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24/01/13 15:55 Matéria - Música de além-mar Página 1 de 2 http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaImprimir.cfm?materia_id=7804 Matéria da Editoria: Arte & Cultura 24/01/2013 MÚSICA Música de além-mar A Naifa revitaliza o fado português, contornando-lhe com linhas mais leves, joviais e até de protesto. Ricardo Viel Data: 23/03/2005 O fado é a perfeita tradução da alma portuguesa. Melancólico e introspectivo, é o retrato de uma nação que um dia foi um grande império e hoje tem que se contentar com um pequenino trecho de terra espremido entre o oceano Atlântico e a Espanha. Estão a olhar para o mar, à espera do retorno de uma época que não voltará. Para diminuir sua dor, cantam o fado. Um das teorias sobre as origens do tradicional ritmo lusitano credita aos escravos negros, vindos sobretudo do Brasil, a criação desse lamento cantado, desta mistura de poesia e canção, que penetra e emociona. Seja qual for sua origem, o fado está intimamente ligado com a angustia, o sofrimento, e com esse sentimento tão nosso que é a saudade. Cantado nas tabernas e quase sempre por mulheres, vestidas de negro, com seus xales nos ombros, a canção ecoa entre as estreitas ruelas de Lisboa, Porto, Coimbra, e o lamento é sentido por todos. Mas Portugal já não é essa pátria esquecida e amargurada de antes, o ingresso na União Européia não trouxe ao país somente perspectivas de crescimento econômico. O intercâmbio cultural deu a Portugal uma cara moderna, contemporânea. Lisboa já não é mais uma capital do passado, o antigo e o novo convivem em harmonia e o fado hoje divide espaço com outros ritmos musicais. Talvez mais do que dividir espaço, o fado funde-se, mescla-se a eles. Pelo menos este é objetivo de um projeto musical nascido em 2004, chamado A Naifa. Três músicos – guitarra portuguesa, baixo e bateria - uma fadista e a intenção de acrescentar ao tradicional ritmo português as batidas ritmadas feita em computadores, assim se fez Canções Subterrâneas, primeiro, e até agora único, disco do grupo português. A proposta é reformular o fado, dando a ele uma sonoridade um pouco mais viva com a ajuda de inserções eletrônica, sem se esquecer da guitarra portuguesa e da voz penetrante da fadista. Tudo muito harmônico, sutil, para que nada se perca. O toque especial da receita vem com as pitadas da poesia contemporânea portuguesa (de poetas pouco conhecidos) que dão uma nova cara ao velho fado português, sem descaracterizá-lo. Frase como: “Éramos rebeldes para o sistema, a sonhar uma revolução por dia; à tardinha, na esplanada, bebíamos um cocktail molotov. O terrorista apaixonado carregava, às escondidas, uma bomba relógio. Era no peito. Era o coração” ou “É melhor fecharmos os olhos meu amor, antes que o mundo todo seja um incêndio”, dão às canções um toque de ironia, de protesto, mas, antes de tudo, de renovação, de reinvenção. As músicas continuam falando de amores, desilusões, sofrimentos, mas de uma maneira mais jovial, cantadas e contadas pela nova geração.

Música de além-mar

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Reportagem sobre o grupo de fado A Naifa, para a Carta Maior, março de 2005

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Matéria da Editoria:

Arte & Cultura24/01/2013

MÚSICAMúsica de além-marA Naifa revitaliza o fado português, contornando-lhe com linhas mais leves, joviais e até de protesto.Ricardo Viel

Data: 23/03/2005

O fado é a perfeita tradução da alma portuguesa. Melancólico e introspectivo, é o retrato de uma nação queum dia foi um grande império e hoje tem que se contentar com um pequenino trecho de terra espremidoentre o oceano Atlântico e a Espanha. Estão a olhar para o mar, à espera do retorno de uma época que nãovoltará. Para diminuir sua dor, cantam o fado.

Um das teorias sobre as origens do tradicional ritmo lusitano credita aos escravos negros, vindos sobretudodo Brasil, a criação desse lamento cantado, desta mistura de poesia e canção, que penetra e emociona. Sejaqual for sua origem, o fado está intimamente ligado com a angustia, o sofrimento, e com esse sentimento tãonosso que é a saudade. Cantado nas tabernas e quase sempre por mulheres, vestidas de negro, com seusxales nos ombros, a canção ecoa entre as estreitas ruelas de Lisboa, Porto, Coimbra, e o lamento é sentidopor todos.

Mas Portugal já não é essa pátria esquecida e amargurada de antes, o ingresso na União Européia não trouxeao país somente perspectivas de crescimento econômico. O intercâmbio cultural deu a Portugal uma caramoderna, contemporânea. Lisboa já não é mais uma capital do passado, o antigo e o novo convivem emharmonia e o fado hoje divide espaço com outros ritmos musicais. Talvez mais do que dividir espaço, o fadofunde-se, mescla-se a eles. Pelo menos este é objetivo de um projeto musical nascido em 2004, chamado ANaifa.

Três músicos – guitarra portuguesa, baixo e bateria - uma fadista e a intenção de acrescentar ao tradicionalritmo português as batidas ritmadas feita em computadores, assim se fez Canções Subterrâneas, primeiro, eaté agora único, disco do grupo português.

A proposta é reformular o fado, dando a ele uma sonoridade um pouco mais viva com a ajuda de inserçõeseletrônica, sem se esquecer da guitarra portuguesa e da voz penetrante da fadista. Tudo muito harmônico,sutil, para que nada se perca. O toque especial da receita vem com as pitadas da poesia contemporâneaportuguesa (de poetas pouco conhecidos) que dão uma nova cara ao velho fado português, semdescaracterizá-lo.

Frase como: “Éramos rebeldes para o sistema, a sonhar uma revolução por dia; à tardinha, na esplanada,bebíamos um cocktail molotov. O terrorista apaixonado carregava, às escondidas, uma bomba relógio. Era nopeito. Era o coração” ou “É melhor fecharmos os olhos meu amor, antes que o mundo todo seja um incêndio”,dão às canções um toque de ironia, de protesto, mas, antes de tudo, de renovação, de reinvenção. Asmúsicas continuam falando de amores, desilusões, sofrimentos, mas de uma maneira mais jovial, cantadas econtadas pela nova geração.

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A sensação que dá, quando termina a última música de Canções Subterrâneas, é de uma tristeza agradável,de uma saudade de algo que não se sabe muito bem o que é. É quase que uma viagem a Portugal, em que sepercorre séculos em minutos. Na boca, um gosto agridoce, no peito um aperto, sem explicação.

Sentados num moderno trem, saindo de Lisboa, estão uma senhora e um rapaz. Ele, de olhos fechados,acompanha com a cabeça o ritmo da canção que toca no seu discman, que diz:

Hoje abriu a primeira flore eu disse é um sinalolho em volta: estou sótrago esta sombra comigo

A senhora, sentada ao lado da janela, pensativa, olha longe e cantarola uma canção. Lembra da época emque era moça e que cantava fado: “Bons tempos aqueles. Os jovens de hoje já não se importam com isso”.