexpressesfaciaisminimalistas:aspersonagensdizemmuitocomo olhar; nosomulheresdelargos sorrisos,deexpressesfaciais afetadas.Comisso, possvel captar no rosto delas certa melancolia, que no se traduz, necessariamente, em algonegativo,masqueseduz.Todavia,mesmosedutoras,tantoSuelyquantoVioleta somulherescomuns,nadatmdasvampsquemarcaramoinciodosculoXX.ix Talvez isso se deva ao fato de que medidaqueaevoluopoltica,econmica,culturaldosculoXXpermitiumulher conquistarseulugarempdeigualdade,aoladodohomem,adesforradocorposefazia menosnecessria.Tendoacessoaessadignidadesocial,odolo deixavadeserdolopara ganhar o acesso dignidade artstica: a mulher cinematogrfica com toda a simplicidade se tornava uma atriz. (Baecque, 2008: 494). Deslidando as tramas: emoes e mulheres [H1] Comentrio: Aqui assim mesmo, pq a tenso no olhar dele est na cena em que caminha pela praia. Depois que outra cena se inicia. 6 No domniodosenso comum,asemoesesto,emgeral,relacionadas ideia de fraqueza, incapacidade de domnio de si em determinadas situaes e, mais ainda, no que se refere cultura brasileira, estiveram sempre ligadas a certa feminilizao do sujeito.Apenasoshomensconsideradosfracosseriamsuscetveissemoes.Na verdade,podemosverificarqueemtodooOcidentehumaculturadomedoqueas mulheresinspiraramaosexooposto,aolongodahistria.xTalmedosuscitadopelas mulheres, relacionado a outros movimentos, desencadeou um processo de elaborao de um thos de selvageria, irracionalidade e, mais tarde, de fragilidade, de fraqueza. por isso que apenas o homem fraco se sujeitaria s emoes. Essa ideia de fraqueza no est relacionadasomenteaquestespsicolgicaseneurofisiolgicas,mas,sobretudo,a questessociaiseculturais,avaloresecrenascompartilhadosporumacomunidade. TaisrelaesjaparecememAristteles,paraquemasmulhereseascrianasseriam seres incapazes de se relacionarem com o mundo, sem a ajuda de uma tutoria.Entretanto,foi,antes,comPlato,queaideiadequeocorpodeveriaser separadodamente,poraqueleestarligadoemooeestarazo,surge.Talideia colocouemcenaaoposioentreosdoistermose,nessaesteira,trouxe-noscomo heranaanoodequeasmulheresseriamemocionaiseoshomens,racionais. Portanto, mulheres seriam s corpo e emoo e homens, mente e razo. Isso se verifica no cotidiano, em expresses do tipo homem no chora em oposio a mulher chora toa, ou ainda mulher tem sexto sentido, mulher sexo frgil.Nosfilmesemdestaque,parecenohaverlugarparaafrmulamulheres= emoo e fraqueza, apesar de ainda no ser possvel afirmar que as duas protagonistas sejammulheresqueconseguiramrompercompletamentecomaheranapatriarcalista. Elas expressam diversas emoes, mas no se colocam, necessariamente, como sujeitos emotivos, no sentido estereotipado da expresso. O modo como lidam com as emoes demedo,surpresa,calma,alegria,captadopelaslentesdascmeras,pareceindicar caminhosparaumaleiturasobreamulhernacontemporaneidade.Asurpresauma emoo essencialmente humana, mas muito mais feminina do que a raiva, por exemplo. Tal emoo experimentada por Suely quando confirma, em visita casa da sogra, que omaridonoretornar;etambmporVioleta,quandoestaouveorecadodomarido, deixado na secretria eletrnica de seu celular.DeacordocomCembranelli(2010),asurpresaumelementodedespertarda vidapsquica.umacordarparaadiferena,quenodeveserentendidocomo acontecimentotraumtico,massimcomoalgoqueenriquecesubjetivamente.Nesse sentido, ela representa uma ruptura na temporalidade banal da vida. No que concerne surpresadesagradvel,ela seavizinhadasensaode estranhezaou das manifestaes de angstia, sendo, por isso, mais perturbadora que a surpresa boa. Nesse sentido, a surpresa pode ser um pequenosoluo de Chronos, o deus que encarnao tempolinear na mitologia grega. Mas, por vezes, ela sinaliza um tropeo maior que nos joga nos braos de outradivindaderelacionadaaotempoqueosgregoschamavamion:otemporeviradoe marcado pela mudana intempestiva, sem garantias de retorno ou salvao. possvel que aquestodotempo,dasurpresaedoreconhecimentodadiferenaestejaprofundamente imbricada na vida psquica de todos ns. (Cembranelli, 2010: 79; grifo nosso). Asurpresa,vistaporessengulo,vemconfirmarqueasemoesnoso expressesselvagensquequebramcondutastidascomocorretas;aocontrrio,elas obedecem a lgicas sociais e pessoais, sendo tambm regidas pela razo: [...]elastmtambmsuarazo,damesmaformaquearazonoseconcebecomouma intelignciaptreaoumaquinal.Umhomemquepensasempreumhomemafetado, 7 algum querene o fio de sua memria impregnada de certo olhar sobreo mundoe sobre os outros. (Le Breton, 2009:116). As emoes esto ligadas interpretao que o sujeito faz do acontecimento que o afeta moralmente, de modo a modificar sua relao com o mundo, provisoriamente ou de umamaneira durvel: por segundos, dias ou anos. Nesse sentido, relacionam-se aos trstempos(Chronos,Kairseion),articulando-oseapoiando-seneles.Elasdizem respeito a julgamentos de valor, revelando um pouco do nosso olhar, do nosso modo de estar nomundo e apontando para o modo como omundo nos afeta. Noso, portanto, naturais.Elasnosofixas,masdiluem-senasmalhasdotempo,ancoradasem sistemasdevalor.Atravsdaspersonagensemdestaquenosdoisfilmes,esse movimentoseexplicita:ambasexpressamemoesquesediluemmedidaquea narrativa flmica se desenvolve.A melancolia, marca do processo de mudana no curso da vida das personagens, semostranoslongossilnciosintrospectivos,semdeixarqueoscorposdas personagens, literalmente, falem. Talvez porque se saiba que a palavra irreversvel, tal a sua fatalidade. No se pode retomar o que foi dito, a no ser queseaumente:corrigir,nessecaso,estranhamenteacrescentar.Aofalar,nuncaposso usarborracha,apagar,anular;tudooquepossofazerdizeranulo,apago,retifico,ou seja, falar mais. (Barthes, 2004: 93; grifo do original). Adordoabandononovivenciadanaapatia,mas,aocontrrio,amolado movimentodeSuelyedeVioleta.Emvezdeapenasselamentarempelofimdos relacionamentos,elascontrolam,deformaatmesmopragmtica,amanifestaode suasemoes.AatitudecirrgicadeVioleta,aocuidardasprpriasferidas, provocadaspelaquedadabicicleta,decertomodo,encontralugarnasoutrasferidas. Ela no parece ser uma mulher frgil; ao contrrio, surpreende pelo seu pragmatismo. Aps arrancar um dente de uma paciente, Violeta d conselhos para evitar a dor: alimentar-sedecomidaspastosas,tomarsorveteque,emsuaspalavras,gostoso, deixa a gente feliz e ajuda a diminuir a dor. Acostumada a lidar com a dor dos outros, Violeta se v s voltas com a prpria dor. Na verdade, os conselhos dados aos pacientes parecem ser os mesmosquetenta incorporar sua vida. Diante da dor dos outros e da suaprpriador:tomarsorveteparaaliviareseguiremfrente.Elatomasorveteao descer do txi que a levou ao aeroporto pela primeira vez, momento em que decide no voltar para casa, optando por se hospedar em algumlugar, a fim de esperar o prximo vooparaPortoAlegre,ondeestariaomarido.Aaodetomarsorveterepetidapor Violetaquandosaidobanheirodoquiosquedapraia,decididaaacompanharBele Nassir pela noite. O sorvete, nesse sentido, parece no somente aliviar sua dor, trazendo alento, mas tambm marcar momentos de mudana para a protagonista. Suelytambm,mesmosentindoaperdadomarido,logosemovimentapara conseguirdinheiro:venderifadeumagarrafadeusque,lavacaminhesnopostode gasolina,ondeGeorgina,aamigaprostituta,trabalha.Decididaapartirnovamentede Iguatu,aprotagonistadeixaofilhocomaaveatia,emumaatitudeousadaeno esperadadasmulheres.Nessesentido,almdedemonstrarcontroledasemoes sentidas, ela quebra o prottipo da me zelosa, abnegada, porque, mesmo sentindo a dor de deixar o filho, ainda assim opta por seguir seu caminho. Em uma atitude semelhante, masemmenorgrau,Violetatambmdeixaofilhocomasobrinha,aodecidirviajar paraPortoAlegree,mesmoquandoperdeovoo,novoltaparacasa:preferese hospedar em um hotel e perambular pelas ruas da cidade durante a noite. Dessa maneira, 8 aocontrriodeseresignarem,asduasmulheresoptamporseguirseusdesejosem detrimento das obrigaes que lhes so impostas socialmente pela maternidade.Ao contrrio de O cu de Suely, em que a questo social tambm um elemento importantenoprocessodemudanadaprotagonista,emOabismoprateado,adorda perda no seio de uma classe mdia o mote do roteiro. Apesar de a protagonista temer no conseguir arcar sozinha comas despesas donovoapartamento, no se trata de um problema social. O fato que abandono e dor da perda de um amor no so privilgios de mulher pobre. Se Matheus simplesmente se muda de endereo e no atende mais aos telefonemas de Suely, a voz de Djalma apresentada na secretria eletrnica do celular de Violeta, revelando, do mesmo modo, um homem pouco decidido e covarde: Violeta,meuamor,eutindoembora.Eunovouvoltar.EutindoparaPortoAlegre. DepoiseuvouparaPatagnia.Seil.Averdadequeestousemar,estoumesufocando. No me chama de volta, se no eu volto e a gente afunda junto. Eu no te amo mais. Eu no te amo mais. Violeta, eu no te amo mais. Humainsistncianaltimafrase,enunciadademaneirarepetidaeenftica Eu no te amo mais como se ele quisesse faz-la entender o que realmente sentia ou mesmocomoseestivessefalandoparasiprprio;daaviolnciareveladapela entonao.Emboratomadapelasurpresaeapavoradacomapossibilidadederealmente perder o marido, Violeta controla suas emoes com tcnicas de respirao e quase no chora,oqueensinadoaBel,umacrianaqueelaencontranobanheirodeum quiosquedocaladodeCopacabana,nascenasfinaisdofilme.xiOchoroalgo comumentelidocomocoisademulhere,nessecaso,elepoucoaparece.Talvez Violetanoexpressetodasasemoesporconveninciaoumesmoporqueoqueest em jogo no a perda de um grande amor, mas sim a perda de um casamento de classe mdia,deummarido,deumpaiparaseufilho.Nessesentido,elaestariainseridaem umaheranapatriarcalista,assimcomoaindaestamaiorpartedasmulheresdesua classe social.Umaclassemdiaemascensocaptadapelaslentesdacmera,atravsda personagem,acabatrazendotonaumareflexosobreolugardamulherbrasileirana contemporaneidade,poisVioletaumamulherapaixonadapelomarido,masque pareceterumsensodesobrevivnciaaguado.Elasentemuito,masnochegaase desesperar. Ela se lana, mas sabe recuar. H uma espcie de pragmatismo na aceitao finaldofimdocasamento,comasnovaspossibilidadesapontadaspeloencontrocom Nassir. Domesmomodo,mesmosentindoadordedeixarMatheuscomaaveatia naquelacidadeafastadadosgrandescentrosecompoucosrecursos,Suelysegue viagem. Como j foi dito, a protagonista no se deixa aprisionar pela maternidade, nem pelas promessas de uma vida digna a ser alcanada com o casamento. como se ambas asprotagonistas,apesardoabandono,soubessemqueocorpoestnocentrodetoda relaodepoder.Masocorpodasmulheresocentro,demaneiraimediatae especfica (Perrot, 2005: 447). Elas podem resistir atravs deles, podem lanar-se em algumas linhas de fuga. Isso porque, para dizer com Butler (2002), os discursos habitam corpos, acomodando-se neles: os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu prprio sangue.xii Umdesejodedomnio,decontroledoprpriocorposefazpresenteemduas cenas emblemticas: Suely se entrega sensualmente aos embalos do forr eletrnico no postodegasolina,aopassoqueVioletadanafreneticamenteemuminferninhode Copacabana.interessanteque,aocontrriodoqueocorrecomSuely,quandoesta 9 abordadaporJooeporoutrorapaz,aexpectativadeumflerte,deumaabordagem maisaudaciosanoseefetivacomVioleta.Eladanasozinhaemesmoinvisvel,ao som de Maniac. Na cena, pode-se ver um casal danando ao fundo, pessoas circulando deumladoparaoutrona pistaeVioleta,que,enquadrada esquerda,pareceestarem frenesi. Nessemomento, h umexplcito dilogocomofilmeFlashdance (1983),que fez um grande sucesso na poca, mas ainda muito criticado por sua aproximao com os videoclipes e pela falta de coerncia do roteiro. No entanto, ao invs de apontar para um cinema prximo do videoclipe, o filme O abismo prateado parece indicar, mais uma vez, a diluio de fronteiras espaciais e temporais.Assim, ao danareme poderem danar, invisivelmente ou mesmo escolhendo o quefazerecomquemfalar,VioletaeSuelysaemdolugar-comum.Elasultrapassam barreirasporestaremsozinhaseexperimentaremumaespciedecatarsenecessrias suas deambulaes.Em O cu de Suely, os signos vindos de lugares diversos a rifa de uma garrafa deusque,amquinadecopiarCDs,onomedopostodegasolina,Venezatambm marcamadiluiooumesmoareinvenodefronteiras.Oprpriocorpoda personagem aponta para isso, uma vez que traz marcas de outros lugares (como as altas plataformas usadas por ela, com certa dificuldade, nas ruas no pavimentadas da cidade, ou as mechas nos cabelos) e colocado venda em uma rifa com um fim preciso. Essa desterritorializaoseverificatambmemOabismoprateado,apesardesetratarde uma protagonista de classe mdia e distante, nesse sentido, de Suely.Violetaparecesertoconservadoracomoaclasseaquepertence,mas,ao mesmotempo,corajosa:apesardeusarroupasbemconvencionais(bermudaecamisa de tecido, saltos altos), usa a bicicleta como meio de transporte, em um trnsito catico como o da cidade do Rio de Janeiro. Assim como no podemos falar em sujeito uno, em identidade,sempensaremalteridade,nopodemospensaremculturassemlevarem conta a miscigenao. No se trata mais de uma mulher de periferia e de uma mulher de centro,masdeumamisturaqueultrapassaasfronteiras.Oqueparecehaverso entrelugares, transio, trnsito, trfego de pessoas pelo mundo.Como delinear o perfil de uma herona heterossexual de classe mdia? E de uma herona pobre que vive na periferia do Brasil? Na verdade, no se trata de heronas, mas demulherescomuns,quesofalveisecometemerros.Osfilmesnoso,nesse sentido,informativosoupanfletrios.Nohumadefesadaclassemdiaoude periferia. No h defesa da mulher brasileira heterossexual. Ao contrrio, as duas obras parecemindicaroutrocaminhodeleitura,voltando-separaprticasque,como argumentaLouro(2003:51),desestabilizemedesconstruamanaturalidade,a universalidadeeaunidadedocentroequereafirmemocarterconstrudo,moventee pluraldetodasasposies.possvel,ento,queahistria,omovimentoeas mudanas nos paream menos ameaadores.Trata-sedefilmesdeamoreabandono.DomesmomodoqueamsicaOlhos nosolhos,deChicoBuarque,motedoroteiro,direciona atrama de Violeta,Tudoque eu tenho, cantado por Diana ou mesmo a msica do grupo alemo Lawrence, em outro momento,embalamasviagensdeSuely.Asemoesexpressaspelasprotagonistas circulamemtornodasurpresa,domedoedeumacalmaalcanadacomtcnicasde respirao, no caso de Violeta. Elas se controlam, no se desesperam.EmOabismoprateado,ajornadaculminaemumdesejodemovimentoque talvezsejavistonaestranhafamliaencontradaBeleNassir.Entreossignosque apontariamparaadesterritorializaopresentenaobradeAnouz,onomedohomem encontrado seriaum deles:elesechamaNassir,clararefernciaculturarabe.Alm disso,BelpareceseriniciadaporVioletanavidademulheresnoencontrono 10 aeroporto.aprimeiravezdameninanaquelelugardepassagem,eelarecebe instruessobrecomocontrolarochoroeseguiremfrente.Elatambm,apesarda presena do pai, segue sozinha em sua jornada pessoal. A me desejada, mas ausente. Nessesentido,pareceinteressantenotarquetantoVioletaquantoSuely,apesar deteremfilhoeestareminseridasemumavidasocial,tambmestosozinhas.Na verdade,emsuasjornadaspessoais,estosozinhas.Aesserespeito,valelembrarLe Breton(2009),paraquemasolidoatenuaaexpressodasemoes,reprimindosua manifestao, enfraquecendo os gritos ou os risos e acalmando mmicas. Talvez o que a cmeradesejecaptarsejaessasolidodosujeitonacontemporaneidade,queparece mesmo invisvel em alguns momentos.Noexiste,umaexpressodeemoo,masinmerasnuancesqueindicariam caminhos para sua leitura em dado contexto. Os homens no exprimem alegria, tristeza, mas esto alegres ou tristes, expressando suas ambivalncias. E isso que a anlise do discurso pode captar, uma vez que entende as emoes como algo no natural, mas fruto de uma construo em dado momento.Aocontrriodesemostraremsujeitosemotivosconformeopadrode expectativa,dentrodeumhabitus,essasmulheresacabamsemostrandosujeitos fluidos,misturadosscidades,aofluxodaspessoas.Nessesentido,cadafigura feminina tem suamarca, sua dico prpria a tia lsbica, a amiga prostituta, a av, a sogra. Mesmo se mantendo no serto, a tia e a av no so mulheres que se adquam ao padro esperado: a av criou a famlia sozinha; mesmo idosa, continua a trabalhar para manter a casa e, agora, para cuidar do bisneto deixado por Suely. A sexualidade da tia outroimportantesignoquemarcacaminhosparaumareflexosobreumtemacaros discusses sobre gnero na contemporaneidade.Como sev, apesar das duas protagonistasmarcarem uma presenacorporalmuito forte nas tramas, no chegam a tornar as outras mulheres meras coadjuvantes. Para dizer com Butler (1993), esses corpos abjetos, essa existncia corporal daqueles que no so encaixveis na estrutura binria homem-mulher indica caminhos para a compreenso dos problemas de gnero. De acordo com a autora, apoiada em Foucault, nem sexo nem sexualidadesoverdadesessenciais,massimconstrueshistricas.Trata-sedeuma corporeidade marcada e construda discursivamente.A posio da filsofa vai alm da questo da sexualidade e pode ajudar a pensar olugardetodosaquelesquenoseencaixamnopadrodohomembrancoeuropeu. Suaspreocupaesabarcamdesdeostransexuaisatospobres,quesoconsiderados pelopodercomosemimportncia,comovidasquemereciamsercorrigidasouat mesmonovividas.Suapreocupaosemostrarelevantequandonoslembramosde eventosocorridosnoBrasil,comoaqueleem quejovensdeclassemdiadacidadede Braslia queimaram um ndio que dormia na rua, ou quando jovens cariocas, tambm de classe mdia, espancaram uma empregada domstica que estava em um ponto de nibus demadrugada,porimaginaremqueelaeraumaprostituta.Parecemsertodos,na concepodessesjovens,corposabjetos.Essessujeitosqueatacammulheres, homossexuais,ndios,judeus,mulheresnofemininasousensuaispautam-seemuma viso de mundo apoiada no patriarcado, no capitalismo e no poder em geral. O excludo produzidonodiscurso;seulugarancoradonainjustiadenopoderexistir.Do mesmomodo,osermulherproduzidonodiscursoe,porisso,ligadosrelaesde poder. portudoissoque,emboraocinemadeAnouznosepretendapanfletrioe nemprivilegieumlugarestereotipadodasmulherescomoseresfrgeis,mais susceptveisasentirdeterminadasemoes,eleabrepossibilidadesparasepensaro lugardamulhernasociedadebrasileiracontempornea.Lugaraindamarcadopela 11 inferioridade,pelaestruturabinriahomem-mulher,comseuslugaresdelimitados historicamente,oqueseverifica,porexemplo,quandoacunhadadizaVioletaqueo irmoesperoudemais,esperou,inclusive,acompradodesejadoapartamento,ou quandoamotoristadetxiaaconselhaadarumjeitonoscabelos.Domesmomodo, verificam-seessasmarcasquandoSuelyexpulsadafeiraondetentavavenderos bilhetesdarifadanoitenoparaso.Oumesmo,quandoaavbateemseurostoe sente vergonha por ela vender o corpo e virar alvo da revolta das mulheres da cidade. significativo que mesmo as propostas apaixonadas de Joo tambm podem ser lidascomosignosdesselugaraindaconferidosmulheres:eleofereceumavida dignaaSuely,comocasamento.EmOabismoprateado,Nassirficaindignado quando Violeta o questiona sobre o fato de no permitir que Bel fique comame.Ele retrucacomviolncia:Vocsabequemela?Vocsabeseelaumavagabunda? Emvezdecontinuarseusquestionamentos,emumaatitudesubmissa,Violetasecala. Assimcomofaz,decertomodo,emrelaoaseucasamento.Elavenceajornada, segueemfrente,sobreviveaofimdocasamento,mas,poroutrolado,aceitaessefato com certa resignao: Quando voc me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de cime, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci. (Holanda, 1976) Algumas palavras para concluir As duas produes em destaque O cu de Suely e O abismo prateado tm um desfechosemelhante:altimacenamostrasujeitosemtrnsito.Noprimeirofilme,a cmeracaptaemcloseorostodeSuelydentrodonibus,comumaexpressode contentamentoeesperana,acaminho de PortoAlegre.Nosegundo,oclose serepete em Violeta, caminhando sozinha pelo calado, de volta ao Rio de Janeiro, tambm com uma leveza no rosto, marcada talvez pelos mesmos sentimentos. Para parafrasear Louro (2010), a histria dessas duas mulheres, quase sempre viajantes, tal como nossa prpria histria,parecepermaneceremaberto,emconstruo.Soidentidadesfemininasem trnsito, identidades femininas emconstruo. importante pensar nesses textos como sefossemumprocesso,umareaoemcadeiaqueabarca,apartirdaspersonagens femininas,umaredederelaesdepoder.Issoporqueognero,entendidocomo construo, efeito de discurso(s).Essasmulheresnodeixamdecarregar,emsuasrespectivasempreitadas,as marcasdopatriarcalismo,devaloresaindacarosmanutenodadiferenaentre homem emulher, o quese nota, por exemplo, na emoo daraiva, que pareceter sido engolida, assim como o choro, pelas duas protagonistas. Os homens, ao contrrio, so ensinadosaexporumaemoocomoaraiva,enquantoumamulhercomraiva considerada hostil. o que ocorre quando Suely manifesta sua raiva na casa da sogra e quando Violeta faz o mesmo, ao interpelar a cunhada sobre os motivos que levariam seu marido a abandon-la daquela maneira.Entretanto,apesardeaindapresasargidosmodelosereproduzindoantigas frmulas, a dispora de Suely e a deambulao de Violeta sinalizam as mudanas pelas quaispassamasmulheresnacontemporaneidade.Domesmomodoqueoshomens,as mulherestambmpodemmovimentar-se,podemestaremtrnsito.Ementrevista,o diretor fala de sua paixo por aeroportos:espao de passagem, no lugar, como afirma 12 Aug(1994).Oquesoosaeroportossenoamistura,omovimento,adiluiode fronteiras em sua forma mais explcita? Tal como afirma Frana (2012, p. 398), essas novasterrasnogeogrficas[...]soterritriosafetivos,sensveis,novosmapasde pertencimento e afiliao translocais. TantoVioletaquantoSuely,cadaumaaseumodo,circulamnessesentrelugares. So mulheres (e homens) viajantes. Alis, o tema da viagem, to caro modernidade, recorrente na obra de Anouzxiii: o que sev soviagens transformadoras, que tecema vida dos sujeitos na contemporaneidade. Referncias ANOUZ,K.NEGRINI,A.Debate"Oabismoprateado"comKarimAnouzeAlessandra Negrini.SoPaulo,CinuspPauloEmlio,30abr.2014.Disponvelem: . Acesso em: jul. 2014. AUG,M.Nolugares:introduoaumaantropologiadasupermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.BAECQUE,A.Ocorponocinema.In:CORBIN,A.;COURTINE,J-J.;VIGARELLO, G. (org.). Histria do corpo. As mutaes do olhar: o sculo XX. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. BARTHES, R. O rumor da lngua. Trad. Mrio Laranjeira. So Paulo: Cultrix, 2004.CEMBRANELLI,F.A.T.Surpresa.SoPaulo:DuetoEditorial,2010.ColeoEmoes: 7. DELEUZE,G.;GUATTARI,F.Milplats.Capitalismoeesquizofrenia.RiodeJaneiro: Editora 34, 1996. v. 3. LEBRETON,D.Aspaixesordinrias.Antropologiadasemoes.RiodeJaneiro: Vozes, 2009. LIMA,H.M.R.de.OcudeSuely:contornosdofeminino.In:______.(org.) 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No presente captulo, no entanto, nosso objetivo tentar captar outras relaes na leitura comparativa das duas obras em destaque. ivIguatuumacidadequeficanointeriordoCear,afastadageograficamentedosgrandescentros urbanos.Emborasetratedeumacidadepequena,emqueosmoradoresnotmacessoao desenvolvimento das grandes metrpoles, ela carrega diversas marcas de outros lugares, vindas talvez de viajantes e de viagens, frutos da dispora nordestina.v A cidade para onde Suely viaja Porto Alegre. Coincidncia ou no, a mesma cidade para onde vai o marido de Violeta, personagem do outro filme em destaque. viEvidentemente,soapenasaproximaes,porqueosrtulossosemprecomplicados,eperigoso fechar as possibilidades em algumas frmulas. vii Para saber mais sobre o assunto, acessar o link: https://www.youtube.com/watch?v=dejg_LKHqwQ. viii A meno a esses movimentos do cinema europeu no indica que o filme se enquadraria em um deles, mas sim que seria fruto dessa herana, ressignificada ao longo do tempo. ixPareceinteressantedestacar,nessesentido,queasimplicidadedaatuaoprovenientedoteatro,no filme O cu de Suely, visou auxiliar a naturalizao dos personagens, os quais tinham o mesmo nome dos atores.Essaopododiretorfoiumdesafioparaessesprofissionaiscujointuitoeradarmais profundidade s suas caracterizaes, com atuaes naturais esensveis, como foi a deHermilaGuedes. A atuao dessa atriz, inclusive, foi muito elogiada pela crtica, assim como a de Alessandra Negrini, no papel de Violeta. x Para saber mais sobre o assunto, ver Michelet, 1992.xi Bel uma criana que viaja com o jovem pai, Nassir, que parece ter abandonado a mulher, em virtude de uma traio. A menina sente saudades da me, mas tenta se controlar, chorando escondida no banheiro doquiosqueemqueencontraVioleta.Paiefilha saram deumacidadedo interiordoestadodo Riode JaneiroItaguaeseguem,emumavan,emdireoaumacidadequeficanointeriordoestadode Pernambuco:BeloJardim.SegundoNassir,onortenopromissor,maslBelterav,av,famlia. Alis, na cena final do filme, aps se despedirem, dois planos gerais captam Violeta andando livremente pelo calado de Copacabana e tambm Bel e Nassir seguindo viagem, em sua dispora.xiiDisponvelem:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2002000100009&script=sci_arttext. Acesso em: 21/07/2014. xiii Vale, nesse sentido, lembrar o filme Viajo porque preciso, volto porque te amo e o mais recente Praia do futuro.