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Resumo: Colectânea de textos de vários autores recolhidos na Internet ao pesquisar os termos: cegos, música, musicoterapia. Notas:a) Da pesquisa inicial seguiram-se outros caminhos pelo que não é possível neste momento enumerar todos os autores dos artigos e textos seleccionados assim como o WWW onde estão alojados (essa tarefa será efectuada posteriormente e apresentada aqui ou no blogue http://abcdamusicoterapia.blogspot.com/. b) Na impossibilidade de efectuar um resumo das mais de 200 páginas, deixo algumas palavras-chave dos referidos documentos.Palavras-chave: Senabraille, Sistema Braille, pratica educacional com crianças surdocegas, cegueira congénita, pessoas com deficiência visual, desenvolvimento de conceitos e habilidades de comunicação em crianças com deficiência visual, dificuldades de aprendizagem, diagnóstico e prognóstico de surdez e cegueira, Educação Musical Inclusiva, Musicoterapia cegos, formação de conceitos, imagem corporal e sexualidade de adolescentes com cegueira, leitura musical, Musicografia, modos de intenção com jovens deficientes visuais, músicos cegos, processo de inclusão escolar de crianças com cegueira, identidade visual de uma associação de deficientes visuais etc.* Esta pesquisa é dedicada à Beth na esperança que o material lhe possa ser útil no desenvolvimento do seu trabalho.

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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia da SBP—2003, Vol. 11, no 2, 134– 146

A prática educacional com crianças surdocegas

Fátima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento Maria da Piedade Resende da Costa

Universidade Federal de São Carlos

Resumo Esta pesquisa descreve e analisa três fases de um procedimento de intervenção com duas crianças surdoce-gas pré-lingüísticas. O estudo foi desenvolvido em uma escola especial de Brasília e nas residências, duran-te nove meses. O objetivo foi implementar e avaliar procedimentos de intervenção com os sujeitos, basea-dos na abordagem co-ativa de van Dijk e na perspectiva sócio-histórica. Os resultados sugerem que as es-tratégias propostas por van Dijk na década de 60 mostraram-se eficazes quando associadas a práticas de sala de aula que privilegiaram o uso simultâneo de vários recursos alternativos de comunicação (Libras, gestos, movimentos corporais coordenados, Tadoma, escrita, fala, objetos de referência etc.). As alunas, que inicialmente apresentaram uma comunicação expressiva elementar, no final da pesquisa, passaram a apresentar novas competências comunicativas baseadas no uso de sinais, escrita, bem como melhoraram no desempenho nas suas tarefas, concentração e comunicação, passando a demandar mais informações do seu meio. Palavras chave: criança surdocega, comunicação, ensino especial, movimento co-ativo.

Educational practice with deaf-blind children

Abstract This research describes and analyzes three phases of an intervention procedure with two deafblind pre-linguistic children. The study was carried out at a special school in Brasilia and at their residences, for nine months. The objective was to implement and evaluate intervention procedures with the subjects, based on the co-active van Dijk approach and on the socio-historical perspective. Results suggest that the strategies proposed by van Dijk in the ‘60s were effective when associated with classroom practices that favored the simultaneous use of several alternative communication tools (Libras, gestures, coordinated body movements, Tadoma, writing, speech, reference objects, and so on). The students, who initially demonstrated elementary expression communication, evidenced new communicative competences at the end of the research, based on the use of signs and writing, having improved their performance in their tasks, their concentration and communication, and having started to demand more information from their environment. Key words: deaf-blind children, communication, special education, co-active movement.

O presente estudo refere-se à questão do desenvolvimento da comunicação e do processo de escolari-zação de crianças surdocegas pré-lingüísticas, sem outros comprometimentos aparentes. Para tanto, desen-volveu-se uma pesquisa de intervenção em sala de aula, com o objetivo de implementar e avaliar procedi-mentos de intervenção baseados na abordagem co-ativa e na perspectiva sócio-histórica. O objetivo da in-tervenção consistiu em criar novas competências e desenvolver novos repertórios de comportamento envol-vendo a aprendizagem de vários recursos de comunicação. A pesquisa foi desenvolvida numa escola espe-cial pública de Brasília, durante um período de nove meses e envolveu duas crianças surdocegas. _________________________________________________________________________________

Trabalho apresentado XXXIII reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Belo Horizonte, MG, outubro de 2003. Apoio financeiro: FAPESP e CAPES Endereço para correspondência: Via Washington Luís, km 235 – Caixa ostal 676 – São Carlos – SP – CEP13565-905. E-mail: [email protected]

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Considerou-se no desenvolvimento deste estudo que o sujeito é antes de tudo uma pessoa, singular, única e dinâmica, conseqüen-temente, a intervenção precisa ser específica e dinâmica; e, que seu desenvolvimento depen-derá essencialmente das modalidades de ativi-dades de como são propostas no meio escolar e familiar.

Revisão teórica Os registros sobre a educação da criança surdocega, relatam nomes de pessoas que con-seguiram aprender a ler e escrever. Em geral, as informações são imprecisas em relação ao perfil dos surdocegos e ao método empregado na comunicação receptiva e expressiva. Para Amaral (2002) a história da educação dos sur-docegos sempre esteve próxima da educação de surdos. Assim, o método gestual desenvol-vido na França e o oral na Alemanha sofreram algumas adaptações, entre elas: acrescentou-se, a percepção tátil ou a alteração do espaço de sinalização segundo a condição visual do sur-docego. Collins (1995) aponta Victorine Morri-seau como a primeira mulher surdocega a rece-ber educação formal, em Paris, em 1789, sendo a França pioneira na instituição da educação formal para esta população na Europa. Keller (1961) relata que a educação de Laura Brigdg-mam iniciou-se quando esta tinha oito anos em 1837, na Escola Perkins, nos Estados Unidos pelo professor Dr. Samuel Gridley Howe. O trabalho com Laura consistia na utilização da soletração manual para a transmissão e recep-ção das informações. Este recurso de comuni-cação influenciou e contribuiu para o desenvol-vimento de programas educacionais em dife-rentes países, entre eles a Alemanha em 1887. Outros casos são relatados na literatura, o mais conhecido deles é a história de Helen Keller (1880-1968), educada a partir dos sete anos em 1887, pela professora Anne Mansfield Sullivan parcialmente cega, sendo a primeira surdocega a concluir ensino superior. O méto-do de comunicação utilizado foi a soletração das unidades de cada palavra através do alfabe-to manual (Keller, 2001). Freeman (1991) comenta que os distin-tos graus de surdez e as inúmeras possibilida-des de deficiência visual, quando aparecem associadas geram, inicialmente, quadros singu-

lares de comportamento, necessitando de aten-dimentos específicos. A abordagem co-ativa de van Dijk (1968) apresenta procedimentos que podem possibilitar condições adequadas ao desenvol-vimento da comunicação em surdocegos pré-lingüísticos. Esta abordagem parte do princípio que as atividades propostas precisam ser reali-zadas em conjunto com a criança, através do movimento de mão sobre mão. Para isto é fun-damental o envolvimento afetivo dos partici-pantes. A relação afetiva promoverá um ambi-ente no qual a criança sentir-se-á com uma margem de segurança para poder participar das atividades. O autor ao abordar os vários níveis de comunicação reporta-se às seis fases, identi-ficadas por ele como: nutrição, ressonância, movimento co-ativo, referência não representa-tiva, imitação e gesto natural. Estas fases cons-tituem-se em um processo dinâmico de incor-poração de estímulos sociais, podendo ser se-qüenciais ou cumulativas. Segundo Writer (1987) a nutrição con-siste no desenvolvimento do vínculo social acolhedor entre a criança e o professor. Para McInnes e Treffry (1997) este vínculo acontece gradualmente, podendo ocorrer um processo interativo com oito etapas, no qual a criança surdocega: (1) resiste à interação; (2) permite e a admite; (3) colabora passivamente; (4) de-monstra prazer e satisfação em participar; (5) responde aos estímulos; (6) acompanha e a ori-enta; (7) imita condutas; (8) inicia por si mes-ma a interação. Todas estas etapas pressupõem a cumplicidade afetiva e competências profis-sionais adicionais necessárias a interação com crianças surdocegas. No campo pedagógico a ressonância consiste na realização de uma atividade con-junta na qual criança e professor se percebem agindo juntos. O objetivo é despertar no outro a consciência dos efeitos de seus movimentos no corpo do interlocutor. Para tanto, faz-se ne-cessário promover a variação do binômio: con-tato físico e interrupção da atividade, como lembram McInnes e Treffry (1997). O movimento co-ativo consiste na orien-tação da mão da criança pelo professor no esta-belecimento de contato com o objeto do conhe-cimento. Faz-se necessário que a mão do pro-fessor esteja em contato com o objeto, manten-

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do a mão da criança sobre a sua. Gradativa-mente, o professor vai permitindo que a criança entre em contato com o objeto do conhecimen-to. O objetivo é ampliar a ação motora do sur-docego no ambiente. Durante a fase da referência não repre-sentativa introduz-se o uso do objeto de refe-rência como um recurso mediador da interação. O objetivo é relacionar determinados objetos com as atividades a serem realizadas (Bloom, 1990). A apresentação do objeto inicialmente precisa ser contextual; depois se promove sua descontextualização, passando a utilizá-lo co-mo uma referência que antecipa a atividade programada. Para tanto, o objeto reduzido ou simplificado, precisa ter uma equivalência sim-bólica com o real e com a atividade a ser de-senvolvida. A quinta fase é a imitação, representa a continuação do movimento co-ativo de forma mais rica, uma vez que o surdocego começa a re-criar os elementos simbólicos assimilados a fim de conseguir a satisfação de suas necessi-dades. O gesto natural é a última fase descrita por van Dijk (1968). Nesta fase, o surdocego começa a criar seus próprios gestos para repre-sentar algo que deseja conquistar. Transforma os movimentos corporais em instrumento de comunicação. Assim, os primeiros gestos a serem utilizados no trabalho com surdocegos devem imitar um jogo motor, no qual todo o corpo participa da identificação do objeto ou da situação. O que importa é representar os objetos a partir do que se pode fazer com eles, tornando claro o que se pretende realizar, exe-cutar em um momento específico. Outro passo necessário é o nível co-ativo dos gestos natu-rais, isto é, o professor deverá repetir muitas vezes de forma atraente e lúdica o movimento do gesto, antes da criança ser capaz de realizá-lo de forma independente. Muitas vezes, é ne-cessário que os gestos e os sinais sejam realiza-dos no próprio corpo da criança. Quando esta conseguir realizar o gesto sem ajuda, evidenci-ará que possui condições de falar sobre algo que está ausente. Neste estágio, o mediador deverá estimular a expressão da criança por meio de perguntas. Percebe-se que em todas as fases desen-volvidas e descritas por van Dijk (1968), há

uma ênfase nas indicações táteis como uma forma de viabilizar às crianças o acesso às informações através do movimento e das sen-sações, maximizando e otimizando seus senti-dos remanescentes. Proporcionam-se, assim, novas condições da relação entre as influên-cias recíprocas dos fatores biológicos (habilidades e recursos que a criança dispõe) e sócio-culturais, na aprendizagem de novos repertórios de comportamentos das crianças surdocegas (Vygotsky, 1988). Para o desenvolvimento desta aborda-gem na prática escolar, é necessário um pro-grama educacional cuidadosamente determi-nado. A organização do ambiente de trabalho ajuda o surdocego a memorizar a disposição dos materiais permanentes facilitando sua ori-entação e mobilidade no espaço da sala de aula. O estabelecimento da rotina é fundamen-tal porque viabilizará melhores condições para a criança evocar, combinar e se orientar nas atividades do dia, podendo futuramente ante-cipar as atividades mediante o objeto de refe-rência da mesma. Para isto é importante colo-car estes objetos em um espaço definido (caixas de memória, mesa), segundo a seqüên-cia das tarefas a serem desenvolvidas no dia, de tal forma que quando a criança chegar à sala de aula possa tomar conhecimento da programação. Após a realização da atividade, o objeto de referência é retirado do local, indi-cando o fim da atividade (McInnes, 1999).

Método Participantes Participaram deste estudo duas crianças surdocegas, pré-lingüísticas, do sexo femini-no, sem outros comprometimentos aparentes, porém com atraso no desenvolvimento da co-municação. As crianças eram de famílias com baixo nível socioeconômico. As duas residiam em cidades do Distrito Federal distantes cerca de 35 km de Brasília. A identificação das alunas será 9I e 7G, os números representam a idade cronológica de cada uma durante o período de coleta de dados e as letras foram aleatórias. O compro-metimento auditivo e visual em ambas foi de-corrente da Síndrome da Rubéola Congênita. A 9I possui oito anos de experiência escolar na rede pública de ensino especial e a 7G, três anos.

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A 9I possui surdez profunda (106dB em orelha direita e 111dB em orelha esquerda, nas freqüências da fala 500, 1000 e 2000Hz). En-quanto 7G possui surdez profunda (130dB em ambas orelhas). As alunas não apresentavam capacidade auditiva funcional para ouvir e inte-ragir com o ambiente. Desta forma, não res-pondiam ao chamado verbal, bem como não conseguiam emitir palavras que pudessem ser compreendidas. Além disto, apresentavam difi-culdade em compreender as informações, defa-sagem para atender solicitações, seguir orienta-ções, manter um diálogo e antecipar situações. Elas não responderam a perguntas simples rea-lizadas (pela pesquisadora, professora e famí-lia) em sinais, gesto e fala, por exemplo: O que é isto? Quantos têm? Que dia é hoje? Em relação à deficiência visual a 9I tem atrofia de olho direito e apresenta catarata e glaucoma de ângulo fechado em olho esquerdo de difícil controle. Realizou quatro cirurgias de glaucoma (aos 4, 7, 8 e 9 anos), com prognósti-co de perda total de visão. A 7G foi submetida a quatro cirurgias de catarata (aos 9 meses, 4, 5 e 7 anos), apresenta visão apenas no olho direi-to. Quanto à funcionalidade visual a 9I a-presentava impedimento no campo visual peri-férico, dificuldades para detalhes, dificuldades de leitura de impressos com letra Arial menor que fonte 48 ou impressos apagados, necessita-va do sistema braile para leitura e escrita. A aluna 7G apresentava impedimento no campo visual central, necessitava de material impresso bem marcado. Ambas apresentavam dificulda-des em visualizar a lousa a mais de 1 metro de distância, sem sair do lugar (baixa acuidade visual para longe); realizavam acomodação e adaptação visual para identificar objetos de modo incomum (muito perto do globo ocular); realizavam aproximação dos objetos a 10 cm do globo ocular, percebiam sinais a 20 cm de distância. No caso da 9I era comum identificar sinais e letras do alfabeto dactilológico através do toque. Ressalta-se que o resíduo visual das alunas podia ser aproveitado no trabalho esco-lar, de orientação e mobilidade e no desempe-nho de atividades de vida diária, desde que o material fosse adaptado. As alunas apresentavam dificuldade em compreender as informações, defasagem para

atender solicitações, seguir orientações, manter um diálogo (com gestos ou sinais) e antecipar situações. Elas não responderam a perguntas simples realizadas em sinais, gesto e fala, por exemplo: O que é isto? Quantos têm? Que dia é hoje? Local e materiais As atividades realizadas durante este estudo foram desenvolvidas em locais habitu-ais para as alunas: a sala de aula e em suas resi-dências. Utilizaram-se, também, espaços públi-cos como: passeios em shopping, zoológico, “fast food”, lojas, parque da cidade, etc. Estes passeios contaram sempre com a presença de alguém da família. Os materiais foram planejados e confec-cionados em parceria com a professora de sala, segundo a necessidade de cada situação de a-prendizagem, entre eles: ficha de chamada em lixa e em botões de camisa na cor preta (simbolizando os pontos do sistema braile), fichas com diversos alfabetos, fichas tridimen-sionais da rotina-diária com objetos de referên-cia colados em papel cartão preto nas dimen-sões de 17 X 10 cm. Os objetos colados nesta base variavam de acordo com as atividades do dia. Assim, na ficha de segunda-feira foram colados miniaturas de lápis, colher, instrumen-to musical e pedaço de toalha, indicando as atividades de: sala de aula, lanche, música e natação. Organizaram-se, também, seis caixas de memória, confeccionadas com potes de sorvete com capacidade para dois litros. As caixas fo-ram identificadas com os números de 1 a 6 com sua respectiva representação. Dentro das caixas eram colocados os objetos e materiais referentes às atividades programadas. Foram confeccionados, também, cartões tridimensio-nais de identificação de ambiente. A base des-tes cartões foi feita em papel cartão preto nas dimensões de 22 X 17cm. Em cima desta base foram coladas miniaturas de objetos que fazi-am referência à atividade desenvolvida no inte-rior da sala, por exemplo, colocou-se uma bo-neca simbolizando a sala de atendimento a be-bês. Após haver obtido dos pais, o termo de consentimento e participação no estudo, foram desenvolvidas três fases de investigação: uma

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avaliação inicial do repertório das alunas em comunicação e conhecimentos relacionados à pré-escola, a intervenção e uma avaliação pos-terior à intervenção. Foram realizados 130 en-contros num total de 650 horas de atividade de campo, durante nove meses.

Avaliação inicial A avaliação inicial consistiu na realiza-ção de entrevistas com os pais, visita as resi-dências, leitura e análise de exames clínicos e relatórios educacionais, bem como na aplica-ção de tarefas próprias da sala de aula, respei-tando as características individuais de aprendi-zagem de cada aluna. Foram avaliadas cinco áreas do desenvolvimento: AVD, coordenação motora, linguagem, socialização e cognição. A avaliação inicial foi realizada no mês de abril. Durante a avaliação inicial buscou-se avaliar os seguintes aspectos do desenvolvi-mento: orientação temporal (fazem uso do ca-lendário, qual a noção de tempo que as alunas possuem?), orientação espacial (orientação e mobilidade), conceito corporal (conhecem e registram todas as partes do próprio corpo), atividade de vida diária (são independentes?), estimulação auditiva (percebem, localizam, discriminam sons? Quais?), leitura (reconhecem letras, palavras em códigos dife-rentes?), escrita (realizam escrita espontânea, fazem uso de pseudoletras ou letras?) e mate-mática (conhecem os algarismos? Quantifi-cam?). As áreas mencionadas possibilitaram avaliar os recursos de comunicação receptiva e expressiva utilizados pelas alunas. Observou-se nas atividades como elas manipulavam os obje-tos: se o faziam ao acaso, isto é, se os utiliza-vam inadequadamente, não distinguindo nem analisando como são; ou se utilizavam os obje-tos de maneira funcional; ou ainda, se os mani-pulavam de forma criativa e simbólica; ou en-tão, se brincavam com os objetos reinventando coisas do mundo. Todas as atividades foram apresentadas para as alunas por meio dos seguintes recursos de comunicação: sinal, gesto, fala, expressão facial e corporal, contração ou relaxamento da musculatura, objetos de referência, escrita im-pressa e em braile e exemplos, isto é, muitas vezes foi necessário demonstrar o que estava

sendo solicitado. Intervenção Após uma análise prévia do desempe-nho e das habilidades das alunas durante a avaliação inicial, deu-se prioridade na inter-venção as seguintes áreas do desenvolvimen-to: linguagem (exposição a vários meios de comunicação alternativa), socialização (ampliação dos contatos com ambientes e pes-soas), cognição (ênfase em atividades envol-vendo conceito corporal, leitura e escrita, ma-temática, orientação espacial e temporal), ori-entação e mobilidade. Trabalharam-se as á-reas: AVD, motricidade, treino de visão sub-normal (TVS) e treino auditivo com base na integralização dos conteúdos. O método da estimulação multi-sensorial (EMS), foi enfatizando durante a intervenção uma vez que prevê a apresentação diferenciada da mesma informação através da ação, do pensar e do fazer associados ao con-teúdo emocional e motivacional, conforme destaca Bruner (1976). Neste processo, teve-se o cuidado de conhecer e determinar a via de sentido mais eficiente para cada aluna (9I por meio da via tátil-cinestésica e 7G pela via visual). Exemplificando o método da EMS: contornava-se o corpo de uma aluna na lousa, depois a estimulava para que contornasse com seu dedo a forma desenhada. Através desta atividade combinava a estimulação tátil-cinestésica do toque e do traçado com a visu-al. Quando ocorria dispersão visual, dirigir o olhar para outros estímulos, a pesquisadora se aproximava e segurava na cabeça da aluna, de modo que seus olhos fossem direcionados para o desenho. Combinando com a aproxi-mação realizava-se o encorajamento verbal estimulando a audição através da vibração do corpo. Tendo em vista o método da EMS pla-nejou-se as atividades de modo a articular os conteúdos presentes em uma mesma tarefa. Para tanto, estabeleceu uma rotina de trabalho que teve por objetivo situar as alunas num espaço e num tempo definidos e concretos, conforme Cader e Costa (2000). Foram pro-gramadas e executadas as seguintes ativida-des: (a) música e oração de entrada (realizada por toda escola), (b) orientação espacial

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(quantificação das portas e leitura das indica-ções táteis do percurso); (c) conversa de roda (temas selecionados com a família); (d) calen-dário (compreensão da mudança cíclica dos dias); (e) chamada (identificação do próprio nome); (f) merenda; (g) recreio, e (h) novida-des (passeios, dramatização de histórias, jogos com e sem a participação dos pais). As atividades tiveram em comum os se-guintes procedimentos: (a) demonstração con-textual por meio da representação corporal do conteúdo; (b) segmentação de uma palavra (sinal) geradora presente na representação; (c) repetição da representação com ênfase na pala-vra (sinal); (d) apresentação do registro alfabé-tico em escrita ampliada e braile associado a letras avulsas; (e) Tadoma (percepção tátil da fala); (f) fixação escrita no plano vertical e, depois no horizontal, conforme Séguin (1846 apud Costa, 1994); (g) representação sócio-cultural do significado; (h) fixação do registro escrito através de várias formas de ditado; (i) generalização e aplicação da aprendizagem. No caso, do ensino de palavras, as ati-vidades tiveram em comum os seguintes proce-dimentos: 1. demonstração contextual por meio de representação corporal total da situação (Cader, 1997). Exemplifi-cando: o encontro vocálico "OI", não era intro-duzido como tal, mas como uma interação em uma situação contextual criada para este fim. Para isto a pesquisadora pegava a bolsa e avi-sava que ia sair, andar. De repente ela encon-trava com uma amiga, a vê e a cumprimenta /Oi/ (fala acompanhada de sinal), dando dois beijos na face da mesma. Esta cena se repetia várias vezes, alternando os participantes, até que as alunas conseguissem entender o signifi-cado social e cultural da palavra /oi/. Neste exemplo, têm-se: (a) movimento, ação global; (b) fala; (c) dactilologia; (d) sinal; (e) represen-tação cultural e social do ato (beijos na face, de acordo com o costume local); 2. segmentação da palavra em unidades. Realizava-se a aproximação das letras avulsas ou das fichas contendo o registro das letras. No caso citado da palavra ”oi”, realizava-se a aproximação das unidades (o e i) acompanhada da emissão “oi”. A emissão da unidade "o" era prolonga-da até que a união entre a vogal "o" e "i" ocor-resse, conforme procedimento descrito por

Costa (1997); 3. repetição da brincadeira, usada no item 1 encon-tro casual (no caso de duas amigas); 4. apresentação do registro alfabético em escrita ampliada associada a letras avulsas; 5. percepção tátil da produção do som. A aluna posi-cionava sua mão na face da pesquisadora, quando esta realizava a marcação fonológica das unidades da palavra e da associação das mesmas; 6. fixação do registro escrito da palavra no plano ver-tical (lousa), depois no horizontal; 7. representação contextual, social e cultural do signi-ficado durante o recreio; 8. fixação do registro escrito no plano horizontal, medi-ante diferentes formas de ditado: - ditado oro-tátil (a pesquisadora falava e a aluna realizava a leitura oro-tátil); - a aluna emitia o som e a pesquisadora ou professora registrava-o; - realizava-se a leitura do registro escrito: si-nal, fala e dactilologia; - ditado dactilológico (realizava-se a soletra-ção digital e a aluna registrava); - aluna soletrava a palavra e a pesquisadora ou professora a registrava; - pesquisadora ou professora realizava o sinal e a aluna registrava a palavra; - aluna realizava a leitura do registro através do sinal, fala, dactilologia.

Caso houvesse alguma correção, as alu-nas eram orientadas a realizarem a comparação entre o modelo correto e o próprio registro. 9. generalização e aplicação da aprendizagem. No exemplo citado da palavra "Oi", a pesquisadora estimulava as alunas a cumprimentarem pesso-as conhecidas na escola. Para isto, juntas, du-rante o recreio, a pesquisadora cumprimentava as pessoas de forma que as alunas conseguis-sem acompanhar o movimento do sinal. Depois cada aluna era estimulada a repetir a ação, atra-vés dos seguintes passos: - marcava a soletração dactilológica da pala-vra "oi"; - realizava o sinal no espaço, tendo a mão da aluna sobreposta à mão da pesquisadora; - tocava com o dedo indicador a parte inferior dos lábios de cada aluna, impulsionando-o para frente, para lembrá-la da emissão da pala-vra. Este procedimento fez-se necessário na interação com crianças cegas;

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10. registro escrito em braile, mediante o uso do brailex e larabraile (materiais produzidos pela instituição Laramara situada em São Paulo), e máquina braile modelo Perkins.

Portanto, o procedimento mencionado priorizou a ação (movimento e representação), estimulou à síntese visual (gráfica), a síntese oro-tátil (vibração da emissão verbal). Além disto, incentivou a utilização de diferentes for-mas de registro (soletração dactilológica, braile digital, fonológica, gráfica, letras avulsas), re-presentação em Libras, aplicação e generaliza-ção do significado contextual, social e cultural da palavra. Buscou-se manter uma rotina de trabalho marcada pela regularidade e freqüên-cia destes procedimentos, com vistas a ampliar e diversificar o vocabulário. A título de exem-plo descrever-se-ão outras atividades que fize-ram parte da rotina. 1. Música. Teve por objetivo familiarizar os sujeitos com a seqüência, o ritmo e a melodia dos sinais e com a atividade comum aos de-mais alunos da escola. A interpretação em Li-bras era realizada pela pesquisadora, que ficava em frente à aluna (9I), no mesmo nível. Nesta posição, realizavam-se as seguintes etapas: (a) marcação de cada sinal de forma lenta; (b) re-petição dos sinais através do movimento co-ativo; (c) realização dos sinais no campo visual ou no braço, mão da aluna; (d) indicação da música, através do sinal de referência.

2. Orientação espacial. Teve por objetivos (a) explorar as relações entre os objetos no espaço; (b) locomover-se; (c) quantificar as portas exis-tentes a partir de um referencial; (d) identificar o espaço através dos indícios táteis e cinestési-cos associados à via visual durante a locomo-ção, conforme lembram Huebner et al. (1995). As alunas eram estimuladas e orientadas a res-peito das pistas táteis presentes na parede e no piso da escola, bem como quantificar as portas. Assim, com a mão fechada e tendo a mão da pesquisadora abarcando a mão de uma aluna, liberava-se para cada porta um dedo da mão da aluna e os demais permaneciam na posição original. No início, esta atividade foi realizada de maneira co-ativa, com ajuda total, depois com ajuda parcial, por fim a realização era in-dependente. Outra técnica consistiu no uso de objetos de referência para identificar as salas da escola

segundo a modalidade de serviço oferecido. O objetivo foi proporcionar as alunas à oportunidade de comparar os objetos, identifi-car a mudança do espaço físico e orientar-se em relação à seqüência de atividades e a mo-dalidade do atendimento, bem como se deslo-car de uma sala para outra de forma autôno-ma. Deste modo, elas eram estimuladas a en-contrar salas, ou ainda, a levarem ou busca-rem material em salas diferentes. 3. Conversa de roda. Teve por objetivo am-pliar o vocabulário em sinais, palavras e ex-pressões mediante a alternância de turnos de conversação. Inicialmente, estes momentos se restringiram a perguntas realizadas pela pes-quisadora com indução das respostas.

4. Calendário. Teve por objetivo possibi-litar às alunas condições para se situarem em relação a: (a) atividade (começo, meio e fim); (b) sucessão das situações de aprendizagem em espaços distintos e com outros profissio-nais; (c) renovação cíclica dos períodos (dias da semana, meses), e (d) compreensão do ca-ráter irreversível do tempo (segunda-feira já passou). Enfatizou-se um tempo dinâmico, envolvendo relações de passado, presente e futuro dos acontecimentos. Para tanto, utiliza-ram-se os seguintes materiais: ficha tridimen-sional (3D): rotina diária e do tempo; ficha 2D nomes: dia, mês e ano; calendário adaptado e caixa de memória, conforme descritos anteri-ormente.

A atividade do calendário foi dividida em três partes: (a) tempo; (b) dia da semana e do mês, e (c) organização da caixa de memória. O item referente ao tempo foi explorado em seis etapas, são elas: (1) pegar as fichas 3D-tempo; (2) ir para o pátio; (3) selecionar as fichas representativas do dia (sol, frio etc.); (4) retornar à sala de aula; (5) representar na lousa e depois no papel as condições do dia; (6) guardar as fichas. Inicialmente, as etapas eram orientadas pela pesquisadora, depois pela professora, no final as alunas as realiza-vam sem ajuda. O item referente ao dia da semana e do mês consistiu em um processo de sete etapas: (1) realizar a identificação e reconhecimento de cada ficha 3D: rotina diária; (2) marcar o dia da semana; (3) estabelecer a correspon-dência entre o sinal e nome; (4) soletrar o no-

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nome do dia; (5) identificar as atividades do dia; (6) identificar e distinguir o dia com uma fita; (7) guardar as fichas 3D: rotina diária no quadro de pregas. No final do primeiro semes-tre estas fichas passaram a orientar a organiza-ção das caixas de memória, só depois desta organização que as fichas (3D: rotina diária) eram guardadas no quadro de pregas. 5. Chamada. Esta atividade era realizada com fichas 2D: nomes (lixa e braile), e teve por objetivo trabalhar a leitura e escrita no nível da palavra mais próxima das alunas, despertando o interesse pelo próprio nome, reconhecendo-o enquanto uma identidade pessoal e intransferí-vel. A chamada constituiu-se em uma estraté-gia de ensino para conteúdos específicos, entre eles: (a) reconhecer as letras do alfabeto e do sistema braile; (b) comparar letras no próprio nome; (c) comparar letras entre nomes diferen-tes; (d) relacionar letra impressa com a dactilo-logia; (e) relacionar letra impressa com o fone-ma (via Tadoma); (f) quantificar as letras e /ou vogais iguais; (g) identificar a letra inicial e final; (h) realizar o registro espontâneo do no-me; (i) copiar o nome com apoio visual, tátil e com ajuda, etc.. O procedimento consistia na apresenta-ção de uma ficha por vez. Às vezes as fichas eram apresentadas na mesa, outras vezes reali-zava-se a atividade em pé, no mesmo plano das alunas. Realizava-se a leitura do nome através da soletração manual, do movimento labial acompanhado de sons e da marcação do seg-mento da leitura (da esquerda para direita). Com isto introduzia-se o segmento da leitura e a representação da composição quirêmica do sinal em Libras para a palavra “nome”. Duran-te toda a atividade questões eram realizadas: "de quem é este nome?" "Nome é seu?" "É seu?" "Este nome é dela?". Após a identifica-ção e registro as fichas eram colocadas no qua-dro de pregas.

Avaliação final Na avaliação final realizou-se entrevistas com os pais e aplicou atividades semelhantes àque-las da avaliação inicial, porém com um maior grau de dificuldades, no mês de dezembro. As-sim, com relação ao conceito corporal, foi soli-citado às alunas que desenhassem no papel a representação do corpo humano, tendo sido

dado apenas o comando. Quanto à leitura foi disponibilizado le-tras (em vários alfabetos) e palavras já ensina-das na escola. Avaliou-se a capacidade das alu-nas em reconhecer, decodificar e conceituar as palavras contextualizadas (rótulos) e isoladas. A escrita foi avaliada através do registro escrito de uma situação vivenciada em sala (escrita espontânea) e do ditado de palavras conhecidas pelas alunas. Em matemática avali-ou-se a distinção dos numerais de letras, rela-ção entre quantidade e sua representação nu-mérica, organização da seqüência de 1 a 6 na ordem crescente e decrescente, registro da se-qüência numérica de 1 a 10, agrupamento em diferentes bases (3, 4 e 5), participação em jo-gos respeitando as regras dos mesmos, reco-nhecimento e identificação dos antecessores e sucessores de 1 a 6.

Resultados e Discussão Para analisar os dados utilizaram-se a abordagem qualitativa (análise de conteúdo - Lüdke e André, 1986; Marcuschi, 1998) e quantitativa (freqüência e percentagem). Proce-deu-se a uma análise específica do desempenho de cada aluna, nas atividades propostas durante as fases da pesquisa. Os resultados foram quan-tificados segundo as menções estabelecidas (B para baixo desempenho, M para médio desem-penho e A para alto desempenho). Foram realizados 130 encontros com as alunas, num total de 650 horas. Nestes encon-tros, verificou-se que a 9I freqüentou 58% e a 7G apenas 14% do previsto. Vale ressaltar que ambas residem em cidades satélites de Brasília, a uma distância aproximada de 40 (9I) e 30 (7G) km da escola. Apesar da distância, os lo-cais são de fácil acesso, neste sentido a distân-cia não pode ser considerada uma justificativa para o não comparecimento às aulas, pois elas possuíam passe livre com direito a acompa-nhante. Em decorrência das dificuldades dos pais em garantir a presença da filha 7G às aulas foi sugerido à família que a aluna passasse a usar o transporte da Associação de Deficientes Visuais de Brasília. Apesar do receio da mãe, os pais aceitaram a sugestão. Assim, no segun-do semestre 7G passou a utilizar o referido transporte e sua freqüência passou de 28% para

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39% no segundo semestre. Apesar do índice não chegar a 50% nota-se que houve um maior comparecimento às aulas, sendo que suas faltas passaram a serem justificadas pela família. Este contexto configurou-se em uma variação na intensidade e duração dos atendi-mentos oferecidos a 7G, fato não previsto no projeto inicial da pesquisa. Assim, apesar dela ter freqüentado apenas 123 horas-aulas de um total de 650, apresentou um bom aproveita-mento em todas as áreas do desenvolvimento enfatizadas durante este estudo. Esta informa-ção permitiu inferir que apenas a intensidade e duração dos atendimentos, por si só não são determinantes da aprendizagem e desenvolvi-mento, mas sim a qualidade e as condições pedagógicas dos atendimentos oferecidos no espaço escolar e familiar. A Figura 1 apresenta os resultados obtidos por 7G nas avaliações de abril e dezembro.

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Desempenho da aluna 7G em abril

0

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baixo médio alto

freqü

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AVD motor linguagem social cogniçãoDesempenho da aluna 7G em dezembro

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baixo médio alto

freqü

ênci

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AVD motor linguagem social cognição

Figura 1. Desempenho da aluna 7G, nas áreas avaliadas durante a pesquisa.

Observa-se na Figura 1 que a 7G obteve em abril um desempenho, predominantemente baixo em todas as áreas do desenvolvimento avaliadas, principalmente, em: coordenação motora fina, linguagem, e cognição. Este resultado é compa-

tível com os comportamentos apresentados no início deste estudo, entre eles: mostrava-se apática em relação ao espaço escolar e às pes-soas, produzia barulhos intensos e constantes ao manipular objetos, não possuía o hábito de fechar (ou encostar) a porta do banheiro ao utilizá-lo. Em qualquer espaço da escola, ti-nha o hábito de levantar a roupa para arrumar as peças do vestuário de baixo. Os recursos de comunicação expressiva utilizados restringi-am-se a: gritos, birra, choro, movimentos cor-porais, pontapés, gestos naturais, bem como possuía o hábito de conduzir as pessoas pelo braço para alcançar o objeto de seu desejo.

Em relação às atividades de vida diária 7G, durante a avaliação inicial, apresentou um melhor desempenho, provavelmente, as carac-terísticas intrínsecas desta área contribuíram com este resultado. Como o universo social da 7G era restrito ao contexto familiar no qual as dificuldades de comunicação eram o principal conflito vivenciado e descrito pela família, o resultado apresentado em abril evidencia o que a 7G conseguiu aprender e desenvolver segundo as condições sócio-culturais dadas. Apesar de sua baixa freqüência no pri-meiro semestre letivo, há um progressivo e surpreendente resultado no desempenho da 7G em dezembro, em todas as áreas do desen-volvimento. Entre as mudanças comportamen-tais destacam-se: atenção compartilhada, inte-resse em aprender sinais mediante a imitação e repetição dos mesmos de forma contextuali-zada ou não. Passou a fazer uso da letra inicial do nome de algumas pessoas para referir-se a elas em sua ausência ou presença. Em decorrência das alterações positivas no comportamento apresentado pela 7G, no-tou-se a redução de fatores estressantes pre-sentes no ambiente familiar, principalmente em relação às condições de interação dos pais com a filha, como se pode perceber nas falas: “agora eu entendo minha filha”; “minha filha agora é outra. Eu falo para ela ficar sentada, ela fica” (mãe). O desempenho da 9I nas avaliações realizadas em abril e dezembro nas áreas do desenvolvimento enfatizadas durante a coleta de dados, consta na Figura 2. Observa-se na Figura 2 que a 9I obteve em abril conceitos mais altos nos comporta-

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mentos relacionados a AVD e motor. Em rela-ção à linguagem, socialização e cognição al-cançaram conceitos baixos com destaque para a área da linguagem. Estes resultados são com-patíveis com os comportamentos apresentados durante a avaliação inicial, entre eles: dificul-dades na realização de movimentos adequados para a higiene bucal; produção de barulhos a-través da ação de arrastar os objetos permanen-tes da sala de aula; desinteresse em conhecer os detalhes dos rótulos de produtos como cor, for-ma, cheiro ou pistas táteis; desconhecia o signi-ficado das pistas táteis permanentes na escola, apesar de já freqüentá-la há dois anos.

Figura 2. Desempenho da aluna 9I nas áreas avaliadas durante a pesquisa. Além dos comportamentos mencionados, a 9I apresentava atenção compartilhada, desde que o adulto utilizasse vocativo de chamada, suas respostas aos estímulos eram induzidas. Quando não conseguia entender a informação ela imitava os sinais, gestos e movimentos do interlocutor. Durante a intervenção, demons-trou respostas progressivas evidentes em rela-ção ao processo de aprendizagem dos conteú-dos. A partir de agosto 9I passou a utilizar e

combinar os recursos distintos de expressão (gesto, registro escrito, sinal, dactilologia, fala, representação funcional da situação) nas intera-ções no meio familiar e escolar. Com isto hou-ve uma redução do estresse dos pais em relação às condições de interação com a filha, confor-me mostra as falas: “agora é mais fácil enten-dê-la”; “agora eu posso sair e falar aonde eu vou, que ela fica me esperando. Ela agora me entende” (mãe). Portanto, os resultados evidenciaram um progressivo e evidente desenvolvimento das possibilidades de intervenção com surdocegos. Situações inesperadas como a baixa freqüência da 7G nas atividades de sala de aula geraram indícios de que a combinação das variáveis: (a) diversificação das experiências vivenciadas em relação ao local, tema e situações; (b) interação entre profissionais e a família; (c) respeito à diversidade e as condições apresentadas inici-almente pelas alunas e suas famílias; (d) orien-tação teórica de van Dijk, principalmente, às fases de nutrição e movimento co-ativo; contri-buíram com a aprendizagem e desenvolvimen-to obtido pelas alunas no final da coleta de da-dos. Ao longo do desenvolvimento deste es-tudo foi possível constatar que não há distinção na relação triádica entre professor, aluno sur-docego e conhecimento desde que seja: (a) res-peitados as características e necessidades; (b) oferecidas condições adequadas de acesso à informação, mobilidade e comunicação; (c) otimizados os recursos de comunicação apre-sentados pelos alunos mediante procedimentos adequados. Com este estudo foi possível constatar a necessidade de se proporcionar ao professor regente apoio e formação em serviço em rela-ção à aprendizagem e ao aperfeiçoamento de competências específicas e necessárias no tra-balho com alunos surdos (conhecimento da Libras); com cegos (sistema braile, sorobã e técnicas de adaptação e ampliação de material), e com surdocegos (objeto de referência, movi-mento co-ativo, ressonância, técnica de adapta-ção de sinais e letras, Tadoma). Todo este qua-dro precisa estar em um espaço pedagógico no qual alunos, pais e profissionais possam cres-cer como seres que se respeitam. Enfim, os dados evidenciaram que:

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Desempenho da aluna 9I em abril

0

50

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baixo médio alto

freqü

ênci

a de

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AVD motor linguagem social. cogniçãoDesempenho da aluna 9I em dezembro

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baixo médio alto

freqü

ênci

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AVD motor linguagem social cognição

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quando a criança surdocega possui no seu am-biente familiar e escolar uma reciprocidade e disponibilidade na utilização diversificada de recursos de comunicação, suas condições de aprendizagem se ampliam melhorando suas interações com seu meio físico e humano e, conseqüentemente, deste para com ela. A teoria de van Dijk (1968) mostrou-se básica na estimulação da aprendizagem de sis-temas alternativos de comunicação em crianças surdocegas, desde que consideradas suas parti-cularidades e as especificidades de seu contex-to histórico, social e cognitivo. Neste processo, é importante não perder de vista que qualquer deficiência influencia o estabelecimento das relações interpessoais e exige a organização de novos padrões de interação. Para isto, as fases de nutrição, ressonância, movimento co-ativo e uso do objeto de referência consistiram nos pilares básicos para o apoio e a ampliação dos recursos de comunicação utilizados pelos parti-cipantes deste estudo. A realização dos movimentos co-ativos na apresentação de objetos, gestos, sinais ou dactilologia se mostrou uma estratégia bastante eficiente na medida em que proporcionou uma margem de segurança para as alunas explora-rem de forma sistematizada o ambiente próxi-mo, bem como contribuiu com a superação das dificuldades de configuração das mãos na reali-zação dos sinais ou das letras do alfabeto dacti-lológico. Os dados obtidos durante a intervenção levaram a redefinir o papel do objeto de refe-rência na comunicação com surdocegos, uma vez que, inicialmente, não era possível compa-tibilizar a atenção das alunas em relação à in-formação funcional do objeto com os comple-mentos da interação entre os participantes. Foi necessário primeiro canalizar a atenção das alunas para a pesquisadora, desenvolvendo assim a atenção compartilhada e, só depois, apresentar o objeto de referência. Com isto, evitou-se a interação privilegiada entre sujeito e objeto presente no comportamento apresenta-do pela 7G, e introduziu-se a importância do outro na exploração do objeto do conhecimen-to. Durante a pesquisa foi possível constatar que as alunas demonstravam motivação para a conversação, sendo os movimentos coordena-

dos à forma encontrada por elas para exterio-rizar o interesse no estabelecimento e manu-tenção das relações interpessoais. Provavel-mente, esta característica que emergiu nos resultados seja pertinente à tese de Chomsky (1973) sobre a existência nos seres humanos de uma programação inata destinada a desen-volver aptidões para a linguagem. Porém, a presença apenas da motivação para a conversação não promoveu uma intera-ção prazerosa. A motivação constituiu-se no passo inicial do processo, no entanto a função cultural da comunicação demonstrou que: (a) o apoio às intenções comunicativas das alu-nas, interpretando suas contribuições com ba-se no contexto imediato e no objeto; (b) a ex-posição delas aos modelos alternativos de conversação; (c) a participação em experiên-cias de interação apropriadas e adaptadas às particularidades da surdocegueira, evitando sua exclusão das atividades promovidas no âmbito escolar e familiar; foram condições que contribuíram com a ampliação dos recur-sos de comunicação das alunas. Este fato re-percutiu positivamente no ambiente familiar promovendo novos padrões de interação. En-fim, não há um único fator desencadeador do desenvolvimento da comunicação, mas uma série de situações que se relacionam, determi-nam e reforçam-se mutuamente promovendo formas específicas de comportamento. Os resultados nas áreas de AVD e mo-tricidade (coordenação e controle dos grandes e pequenos músculos) mostraram que a surdo-cegueira não comprometeu o acesso das alu-nas a estes conhecimentos e, principalmente, a aprendizagem e desenvolvimento de habilida-des a eles relacionadas. No entanto, quando se passa do nível do contato com objetos concre-tos e manuseáveis para o nível abstrato das relações e interações entre indivíduos da mes-ma espécie e do conteúdo cultural, verifica-se que o grau de acesso pelos surdocegos altera-se. Esta alteração evidencia a necessidade de adaptação que promova as condições adequa-das de aprendizagem. Este resultado confir-mou o que a literatura da área evidencia como uma das principais implicações da surdoce-gueira: acesso à comunicação expressiva e receptiva (Watkins e Clark, 1991; Wheeler e Griffin, 1997).

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Considerações finais A teoria do crescimento da consciência simbólica de van Dijk viabilizou condições específicas para promover o desenvolvimento da comunicação entre a criança surdocega e o ambiente, rompendo a barreira imposta pela deficiência. As duas participantes deste estudo passaram a compreender e fazer uso do voca-bulário da língua de sinais e da dactilologia, no entanto para atingirem este nível precisaram compreender a existência, as funções e os efei-tos da comunicação no meio e, isto, foi possí-vel pela via gestual e só depois pelo sinal. Evidenciou-se com este estudo a impor-tância dos programas educacionais especializa-dos destinados a oferecer o máximo de oportu-nidades com atividades variadas para que os surdocegos possam engajar-se de forma ativa e criativa no ambiente. Para isto, é necessário ter o veículo de contato com eles. Somente depois de vencer o isolamento no qual se encontra é que os programas poderão ser desenvolvidos em sua essência. Desta forma, todo o trabalho inicial precisa concentrar-se no desenvolvi-mento da habilidade de comunicação. Em fim, este estudo permitiu constatar que a aprendizagem de recursos alternativos de comunicação é possível com repercussão nas outras áreas do desenvolvimento humano. Isto leva a afirmar que se o objetivo do trabalho educacional for à comunicação, então a exposi-ção dos surdocegos a todos os recursos possí-veis e disponíveis de comunicação é o meio mais viável e promissor para atingir a meta. Se o objetivo da educação for a aprendizagem da linguagem oral, o Tadoma se mostra um méto-do eficiente para alcançar esta meta. No entan-to, se o objetivo da educação for sua escolari-zação, então neste caso, sua exposição a recur-sos variados e distintos de comunicação pode não ser o melhor caminho. Este fato demanda a realização de pesquisas básicas na busca de novas descobertas.

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Enviado em Novembro / 2003

Aceite final Março / 2005

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A relação fraterna de crianças com cegueira congênita: estudo de três casos

The sibship relation of blind children relationship: three cases study

Fernanda Vilhena Mafra Bazona, e Elcie Fortes Salzano Masinib

aUniversidade Estadual de Londrina, Departamento de Educação, Brasil; bUniversidade de

São Paulo, Faculdade de Educação, Brasil Resumo Esta pesquisa tratou da relação de crianças com cegueira com seus irmãos mais velhos e teve como objetivo buscar a compreensão de como essa relação se configura. Apoiou-se na abordagem qualitativa seguindo os procedimentos metodológicos definidos por Lüdke e André (1986), buscando analisar os dados a partir de categorias definidas levando em conta os objetivos da pesquisa e o conteúdo das entrevistas e do Teste das Fábulas embasado em referencial psicanalítico. Os sujeitos de pesquisa foram três mães de crianças com cegueira e seus filhos com a idade de nove ou dez anos. Foram realizadas entrevistas com todos os sujeitos. Os dados obtidos apontam que as crianças com cegueira buscam em seus irmãos fonte de prazer, companheirismo e modelos de identificação, mesmo quando possuem uma relação conflituosa. Os achados desta pesquisa confirmaram que esta relação influencia o desenvolvimento dos indivíduos e sugerem que são necessários outros estudos acerca deste tema. © Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178. Palavras-chave: cegueira; relação fraterna; relação familiar; criança. Abstract This is a research involving the relationship among congenital blind children and older siblings. The research targets, the understanding of how is the blind children relationship with their older siblings by conducting interviews with them and their parents. The presently study is supported by qualitative focus and follow the methodological procedure defined by Lüdke and André (1986). The study seeks to analyze the data with defined categories by the objectives of the study and the interview and legend test based in the psychoanalytic theory. Three congenital blind children and their mothers were taken as subjects for this research. The children ages were nine or ten years old. Interviews were carried out with mothers and children, and the legend test was applied with the children. Drawn conclusion from data collection points out that blind children, even in a brotherly conflicting relationship, find on the siblings a pleasurable source, companionship and most of times a self identification model. The research findings stress the point that the brotherly relationship is highly important for the congenital blind children development, suggestions are made for additional studies to be taken over this fact in order to lead our knowledge to a broader understanding over this subject.© Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178. Keywords: blindness; sibling relationship; family relationship; children.

Artigo Científico

Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008

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1. Introdução

Esta investigação enfoca depoimentos de crianças com cegueira congênita ou adquirida até um ano de idade, e também de seus pais sobre o relacionamento com irmão(ã) mais velho(a) sem deficiência, buscando assim a compreensão de como se dá essa relação.

Apesar de publicações sobre relações familiares afirmarem que a relação fraterna é de extrema importância na vida de um indivíduo e que constitui também a primeira experiência social, de papéis sexuais, da linguagem, entre outras, as pesquisas brasileiras a esse respeito são escassas, ainda mais no que se refere às deficiências (Villela, 1999).

Esta escassez foi comprovada a partir de levantamento bibliográfico nas Bibliotecas do Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), nas bibliotecas da Universidade de São Paulo, da Universidade de Campinas e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo utilizando os seguintes descritores: sibling relation, siglingship, sibship, blind and sibling, cegueira, relação fraterna, relação entre irmãos, irmãos e cegueira, família e cegueira.

No âmbito dos estudos acerca das relações familiares, McKeever (1983) e Bank e Kahn (1982) ressaltam que pouco se fala na relação entre irmãos, predominando pesquisas sobre a relação entre pais e filhos e mais especificamente entre mãe e filho. Dunn (1988) fez uma revisão bibliográfica sobre a interação entre irmãos quando um deles possui uma deficiência, chegando à conclusão de que essa questão permanece sem esclarecimento devido a duas razões principais: existência de poucos estudos dedicados a analisar separadamente os efeitos da presença de uma criança com deficiência no desenvolvimento da criança normal e a falta de observações diretas e documentadas do relacionamento fraterno e sua relação com a formação da criança.

A relevância em buscar compreender a relação entre irmãos e seu significado para a criança abre possibilidades de entendimento sobre uma relação constitutiva do ser humano que pode influenciar a pessoa do seu nascimento à sua morte. O entendimento das particularidades dessa relação para a criança com cegueira proporciona a aproximação da forma de perceber, sentir, agir da mesma como integrante e atuante desse relacionamento.

Masini (1994, 1997) ressalta em seu trabalho que, para a compreensão do indivíduo com cegueira, é preciso levar em consideração que ele possui um referencial perceptual desconhecido para os videntes, e que a constante comparação entre pessoas com cegueira e videntes não fornece esclarecimentos sobre o desenvolvimento da pessoa com cegueira e seu posicionamento no mundo. Faz-se necessário então, enfocar a pessoa com cegueira considerando o seu referencial perceptual, isto é, a sua forma singular de perceber e interagir no mundo.

Ouvir pessoas com cegueira pode ajudar e nortear a compreensão das mesmas, não mais a partir da falta da visão, mas, sim do uso dos sentidos que propiciem seu contato e apreensão do mundo. Assim, nesta investigação os dados foram analisados sem qualquer comparação entre crianças com cegueira e videntes, respeitando assim suas singularidades.

Para se ter claro as características dos sujeitos que fizeram parte desta pesquisa é relevante assinalar o conceito de cegueira utilizado. A partir da resolução adotada pelo Conselho Internacional de Oftalmologia em Sidnei, Austrália, em 20 de Abril de 2002, cegueira pode ser definida como a perda total de visão nas quais os indivíduos precisam contar predominantemente com habilidades de substituição da visão (Conselho Brasileiro De Oftalmeologia, 2002).

Quanto à cegueira congênita, pode-se caracterizá-la como a que se manifesta no nascimento ou logo depois dele, estando geralmente relacionada com pigmentação difusa atípica, diminuição dos vasos da retina e atrofia do nervo óptico (Rey, 1999).

Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & CogniçãoSubmetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008

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As pesquisas dedicadas ao estudo da relação entre irmãos de crianças com deficiência apontam que, freqüentemente, as necessidades dos irmãos de uma criança com deficiência são negligenciadas por pais e professores, já que na maior parte das famílias as necessidades da criança com deficiência são colocadas em primeiro plano (Vadasy et al., 1984).

No que se refere especificamente à relação fraterna de crianças com cegueira, uma pesquisa foi desenvolvida por Lavine (1977) com cinco crianças com cegueira congênita, brancas e sem nenhuma outra deficiência, buscando entender sua relação com seus irmãos. A amostra consistiu em dois meninos e três meninas, sendo que um menino e uma menina possuíam dois irmãos mais novos e o restante possuíam de um a cinco irmãos mais velhos, sendo eles os caçulas.

Esta investigação fez parte de uma pesquisa maior, realizada por Selma Fraiberg, Universidade de Michigan, com duração de 7 anos. Foi constatado que as expectativas existentes na relação entre mãe e bebê influenciam grande parte do desenvolvimento deste. Este fato não é diferente quando se trata de um bebê com cegueira; portanto, essas expectativas influenciam a extensão das oportunidades de aprendizagem abertas para a criança com cegueira na idade pré-escolar e o nível de interação social que a mesma pode desenvolver.

Na interação entre pais e filhos com cegueira, um ponto destacado por esta pesquisa foi que muitas vezes ocorre a monopolização da atenção pela criança com cegueira, já que esta realmente precisa de um acompanhamento prolongado. Ao não possuírem expectativas em participar de jogos e atividades espontâneas, as crianças com cegueira têm menos oportunidade de construir seu papel na família do que seus irmãos (Lavine, 1977).

A ordem de nascimento foi outro fator evidenciado por Lavine (1977) que deve ser levado em conta, pois influencia de maneira marcante os comportamentos dos indivíduos. Experiência, desenvolvimento físico e expectativas paternas são fatores que colocam o primogênito em uma situação de liderança. Por outro lado, quando a criança com cegueira é a última a nascer, o fato de ser considerada o bebê da família pela posição na constelação familiar exacerba sua condição.

Ao fim da pesquisa, Lavine (1977) concluiu que:

• Não há diferença significativa entre a interação fraterna dessas crianças e das crianças videntes; • A relação entre irmãos oferece uma oportunidade para a criança com cegueira desenvolver comportamentos que a ajudam a adaptar-se à cegueira; • A autora ressalta que, nos casos estudados, houve uma grande influência dos pais como fator externo no relacionamento dos irmãos e lista as características observadas: • Expectativas rígidas acerca do papel do irmão com relação à criança com deficiência; • Sentimentos ambivalentes no que se refere a atender a demanda do filho com deficiência, mas ao mesmo tempo não prejudicar o irmão; • Dificuldade em notar as necessidades de cada filho separadamente; • Dificuldade na inserção da criança com cegueira na dinâmica familiar; • Influência dos pais na relação fraterna impedindo situações espontâneas (Lavine, 1977).

A conclusão deste estudo aponta para a impossibilidade do entendimento da relação

fraterna como um fenômeno isolado, pois está a todo o momento exposta a influências externas, como a dinâmica familiar, a comunidade na qual a família está inserida, etc. A interação entre as influências externas e o desenvolvimento da história particular entre os irmãos fornecem informações muito úteis sobre a influência que os irmãos possuem no comportamento interativo de crianças com cegueira (Lavine, 1977).

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A literatura encontrada, apesar de limitada, mostra que a criança com deficiência pode ser encarada como um peso tanto pra a relação familiar quanto para a relação fraterna. A pesquisa de Villela (1999) que buscou o entendimento das repercussões emocionais nos irmãos de crianças com deficiência visual aponta nesta direção.

Esta pesquisa avaliou dez crianças entre 6 e 11 anos de idade que possuíam irmãos com deficiência visual. Foi concluído que existe um sofrimento específico nestas crianças referente às suas fantasias inconscientes, que tomam um caminho peculiar devido à dinâmica familiar. Sabe-se que a figura mais importante no desenvolvimento primitivo da criança é sua mãe e que ela serve de modelo de identificação para as demais crianças. Nesta pesquisa foram encontradas mães que estavam voltadas para o atendimento de seu filho com deficiência visual e que esperavam compreensão de todos, não podendo perceber a demanda afetiva dos demais filhos. “As crianças ficam aderidas a isto, e não reivindicam suas necessidades em prol da preservação da boa relação com o irmão deficiente e com a mãe” (Villela, 1999: 179).

Villela (1999), ao fazer a análise desses dados, refere-se ao grande sofrimento psíquico causado pela repressão da hostilidade e pelo afastamento das reais necessidades de afeto da própria criança. Conclui, então, que essas crianças fazem parte de uma população de risco no que se refere ao sofrimento emocional. Esses dados diferem dos encontrados por Powell e Ogle (1992) referentes aos mecanismos psíquicos utilizados por essas crianças com a finalidade de preservar a relação amorosa com o irmão com deficiência, o que estes autores interpretam como evidência de níveis elevados de altruísmo, empatia e responsabilidade nos irmãos de crianças com deficiência.

Pode-se perceber, pelos estudos de Villela (1999), bem como os de Powell e Ogle (1992), a grande ênfase dada ao aspecto psíquico, afetivo e emocional gerado pela presença de uma criança com deficiência visual na família. Cabe pois, aqui, uma pergunta: este envolvimento psíquico, afetivo e emocional não diz respeito também à criança com a deficiência no que tange ao seu relacionamento fraterno? Estudar então a relação entre irmãos a partir de como a criança com cegueira a sente e percebe é de grande importância para a compreensão da relação como um todo e no que se refere a crianças com cegueira. Tendo em vista estas considerações iniciais, os objetivos desta pesquisa foram:

• Descrever as relações fraternas de crianças com cegueira; • Compreender como é a relação de irmãos a partir de depoimentos das crianças com cegueira e de seus pais; 2. Método

Esta pesquisa pautou-se no referencial metodológico da pesquisa qualitativa voltada para a descrição de um fenômeno para desvelar seu sentido. Delineia-se pelo enfoque clínico-qualitativo que conforme Turato (2003) caracteriza-se como “um meio científico de conhecer e interpretar as significações – de natureza psicológicas e psicossosiais – que os indivíduos (....) dão aos fenômenos do campo de saúde-doença” (p. 240).

2.1. Coleta de dados

A coleta dos dados foi norteada pelas características sugeridas por Bogdan e Biklen (1992):

• O ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador o principal instrumento

da pesquisa;

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• O material obtido contém a descrição de pessoas, situações e acontecimentos, podendo haver a transcrição de entrevistas e depoimentos;

• Preocupação com o processo maior do que com o produto; • O significado atribuído pelas pessoas à sua vida. Levando em consideração as diferentes

formas de pensar dos participantes, esta modalidade de estudo permite elucidar a dinâmica interna das situações, geralmente inacessíveis ao observador externo.

A análise dos dados é feita a partir de um processo indutivo, isto é, os pesquisadores

não buscam evidências para hipóteses pré-definidas.Foram sujeitos desta pesquisa três crianças com cegueira congênita que possuíam um irmão mais velho sem qualquer deficiência. As crianças apresentavam as seguintes características1:

• Luiza (10 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Carmem (36 anos – doméstica) e Antônio (motorista de ônibus); irmã de Alex (20 anos) e Lúcia (10 anos – irmã gêmea); • Ricardo (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filho de Marina (40 anos – trabalhava em casa na confecção de bíblias) e José (47 anos – desempregado); irmão de Renata (19 anos) e Luís (14 anos); • Karina (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Maria (52 anos – do lar) e João (43 anos – coordenador de tráfego); irmã de Kelly (16 anos) e Karen (9 anos – irmã gêmea). Os instrumentos para a coleta de dados foram os roteiros de entrevista semi-estruturados e um gravador digital.

A avaliação do nível socioeconômico foi baseada em Quadros e Antunes (2001), que desenvolveram uma pesquisa sobre as classes sociais presentes no Brasil. Segundo esse estudo pode-se separar a população em quatro camadas, a partir de sua ocupação. As camadas apresentadas por estes autores são:

• 1ª camada: proprietários que empregam mão de obra assalariada e alta classe média, assalariada ou não que pode ser considerada a “elite” socioeconômica. • 2ª camada: “setores intermediários”, a média classe média, assalariada ou autônoma, e os proprietários de pequeno negócio familiar urbano (comércio e serviços). • 3ª camada: “massa trabalhadora urbana”, composta pela baixa classe média assalariada, pelos segmentos operários e demais assalariados populares e segmentos inferiores dos trabalhadores autônomos. • 4ª camada: base do mercado de trabalho urbano, composto por trabalhadores assalariados de segmento mais baixo, autônomos e empregadas domésticas; e a maioria de trabalhadores rurais e agricultores familiares.

Nesta pesquisa, como se trata do relacionamento entre crianças, foram consideradas as

ocupações dos pais, constatando-se que as três famílias faziam parte da 4ª. camada definida pelos autores.

É importante deixar claro que, apesar das três famílias encontrarem-se na 4ª. camada, no que concerne à caracterização do nível socioeconômico por Quadros e Antunes (2001), a partir das entrevistas, foi notado que Maria e João possuem uma situação financeira melhor do que a das outras famílias por morarem em casa própria com maiores recursos, como número de televisões e computador. Essa melhor condição financeira deve-se, principalmente, ao fato de Maria ser assistente social e ter trabalhado até o nascimento das gêmeas. Já a situação de Carmem, Antônio, Marina e José são similares, morando em casa alugada com

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poucos cômodos e parcos recursos. Cabe aqui fazer essa ressalva, já que ela pode ser um motivo de diferenciação no cotidiano das famílias.

Com relação à coleta e registro de dados pode-se destacar: 2.2. Instrumentos Foram utilizados roteiros de entrevista semi-estruturados o Teste das Fábulas e um gravador digital para registro das entrevistas. 2.3. Entrevistas

A entrevista psicológica constitui um recurso fundamental na busca de aspectos

psicológicos e pode ser definida como uma relação humana na qual um dos participantes busca entender os acontecimentos e deve atuar a partir deste conhecimento. “A realização dos objetivos possíveis da entrevista (investigação, diagnóstico, orientação, etc) depende desse saber e da atuação de acordo com esse saber (Bleger, 1998: 7).

Deve-se compreender que na entrevista o entrevistador faz parte do campo, isto é, ele condiciona determinados fenômenos que vai registrar, podendo, assim, ser questionada a validade dos dados obtidos. Bleger (1998) ressalta que tal objetividade na investigação não está presente em nenhum outro campo científico e, com certeza, não está presente na Psicologia já que seu objeto de estudo é o homem. Desse modo, afirma que a máxima objetividade consiste em incorporar o sujeito que observa como uma das variáveis do campo.

Bogdan e Biklen (1982) afirmam que a pesquisa qualitativa encontra no ambiente natural uma fonte direta de informações, sendo o pesquisador seu principal instrumento. Pressupõe, assim, o contato prolongado e direto do pesquisador com o ambiente e a situação investigada, podendo ser chamado de estudo “naturalístico”.

Ludke e André (1986), a partir do trabalho de Bogdan e Biklen (1982), comentam que o contato estreito entre o pesquisador e a situação observada é necessário para o entendimento de um determinado objeto, pois este é influenciado pelas circunstâncias que o rodeia. Assim, as pessoas, os gestos, as palavras e os comportamentos devem sempre ser estudados inseridos em seu contexto.

Nesta pesquisa foi adotada a entrevista semi-estruturada que é caracterizada por Ludke e André (1986) como uma entrevista que situa-se entre a entrevista não-estruturada e a estruturada; ela possui um esquema básico que não é aplicado rigidamente, permitindo, dessa maneira, que o entrevistador faça adaptações quando necessário. Isto posto, foi estabelecido neste estudo alguns temas a serem abordados, tanto na entrevista preliminar com os pais quanto na entrevista com as crianças, com o objetivo de possibilitar a investigação mais ampla sobre o cotidiano do indivíduo e de seu relacionamento com os irmãos. 2.4. Teste das fábulas

Outro recurso utilizado foi o Teste das Fábulas criado por Luisa Düss. Esse teste foi

apresentado primeiramente por esta autora em 1940, e possui um referencial teórico freudiano. Sua primeira versão compunha-se de histórias incompletas que tinham o objetivo de investigar conflitos inconscientes. Em 1950 Düss divulgou o resultado de suas pesquisas com o teste ampliando-o posteriormente. Seu objetivo era obter um diagnóstico do complexo e não uma classificação nosológica dos sujeitos investigados. Esse teste engloba uma forma verbal e uma pictória. A primeira é composta de 10 fábulas, nas quais o herói, que pode ser uma criança ou um animal, encontra-se em situações que representam cada fase do

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desenvolvimento psicossexual para Freud, sendo que essas situações por serem ambíguas e simbólicas facilitam a projeção da criança e permitem a identificação de conflitos. Já a forma pictória, possui 12 lâminas com ilustrações adequadas a cada história e que devem ser apresentadas simultaneamente à forma verbal (Cunha e Nunes, 1993).

Nesta pesquisa foi utilizada apenas a forma verbal do teste porque as crianças estudadas são desprovidas do sentido da visão, e também a utilização da forma pictória não é recomendada por Cunha e Nunes (1993) para crianças a partir dos 8 anos.

A aplicação realizada foi individual contando com um inquérito posterior a cada resposta, quando possível, e este inquérito tem por finalidade o enriquecimento da resposta para posterior avaliação. A avaliação, por sua vez, foi realizada segundo modelo proposto por Cunha e Nunes (1993).

Optou-se pela utilização do Teste das Fábulas, pois ele possibilita, através de suas histórias, a investigação de alguns temas do desenvolvimento da criança. A relação entre irmãos é tratada especificamente na fábula três que, além das reações frente ao desmame, engloba o tema da rivalidade fraterna. Foi aplicado o teste na íntegra, vez que a relação entre irmãos poderia também aparecer nas respostas a outras fábulas como ocorreu no caso de Ricardo e Karina.

2.5. Procedimentos

A coleta de dados seguiu os seguintes procedimentos:

• Entrevista preliminar com a mãe das crianças para a apresentação da pesquisa e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, bem como para investigar a percepção das mesmas sobre a relação de seus filhos; • Entrevista com as crianças para a investigação sobre sua relação com seus irmãos mais velhos.

O registro das entrevistas foi realizado através da gravação das mesmas e posterior transcrição. Esta forma de registro demonstrou-se muito eficaz pois permite captar as informações de maneira imediata e absolutamente fiel à forma como são expressas, evitando, assim, a seleção de informações pelo entrevistador. A gravação permitiu ao entrevistador, reiterando Lüdke e André (1986), acompanhar de forma mais livre a fala e as expressões dos entrevistados. Algumas dificuldades em relação à entrevista gravada, tais como as expressões faciais, corporais e mudanças de postura foram registradas pela entrevistadora, imediatamente após o encerramento da entrevista. O gravador, apesar de poder ser um instrumento inibitório para o sujeito, já que nem todas as pessoas sentem-se à vontade frente à gravação de sua fala, isto não ocorreu nestas entrevistas. Uma dificuldade foi a transcrição da fala do entrevistado para o papel, pois esta operação não é tão simples quanto se imagina, tomando várias horas e apresentando informações cruas nas quais é difícil destacar as informações centrais. 2.6. Análise dos dados

A análise dos dados coletados foi realizada em três etapas que se caracterizaram por: • 1ª etapa: consistiu da categorização dos dados das entrevistas e da realização de recortes no Teste das Fábulas. Após análise deste instrumento em sua íntegra foram feitos recortes ressaltando apenas as respostas das crianças, nas quais estivessem presentes referências à relação entre irmãos;

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• 2ª etapa: foi feita a convergência dos dados da primeira fase buscando ligações entre eles; • 3ª etapa: foi estabelecida a relação entre os dados obtidos nesta pesquisa e a literatura científica encontrada sobre a temática. 3. Resultados e análise

A análise dos dados partiu da identificação de categorias presentes nos discursos dos

entrevistados e pela posterior identificação de convergências entre os sujeitos como segue: 3.1. Convergência nas entrevistas com as mães 3.1.1. Relação entre irmãos

Neste tópico é abordada a percepção das mães acerca da relação dos irmãos. Tanto

Maria quanto Marina afirmaram que eles se entendiam bem e participavam das atividades uns dos outros, como por exemplo: Luís levava Ricardo à instituição de atendimento especializado, quando Marina não podia. Carmem comentou que apesar de Lúcia ficar com Luiza todo dia à tarde enquanto ela trabalhava, percebia que elas não tinham uma boa relação, havendo pouco afeto entre elas e o não compartilhamento das atividades. Quanto à relação de Luiza com o Alex, no momento da pesquisa, era restrita a contatos telefônicos, já que ele não morava mais na mesma cidade que a família.

Um fator comum nas três famílias foi a presença de ciúme na relação dos irmãos. Marina disse que Luís tinha ciúmes de Ricardo e achava que isso se devia a ela sempre defendê-lo, e também pelo fato de, às vezes, Ricardo dormir com ela.

Carmem comentou que Luíza tinha muito ciúme, mas que quando Alex morava com elas era pior, pois todos tinham ciúme uns dos outros, expressando várias vezes seu descontentamento em ter irmãos. Maria contou que Karen tinha muito ciúme de Karina, não ocorrendo o inverso, e Kelly, por sua vez, tinha ciúme das gêmeas. Relatou, ainda, a ocorrência de competição entre Karen e Karina como, por exemplo, acerca do desenvolvimento do seio.

Quanto à interferência das mães na relação dos irmãos todas as três relataram esta ocorrência. Marina falou que, normalmente, favorecia Ricardo quando este brigava com Luís a respeito de assistir televisão e disse ainda, que em alguns momentos, não precisava intervir, pois eles se entendiam sozinhos. Maria também disse que, muitas vezes, precisava intervir na relação das filhas e que procurava favorecer uma de cada vez, e Carmem comentou que intervinha sempre, pois Lucia e Luiza brigavam muito por diversos motivos, como a televisão, o telefone, entre outros. Tanto Carmem quanto Maria comentaram sobre suas atitudes quando as gêmeas brigavam, chegando a se agredir fisicamente. Carmem batia nas duas quando isso acontecia e Maria não favorecia nem uma nem outra.

Uma questão que apareceu apenas nas entrevistas de Marina e Maria, foi a relação dos irmãos com amigos. Ambas disseram que eles não tinham amigos em comum. Marina falou que Ricardo conhecia todos os amigos de Luís e que gostava deles e aqui deve-se chamar a atenção para a discordância na entrevista de mãe e filho, já que Ricardo disse que não gostava dos amigos de Luís. Maria comentou que, apesar das gêmeas não terem as mesmas amigas, como eram da mesma classe na escola, acabavam fazendo parte do mesmo grupo e disse ainda que elas (Karina e Karen) não gostavam das amigas de Kelly (irmã mais velha).

3.1.2. Relação com os pais

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Neste item está a análise das respostas das mães a respeito da relação entre pais e filhos. As três entrevistadas afirmaram que agiam da mesma forma com todos os filhos. Aqui, porém, destaca-se uma discrepância na entrevista de Marina, pois, ao mesmo tempo em que ela disse que tratava os três filhos igualmente, comentou que nas brigas de irmãos sempre favorecia Ricardo, o que deixava Luís com ciúme. Carmem falou que procurava não favorecer nenhuma das duas e que quando elas brigavam e passavam a culpa de uma para a outra ela batia nas duas. Já Maria comentou que se não agia da mesma forma com as três, sentia-se culpada.

Quanto à relação das crianças com o pai, Marina expôs que o pai era frio e não dava tanta atenção para os filhos, nem para Luís, nem para Ricardo. Maria também contou diversos episódios nos quais precisou intervir na relação de Karina e João. Carmem foi a única das entrevistadas que não contou com a presença do marido no diagnóstico da cegueira de Luiza e no período posterior a este, pois já estavam separados, e falou que o ex-marido tinha pouco contato com as filhas e que por muitas vezes chegava embriagado nas visitas sendo impedido de vê-las por Maria.

Maria e Marina expressaram, de formas diferentes, certa dificuldade dos maridos em lidarem com as limitações dos filhos. Marina contou que José não saía com Ricardo até mais ou menos os quatro anos de idade, e que ela percebeu que ele tinha vergonha do filho. Já Maria comentou que João teve muita dificuldade em aceitar que Karina andasse de bengala, e que teve a impressão que ele não conseguia lidar com o fato da deficiência da filha poder ser observada por outras pessoas de forma concreta.

3.1.3. Falam sobre a cegueira

Com a categorização das informações coletadas nas entrevistas, buscou-se sistematizar

a fala das mães sobre como elas lidavam com a questão da deficiência com a família. Tanto Marina quanto Maria disseram que conversavam com a família sobre a cegueira

do filho. Marina falou que perguntava para Ricardo se ele era feliz e disse que quando questionada sobre o porquê Ricardo havia nascido com cegueira explicou a ele que quando Deus queria uma coisa não adiantava reclamar. No que concerne à Maria, esta comentou que a questão da cegueira de Karina era discutida em família e que quando Karina expressava o desejo de não ser cega, Maria explicava que ela não podia falar assim, pois fora a cegueira ela era perfeita. A maneira como Maria abordava o assunto não permitia que Karina expressasse sentimentos de desagrado e tristeza em relação à cegueira. Carmem, por sua vez, não conversava diretamente com as filhas sobre a cegueira de Luiza, mas que ambas já a escutaram falar sobre o assunto.

Alguns pontos que não foram citados pelas três mães, mas que merecem ser contemplados neste tópico estão expostos a seguir.

Marina comentou que conversava muito com o marido sobre a condição de Ricardo e que ele se sentia culpado pela cegueira do filho, posto que, na época da gestação, estava desempregado e Marina brigava muito com ele. Falou ainda que José, muitas vezes, chegava a pedir desculpas verbalmente para o filho e fazia com que ela também pedisse desculpas.

Maria relatou que quando Karina foi levada para fazer a cirurgia devido ao descolamento da retina, Kelly expressou o desejo de que Karina voltasse da cirurgia enxergando e que precisou lidar durante algum tempo com o fato de Kelly não querer uma irmã com cegueira.

3.1.4. Inclusão escolar

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As três crianças estudavam em escola regular e freqüentavam atendimento especializado a pessoas com deficiência visual.

Karina era a única das crianças que estudava na mesma escola que a irmã gêmea, estavam na mesma classe e, segundo Maria, Karina não queria ser separada de Karen. Kelly também estudou na mesma escola, mas como iniciou o colegial precisou mudar. O mesmo ocorreu com Luís, que até o ano anterior à pesquisa estudava na mesma escola que Ricardo. Luiza, por sua vez, nunca estudou com Lúcia, pois, segundo Carmem, no município em que mora não havia sala de recursos e professora especializada; então, Luiza não foi aceita na escola regular de lá.

Quanto às tarefas escolares não houve semelhança entre as crianças, Karina e Karen faziam a lição juntas e Lúcia e Luiza não. Marina não comentou nada sobre esse assunto em sua entrevista. 3.1.5. Atividades de lazer

No que se refere às atividades de lazer que os irmãos faziam juntos o que apareceu de

semelhante foi que, independente das circunstâncias, os irmãos brincavam juntos, mesmo quando brigavam muito e tinham tipos de brincadeiras diferentes. 3.2.Convergências nas entrevistas com as crianças 3.2.1. Gostavam de fazer com o(a)irmão(ã)

Nesta categoria destaca-se o fato de que as três crianças afirmaram que gostavam de

sair com os irmãos. Ricardo para ir ao parque, passear de metrô ou ir à instituição de atendimento especializado; Luiza para ir à casa da avó ou andar de bicicleta com o irmão; e Karina para ir à feira e ao cabeleireiro.

Outra atividade comum eram as brincadeiras que variavam de acordo com a preferência de cada um, mas estavam presentes nos três casos. Outra característica comum nas entrevistas de Karina e Lúcia foi o fato de que ambas afirmaram que gostavam de assistir televisão com as irmãs.

3.2.2. Não gostavam de fazer com o(a) irmão(ã)

A única característica comum nos três casos foi referente a brigar; as três crianças

afirmaram que não gostavam de brigar com seus irmãos e o motivo das brigas era diferente, dependendo de cada caso.

3.2.3. Atividades que não compartilhavam

Os três entrevistados afirmaram que, em alguns momentos, não brincavam com os

irmãos: Karina e Ricardo porque não gostavam dos amigos dos irmãos e Luiza porque Lúcia não queria brincar com ela.

4. Discussão sobre os dados analisados

A reflexão sobre os dados foi sistematizada na seguinte seqüência:

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1º - Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e seu irmão(ã); 2º - Itens convergentes nas famílias; 3º - Itens sobre a relação das mães com os filhos; 4º - Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos importantes das relações que requerem atenção; 5º - Características específicas.

4.1. Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e seu irmão(ã)

Nos três casos, de formas e em graus diferentes, ficou claro o papel que os irmãos

representavam quando: Ricardo afirmou que gostava muito de brincar e passear com Luís, como ir ao parque, andar de metrô, ouvir música; Luiza, questionada sobre como é ter um irmão, verbalizou:

“Ah, é bom, porque às vezes quando ela quer brincar nós brinca, quando ela quer sair a gente sai. Nós vai na casa da minha vó que mora perto, eu gosto de ir lá. E também vou na rua com a Lúcia aí nós brinca de castelinho de areia.”

Expressou, então, sentimentos positivos acerca de possuir uma irmã apesar de ter

relatado uma relação conflituosa com a mesma; Karina, embora tenha falado que preferia ter apenas a Kelly como irmã, relatou as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de forma prazerosa. A esse respeito percebe-se que, independente da presença de ciúme e rivalidade, as três crianças encaravam sua relação com os irmãos como uma fonte de prazer em algum grau. Estes dados reiteram Furman e Burhmester (1985), que apontam a extrema importância da relação entre irmãos para o desenvolvimento social da criança, sendo uma fonte freqüente de companheirismo, ajuda e suporte emocional. Afirmam ainda que, muitas vezes, irmãos mais velhos cuidam de seus irmãos mais novos e também podem ser modelos de identificação como fica claro, por exemplo, no caso da relação entre Karina e Kelly.

Estudos como o de Lavine (1977) e o de Stillwell e Dunn (1985) consideraram que a relação entre irmãos é influenciada em grande parte pelo relacionamento estabelecido com os pais, sendo que esse relacionamento pode ser fator facilitador ou trazer dificuldades para a relação fraterna. O posicionamento de Carmem, ao definir que devido às brigas Lúcia e Luiza não deveriam ficar juntas, dizendo: “Eu acho assim que cada uma tem que ficar na dela, né? Uma em um canto e a outra no outro, né?”, pode ser dificultador. Esta atitude constitui uma barreira na relação das irmãs, pois, à medida que os conflitos não são encarados e resolvidos, há uma clara tendência a evitar esses conflitos, podendo tornar o ciúme e a rivalidade cada vez maiores.

A relação de irmãos, por ser a primeira relação intensa entre pares, é um importante agente de socialização, sendo que esse relacionamento auxilia o desenvolvimento social. Através da convivência com os irmãos, as crianças desenvolvem suas habilidades sociais que serão, posteriormente, utilizadas em outras relações (Powell e Ogle, 1992). Também aqui, esta afirmação pode ser corroborada pelas três famílias entrevistadas. Maria e Karina contaram que esta brincava muito com as irmãs e que, apesar de não ter os mesmos amigos que Karen, por fazerem parte do mesmo grupo social, acabavam por estarem juntas. Deve-se ressaltar ainda que, através da brincadeira relatada por Karina, na qual ela e a irmã gêmea encenam situações da vida adolescente, estão adquirindo habilidades sociais e de adequação ao mundo. Luiza também, ao contar que brincava com sua irmã encenando situações de

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compra (mercearia) ou de banco pode, através da imitação da vida adulta, estar recorrendo a habilidades sociais e adquirindo-as. O mesmo se passa com Ricardo que relatou que gostava de sair com o irmão para ir ao parque ou ao metrô.

4.2. Itens convergentes nas famílias

Um dos pontos de grande relevância notado nas três famílias é que nenhuma delas

conversava de forma livre sobre a deficiência. É muito importante para o desenvolvimento da criança com cegueira que lhe seja permitido falar de seus sentimentos e sensações sobre sua deficiência. Apesar de Marina e Maria terem afirmado que conversavam com seus filhos sobre a cegueira, nenhuma delas baseando-se em seus relatos, deixava que as crianças dessem vazão aos seus sentimentos e frustrações acerca da deficiência. Marina disse que quando Ricardo perguntou a ela porque as pessoas nasciam com cegueira, ela respondeu que não sabia explicar, mas que quando Deus queria alguma coisa não adiantava reclamar. Maria, por sua vez, quando Karina falou que não queria ser cega respondeu:

“Karina você é tão linda, sabe, com nove anos você tem ainda uma vida inteira, a mamãe não tem mais jeito, vou ser linda só na próxima encarnação! Sou feia, tenho 52 anos, tô na reta final, não tenho chance nenhuma, olha quanta coisa você tem pela frente e a mamãe não tem nada" ou "Eu não admito que você reclame de nada porque o jeito que a mamãe viu você nos meus braços."

Tanto a resposta de Marina quanto a de Maria não permitiram que os filhos

expressassem seu descontentamento e desejo de não serem cegos, barrando a expressão da frustração que pode vir a ser tão importante para o desenvolvimento da criança. Carmem contou que não conversava com as filhas sobre a cegueira de Luiza, mas que ambas já a ouviram falar sobre a deficiência e, aparentemente, acreditava que essa questão estava resolvida. Esse pensar contradiz seu relato na entrevista, pois, além de expressar claramente que não se conformava com a cegueira da filha, chorando ao falar da mesma, o fato de não conversar com Lúcia e Luiza sobre a cegueira da última pode apontar uma grande dificuldade da mãe em lidar com a situação, preferindo mantê-la distante, o que, provavelmente, deve refletir em sua atitude com as filhas. Dessa forma, deixa de ocorrer o alívio na criança assinalado por Burlingham (1961) e que acompanha a capacidade de falar sobre a cegueira e sobre a frustração relacionada à deficiência. Conforme esta autora, falar sobre a cegueira proporciona uma sensação de alívio na criança, gerando um conforto e liberação, permitindo que as mesmas possam expressar outros assuntos até então não explorados. Além disso, esta autora enfatiza que, ao expressar seus sentimentos sobre a deficiência, as crianças abrem-se para novas experiências e sua curiosidade acerca do mundo aumenta de forma marcante.

É importante destacar a semelhança na constituição das três famílias analisadas: as três mães tiveram seus primeiros filhos em uma união e os dois seguintes em outra; todas elas notavam diferenças no relacionamento entre os irmãos que possuem o mesmo pai e os que possuem pais diferentes. Carmem falou que quando Alex vivia com ela, as relações eram repletas de ciúme e cada um falava que os outros não deveriam existir, incluindo a afirmação de Alex que as gêmeas não deveriam ter nascido, pois vieram depois e as gêmeas que diziam que Carmem não deveria ter tido Alex antes.

Maria também notou essa diferença, principalmente no relacionamento entre o atual marido e Kelly, dizendo que esta sofria por não ser filha do mesmo pai e que isso influenciava os relacionamentos familiares. Aqui cabe um apontamento, pois, tanto na entrevista de Maria quanto na de Karina, ficou claro que esta última defende a irmã mais velha do pai e se alia a

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ela em algumas situações. Karina disse: “Meu pai não é o pai da Kelly, só que ele trata ela bem, assim, trata bem. Eu falei para ele ‘E ai de você tratar mal a Kelly!’” Marina também relatou diferenças no relacionamento de Ricardo com Luís e Ricardo com Renata, e disse que Renata não tratava mal Ricardo, mas era seca com ele. Estas falas podem relacionar-se ao que Bank e Kahn (1982) comentam sobre a rivalidade fraterna ocorrer devido à fragmentação das famílias modernas, as quais, muitas vezes, têm formações distintas no nascimento dos diversos filhos.

Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a delegação de responsabilidade aos irmãos. Marina contou que Luís, apesar de ter 14 anos, é muito maduro e assume responsabilidades como a de levar Ricardo para a instituição de atendimento especializado que freqüentava e, mesmo sendo advertida que, como Luís era menor de idade, ele não poderia estar acompanhando Ricardo, disse: “Ele adora o irmão...É...Semana passada ele que trouxe o Ricardo aqui...É por que, falam que não pode porque ele só tem quatorze anos mas ele é grandão, né?...Cabeça feita, né?” Maria relatou que Karen costumava fazer tudo o que Karina pedisse e Carmem falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não estava, como servir o almoço para a irmã. Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui uma deficiência os irmãos saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam caso a deficiência não estivesse presente. Essa questão fica clara nas três entrevistas.

4.3. Itens sobre a relação das mães com os filhos

Quanto à intervenção e tratamento das mães para com seus filhos, percebe-se, como

apontado anteriormente, que Marina afirmou que tratava os filhos da mesma maneira, mas, durante sua entrevista, constatou-se uma tendência em proteger Ricardo em diversas situações, em falas como:

“É que agora tem duas televisões mas antes com uma TV só saía muita briga, às vezes o Ricardo...É que o Ricardo gosta de assistir o canal 4 e o 2 e o Luís já não, é o 5, só o 5, aí as vezes o Luís fala: ‘Agora o Lu vai assistir’. ‘Ah não, agora que vai começar meu desenho!’ ‘Não, eu falei que vou assistir e acabou!’ Aí eu falo: ‘Mas Luís, você não falou pra mim que você ia sair?’ Aí se eles começam a brigar eu me meto no meio e falo: ‘Não, você falou que ia sair então agora o Ricardo vai assistir!’ eu tenho que entrar no meio...Eu sempre favoreço o Ricardo...”

Marina percebia ainda que esta atitude gerava ciúme em Luís e complementou

dizendo: “É, acho que é por isso que o Luís tem ciúmes... Às vezes o Luís fala: ‘Ai pra mãe tudo é o Ricardo!’ Porque o Ricardo gosta de assistir canal 4 e eu também gosto, eu já me acostumei, ele adora assistir canal 2 e aí também me acostumei.” Fica claro aqui que a intervenção de Marina a favor de Ricardo influencia a relação dos irmãos. Ricardo, por sua vez, parece corroborar esta questão com a fábula do cordeirinho, aparentemente tomando certas atitudes por medo de perder o vínculo com a mãe.

Carmem, no entanto, disse que tentava não favorecer nem uma nem outra em suas decisões:

“Agora quando eu não estou em casa é uma briga. Tem dia que ela liga no meu serviço, não a Lúcia, a Luiza, e fala: ‘Mãe, ela não quer isso, mãe ela não quer aquilo!’ Aí eu digo: ‘Quando eu chegar em casa a gente conversa’. Aí quando eu chego lá todo mundo está quietinho, quer dizer, aí eu pergunto: ‘Quem fez isso? Quem fez aquilo?’ E elas começam: ‘Foi a Lúcia, foi a Luiza!’ Aí eu pego e bato nas duas. Agora quando uma

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quer assistir uma coisa e a outra quer ver outra coisa eu desligo a TV, eu não vou nem pro lado de uma nem pro lado da outra.”

Em sua fala nota-se o não enfrentamento de um conflito, assim como quando relatou

que cada uma deveria ficar em um canto. Apesar de ter uma atitude igual com as duas filhas, essa atitude não se adaptava às circunstâncias, pois as duas eram punidas por igual e não se confrontavam com o motivo da briga e com as características específicas de sua relação.

Nota-se que as intervenções de Carmem e Marina não levavam em consideração os eventos ocorridos; Marina porque acaba favorecendo sempre a Ricardo e Carmem por não estabelecer um contato com o conflito resolvendo-o de forma igual para as duas irmãs, no que parece uma tentativa de empregar um senso de justiça.

Maria, por outro lado, contou que às vezes se culpava por não fazer as coisas iguais para as filhas: “Aí você se policia, então o copinho com água fica do lado direito, a jarrinha com água fica lá, então se eu abasteço um copo eu tenho que fazer sempre os dois porque as vezes eu me culpo”. Contou que Karen e Kelly tinham ciúmes de Karina, então procurava fazer as coisas iguais para as filhas. Falou sobre o ciúme de Karen: “Na hora de se trocar rápido, você pega e põe a pasta na escova e agiliza as coisas, aí a Karen chega lá e fala assim: ‘Mãe você pôs pasta só pra Karina?’". Quanto à Kelly disse: “A Kelly fala: ‘Ai mãe, estreou um filme, vamos não sei o que?’ Ai ela fala ‘Vocês ficam aí sozinhas ô Karina e Karen porque a mãe vai me levar lá que é só maior que quatorze anos’., ‘Lógico que não, que não sei o que, ou vamos todas, você vai ter que assistir a Xuxa ou a Tayna’. ‘Eu não vou assistir este filme de bebê!’ Ai eu falo assim: ‘Kelly não dá, né?’ ‘Esta vendo só, se fosse só eu pronto! Vocês só vieram encher meu saco’". Apesar de ocorrer o ciúme na relação das irmãs, nota-se ao longo da entrevista de Maria que ela procurava adotar uma posição equilibrada entre as filhas; então, se Karen a ajudou mais nas tarefas domésticas ela ganhava uma recompensa que as outras não. Aparentemente, ela adequava sua atitude às circunstâncias que apareciam.

Os fatores apontados acima estão em acordo com Kris e Ritvo (1983) quando afirmam que, além das intervenções dos pais no que se refere à relação entre irmãos, a postura dos mesmos na relação com cada um dos filhos é de extrema importância. É preciso que haja um senso de justiça nessas relações que vai além do fazer a mesma coisa para todos os filhos. O senso de justiça paterno deve estar alicerçado na percepção das diferenças pessoais de seus filhos. É necessário que haja flexibilidade para que sejam encontradas atitudes adequadas às situações apresentadas ao longo da vida. Com certeza, é de extrema importância a capacidade de justiça materna representada pela igualdade no tratamento dos filhos e pela percepção das diferenças entre eles adequando suas atitudes às circunstancias. Também Shopper (1974) aborda esse assunto e afirma que muitos pais acreditam erroneamente que se os filhos forem tratados da mesma maneira não sentirão ciúmes um do outro e brigarão menos. Todavia, na verdade, o que ocorre é geralmente o oposto.

A interação das mães com seus filhos com cegueira é outro fator que influencia a relação destes últimos com seus irmãos. Pode-se destacar no relacionamento de Ricardo e Marina sua fala a respeito de querer o filho por perto, de ter parado de trabalhar fora para ficar com o filho e da sua defesa a Ricardo em suas brigas com Luís. Já no que se refere à Maria, o nascimento de Karina trouxe modificações essenciais na vida familiar, porque esta deixou de trabalhar para cuidar dos bebês, provocando ressentimento em Kelly devido à perda da condição financeira que tinham anteriormente. Deve-se apontar também que Kelly tinha problemas de relacionamento com o padrasto, o que podia agravar a aceitação das modificações em sua vida. Esses fatores corroboram o que Lavine (1977) afirma sobre a possibilidade de ocorrer a monopolização da atenção dos pais pela criança com cegueira,

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posto que esta realmente necessita de um acompanhamento prolongado, e esta monopolização pode influenciar o relacionamento entre irmãos, muitas vezes, conturbando-o.

Além disso, Lavine (1977) ressalta que quando a criança com cegueira é a caçula há um padrão de comportamento que pode ser adotado, no qual ela ignora a agressão, não cumpre passivamente as demandas, e usa de uma terceira pessoa, como a mãe, em sua defesa. Esta característica é óbvia no comportamento de Karina citado por Maria, no qual ela, muitas vezes, não queria fazer suas tarefas domésticas, utilizando-se de recursos para isso:

“Às vezes ela fala: ‘Mamãe eu estou muito cansada, você deixa?’ Que nem hoje ela deixou os pratos lá e vem mosquito, etc, etc. ‘Ai, eu estou muito cansada, hoje você pode?’ ‘Hoje eu posso, eu também tô cansada, mas eu posso, só que vamos combinar, amanhã você lava o meu, então a gente troca’. ‘Ai tá bom vai, vamos ver se amanhã eu fico menos cansada.’”

4.4. Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos importantes das relações que requerem atenção

A inserção de uma criança com deficiência na família abala o ambiente e a estrutura

emocional familiar, modificando, muitas vezes, os papéis desempenhados por seus integrantes (Buscaglia, 2002). Isso fica ressaltado na entrevista de Maria sobre a reação de Kelly quando contou que iria levar Karina para fazer a cirurgia devido ao descolamento de retina: “A Kelly falou assim: ‘Você vai levar ela pra operar né mãe?’ ‘É’. ‘Então você vai voltar com ela enxergando porque eu não quero irmã cega!”. Nota-se a resistência à aceitação da deficiência, e há, ainda, as implicações sociais da mesma que podem ser ilustradas pelo pedido de Kelly para que a mãe virasse Karina de costas para o corredor do metrô pois tinha uma mulher olhando fixamente para elas. No caso de Kelly, estas falas parecem estar ligadas ao que Fiumi (2003) e Finnie (1980) afirmam sobre os sentimentos ambivalentes existentes em relação ao indivíduo com deficiência, pois, ao mesmo tempo em que há o amor pelo membro familiar há a rejeição de sua deficiência.

Porém, fica aqui a pergunta: será que a criança com cegueira percebe esse movimento de ambivalência? E se percebe como reage a ele?

Quanto ao vínculo formado entre irmãos, deve-se destacar a relação entre Ricardo e Renata que foi pouco abordada na entrevista. Marina falou muito pouco da relação entre eles e disse apenas que, apesar de Renata não ter vergonha de Ricardo, era seca com ele; Ricardo, em sua entrevista, praticamente não menciona a irmã. Pode-se caracterizar, neste tema, o que Bank e Kahn (1982) referem como “pouco acesso”. Esse fenômeno é definido a partir da concepção de que a vinculação entre irmãos depende do acesso existente entre eles, havendo um grande número de irmãos que, aparentemente, não possuem influência entre si, tendo pouco impacto emocional entre um e outro. Algumas características podem ser destacadas nestes irmãos: geralmente possuem uma diferença de idade maior que 8 anos; compartilham poucos momentos, espaço, contatos sociais, e amigos; não precisam um do outro e aparentemente os pais também não estimulam esta necessidade. Ricardo e Renata preenchiam as características apontadas por estes autores.

4.5. Características específicas

No que concerne às características específicas de irmãos gêmeos, Bank e Kahn (1982)

afirmam que eles podem se encontrar em fusão, já que realizam a maior parte de suas atividades juntos, como dormir, alimentar-se e tomar banho. Podem estar presentes nesta

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relação ciclos de intensa briga e intensa afeição que, geralmente, dominam suas relações e, aparentemente, não conseguem viver separados um do outro. Existem famílias, entretanto, que encorajam a aquisição de habilidades individuais nos gêmeos, favorecendo, dessa forma, um desenvolvimento saudável. A identificação muito próxima de um gêmeo com o outro impede que eles se separem e demonstra que suas representações de si e dos objetos estão extremamente distorcidas. No caso de Karina e Karen percebe-se o discernimento de Maria em estimular a aquisição da independência, e pode-se exemplificar este fator com a situação comentada por Maria que este ano na escola vários gêmeos foram separados e que Karina disse que não iria se separar de Karen:

“Na escola comum, ano passado trocaram alguns gêmeos, de sala, aí a Karina: ‘Ah eu vou falar com a dona Vera, porque não é para mudar a gente de sala’ Eu falo que a independência, porque ano passado ficou definido que as crianças ficaram este ano e o ano que vem, que aí cada uma vai fazer sua aula de música etc e tal.”

Maria parece ter consciência da grande vinculação à qual irmãos gêmeos estão

expostos e procura estimular a independência de cada uma. Já no caso de Luiza e Lúcia, as intensas brigas podem, como foi dito anteriormente, derivar-se de problemas no processo de diferenciação entre elas, gerando conflito e rivalidade. 5. Considerações finais

Retomando o objetivo desta pesquisa, ou seja, de buscar compreender como é a

relação entre irmãos a partir de depoimentos das crianças com cegueira e de seus pais, pode-se apontar algumas características levantadas neste trabalho.

Nota-se que as três crianças entrevistadas buscavam no irmão uma fonte de prazer em algum grau, independente de sentirem ciúme ou de serem rivais. Luiza buscava em Lúcia (irmã gêmea) uma companheira, apesar das brigas constantes, e encontrava em Alex (irmão mais velho) uma figura menos conflituosa; Ricardo também procurava Luís (irmão mais velho) como companheiro, obtendo sucesso em diversas ocasiões; e Karina, apesar de compartilhar mais experiências com Karen (irmã gêmea), admirava e identificava-se com Kelly (irmã mais velha).

A rivalidade entre irmãos apareceu como fator presente nas três famílias, em graus e manifestações diferentes, desde as demonstrações claras até as veladas. Essa característica da relação pode ser constatada na resposta dada pelas três crianças à fábula do cordeirinho. (Esta fábula faz parte do Teste das Fábulas aplicado nos sujeitos de pesquisa, sua temática visa estabelecer a presença ou não de rivalidade fraterna).. Há ainda expressões de agressividade contra os irmãos, como no caso de Karina e Luiza. Conforme apontado por Villela (1999), a ambivalência dos pais em relação à criança com deficiência pode dar origem a comportamentos reativos de superproteção ou de extrema indulgência que, quando intensificados, são capazes gerar sentimentos de rivalidade entre os irmãos.

Essa pode ser uma das causas da presença de rivalidade entre os irmãos, em especial no caso de Ricardo, já que Marina assume claramente que favorece Ricardo em detrimento do irmão. Outra causa para a rivalidade pode ser encontrada na obra de Bank e Kahn (1982), que consideram a desorganização e a fragmentação das famílias modernas como uma das causas da rivalidade. Afirmam estes autores que as mudanças no mundo atual ocorrem de maneira tão rápida que crianças com um ou dois anos de diferença podem estar sujeitas a experiências absolutamente distintas e inclusive a formações familiares diferentes. A mudança na constituição familiar está presente nas três famílias estudadas, uma vez que as crianças com

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cegueira são filhas de pais diferentes dos seus irmãos mais velhos, o que pode ser uma fonte de conflito e rivalidade entre eles.

Quanto à atitude das mães, sabe-se que elas se constituem como figura de identificação para a criança nas fases mais precoces da vida, e suas atitudes para com os irmãos são de extrema importância, pois servem como modelo de identificação. Neste estudo, apesar das três famílias terem constituições semelhantes, as atitudes das mães são diversas: Marina parecia dedicar-se de forma maciça a Ricardo; Maria tentava dividir-se entre as três filhas; e Carmem buscava igualar sua reação às duas irmãs.

Nota-se que todas as mães protegiam seus filhos com cegueira cobrando ações e delegando responsabilidades aos seus irmãos. Não foi constatado, porém, a percepção delas a respeito de como seus filhos são impactados por essas delegações. Porém cabe aqui ressaltar que como a influência da atitude materna na relação de irmãos não consistiu um dos objetivos deste trabalho, registra-se a importância de pesquisas futuras a este respeito.

Nas três famílias um fator de extrema importância notado nesta pesquisa é que não se falava sobre a deficiência de forma clara e continente, não dando possibilidade de expressão para a criança com cegueira de manifestar seus sentimentos frente à cegueira e nem a oportunidade de discussão desta condição com seus irmãos. Apesar de duas mães afirmarem que conversavam com seus filhos sobre essa questão, ao exemplificarem a conversa, percebe-se que não há acolhimento das angústias e ansiedades dos filhos, o que pode influenciar de forma negativa seu desenvolvimento.

Outro objetivo deste estudo era identificar as atividades que as crianças com cegueira realizavam com seus irmãos. Constatou-se que todas as crianças entrevistadas compartilhavam atividades de lazer com seus irmãos como brincadeiras, jogos e passeios. As três relataram as atividades em comum como fonte de prazer e contentamento; apenas Luiza comentou pontos negativos nas atividades, tais como brigas. As atividades escolares eram compartilhadas somente por Karina e Karen, porque eram as únicas a estudarem na mesma escola.

Alguns dados colhidos nesta pesquisa deram origem a indagações sobre a relação de irmãos gêmeos quando apenas um deles possui uma deficiência. A relação entre gêmeos já possui características próprias que divergem da relação fraterna em geral. Quando um deles possui uma deficiência essa relação torna-se ainda mais intrigante, pois, como fica a identificação entre eles? Como as mães conseguem lidar com filhos tão semelhantes em idade e com necessidades, muitas vezes, absolutamente diversas no que se refere ao seu desenvolvimento? Como não privar o irmão gêmeo sem deficiência de atenção quando o outro pode necessitar de diversas intervenções?

Outra pergunta gerada a partir desta pesquisa diz respeito às particularidades da relação entre irmãos de uma criança com cegueira no seu ambiente escolar. Como apenas uma das crianças estudava na mesma escola que sua irmã não foi possível aprofundar esse assunto. Portanto, cabe aqui assinalar a importância de esclarecer mais sobre a relação dos irmãos na escola. Como é estar na mesma sala de aula? Ou na mesma escola?

Deve-se chamar atenção também para a dificuldade de se encontrar pesquisas acerca de indivíduos com cegueira que levem em consideração seu referencial perceptual não fazendo assim uma comparação dos mesmos com os videntes. No que se refere a pesquisas sobre o relacionamento fraterno cabe aqui ressaltar que não foi encontrada nenhuma, o que mais uma vez aponta para a necessidade de novos estudos sobre o tema.

Constatou-se que a relação entre irmãos é de grande riqueza e importância na vida do indivíduo. Contudo, não foi possível esgotar a investigação da relação fraterna de crianças com cegueira nesta investigação por motivos óbvios como o tempo disponível para a execução da mesma e o número de sujeitos encontrados com características semelhantes às

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buscadas. Tentou-se então, a partir das informações coletadas, delinear características percebidas pelas crianças com cegueira e suas mães sobre a relação entre irmãos, porém fica assinalada a importância da continuidade de pesquisas em busca de aprofundar conhecimentos acerca de famílias com uma criança com deficiência para que os mesmos possam ser utilizados como recursos nos entendimentos das relações familiares. 6. Referências bibliográficas Bank, S.P. e Kahn, M.D. (1982). The sibling bond: the first major account of the powerful emotional connections among brothers and sisters throughout life. Nova York: Basic Books. Burlingham, D. (1961). Some notes on the development of the blind. The Psychoanalytic Study of the Child, 16, 121-145. Buscaglia, L. (2002). Os deficientes e seus pais: um desafio ao aconselhamento. (Mendes, R., Trad.). Rio de Janeiro: Editora Record. (Original publicado em 1983). Conselho Brasileiro de Oftalmologia. (2002). Acesso em 13/04/2005, de World Wide Web: http://www.cbo.com.br/publicacoes/jotazero/ed90/comunicado.htm. Dunn, J. (1988). Sibling influences on childhood development. J. Child Psychol. Psychiatry, 29 (2), 119-127. Dunn, J. (1985). Sisters and brothers. Cambridge: Harvard University Press. Finnie, R.N. (1980). O manuseio em casa da criança com paralisia cerebral. 2ª Ed. São Paulo: Editora Manole. Fiumi, A. (2003). Orientação Familiar: O profissional fisioterapeuta segundo percepção das mães de crianças portadoras de paralisia cerebral. Dissertação de Mestrado, Programa de Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, SP. Furman, W. e Buhrmester, D. (1985) Children´s perceptions of the qualities of sibling relationships. Child Development, 56, 448-46. Kris, M. e Ritvo, S. (1983). Parents and siblings: their mutual influences. The Psychoanalytic Study of the Child, Nova York, 38, 311-324. Lavine, M.B. (1977). An exploratory study of the sibships of blind children. J. Vis. Impairment Blindness, 77, 102-107. Lüdke, M. e André, M.E.D.A. (1986). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU- Editora Pedagógica e Universitária LTDA. Masini, E.F.S. (1997). Integração ou desintegração? Uma questão a ser pensada sobre a educação do deficiente visual. Em: Mantoan, M.T.E. A integração de pessoas com deficiência. São Paulo: Memnon: Editora SENAC. Masini, E.F.S. (1994). O perceber e o relacionar-se do deficiente visual: orientando professores especializados. Brasília: CORDE. Mckeever, P. (1983). Siblings of chronically ill children: a literature review with implications for research and practice. Am. J. Orthopsychiatry, 53 (2), 209-219. Powell, T.H. e Ogle, P.A. (1992). Irmãos especiais: técnicas de orientação e apoio para o relacionamento com o deficiente. São Paulo: Editora Maltese. Rey, L. (1999). Dicionário de termos técnicos de medicina e saúde. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. Shopper, M. (1974). Twinning reaction in non-twin siblings. J. Am. Acad. Child Psychiatry, 13 (2), 300-318. Stilwell, R. e Dunn, J. (1985) Continuities in sibling relationships: patterns of aggression and friendliness. J. Child Psychol. Psychiatry, 26 (4), 627-637. Turato, E.R. (2003). Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda.

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- F.V.M. Bazon é Psicóloga (Universidade Estadual Paulista, UNESP), Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e Doutoranda em Educação (USP). Atua como Professora Colaboradora (Departamento de Educação, UEL). E-mail para correspondência: [email protected]. E.A.F.S. Masini é Pedagoga (USP), Mestre em Psicologia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP), Doutora em Psicologia (PUC-SP), Pós-doutora (USP) e Livre-Docente em Educação (USP). Atua como Professora Associada (aposentada) na Faculdade de Educação (USP) e Professora da Pós-graduação Stricto Sensu em Distúrbios do Desenvolvimento (Universidade Presbiteriana Mackenzie).

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69Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 69-90, jun. 2007

A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual

A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção

em pessoas com deficiência visual*

(Invention on fingertips: attention reversion in visually impaired people)

Virgínia Kastrup∗∗

Resumo

Diversos estudos têm indicado que a perda de visão produz umareorganização do sistema cognitivo em função de novosinvestimentos da atenção, que são condição para a reinvenção davida cotidiana dessas pessoas. Por outro lado, é cada vez maisevidente que o campo do perceber envolve um conjunto deexperiências complexas, que vai além da dimensão funcional eutilitária. Existe uma atenção funcional, que é voltada para a vidaprática, e uma atenção suplementar, que participa dos processosde invenção. O objetivo do texto é analisar, em pessoas queperderam a visão, duas mudanças da atenção: o redirecionamentoda visão para o tato e a reversão, na qual a atenção sofre umamudança de qualidade. A argumentação recorre a estudos depsicologia experimental, aos trabalhos de Bergson, Depraz, Varelae Vermersch, bem como a uma pesquisa de campo realizada numaoficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

Palavras-chave: Invenção; Atenção; Deficiência visual.

investigação da atenção ganhou relevo a partir da década de 1990 emfunção da retomada dos estudos da consciência pelas ciências cognitivas,mas os estudos sobre a atenção em pessoas cegas e com baixa visão ainda

são pouco numerosos. O presente trabalho busca um entendimento da atençãoem pessoas com deficiência visual adquirida, cuja cognição é distinta da de

A

· Texto recebido em fevereiro/2007 e aprovado para publicação em março/2007.* Agradeço ao Instituto Benjamin Constant e, sobretudo, aos participantes da oficina e às ceramistas Clara Fonseca e Dóris

Kelson, que acolheram gentilmente a equipe da pesquisa. Agradeço também aos bolsistas de iniciação científica PaulaRego Monteiro Marques Vieira, Luciana Manhães, Filipe H. Carijó e Maria Clara de Almeida, que participaram de todasas etapas da pesquisa que deu origem a este texto. Agradeço também ao CNPq, pelo apoio.

** Doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, e-mail: [email protected]

• O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

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cegos congênitos. São considerados cegos congênitos pessoas que nunca viram.Seu sistema cognitivo é, desde o nascimento, constituído com base nos demaissentidos e sem referência a elementos visuais. Cegos precoces são aqueles queperderam a visão entre seis meses e um ano de idade. Como o diagnóstico dacegueira pode não ser imediato, a diferença mais significativa não é entre cegoscongênitos e precoces, mas entre precoces e tardios, em função da existência,nos últimos, de referências visuais e coordenações neurais entre as modalidadessensoriais, que ocorrem, em média, até os três anos de idade (Hatwell, 2003).Os cegos tardios constituem casos bastante efetivos de deficiência visualadquirida, sendo palco de processos de aprendizagem e, em última análise, deuma exigência de profunda reinvenção cognitiva. O funcionamento cognitivona cegueira adquirida guarda, por certo, diversos pontos em comum com odos videntes e dos cegos congênitos, todavia é fundamental investigar suaspossíveis especificidades.

Algumas das transformações cognitivas da deficiência visual adquirida estãodiretamente relacionadas à redução da eficiência de habilidades e hábitosanteriores, ou seja, de comportamentos caracterizados pelo automatismo, comoverter água num copo, colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua.O comportamento automático é um comportamento sem atenção. Suautilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades.Assim, quando um vidente caminha para o trabalho, seguindo seu percursohabitual, libera a atenção para pensar em algo que está lhe preocupando, emum compromisso que terá no final da tarde, para fazer projetos ou evocarlembranças do dia anterior. A perda da visão, quando se instala, produz umaredução das ações automáticas e um aumento da participação da atenção nasmais simples tarefas da vida cotidiana.

No domínio da psicologia cognitiva da deficiência visual, o tema da atençãosurge no âmbito da discussão sobre o problema da compensação sensorial.Segundo as teorias mais tradicionais da compensação, a pessoa cega possui, emfunção da ausência da visão, um melhor desempenho de sentidos como o tatoe a audição. Presente já em D. Diderot (1979) e bastante disseminada nosenso comum, a idéia de compensação tem sido objeto de recorrentes análises.Vygotski (1997) afirma que a melhora no desempenho dos demais sentidosnão é uma dádiva divina e nem pode ser explicada por uma reorganizaçãofisiológica imediata, mas resulta de um processo de construção, em que ganhamdestaque vetores sociais e culturais, entre os quais se destaca a linguagem.Embora bastante utilizada, a noção de compensação não deixa de colocar muitosproblemas. O apelo excessivo a ela pode levar a pensar que todo o problema dareorganização cognitiva dos que perderam a visão consiste em compensar uma

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perda para, enfim, continuar conhecendo o mundo como o fazem os videntes,apenas seguindo, para isto, caminhos indiretos e mais longos. Enfim, se chamadaa explicar tudo, a noção de compensação acaba por não explicar grande coisa,além de obscurecer a dimensão inventiva que marca tal reorganização cognitiva,na qual a percepção tátil ganha papel de destaque (Belarmino, 2004; Rego-Monteiro, Manhães & Kastrup, 2007).

Ivette Hatwell (2003) afirma que os estudos atuais dão indicações que acegueira não modifica diretamente os limites sensoriais de acuidade, mas orientaa atenção para signos não visuais, além de melhorar os procedimentosexploratórios do tato e da audição. Hatwell substitui a explicação psicofísicada redução dos limiares de sensibilidade pela tese do redirecionamento daatenção. A perda da visão não resulta imediatamente numa potencializaçãodos demais sentidos, mas, ao aprender a redirecionar a atenção para eles, apessoa tira partido de signos que até então não faziam parte de seu domíniocognitivo. A atenção a tais signos é de suma importância para o desempenhode atividades da vida prática, como aquelas da escola, do trabalho e da vidasocial (Hatwell, 2003, p. 67-68).

Os estudos psicológicos sobre a atenção têm identificado algumas de suascaracterísticas e propriedades. Trata-se de um processo que se acopla a outrosprocessos cognitivos, como a percepção, a memória e o pensamento. Sua funçãoé de modulação dos demais processos, podendo amplificá-los, atenuá-los ouinibi-los (Camus, 1996). A atenção é, nessa medida, o fundo de flutuação dacognição, sendo também uma atitude cognitiva (Vermersch, 2002a; 2002b).Ao longo da história da psicologia, alguns autores têm enfatizado suas funçõesde adaptação e de seleção (James, 1945; Ribot, 1931), e isto se acentua nosmodelos cognitivos baseados no processamento de informação (Broadbent,1958; Shiffrin & Schneider, 1977). Mas já nos estudos seminais de WilliamJames (1945) a função seletiva da atenção não pode ser separada da fluidezatencional, que acompanha o fluxo do pensamento (Ferraz & Kastrup).Trabalhos recentes têm demonstrado que a atenção não é um processo binário,0-1, atenção-desatenção, como aparece, de forma mais ou menos explícita, emmuitos textos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade – TDA/H. O avanço dos estudos tem evidenciado a necessidade de considerar a atençãoum processo heterogêneo, cujo funcionamento é complexo e composto pordistintas variedades e gestos atencionais (Vermesch, 2002a, 2002b; Camus,1996; Mialet, 1999; Kastrup, 2004, 2007).

A maioria dos estudos em psicologia experimental enfatiza o valor funcionale mesmo instrumental da atenção, o que não é destituído de importância docaso da deficiência visual adquirida. Para as ações da vida prática, é preciso

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aprender a prestar a atenção aos signos que chegam pela audição e pelo tato:reconhecer pessoas pela voz, ouvir o ruído dos carros para atravessar a rua, usaras sensações táteis dos pés e aquelas transmitidas pela bengala, perceber signosauditivos para saber a posição e distância de objetos do ambiente etc. É tambémpreciso que se aprenda a distribuir a atenção entre mais de um sentido numaatividade complexa, como circular pela cidade, assistir uma aula ou participarde uma reunião social.

No entanto, é incontestável que nem todos os problemas da cegueira dizemrespeito a questões de ordem prática (Oliveira, 2002). Um homem que estavaperdendo gradativamente a visão como efeito de uma diabete persistente deuo seguinte depoimento, que expressa bem esta situação: “Quando a gente perdea visão, a gente fica muito pra baixo […]. Ainda mais eu, que era uma pessoaque gostava de viajar, adorava ver esse Rio de Janeiro, adorava ver o Corcovado,adorava ver…” (P2). Observa-se em sua fala que os problemas a seremenfrentados pelas pessoas que perdem a visão envolvem, por certo, apossibilidade de caminhar pela rua, trabalhar e manter uma vida autônoma,mas também poder contemplar o mundo, entrar em contato com coisas bonitasou interessantes, experimentar contentamento com certas percepções e terexperiências que nada tem a ver, ao menos diretamente, com os problemas davida prática. Nessa direção, Oliver Sacks (1995) narra o caso de um pintorque, tendo perdido a visão de cores em função de um desastre de automóvel,enfrentou sérios problemas em relação, por exemplo, à alimentação e à suavida sexual. A comida cinzenta provocava náuseas e sua mulher parecia ter corde rato, deixando de provocar nele qualquer atração. Os exemplos mostramque o campo do perceber envolve um conjunto de experiências complexas,que vai além da dimensão funcional e utilitária. As experiências perceptivasnão utilitárias, muitas vezes, mobilizam uma atenção de qualidade especialque, conforme veremos, está envolvida nos processos de invenção de mundo ede si. É preciso sublinhar, entretanto, que não estamos nos referindo apenas asituações excepcionais de invenção, mas a de diferentes experiências que sedão no âmbito da vida cotidiana transpondo, em certos momentos, suadimensão meramente pragmática (Kastrup, 1999).

Tomando como foco o processo de reconstrução do sistema cognitivo daspessoas que se tornam cegas, nosso objetivo será analisar dois problemas relativosà atenção: o redirecionamento e a mudança de qualidade. O primeiro problema– o do redirecionamento da visão para o tato e outros sentidos – envolve aatenção funcional, voltada para a vida prática, em que predominam uma atituderecognitiva e atos de focalização e de prestar atenção. Trata-se aí de uma atençãosubmetida a uma finalidade. O segundo problema envolve uma atenção

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suplementar, que não possui caráter funcional e utilitário, no qual prevaleceuma atitude de abertura, contato e receptividade. A reversão na qualidade daatenção foi tematizada por N. Depraz, F. Varela e P. Vermersch (2003; 2006) epor H. Bergson (2006a; 2006b; 2006c). Ao discutir a mudança na qualidadeda atenção, Depraz, Varela e Vermersch (2003) referem-se ao movimento que,no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de umaatitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que correspondeao gesto de deixar-vir (letting-go). Sublinham, também, que essa reversão daatenção não é imediata, mas requer um tempo de espera em que se enfrentaum vazio, algumas vezes difícil de sustentar. Em diversos momentos de suaobra, Bergson faz referência a uma atenção suplementar (2006c) e ao fenômenoda conversão da atenção (2006b). A característica dessa segunda atenção é aausência do interesse, que, por sua vez, define a atenção à vida prática, que éseletiva e envolvida com a ação. Bergson afirma ainda que a atenção suplementarinverte o fluxo cognitivo habitual e promove o alargamento da percepção,possibilitando uma apreensão direta do objeto. Ela o faz com o desaparecimentomomentâneo do recorte utilitário operado pelo percebedor, que se sobrepunha,através de seus interesses, ao próprio objeto. Além de tomar como referênciatais colocações, nos baseamos numa pesquisa de campo realizada numa oficinade cerâmica para portadores de deficiência visual adquirida, no InstitutoBenjamin Constant,1 no Rio de Janeiro, com uma amostra de 18 participantes.Foi utilizado o método da cartografia (Deleuze & Guattari, 1995; Rolnik,2006; Kastrup, 2007) para a observação das aulas de cerâmica e para elaboraçãodos relatos. Foram também realizadas entrevistas de explicitação (Vermersch,2000) com nove participantes (P) e duas professoras. Por meio dessas estratégiasmetodológicas buscou-se examinar as mudanças da atenção que participam dareconstrução cognitiva e da reinvenção da vida de pessoas que perderam a visão.

O redirecionamento visuo-tátil da atenção: algumas

distinções entre o tato e a visão

Muito se tem destacado a relevância funcional do tato na vida prática ecotidiana das pessoas cegas. O tato é considerado o sentido mais apropriadopara fornecer as referências para deslocamento no espaço, que deixaram deexistir com a perda de visão, e é por meio dele que a maior parte doconhecimento espacial deve ser reconstruída. Investida pela atenção, a audiçãotambém tem papel importante na discriminação de estímulos e na detecção de

1 O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, ligado aoMinistério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultasgratuitas à população, possui oficinas de reabilitação, produz material especializado, impressos em braile e publicaçõescientíficas. A oficina de cerâmica, na qual foi realizada a pesquisa, é ligada à Divisão de Reabilitação e é coordenada pelaceramista Clara Fonseca.

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obstáculos, tal como ocorre no fenômeno de ecolocalização. Pela localizaçãodos objetos por sons, que são, às vezes, inaudíveis para os videntes, a audiçãopode vir a dar aos cegos indicações sobre a direção e a distância dos objetos. Aaudição serve, sobretudo, à apreensão de signos temporais e sucessivos, podendoperceber ainda as modulações de intensidade e de timbre da voz, muitoimportantes nas relações sociais. A audição parece mais dependente da ordemsucessiva de apresentação dos estímulos que o tato, que pode criar, ele próprio,uma ordem de apreensão por meio da exploração com as mãos e os dedos.

A principal característica do tato é que ele é uma percepção proximal, decontato, diferentemente da visão e da audição, que são sentidos que possibilitama percepção à distância. O tato possui um campo perceptivo exíguo, sendoquase nulo quando há ausência de movimento exploratório voluntário. Poresse motivo, o princípio de figura-fundo não dá conta de modo adequado dapercepção tátil. Segundo Gentaz e Hatwell (2000, p. 130), em função docaráter seqüencial da exploração e da possibilidade de modificar à vontade otamanho do campo perceptivo tátil, o tato é menos sensível que a visão às leisgestaltistas de organização da configuração espacial. Nessa direção, outrosestudos têm revelado a não sensibilidade do tato à lei da proximidade (Hatwell,Orliaguet & Brouty, 1990) e ao princípio de simetria (Locher & Wagemans,1993; Wagemans, 1995; Walk, 1965).

Por ser uma percepção de contato, o tato tem uma capacidade cognitivageralmente intensificada por movimentos de exploração envolvendo dedos,mãos e braços. Neste caso, percepções cinestésicas se reúnem a percepçõescutâneas, resultando numa percepção tátil-cinestésica também chamadapercepção háptica. G. Revesz (1950), J. Gibson (1962) e I. Hatwell (2003)definem a percepção háptica como uma percepção por fragmentos, aos pedaços,sempre sucessiva e às vezes parcial. Enquanto a visão dá lugar a uma percepçãodistal e global da cena, o tato fornece um conhecimento por partes, isto é,menos estruturado. Os movimentos de exploração são efetuados sucessivamente,o que confere ao conhecimento tátil um caráter seqüencial e uma apreensão daforma que é mais lenta que pela visão. Diferente do tato, a visão pode percebera forma, o tamanho e a cor dos objetos em frações de segundos, sem o recursoa movimentos de exploração mais específicos, embora haja exploração com osolhos. Por esse motivo, o tato sobrecarrega a atenção e a memória de trabalho,pois requer operações cognitivas de integração e síntese para chegar a construiruma representação2 unificada do objeto.

2 A noção de representação é utilizada aqui em sentido pragmático, sem referência a fundamentos, significando um modoparticular de conhecer. Nos termos de Francisco Varela, trata-se aqui da representação em sentido fraco, e não em sentidoforte, como é utilizada pelo cognitivismo computacional. A representação em sentido forte traz consigo uma tomada deposição ontológica – há um mundo prévio que lhe serve de fundamento – e epistemológica – o conhecimento é objetivoquando corresponde a este mundo. Cf. Varela, Thompson e Rosch (2003).

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A sobrecarga da atenção no uso do tato não parece, entretanto, uma regra.Após um processo de aprendizagem, o reconhecimento tátil pode se tornarrápido e automático nos cegos, dispensando a atenção, da mesma maneira queocorre quando um vidente pega um objeto na bolsa sem olhar, abotoa a camisaou pisa nos pedais do automóvel. É curioso notar que a maior parte dos trabalhossobre percepção háptica em deficientes visuais é voltada para o estudo deprocessos de identificação e reconhecimento de objetos. O reconhecimento deum objeto consiste em situá-lo em categorias de nossa experiência passada(Klatzky, Lederman & Metzger, 1985; Lederman & Klatzky, 1997). Nos casosestudados, o reconhecimento háptico revela-se rápido e preciso, levando emconta propriedades materiais como textura, peso e temperatura.

Segundo a tese da especialização das modalidades sensoriais, defendida porLederman e Klatzky (1993), cada modalidade sensorial é mais habilitada parao tratamento de certas propriedades dos objetos e menos habilitada para outras.Em razão de seu modo de exploração, o tato não tem bom desempenho napercepção espacial (forma, tamanho e cor), mas funciona com excelência napercepção de propriedades materiais. No entanto, é preciso destacar que o tatopode efetivamente chegar a um conhecimento da forma. Mesmo por umprocesso mais lento e mais laborioso que aquele da visão, o tato pode atingir,para tarefas de reconhecimento, resultados bastante semelhantes (com exceçãodo limite da cor), fazendo com que, em termos de produto final, a distinçãoentre tato e visão seja atenuada.

O trabalho que acompanhamos na oficina de cerâmica consistia, em diversosmomentos, em desenvolver uma percepção háptica com atenção, levando aperceber e mesmo a aprender a reconhecer formas através do tato. Certo dia,uma participante (P4) estava fazendo uma vasilha com o barro. A professora aorientava no sentido de tocar a peça que estava criando, para perceber oandamento do trabalho e o que ainda precisava ser retocado. A professoradizia: “Vai passando a mão ao redor da peça e vai sentindo como ela estáficando. Está vendo onde ela precisa ser consertada?” A moça foi contornandoa peça com as mãos, com um toque bem leve e paciente. “Agora estou sentindo.Este lado aqui está um pouquinho mais alto que o outro, não é?” E a professoraacrescentou: “Sempre que você estiver fazendo uma peça, tenta tocá-la e senti-la como um todo, porque assim você vai começar a visualizá-la melhor e vai teruma noção de como está ficando.” Fica claro na fala da professora que nestemomento o tato é utilizado para suprir a falta da visão. Trata-se aqui de umaespécie de tato ótico, cujo objetivo é perceber o objeto como um todo. Paraisso, procede pela construção, passo a passo, da percepção da forma. A percepçãoda forma resulta então de um movimento voluntário de exploração atenta

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envolvendo uma seqüência de sensações táteis elementares, que culmina numasíntese.

Observamos que a aprendizagem anterior pode constituir um obstáculopara o direcionamento da atenção para o tato, tão necessária àqueles queexperimentam um processo de perda da visão. No caso de pessoas com baixavisão, foi observado que a fixação no resíduo visual pode causar dificuldadespara a utilização plena dos recursos da percepção tátil. Uma participantedescreveu esta situação: “Era bom quando eu tinha olho, porque o olho mandavaa mão fazer e a mão fazia. Agora, sem olho, quer dizer, no tato […], a relaçãofica muito, assim, de ansiedade. Porque como eu tenho resíduo visual, eu querover, mas eu não estou vendo. Então eu não sei mais mandar na minha mão.Porque eu quero que a minha mão faça através do olho, mas a mão não obedece.Quando eu quero que o tato funcione de verdade eu fecho o olho.” (P9) Note-se que o fechamento voluntário do olho é a estratégia desenvolvida pela mulherpara se livrar do investimento atencional nos signos visuais e então investir aatenção no tato de maneira mais eficiente. Embora residual, a visão ainda é osentido que domina seu sistema cognitivo e a hegemonia da visão acaba pordificultar o direcionamento da atenção para a percepção e a exploração tátil.

Até algumas décadas atrás se acreditava que havia uma atenção específicapara cada modalidade sensorial, ou seja, que visão, audição e tato dispunhamde recursos atencionais próprios (Wickens, 1980; 1984). Hoje, prevalece atese de uma distribuição da atenção entre as diferentes modalidades. Foramfeitos estudos com sujeitos videntes sobre distribuição da atenção em tarefasbimodais, visando produzir conhecimento para otimizar situações como a dopiloto de avião, que deve receber e tratar vários sinais ao mesmo tempo. Pensou-se que, para evitar sobrecarga da visão, seria mais eficiente que os estímulosfossem enviados por diferentes modalidades sensoriais. No entanto, estudosconsecutivos mostraram que a atenção a uma modalidade repercute sobre asdemais. Sucessivos deslocamentos intermodais não esperados sobrecarregam aatenção, fazendo com que a atenção multimodal pareça ter um custo cognitivomaior do que a unimodal (Spence & Driver, 1997). Os estudos indicaramtambém que o custo da divisão da atenção entre modalidades parece ligado àprática maior ou menor com as modalidades concernidas, como mostra acomparação entre cegos e videntes (Kujala et al., 1997).

Consideramos, entretanto, que a sobrecarga atencional evidenciada nastarefas multimodais não pode ser dissociada do contexto em que tais pesquisasforam realizadas. É importante notar que os experimentos investigam situaçõesde realização de tarefas, que requerem atos de focalização. Por outro lado, épossível observar que as situações multimodais, que envolvem mudança de

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direção e atenção dividida entre diferentes modalidades, são freqüentes na vidadiária de pessoas cegas, assim como na de videntes. Andar de ônibus, fazercompras no supermercado ou almoçar num restaurante são atividadesmultimodais que não parecem sobrecarregar de modo importante a atenção.Ocorre que nos experimentos enumerados anteriormente a atenção é voltadapara a realização de tarefas, requerendo, principalmente, atos de focalização ede prestar atenção. Ao que tudo indica, é isto que sobrecarrega a atenção, enão a mudança de direção para diferentes modalidades sensoriais.

Nesse sentido, foi curioso ver surgir nas entrevistas depoimentos departicipantes acerca da atenção distribuída entre o tato e a audição, apontandoque a atenção aos signos auditivos, dependendo da situação, podia, inclusive,criar condições propícias ao trabalho com a cerâmica. Alguns afirmaram quenão gostam de falar enquanto trabalham, mas que ouvir conversas paralelasnão atrapalha. Já ouvir música e cantar “ajuda na inspiração e na concentração”.“Quanto menos [a gente fala] melhor” (P7). “Eu me concentro, eu meconcentro de tal maneira que eu não converso. Só converso se precisar de umaorientação […]. Eu ouço tudinho. O que eles estão conversando, eu estououvindo, mas eu estou dedicado ali no meu trabalho” (P1). “Na hora que euestou fazendo, eu me isolo mesmo. Agora, isto não quer dizer que eu nãoescute o meu exterior […]. Eu sempre gostei de estudar ouvindo música. Amúsica para mim não perturba” (P5). A música parece propícia para instalaruma atenção aberta e receptiva, capaz de cavar um vão no seio da estreitaconexão sensório-motora que predomina na vida prática. A experiência com amúsica, ouvindo ou cantando, não é de reconhecimento, mas de contato,encontro, sem mediação da representação. Ouvir música concorre paradesmontar a relação sujeito-objeto. É um convite ao encontro. O sujeito nãotem uma representação da música, mas mistura-se com ela, entrando em contatocom um plano de forças moventes. Ouvir ou mesmo cantarolar uma músicanão requer o ato de focalização ou de prestar atenção. Ao contrário do ato defalar, que requer uma relação ativa com a língua para a construção de frases ede sentido, e que por isto exige uma atenção mais focada, ouvir música ecantar mobilizam uma atenção de fundo, que, ao invés de interferir na atençãoconcentrada na argila, parece ajudar a guiá-la e sustentá-la.

A reversão da atenção: a mudança de qualidade e o problema da conversão

A mudança de qualidade

O problema da mudança na qualidade da atenção foi discutido por Depraz,Varela e Vermersch (2003; 2006). Os autores referem-se ao movimento que,

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no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de umaatitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que correspondeao gesto de deixar-vir (letting-go). Afirmam que o movimento de busca é omovimento espontâneo, que é próprio da atitude natural. A reversão da atençãoé, por sua vez, um gesto mais raro e mais difícil, posto que exige a reversão detal atitude. Sublinham ainda que tal reversão da atenção não produz efeitoimediato. Ela requer – e daí advém uma de suas maiores dificuldades – umtempo de espera em que se enfrenta um vazio, algumas vezes difícil de sustentar.A atenção precisa ser concentrada e, ao mesmo tempo, aberta. Trata-se deatenção receptiva, sem ser passiva, já que depende de um gesto específico. Masesse gesto não equivale ao prestar atenção.

Um dos exemplos explorados por Depraz, Varela e Vermersch (2003) é avisão estereoscópica. A visão estereoscópica, ou em 3D, é uma experiência emque uma percepção tridimensional emerge de um desenho bidimensional, apósalguns instantes de fixação do olhar. O foco do olhar não pode incidir emqualquer ponto do desenho, mas deve pousar na ponta do nariz. Depraz, Varelae Vermersch apontam que é apenas no momento em que abandonamos aatitude de busca da forma e eliminamos o esforço da atenção voluntária,sustentando uma atitude de espera atenta, que uma imagem estável pode surgir.Num primeiro momento, a atenção perde o foco, atravessando um tempo emque nada se distingue. Então, adotando uma atitude atencional de deixar-vir(letting-go), a forma emerge subitamente, introduzindo uma mudança clara napercepção. Esse fenômeno envolve uma desaceleração do tempo, que contrastacom a velocidade cognitiva habitual. Além da velocidade mais lenta, adificuldade advém de ser preciso entregar-se a um movimento involuntário.Trata-se aí de uma experiência pouco usual, que é paradoxal no sentido emque consiste em adotar voluntariamente uma atitude involuntária. Ocorrecontrole das condições da atenção, mas não do conteúdo que virá a preenchero vazio.

Além da visão estereoscópica, outras práticas evidenciam uma reversão daatenção que busca para a atenção que encontra. No campo da deficiência visual,Paul Bach-y-Rita (1972) desenvolveu, na década de 1970, o TVSS – Tactile-Visual-Substitution-System, que consiste num dispositivo que converte umaimagem visual, captada por uma câmera de vídeo, numa imagem tátil. Essa éproduzida por uma matriz de vibradores, que é colocada nas costas ou notórax da pessoa. Sem qualquer treino, uma pessoa cega é capaz de detectaralvos simples e de se orientar com eles, além de discriminar linhas horizontaise verticais e também o sentido de alvos móveis. O dispositivo requer algumaaprendizagem para reconhecimento de formas geométricas simples. Seu uso é

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menos adequado para objetos dotados de diferentes orientações e para oreconhecimento de rostos, além de não servir para percepção de cores. Com aevolução técnica, o dispositivo passou por um processo de miniaturização,melhorou a definição da imagem e foi adaptado para bebês (Sampaio & Dufier,1988; Bach-y-Rita & Sampaio, 1995). Se a câmera não for manipulada pelapessoa cega, e sim pelo experimentador, não são obtidos os resultados esperados(Sampaio, 1994). O próprio sujeito precisa manipular ativamente a câmera,com a cabeça ou com as mãos, usando movimentos direita-esquerda, alto-baixo, zoom etc, no sentido de produzir uma constante variação de estimulação.Só assim ele pode vir a ter a experiência de que o objeto percebido está na suafrente, o que é condição para que ele consiga utilizá-lo para sua orientação.

O TVSS produziu um grande debate acerca de suas possibilidades e limites.Além de uma tecnologia para pessoas com deficiência visual, os estudos tiveramum alcance epistemológico e, por evidenciar a importância da ação para acognição, transcenderam o domínio da psicologia cognitiva da cegueira. Varela,Thompson e Rosch (2003) ressaltam sua relevância em destacar o papel daação na cognição. Afirmam: “Quando a pessoa cega comporta-se ativamentedessa forma, depois de poucas horas de experiência ocorre uma notávelemergência: ele não interpreta mais as sensações da pele como tendo relaçãocom o corpo, mas como imagens projetadas no espaço sendo exploradas pelo‘olhar’, dirigido pelo corpo, da câmera de vídeo. Então, para experienciar ‘objetosreais lá fora’, ele deve dirigir a câmera ativamente (com a cabeça ou as mãos).”(Varela, Thompson & Rosch, 2003, p. 179) Lenay et al. (2000, p. 294) tambémcomentam que o dispositivo constitui um forte questionamento do modelocognitivo computacional, não apenas de processamento linear e seqüencial,mas também de processamento paralelo, que pressupõe uma informaçãopassivamente recebida. Segundo os autores, o TVSS, ao apontar aindissociabilidade entre percepção e ação, constitui uma “prova empírica direta”da construção progressiva das representações, baseada na regulagem constanteentre ação e sensação. Para os autores, o TVSS não substitui a visão e não fazver, no sentido pleno do termo, mas constitui uma prótese efetiva no queconcerne à dimensão utilitária da percepção.

No que diz respeito ao funcionamento da atenção durante o uso dodispositivo, pode-se notar que este exige, em primeiro lugar, umredirecionamento. Como observa E. Pacherie (1997), a sensação é tátil, mas apercepção a que ele dá origem é visual. Em outras palavras, a sensação é tátil,portanto próxima do corpo, mas para ter a experiência de distalização, ou seja,do objeto real, na frente, a pessoa não pode prestar atenção no próprio corpo.É necessário que a atenção não se detenha nas costas para que a experiência do

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objeto “lá fora” possa emergir. Em segundo lugar, a percepção distal, do objeto“na frente”, requer uma mudança na qualidade da atenção que revelasemelhanças com aquela da visão estereoscópica. A emergência da percepçãodo objeto se faz a partir de certo deslocamento da atenção. É abandonando aatitude de busca e adotando uma atitude de receptividade ativa que a atençãoaberta vem preenchida por um conteúdo. Assim, Paul Bach-y-Rita e ElianaSampaio, além de produzirem um dispositivo para auxiliar deficientes visuais,que dá evidências do papel da ação na cognição, dão também indicações damudança da qualidade da atenção à qual se referem Depraz, Varela e Vermersch(2003).

A cartografia na oficina de cerâmica trouxe situações que também revelama reversão da atenção. O trabalho com a cerâmica não se limita à atençãofuncional, caracterizada por uma atitude cognitiva de busca e em quepredominam atos de focalização e de prestar atenção voltados para oreconhecimento e a ação. Ela mobiliza uma atenção suplementar durante osprocessos de criação, que se caracteriza por uma atitude cognitiva de aberturaao encontro de algo que não se buscava. A atenção suplementar surge quandoo sujeito sai da posição de piloto da atenção, ou seja, deixa a atitude intencionale desmancha o foco na realização de tarefas.

Uma das participantes descreveu a dificuldade em perceber, através do tato,a forma de uma peça que ela havia moldado. “Quando eu fiz o meu primeirorosto, o primeiro rosto mesmo de escultura, eu não conseguia ver o rosto. Euestava com a bola na minha mão, construindo o nariz, o olho, a boca, e eupegava, e isso me dava uma aflição tão grande, tão grande… E eu não conseguia,eu não conseguia ver o rosto ali com a minha mão. Então eu apalpava com asduas mãos, a cabeça na minha mão e eu apalpando e alisando e eu não via”(P4). O problema que se evidencia na criação de peças de cerâmica é que nemsempre a percepção, mesmo a do próprio ceramista, é convocada aoreconhecimento. A participante comentou sua aflição ao tentar reconhecer orosto que ela própria esculpia. “Se você pegar numa caneca, você sabe que éuma caneca, mas se você pegar num objeto abstrato, você não vai saber queaquilo é um objeto, é uma coisa qualquer. Você não sabe o que é, pode parecervárias coisas, mas não é realmente aquilo que é com a luz acesa. Assim era eucom aquele rosto. Eu pegava no rosto, na peça, na argila e não via o rosto […].E olha que ele cabia na palma de minha mão. Eu passava assim e não via. Umacoisa muito estranha. Me deu muita aflição, eu fiquei muito angustiada. Euqueria tirar dali um rosto, mas eu não conseguia ver um rosto, sabe? Foi muitodifícil pra mim” (P4). O fato de a mulher não reconhecer o objeto que elaprópria estava criando atesta o quanto o processo de criação se dá, em parte,

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fora de foco, e sem um controle absoluto por parte do eu. Como a pessoa nãocoloca na cerâmica um objeto representado dentro da cabeça, mas a criação sedá através de um movimento de composição entre a idéia e a matéria fluida dobarro (Kastrup, no prelo),3 a relação com o objeto criado nem sempre é dereconhecimento imediato. A experiência pode ser mesmo de estranhamento.

A mesma mulher continuou falando de sua experiência.

Aí a professora virou pra mim e falou assim: “Deixa o rosto surgirnaturalmente, deixa que ele vai surgir, relaxa que ele vai surgir.” Eeu fiquei com aquilo ali, respirei fundo, tentei relaxar, aí eu fui ecoloquei a mão… […] A cabeça na minha mão […], e eu nãoconseguia ver um rosto naquilo que eu tava fazendo. Se eu pegasseno nariz eu sabia que era um nariz, se eu pegasse na boca eu sabiaque era a boca, mas num todo eu não conseguia ver a peça. E foium processo muito lento, de muitos dias. Eu acho que eu leveiuns dois, mais de um mês pra fazer o primeiro rosto. Até que euconsegui passar a mão e ver. […] Ela falou no primeiro momentoque eu comecei, mas eu levei mais de um mês. (P4)

Quando a professora aconselha a “relaxar”, parece que o intuito é fazer comque a mulher abandone a atitude de busca voluntária de reconhecimento daforma, como se fosse preciso deixar de buscar para, enfim, encontrar. Em termosde atenção, trata-se de uma orientação para uma mudança de qualidade, parauma atitude de letting-go. Só assim ela pôde vir a encontrar o que não buscavamais.

A conversão da atenção

Bergson distingue dois tipos de percepção. A primeira é voltada parainteresses práticos e é assim definida: “Auxiliar da ação, ela isola, no conjuntoda realidade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas do que opartido que delas podemos tirar. Antecipadamente as classifica, antecipadamenteas etiqueta; mal olhamos o objeto, basta-nos saber a que categoria ele pertence”(Bergson, 2006b, p. 158). A segunda é descrita com a percepção do artista:“Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais paraeles; percebem por perceber – por nada, pelo prazer” (Bergson, 2006b, p. 158).Por este desprendimento dos interesses do eu, possuem “uma visão mais diretada realidade”. Segundo Bergson é por um deslocamento da atenção que oespírito se distancia dos interesses que limitam a percepção para chegar a suaampliação. Denomina conversão o movimento de transformação da atenção

3 Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina decerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

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funcional na atenção suplementar. Adverte ainda que habitualmente predominaa atenção funcional, mas existem episódios que concorrem para a dita conversão.A conversão brusca da atenção é narrada pelos afogados, que vêem, em poucossegundos, sua memória desfilar inteiramente. A morte iminente ou emoçõesfortes também operam a conversão da atenção, mas pequenas conversões sãorelativamente freqüentes na experiência de cada um de nós. A experiência coma arte provoca, muitas vezes, a inversão do fluxo cognitivo habitual, concorrendopara o alargamento da percepção. Bergson afirma ainda que esta atençãosuplementar pode ser cultivada e educada (Bergson, 2006). A educação daatenção consiste, na maior parte das vezes, em “retirar seus antolhos, emdesabituá-la do encolhimento que as exigências da vida lhe impõem” (Bergson,2006b, p. 160).

A perda da visão pode ser um episódio de transformação do funcionamentoatencional e de intensificação de movimentos de conversão. Bergson comentaainda que visão é “o batedor do tato” (Bergson, 2006b, p. 170), antecipando-se a ele e preparando a ação no mundo. Comprometida com a ação, a visãorecorta, do conjunto do campo, figuras relativamente estáveis, deixando delado o fundo de duração e a mudança que existe por trás das formas estáveis.Mas a inversão do curso cognitivo habitual não é fácil. Encontra resistênciasnos hábitos anteriores e exige esforço. De todo modo, é por meio da atençãosuplementar que se promove o alargamento da percepção, possibilitando umaapreensão mais direta do objeto.

Durante os processos de criação na oficina de cerâmica a atenção suplementarcomparecia, por exemplo, no momento em que se tinha uma idéia. Foramtambém observados indícios da reversão da atenção quando havia mudança deidéia ao longo da elaboração da peça. Um participante afirmou “Você vaifazendo alguma coisa e na hora você muda. […] Você fica tão desligado, queacaba esquecendo aquela idéia que você tinha, e você parte para uma outracoisa, na hora ali” (P6). Trabalhar “desligado” é trabalhar solto, sem a atençãocomprometida em atingir um objetivo predeterminado. Isto significa que aidéia não funciona como um ponto de chegada prefixado, mas como um pontode partida. Outro participante descreveu assim o momento da mudança deidéia: “Eu estava fazendo uma chuteira. Uma chuteira que era pra colocar umcelular: um porta-celular […]. Quando eu fui fazer as travas da chuteira […],eu tive que fazer quatro pontinhos, assim, como se fossem as travinhas, né? Aíquando eu vi aqueles quatro pontinhos eu falei: ‘Pôxa, isso ficou parecendo aletra ‘g’’ […]. Dali me surgiu, me abriu a idéia, né?” Enquanto manipulava obarro, ele foi tocado por um fragmento, em que percebeu uma forma emergente.A surpresa em perceber a letra “g” do alfabeto Braille fez com que o processo

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de criação sofresse uma bifurcação e tomasse outro rumo. E ele continua. “Aípensei bem e falei: ‘Pô, dá pra fazer as letrinhas em braile em cerâmica’ […]. Eaquilo ficou na minha cabeça […] A idéia. Aí eu fui pra casa, levei um pedaçode argila. Cortei, fiz o molde […]. E comecei a fazer as peças, as pecinhas”(P2). Após a surpresa do toque, a atenção pára, se detém na idéia. Há ummovimento de pouso (cf. Kastrup, 2007). O participante foi tomado,mobilizado e então é a idéia que toma conta do processo de criação. Ele élevado a dar forma à idéia, atualizá-la, compondo com a matéria. Tudo istotocando e se deixando tocar pelo barro. Não cabe entrar aqui nos detalhes dacontinuidade do processo de criação e nos movimentos de vaivém entre a idéiae os signos da matéria (Kastrup, no prelo).4 Basta lembrar que o tato revelaaqui sua dimensão plenamente háptica. É o fragmento da peça, e não suaforma global, que respondem pela conversão da atenção. Por outro lado, aexperiência transpõe os limites da relação entre um sujeito e um objeto. Oencontro é contato direto e sem mediação. Tocar o barro é, ao mesmo tempo,e de modo indiscernível, ser tocado por ele.

O ótico e o háptico na cognição inventiva

A fecundidade da noção de percepção háptica, como percepção defragmentos e por contato direto, levou ao questionamento de que se ela seriarestrita ao tato. Trazendo a investigação da percepção para o campo da arte, G.Deleuze (1981) propôs que a distinção mais importante não é entre os diferentessentidos, mas entre o funcionamento ótico e o funcionamento háptico dapercepção. A percepção ótica se caracteriza pela organização do campo emfigura e fundo. A segregação autóctone faz com que a forma salte do fundo, oque instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Além do dualismofigura-fundo, faz parte da percepção ótica a organização cognitiva no dualismosujeito-objeto, que configura uma visão distanciada, característica darepresentação. O ótico não remete apenas ao domínio visual, mas este, emfunção de suas características, é aí dominante. Já a percepção háptica é umavisão próxima, em que não vigora a organização figura-fundo. Os componentesse conectam lado a lado, localizando-se num mesmo plano igualmente próximo.Além da mão, o olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer como ouvido ou outro órgão. De todo modo, a distinção mais importante aqui éentre percepção háptica e percepção ótica, e não entre os diferentes sentidos,com a visão, a audição e o tato. Para Deleuze, o movimento da percepçãoháptica se aproxima mais da exploração de uma ameba do que do deslocamento

4 Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina decerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

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de um corpo no espaço. O movimento da ameba é regido por sensações diretas,por ações de forças invisíveis como pressão, estiramento, dilatação e contração.Não é o movimento que explica a sensação, mas, ao contrário, é a elasticidadeda sensação que explica o movimento (Deleuze, 1981, p. 30). A especificidadeda percepção háptica é que pode não vir a produzir uma representação, e simuma experiência direta, que pode concorrer para a inventividade da cognição(Kastrup, 2007).

Deleuze aponta a importância do rastreio próximo e da percepção defragmentos. Tais características não constituem um limite do tato, mas umapossibilidade e mesmo uma potência, que pode ser desempenhada por outrossentidos, inclusive pela visão. Todo sentido possui, em princípio, umavirtualidade háptica. Por outro lado, a percepção da forma, império da visão etão útil para o deslocamento no espaço, pode cegar para certos atributos doobjeto. Essa idéia surgiu na fala de um participante, que declarou que percebera,pela primeira vez, o fundo de uma caneca após ter ficado cego. Este fragmentoda caneca, que jamais havia sido percebido antes, ganhou existência através daexploração háptica.

Deleuze propõe o conceito de percepção háptica para dar conta daexperiência com a arte, independentemente de qual o sentido envolvido. Háentão uma visão háptica, assim como uma escuta háptica ou um tato háptico.A visão pode ser ótica háptica e o tato pode ser ótico. O tato pode ser ótico sequer só substituir a visão. É háptico ao sentir movimentos emergentes ou formasque se insinuam de modo inesperado. Deleuze coloca ênfase não tanto nocaráter seqüencial e demorado na construção da representação, mas no aspectopositivo da captação direta de fragmentos e sensações. O que ele sublinha é oacesso, através da percepção háptica, à dimensão de virtualidade da forma. Ofragmento, como a forma que apenas se insinua, não salta aos olhos como umagestalt e pode ou não seguir o caminho da representação.

Para concluir, podemos dizer que a perda da visão reduz o nível deautomatismo cognitivo e mobiliza a atenção. Na vida prática, o automatismoé substituído pelo esforço de uma atenção focada e da memória de trabalho,para ações cognitivas diversas como a reflexão e o cálculo. Mas a redução doautomatismo pode também dar lugar à experiência direta, à atenção suplementara ao alargamento da percepção. A situação de criação no trabalho com a cerâmicaé distinta da situação de realização de tarefas, pois não segue objetivospredefinidos. Mesmo quando há uma idéia prévia ao trabalho, esta pode sofrermodificações ao longo do processo de criação. Quando a perda da visão abre apossibilidade de desenvolvimento de processos de criação, como é o caso queobservamos na oficina da cerâmica, esta perda pode acionar um processo de

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reinvenção, atualizando outras virtualidades da atenção e da percepção.Retirados de boa parte dos compromissos da vida prática, encontram um temposolto. Na oficina de cerâmica, isto é, favorável ao desenvolvimento de umtrabalho sem pressa e sem a exigência de resultados. Os processos de criaçãofuncionam, neste caso, como outro tipo de compensação. Não mais comobusca de caminhos indiretos para chegar ao mesmo fim, mas para trilhar outroscaminhos. Como afirma o fotógrafo cego Eugen Bavcar, “A escuridão pode seruma iluminação”. Do momento que não vê, percebe de outra maneira, traçandonova fronteira entre o visível e o invisível.

Abstract

Several studies have indicated that the loss of sight causes areorganization of the cognitive system due to new allocations ofattention, which are the condition for the reinvention of thesepeople’s daily lives. On the other hand, it becomes more and moreevident that the field of perception encompasses a set of complexexperiences beyond the functional and useful dimension. There isa functional attention geared towards practical life, and asupplementary attention that permeates the process of invention.This paper aims to analyze two types of changes in attention inthose who have lost their sight: the redirection of sight towardstact; and reversion, that is, a change in the attention quality. Theargumentation is supported by experimental psychology studies;the works of Bergson, Depraz, Varela and Vermersch; and a fieldwork carried out in a ceramics workshop with people presentingacquired visual impairment.

Key words: Invention; Attention; Visual impairment.

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Avaliação cooperativa de sítios eletrônicos com pessoas cegas Cooperative evaluation of web sites with participation of blind people

SOUZA, Edson Rufino de.

Mestrando em Design – ESDI / UERJ FREITAS, Sydney Fernandes de.

Doutor em Engenharia da Produção – ESDI / UERJ - UniverCidade

Palavras-chave: acessibilidade, avaliação cooperativa, pessoas cegas. Sabe-se que a Web privilegia a informação baseada nos aspectos visuais da informação: cores, fotografias, ícones, símbolos. Dessa forma, a acessibilidade à internet por usuários cegos é dependente de programas que possuem síntese de voz, que convertem as informações da tela para a apreensão auditiva. Entre programas desta categoria, um dos mais usados no Brasil é o Dosvox. Este artigo apresenta a primeira parte de uma pesquisa que procura avaliar a usabilidade deste programa. Foi feita uma avaliação cooperativa com estudantes universitários cegos. Os resultados indicam que o programa afetou a experiência dos usuários com a Web, e o conhecimento adquirido poderá ser usado no desenvolvimento de novas versões do Dosvox. Key-words: accessibility, cooperative evaluation, blind people. It is known that the Web privileges the information based on the visual aspects of the information: colors, photographs, icons, symbols. Thus, the accessibility to the Internet for blind users is dependent of screen reader software, that convert the information of the screen for the auditory apprehension. Between programs of this type, one of the most used in Brazil is Dosvox. This paper presents the first part of a research that tries evaluate the usability of that program. It has been executed a cooperative evaluation with blind college students. The results indicate that the program affects the experience of the users with the Web, and the acquired knowledge can be used in development of new versions of Dosvox. Introdução. Sabe-se que hoje a internet é uma fonte inesgotável de recursos e informação para todos. Através da grande rede, pode-se trabalhar, estudar, pesquisar, conhecer pessoas. Contudo, conforme Berners-Lee, o criador da World Wide Web, “o poder da Web está em sua universalidade. O acesso por todos independentemente de deficiência é um aspecto essencial”. Mesmo frente a essa necessidade, um percentual expressivo de pessoas com deficiência, particularmente os cegos, estão excluídos do acesso amplo à Web. Sendo a internet um grande mecanismo de inclusão social, é fundamental que o maior número possível de pessoas se beneficiem dela. Deve-se assim permitir o acesso por pessoas com diferentes capacidades físicas, cognitivas, perceptivas, em diferentes contextos de utilização, para que todos possam aproveitar os seus recursos. Estudos realizados pelo governo britânico e pelas Nações Unidas (DRC, 2004; ONU, 2006) comprovam que a grande maioria dos sítios eletrônicos não respeitam os requisitos mínimos para que usuários com deficiência possam ter um bom aproveitamento durante a interação. De maneira geral, os sítios eletrônicos não seguem os padrões considerados mínimos em termos de acessibilidade na Web. A fim de contribuir para a inclusão dos cegos na Web, diversas tecnologias de apoio têm sido projetadas. No Brasil, o Dosvox é um dos mais programas usados pelos cegos, e a sua melhoria depende de estudos de usabilidade e de acessibilidade. Acessibilidade na Web. A norma ISO 16071 (2003), que estabelece diretrizes internacionais para a acessibilidade em programas de computador, define conceitualmente acessibilidade como a “usabilidade de um produto, serviço, ambiente ou recurso por pessoas com a mais ampla diversidade de capacidades” (características físicas, mentais e

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perceptivas). Como usabilidade pode ser definida, de acordo com a norma ISO 9241 parte 11, como efetividade, eficiência e satisfação num dado contexto de uso por usuários específicos, pode-se assim dizer que acessibilidade será a conjugação de efetividade, eficiência e satisfação por qualquer pessoa e sem a definição de um contexto específico de uso. Em outras palavras, é necessário que a interação se dê de maneira efetiva, com o máximo de eficiência possível e oferecendo uma experiência satisfatória para diferentes tipos de usuário, com ou sem deficiência, usando dispositivos ou programas alternativos com telas pequenas (como celulares e computadores de bolso) ou programas desatualizados. Mesmo que com apresentações diferentes, é necessário garantir o mesmo nível de acesso à informação para todos, respeitando as características de cada uma dessas circunstâncias. No caso da Web, as pessoas cegas são as que enfrentam maior nível de dificuldade para tentar realizar tarefas ou buscar informação (DRC, 2004). Nielsen (2001) estima que o acesso à Web é três vezes mais fácil para pessoas que não têm problemas de visão em relação a pessoas com deficiência visual. - Sobre cegueira. O decreto federal 5.296, de 2 de dezembro de 2004, define deficiência visual em duas categorias: “cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60 graus; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores”. Segundo esta classificação, pessoas com 5% da visão, ou menos, são cegas; já a acuidade visual entre 5% e 30% caracteriza visão abaixo do normal. Conforme outro tipo de classificação, encontrada no sítio eletrônico do Instituto Benjamin Constant (IBC), é cego o indivíduo cuja visão, mesmo com a correção adequada no melhor dos seus olhos, é de 20/200 (ou 6/60) ou menos, isto é, se ela só consegue ver a 20 pés (aproximadamente 6 metros) o que uma pessoa de visão normal pode ver a 200 pés (em torno de 60 metros). - Requisitos de acessibilidade para conteúdo em páginas Web. O World Wide Web Consortium (W3C) é um consórcio internacional onde organizações e pessoas afiliadas de todo o mundo trabalham juntas no desenvolvimento de padrões, políticas e guias de melhores práticas para o desenvolvimento da Web. O W3C, com seu Web Accessibility Initiative (WAI) estabeleceu diretrizes internacionais para garantir a difusão de práticas para adequação dos documentos na Web em termos de acessibilidade. Com esse objetivo, foi elaborado em 1999 um documento, o Web Content Accessibility Guidelines (WCAG). Este é ainda hoje considerado como o padrão mundial em termos de acessibilidade de conteúdo na Web. Entretanto, a conformidade e adequação ao WCAG ocorre de forma voluntária. Contudo, o WCAG vem sendo alvo de inúmeras críticas por sua desatualização em relação aos avanços da internet. Além disso, um estudo realizado por um órgão britânico comprovou que mesmo a adequação integral a suas recomendações não garantiriam acessibilidade efetiva (DRC, 2004). Este estudo, que entre outros métodos realizou a avaliação de sítios eletrônicos que cumpriam todas as recomendações do WCAG com a participação de usuários com diferentes deficiências auxiliados por especialistas, encontrou uma série de problemas de acessibilidade, onde 45% destes não eram violações diretas ao WCAG. Frente a estas e outras críticas, uma nova versão do documento está atualmente em estágio de desenvolvimento, o WCAG 2.0. Assim como todo documento do W3C, ele está sendo publicado em working drafts, que são iterativamente analisados pela comunidade de interessados que envia seus correções e sugestões de mudança.

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Tecnologias de apoio. As pessoas com deficiência geralmente utilizam tecnologias de apoio, que estendem as suas possibilidades perceptivas e motoras. Entre estas tecnologias, pode-se apontar como exemplos: próteses para pessoas com deficiência motora, aparelhos auditivos para pessoas com surdez moderada, programas de computador que ampliam o conteúdo na tela do computador para pessoas com baixa visão, monitores Braille para pessoas com surdo-cegueira. - Tecnologias de apoio no acesso à Web por pessoas cegas. Há diversas formas de tecnologias que dão suporte a pessoas cegas na interação com sítios eletrônicos na Web. Existem desde programas de computador (software) a dispositivos físicos (hardware). No presente estudo, serão apresentados apenas exemplos de tecnologias de apoio baseadas em software. Como não podem acessar o conteúdo da Web de maneira visual, as pessoas cegas utilizam principalmente no acesso à internet programas que utilizam a síntese de voz. Entre os programas desta categoria, destacam-se os os leitores de tela como solução mais difundida e utilizada. Basicamente, os leitores de tela transformam o conteúdo na tela do computador em voz sintetizada ou pré-gravada, passível de apreensão auditiva para pessoas que não possam ou tenham dificuldade de ter acesso visual à informação. Além das pessoas cegas, também utilizam estes programas algumas pessoas com baixa visão e com deficiência cognitiva. Existem muitos leitores de tela disponíveis, sendo a maioria comercial. Destacam-se o Jaws, o Virtual Vision e o NVDA. O objetivo destes programas é permitir que estas pessoas consigam interagir com o computador como as outras pessoas, realizando suas tarefas cotidianas. Contudo, estes programas se limitam a transformar o conteúdo da tela em voz, sendo uma interface entre os programas (navegadores, programas de e-mail, processadores de texto e outros) e seus usuários. Assim, para que haja acessibilidade de fato, é necessário que os programas e páginas na Web garantam a usabilidade por outros dispositivos de entrada diferentes do mouse. Como a grande maioria dos cegos acessa o computador via teclado, todas as seções e links em uma página devem ser passíveis de ser acessadas com facilidade por este dispositivo. De maneira análoga. um documento da Web será lido pelo programa leitor de tela para permitir sua apreensão sonora, a partir da forma como está estruturado, em linguagens adequadas para a marcação de páginas na Internet, como o HTML e o XHTML. Torna-se desta forma crucial que os documentos sejam construídos de forma a garantir a máxima compreensão independente da maneira como será acessado, seja de maneira visual, sonora ou tátil. No caso de leitura não visual de um documento da Web, ele é linearizado e transformado por tecnologias de apoio, de acordo com sua estrutura em termos de código-fonte. - Sobre o Dosvox. O Dosvox é um sistema para computadores da linha PC que se comunica com o usuário através de síntese de voz em português (podendo ser configurada em outros idiomas). Ele é formado por um conjunto de programas que compõem um ambiente de sistema integrado para uso por pessoas cegas. O sistema surgiu em 1993, através do trabalho de Antônio Borges e de Leonardo Pimentel, que na época era estudante de Informática na UFRJ. O objetivo era conseguir uma forma de fazer com que Leonardo, que é cego, conseguir utilizar o computador. Na época, as soluções existentes em síntese de voz para computadores eram precárias. Boa parte das soluções se baseavam em placas de síntese de voz, que eram muito caras. Assim, foram sendo gradativamente desenvolvidos os módulos que compõem o Dosvox. Entre os recursos que acompanham atualmente o Dosvox, podemos citar:

• Sistema operacional que contém os elementos de interface com o usuário; • Sistema próprio de síntese de fala, que traduz em voz todas as mensagens apresentadas pelo sistema; • Editor, leitor, impressor e formatador de textos em formato convencional ou Braille;

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• Programas para acesso à Internet, como correio eletrônico e navegadores; • Jogos de caráter didático e lúdico.

O sistema vai além do que oferecem os leitores de tela, que complementam os programas convencionais em ambiente Windows transcrevendo o conteúdo da tela para áudio para a apreensão auditiva. O ambiente Dosvox possui internamente seus próprios aplicativos e tem como objetivo ser uma solução completa para que as pessoas com deficiência visual possam fazer uso de computadores. Todos os programas são passíveis de ser acessados a partir da navegação por teclado e há ajuda contextual presente. Acompanham ainda o Dosvox outros programas que rodam fora do ambiente Dosvox, como um leitor simplificado de telas (Monitvox) e um ampliador de telas (LentePro) para facilitar a leitura para pessoas com baixa visão. Ambos rodam em ambiente Windows. O sistema busca estabelecer um diálogo sonoro com o usuário, convidando o usuário a navegar através de menu via teclado e buscando ao máximo facilitar a realização de tarefas sem conhecimento técnico. A comunicação homem-máquina é simplificada, e leva em conta as características e limitações dessas pessoas. Muitas das mensagens sonoras emitidas pelo Dosvox é feita em voz humana gravada, o que diminui o índice de estresse para o usuário, segundo os seus desenvolvedores (DOSVOX, 2007). O sistema é gratuito, e é executado a partir do Windows, estando em testes uma versão do sistema para o Linux, o Linvox, e conta com o suporte direto dos desenvolvedores do projeto. Estes mantém uma lista de discussão via correio eletrônico, a Voxtec. Esta lista tem como objetivo servir como um fórum para um diálogo constante com os usuários do Dosvox e assim poder ouvir comentários, críticas e sugestões de melhorias. A lista facilita tanto a troca de experiências de usuários como a aquisição de informações que podem ser usadas em possíveis melhorias para o programa. No Brasil, o sistema Dosvox é muito utilizado, sendo possivelmente o mais difundido. Além disso, é uma solução de código aberto, passível de melhorias propostas pela comunidade. Assim, pretende-se com o presente estudo entender melhor como se dá a interação dos usuários cegos na interação com a Web utilizando o programa Dosvox. Sujeitos do estudo. Neste estudo, pretende-se observar a influência específica do programa Dosvox na experiência interativa de pessoas cegas com a internet. Para isso, buscou-se inicialmente um grupo que fosse relativamente homogêneo em termos de contexto e nível sócio-cultural. - Alunos cegos da UniverCidade. Foi realizado previamente um contato com a coordenação da faculdade de Fisioterapia da UniverCidade - Centro Universitário da Cidade, onde soube-se que estudam alunos cegos e com baixa visão. O objetivo deste contato foi conseguir a autorização para que estes alunos participassem do presente estudo. Houve uma conversa preliminar com quatro alunos cegos e quatro alunos com baixa visão, onde pôde-se conhecer um pouco do perfil dos voluntários. Entre os alunos cegos, percebeu-se que dois deles eram mais interessados e engajados no aprendizado de novas tecnologias no acesso à Web e já eram usuários do Dosvox com experiência, enquanto os outros dois demonstravam certa resistência a este tipo de ferramenta e quase nunca faziam uso das mesmas, tendo pouca experiência no uso do Dosvox. O objetivo foi observar a experiência dos alunos cegos com a Web via Dosvox. Foi realizada uma pesquisa através de questionário por e-mail com os dois alunos mais interessados, já com experiência no uso do Dosvox. A partir de uma entrevista preliminar, percebeu-se que os outros dois tinham muito pouca experiência com o programa, e não tinham o perfil necessário para participar do estudo. O questionário continha as seguintes perguntas:

• Qual a sua idade?

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• Você é cego de nascença? Se não, há quantos anos perdeu a visão? • Há quantos anos (ou desde quando) utiliza o Dosvox? • Há quantos anos (ou desde quando) acessa a internet? • Você acessa a internet pelo módulo Webvox do Dosvox? • De quais características você mais gosta no Webvox? • Quais características te incomodam no Webvox? • Dê sua opinião geral sobre o Webvox.

A partir do questionário, percebeu-se que o perfil de ambos era muito semelhante. Ambos tem quase a mesma idade (27 e 28 anos), perderam a visão e usam computador através do Dosvox há mais de 10 anos. Apesar de fazerem uso da ferramenta há anos, ambos não reconheceram o nome Webvox, e associaram a outros módulos do Dosvox, como o Cartavox. Ambos destacaram como pontos positivos as possibilidades proporcionadas pelo Dosvox, como possibilidade de acesso a textos, e-mail, bate-papos sonoros, entre outros. Percebeu-se também nas respostas que os problemas de acessibilidade dos sítios eletrônicos são associados ao Dosvox. Metodologia do estudo. A partir destas informações, optou-se por observar os dois voluntários que demonstram ser mais motivados no acesso à Web com o uso de tecnologias de apoio. - Avaliação cooperativa. Para observar a influência do Dosvox na interação dos voluntários cegos com a Web, será utilizada a avaliação cooperativa. Segundo Monk (1993), este método é um procedimento para obter informações sobre problemas experimentados ao se trabalhar com um protótipo de software, e a partir dos resultados poder propor melhorias para as próximas versões. Segundo Santos (2000), a característica fundamental deste procedimento está em que o usuário e o pesquisador trabalham de maneira colaborativa. Enquanto o usuário realiza tarefas dentro do sistema observado, ele é observado pelo pesquisador e estimulado a “pensar alto”, fazendo perguntas, descrevendo as ações realizadas e emitindo comentários acerca do que ocorre durante a interação. Como o usuário realiza as tarefas fazendo comentários sobre a interação, isto interfere na maneira com que ele as executa. Pode-se registrar o experimento com anotações, gravação de áudio, vídeo e programas de monitoração da ação na tela, de acordo com a infra-estrutura disponível. - Aplicação do método. O experimento foi realizado no laboratório de informática da UniverCidade, que conta com computadores onde a versão mais recente do DosVox (3.4) está instalada em todos os computadores. Para a realização do experimento, foram definidas algumas tarefas a ser seguidas pelos usuários para observar suia interação com a Web via Dosvox. As tarefas eram: 1ª Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP); 2ª No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates; 3ª Entrar no sítio eletrônico do Submarino e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”; 4ª Entrar no site do DosVox e encontrar a versão mais atual do programa. Antes do experimento, foi explicado aos voluntários que o desempenho deles não era o foco do experimento, e sim o Dosvox e como este influenciava em sua experiência com a Web, seja positiva ou negativamente. Em seguida, os voluntários iniciavam a configuração do Dosvox. Abaixo descreve-se como se deu a interação dos usuários com a Web durante o experimento. Foi realizado registro por escrito sobre o comportamento dos voluntários e das impressões do pesquisador.

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Voluntário A. Nas pré-configurações do Dosvox, anteriores ao início das tarefas, o voluntário A desativou a síntese de falas SAPI, dizendo ser esta pior em relação à padrão do Dosvox. Inicialmente, ele entendeu acesso a internet como sinônimo de acessar o seu e-mail. Assim, ele acessou o Cartavox, através da opção C, do menu R (rede). Só quando orientado, percebeu que se tratava de buscar páginas na Web. 1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP). Ele tentou encontrar o Google em “páginas selecionadas” (opção S), mas não encontrou. Relatou que era o procedimento que realizava em casa e que lá já tinha salvos os endereços das páginas que ele mais acessava. Usou a opção de “trazer página” (T) e digitou o endereço com auxílio do pesquisador, já que não sabia soletrar a palavra “google”. A página foi carregada, e ele chegou sem problemas ao campo de busca, apesar da quantidade de links que havia no caminho. Realizou a busca por “Associação Brasileira de Pilates”. Na página de resultados, teve dificuldade em entender as opções que vinha antes dos resultados, citando como exemplo o item “Páginas do Brasil”, que para ele não era claro em relação ao contexto. Contudo, depois conseguiu chegar até os resultados e, por fim, encontrou o sítio eletrônico. 2ª tarefa: No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates. Tentou acessar informações sobre o curso através da busca textual do Webvox. Tentou buscar por “curso básico”, “curso basico” e “curso”, quando enfim encontrou o link procurado. 3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”. Entrou no sítio eletrônico do Submarino e iniciou a leitura linear da página. Ao ouvir o termo “cds”, tentou usar novamente a busca textual, usando este termo, mas isto não o ajudou a encontrar informações sobre o cd procurado. Acessou o link “música digital”, depois voltou e enfim encontrou a busca do site, digitando “caetano veloso”. Contudo, ele não conseguiu encontrar os resultados na página seguinte, tamanha a quantidade de conteúdo que aparece antes dos mesmos. Cada vez que se carrega a página, é necessário ler uma grande quantidade de itens entre menus, imagens e outros até acessar o conteúdo específico. Por fim, desistiu da tarefa. 4ª tarefa: Entrar no site do Dosvox e encontrar a versão mais atualizada do programa. Lembrou-se que o link para o sítio eletrônico do Dosvox salvo estava salvo nas “páginas selecionadas” e acessou mais uma vez este recurso (opção S). Entrou num sítio do Projeto Dosvox (CAEC), que continha um link para a página principal do Dosvox. Ao carregá-la, encontrou o link para o programa sem problemas. Voluntária B. Inicialmente, entrou na opção “Gerador de Homepages” (opção W) pensando ser o navegador do Dosvox. Não sabia o nome do navegador (Webvox), e nem a opção específica para acessá-lo a partir do menu, e precisou de ajuda. 1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP). Não associou inicialmente “trazer página” (opção T) à opção para acessar um sítio eletrônico. Abriu a página do Google, e também encontrou sem problemas a caixa de busca, digitando nela “Associação Brasileira de Pilates”. Ao iniciar o carregamento da página com os resultados da busca no Google, ela pensou que já seria a página da Associação procurada, e foi orientada sobre o engano pelo pesquisador. Ao descobrir que naquela página eram exibidos os resultados da busca, começou a ler o texto linearmente, mas ao chegar à caixa de busca que é colocada no começo da página, não entendeu o que fazer, e realizou a busca mais duas vezes, sem conseguir passar desta caixa de texto todas as vezes. Ela não entendia porque a caixa de texto aparecia de novo, e pensava ter feito algo errado ou que a busca não havia sido feita.

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Apenas quando informada que os resultados seriam exibidos após a caixa de texto, ela seguiu lendo o conteúdo e encontro o link adequado. Contudo, não sabia o que fazer para entrar no link, e acabou entrando por engano na versão salva em cache no Google. Por fim, desistiu da tarefa. 2ª tarefa: No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates. Como não houve o completamento da tarefa anterior, foi necessário entrar no sítio eletrônico da ABP através de seu endereço (www.abpilates.com.br), que foi informado à voluntária. Ao entrar no sítio eletrônico, ela leu a página linearmente até chegar ao link “Novidades e cursos”. Como a página que se abre é um texto um pouco mais longo, ela vai ouvindo o início de cada parágrafo e pulando para o próximo, para economizar tempo. Fez isso até encontrar o link “Cursos”, onde encontrou a informação procurada. 3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”. Entrou no sítio eletrônico do Submarino, e acionou por engano a opção “Lista de casamento”. Percebeu o engano, e recarregou a página principal. Relatou que não era claro quando era texto e quando era link, citando como exemplo uma lista de itens que aparece antes das categorias principais do sítio eletrônico. Contudo, tal lista era o título da página, que não pode ser associado a link, e que ela identificou como conteúdo. Achou a busca, mas na página de resultados se confundiu com a quantidade de itens entre o início da página e os resultados propriamente ditos. Desistiu de procurar o CD pelo Submarino e tentou o Google, mas realizou uma busca muito genérica, apenas por “Caetano Veloso”. Mais uma vez teve dificuldades em entender que os resultados vinham após a caixa de busca. Entrou no link sobre o Caetano Veloso do Wikipédia, no que foi informada que tal página não serviria para encontrar o CD do cantor. Após isso, desistiu da tarefa, passando para a última. 4ª tarefa: Entrar no site do Dosvox e encontrar a versão mais atualizada do programa. Assim como o outro voluntário, também lembrou que a página estava entre as “páginas selecionadas” e usou esse recurso. Este apresentou um comportamento atípico, não abrindo o link quando a voluntária pressionava “enter”. Isso deixou-a nervosa, e fez com que ela acionasse o recurso repetidas vezes, até que o mesmo funcionou. Após o carregamento da página do Dosvox, ela iniciou a leitura linear do documento, relatando que este continha muito texto. Entretanto, ela não teve muita dificuldade em encontrar o link para o programa atualizado. Resultados e discussão. De maneira geral, a grande maioria dos problemas encontrados pelos voluntários durante o estudo está relacionado ao baixo nível de acessibilidade dos sítios eletrônicos visitados (à exceção do sítio do Dosvox). Contudo, percebeu-se alguns problemas de acesso proporcionados pelo Dosvox. Ambos desativaram o recurso de síntese de voz SAPI, que disseram oferecer baixa qualidade de voz. Para a voluntária B, usuária menos freqüente do programa em relação ao voluntário A, algumas termos utilizados nos menus do Dosvox não eram muito claros, e precisavam de explicação (mesmo ela conhecendo o programa há mais de dez anos), como o “Trazer Página” e o “Gerador de Homepages”. Aconteceram alguns casos em que foram acionados links da opção “páginas selecionadas” (opção S) e a página não era aberta, possivelmente por algum defeito do programa. Da maneira como o conteúdo é apresentado pelo Dosvox, também não é muito clara a diferença entre links e o texto comum, sendo pouco perceptível também a diferença entre estes e os títulos e subtítulos das páginas, segundo os voluntários. De maneira geral, contudo, o programa foi elogiado por ser considerado fácil de aprender e por ser gratuito, o que facilita a sua difusão.

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Conclusões. De maneira geral, o experimento teve sucesso, já que pôde-se aprender mais sobre a maneira com que o Dosvox influencia a interação de pessoas cegas com a Web. Percebeu-se alguns problemas de usabilidade que certamente influem negativamente na qualidade da interação. Contudo, deve-se destacar mais uma vez que a grande maioria dos problemas enfrentados pelos usuários eram proporcionados pelos sítios eletrônicos acessados que têm sérios problemas de acessibilidade, como ficou demonstrado pelo experimento, à exceção do sítio eletrônico do Projeto Dosvox, que foi projetado em conformidade com os padrões de acessibilidade. A partir dos resultados deste experimento, que é parte de uma pesquisa de mestrado que estuda a influência do Dosvox na experiência de cegos com a Web, podem ser elencados alguns novos passos, entre eles a realização de testes da mesma natureza e entrevistas com especialistas em acessibilidade cegos, entrevistas e pesquisas estruturadas com os desenvolvedores e pesquisas quantitativas com outros usuários do Dosvox através da lista Voxtec. Espera-se assim contribuir para o desenvolvimento do Dosvox, que é sem dúvida um marco na vida dos cegos no Brasil e no movimento em prol da acessibilidade, para que se possa ter uma sociedade da informação mais inclusiva e igualitária. Bibliografia. Disability Rights Commission (DRC). The Web access and inclusion for disabled people: a formal investigation conducted by the Disability Rights Commission, London. TSO, 2004. International Standards Organization (ISO). ISO/TS 16071: Ergonomics of human-system interaction - Guidance on accessibility for human-computer interfaces. Geneva, Switzerland: ISO, 2003. International Standards Organization (ISO). ISO 9241-11: Ergonomics of human-system interaction - Guidance on usability. Geneva, Switzerland: ISO, 1998. MONK, Andrew; WRIGHT, Peter; HARBER, Jeanne; DAVENPORT, Lora. Improving your humam-computer interface: a practical guide. Hertfordshire: Prentice Hall, 1993. NCE - UFRJ. Projeto DOSVOX. On-line. Disponível em: <www.intervox.nce.ufrj.br/dosvox/>. Acesso em: 22 jun. 2007. NIELSEN, Jakob; COYNE, Kara Pernice. Beyond ALT Text: Making the Web Easy to Use for Users with Disabilities. Fremont, California: Nielsen Norman Group, 2001. Organização das Nações Unidas (ONU). United Nations Global Audit of Web Accessibility. On-line. Disponível em: <www.un.org/esa/socdev/enable/documents/fnomensarep.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2007. SANTOS, Robson; MORAES, Anamaria de. Ergonomização da interação homem-computador: abordagem heurística para avaliação da usabilidade de interfaces. Rio de Janeiro, 2000. Dissertação de Mestrado - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. World Wide Web Consortium (W3C). Web Content Accessibility Guidelines 1.0 (1999). On-line. Disponível em: <http://www.w3.org/TR/WAI-WEBCONTENT/>. Acesso em: 22 jun. 2007. Edson Rufino de Souza [email protected] Sydney Fernandes de Freitas [email protected]

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BREL E A CEGUEIRA: UMA GEOGRAFIA DA ALMA

Brel e a cegueira: uma geografia da alma* João Vicente Ganzarolli de OliveiraProf. Dr. do Deptº de História e Teoria da Arte da Escola de Belas-Artes da UFRJ Rio de Janeiro / Brasil Resumo Este artigo destaca o papel da poesia e da música como fenômenosparticularmente acessíveis aos cegos. O núcleo é a obra de Jacques Brel(1929-1978), cujo potencial descritivo revela-se propício para a abordagempretendida. Résumé Cet article met em relief le rôle de la poésie et de la musique en tant quephenomènes particulierement accessibles aux aveugles. Le noyau est l’oeuvrede Jacques Brel (1929-1978), dont le potentiel descriptif convient à l’approchechoisi. A paisagem é indissociável dos caminhos interiores.A alma reflete-se sobre a localidade espacial.[1] Passados trinta anos da morte de Jacques Brel (1929-1978), o mínimo que sepode fazer é dedicar-lhe algumas linhas. Falo como admirador. Escuto suasmúsicas e leio suas letras pelo simples prazer de fazê-lo. Não se trata deinsistir aqui no valor musical e poético da sua obra; são devidamentereconhecidos o talento do trovador belga do século XX, a beleza das suasmelodias e a profundidade dos seus versos. Contudo, eis que me parece haverencontrado um aspecto problemático na sua obra. Não se trata de umaimperfeição; é simplesmente uma ausência temática – e considerando que porvezes já é difícil julgar um artista com base naquilo que ele produziu, o quediremos de um julgamento voltado para aquilo que ele deixou de produzir? Édigno de nota que Brel não fale da cegueira nas suas canções. Evidentementeadmito a possibilidade da presença desse tema numa ou noutra canção que eunão conheça. Mas assumo o risco de dizer que o tema da cegueira, ainda queele apareça nesta ou naquela canção em particular, não é importante na obrade Jacques Brel como um todo. Não há nada de comparável, por exemplo, coma literatura de Jorge Luis Borges, que concede ao binômio visualidade/cegueiraum lugar central. É claro que isso tem relação com o fato de Borges sofrer davista desde a juventude e ter sido atingido pela cegueira na vida adulta; Brelnão passou por tal experiência. Mas isso não soluciona o problema, pois acegueira não é condição necessária para que se faça um poema a seu respeito.Lembremo-nos do Cego em Haiderabade, de Cecília Meireles, que caminha

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IMAGEM CORPORAL: CORPOREIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Ms. Profª. Rosilene Moraes Diehl Acad. Educ. Física Paulo E. F. Peixoto

UNILASALLE, Canoas, RS

RESUMO Este trabalho propõe identificar a percepção da imagem corporal de indivíduos com deficiência visual. A especificidade deste estudo consistiu em analisar a percepção corporal do indivíduo cego e com baixa visão na relação de orientação e mobilidade, relações sociais e emocionais. O instrumento foi a entrevista semi-estruturada. Os sujeitos deste estudo foram 11 adultos com deficiência visual. Destacamos três importantes categorias de respostas: percepção corporal em relação aos aspectos motores, sociais e emocionais. Para que as pessoas com deficiência visual sejam mais autônomas seu contexto deve ser de acessibilidade, tanto no aspecto familiar quanto na vida escolar e social. ABSTRACT This study consisted of analyzing the corporal perception of the blind people in the orientation and mobility, social and emotional relations. The instrument was semi-structuralized interview. The subjects of this study had been 11 adults with visual deficiency. We detected three important categories of answers: corporal perception in relation to the aspects motor, social and emotional. So that the people with visual deficiency are more independent their context must be of accessibility, as much in the familiar aspect and in belonging to school and social life.

RESUMEN Este estudio consistió en el analizar de la opinión corporal de personas ciegas y las relaciones de la orientación y de la movilidad, sociales y emocionales. El instrumento utilizado foie semi-estructuradas entrevistadas. Los individuos de este estudio fueron 11 adultos con deficiencia visual. Detectamos tres categorías importantes de respuestas: percepción corporal en referencia a los aspectos motores, sociales y emocionales. De modo que la gente con deficiencia visual sea más independiente su contexto debe tener accesibilidad, tanto en la vida familiar, cuanto en la vida de la escuela como en la vida social. 1. INTRODUÇÃO

O corpo é a expressão material da personalidade. Sendo intrínseco e inerente, identificado a nós como nosso esqueleto, nosso aparelho muscular, o corpo como um todo. Temos percepção corpórea própria. Diariamente, frente ao espelho, nos comparamos com os padrões vigentes, estereótipos de beleza e perfeição, e a tendência é imitá- los. Imitação do vestir, do pentear, do modelar o corpo e, principalmente, como agir a partir dos gestos e movimentos. O comportamento do ser humano segue padrões que podem ser compreendidos de forma mais ou menos nítida que entendemos como arquétipos, criando seu próprio mundo através da conquista da natureza. A “corpolatria” é expressão da cultura somática da sociedade de consumo. Estas colocações fazem-nos refletir sobre a dificuldade de modificar uma representação sócio-cultural.

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Os órgãos dos sentidos têm o papel de “situar-nos” perante o mundo. Assim como a linguagem que está baseada nas imagens, é através da visão que construímos a opinião sobre o mundo.

Para a pessoa com deficiência visual a percepção de si e do mundo à sua volta é alterada devido às informações que recebem serem reduzidas e suas representatividades, pobres. Assim, tais informações, feitas através da exploração do ambiente pela s mãos e outros sentidos, têm sua representatividade, às vezes, distorcida, gerando ansiedade e insegurança. Seus conceitos se formam ao longo do tempo e a partir de seus relacionamentos sociais, com informações produzidas a partir da descrição de objetos e espaço, por pessoas não cegas.

De acordo com Diehl (2006) a imagem do corpo, bem como sua relação com o meio ambiente, são conceitos abstratos para os cegos, tendo em vista que eles não dispõem ou possuem poucas referências visuais. Eles constroem o seu mundo físico basicamente através de sensações táteis, olfativas e auditivas.

Um dos aspectos mais inquietantes, na concepção do desenvolvimento perceptivo-motor do indivíduo com deficiência visual, é o de reconhecê- lo como um sujeito capaz de realizar e expressar sua corporeidade com a mesma “grandeza” que um vidente. Na Educação Física, é fundamental a utilização do corpo como instrumento de comunicação e expressão no desenvolvimento do indivíduo com deficiência visual. Atividades que busquem satisfazer as necessidades pessoais e sociais no dia a dia, de forma independente e auto-suficiente são, por exemplo: expressão corporal, música, dança, teatro e atividades esportivas adaptadas. “O contato com o fato artístico, os sons, a música, o movimento, a dança e as artes plásticas, são elementos que nutrem as vivências e a conduta pessoal”. (BRIKMANN, 1989, p.105). A proposta deste artigo destina-se, fundamentalmente, pesquisar os parâmetros da percepção corporal em deficientes visuais, identificar capacidades de percepção da imagem de seu corpo, suas inter-relações entre eles e com os demais. Gallahue & Ozmun (2003), comenta que fatores como um sentimento de bem-estar, imagem corporal, posição de controle e depressão, podem ser influenciados pelo envolvimento em atividades físicas. 2. METODOLOGIA

Este trabalho é um estudo descritivo-exploratório. Demarca o perfil de um grupo, analisa certos fenômenos, define pressupostos, identifica estruturas e possíveis relações com outras variáveis.

Definiu-se a população de indivíduos com deficiência visual, tendo como amostra nove sujeitos com cegueira total e dois com baixa visão, na faixa etária entre 19 e 45 anos, pertencentes à região metropolitana de Porto Alegre. Dois dos entrevistados são do sexo feminino e nove do sexo masculino.

O instrumento utilizado foi uma entrevista semi-estruturada. Os itens norteadores da pesquisa foram os seguintes: a) como se dá a percepção da imagem corporal do indivíduo com deficiência visual; b) sua percepção em relação ao corpo e sua mobilidade nas atividades da vida diária e também nas atividades físicas mais intensas; c) relação e interação com o meio, a família, a sociedade, etc.; d) como se processa seu lado emocional, seus medos, inseguranças, alegrias e tristezas.

3. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Após a coleta dos dados foi possível chegar a 3 categorias de análise: conforme aspecto físico motoras, social e emocional.

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Perspectiva físico/motora

Observamos que estes indivíduos possuem dificuldade em relação à percepção de seu corpo quanto aos aspectos físicos e motores. A percepção, muitas vezes, ocorre a partir das informações dadas pelo outro. Informações que são fundamentais para seu crescimento integrado sob vários aspectos. “O que eu percebo do meu corpo é assim, eu percebo o que os meus amigos falam” (Entrevistado 2); “... eu não me importo muito com isso, mas...eu só sei o que as pessoas dizem, né...” (Entrevistada 10).

Quanto maiores forem os estímulos e novas experiências do indivíduo, mais completo será seu desenvolvimento perceptivo, principalmente sob o ponto de vista psicomotor.

“Falar sobre a percepção que o cego tem do mundo, só ele pode falar, pois somente ele pode percebê- lo pelo seu corpo” (PORTO, 2005, p.35). Quando nos deparamos, ou imaginamos um objeto, ou quando construímos a “imagem” de um objeto, não agimos como uma simples máquina perceptora, mas como uma personalidade que experimenta essa percepção.

Através da elaboração da imagem corporal percebemos que somos iguais aos demais, pelo menos em nossa forma. Os cegos têm, na maioria das vezes, uma “visão” distorcida da realidade corporal. “... Eu sou alto, um pouco... tenho 1,63m” (Entrevistado 8). O Entrevistado 6, aproximadamente mesma altura, disse que era meio alto. “Sou meio magro... meio gordinho” (Entrevistado 1). Percebemos que a tendência é perceber o mundo, mais como eles crêem ou querem que seja do que através da informação recebida através dos diferentes estímulos. Acreditamos que para adquirir real percepção, os indivíduos dependem das relações entre os fatores do estímulo captados e das experiências vividas com este estímulo. Vivemos numa cultura em que a aparência é extremamente valorizada. É através dessa aparência que os demais nos percebem e nos reconhecem, por isso pode-se destacar a importância da imagem na determinação do conceito de auto- identidade e de autovalorização. Essa cultura constrói sua imagem de corpo e essa imagem se constitui numa maneira própria de “ver” e viver o corpo. Porém se percebe que os indivíduos cegos mesmo estando, às vezes, fora do “padrão” de beleza estabelecido pela cultura da corpolatria, relatam estarem contentes com seus corpos. “...Me sinto um pouco alta, né,.. eu me sinto realizada com meu corpo... não sinto bonita e nem feia, me sinto no padrão normal” (Entrevistada 10).

A maioria dos sujeitos entrevistados demonstrou preocupação com a postura, relatando que freqüentemente alguém lhes faz alguma observação a respeito do assunto.“Sim, eu ando sempre de cabeça baixa... eu tenho que levantar a cabeça e não consigo” (Entrevistado 7); “...Sim, a professora de teatro. Ela sempre fazia comentários com a gente, sempre caminhar com a cabeça alta, “olhando” para a frente e nunca caminhar encurvado, apoiando-se na bengala” (Entrevistado 8).

Uma vida fisicamente ativa e habilidade para desenvolver tarefas da vida diária, são fatores que podem ter efeito positivo no conceito que adultos têm de si e na maneira como os outros os vêem (Gallahue & Ozmun, 2003). Devemos ter em mente as dificuldades sofridas pelos indivíduos cegos quanto às possibilidades de ação e interação motora. Dificuldades ocasionadas pela reação da família e da sociedade que tendem a super protegê- los e a cercearem suas ações. “Às vezes eu tenho medo de ir para certos lugares, porque não tenho boa mobilidade. Às vezes eu vou para esquerda quando é para direita. Eu tenho uma mania, de não ”olhar” para a pessoa que está falando”(Entrevistado 6).

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Poucas atividades esportivas e exercícios reforçam este aspecto. Por isso, decorrente dessa já citada tendência à inatividade e a super proteção, constatamos que existe um déficit motor, acarretando uma diminuição de sua mobilidade. Tudo isso, traz consigo uma criação de barreiras e obstáculos que dificultam sua acessibilidade nos lugares onde poderia ir sozinho. “Uso bengala, eu não ando na rua sozinho, só se agarrar no braço de uma pessoa para caminhar” (Entrevistado 3); “Olha, na rua eu não ando sozinha ainda...mas eu estou fazendo aulas de locomoção” (Entrevistada 5).

Os obstáculos encontrados podem levá-los a um processo desencadeador de severos comprometimentos relacionados à independência, segurança e integração com o meio e consigo mesmo.

O ser humano é um complexo de emoções e ações, propiciadas por meio do contato corporal nas atividades psicomotoras, que também favorecem o desenvolvimento afetivo entre as pessoas, o contato físico, as emoções e ações. A psicomotricidade contribui de maneira expressiva para a formação e estruturação do esquema corporal, o que facilitará a orientação espacial. Consiste em relacionar-se através da ação, como um meio de tomada de consciência que une o “ser corpo”, o “ser mente”, o “ser espírito”, o “ser natureza” e o “ser sociedade”. A psicomotricidade está associada à afetividade e à personalidade, porque o indivíduo utiliza seu corpo para demonstrar o que sente.

É importante ressaltar que, quando foram questionados sobre as atividades da vida diária, se alguém na família ajudava em alguma coisa, dois sujeitos responderam que a mãe, além de outras ajudas, até abotoava suas roupas, ajudando a colocar a cinta nas calças e amarrar os sapatos.“A minha mãe faz tudo para mim”(Entrevistado 3); “...Eu ainda não apreendi. A maioria dos cegos, a família faz isso com ele, para proteger. Só que depois prejudica um pouco” (Entrevistado 11).

Muito embora todos os outros tenham relatado que sentem alguma dificuldade para a elaboração de suas atividades da vida diária, demonstraram que têm mais iniciativa a respeito.“Eu procuro fazer tudo sozinho, independer das pessoas, mas eu gosto quando uma pessoa vem se oferecer para me ajudar em alguma coisa, eu gosto disso” (Entrevistado 9).

A criança só apreende aquilo que vive concretamente. É importante que ela faça suas próprias descobertas através da manipulação e exploração do ambiente físico-social. Para isso podem e devem ser exploradas situações referentes às atividades domésticas, como por exemplo: alimentação, higiene pessoal, saúde, segurança e vestuário. Segundo Tavares (2003, p.81), “O desenvolvimento de nossa identidade corporal está intimamente ligado ao processo de vivenciar sensações dimensionadas à singularidade de nossas pulsões e de nossa existência desde a mais tenra idade”.

Perspectiva social

A família, muitas vezes, cria ao redor da criança cega uma redoma formada pela superproteção, causada pelo sentimento de culpa, pela desestruturação que o nascimento de uma criança deficiente causa, pelo medo e por falta de informações. Existe um total cerceamento da ação motora, tudo vindo à criança sem que ela saiba a origem, ocorrendo situações abaixo do seu limiar de captação, fazendo com que ela tenha a tendência de fechar-se cada vez mais em seu mundo. “...Eu levanto todo o dia às 8 horas. Tomo café. Vou para meu quarto, sento em minha cadeira giratória que a minha mãe me deu e fico escutando rádio o dia todo” (Entrevistado 3).

Para Gandara (1992) a família desempenha papel fundamental no desenvolvimento e educação do indivíduo com deficiência visual, pois resultados mais imediatos e corretos viriam de esclarecimentos e atendimentos prestados a partir da infância.

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Como a pessoa cega é muito dependente do meio, não tem muitas chances de escolha, só lhes resta atribuir valor ao que nele acontece. Sua área afetiva poderá estar saturada destes sentimentos equivocados, manifestando ansiedade, inseguranças ou até mesmo, sentimentos de incapacidade. Os indivíduos entrevistados deixaram transparecer a carência afetiva, trazendo a reboque outros sentimentos, como o medo, a tristeza e o pior de todos, o sentimento de solidão. “Ser carente é ser humano, é estar vivo e atuante numa eterna luta, sempre recomeçada e nunca finda” (SAÚDE, 2001, p.82).

A compreensão do quanto o indivíduo cego pode e é capaz diante das situações de vida é um desafio para ele e seus familiares. A maneira como a família se comporta pode acelerar ou retardar o processo de independência, trazendo conseqüências profundas ao longo do seu desenvolvimento. Nesse sentido, entendemos a importância da estimulação na família.

A preocupação com o desenvolvimento da criança com deficiência visual deve iniciar-se no nascimento, para que possam se estabelecer suas bases e atingir a maturidade necessária para uma boa interação sócio-afetiva no seu meio. Cabe, ainda, aos especialistas da Educação Especial, assumirem seu papel enquanto responsáveis pela orientação e estimulação durante o desenvolvimento da criança procurando evitar, prevenir e minimizar, na medida do possível, as defasagens que poderão ocorrer tanto no desenvolvimento, quanto na aprendizagem.

Em conformidade com Schilder (1980, p.243): “Nossa imagem corporal só adquire suas possibilidades e existência porque nosso corpo não é isolado”. Segundo este autor, um corpo é necessariamente um corpo quando está entre outros corpos. As pessoas aprendem a avaliar seus corpos através da interação com o meio em que vivem, assim sua auto- imagem é desenvolvida e reavaliada continuamente.

É preciso estimular o indivíduo com deficiência visual para que se mostre através de sua linguagem corporal, prestando atenção à sua maneira de mover-se, de relacionar-se com o mundo. Cada um traz, em seu corpo, uma memória de vida, uma história, um contexto familiar. Saber olhar esses corpos com a singularidade de cada um é o fundamento de uma didática cuidadosa, que valoriza a subjetividade e estimula potencialidades. Para as pessoas cegas, as maiores alegrias são centradas nos contatos, criando referenciais com alguém que lhes dê atenção. Em contra-partida, manifestam grande frustração quando são relegadas à condição de deficientes e até mesmo uma redução de atenção desperta- lhes tristeza. A indiferença dos videntes não é bem assimilada, tendo como conseqüência a insegurança. Identificou-se que a maioria do público entrevistado não possui muitos amigos e, que o pouco que tem, também é deficiente visual. “...Eu prefiro ter amigos cegos do que videntes, porque me sinto mais seguro, sabe...o vidente não me dá muita segurança... porque já tentei me aproximar de pessoas que enxergam, mas acabei não conseguindo” (Entrevistado 7).

A partir de experiências que valorizem atividades que contemplem o contato com o outro, com o mundo, podemos destacar a contribuição da construção de uma identidade e o desenvolvimento do indivíduo. Para o deficiente visual, estas experiências se tornam fundamentais, desenvolvendo e fortalecendo sua independência e sua auto-estima. Conforme Porto (2005), o ser humano é inseparável do meio ambiente e esse entorno humano se dá pela natureza e sociedade.

Nessa pesquisa, apenas um sujeito relatou que participa de festas com videntes.“Vou bastante, mas eu peço aos amigos para não me deixar no meio para não bater em ninguém.”(Entrevistado 2)

Na maioria das vezes, suas relações pessoais são comprometidas, fugindo do padrão de normalidade estabelecido.“Eu converso mais é por telefone. Eles (os amigos)

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nunca têm tempo. Eles falam, ah eu vou te visitar, mas na vão. Aí eu tenho que ligar, senão não me ligam”.(Entrevistado 11).

Assim, podemos identificar o quanto é complicado para esse público participar de eventos para videntes. O que se constatou é que na maioria das vezes, eles só participam de festas promovidas por entidades representativas dos indivíduos com deficiência visual. Quatro sujeitos relataram que nunca participam.

O relacionamento entre as pessoas caracteriza a unidade básica do sistema. Esta é formada sempre que duas ou mais pessoas prestam atenção ou participam nas atividades da outra, constituindo-se como um contexto crítico para o desenvolvimento. As pessoas não constroem seu esquema corporal sozinhas, sendo essencial o diálogo com os pais, professores, colegas e amigos, sobre o esquema corporal e a imagem do corpo. “Perceber e relacionar-se com o meio ambiente não se resume apenas aos sinais diretos que o cérebro recebe de determinados estímulos” (PORTO, 2005, p.88).

Perspectiva emocional

A pessoa cega, muitas vezes, chega à fase adulta sem um “passado” de experiências, não apresentando as rotinas da vida cotidiana de acordo com a sua idade. Seus conceitos básicos como esquema corporal, lateralidade, orientação espacial e temporal, são quase inexistentes e sua mobilidade difícil, o que poderá levar à baixa estima.

De acordo com estas colocações, pode-se entender o quanto a criança deficiente visual pode ser mal conduzida em seu desenvolvimento e aprendizagem, quando guiada pela insegurança, superproteção e, mesmo, desconhecimento das pessoas que a cercam.

A partir dos relatos, podemos evidenciar alguns pontos relativos à perspectiva afetiva, onde os entrevistados revelaram possuir uma grande carência, acarretando dificuldades para o equilíbrio emocional e a construção de sua personalidade. “Às vezes eu quero conversar com minha mãe e ela diz que não pode. Ela finge que não escuta. Então, foi aí que fui me fechando...me fechando” (Entrevistado 6).;“Como moro com minha sogra, eu tenho que agüentar muita coisa. Falam as coisas..., que eu não sei fazer comida na frente de todo mundo. Não deixam eu fazer absolutamente nada” ( Entrevistada 10).

A maneira preconceituosa de categorizar e rotular a pessoa cega é mantida e alimentada pela ideologia do déficit, num círculo vicioso que se mantém nas exigências produtivas de uma “sociedade de consumo” que só reconhece o indivíduo na medida em que ele produz. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade legitima sua isolação e justifica a criação de instituições asilares. Incontáveis são as pessoas cegas, confinadas em si mesmas, temerosas de “enxergar” a vida com suas próprias mãos, estagnadas em seu desenvolvimento pelas demandas de uma certa dotação física: a visão.

Porém, existem aqueles que ousam desafiar as “leis”, ignorando supostas “inaptidões” e mobilizam recursos no sentido de pleitear e tomar posse dos espaços conquistados. Não se pode negar que é através da interação que estabelece com o outro que o deficiente visual conquista um corpo seguro, ganhando confiança para a delimitação do espaço físico em que convive.

O desenvolvimento da auto-estima acarreta desafios que precisam ser enfrentados, pois a promoção da auto-estima passa pelo processo de desenvolvimento da aquisição de autonomia. “Ah, eu me sinto feliz. Antigamente eu nem saía de casa. Eu me sinto assim, que estou bem melhor. De fazer piscina. Aqui na Associação, a gente faz expressão corporal, eu me sinto muito bem”.(Entrevistada 5); “Eu sou uma pessoa de bastante alto astral.”(Entrevistada 10).

Normalmente, a auto-estima manifesta-se pela aceitação de si mesmo como pessoa e por sentimentos de valor pessoal e de autoconfiança, constituindo-se em fator

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determinante para o bem-estar psicológico e do funcionamento social. “No meu trabalho onde tem muita gente eu tenho que provar que eu tenho capacidade... não é porque eu não enxergo que eu vou querer que a pessoa me dá um trabalho com pena de mim, da minha cegueira”. (Entrevistado 10)

Muitos apresentam relatos de inibição quando se encont ram entre outras pessoas. “Na hora assim... que eu tenho que pegar um ônibus, tem que estar perguntando toda hora. As pessoas te ”olham” diferente...” (Entrevistado 2). “...Sinto medo quando como demais, de bater nas pessoas...entrar num lugar errado” (Entrevistado 3).

A vergonha é um sentimento que pode desencadear uma série de reações pessoais e sociais, havendo “remédios” que, no final, resumem-se a poucas medidas. Da vergonha, só nos livramos aceitando-nos com nossos defeitos, o que significa aceitar-se sem esconder as próprias faltas, falhas ou carências. A cura fica em torno de fortificar a auto-estima a ponto de nos permitir suportar o olhar do outro sem nos sentirmos na obrigação de dissimular o erro.

O medo é um sentimento que surge quando estamos diante de um perigo ou ameaça real a nossa integridade física ou psicológica. É uma emoção essencial, já que possui uma função protetora, pois prepara o corpo para enfrentar ou se esquivar do perigo. “ Eu tenho medo de ser assaltado, quando ando sozinho”(Entrevistado 7); “ Sinto medo de eu perder... algo que eu precise para sobreviver, por exemplo, a minha mãe”. (Entrevistado 9);

A aprendizagem, para lidar com os medos e dominar as preocupações e os receios é longa, exigindo que o indivíduo com deficiência visual “se sustente em seus próprios pés”. Dessa forma, deverá enfrentar suas fantasias e testá- las inúmeras vezes para verificar o quanto são produtos de sua imaginação ou em que aspectos são relevantes, contendo sinais reais e objetivos de perigos dos quais eles de fato precisam se proteger.

As emoções não são e não podem ser vistas como obstáculos a serem evitados. Nas interações com o meio social e cultural criamos sistemas organizados de pensamentos, sentimentos e ações que mantêm entre si um complexo entrelaçado de relações. Assim como a organização de nossos pensamentos influencia nossos sentimentos, o sentir também configura nossa forma de pensar. A tristeza, por exemplo, pode ser originada da perda de algo ou de alguém de muito valor ou importânc ia. Esta emoção pode ser potencializada se aquele que sofre de tristeza passa a acreditar que poderia ter feito algo para recuperar ou evitar a perda, mesmo que este algo a fazer seja na prática impossível de se concretizar, e independe da vontade do triste. A tristeza pode ser a conseqüência de emoções como insegurança, baixa auto-estima e desilusão.

Nos relatos transcritos, observamos que o sentimento de tristeza está presente no dia-a-dia do indivíduo cego, principalmente quando ele se sente “abandonado” pelos amigos, pelas pessoas de seu meio. “ O que me deixa triste é ser excluído” (Entrevistado 9); “Ah, me deixa triste o dia que não tenho meus amigos, que não me ligam...” (Entrevistada 5).

A deficiência causa efeitos no desenvolvimento da personalidade e do processo de adaptação social do indivíduo. O sentido da deficiência na vida de uma pessoa é o produto do entrelaçamento de sua história pessoal com o meio social onde vive. Sobre o indivíduo considerado deficiente, recairá o estigma da “incapacidade”, da “invalidez”.

4. PALAVRAS FINAIS

As dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência visual relacionadas à sua percepção corporal, sua mobilidade e tudo que se relacione com suas ações são muitas. Bem como poderia ser com a pessoa vidente. Porém, a falta de estimulação precoce, os obstáculos encontrados no seu dia-a-dia dificultando sua acessibilidade, a pouca oferta de espaços, para através do esporte e do lazer, desenvolver suas necessidades sócio-afetivas

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são maiores do que as demais pessoas. A carência dessas atividades pode levá-los a um processo desencadeador de severos comprometimentos relacionados à independência, segurança, aquisição e desenvolvimento de conceitos, integração com o meio e consigo mesmo, assumir ou concluir tarefas de conhecimento e satisfação pessoal. Essas relações entre imagem corporal, aspectos motores e de bem estar psico-social são fundamentais para se compreender a complexidade do universo da imagem corporal, auxiliando na melhor compreensão do desenvolvimento desse fenômeno e dos parâmetros que determinam todo o julgamento de si. Além disso, pode-se levar a especulações sobre trabalhos no sentido de fazer com que haja uma maior aceitação de si por parte do indivíduo com deficiência visual.

Encontramos algo de profundo questionamento à sociedade, o meio em que vive este público. A influência do social no pessoal é um fator existencial pouco considerado numa sociedade individualista, mas determinante para se compreender as limitações e possibilidades do indivíduo cego. Ao analisar o contexto das pessoas com deficiência visual entrevistadas, não fica difícil perceber que estes indivíduos, carentes do sentido da visão, não têm as mesmas condições e oportunidades de viver plenamente sem estímulos. Ao fazer parte de uma sociedade, o ser humano quer ter direitos e deveres, para ter a oportunidade de participar de modo efetivo do seu processo de construção, estabelecendo relações de troca, como qualquer outro.

Através de atividades específicas e sua total interação com o meio, pessoas com deficiência visual poderão ter mais oportunidades de conquistar seu espaço como cidadãos, independente de sua deficiência. A afirmação da individualidade e o desenvolvimento de uma identidade positiva dependem fortemente disto, contribuindo significativamente para uma vida plena desses indivíduos.

REFERÊNCIAS BRIKMAN, L. A Linguagem do Movimento Corporal. Trad. Beatriz A. Cannabrava. São Paulo: Summus, 1989. DIEHL, Rosilene Moraes. Jogando com as Diferenças. Jogos para Crianças e Jovens com Deficiência. São Paulo: Phorte, 2006. GALLAHUE, David L., OZMUN, John C. Compreendendo o Desenvolvimento Motor: Bebês, Crianças, Adolescentes e Adultos. Trad. Maria Aparecida da Silva P. Araújo. São Paulo: Phorte, 2003. GANDARA, Mari. A Expressão Corporal do Deficiente Visual. Campinas: Gandara, 1992. PORTO, E. A Corporeidade do Cego. Novos Olhares. Porto Alegre: Mennon,2005. SAÚDE, Educação e Prevenção, Coleção. Psicologia para Leigo. Porto Alegre: Conceito, 2001. SCHILDER, P.A. Imagen do corpo: as energias construtivas da psique . São Paulo: Martins Fontes, 1999. TAVARES, M.C.C. Imagem Corporal: Conceito e Desenvolvimento. São Paulo: Manole, 2003. Ms. Rosilene Moraes Diehl – professora do Centro Universitário UNILASALLE, Canoas, RS Paulo Peixoto – Acadêmico do Centro Universitário UNILASALLE, Canoas, RS [email protected] Av. Mariland, 1471 Porto Alegre, RS CEP 90440 – 191

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OBJETOS DE REFERÊNCIA

Promovendo o desenvolvimento de conceitos e habilidades de comunicação em crianças com deficiência visual e

dificuldades de aprendizagem.

Título Original: Objects of Reference

Royal National Institute for the Blind, 1993

Tradução: Sylvia Miguel - Projeto AHIMSA - HILTON PERKINS, 2002

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FOTOGRAFIA: Robert Maidment-Evans, Linden Lodge School, Wandsworth.

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2. O que “Objetos de Referência” podem representar? 06

3. Por que usar “Objetos de Referência”?. 09

4. Quais crianças podem se beneficiar com “Objetos de Referência”? 09

5. Quais habilidades e critérios precisam ser desenvolvidos a fim de se colocar em

prática “Objetos de Referência”? 10

6. Como os “Objetos de Referência” podem ser apresentados a

uma criança 11

7. Colocando em prática. 12

a) Apresentando outros objetos de referência 20

b) Reduzindo e simplificando cada objeto 13

c) Separando o Objeto de Referência daquele ao qual se refere 16

d) Seqüenciando o uso dos Objetos de Referência;

montando esquemas 16

e) Apresentando mais informações com os objetos 18

f) Usando Objetos de Referência como linguagem expressiva. 19

8. Diferentes maneiras de usar Objetos de Referência 20

9. Usando Objetos de Referência para abrandar

o comportamento desafiador 21

10. Objetos de Referência e outras formas de comunicação 21

11. Encorajando uma criança a escolher um

novo objeto e seu significado 21

12. Rotulando objetos 22

13. Conclusão; a importância de cuidadoso planejamento e avaliação 22

14. Leitura complementar 23

Bibliografia 24

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1 O que são Objetos de Referência? Simplificadamente, Objetos de Referência são objetos que têm significados especiais associados a eles. Eles estão para alguma coisa, praticamente da mesma forma que as palavras. Por exemplo, se uma criança parcialmente alfabetizada tomar um símbolo como este:

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e uma criança cega tomar uma versão em braile desses pontos:

em cada caso, para querer dizer a mesma coisa, uma criança que não pode ler ou escrever pegaria uma bola de plástico (da piscina de bolas) para se expressar.

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- Atividades. Neste ponto, os objetos irão freqüentemente coincidir com a mesma coisa de um dado item utilizado em determinada atividade, como no exemplo:

Bebida ..................................representada por uma caneca Algo para comer...................representado por uma colher Nadar................................... uma parte de uma toalha Piscina de bola.................... uma bola de plástico

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- Horários. Este item tende a ser abstrato –pelo menos no que diz respeito à compreensão infantil. Por exemplo, eu tenho utilizado um pequeno relógio de plástico para querer dizer 16h00 (momento em que algumas crianças vão para casa, outras tomam seu chá, e o resto sai para brincar).

- Qualificadores. Assim são chamados porque qualificam outros objetos.

Incluídos nesse grupo estão conceitos como sim e não; mais e acabou. Vale lembrar que estes certamente são conceitos abstratos:

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- Lugares. Representados da seguinte forma:

Sala de aula........................................um pequeno sino, preso na porta Casa...................................................a chave da porta da frente

- Pessoas. Para quem quer que seja representado, podemos, por exemplo, tomar uma pulseira, ou um pedaço de material de que é feito um objeto ou roupa.

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3 Por que usar ‘Objetos de Referência’? Objetos de Referência podem ser utilizados em muitas formas que podem ser utilizadas ao ler e escrever. Três principais razões acorrem à mente:

- Ajudar a lembrar coisas. As pessoas geralmente escrevem as coisas como um meio de não esquecê-las. Pense numa lista de compras, por exemplo, ou numa lista de endereços, diários e agendas. Nós os utilizamos porque não somos capazes de confiar apenas na memória.

- Entender melhor as coisas. Você desenvolve idéias difíceis no papel?

Considere este estudo. O fato de ver o relato por completo e ser capaz de ler e reler por si próprio, tornam os conceitos mais fáceis de entender do que simplesmente ouvir alguém ler o texto em voz alta?

- Comunicar-se com outras pessoas. Desde um recado para o leiteiro a

um cartão postal enviado para casa, ser capaz de ler e escrever nos possibilita comunicarmo-nos com outras pessoas.

����G���H������ ��������������������� �����<���������3� )����=>��As crianças que mais deverão se beneficiar ao utilizar “Objetos de Referência” são as:

- Crianças com deficiência visual – ou com problemas para interpretar o que vêem;

ou aquelas as quais - a escrita grande, o braile ou Moon (um sistema táctil alternativo de

leitura) não se apresentam como opções apropriadas – embora aprender a usar objetos simbolicamente possam tornar esses métodos de alfabetização mais accessíveis.

“Objetos de Referência” tem sido utilizado com jovens surdocegos durante algum tempo e, cada vez mais, vem desempenhando um importante papel na educação de

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crianças com problemas de visão e que também são portadoras de outras deficiências. O potencial para ajudar jovens que possuem conhecimentos de braile ainda precisa ser avaliado propriamente. Além disso, pode ser que pessoas de qualquer idade que apresentam condições degenerativas, como é o caso do mal de Alzheimer, possam ser ajudadas a utilizar suas faculdades mais efetivamente através da apropriada e suficientemente precoce introdução dos métodos de “Objetos de Referência”. É importante ter em mente que crianças com relativamente boa visão possam ter a capacidade de usar desenhos em vez de objetos, ou abstrair o desenho a partir do objeto.

5 Quais critérios e habilidades precisam ser desenvolvidos a fim de colocar em prática “Objetos de Referência”? A fim usar propriamente “Objetos de Referência”, a crianças precisará desenvolver:

a. Habilidade de diferenciar objetos pelo toque (e talvez por meio de limitada visão);

b. Uma avaliação, em certo nível, de que um objeto pode significar determinada coisa;

c. A capacidade de lembrar que determinado objeto tem um significado particular;

Ao se iniciar o uso de “Objetos de Referência”, esses aspectos não devem ser colocados ou, devem existir apenas de forma rudimentar. No entanto, um programa que utiliza símbolos de objetos irá promover ativamente a aquisição dessas qualidades.

6 Como “Objetos de Referência” pode ser apresentado a uma criança? A forma como o método pode ser apresentado depende do nível de desenvolvimento da linguagem da criança.

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- Se a criança tem linguagem suficientemente receptiva, então uma explicação verbal ou simbólica pode acompanhar a introdução dos primeiros objetos. Por exemplo, a pessoa que trabalha com a criança deve dizer: “Esta caneca significa ‘beber’’, depois do que, a caneca é apresentada e o gesto é seguido imediatamente pela bebida. Tal explicação e ação complementar devem ser repetidos quantas vezes necessário para que a criança faça a conexão. - Se um nível suficiente de linguagem ainda não foi adquirido, então o professor ou acompanhante terá que contar com a sucessiva apresentação de um objeto e aquilo que ele representa. Pode ser que se precise repetir esse gesto muitas vezes, durante um longo período, antes que a associação seja feita na mente da criança. Neste caso, a constância é particularmente importante.

Em ambos os casos, o objetivo principal é fazer com que a apresentação do objeto dispare o pensamento sobre a atividade, lugar ou pessoa a que o mesmo está associado. Assim, ele terá se tornado para a criança um “Objeto de Referência”. Aqui estão algumas dicas para dar início:

- Conheça algo que a criança realmente tenha interesse ou preferência. Se a coisa favorita da criança é milkshake de chocolate, então você pode decidir que o primeiro “Objeto de Referência” estará relacionado a isto.

- Selecione um objeto que seja tão característico quanto possível e que a criança ache atraente. Escolha um objeto fácil de se reconhecer pelo toque. É importante que a criança ache o objeto atraente, que queira senti-lo e ‘possuí-lo’.

- Primeiramente, certifique-se de que exista a mais simples ligação

entre o objeto e seu significado. Poderá ser sábio iniciar com um simples objeto ‘concreto’, que tenha uma conexão física direta com o

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objeto ao qual se refere. O que inclui, por exemplo, uma caneca para ‘bebida’ e uma colher para ‘comida’.

No entanto, este princípio não é apropriado para todos os casos. A forte motivação para entender ou expressar um pensamento mais abstrato, como ‘hora de ir para casa’, ou o particularmente prazeroso toque (ou talvez aparência) de um objeto pode ser um fator muito mais importante no que diz respeito à compreensão da criança. 7 Colocando em Prática. A bem-sucedida introdução dos primeiros Objetos de

Referência é demonstrada de diversas formas destacadas nos parágrafos que seguem. Enquanto algumas das sugestões podem ser apropriadas para uma criança em particular, o mesmo pode não ocorrer para outras crianças. O progresso deve ser construído em diversas frontes de uma vez, ou em apenas uma área de cada vez. As idéias podem ser adotadas em qualquer ordem, e não necessariamente na apresentada aqui.

a) Apresentando outros objetos de referência. Uma vez que a criança tenha

apreendido o significado de um Objeto de Referência (algo que pode acontecer quase instantaneamente ou levar meses de esforços), outros objetos devem ser apresentados. Diversos fatores devem ser levados em consideração enquanto o próximo passo é abordado. Por exemplo:

- Contraste. É uma sábia decisão selecionar, inicialmente, objetos que apresentam fortes contrastes, tanto em textura, como em tamanho, cor (quando apropriado) e significado. Assim, a possibilidade de confusão com outros Objetos de Referência serão mínimos. Gradualmente, poderá ser possível utilizar Objetos de Referência que são menos característicos ao toque (aqueles cujas saliências são menos claramente definidas).

- Motivação. Até que um Objeto de Referência se torne uma fonte de motivação em si mesmo --o que pode acontecer à medida que a criança começa a gostar de sua nova descoberta e a controlar o mundo ao redor—, os professores ou responsáveis devem sempre manter em mente

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alguma preferência ou aversão particularmente forte da criança. Sobre o que a criança gostaria de pensar ou ler a respeito, ou que tipo de coisa ela gostaria de nos comunicar?

- Grau de Abstração. Conforme a criança alcançar suficiente grau de

compreensão, objetos mais abstratos devem ser gradualmente apresentados, os quais têm menos conexão física imediata com aquilo que representam.

b) Reduzindo e Simplificando cada objeto. Pode ser possível reduzir ou simplificar alguns ou todos os objetos que uma criança usa. Há duas razões pelas quais isso pode ser desejável:

- Economizar espaço. Objetos de uso cotidiano podem ocupar muito espaço e ser de difícil manuseio, especialmente se a criança construir um vocabulário rico!

- Promover o aprendizado. Existem benefícios educacionais, os quais

estão descritos na página 13.

Os objetos poderão ser reduzidos no tamanho, simplificados, ou ambos.

- Redução. Tome, por exemplo, a bolinha da piscina de bolas mostrada na página 2. Ela poderá ser substituída por uma outra ligeiramente menor e, mais tarde, por uma outra ainda menor, e assim por diante. Esteja alerta, no entanto, para a redução do tamanho dos objetos e pense na conexão com seu equivalente, no caso de crianças visualmente debilitadas. Por exemplo, para o toque, um pequeno modelo de carro tem pouca ou nenhuma semelhança ao objeto real. A miniaturização, nesse contexto

(coisa que é muito mais visual), pode ser bastante inapropriada para crianças cegas nos primeiros estágios de aprendizado. Poderá ser muito melhor representar o transporte/viagem num automóvel usando-se parte do veículo com a qual a criança tem contato corriqueiro. Assim, uma boa forma de representar a ação ‘andar de micro-ônibus’, por exemplo, pode ser com o uso de uma fivela de cinto de segurança.

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- Simplificação. Este processo em dois estágios principais. Primeiro, aqueles que trabalham com a criança devem descobrir as características que estão sendo usadas para identificar um objeto e, então, gradualmente eliminar aquelas características julgadas como sendo de menor importância. Por exemplo, uma criança pode ter uma caneca para significar ‘bebida’. Mas como a caneca está sendo identificada? Pela borda? Ou pela aba? Nesse caso, será que o resto da caneca não pode ser removido e, ainda assim, ser aceito pela criança com o significado de ‘bebida’?

Mais tarde, poderá ser possível simplificar as características restantes. Por exemplo, a aba da caneca poderia ser substituído por semi-círculo plano. Conforme os objetos são reduzidos em tamanho e simplificados, será possível gruda-los em cartões. Se esta é a meta, conforme os objetos são modificados com o passar do tempo é sensível mudar para uma representação bi-dimensional. Naturalmente, com alguns objetos nenhuma modificação será necessária.

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Ao construir cartões como este, os objetos representados poderão ser dispostos como se fossem um livro, o que é uma forma conveniente para armazenar novos objetos e manusear. Este formato também traz os Objetos de Referência a um passo mais perto da leitura, em sua forma convencional. Finalmente, os objetos, simplificados e reduzidos onde necessário, podem ter suas formas copiados por processo térmico. Trata-se de um processo de moldagem a vácuo, no qual uma fina lâmina de plástico é aquecida e sugada sobre o objeto em questão, imitando cada contorno seu. Dessa maneira, os Objetos de Referência podem ter, de forma relativamente fácil, uma ‘produção em massa’ e, mais uma vez, trazem a criança mais perto de ler pelo sistema braile ou Moon. Na realidade, não há razão pela qual um objeto não deva ser, convenientemente, transformado em uma letra em braile ou Moon. Por exemplo, uma forma simplificada da aba da caneca mostrada na página 11 pode ser interpretada como um ‘b’, de ‘bebida’, no alfabeto Moon.

Os benefícios educacionais ao se comprometer com programas de redução ou simplificação podem ser enormes, com o discernimento que tais sistemas oferecem à forma como a criança raciocina. Quanto uma bola de uma piscina de bolas pode ser reduzida e ainda ser aceita como uma representação da original? Até que ponto sucessivas reduções podem ser transformadas para que a equivalência de um objeto seja mantida na mente da criança? Normalmente, isso acontece até o ponto onde as coisas aparentemente se fragmentam (pode-se descobrir, por exemplo, que uma criança não irá aceitar uma chave moldada pelo processo térmico como a equivalente ao objeto original). Desta forma, nota-se que o processo de aprendizado para professores e responsáveis está realmente começando e, assim, futuros programas individuais de aprendizado poderão ser planejados com precisão. Precisamos saber exatamente o estágio em que a criança se encontra para que

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tenhamos pistas para darmos os próximos passos durante o processo de desenvolvimento e encorajar tal progresso.

c) Separando o Objeto de Referência daquele ao qual se refere. O Objeto de Referência pode ser gradualmente separado cada vez mais daquele ao qual se refere. Assim, a bola da ‘piscina de bolas’ pode ser apresentada juntamente com uma indicação de “em um minuto/dentre em breve”, por exemplo. A atividade (brincar na piscina de bolas), portanto, ocorrerá depois de passado o tempo indicado, período que poderá, aos poucos, ser estendido conforme a criança começa a aceitar o novo conceito. Desta forma, os objetos poderão, cada vez mais, ser utilizados de maneira abstrata.

d) Seqüenciando o uso de Objetos de Referência; realizando esquemas. Ao ter separado o objeto de referência daquele ao qual se refere, a criança, em seguida, começa a antecipar seqüências de eventos, e isso pode incluir duas atividades. Por exemplo:

“Depois da piscina de bolas, vamos ter uma bebida.” Ou: “Depois da natação, será hora de ir para casa.”

Sobre uma mesa, essas idéias podem ser apresentadas da esquerda para a direita, como no processo de leitura. Se duas atividades podem ser apresentadas com sucesso, então tente três. Por exemplo: “Depois de nadar, vamos ter uma bebida e então será hora de ir para casa.” Então, tente quatro, cinco atividades e assim por diante. Mais uma vez, será importante avaliar o nível de desenvolvimento da criança nesta área. Quão longa pode ser a cadeia de futuras atividades que uma criança pode apreender? Até quanto esse número pode ser estendido? Entendendo como os eventos são seqüenciados, uma criança pode começar a criar conceitos sobre o passar do tempo. Uma escala de atividades pode ser construída por todo o período da manhã, para um dia, uma semana ou até um período mais longo. Especialmente com portadores de múltipla deficiência, é importante ter em mente que a ‘agenda’ deve ser válida para todos os momentos do dia; assim, se a escala de atividades será usada, não deve parar às 16h00, por exemplo, ou no momento em que termina o dia escolar. Imagine, como professor, ter um relógio enquanto você estava na escola e, então, ter que lidar sem ele durante o período noturno.

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A constância é um elemento vital na educação de crianças com dificuldades de aprendizado; no entanto, o inesperado sempre pode acontecer e uma agenda palpável (táctil) ajuda a esclarecer mudanças na escala de atividades. Por exemplo, se a piscina não pode ser utilizada, esta atividade poder ser substituída na agenda por uma outra, e a alteração poderá ser mostrada à criança. Assim, a criança poderá aceitar com mais facilidade a mudança em uma atividade favorita do que aceitaria de outra forma. A seqüência de objetos pode ser utilizada não apenas para antecipar futuros acontecimentos, mas também para referir-se a eventos passados. Para a típica pergunta: “O que você fez esta manhã?” a qual muitas crianças com dificuldades de aprendizado acham tão difícil, os objetos poderão fornecer o necessário despertar para a memória. Para as crianças as quais a apreensão da linguagem ainda encontra-se nos estágios iniciais –fase em que o passado, presente e futuro são freqüentemente confundidos—, os Objetos de Referência poderão ser de valor inestimável. A escala de atividades mostrada abaixo é feita de uma série de caixas com tampas que podem ser fechadas para indicar que uma atividade acabou. A intenção é que a escala seja consultada no início do horário escolar e que seja atualizada, fechando-se a tampa apropriada, a cada mudança de atividade. Momentos antes ao horário de ir para casa, os eventos do dia poderão ser todos verificados. Estará sempre disponível para consultas.

e) Apresentando mais informações com os objetos. Uma vez que a criança possa entender, com os Objetos de Referência, que atividades básicas tais como ‘piscina de bolas’, nadar, comer e outras, irão acontecer, e quando acontecerão, em relação a

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outras atividades, então a forma como essas informações são apresentadas podem ser refinadas de diversas maneiras. Por exemplo, quem irá nadar? Nós iremos tomar alguma coisa na sala de aula ou na sala de lanche? As quatro perguntas principais que precisam ser respondidas provavelmente se resumem a:

O que?

Quando?

Onde?

Com quem? O objeto que representa a atividade irá responder a primeira dessas perguntas e sua posição em relação a outros objetos irá fornecer a informação questionada pelo segundo objeto. O que? Primeiro objeto P.E Onde? Segundo objeto sala de ginástica Com quem? Terceiro objeto Sr. King Os objetos podem ser anexados com Velcro para facilitar a arrumação dos cartões de acordo com as necessidades do momento. f) Usando Objetos de Referência como linguagem expressiva. Uma vez que as crianças tenham se familiarizado com o processo de receber informações por meio de Objetos de Referência (como saber o que está prestes a acontecer, por exemplo), elas

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poderão ser encorajadas a usar objetos de referência de uma forma expressiva, a fim de escolher por elas mesmas o próximo passo da ação ou, quem estará participando, onde e quando.

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Esta idéia poderia ser apresentada oferecendo-se à criança a escolha de dois objetos, representando, digamos, um copo de leite e um copo de limonada, e deixando a criança escolher a opção preferida. Nessa situação de escolha ‘forçada’, a seleção poderia ser feita entre três ou mais objetos. Se uma agenda de atividades está em operação, um espaço poderia ser deixado para ser preenchido pela criança com a atividade de sua escolha, talvez como recompensa por ter realizado com êxito a tarefa anterior. Frases poderiam ser completadas com objetos sobre uma mesa, possivelmente usando um quadro de Velcro ou alternativa que se encaixe. Por exemplo, em resposta à pergunta “O que você fez esta manhã?” a criança deverá selecionar e ordenar os objetos apropriados entre diversos outros objetos apresentados como opção. Ao usar tais objetos, a criança poderá comunicar, por exemplo, que: “Nós tivemos música [representada por sinos] no ginásio [um apagador] com Anna [bracelete de metal]”.

8 Diferentes maneiras de utilizar Objetos de Referência. A possibilidade de usar Objetos de Referência para praticar seqüência da esquerda para a direita já foi mencionada –potencialmente, uma forma mais significativa de ensaiar esta habilidade do que o tradicional (?quadro enganchado na parede). Os objetos também podem ser organizados em grupos. Por exemplo:

“Coloque todas as atividades de casa [objetos] dentro da caixa da esquerda e todas as atividades escolares [objetos] dentro da caixa da direita”. Vale repetir que as tarefas educacionais relativas à família assumem um significado mais profundo para a criança. Ele ou ela não está escolhendo simplesmente uma série de objetos impessoais, mas coisas que realmente significam alguma coisa, e isso poderá talvez levar a uma linguagem e discussão complementares. Crianças que utilizam os mesmos objetos de referência podem trabalhar juntas e interagir uma com a outra, em atividades conjuntas de mesa.

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9 Usando objetos de referência para abrandar o comportamento desafiador.

Com sorte, a utilização de objetos de referência irá ajudar a criança a entender melhor o seu mundo e aperfeiçoar sua habilidade para comunicar-se com outras pessoas. Esses dois fatores por si poderão levar à redução de certas formas do comportamento desafiador. Ao ser capaz de antecipar o que vai acontecer em seguida, com quem e onde, e ao saber quando determinada tarefa está terminada (através do uso de um objeto para significar ‘terminou’), os sentimentos de incerteza e, conseqüentemente, ansiedade poderão ser reduzidos consideravelmente. A capacidade de expressar suas necessidades com mais exatidão às outras pessoas poderá amenizar os sentimentos de frustração.

Além do mais, a dependência da criança em relação a um adulto sempre pronto a interpretar o mundo tenderá a diminuir. Para saber o que irá acontecer esta tarde, consulte a agenda de tarefas! Com o uso de objetos de referência, um relacionamento interpessoal intenso de confiança pode ser amenizado, uma vez que a criança aprende a receber mais informações do meio que a cerca. Assim, a tendência ao comportamento desafiador poderá ser menor. 10 Objetos de Referência e outras formas de comunicação. Objetos de

referência não são um meio exclusivo de aprendizado; esse sistema pode ser utilizado em conjunto com outras formas de comunicação tais como sinais e fala. Se uma criança tem dificuldade com qualquer forma de interação de significado, pode ser útil explorar todas as janelas que se abrem.

11 Encorajando uma criança a escolher um novo objeto de referência e seu

significado. Em uma caixa em que são apresentadas diversas possibilidades de objetos de referência, uma criança pode ser “convidada” a escolher qual deles a criança gostaria que representasse uma nova atividade, um novo horário, lugar ou uma pessoa. Desta forma, o aprendiz verdadeiramente seria “dono” do objeto como parte de sua linguagem pessoal. Esse sistema pode apresentar dificuldades, no entanto, se diversas crianças estão sendo ensinadas ao mesmo tempo; isso, do ponto de vista prático, já que um determinado objeto escolhido pode variar de uma criança para outra. Imagine, por exemplo, ter seis diferentes símbolos e todos significando “hora do almoço”! Rotular tais objetos pode ser uma forma de aliviar este problema.

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12 Rotulando objetos. Todos os objetos deveriam ser rotulados para que todos

entendam imediatamente o que a criança quer dizer ou precisa. A idéia de “significado duplo” não cessa somente ao se escrever seu significado. Os objetos também podem ser rotulados em braile ou Moon, por exemplo. É até possível relacionar os diferentes objetos, se os distintos símbolos envolvendo uma atividade em particular, uma pessoa, lugar, ou horário, estejam ligados entre si, interagindo juntos, como, por exemplo, uma placa de trânsito que é indicada em duas línguas, digamos, em francês e inglês.

13 Conclusão: a importância de um planejamento cuidadoso e a avaliação.

Para finalizar, gostaria de ressaltar como é importante planejar muito cuidadosamente antes de iniciar um esquema que utiliza Objetos de Referência. O desenvolvimento de uma criança pode ser algo difícil de se prever e seria desastroso iniciar com certos objetos e perceber que levarão a contradições mais tarde e, assim, terão de ser abandonados. Por exemplo, um pedaço de toalha, escolhido para significar “natação”, poderia ter sido melhor utilizado para representar “tomar banho” ou até “secar-se”.

Da mesma forma, ao planejar uma agenda de tarefas para um tempo relativamente longo, como uma semana, é aconselhável que o período se estenda por cinco ou sete dias de uma vez, a fim de se eliminar possíveis obstáculos. É surpreendente as coisas que podem ser deixadas de lado involuntariamente! Mesmo com essas precauções, eu recomendaria que se tenha uma caixa de objetos “estepe”, ou de sobra, prontos para que lhes sejam atribuídos novos significados. Uma situação estranha e perturbadora pode subitamente aparecer, por exemplo, ou um adulto não familiarizado com aqueles símbolos pode chegar inesperadamente; e tais circunstâncias podem demandar a criação de novos Objetos de Referência no calor do momento. No estágio de planejamento para a utilização de objetos de referência, lembre-se de envolver todas as pessoas que tenham contato com a criança, na escola e em casa, se possível. Objetos de Referência não são criados com a mera intenção de serem usados sobre uma mesa em que se apresentem atividades que preencham meia hora, toda manhã, antes do recreio. Da mesma forma que temos constante acesso à leitura e à escrita ajudando-nos a entender melhor as coisas, a nos lembrar das coisas e a comunicarmo-nos com as pessoas, também os Objetos de Referência podem informar tudo sobre a vida da criança, tanto na escola como fora dela. Para que isso aconteça, é essencial que os objetos sejam usados consistentemente, mesmo quando as pessoas e as circunstâncias mudam.

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Desde o princípio, é importante a cooperação de todos, e será preciso um padrão, ou que todos cheguem a um acordo sobre como os objetos de referência serão utilizados. Um treinamento será certamente necessário. Mantenha sob cuidadosa atenção as abordagens que serão adotadas, de forma que, quando um orientador sai, ou quando as situações mudam, a estrutura permaneça a mesma e o ambiente de aprendizado da criança permaneça intacto. Após os estágios iniciais, o progresso irá depender de registros e avaliações sistemáticas, que irão possibilitar que os novos passos sejam mapeados com segurança. Tenha metas claras, discutidas com todos os envolvidos, incluindo, na medida do possível, a criança. Sempre busque melhorar: a criança irá progredir tanto quanto nossas idéias, imaginação e perseverança permitirem. 14 Leitura Complementar. Existem muitos livros e artigos que tratam com

maior profundidade e amplitude alguns dos tópicos aqui introduzidos. Entre eles, incluem-se:

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BIBLIOGRAFIA Confrontation between the Young Deaf-Blind Child and the Outer World (Comparação entre a criança surdocega e o mundo exterior), de Mary Rose Jurgens, com introdução de J. Van Dijk, publicado por Swets & zeitlinger B.V., Amsterdam e Lisse, 1977. A Development Programme for Deaf-Blind Children (Um programa de desenvolvimento para crianças surdocegas), de Tom Visser, em ‘Taking Sense’, Vol 31, nº 3 (outono, 1985). Objects of Reference (Objetos de Referência), de Laura Pease, Sue Ridler, Jon Bolt, Sue Flint e Chris Hannah, em ‘Taking Sense’, Vol 34 (primavera, 1988) Educating Fátima (Educando Fátima), de Jon Bolt e Sue Ridler, em ‘Taking Sense’, Vol 35 (inverno, 1989) Objects Symbols: A Communication Option (Objetos-símbolo: Uma escolha de comunicação), de Ylana Bloom, publicado por North Rocks Press, (361-365 North Rocks Road, North Rocks 2151, Austrália, 1990)

Este livro foi publicado pela Royal National Institute for the Blind

RNIB oferece um vasto leque de services para crianças com deficiências visuais suas famílias e profissionais, incluindo: - acompanhamento para crianças com deficiências visuais em escolas regulares - escolas e colégios para crianças com deficiências visuais e jovens - serviços de treinamento - informações e publicações

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224 Great Portland Street London W1N 6AA

Tel.: (071) 388-1266 Ou

RNIB National Education Centre Garrow House

190 Kensal Road London W10 5BT

Tel.: (081) 968-8600 Tradução: Sylvia Miguel - Projeto AHIMSA - HILTON PERKINS, 2002

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371 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

Perspectivas da atuaçãofonoaudiológica diante dodiagnóstico e prognóstico

da surdocegueira

Brasília M. Chiari*

Eliane L. Bragatto**

Regiane Nishihata***

Carolina A. F. de Carvalho****

Resumo

A audição e a visão tratam de duas entradas sensoriais importantes para o desenvolvimento e aconservação de uma plenitude na comunicação. Há enfermidades em que, além da observação clínica eaplicação de testes empíricos, a avaliação qualitativa é imprescindível, como nas síndromes ou doençasque acometem os sistemas auditivo e visual, simultaneamente. A surdocegueira na Síndrome de Cogan écaracterizada por disacusia neurossensorial, alterações vestibulares e oftalmológicas, além decomplicações sistêmicas; é rara e de causa desconhecida, acometendo predominantemente indivíduosadultos jovens, da raça branca e sem preponderância de sexo. Neste estudo de caso, avaliamos de formaqualitativa um indivíduo com diagnóstico de Síndrome de Cogan, incluindo questões relativas aos aspectosde vida pessoal, social e profissional, nos períodos pré e pós-diagnóstico, enfatizando as dimensões dafuncionalidade da sua comunicação. Discutimos critérios a serem estabelecidos pela equipemultidisciplinar para tais casos particulares, quanto às condutas na avaliação e orientação familiar, eapontamos diretrizes do processo de reabilitação, especialmente a terapia fonoaudiológica e a realizaçãoda cirurgia de implante coclear.

Palavras-chave: surdez; cegueira; síndrome de Cogan; implante coclear; comunicação.

Abstract

Hearing and Vision are two important inputs for an individual to develop and keep fullcommunication. There are illnesses, whose treatment, besides the clinical observations, need theapplication of qualitative assessment, such as illnesses and syndromes that affect hearing and visionsimultaneously. The Cogan Syndrome, a sort of deafblindeness, is characterized by sensorineuralhearing impairment, vestibular and ophthalmological alterations, in addition to systemic alterations.It is a rare syndrome triggered by an unknown factor that affects white young-adults, irrespective ofgender. In this case study of a subject with Cogan Syndrome, we analysed qualitatively, social, personaland professional aspects, with emphasis on the communication effectiveness, before and after diagnosis.

* Professora Titular da Disciplina dos Distúrbios da Comunicação Humana do Departamento de Fonoaudiologia daUnifesp/EPM. ** Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM; especializadaem Neuropsicologia pela Unifesp/EPM. *** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pelaUnifesp/EPM. **** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM.

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372 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho

Introdução

O desempenho comunicativo eficaz é depen-dente da integridade das funções sensoriais, essas,por sua vez, o portal de nossa percepção. Brunerpropôs que

[...] toda percepção é um processo ativo, inerente-mente complexo de classificar informações novasem categorias conhecidas, sendo um evento inti-mamente ligado às funções de abstração e genera-lização da linguagem. (Giacaglia, 1990)

A surdez e a cegueira prejudicam duas im-portantes modalidades sensoriais. Há váriasdoenças e síndromes cujas manifestações acome-tem o indivíduo com as deficiências visual e au-ditiva, simultaneamente. Profissionais de diver-sas áreas postulam que tais indivíduos não devemser considerados como portadores de deficiênciamúltipla e sim de “surdocegos”, por se tratar nãoapenas da somatória de perdas, mas de um fatormultiplicador, em que a combinação da privaçãode sentidos resulta em severos problemas na co-

municação, desenvolvimento e educação, neces-sitando de programas exclusivos para atendimen-to em suas especificidades.

Na I Conferência Mundial Helen Keller, reali-zada em 1977, foi aprovada a definição

São surdocegos os indivíduos que têm uma perdasubstancial da visão e audição, de tal modo que acombinação de suas deficiências causa extrema di-ficuldade na conquista de habilidades educacionais,vocacionais, de lazer e sociais.

O Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e aoMúltiplo Deficiente Sensorial define:

É uma deficiência única, com graves perdas visuale auditiva combinadas. Essa combinação leva apessoa surdacega a ter necessidade de formas espe-cíficas de comunicação, para ter acesso à educa-ção, lazer, trabalho, vida social etc.

Da mesma forma, o termo surdocego já seencontra definido nos Parâmetros CurricularesNacionais/MEC, sob o conceito:

We propose criteria of assessment and family orientation to be establish by a multi-disciplinary teamin similar cases and suggest guidelines for rehabilitation, specially speech therapy intervention andcochlear implant.

Key-words: deaf; blind; Cogan syndrome; cochlear implant; communication; comunication.

Resumen

La audición y la visión son de dos entradas sensoriales importantes para el desarollo y conservaciónde una plenitud en la comunicación. Hay enfermedades donde, además de la observación clinica yaplicación de examenes empíricos , la evaluación cualitativa es imprescindible, como en las síndromeso enfermedades que acometen los sistemas auditivo y visual, simultáneamente. La sordoceguera en lasíndrome de Cogan es caracterizada por disacusia neurosensorial, alteraciones en el vestíbulo yoftalmológicas, además de complicaciones sistémicas; es rara y de origen desconocida, acometiendo,principalmente individuos adultos jóvenes, de etnia blanca y sin preponderancia de sexo. En esteestudio de caso evaluamos de manera cualitativa un individuo con diagnóstico de Síndrome de Cogan,incluyendo cuestiones relativas a los aspectos de vida personal, social y profesional, en los períodosantes y después del diagnóstico, enfatizando las dimensiones de la funcionalidad de sucomunicación.Discutimos criterios que serán establecidos por el equipo multidisciplinar para talescasos particulares, cuanto a conductas en la evaluación y orientación familiar, y apuntamos directricesdel proceso de rehabilitación, especialmente la terapia fonoaudiológica y la realización de la cirugiade implante coclear.

Palabras claves: sordera; ceguera; síndrome de Cogan; implante coclear; comunicación.

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira

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373 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

A criança surdocega não é uma criança surda quenão pode ver e nem um cego que não pode ouvir.Não se trata de simples somatório de surdez e ce-gueira, nem é só um problema de comunicação epercepção, ainda que englobe todos esses fatores ealguns mais.

A surdocegueira é classificada quanto ao tipoem: cegueira congênita e surdez adquirida; surdezcongênita e cegueira adquirida; cegueira e surdezcongênita; cegueira e surdez adquirida; baixa vi-são com surdez congênita; baixa visão com surdezadquirida. O surdocego pode ser pré-lingüístico oupós-lingüístico. As causas podem ser pré, peri oupós-natais.

Há mais de 70 enfermidades conhecidas cau-sadoras da surdocegueira, entre síndromes e doen-ças. Dentre estas, encontra-se a Síndrome deCogan, rara e de causa desconhecida, que acometepredominantemente indivíduos adultos jovens, porvolta dos 25 anos, da raça branca e sem preponde-rância de sexo.

Na Síndrome de Cogan, há alterações otoneu-rológicas, com crises de vertigem, zumbidos,desequilíbrio, náuseas e vômitos. A disacusia édo tipo neurossensorial, na maioria bilateral. A per-da auditiva pode ser flutuante e evoluir para sur-dez profunda e irreversível na maioria dos casos.As alterações oftalmológicas se evidenciam porceratite intersticial, caracterizada por dor, hipere-mia ocular, fotofobia, visão turva e lacrimejamen-to. Outras manifestações sistêmicas incluemfebre, cefaléia e alterações músculo-esqueléticas,gastrointestinais, cutâneas, cardiovasculares, gê-nito-urinárias, vasculares e pulmonares (Grasland,Pouchot, Hachulla, Blétry, Papo, Vinceneux,2004).

A prática clínica tem demonstrado que, nosprocessos de diagnóstico e intervenção referentesa síndromes e distúrbios da comunicação, há umaintegração das Ciências da Genética e Fonoaudio-logia; enquanto esta estuda a comunicação huma-na e seus distúrbios, aquela estuda a transmissãode características biológicas, as quais podem serfísicas, químicas, citológicas ou funcionais. Den-tro de uma equipe multidisciplinar, a Genética atuacom os aspectos de diagnóstico, nosologia, acon-selhamento, prevenção, prognóstico, detecção deportadores, tratamento, entre outros. Já a Fonoau-diologia tem como objetivo caracterizar dentre oespectro clínico geral, as manifestações que envol-vem a linguagem em suas modalidades oral e

escrita, a audição e as funções motoras orais/deglutição (Giacheti, 2004). Ao mesmo tempo,outras ciências que atuam na prevenção, diagnós-tico e tratamento das síndromes, como, por exem-plo, a Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Psico-logia, Fisioterapia, Neurologia e Psiquiatria, tam-bém possuem uma relação com a Fonoaudiologiano trato desses e de outros diversos tipos de pato-logia. Assim, as intercorrências genéticas se confi-guram como exemplo claro da oportunidade enecessidade da atuação de uma equipe transdisci-plinar no caminho para a efetividade e eficiênciaclínica e terapêutica.

Desta forma, a Fonoaudiologia pode colabo-rar na importante identificação junto aos pacien-tes de suas necessidades de comunicação e priori-dades, estabelecendo metas realistas que efetiva-mente reduzam seus handicapes e, conseqüente-mente, proporcionem uma melhor qualidade devida.

Objetivo

Avaliar qualitativamente o desempenho comu-nicativo de um indivíduo com diagnóstico de Sín-drome de Cogan, bem como contribuir para o es-clarecimento de como é a sua vida e de como éconstituída a compreensão de sua própria doença,sugerindo a partir daí formas de avaliação e reabi-litação.

Material e método

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Éti-ca em Pesquisa da Universidade Federal de SãoPaulo, sob o CEP nº 01458/05.

Sujeito

Trata-se de indivíduo do sexo feminino, 28anos de idade, da raça branca e procedente de SãoPaulo, SP. É casada, tem uma filha de 3 anos deidade, cursou até a terceira série do ensino médio eexercia o cargo de auxiliar administrativo, em umaempresa privada, até o ano de 2002.

Compareceu ao ambulatório de oftalmologiado Hospital São Paulo, em agosto de 2002, coma queixa de hiperemia ocular; desde então, referepiora progressiva da visão. Na mesma época, sur-giram sintomas vestibulares: zumbido, tontura evertigem; na seqüência, apresentou queixa auditiva.

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374 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho

O diagnóstico da Síndrome de Cogan foi fechadoem conjunto pelos setores de genética e oftalmolo-gia. Apresentou também um quadro de depressão,com antecedentes familiares.

Concomitantemente ao déficit auditivo, houveaumento do zumbido e da vertigem, e o resultadodo exame otoneurológico foi sugestivo de síndro-me vestibular periférica. O comprometimento da

audição da paciente se apresentou de forma pro-gressiva e flutuante; em 2002, havia uma perdaauditiva neurossensorial de grau leve apenas na fre-qüência de 8000 Hz, na orelha direita; num prazode 12 meses, evoluiu para uma perda profundabilateral. Os resumos dos limiares auditivos, no pe-ríodo de agosto de 2002 a julho de 2005, encon-tram-se descritos abaixo:

Data Orelha Direita

250Hz 500Hz 1000Hz 2000Hz 3000Hz 4000Hz 6000Hz 8000Hz

01/08/02 v. aérea 10 15 10 15 15 20 20 30

v. óssea 15 10 15 15 20

17/06/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

08/07/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

22/07/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

12/08/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

25/11/03 v. aérea 100↓ 110↓ 105 110 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

15/03/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

19/07/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

Data Orelha Esquerda

250Hz 500Hz 1000Hz 2000Hz 3000Hz 4000Hz 6000Hz 8000Hz

01/08/02 v. aérea 10 5 10 15 15 10 10 10

v. óssea 5 10 15 15 10

17/06/03 v. aérea 85 90 85 70 100 110 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

08/07/03 v. aérea 100↓ 95 95 85 95 110 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

22/07/03 v. aérea 85 90 85 75 95 105 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

12/08/03 v. aérea 100↓ 100 95 90 105 110 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

25/11/03 v. aérea 85 85 80 75 85 100 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

15/03/05 v. aérea 100↓ 105 95 100 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

19/07/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓

v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

Faz uso de medicamentos corticosteróides eantidepressivos. Está em processo de seleção eadaptação de prótese auditiva e inserida no grupode candidatos à cirurgia de implante coclear. Não

faz uso de lentes corretivas nem foram encontra-das outras referências sobre a avaliação funcionalda visão. Atualmente, é acompanhada pelos Am-bulatórios de Reumatologia (Setor de vasculite),

Resumos dos limiares auditivos no período de agosto de 2002 a julho de 2005

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira

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375 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

Oftalmologia (Setor da córnea), Otorrinolaringo-logia (Setor de implante coclear), Fonoaudiologia(Setor de prótese auditiva) e Psiquiatria do Hospi-tal São Paulo. Também está sendo encaminhadapara freqüentar uma instituição de apoio aos indi-víduos portadores de surdocegueira.

Procedimento

Para a descrição da experiência selecionada,o método de investigação empírica adotado foi oestudo de caso. De acordo com Gil (1999), o es-tudo de caso

[...] se fundamenta na idéia de que a análise de umaunidade de determinado universo possibilita a com-preensão da generalidade do mesmo ou, pelo me-nos, o estabelecimento de bases para uma investi-gação posterior, mais sistemática e precisa.

A pesquisa de campo foi conduzida sob a for-ma de entrevista, permitindo que o sujeito fosseindagado tanto sobre os fatos quanto sobre a suaopinião a respeito deles, corroborando possíveisfontes de evidências. Godoy (1995) argumenta quea pesquisa qualitativa

[...] envolve a obtenção de dados descritivos sobrepessoas, lugares e processos interativos pelo conta-to direto do pesquisador com a situação estudada,procurando entender o fenômeno segundo a pers-pectiva dos sujeitos.

O roteiro adotado na entrevista foi o semies-truturado, contendo 28 questões relativas aos as-pectos de vida pessoal, social e profissional pré epós- diagnóstico, enfatizando as dimensões da fun-cionalidade da comunicação (Anexo 1).

A entrevista foi realizada no Ambulatório deAvaliação e Diagnóstico dos Distúrbios da Comu-nicação Humana do Hospital São Paulo – Univer-sidade Federal de São Paulo, sem estabelecimentode limite de tempo para sua conclusão. Foi feitagravação magnética da entrevista. O sujeito secolocou prontamente disponível a participar do tra-balho, não havendo dificuldade em realizá-lo; asperguntas foram lidas em uma velocidade maisreduzida e/ou repetidas, devido à surdocegueira doentrevistado. A entrevista durou 46 minutos.

Toda a entrevista foi transcrita literalmente.Para análise das informações obtidas nas respos-tas, foi utilizada uma modalidade de análise do dis-

curso, que é o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),proposto por Lefèvre e Lefèvre (2000). Conformeos autores, o DSC é

[...] uma proposta de organização e tabulação de da-dos qualitativos de natureza verbal, obtidos de depo-imentos, artigos de jornais, matérias de revistas se-manais, cartas, papers de revistas especializadas, etc.

A proposta do DSC consiste basicamente emanalisar o material verbal coletado, extraindo-se decada um dos depoimentos, as Idéias Centrais e assuas correspondentes expressões-chave. A partirdisso, pode-se encontrar uma ancoragem que seriao discurso-síntese do sujeito coletivo.

No presente trabalho, utilizamos o DSC naforma de “estudo de caso”, aplicando-o em apenasum sujeito, visando a verificação de sua exeqüibi-lidade no que tange à avaliação qualitativa do de-sempenho comunicativo do portador da Síndromede Cogan. Na perspectiva de que o resultado sejasatisfatório, pretende-se a ampliação da amostra,com a inclusão de outros sujeitos portadores damesma síndrome. Espera-se com isso auxiliar nodesenvolvimento de estratégias terapêuticas quepossam ser aplicadas, viabilizadas tanto na formade terapia individual como na terapia em grupo.

Resultados

Segundo relato do indivíduo, a comunicaçãono dia a dia é limitante, privativa e isoladora; aadaptação às limitações decorrentes da síndromeimpõe uma mudança radical quanto à forma e usoda linguagem. A síndrome acomete a audição deforma súbita e aguda e a visão de forma insidiosa;as duas de forma crônica.

[...] comunicação, conversa, eu não tenho muitonão porque é difícil, é só o necessário, eu fico ima-ginando as coisas...[...] fico conversando comigo mesma só de pensa-mento. Às vezes, vejo as pessoas conversando, ficoquerendo saber... coisas que eu fazia antes quandoeu escutava, conversar, ouvir, quero dar opinião,reclamar, achar o que gosta e o que não gosta...É, o pior dos piores...Ah, é uma vida nova, uma experiência, uma expe-riência nova...

A síndrome limita as atividades de lazer, pro-vocando o afastamento do convívio social; inca-pacita a independência locomotora do indivíduo.

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376 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho

Televisão, eu vejo as pessoas conversando. Às ve-zes eu não assisto muito televisão que minha vistadói, então eu deito, cada três horas eu deito porqueeu sinto fraqueza, tontura, minha vista dói. Ficoolhando pra televisão pra querer entender o que apessoa fala quando ela tá mexendo a boca...“Sozinha não saio não que eu tenho tontura...Ah, sair! Nossa! Pelo menos eu pegava a minhafilha e pegava o ônibus. Eu nunca fui de ficar den-tro de casa, hoje eu tô mais em casa... e fulano vaime levar, fico dependendo... “Ah, hoje eu não pos-so sair com você”... “Você quer sair? Você quersair?”... “Pode ser outro dia?”... “Aí eu falo pode,claro!”... (risos)...Você abre mão das coisas quevocê quer na hora. É porque, como se chama aque-la pessoa que quer as coisas na hora? Não é fácil,se eu tivesse normal aí eu ia sair, ninguém impediade eu sair, eu era pau pra toda obra, fazia tudosozinha, ia em banco, loja, eu trabalhava, fazia tudo.Hoje eu vejo que eu tenho que pedir, é horrível.

Após o diagnóstico da síndrome há um pre-juízo na dinâmica familiar, tornando o portador im-produtivo, retraído e reprimido. A expressividadeno tocante à espontaneidade, emoções e desejos éafetada diretamente. Há a promoção da exclusãosocial do indivíduo, restringindo o seu círculo deamizades aos familiares.

Eu quase não tenho amigo, eu perdi (risos)... ficouuma coisa... é... as pessoas ficam com dó mas nãoquer conversar não, principalmente quando come-ça porque tudo começou com uma depressão. Masnão foi só por causa da depressão não, eu fiqueiruim das vistas, ruim do ouvido, aí eu passo muitonervoso, fico muito nervosa. Aí hoje as pessoas, hojeeu dou risada, mas a minha vontade de chorar émuita, eu tenho vontade de chorar...Ah... tinha conversa. Ah, mudou porque minha mãepreparava as coisas, hoje em dia é assim... ahhh...a inútil...Ah... o médico falou que eu não posso ficar nervo-so porque muda dá ..atinge as vista ficar nervoso,ficar emocionada, atrapalha....então eu já procurei mudar, a não conversar so-bre o que me afeta, coisas que não me deixa com...não me deixa sofrer... então, eu sou firme... e enca-rar o que tá acontecendo comigo, mas olha o trata-mento até engraçado porque a família, a família étudo é motivo de dar risada, um fica pro outro...“Ah, fala pra ela”... “Ah, fala você”... “Ah, falavocê”... “Aí ela tá falando”... e começa a fazer gestocom a mão ... é... “Cala a boca!”... ou às vezes fala“Pode ser depois?”... “Pode ser daqui a pouco,você espera um pouquinho?”... ou então... “Ah,deixa pra lá, não é nada não, é coisa minha, nadaa ver, não esquenta a cabeça”... “Você tá nervo-

sa?”... não... “Que foi, que você tem?”... aí eu falo...“Nada”... “Ah, você quer conversar?”... e eles fi-cam conversando aí... aí quando tem o tempo todopra mim eu já fico sem assunto... (risos)... coisaespontânea...Eu passo o final de semana na minha sogra, eumorei com ela. Então fica uma coisa... é... eles nãosabem como se comportar. É que uns se sentemculpado, outros não, fica um clima, é como se ti-vesse uma interrogação no ar. Mas ela mexe a bocapra falar comigo, mas não tem mais a conversa quea gente tinha antes...Eu vejo minha mãe, às vezes eu não quero falarpra ela, mas a gente procura falar de coisa do quepassou, mas tem hora que isso mexe um pouco co-migo. Tem dia que eu nem ligo, tem barulho no meuouvido, eu não escuto a voz de ninguém, aí eu nãoconsigo lê lábio. Vou assisti televisão sem saber oque a pessoa tá falando, na hora que precisa vocêconsegue, é questão de prática... é... eu fico muitosozinha...

Além dos cuidados já recebidos, a ajuda com-plementar mais desejada é uma maior divulgação;a compreensão da síndrome pelo paciente porta-dor, cuidadores e população em geral ainda é insu-ficiente, acarretando diversas conseqüências comoa discriminação, medo do “contágio”, dificuldadepara conseguir emprego, dentre outras. É tambémnecessário fomentar um maior intercâmbio entreos portadores da enfermidade.

Ah, eu não percebi não o médico é que falou... por-que eu nunca tinha ouvido falar em Síndrome deCogan.O que eu sei é que atinge as vista e o ouvido... e dátontura...Realmente é entender esse barulho que eu escutono ouvido. Uma vez falei pro médico... “O tímpanovirou pra dentro, eu tô escutando tudo de dentro”.Então não dá, tem hora que você quer captar daonde, o que que você tá ouvindo. Será que quandofaz assim o que tá captando? Sei lá, dá vontade deenfiar um negócio, um microfone pra ver, fazer umaauto-avaliação. Tem um programa na Cultura quefala de onde vem o vento, aí mostra, aí eu falo “Ohmeu Deus, de onde vem esse barulho?”Eu vi numa revista um caso de uma mulher de ou-tro estado que o filho não escuta e tem problemanas vistas, e que ele consegue com as cordas vo-cais ele sente a vibração, e ele entende aos poucoso que a pessoa tá falando...

A síndrome promove a passividade no desem-penho comunicativo; o sujeito faz uso apenas dosrecursos visuais da mídia, ainda que com restrições;

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira

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377 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006

impossibilita atividades que dependem só da audi-ção. Não há preferência explícita sobre o canal sen-sorial de maior dificuldade, se o auditivo ou o vi-sual. Há a declaração implícita da necessidade deotimização de seus potenciais sensoriais remanes-centes.

Só quando tem legenda, aí quando não tem eu vejoreportagem que às vezes dá pra entender... e a Fá-tima Bernardes fala bem... já o Boris Casoy já évelho... aí não dá pra entender... (risos).Ai, rádio eu já nem... ainda existe a Nativa?... Arádio que eu ouvia, rádio e CD. Nossa! Era a mi-nha paixão, era música o dia inteiro, agora eu nemligo. Eu nem sei que música tá na moda...Ah, é ver, é pior... as duas... Ah, foi horrível! Quedificuldade essa resposta. Que o barulho é infer-nal, mas ficar com as vistas, é dói as vistas e eufico deitada... mesmo sem ter sono... tenho que fi-car deitada... mas o barulho é horrível...Sou linda! (risos)... Eu me acho... Eu sou gente quesente que fala e quer ver e quer ouvir. Aí minhasdificuldade e você fala eu sou gente, eu falo, eusinto, eu cheiro... é, apalpo, imagino como é que éa sua voz, sua voz é grossa ou fina?...

Discussão

A descrição clínica da Síndrome de Cogan,combinada à análise das respostas da entrevista,ratifica a importância da atuação da equipe multi-disciplinar, envolvendo profissionais da Genética,Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Fonoaudiolo-gia, Psiquiatria, Psicologia e de outras áreas, de-pendendo de cada caso específico. É importanteressaltar o papel do profissional de saúde mentalcomo vital para se atingir uma compreensão glo-bal dos pacientes com Síndrome de Cogan.

Há trabalhos publicados relatando as caracte-rísticas psicossociais dos indivíduos cegos ou sur-dos. Estudo realizado na Arábia Saudita porAbolfotouh e Telmesani (1993), com 152 estudan-tes do sexo masculino, 44 cegos e 108 surdos,verificou a prevalência da depressão entre surdos ecegos, de acordo com Children Depression Inventory(CDI) e caracterizou alguns aspectos psicossociaisdessa população por meio de um questionário. Osresultados apontaram que 13,95% dos cegos e6,54% dos surdos apresentaram depressão; 12,5%dos indivíduos cegos e 6,06% dos portadoresde deficiência auditiva “não têm amigos”; 51,16%dos cegos têm como hobby a leitura, seguidopor poesia (25,58%). Entre os surdos, 61,54%

jogam futebol como hobby, e a leitura é o segundohobby referidos pelos surdos (23,08%). 30,23% doscegos não possuem nenhum tipo de hobby, enquan-to apenas 6,73% dos surdos referem este fato, sen-do constatada uma diferença estatisticamente sig-nificante. Em relação à carreira profissional,44,44% dos surdos gostariam de seguir a carreiramilitar, enquanto 87,10% dos cegos escolheram acarreira de professor. A maior dificuldade diáriarelatada pelos surdos foi a comunicação (51,85%)e para os cegos o maior problema diário foi a loco-moção (44,19%). Os estudantes surdos (90,65%)são, significativamente, mais independentes que oscegos (72,73%). O pai foi referido como “pessoa-chave”, tanto para os indivíduos cegos quanto sur-dos. Em relação à satisfação com serviços institu-cionais, todos os indivíduos cegos estavam satis-feitos, 87,8% bastante satisfeitos e 12,2 moderada-mente satisfeitos. Já os indivíduos surdos, 28% re-lataram não estar satisfeitos com serviços institu-cionais. A análise das conseqüências oriundas daprivação dessas duas vias sensoriais, quando ocor-rem isoladamente, leva-nos a refletir sobre os efei-tos possíveis nos casos em que a surdez e a ceguei-ra acometem o indivíduo, simultaneamente. Nasrespostas fornecidas pelo sujeito do presente estu-do, fica nítida a sua exclusão social, demonstradapelo afastamento dos amigos e parentes; grande li-mitação em desenvolver um hobby como a leiturae/ou a música; perda da capacidade em exercer suaprofissão, bem como a escassez de recursos paraaprendizagem e treinamento de uma nova ativida-de de trabalho; restrição na comunicação e na lo-comoção; perda da independência; falta da divul-gação sobre serviços institucionais direcionados àcomunidade surdocega.

Na comunicação, a percepção auditiva envol-ve a capacidade de receber e interpretar os estímu-los sonoros através da audição. As habilidades en-volvidas, além dos processos de atenção e memó-ria, são a detecção do som, sensação sonora, loca-lização sonora, reconhecimento, discriminação ecompreensão (Katz, 1999). A surdez provoca a res-trição de estímulos do ambiente. Indivíduos ouvin-tes normais recebem inputs visuais, auditivos, pro-prioceptivos e táteis, enquanto os surdos possuemuma séria restrição na entrada sensorial auditiva,diminuindo o número de estímulos e oportunida-des de interagir com seus interlocutores (Chiari,Bragatto, Barbosa, Strobilius, Soares, 2002). Asrespostas da entrevista apontaram que a surdoce-

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gueira pode levar o indivíduo a uma diminuiçãobrusca de sua interação com o mundo. Ao mesmotempo, quanto menos estimulada a audição resi-dual e treinados os canais sensoriais remanescen-tes, maior a chance de agravamento do problema.Portanto, para que não seja estabelecido um cicloem que um prejuízo “realimenta” o outro, a reali-zação da terapia fonoaudiológica é fundamental.

Percepção

Para Luria (1990), a percepção é definida como

[...] um processo complexo envolvendo complexasatividades de orientação, uma estrutura probabilís-tica, uma análise e síntese dos aspectos percebidosem um processo de tomada de decisão.

O autor propõe que,

[...] estruturalmente, a percepção depende de práti-cas humanas historicamente estabelecidas que po-dem ou não só alterar os sistemas de codificaçãousados no processamento da informação, mas tam-bém influenciar a decisão de situar os objetos per-cebidos em categorias apropriadas. Podemos, por-tanto, tratar o processo perceptual como similar aopensamento gráfico: ele possui aspectos que mu-dam com o desenvolvimento histórico.

Maturana (2001) conceituou o fenômeno queconotamos com a palavra “percepção” como a as-sociação, feita pelo observador, das regularidadesnotadas no comportamento do organismo observa-do. Ao contrário do que normalmente propõe aneurofisiologia e a psicologia, o autor argumentouque a percepção não pode ser apenas uma opera-ção de captação de uma realidade externa, pois

[...] os seres vivos são sistemas dinâmicos determi-nados estruturalmente, e tudo o que acontece nelesé determinado a cada instante por sua estrutura...o meio não pode especificar o que acontece numsistema vivo – ele pode apenas desencadear em suaestrutura mudanças determinadas por sua estrutu-ra. Como resultado disso, constitutivamente, umsistema vivo opera sempre em congruência estru-tural com o meio, e existe como tal somente namedida em que essa congruência estrutural (adap-tação) for conservada. Caso contrário, ele se desin-tegra.

De acordo com as idéias desse autor, a capaci-dade de percepção dos indivíduos com supressão

de uma das entradas sensoriais, como a visão ou aaudição, levaria à precariedade deles na observa-ção das regularidades de comportamento do orga-nismo observado. Isso poderia explicar o fenôme-no que verificamos quando, por exemplo, um indi-víduo cego aguça outros sentidos como os da audi-ção, tato, olfato e paladar. Essa especialização aju-daria na busca em suprir as condições para carac-terizar objetos perceptivos. Examinando especifi-camente o caso como da surdocegueira, a manu-tenção desse “sistema observacional” demandariaum grande esforço, já que duas das principais en-tradas sensoriais se encontram prejudicadas. Aanálise das respostas do sujeito do presente estudoindicou uma percepção quanto à sua fragilidade,imposta pela patologia. Por outro lado, demons-trou uma consciência sobre os canais sensoriais re-manescentes, valorizando-os, como alerta de que,apesar de abalada a conservação da “congruênciaestrutural” citada pelo autor acima, a desintegra-ção é rejeitada pelo indivíduo e será evitada en-quanto houver recursos.

Avaliação

Apesar dos surdocegos, como os portadores daSíndrome de Cogan, procurarem se utilizar dosresíduos visuais e auditivos que possuem, torna-sedifícil a avaliação das suas reais potencialidades de-vido aos impedimentos sensoriais. Há, portanto, pri-meiramente, uma demanda da conscientizaçãosobre a mudança de esquema, de estruturas tradicio-nais, passando a um esquema funcional e flexível,utilizando um enfoque global orientado pelas neces-sidades individuais do sujeito, e não apenas aplican-do um conjunto de técnicas específicas isoladas.

A avaliação das capacidades/habilidades cog-nitivas e comunicativas deve incorporar outros fa-tores, além dos etiológicos, como escolaridade, ní-vel socioeconômico, experiências sociais, compor-tamentos, interesses e estilo de aprendizagem decada indivíduo surdocego. Além disso, seu conhe-cimento sobre a síndrome, o grau de aceitação daenfermidade e, caso haja, o tipo de reabilitação emcurso ou já realizada anteriormente.

Durante a avaliação cognitiva, observar seumodo de interação, exploração e compreensão domeio ambiente, porque dessas estratégias depen-derá a aquisição de novos recursos facilitadores quepoderão mediar suas relações com as pessoas e como mundo.

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Sobre a avaliação sensorial, investigar os re-síduos visuais e/ou auditivos, que apresentemalgum tipo de funcionalidade e que muitas vezesnão são estimulados de forma adequada; explorara forma de uso dos outros canais sensoriais rema-nescentes, além dos da visão e audição. Todas es-sas informações são ferramentas extremamenteúteis, no sentido de dirigir a comunicação e aaprendizagem por esse caminho, com maiores emelhores possibilidades de êxito durante o futuroprocesso terapêutico do sujeito. A reabilitaçãoestará centrada principalmente nas formas de co-municação possíveis para viabilizar sua autono-mia e inclusão social.

Pesquisas experimentais sobre o desenvolvi-mento de habilidades em modalidades sensoriaisremanescentes apontam para o papel da plasticida-de cerebral. Lessard, Pare, Lepore e Lassonde(1998) afirmaram que alguns cegos têm melhorhabilidade de localização sonora que os indivíduoscom visão normal. Indivíduos cegos são severa-mente afetados, visto que a visão é essencial para odesenvolvimento de conceitos espaciais. Uma for-ma de compensação surgiria no desenvolvimentode uma acurada percepção espacial pelo processa-mento auditivo. Os autores constataram que os in-divíduos cegos desde a infância foram capazes demapear o som ambiental com igual, ou melhor,acurácia que os com visão, na condição de escutabinaural. Porém, ao contrário dos indivíduos comvisão, os portadores de cegueira total foram me-lhores na localização correta da fonte sonora, nacondição de escuta monoaural; os indivíduos ce-gos com visão periférica residual localizaram ossons com menor precisão do que os indivíduos comvisão normal ou aqueles totalmente cegos.

A avaliação da Linguagem, respeitadas as li-mitações impostas por todos os fatores já citados,provenientes da síndrome ou não, deve abranger oexame cuidadoso da intenção comunicativa, fun-ções comunicativas, estrutura do discurso, o meiocomunicativo utilizado e a compreensão do discur-so do falante. Os aspectos da motricidade oral, fun-ções estomatognáticas e voz também são relevan-tes nesta avaliação, tendo a oralidade um lugar aindade maior destaque na interação com o meio e se-melhantes, em virtude dos prejuízos visuais e au-ditivos presentes nos pacientes portadores da Sín-drome de Cogan.

A dinâmica familiar deve ser pesquisada crite-riosamente, compreendendo a sua estrutura, esta-

bilidade, organização e flexibilidade; a atitude de-les diante da deficiência e o compromisso que po-dem estabelecer com o processo de reabilitação.Estudo realizado com 19 famílias colombianas e40 indivíduos adultos portadores da Síndrome deUsher (USH), patologia que, como a Síndromede Cogan, causa a surdocegueira, buscou investi-gar as necessidades e o tipo de relação familiar dessapopulação portadora de limitação sensorial dupla.Os autores elaboraram um questionário, e as famí-lias foram visitadas em suas próprias casas por as-sistentes sociais. A pesquisa buscou investigar aidade da detecção da deficiência auditiva e visual,tipo da USH, reações emocionais dos pais e filhosafetados, cobertura médica, estado civil, tipo decomunicação dentro da família, produtividadeeconômica, tipo de reabilitação e informações so-bre a síndrome. Os resultados indicaram que, em10% das famílias o pai rejeitou o filho afetado; 17%relataram problemas em se relacionar com os ir-mãos não-afetados; apenas 50% conseguiram se-guir a escolaridade além do ensino fundamental;50% não possuem independência financeira; 87%são solteiros ou separados. Os autores referiram aimportância da criação de um programa nacionalcomo ferramenta para detecção precoce, diagnós-tico e acompanhamento desses indivíduos. Alémdisso, enfatizaram que a avaliação e o acompanha-mento psicológico devem fazer parte do progra-ma, pois as famílias necessitam de suporte paraarcar com os problemas inerentes a essa doençapara o estabelecimento de relações humanas posi-tivas (Tamayo, Rodriguez, Molina, Martinez,Bernal, 1997).

Implante coclear

Na atualidade, uma das perspectivas mais efi-cazes na reabilitação dos indivíduos surdocegos,inclusive os portadores da Síndrome de Cogan, é acirurgia de implante coclear. Apesar da escassezdos relatos sobre tais casos, os já existentes apon-tam para um prognóstico muito favorável em rela-ção à audição, principalmente porque a síndromeacomete o indivíduo em uma idade adulta jovem,ou seja, no período pós-língüístico; após a cirur-gia, os pacientes foram capazes de conversar aotelefone sem a necessidade do uso de adaptador eobtiveram altos índices médios nos testes de reco-nhecimento de palavra e de sentenças diárias, com-parados à quase nulidade dos escores encontrados

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na avaliação pré-cirúrgica (Low, Burgess, Teoh,2000; Pasanisi, Vincenti, Bacciu, Guida, Berghenti,Barbot et al., 2003).

Algumas especificidades sobre essa síndromesão alertadas e devem ser levadas em consideraçãopela equipe multidisciplinar nas tomadas de deci-são nos momentos pré, peri e pós-cirúrgico: o fatoretiológico auto-imune da síndrome e o longo tem-po de uso de esteróides provocam maior suscetibi-lidade às complicações cirúrgicas ao aparecimentode infecções, dentre elas a otite média crônica; pos-sibilidade da existência de obstrução intracoclear,necessitando-se de alterações nas técnicas cirúrgi-cas; após a cirurgia pode haver recorrência agudados sintomas oftalmológicos da síndrome, possi-velmente decorrente do estresse cirúrgico (Vincenti,Bacciu, Guida, Berghenti, Barbot et al., 2003;Aschendorff, Lohnstein, Schipper, Klenzner, 2004)

Outra possível vantagem seria que as pesqui-sas apontam para os possíveis efeitos do implantecoclear na redução da intensidade, desconforto eduração do sintoma de zumbido (Miyamoto,Bichey, 2003; Rubinstein, Tyler, Johnson, Brown,2003; Mo, Harris, Lindbaek, 2002; Ruckenstein,Hedgepeth, Rafter, Montes, Bigelow, 2001).

Cresce o interesse dos indivíduos candidatos àcirurgia de implante coclear, bem como de seusfamiliares e/ou cuidadores por informações maisdetalhadas acerca da doença e prognóstico. Ficaclaro que o sujeito gosta de ser plenamente infor-mado. Isso pode e deve ser feito em uma lingua-gem popular e ser estendido também aos profissio-nais que trabalharão de forma direta ou indireta noprocesso de reabilitação e que não pertençam,necessariamente, à área da saúde.

Conclusões

A comunicação é uma das necessidades bási-cas do ser humano, por pertencer a uma sociedade.As pessoas surdacegas necessitam de formas espe-cíficas de comunicação para terem acesso à educa-ção, lazer, trabalho, vida social, etc.

A entrevista permitiu a formulação de algu-mas reflexões sobre o desempenho comunicativoe a compreensão da percepção de mudanças devida e suas relações interpessoais, após o diag-nóstico, do portador da Síndrome de Cogan. Mos-trou-se um instrumento capaz de promover con-dutas eficazes durante a avaliação e sugerir alter-nativas de reorganização das estratégias de ação

dos profissionais e cuidadores, com base em umaperspectiva mais realista, valorizando as capaci-dades e necessidades mais prementes desses indi-víduos. Os resultados satisfatórios nesse tipo deanálise apontam para a importância da ampliaçãoda amostra, o que nos permitirá a generalizaçãodos resultados.

Restabelecer um dos canais sensoriais pode sero melhor dos caminhos para a reabilitação do pa-ciente, ao lado da terapia fonoaudiológica nosperíodos pré e pós o implante coclear. Avaliaçõesprospectivas devem ser feitas para confirmar a qua-lidade de vida dos pacientes, passado o momentodo estresse cirúrgico e obtidos os efeitos no seudesempenho comunicativo, incluindo os ganhos nadiscriminação auditiva, leitura labial e melhora daqualidade vocal.

Referências

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Recebido em novembro/05; aprovado em setembro/06.

Endereço para correspondênciaEliane Lopes BragattoAv. Dr. Altino Arantes, no. 1132, apto. 41, Vila Clementino,São Paulo, CEP 04042-005

E-mail: [email protected]

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Anexo 1

Protocolo de avaliação qualitativa do desempenho comunicativoda surdocegueira (entrevista com o indivíduo portador)

Data: _____/_____/_____ Avaliadora: ________________________________________________

Nome: __________________________________________________________________________

Idade: _________ Data Nascim.: _____/_____/_____ Sexo: ( ) Fem. ( ) Masc.

Síndrome/ doença diagnosticada: _____________________________________________________

1. Como você se comunica no seu dia-a-dia?

2. Como e quando você percebeu a sua dificuldade para ouvir?

3. Como e quando você percebeu a sua dificuldade para enxergar?

4. O que você costuma fazer nas suas horas de lazer?

5. Você anda à pé sozinho? Como você faz para chegar no local onde precisa ir?

6. Você anda de ônibus sozinho? Como você faz para tomar o ônibus?

7. Você anda de metrô sozinho? Como você faz para tomar o metrô?

8. Como e quando você descobriu que tinha a Síndrome de Cogan?

9. Você sabe o que é a Síndrome de Cogan?

10. Depois que a doença foi diagnosticada pelo médico, o que mudou na sua rotina de casa?

11. O que mudou no relacionamento com a sua família?

12. O que mudou no relacionamento com os seus amigos?

13. O que mudou no seu ambiente de trabalho?

14. O que mudou nas suas atividades de lazer?

15. O que você gostaria de mudar ou de receber como ajuda, além do que você já tem agora?

16. Conhecer e conviver com outras pessoas que também tem a síndrome ajudou-o? Como?

17. O que você faz quando precisa de ajuda?

18. Você gosta de conversar?

19. Você gosta de assistir TV?

20. Você gosta de ouvir rádio?

21. Você gosta de ouvir som?

22. Você gosta de ler?

23. Você gosta de expressar seus sentimentos?

24. Você expressa seus desejos?

25. Você expressa seus gostos?

26. Dentre as suas dificuldades de visão e audição, qual você acha que é pior? Por quê?

27. Como você é?

28. Como você acha que as outras pessoas vêem você?

29. Como você gostaria de ser visto(a) pelas outras pessoas?

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“LEITURA MUSICAL NA PONTA DOS DEDOS:PRÁTICAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO MUSICAL INCLUSIVA.” Fabiana Fator Gouvêa Bonilha .Instituto de Artes / Unicamp. [email protected] Claudiney Rodrigues Carrasco. Instituto de Artes / Unicamp [email protected] Apoio Fapesp Palavras-chave: deficiência visual ; musicografia Braille ; educação musical

Essa comunicação visa problematizar aspectos referentes ao ensino da leitura e escrita musical em Braille. Parte-se do pressuposto de que o acesso à notação musical é um fator essencial para a inclusão de pessoas com deficiência visual no campo da Música. Mediante a utilização de uma abordagem qualitativa, baseada no método do Discurso do Sujeito Coletivo proposto por Lefèvre (2003) buscou-se apreender a percepção de estudantes de Música com deficiência visual e de seus respectivos professores acerca das condições atuais do ensino da Musicografia Braille. A partir desse estudo, concluiu-se que alunos e professores reconhecem a importância do aprendizado da notação musical por parte das pessoas cegas, mas apontam para uma escassez de meios e recursos que facilitem o acesso a esse código.

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Introdução A Musicografia Braille consiste no sistema de leitura e escrita musical convencionalmente adotado por pessoas com deficiência visual. são representados pelo conjunto de 63 caracteres que formam o Sistema Braille. Os fundamentos da Musicografia Braille foram concebidos pelo próprio Louis Braille, criador desse sistema de escrita para cegos. Não obstante o fato de Louis Braille ter consolidado as bases dessa notação musical, foram posteriormente realizadas diversas convenções e acordos entre diferentes países, no sentido de se aprimorar e de se adaptar esse código às especificidades de diferentes formas de representaçãomusical. As resoluções mais recentes acerca desse código encontram-se no “Novo Manual Internacional de Musicografia Braille”, (1997). Conforme aponta Silva(2003):

“Esta obra, de largo alcance para uso dos cegos de todo o mundo, é o resultado de vários anos de estudo por parte do Subcomitê sobre Musicografia Braille da União Mundial de Cegos e é a continuação do conjunto de manuais publicados após as conferências de Colônia (1888) e Paris (1929 e 1954), contendo ainda as resoluções e decisões tomadas pelo referido Subcomitê nas conferências e acordos celebrados entre 1982 e 1994”. Nota-se, entretanto, que esse manual não constitui um material de caráter essencialmente didático, através do qual alunos e professores possam assimilar os fundamentos da Musicografia Braille. Geralmente, os professores de Música são formados para lecionarem aos alunos que aprendem a ler em tinta, e por isso, a metodologia de trabalho por eles adotada se baseia nas especificidades desse código. Os livros didático-musicais são também estruturados de acordo com as características peculiares da escrita musical utilizada por quem vê. Ao lecionar a um aluno com deficiência visual, o professor necessita compreender os mecanismos do código em Braille, ainda que ele não precise ter fluência na leitura dessa notação.

Faz-se necessário que ele conheça o modo como o aluno assimila a partitura, a fim de que sejam trabalhadas as demandas requeridas na aquisição da proficiência em Musicografia Braille.

O professor deve estar ciente das diferenças que existem entre esse código e a notação em tinta. Tais diferenças se referem sobretudo à configuração linear do sistema Braille. Isso implica que nesse sistema, não sejam utilizadas pautas e claves, de modo que a altura das notas é representada por sinais de oitava, e os valores rítmicos são grafados por meio de caracteres específicos, associados a cada altura.

Ao propor o estudo de uma peça, é importante que o professor saiba a dimensão da tarefa que o aluno realizará ao lê-la em Braille.

É importante considerar que Uma partitura em tinta consiste realmente em uma representação espacial da peça. Se há, por exemplo, uma escala ascendente, esse movimento aparece concretamente na pauta. Muitos aspectos da partitura se mostram

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visualmente claros para seu leitor, tais como: A classificação da peça como monofônica, polifônica ou homofônica, a densidade do trecho musical, a correspondência entre as vozes, a simultaneidade das notas, os desenhos e padrões rítmicos mais recorrentes. O mesmo não ocorre em uma partitura transcrita para o Braille. Em tal notação, essas características da peça são inferidas após um processo de abstração, necessariamente realizado pelo leitor. Levitin (2000), ao considerar aspectos sobre a formação da “mente musical” aponta que uma das habilidades fundamentais ao seu desenvolvimento é a de “captar a estrutura interna da música, análoga à maneira como os grandes enxadristas têm uma compreensão estrutural profunda das jogadas de xadrez e das inter-relações das peças no tabuleiro”. Para quem lê música por meio do sistema braille, essa compreensão estrutural é indispensável, tendo em vista o nível de abstração requerido ao longo da leitura. Deve-se considerar que a alfabetização musical é um fator imprescindível para a inclusão de pessoas cegas no campo da Música. Aos alunos, deve ser garantido o direito ao aprendizado desse código, bem como o direito de acesso a material didático-musical transcrito para o Braille.

Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual tenham garantido o acesso a uma formação musical qualificada, que lhes permita desenvolver suas potencialidades. Para tanto, conforme defende Smaligo (1998) torna-se imprescindível que seja oferecida a essa população a possibilidade de acesso ao sistema de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso. Porém, observa-se uma escassez de meios e recursos que viabilizem a concretização desse princípio, uma vez que poucas entidades se dedicam ao ensino e à difusão da Musicografia Braille. Na perspectiva da inclusão das pessoas com deficiência visual ao ensino de Música regular, o ensino desse código deve ser oferecido sob a forma de um “atendimento educacional especializado”, definido por Mantoan(2003) como uma modalidade de atendimento que apóia e subsidia o ensino regular. Objetivos Esta pesquisa tem por objetivo problematizar o ensino da Musicografia Braille, como um elemento facilitador da Inclusão de pessoas com deficiência visual ao campo da Música. O presente estudo também possui os seguintes objetivos específicos: -Abordar a existência de espaços de formação através dos quais a Musicografia seja difundida e estudada; -Aprofundar a investigação acerca dos procedimentos e recursos existentes para a produção de partituras em Braille, as quais, por sua vez, consistem em um material que subsidiam a formação musical das pessoas com deficiência visual; -Produzir um conhecimento consistente e aprofundado sobre o acesso a Musicografia Braille, mediante a produção de um material que sirva de apoio ao processo de formação musical das pessoas com deficiência visual. Metodologia

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Esse estudo possui um enfoque qualitativo, pois através dele, buscou-se compreender as percepções de alunos e professores acerca do aprendizado da Musicografia Braille.

No intuito de se construir um panorama do ensino e difusão da Musicografia Braille no Brasil, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com educadores musicais e estudantes com deficiência visual. Também foram aplicados questionários contendo perguntas abertas, visando complementar os dados das entrevistas, e coletar depoimentos e relatos de experiências..

Tais entrevistas foram analisadas segundo o método do “discurso do sujeito coletivo”, proposto por Lefèvre (2003), através do qual é possível apreender o pensamento comum aos sujeitos abordados. Nesse sentido, foram extraídas, de cada depoimento, idéias centrais, as quais, encadeadas, constituíram um discurso comum aos sujeitos, de acordo com cada temática por eles abordada.

Foram encontradas algumas categorias de análise, a partir das quais pôde-se inferir os níveis de contato que os professores e alunos estabelecem com a Musicografia Braille. Desse modo, os dados coletados por meio desses depoimentos, foram divididos nas seguintes categorias:

Tema 1-Música e identidade Subtemas: A) Relações entre a Música e desenvolvimento pessoal; B) Relações entre música e deficiëncia visual. Tema 2: Leitura e escrita musical Subtemas: A) Acesso ao aprendizado da Musicografia Braille; B) Uso de códigos não convencionais; C) Concepções e crenças sobre a notação musical em Braille; D) Avaliação da produção de material didático sobre o código musical em Braille; E) Produção de materiais didático-musicais para pessoas com deficiência visual.

Tema 3: Aprendizado musical Subtemas: A) Acesso ao conhecimento musical consistente B) Alternativas de acesso às partituras

Paralelamente à coleta de dados junto a alunos e professores, foi realizada uma investigação acerca das ferramentas tecnológicas existentes para a transcrição de partituras em Braille. Dessa busca, resultou a criação de um acervo de obras musicais transcritas para esse sistema. Essa fase do trabalho contou com o apoio do Laboratório de Acessibilidade da Unicamp, e com a participação de bolsistas do SAE (serviço de apoio ao estudante) da mesma universidade. Esse acervo se constitui prioritariamente por peças brasileiras. O objetivo de sua implantação se centrou sobretudo na formulação de procedimentos que otimizassem a produção de partituras, buscando-se as ferramentas tecnológicas mais adequadas a esse fim.

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Discussão e Resultados Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille.

Há professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, adotam maneiras “improvisadas” para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos restritos a essas adaptações. Há também aqueles educadores musicais que sabem da existência desse método de escrita, mas desconhecem os caminhos de acesso a ele, os quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de cursos através dos quais ele seja divulgado.

De fato, considerando-se sobretudo a realidade brasileira, o acesso à notação musical em Braille, dentro das condições atuais, exige um grande empenho tanto por parte dos professores de música, quanto por parte de seus alunos com deficiência visual. Os professores necessitam despender grande quantidade de tempo e dedicação para buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita em Braille, e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos de um modo quase autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim. Através da coleta e da análise desses relatos, foi possível o contato com uma variedade de experiências pessoais e profissionais, que revelaram a existência de diferentes formas de relações estabelecidas pelos sujeitos com a notação musical em Braille. Ainda que os entrevistados considerem que o aprendizado desse código seja fundamental, a maioria deles enfrentou uma grande dificuldade para ter acesso a esse ensino. Embora todos tenham se deparado com obstáculos da mesma natureza, cada sujeito desenvolveu suas próprias estratégias de enfrentamento. Nesse sentido, é importante que a riqueza dessa diversidade seja contemplada nas discussões acerca do ensino da notação musical em Braille. Não existe uma única ou uma exclusiva forma de acesso a esse código, assim como não há uma maneira mais correta para se aprende-lo. Ao se enfocar os métodos de ensino dessa notação, deve-se levar em conta as particularidades de cada aluno, e deve-se assegurar a ele o direito de ser protagonista do seu próprio aprendizado. Mediante os relatos dos sujeitos, notou-se o reconhecimento por parte deles acerca da importância da Musicografia Braille. A escassez de formas de contato com essa notação levam os sujeitos acreditarem que a Musicografia Braille é um código de grande complexidade e de difícil assimilação. Não se pode negar a complexidade do código. Entretanto, essa crença advém, como já dito, da falta de recursos que subsidiam seu aprendizado. Ao se abordar o contexto que permeia o ensino da Musicografia Braille, podem ser destacados alguns personagens.

Constata-se, primeiramente, a presença do educador musical. Fala-se, aqui, de um professor de Música “genérico”, e não de uma pessoa especializada em lecionar para os cegos. Está-se falando daqueles que comumente saem de conservatórios e universidades de Música, rumo à docência. É fato que, grande parte desses educadores musicais, ao se depararem com um aluno cego, desconhecem os meios pelos quais esse estudante possa se apropriar da leitura e escrita musical. A busca de informações sobre o ensino da Musicografia Braille, por parte do professor, é imprescindível, e, sem dúvida, trata-se de uma tarefa árdua, visto que atualmente (e sobretudo no Brasil), há uma grande escassez de profissionais e instituições que difundem esse sistema de escrita. Apesar dessa dificuldade, o professor precisa ser consciente de seu papel junto a seu aluno com deficiência visual. Antes de tudo, ele é um educador musical, assim

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como o é para seus demais alunos. Sua responsabilidade é a de prover as condições para que o estudante que lhe foi confiado venha a ter uma formação musical consistente. Logo, ainda que o professor desconheça o código musical em Braille, ele tem o papel de ensinar os fundamentos da Música, com base em sua formação profissional. Ele pode ensinar a técnica de um instrumento, bem como os conceitos relativos à Teoria Musical, à Harmonia, à História da Música, a aspectos estilísticos das obras, etc. Esses conhecimentos de que o professor dispõe subsidiarão o aprendizado da Musicografia Braille por parte de seu aluno. Pode-se supor que o professor de Música não precise saber ler e escrever partituras em Braille para lecionar a um aluno cego. Mas ele necessita, certamente, entender os mecanismos desse sistema de grafia, para compreender os desafios a serem enfrentados pelo estudante. Dentre os “personagens” envolvidos nesse processo de ensino, , pode-se também pensar na figura do “especialista”: aquele que realmente sabe ler e escrever Música em Braille e que tem uma ampla vivência acerca da aplicação desse código em diversos contextos musicais. Trata-se de um estudioso no campo da Musicografia Braille. Ele tem o papel de apoiar as atividades pedagógicas realizadas por professores e alunos em uma escola regular. Ele talvez atue como uma espécie de “consultor”, ou como alguém que conheça em profundidade as convenções da leitura e escrita, as atualizações do código e as várias formas de representação musicais possíveis , de acordo com as especificidades do Sistema Braille. Por fim, destaca-se a figura do próprio aluno, como alguém que se faz protagonista de seu aprendizado, ao buscar uma formação musical consistente e ao se engajar no processo de alfabetização musical. É importante salientar que, embora esse estudo aborde especificamente o ensino da Musicografia Braille, ele pode trazer contribuições ao campo da Educação Musical, de maneira geral. Isso ocorre pois as questões levantadas nesse trabalho suscitam reflexões acerca do ensino de Música, ou das diversas formas pelas quais os indivíduos se apropriam do conhecimento musical. Referências BONILHA, F.F.G. Leitura musical na ponta dos dedos: caminhos e desafios do ensino de musicografia Braille na perspectiva de alunos e professores. 2006. 226 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2006. LEFEVRE, F; LEFEVRE, A.M.C., TEIXEIRA, J.J.V. O discurso do sujeito coletivo: uma nova opção em pesquisa qualitativa (Desdobramentos). Caxias do Sul, EDUCS, 2003. LEVITIN, D.J. Em busca da mente musical. In: ILARI, B.S. (org.) Em busca da mente musical : ensaios sobre os processos cognitivos em música : da percepção à produção. Curitiba : Ed. da UFPR, 2006. p.23-44. MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar – o que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

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SILVA, J.F. O braille e a musicografia: origens, evolução e actualidade. Disponível em: http://www.lerparaver.com/node/208 Acesso em: 13 jun. 2007. SMALIGO, M. A. Resources for helping blind music students. Music Educators Journal, v. 85, n.2, p 23-45. 1998.

UNIÃO MUNDIAL DOS CEGOS. Subcomitê de Musicografia Braille. Novo manual internacional de musicografia braille. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial, 2004. 310p.

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Psicologia: Teoria e Pesquisa

Jan-Abr 2005, Vol. 21 n. 1, pp. 007-015

1 Várias das idéias do presente texto foram desenvolvidas a partir de duas situações: encontros com professores da rede regular de ensino, realizadas em conjunto com a colega de trabalho Profa. Dra. Adriana Lia Friszman de Laplane; e discussões com a psicóloga e doutoranda em Psicologia Educacional, Maria Eduarda Silva Leme, que atua em reabilitação profi ssional e educação de jovens cegos. Este trabalho contou com o auxílio da FAEP-Unicamp: processo 1.534/2003.

2 Endereço: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação, Rua Tessália V. de Camargo, 126, CP. 6111, Bairro Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil 13084-971. E-mail: [email protected]

Formação de Conceitos em Crianças Cegas: Questões Teóricas e Implicações Educacionais1

Cecilia Guarnieri Batista2

Universidade Estadual de Campinas

RESUMO – A formação de conceitos depende da linguagem e do pensamento, que integram informações sensoriais. Postula-se que mudanças no sujeito que conhece e nos objetos e eventos a serem conhecidos sugerem modelos fl exíveis de ensino de conceitos. Considera-se que os mesmos pressupostos se aplicam ao ensino de conceitos a alunos cegos. São discutidas especifi cidades desse processo, incluindo o papel do tato como recurso, embora não como substituto direto da visão, e a noção de representação, como fundamento da elaboração de recursos didáticos para o aluno cego.

Palavras-chave: formação de conceitos; educação de cegos; desenvolvimento de cegos.

Concept Formation in Blind Children: Theoretical Questions and Educational Implications

ABSTRACT – Concept formation depends on language and thought, that promote the integration of information coming from the senses. It is postulated that changes in the person, the objects and events to be known suggest fl exible models of concept teaching. It is assumed that the same considerations apply to teaching concepts to blind pupils. Specifi cities of this process are discussed, including the role of touch as resource, although not as a direct substitute to vision, and the notion of representation as a basis for the elaboration of pedagogical resources for the blind student.

Key words: concept formation; blind education; blind development.

Constata-se que, entre as falas dos educadores de cegos, são muito freqüentes as que se relacionam à busca de formas alternativas para apresentar objetos e eventos, que se assume serem conhecidos normalmente através da visão. Fica, entre-tanto, a questão: O que é conhecer? Ver é conhecer? Sentir sensorialmente é conhecer? Uma das respostas correntes na psicologia e no meio educacional relaciona o ato de conhe-cer à aquisição de conceitos. Propõe-se, então, no presente trabalho, discutir a questão da aquisição de conceitos, e suas implicações para o ensino de crianças cegas.

Concepções sobre Conceitos

A defi nição de conceito, no Dicionário Aurélio ( Ferreira, 1975) apresenta nove itens, tendo o primeiro a seguinte acepção: 1. Filosofia: “Representação dum objeto pelo pensamento, por meio de suas características gerais.” Nos demais itens do verbete, são apresentadas acepções relativas a: defi nição, idéia, concepção, opinião, avaliação e máxima ou provérbio. Assim, a primeira acepção, explicitamente, e as demais, de forma implícita, trazem a idéia de generalização, de busca do que há de generalizável em diferentes elemen-tos, de modo a permitir identifi cações e agrupamentos sob o mesmo nome ou rótulo.

A psicologia vem se dedicando ao estudo dos conceitos, e, para isso, tem adotado diferentes concepções, dentre as quais foi considerada hegemônica, até recentemente, a cha-mada concepção tradicional ou clássica. Lomônaco, Caon, Heuri, Santos e Franco (1996), em uma revisão de literatura, apresentam quatro concepções presentes nas teorias de inves-

Uma das preocupações constantemente apresentadas por professores do ensino regular que recebem alunos cegos em suas classes refere-se ao modo de aprendizagem do aluno cego e, especialmente, aos recursos necessários para essa aprendizagem (Laplane & Batista, 2003). A resposta reside, em parte, na adoção de recursos alternativos para acesso ao texto escrito, tais como o sistema Braille. Entretanto, fi cam muitas dúvidas: Como a criança vai entender as noções apre-sentadas nas aulas? Como vai, por exemplo, fazer distinções entre animais? Conhecer o funcionamento do corpo humano? Compreender o que são acidentes geográfi cos?

De onde vêm essas dúvidas? Em parte, de uma concepção de aprendizagem centrada no aporte sensorial e, basicamen-te, na visão, conforme indicado na afi rmação apresentada a seguir, a propósito da questão do ensino de artes para cegos: “Atestam as pesquisas mais recentes que os olhos são respon-sáveis por no mínimo 80% das impressões recebidas através da sensibilidade. Habitamos um mundo que se manifesta de forma predominantemente visual” (Oliveira, 1998, p.7).

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C. G. Batista

tigação psicológica sobre conceitos: clássica, probabilística, dos exemplares e teórica.

Concepção clássica

A concepção clássica, cujas origens remontam ao rea-lismo aristotélico, é apresentada por Medin e Smith (1984) como uma concepção que “sustenta que todos os exemplos de um conceito compartilham propriedades comuns, que se constituem em condições necessárias e sufi cientes para a defi nição do conceito” (p. 115). Medin (1989) dá como exemplo a categoria “triângulo”, que atende aos critérios de possuir uma lista de propriedades individualmente ne-cessárias e coletivamente sufi cientes para inclusão de uma fi gura geométrica nessa categoria. No caso do triângulo, os critérios são: ser uma fi gura geométrica fechada, possuir três lados e a soma de seus ângulos internos totalizar 180 graus. Essa concepção é também apresentada por Oliveira e Oliveira (1999), que destacam sua natureza binária, do tipo “tudo-ou-nada”, de modo que “se duas entidades quaisquer são exemplares de um conceito, elas o são a igual título, ou seja, um conceito não se aplica mais ou melhor a uma entidade que a qualquer outra” (p. 18).

Lomônaco e cols. (1996) consideram que, embora a concepção clássica tenha sido predominante na psicologia por mais de meio século, várias difi culdades foram sendo evi-denciadas. Essas difi culdades foram apresentadas por Medin e Smith (1984), a primeira sendo o fracasso na especifi cação de propriedades defi nidoras. Esses autores consideram que décadas de análises por lingüistas, fi lósofos, psicólogos e outros falharam na defi nição da maioria dos conceitos rela-tivos a objetos. Uma outra difi culdade apontada refere-se à existência de casos cuja inclusão é incerta ou duvidosa, pois os limites das categorias não são delimitados com precisão. Como exemplo, Medin e Smith (1984) trazem a dúvida sobre se um tapete deve ser considerado como parte da mobília. Ainda outro argumento contra a concepção clássica refere-se ao fato de que alguns exemplos são mais típicos que outros. Nesse sentido, o conceito de ave seria melhor representado por uma andorinha3 do que por avestruz. Os autores citam, ainda, outros argumentos, também destacando a diferença de representatividade de diferentes exemplares colocados sob a mesma designação conceitual, e consideram que é o conjunto desses argumentos que acaba trazendo difi culdades para a concepção clássica.

A concepção clássica foi também criticada por Kitcher (1990), uma autora interessada nas contribuições de Kant para a psicologia, especialmente nas colocações do fi lósofo sobre conceitos empíricos. Kitcher faz uma crítica à visão clássica sobre conceitos, que supõe defi nições baseadas em condições necessárias e sufi cientes, e demonstra como Kant dá apoio a essa crítica. Afi rma que, para Kant, os conceitos empíricos podem ser considerados como regras que nos per-mitem unir materiais que são apresentados separadamente à nossa percepção. Assim, conceitos empíricos são adquiridos, refi nados, rejeitados, ou mantidos com base na experiência. Isso é o que os legitima: serem justifi cados4 pelo próprio

processo que os produz e modela. Nesse sentido, dado que a experiência está permanentemente em aberto, eles não podem ser defi nidos por condições necessárias e sufi cientes.

Kitcher (1990) apresenta, ainda, duas outras implicações da crítica de Kant às defi nições de conceitos empíricos através de condições necessárias e sufi cientes (concepção clássica). A primeira ataca a noção de que a aprendizagem de conceitos ocorre em um período relativamente curto de tempo. Para ser coerente com a presente crítica, a aquisição de conceitos precisa ser concebida como uma experiência que continua ao longo da vida. A segunda implicação su-gere que a própria noção de conceitos não seria adequada às mudanças no ambiente, e deveria ser substituída pela de protótipos conceituais, em constante mudança ao longo do tempo. Dessa forma, seria preservada a principal suposição teórica sobre conceitos empíricos: eles são centrais para a cognição por serem moldados pela experiência.

Concepção prototípica ou probabilística

A primeira alternativa à concepção clássica, segundo Lomônaco e cols. (1996), foi a concepção prototípica ou pro-babilística, proposta por Eleanor Rosch (Rosch, Simpson & Miller, 1976). A autora afi rmou ter se baseado em Wittgenstein, que sugeriu o princípio de semelhança entre categorias, for-mando famílias, de modo que cada item tivesse um ou mais elementos em comum com alguns outros, mas que nenhum elemento precisasse ser comum a todos os itens. Rosch sugeriu, então, a organização de categorias em torno de um conjunto de propriedades ou conjuntos de atributos correlacionados que são característicos ou típicos, rejeitando, assim, a noção de atributos defi nidores. Oliveira e Oliveira (1999) comentam que a concepção prototípica, da mesma forma que a clássica, iden-tifi ca conceitos com conjuntos de propriedades. A diferença é que, nesse caso, as propriedades “constituem um protótipo, de tal maneira que a aplicabilidade de um conceito a uma entidade depende do grau de similaridade que existe entre a entidade e o protótipo do conceito” (p. 22). Assim, não se tem uma situação de enquadramento do tipo “tudo ou nada”, mas de exemplares mais ou menos próximos do protótipo, com limites pouco defi nidos.

Entre as críticas a essa concepção, estão as de Medin e Smith (1984). Eles consideram que a mesma pode não cap-tar adequadamente todo o conhecimento das pessoas sobre conceitos. Consideram que as pessoas, além de conhecerem propriedades características, também parecem conhecer o conjunto de propriedades de um conceito, bem como as relações entre elas, o que não estaria contemplado por essa concepção. Além disso, sugerem que essa concepção pode ser excessivamente aberta e fl exível.

Concepção dos exemplares

A terceira concepção destacada por Lomônaco e cols. (1996) é a concepção dos exemplares, que guarda seme-lhanças com a concepção prototípica. Também se opondo à concepção clássica, esta concepção “assume que, pelo menos

3 O exemplo original cita “robin”, cuja tradução seria “tordo”, passarinho bastante comum nos EUA. 4 Warranted, no original.

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Conceitos em crianças cegas

em parte, um conceito consiste em descrições separadas de alguns de seus exemplares” (Medin & Smith, 1984, p. 118). Para eles, os modelos de exemplares têm em comum a idéia de que a categorização de um objeto se baseia em compara-ções daquele objeto com exemplares conhecidos da mesma categoria. Esses autores consideram como uma vantagem em relação à concepção prototípica o fato de que exemplares podem trazer informações sobre todo o conjunto de valores de uma propriedade, bem como informação sobre correla-ções entre propriedades. Criticam, por outro lado, o fato de se ter uma falta de restrições em relação a propriedades que devem ser incluídas em conceitos, ou mesmo, quanto ao que constitui um conceito.

Concepção teórica

A quarta e última concepção destacada por Lomônaco e cols. (1996), proposta como alternativa para superar as limitações acima apontadas, é a concepção teórica. Segundo esses autores, baseia-se na idéia de que, ao formar novos conceitos, o sujeito traz pressuposições sobre “como as coisas estão dispostas no mundo: como elas são, qual o seu modo de funcionamento e como se relacionam entre si. Estas pressu-posições são denominadas ‘teorias’ ou ‘modelos’” (p. 53). É enfatizado o fato de que cada conceito se relaciona com outros conceitos, dentro de domínios de conhecimento, sendo cada domínio organizado por uma teoria, não necessariamente uma teoria científi ca. Murphy e Medin (1985) esclarecem que, quando argumentam que os conceitos são organizados por teorias, o termo “teoria” é usado para signifi car um grande número de “explicações” mentais, e não um relato científi co completo e acabado. O termo indica “um conjunto complexo de relações entre conceitos, geralmente com uma base cau-sal” (Murphy & Medin, 1985, p. 290), de forma semelhante às teorias usadas em explicações científi cas, embora não se confunda com estas. Lomônaco e cols. (1996) ressaltam a diferença dessa concepção em relação às demais, pelo fato de os conceitos passarem a ser vistos sempre como relacionados a outros conceitos, constituindo domínios de conhecimentos, articulados por teorias.

Concepção defendida por Kitcher, baseada em Kant

Depois de criticar a concepção clássica sobre conceitos, Kitcher (1990) traz a pergunta sobre os mecanismos mentais envolvidos em nossa habilidade de classifi car com base em conceitos, já que foi rejeitada a noção das condições neces-sárias e sufi cientes. Lembra a sugestão de Kant quanto ao emprego de conceitos empíricos que se relacionem como gênero e espécie, entendendo-se “gênero” como categoria mais ampla, e “espécie” como subcategoria de “gênero”. As características podem se coordenar entre si, ou constituir sé-ries parciais de características hierarquizadas, que ascendem a gêneros mais altos e/ou descem para espécies mais baixas.

Segundo Kitcher (1990), Kant considera que essas rela-ções de coordenação e subordinação não se constituem em uma “essência”, mas apenas indicam relações de dependência entre as propriedades conhecidas a serem associadas ao con-ceito. Embora, pelos motivos já explicitados, não se possa ter uma lista completa das relações de dependência antes do “fi m

da ciência”, existem alguns indicadores úteis. Conceitos de-monstram a unidade sistemática que vai permitir a hierarquia de gênero e espécie quando um conceito de gênero indica: a) propriedades ou b) forças que governam, elementos que explicam os poderes ou propriedades do fenômeno indicado pelo conceito da espécie.

Kitcher (1990) considera que essa proposta de Kant é melhor que a concepção teórica de conceitos, pois não ne-cessita da atribuição de teorias a crianças e adultos leigos. A heurística subjacente à teoria de Kant sugere a adoção de conceitos que indicam algumas relações de dependência entre atributos. Conceitos seriam apoiados apenas em fragmentos de teorias. A autora destaca, assim, as contribuições teóricas e heurísticas da visão de Kant sobre conceitos empíricos, que contesta frontalmente a concepção clássica e propõe uma alternativa à concepção teórica, especialmente quando não se trata de teorias científi cas. Busca uma caracterização dos con-ceitos empíricos como inacabados, em processo de alteração, melhor caracterizados por relações parciais de dependência entre gênero e espécie, do que por sistemas fechados de defi nição por condições necessárias e sufi cientes.

Conceitos em Piaget e Vygotsky

Com um foco mais voltado para a aquisição, Piaget e Vygotsky também abordam a questão dos conceitos. Em relação a Piaget, é possível afi rmar que, em sentido amplo, toda a sua epistemologia genética guarda relação com o tema “conceitos”. Flavell (1975), autor de tradição piagetiana, dis-cute a aquisição de conceitos em vários domínios: o mundo lógico e matemático (classes, relações e número), o mundo natural (objetos; quantidade – conservação de peso, subs-tância e volume; espaço; tempo, movimento e velocidade; causalidade e conceitos afi ns) e o mundo social.

Na maioria desses domínios, Piaget representou um marco teórico e empírico, e sugeriu etapas, ou fases de evolução dos mesmos, ao longo da vida. O autor postulou que as aquisições humanas seguem estádios de desenvol-vimento (Piaget, 1964/1967), com características bastante defi nidas. Esses estádios representam etapas ou marcos no desenvolvimento, a partir da primeira forma de inteligência, a sensório-motora, passando pelo início do uso do símbolo, das operações concretas e, fi nalmente, das operações formais. Sua epistemologia genética parte do modelo de conhecimento completo, presente no adulto, e se pergunta sobre a origem desse conhecimento, desde o início da vida do bebê. Busca as respostas por meio de investigações sobre as formas de construção de cada categoria de conhecimento, em cada es-tádio, propondo um modelo de desenvolvimento humano que seria classifi cado de organicista, de acordo com os critérios apresentados por Lewis (1999).

Por sua vez, Vygotsky (1934/1989) aborda a questão da aquisição de conceitos, fazendo distinção entre conceitos espontâneos e conceitos científi cos, os primeiros adquiridos na experiência pessoal da criança, e os científi cos, em sala de aula. O autor descreve etapas na formação de conceitos (sincretismo, complexo, conceito). Relata que, nos estudos realizados por seu grupo de pesquisa, o pensamento por con-ceito só foi observado a partir da adolescência, com gradual aparecimento dos verdadeiros conceitos e permanência das

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C. G. Batista

formas mais elementares em muitas áreas do seu pensamento. Traz um enfoque menos linear que Piaget, considerando que “a adolescência é menos um período de consumação do que de crise e transição” (p. 68). Sua abordagem ao processo de desenvolvimento pode ser classifi cada como contextualista, segundo os critérios de Lewis (1999). O autor dá ênfase ao papel da linguagem, ao considerar que o processo de forma-ção de conceitos consiste em operação intelectual, “dirigida pelo uso das palavras como o meio para centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e sim-bolizá-los por meio de um signo” (p. 70).

Vygotsky (1934/1996) critica a noção da psicologia tra-dicional, baseada na lógica formal, de que o conceito é uma estrutura mental abstrata, muito distante de toda a riqueza da realidade concreta. Ao invés disso, afi rma que

O verdadeiro conceito é a imagem de uma coisa objetiva em sua complexidade. Apenas quando chegamos a conhecer o objeto em todos os seus nexos e relações, apenas quando sintetizamos verbalmente essa diversidade em uma imagem total mediante múltiplas defi nições, surge em nós o conceito. (Vygotsky, 1934/1996, p. 78)

Ao longo da presente revisão sobre concepções relativas a conceitos, destaca-se a tendência por visões dinâmicas, ade-quadas à captação de uma realidade mutável e multifacetada. A partir das mesmas, são sugeridas as seguintes decorrências para o processo educacional:a) Com base na concepção teórica, conceitos vistos como

relacionados a outros conceitos, são organizados em sistemas, que variam de acordo com teorias e objetivos específi cos. Desse modo, o mesmo elemento a ser concei-tuado pode fazer parte de diferentes sistemas conceituais, não existindo, portanto, uma defi nição única e exclusiva para um determinado conceito (ex: “cachorro” tem uma defi nição enquanto componente do sistema de classifi -cação dos seres vivos pela Biologia, outra no âmbito da discussão sobre animais de estimação, e outra, ainda, como possível vetor de doenças).

b) A partir das colocações de Kitcher (1990), uma proposta de caracterização de conceitos empíricos como relações entre “gênero” e “espécie”, de modo aberto, ao invés de defi nições fechadas, por condições necessárias e sufi cien-tes.

c) Também a partir de Kitcher (1990), a noção de que a aquisição de conceitos deve ser concebida como uma experiência que continua ao longo da vida, não podendo ser pensada, exclusivamente, como aprendizagem a curto prazo.

d) Com base nas colocações de Vygotsky (1934/1989, 1996), uma concepção de aquisição de conceitos voltada para processos de mediação por signos, particularmente a mediação pela linguagem, e, assim, colocando o foco nas interações entre pessoas, objetos e situações, como integrantes ativos de contextos sociais e culturais, ao longo do processo contínuo de apropriação do signifi cado de conceitos.Tendo em vista essas considerações, fi ca claro que o

mesmo objeto pode ser conceituado em diferentes níveis, dependendo de diferentes fatores. Além da questão evolutiva,

abordada pelos teóricos do desenvolvimento, é importante salientar que, ao longo da vida, as pessoas se envolvem em diferentes tipos de interação, que levam a diferentes níveis de aprofundamento de diferentes conceitos. Assim, ao longo das experiências de uma pessoa, e dos conhecimentos que adquire, muda o nível de compreensão de cada conceito. Por exemplo, o conceito de Poder Legislativo é diferente para uma criança de 8 anos, um adolescente que fez uma visita a uma Casa Legislativa, um adulto que trabalha como escriturário em uma Câmara de Vereadores, um deputado, um leitor assíduo de jornal e um cientista político. O mesmo pode ser pensado em relação a quaisquer outros exemplos, tais como, “casamento”, “maternidade e paternidade” ou “carreira profi ssional”.

É importante lembrar, também, que as coisas a serem conceituadas (objetos, eventos, instituições, costumes) estão em mudança, o que é mais acentuado em uma sociedade tecnológica como a atual. Entre outros exemplos, podem ser mencionadas as alterações recentes no conceito de “telefone”: os modelos com fi o e sem fi o, os conjugados a aparelhos de fax e secretária eletrônica, e os celulares, com suas múltiplas funções. Outros exemplos: TV tradicional versus interativa; teatros tradicionais versus Centros Culturais; os computa-dores pessoais dos anos 1980, os dos anos 1990, e os atuais notebook e palmtops. Observam-se, ainda, alterações nos signifi cados das palavras, alterações mais rápidas e efêmeras na gíria, mas também observadas nas formas cultas da língua e nas variações dialetais.

Assim, ao longo da vida, o processo de aquisição vai assumindo formas cada vez mais individualizadas e típicas de pessoas e de grupos: mudam as coisas, muda o nível de conhecimento das coisas, defi nem-se áreas de domínio conceitual preferencial (dependendo, entre outros fatores, da atividade profi ssional e de interesses pessoais). Não tem sentido, portanto, falar em “conceito adquirido” em situação escolar como algo defi nitivo.

Aquisição de Conceitos por Pessoas Cegas

A questão da aquisição de conceitos por cegos passa, em primeiro lugar, por tudo o que se refere à aquisição de conceitos por qualquer pessoa, com ou sem alterações sen-soriais. Aplicam-se, portanto, as observações e conclusões apresentadas anteriormente, acrescidas de tópicos específi cos relativos ao tema. Nesse sentido, será apresentada uma breve revisão sobre aquisições de pessoas cegas, e apresentados e discutidos os resultados de um levantamento sobre concep-ções de professores a respeito do ensino de conceitos para alunos cegos. Serão discutidos, a seguir, as questões centrais destacadas nesse levantamento, a saber, o uso do tato como recurso no ensino de cegos e a noção de representação no planejamento de material didático para cegos.

Aquisições de pessoas cegas

Estudos recentemente realizados no Brasil mostraram exemplos de competências dos cegos na aquisição de conceitos. Leme (1999) investigou a compreensão do sig-nifi cado de palavras que se supõe terem uma base visual (como “arco-íris” e “transparente”), em relação a quatro

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Conceitos em crianças cegas

de diferenças dentro de uma população, com principal atenção para os casos de alta aquisição. Warren (1994) considera que um caso de alta aquisição nos diz mais que a informação sobre resultados médios, pois já é sufi ciente para indicar que as pos-síveis difi culdades não são inerentes à cegueira, e, ao mesmo tempo, instiga à identifi cação dos processos que favoreceram essas aquisições. O autor critica propostas de aconselhamento de pais e profi ssionais, que descrevem aquilo que, “em média”, uma criança cega pode adquirir, por acreditar que tendem a reduzir expectativas de aquisição. Essas colocações de Warren sugerem novas formas de investigação, e colocam sob suspeita os estudos comparativos que concluem sobre incapacidades ou atrasos na aquisição de diferentes habilidades por cegos, incluindo a questão de conceitos.

Por sua vez, Lewis (2003) apresenta revisão de literatura sobre o desenvolvimento de crianças cegas, concluindo que a cegueira não impede o desenvolvimento, mas que este difere, de diversos modos, do apresentado pelas crianças videntes. Considera, assim, que o estudo de crianças cegas pode ser signifi cativo para as teorias de desenvolvimento, e sugere três implicações teóricas desses estudos. A primeira se refere à necessidade de identifi cação de rotas alternativas de desenvolvimento. Lewis (2003) argumenta que, se as crianças cegas apresentam uma quantidade relativamente pequena de problemas de desenvolvimento, isso indica que este pode ocor-rer na ausência do input visual. E aponta a linguagem como a principal fonte de informação para a criança cega, e possível substituto para muito do que ela perde pela falta de visão. Em relação a esse tópico, considera-se que cabe uma discussão sobre relações entre input sensorial e processos cognitivos, que remete à pergunta epistemológica sobre a origem do conheci-mento. Hessen (1925/2000), em texto clássico publicado no início do século XX, apresenta e discute possíveis respostas a essa pergunta, colocando as posições do empirismo e raciona-lismo clássicos, o primeiro enfatizando o papel dos sentidos, o segundo, a importância da razão. O autor também apresenta como formulações mais recentes, representando tentativas de conciliação: o intelectualismo, mais próximo do empirismo, e o apriorismo, mais próximo do racionalismo. A discussão continua, e o que importa enfatizar é que não se concebe mais o empirismo ou racionalismo puros. No mesmo sentido, embora com grandes variações, a Psicologia tende a pensar no conhecimento como fruto de interação entre informações provenientes dos sentidos e processos cognitivos, em que a linguagem assume papel relevante, embora com variações nos diferentes quadros de referência teórica. Assim, quando Lewis fala na linguagem como possível substituto do que a criança cega perde pela falta de visão, é importante lembrar que a linguagem é importante para qualquer pessoa, e que é difícil falar em um único substituto para a visão. O que se coloca, no caso do cego, é a pergunta sobre como se organi-zam e se integram as informações provenientes dos sentidos remanescentes, e qual o papel da linguagem e do pensamento nessa organização.

A segunda implicação teórica apresentada por Lewis (2003) refere-se à busca de explicações para problemas no desenvolvimento de crianças cegas, nos casos em que aparen-temente não existem problemas cerebrais que os justifi quem. Sugere que essas crianças podem não ter recebido, ao longo de seu desenvolvimento, inputs apropriados em quantidade,

adolescentes do sexo feminino com cegueira congênita. Os resultados indicaram signifi cados corretos para a maioria das palavras, para quase todas as jovens, em geral com alto grau de generalização e abstração das respostas.

Passos (1999) estudou a compreensão de metáforas por dois meninos cegos congênitos, com idade entre 12 e 13 anos. A intervenção envolveu a explicação do signifi cado de algumas das metáforas. Os resultados indicaram que os dois meninos mostraram aumento na compreensão das metáforas cujo signifi cado foi explicado, e também para as metáforas não explicadas, embora com diferenças no nível de desempenho entre eles.

Ormelezzi (2000) pesquisou a aquisição de representa-ções mentais por cegos adultos. Constatou que a formação de imagens e conceitos dos participantes se dava pelas ex-periências de tipo tátil, auditiva e olfativa, inter-relacionadas com a linguagem das pessoas com quem interagiam. E, no caso de conceitos pouco ou nada acessíveis à percepção, verifi cou signifi cados consistentes, cuja aquisição foi atri-buída à linguagem.

Nunes (2002) propôs o ensino de quatro grupos de con-ceitos (coisas tateáveis pequenas, coisas tateáveis grandes, conceitos não tateáveis e conceitos abstratos), para três crianças cegas com idades entre 9 e 10 anos. Os resultados indicaram que todos os participantes apresentaram desem-penho apreciavelmente melhor após a intervenção.

Nunes (2004) apresentou seis histórias (elaboradas por Keil, centradas na concepção teórica de conceitos, e adap-tadas para o Brasil por Lomônaco) para sete crianças cegas entre 8 e 13 anos. Verifi cou que as crianças basearam-se, na maioria das vezes, em atributos defi nidores, considerados superiores aos atributos característicos. Também solicitou aos sujeitos a defi nição de 15 conceitos, concretos e abstratos, e analisou as categorias de respostas. Dessa forma, identifi cou formas diferenciadas de defi nição e de utilização de recursos perceptivos para a elaboração dos conceitos.

Quanto à literatura internacional, a recente revisão de Nunes (2004) buscou as principais bases de dados, no período de 1980 a 2004. A autora encontrou um número relativa-mente pequeno de estudos, a maioria publicada no Journal of Visual Impairment and Blindness. A tendência geral dos resultados foi de indicar capacidades conceituais dos cegos, semelhantes às dos videntes, sendo as diferenças discutidas como relacionadas a modos alternativos de processamento cognitivo das informações sensoriais.

De modo geral, as revisões mais recentes sobre o desen-volvimento de pessoas cegas (Lewis, 2003; Warren, 1994) não trazem mais a dúvida sobre presença de capacidades, e sim, questionamentos sobre aspectos em que diferem, e implicações teóricas e práticas dessas diferenças.

De uma forma abrangente em relação às capacidades dos cegos, com implicações para o tópico em questão, Warren (1994) critica o que ele denomina de abordagem comparativa ao estudo dos cegos, em que capacidades e características de crianças cegas são avaliadas em relação às capacidades cor-respondentes de crianças videntes, sempre em relação à idade cronológica. O autor afi rma ter utilizado essa abordagem em seus livros anteriores de revisão da literatura sobre o desen-volvimento de crianças cegas. E propõe, como alternativa, a abordagem diferencial, defi nindo-a como busca da explicação

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qualidade ou variedade, de modo a permitir convergência de informações e redundância das mesmas. A autora aponta, portanto, para a importância de se investigar infl uências am-bientais, ao longo da história do desenvolvimento da criança, deslocando o foco do limite orgânico, como fator único de produção de difi culdades.

A terceira implicação refere-se às teorias evocadas para explicar diferenças observadas. Lewis (2003) discute o fato de que a teoria de Piaget prevê relações entre o aparecimento de diferentes manifestações (ex: reação à separação dos pais, noção de permanência de objeto, linguagem, compreensão de causalidade e jogo), como refl exo da habilidade subjacente de representação mental do ambiente. Lembra exemplos de estudos com crianças cegas, em que foram observadas discrepâncias entre essas manifestações, estando algumas atrasadas e outras ocorrendo no mesmo período que para as crianças videntes. E as discute sugerindo a necessidade de formulações teóricas que não sejam baseadas apenas no estudo do desenvolvimento de crianças videntes. Cabe comentar que a teoria de Piaget não é a única que discute o desenvolvimento infantil, e que se trata de uma teoria que seria classifi cada por Lewis (1999) como organicista, com ênfase no estabelecimento de etapas claramente delimitadas no desenvolvimento. Lewis (1999) discute a questão das abordagens ao desenvolvimento infantil e critica modelos de desenvolvimento que ele denomina organicistas. Propõe que os mesmos sejam substituídos por modelos contextualistas de desenvolvimento, que enfatizam: a) a descontinuidade no desenvolvimento, opondo-se à noção de continuidade; b) uma visão da criança como participante ativo de sua socialização e desenvolvimento, contrapondo-se a uma visão passiva, depen-dente de imperativos biológicos e do ambiente social; c) uma concepção da história do desenvolvimento como narrativa, como representação de eventos passados passível de reconstrução, oposta à noção de história como fotografi a. Assim, com relação às colocações de Lewis (2003), considera-se que são bastante relevantes quando sugerem que as formulações teóricas sobre desenvolvimento não sejam baseadas exclusivamente no estudo de crianças videntes. Entretanto, não apenas porque as explica-ções não se coadunam com as colocações da teoria de Piaget sobre estágios de desenvolvimento, mas também porque outros modelos podem ser propostos para o estudo do desenvolvimento de todas as crianças, com ou sem alterações orgânicas.

Verifi ca-se que diferentes autores, sob diferentes pers-pectivas, trazem dados sobre as possibilidades de desenvol-vimento de crianças cegas e buscam elucidar processos de aquisição, enfatizando a contribuição de fatores ambientais e apontando implicações teóricas e metodológicas do estudo dessas crianças.

Concepções de professores sobre ensino de conceitos para cegos

Abordando-se a questão de outro ângulo, o dos profes-sores em sala de aula, pode-se perguntar o que eles pensam sobre o ensino de crianças cegas, especialmente quando está em implantação a política de inclusão de alunos com defi ciência no sistema regular de ensino. Um estudo foi realizado por Laplane e Batista (2003), com 25 professoras do ensino regular (pré-escola e primeiras séries do Ensino Fundamental) que tinham alunos com defi ciência visual em

suas classes, em municípios do interior de São Paulo. Foram identifi cadas e discutidas algumas de suas crenças sobre o planejamento de ensino para esses alunos, sistematizadas em quatro categorias, apresentadas a seguir.1) A discriminação tátil constitui-se em habilidade básica,

que deve ser bem treinada em crianças cegas.Considera-se, assim, o tato como a principal forma de ob-

tenção de informação para o cego. Sugere-se que o tato deve ser treinado extensivamente na discriminação de diferentes materiais e de diferentes aspectos desses materiais, tais como forma, textura e peso. Muitas vezes, essas atividades são propostas de forma de exercícios específi cos, com amostras variando ao longo de uma dimensão, como forma ou textu-ra, a serem discriminadas fora de contextos signifi cativos. Revivem, assim, a estratégia pedagógica do exercício de habilidades isoladas, que tem sido bastante criticada pela pedagogia contemporânea.2) O que não é apreendido pelos olhos, deve ser ensinado

por meio de modelos táteis.As professoras demonstram grande preocupação com a

falta de material adequado, e parecem crer que esses recursos táteis, per se, permitiriam as aquisições de conhecimento pelos alunos cegos. As autoras do estudo discutem a crença subjacente a essa afi rmação, de que a formação de conceitos depende, basicamente, de informações primárias, prove-nientes dos sentidos, e de que o tato é o principal substituto da visão.3) Deve-se oferecer à criança cega uma grande quantidade

de objetos, que a ajudarão a construir conceitos.As professoras pensam que deveria ser usada uma pro-

fusão de objetos, em tamanho real ou miniatura, e assumem que o ensino vai ser mais efetivo, quanto mais objetos forem oferecidos. As situações não facilmente apresentáveis ao tato provocam dúvidas e insegurança quanto à possibilidade dos alunos de ter acesso a esses conhecimentos, incluindo: a) elementos não facilmente miniaturizáveis, e/ou que perdem muitas de suas características nessa situação. Exemplos: conjunto de edifícios, acidentes geográfi cos (lago, monta-nha, etc); b) elementos que são inacessíveis ao toque, como bolha de sabão, fenômenos atmosféricos (nuvem, raio, arco-íris), entre outros; c) elementos que são perigosos ao toque: animais agressivos ou peçonhentos, objetos quentes, etc; d) elementos cujo toque é proibido ou pouco convencional, como é o caso de certas partes do corpo, certos animais (sapo), entre outros.

A idéia é que se deveria ter um acervo, o mais completo possível, de objetos, miniaturas e ampliações. Lamenta-se a impossibilidade de o cego ter acesso aos elementos não reprodutíveis em modelos tateáveis. As autoras do estudo consideram que a questão a ser discutida é a da representa-ção, e levantam as seguintes questões: Será que todo objeto representa a noção que se pretende trazer para o aluno? Que preocupações deveriam estar presentes, ao se planejar um objeto como representante de outro objeto ou fenômeno?4) Representações visuais devem se converter em represen-

tações táteis, para ensejar a formação de conceitos.Aqui, as professoras se referem, principalmente, a re-

presentações bidimensionais: fi guras, fotografi as, desenhos, mapas, esquemas. No caso do aluno cego, alguns recursos já foram desenvolvidos, e muito resta a fazer. Há questões

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Conceitos em crianças cegas

importantes a discutir, para balizar a elaboração desses re-cursos. Nesse sentido, Masini (1994) retoma formulações de Chauí que, em obra sobre “o olhar”, conclui que conhecer não é ver, mas que o ver permanece como condição para o conhecer. Masini comenta que, no caso, “se está falando da ‘maioria’ dos seres que aí estão, existindo como videntes e percebendo pela predominância da visão sobre os demais sentidos” (p. 81). E lança a pergunta: “Não seria possível pensar de uma outra maneira? (...) Porque não perguntar como é o pensar daquele que aí está e não é vidente?” (p. 81). Nesse sentido, a autora analisa e critica “propostas, instrumentos e fundamentações para trabalhos com o D.V., cujo referencial básico era exatamente o que não é próprio dele, isto é, a visão” (p. 75).

Considera-se, assim, que a partir da pesquisa de Laplane e Batista (2003), emergem questões relativas ao papel do tato no ensino do cego e à noção de representação no planeja-mento de recursos didáticos.

O uso do tato como recurso no ensino de cegos

Dentre os autores que discutem a questão do papel do tato para o cego, destacam-se Ochaita e Rosa (1995), que apresentam o sistema háptico ou tato ativo como o sistema sensorial mais importante para o conhecimento do mundo pela pessoa cega. Para esses autores, é necessário diferenciar entre tato passivo e tato ativo ou sistema háptico. Enquanto no primeiro a informação tátil é recebida de forma não in-tencional ou passiva, no tato ativo a informação é buscada de forma intencional pelo indivíduo que toca. Assim, segundo eles, no tato ativo encontram-se envolvidos não somente os receptores da pele e os tecidos subjacentes (como ocorre no tato passivo), mas também a excitação correspondente aos receptores dos músculos e dos tendões, de maneira que o sistema perceptivo háptico capta a informação articulatória, motora e de equilíbrio.

Ainda segundo Ochaita e Rosa (1995), existem impor-tantes diferenças entre a percepção e o processamento da informação mediante o tato e a visão. Afi rmam que a cap-tação da informação mediante o tato é muito mais lenta que a proporcionada pelo sistema visual, e lembram que essa informação tem caráter seqüencial. Consideram que isto dá lugar a uma maior carga na memória de trabalho, quando os objetos a serem explorados são grandes ou numerosos (exemplo: exploração tátil de uma mesa, em comparação com sua exploração visual). Além disso, enquanto o tato somente pode explorar as superfícies situadas no limite que os braços alcançam, a visão é o sentido útil por excelência para perceber objetos e sua posição espacial a grandes distâncias.

Assim, o tato constitui um sistema sensorial que tem determinadas características e que permite captar diferentes propriedades dos objetos, tais como temperatura, textura, forma e relações espaciais. Essa captação tem caráter seqüen-cial e funciona a curta distância, correspondendo ao alcance da mão. Ao mesmo tempo, difere da visão, que permite a obtenção de informação simultânea e à distância.

Outros autores que escrevem sobre a cegueira também exaltam o caráter totalizador ou global da visão. Ferrell (1996) dá o exemplo de como uma criança passa a conhecer um gato: ao explorar o animal, a criança toca sua cabeça,

corpo, pernas, sente suas garras, percebe a maciez do pelo, ouve seus miados, sente seu cheiro e, ao mesmo tempo, está sempre vendo a imagem do gato todo. A autora afi rma que isso é diferente do caso da criança cega, que pode passar por várias experiências isoladas (ouvir um miado, tocar uma parte do corpo do gato, levar um arranhão, entre outras) sem ter a facilidade de integrar todas essas experiências como provenientes de um gato.

É inegável o papel da visão ao trazer informações sobre elementos colocados em diferentes distâncias, possibilitan-do percepção global e noção de profundidade, bem como a análise dos elementos que compõem a cena. Entretanto, podem ocorrem dois tipos de erro ao se valorizar o papel da visão: um é o de confundir o papel da percepção visual global com o dos processos mentais superiores na compreensão de conceitos; outro, é o de subestimar o valor de informações seqüenciais. Em relação ao primeiro aspecto, é importante lembrar o que já foi destacado sobre aquisição de conceitos. Aplicando essas considerações ao exemplo do gato, uma criança não vai ter a noção de gato por ver um gato, mas por integrar dados sensoriais e explicações verbais que lhe per-mitam identifi car e descrever um gato, estabelecer distinções entre gato, cachorro e rato, e, no processo de educação formal, adquirir noções cada vez mais profundas e complexas sobre seres vivos e suas propriedades.

Quanto ao segundo ponto, sobre o valor das informações seqüenciais, é oportuno lembrar que, na vida, estão presentes muitas modalidades de informação seqüencial: a música, o texto longo (romances, dissertações, entre outros), a exibição de um fi lme ou de uma peça de teatro. Nesses casos, não se considera que haja perdas ou difi culdades, pela impossibili-dade da captação global e simultânea de todos os elementos que vão sendo apresentados em seqüência.

Ainda um outro aspecto, em geral pouco ressaltado, é o fato de que videntes se baseiam muito mais em informações conjugadas a partir de vários sentidos, do que unicamente na visão. Às vezes, tarefas são descritas como basicamente visu-ais, quando não é o caso, pois vários sentidos participam da mesma, além, é claro, do papel predominante dos processos cognitivos. Podem ser citadas várias situações em que é clara a participação do tato e do sentido proprioceptivo, além da visão: localizar objetos em uma bolsa; acionar equipamentos com teclas, como telefone, teclado de computador, ou con-trole remoto; tocar instrumentos; vestir-se (lembrar de como se coloca um cinto nos passadores ou se puxa um zíper nas costas); localizar alguns dos comandos de um carro, espe-cialmente os dos pés. Assim, reitera-se que, para um cego, não se trata de substituir a visão por outros sentidos, normal-mente inativos, mas de acioná-los de uma forma diferente do vidente, que parece usar a visão para “guiar” os demais sentidos. O tato constitui-se em recurso valioso no ensino de alunos cegos. Entretanto, não pode ser visto como substituto da visão, nem pensado de forma independente dos processos cognitivos envolvidos na apropriação de conhecimentos.

A noção de representação no planejamento do material didático para cegos

Uma representação pode ser entendida como um elemento colocado no lugar de outro. Em sala de aula, professores

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lançam mão de representações para trazer alguns dos ele-mentos do mundo, relevantes para determinada explicação. Quando se trata do ensino de videntes, para os quais já existe uma longa tradição bem estabelecida, os professores utilizam meios bidimensionais (gravuras, fotos, esquemas, mapas, fi lmes) e tridimensionais (objetos reais ou miniaturas). Mui-tas convenções vêm sendo estabelecidas, de tal forma que, algumas vezes, deixa-se de entendê-las como convenções. É o caso, por exemplo, dos esquemas (ex: célula, átomo, sistema solar) e dos mapas, que parecem auto-evidentes para os iniciados em sua interpretação. No caso de gravuras, é importante lembrar as convenções para indicar formas, incidência de luz, texturas e distâncias relativas, que vão mudando ao longo da história da arte e da história do desenho pedagógico e das ilustrações infantis.

Uma vez que se trata de representações, a tarefa, em relação ao aluno cego, é de buscar as melhores formas de representação para esse aluno. É um desafi o interessante para o professor, paralelo ao trabalho de estabelecer representa-ções para o aluno vidente, embora mais instigante e criativo, devido à menor oferta de modelos disponíveis. Dessa forma, começam a ser equacionados os problemas explicitados pelas professoras na pesquisa anteriormente mencionada, em relação a formas de trazer “o mundo” (objetos, veículos, acidentes geográfi cos, animais peçonhentos) para a sala de aula. Assim, a diferença entre alunos videntes e cegos fi ca centrada nos modos de representação a serem utilizados como auxiliares na explicação de diferentes conceitos, o que é mais promissor que a discussão centrada na constatação das difi culdades trazidas pela cegueira, sempre comparadas com a ausência dessas difi culdades nos videntes.

Um exemplo refere-se à compreensão da idéia de “trem com 45 vagões”. Para tanto, é necessário saber o que é trem, vagão e ter noção de número. Trata-se de vários conceitos, cuja aquisição envolve múltiplas situações de ensino- aprendizagem, tanto no caso do aluno cego, como do vidente. No caso do aluno cego, não é preciso, como freqüentemente postulado, levá-lo a percorrer um trem com esse número de vagões ou apresentar-lhe uma miniatura desse trem. A oferta de recursos pedagógicos para o ensino do conjunto de conceitos envolvidos na referida expressão dependerá dos co-nhecimentos anteriores do aluno, e não se dará em uma única aula. Outro exemplo refere-se ao conceito de relâmpago, em séries mais avançadas do ensino. Nesse caso, as explicações envolvem noções de eletricidade, dispensando-se o uso de recursos tangíveis, ou a capacidade de ver um relâmpago, como requisito para compreensão.

Conclusão

Concepções recentes sobre conceitos apontam para pro-cessos de mudança, interação entre elementos e relatividade de sistemas de classifi cação. Mudanças se referem tanto ao sujeito que conhece como aos objetos e eventos a serem conhecidos. Essas concepções sobre conceitos apontam para a importância dos processos cognitivos, especialmente linguagem e pensamento, na elaboração e integração das informações provenientes dos sentidos.

No que se refere ao ensino de conceitos para alunos cegos, as decorrências dessas concepções devem ser levadas em conta,

da mesma forma que para alunos videntes. A especifi cidade fi ca por conta da elaboração de recursos auxiliares na com-preensão de diferentes conceitos e sistemas de conceitos. Para tanto, é relevante redefi nir o papel do tato, como importante recurso, embora não como substituto direto da visão. É também relevante pensar a noção de representação, como base para o planejamento de recursos didáticos, a serem elaborados e apresentados de forma interligada aos sistemas conceituais já adquiridos e em fase de aquisição pelos alunos.

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Recebido em 21.09.2004Primeira decisão editorial em 10.02.2005

Versão fi nal em 31.03.2005Aceito em 11.04.2005

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Imagem corporal e sexualidade de adolescentes com cegueira,alunos de uma escola pública especial em Feira de Santana, Bahia

Dalva Nazaré Ornelas França*

Eliane Elisa de Souza e Azevedo**

ResumoSeis adolescentes com cegueira congênita, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, em Feira de Santana,concordaram em participar da presente pesquisa respondendo questionários e outros instrumentos de entrevista sobreimagem corporal e sexualidade. Os resultados demonstram que os adolescentes com cegueira têm fiel percepção de suaimagem corporal, que é construída a partir do que lhe dizem e pelo toque do próprio corpo. Em todos os adolescentes foiobservado elevado nível de auto-estima e autopercepção como sexualmente atraentes. Existe consciência das transforma-ções corporais da adolescência, embora com desinformação e receio sobre as mesmas. Todavia prevalece o desejo deconstruir uma relação afetivo-sexual, desejo esse semelhante ao dos adolescentes videntes. A ausência no país de ummodelo pedagógico especial para educação sexual de portadores de deficiência visual agrava os desafios desta fase da vidae predispõe a preconceitos por parte da sociedade.

Palavras-chave: Imagem corporal. Sexualidade. Cegueira. Adolescente.

* Professora de Educação Sexual. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS. ** Professora de Bioética. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS.

Núcleo Integrado de Educação SexualDepartamento de Ciências BiológicasUniversidade Estadual de Feira de SantanaKm 03 BR 116 - Feira de Santana Bahia BrasilE-mail: [email protected]

INTRODUÇÃO

Na adolescência, intensifica-se a consciên-cia da identidade em função das modificaçõesque, de forma radical, ocorrem no corpo e le-vam os jovens a compararem-se com padrõesestabelecidos em seu meio social (SCHOEN-FELD, 1968). Os adolescentes, de maneira ge-ral, buscam identificar em outras pessoas, atra-vés da visão, um modelo para ajudá-los na re-construção da própria imagem corporal. A opor-tunidade de ver outros corpos facilita a idéia decomo ficará o seu, após as modificações da pu-berdade.

Nas pessoas com cegueira, existe a perdado sentido de fundamental importância para a

construção da imagem corporal, a qual favorecea construção da identidade. Neste processo,quais os recursos que busca o adolescente comcegueira para auxiliar a construção da auto-ima-gem corporal?

Tiba (1986), ao se referir à construção doesquema corporal, reconhece que o adolescenteenfrenta duas situações básicas: aquela do corpodiante de si mesmo e a do corpo em relação aodos outros. O esquema corporal é a representa-ção mental do corpo. A cada modificação docorpo, admite-se que também se modifica o es-quema corporal. Na adolescência, porém, assucessivas alterações corporais, tanto na formaquanto em conteúdo, ocorridas em um tempo

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relativamente curto, nem sempre são acompa-nhadas de modificação do esquema corporal.Assim, as sensações sinestésicas do adolescentee sua aparência física não coincidem, ou mesmoconflitam, com o seu esquema corporal.

Os poucos estudos que enfocam a imagemcorporal e a sexualidade do adolescente com ce-gueira respaldam, teoricamente, o interesse àreflexão sobre o tema, reconhecendo que o ado-lescente com cegueira passa por conflitos e de-sejos semelhantes aos do adolescente vidente,todavia inexistem, no Brasil, pesquisas sobre otema.

Considerando este conjunto de observa-ções, o presente trabalho se propõe a estudarcomo o adolescente com cegueira constrói suaimagem corporal e como lida com as manifesta-ções da sexualidade nesta fase da vida.

MATERIAL E MÉTODO

Por tratar-se de amostragem intencional, àqual somente interessavam adolescentes comcegueira congênita e que estivessem freqüentandoa escola, buscou-se a Fundação Jonathas Tellesde Carvalho, por ser a instituição que ofereceum serviço de apoio pedagógico a todos os alu-nos com cegueira que estão na rede pública deensino da cidade de Feira de Santana, Bahia.Nesta instituição, foram selecionados todos osadolescentes com cegueira congênita, com ida-des entre 10 e 19 anos.

Para avaliação da auto-imagem, foram uti-lizados os seguintes instrumentos: 1) Questio-nário com questões voltadas para auto-imagem,modificações corporais e manifestação da sexua-lidade. 2) Complementação de frases, com vis-tas a analisar o sentimento em relação ao corpoe a sua relação como sexualidade. 3) Escala deautovaloração, com o objetivo de mensurar ograu de auto-estima. Os Quadros com os resul-tados demonstram o conteúdo dos instrumen-tos.

Anteriormente à coleta de dados, o proje-to fora aprovado pelo Comitê de Ética em Pes-quisa do Hospital São Rafael, Salvador, Bahia.

Antes da aplicação dos instrumentos da pesqui-sa, o Termo de Consentimento Livre e Esclare-cido (Resolução 196/96, CONEP/CNS/MS),foi apresentado (lido), individualmente, a cadaadolescente, tornando-os conhecedores de to-dos os procedimentos da pesquisa, deixando-oslivres para aceitar, recusar ou desistir em qual-quer momento dos trabalhos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram identificados e estudados seis ado-lescentes com cegueira congênita, sendo três dogênero masculino e três do gênero feminino, comidades de 12, 14, 19 e 10, 15, 18 anos, respec-tivamente.

O Quadro 1 demonstra que, ao informa-rem sobre sua auto-imagem, por consulta se-guida de oferta de alternativas, os adolescentescom cegueira demonstraram possuir fiel percep-ção sobre sua aparência pessoal. As respostas fo-ram compatíveis com o observado pela Pesqui-sadora, exceto em dois dos adolescentes, que nãose revelaram seguros em suas respostas. Um de-les achava-se confuso entre o que ele se imagi-nava e o que sua genitora dizia em relação à suaetnia. Curiosamente, a sua opinião era a corre-ta. Um outro auto-identificou-se como sendonegro, quando sua aparência era de mulato.

Elevada auto-estima foi observada em to-dos os entrevistados, uma vez que, sem exceção,todos afirmaram considerarem-se bonitos e sim-páticos. Uma das adolescentes afirmou que, alémde considerar-se bonita, reconhecia-se como“maravilhosa”. Esta mesma adolescente portou-se de forma inquieta durante todo o tempo daentrevista, demonstrando-se preocupada com oscabelos e com sua aparência geral. Interpretou-se esta atitude como uma característica de vai-dade, presente nos adolescentes em geral.

Os resultados do Quadro 2 demonstramque os adolescentes com cegueira dispensamatenção e preocupação especial ao próprio cor-po e às modificações que estão acontecendo ouque já aconteceram. Esta constatação reafirmaque os adolescentes com cegueira enfrentam os

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centes pesquisados sugeriu mudar os olhos, oque implica em aceitação de sua realidade.

Estas observações corroboram a afirmaçãode Vigotsky (1995), de que “a cegueira não serevela uma desgraça enquanto defeito biológi-co, mas assim se transforma, devido ao meio socialonde se estabelece”. Em especial para as pessoascom cegueira congênita, não existem parâme-tros objetivos de avaliação da intensidade dadeficiência. Não fora o contato social com osvidentes e/ou os preconceitos deles advindos, asituação limitante seria menos trágica. A aceita-ção das variabilidades da espécie humana, comovariedades inerentes à própria natureza biológi-ca da espécie, sem o discriminante rótulo de“anormalidades” é o fundamental ético para oconvívio social sem traumas e moralmente jus-to.

O toque e a voz são a “visão” dos indiví-duos com cegueira. Foram explorados estes doisaspectos essenciais à pessoa com cegueira, comose vê no Quadro 4. Os resultados indicam queos adolescentes gostam de tocar várias partes docorpo e gostam de ser tocados em partes consi-deradas mais erotizantes, como pescoço, ge-nitais, seios, nádegas, costas e rosto. Na adoles-cência, estas partes surgem como pontos demaior prazer devido à maturação biológica e àprodução de hormônios sexuais estimulando alibido. Observa-se, nos resultados, que estamudança fisiológica é independente do estadode cegueira. Não é raro, todavia, perceberem-seabordagens, por videntes, aos portadores de ce-gueira, sob o pressuposto de serem estes “pes-soas assexuadas”, sem vida ou desejos sexuais.

De acordo com Davis (1991), os indiví-duos com cegueira são capazes de formar a ima-gem de uma pessoa ao tocar o rosto da mesma.Poucos videntes têm desenvolvido esta capaci-dade. Assim, o tato é um dos sentidos mais im-portantes para os deficientes visuais. A quanti-dade de informações que podem ser transmiti-das por meio do toque, inclusive a leitura, é ex-traordinariamente imensa e complexa, tornan-do-se difícil de ser adequadamente avaliada pe-los videntes.

A voz, para os que são cegos, revela atémesmo a personalidade. No Quadro 4, o elen-

Quadro 1 - Distribuição dos tipos de auto-imagem emseis adolescentes com cegueira, alunos daFundação Jonathas Telles de Carvalho, Feirade Santana, Bahia

* Um desses adolescentes referiu-se como “mulato”, acres-centando que sua mãe o identifica como “moreno claro”.

** Identificou-se como “negro”, embora seja “mulato”.

*** O termo usado pela adolescente foi: “Maravilhosa”.

mesmos conflitos que os demais adolescentes,independentemente da deficiência visual. Ob-serva-se uma certa preocupação com a imagemque os outros constroem sobre eles (3/3), o queé comum à fase da adolescência nos videntes.Novamente, confirma-se o elevado nível de auto-estima, quando 5/6 afirmaram que não gosta-riam de ter aparência diferente da que têm, etodos eles (6/6) sentem-se sexualmente atraen-tes.

Os adolescentes estudados foram, de al-guma forma, informados sobre as mudançascorporais que iriam acontecer, porém de modonão sistemático (QUADRO 3). Todos têm cons-ciência das partes do seu corpo e têm preferên-cias por partes específicas, incluindo os órgãosgenitais e os seios, partes estas que mais se evi-denciam durante a puberdade. A maioria delesgostaria de mudar pontos específicos de sua apa-rência física, demonstrando, assim, a vaidadecaracterística desta fase. Nenhum dos adoles-

Categoria de Grupos intracategoriasauto-imagem número observado

Etnia Branco Mulato Negro

1 4* 1**

Estatura Alto Médio Baixo

2 2 2

Peso Gordo Médio Magro

3 2 1

Aparência etária Jovem Meia-idade Idoso

5 1 0

Timbre de voz Grossa Média Fina

0 3 3

Aparência estética Feia Bonita Outra***

0 5 1

Carisma Simpático Antipático Outro

6 0 0

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co de palavras usadas para traduzir o que a vozrevela, leva-nos a admitir que muito do que nãopode ser visto com os olhos pode ser percebidoatravés da voz. Aqui também, o aprimoramento

da capacidade de extrair informações através davoz excede em muito o que os videntes normal-mente contemplam através da voz.

Quadro 2 - Distribuição do modo de percepção do próprio corpo por seis adolescentes com cegueira, alunos daFundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia

Quadro 3 - Distribuição das respostas dadas às perguntas sobre sexualidade por seis adolescentes com cegueira,alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia*

*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.

Questões pré-formuladas sobre percepção do corpo Sim Não Sem Totalcom resposta Sim/Não resposta

Você pensa em seu corpo? 5 1 -- 6

Você pensa sobre as partes do seu corpo? 4 2 -- 6

Alguma parte de seu corpo o/a preocupa? 3 3 -- 6

Você se preocupa com as mudanças que ocorreram/ocorrem 5 1 -- 6 em seu corpo?

Você gostaria que alguém tivesse lhe falado sobre as 2 1 3 6mudanças em seu corpo?

Você gostaria de ter a aparência diferente da que tem? 1 5 -- 6

Você se importa com o que as pessoas pensam sobre 3 3 -- 6sua aparência?

Você acha que as mudanças em seu corpo podem 1 5 -- 6interferir no seu relacionamento com as pessoas queridas?

Você acha que pode perder alguém querido devido a estas 0 6 -- 6modificações?

Você se sente atraente sexualmente? 6 0 -- 6

Você acha que mudou como pessoa depois que seu corpo se 4 2 -- 6transformou?

Você acha que mudou como pessoa depois da primeira menstruação 2 3 -- 6ou ejaculação?

Quem lhe Qual a parte De que parte Qual a parte Se você tivesse

falou sobre N do corpo N do corpo N que você acha N que mudar algo Nas mudanças em que mais mais gosta? mais bonita? no seu corpoem seu corpo? pensa? o que mudaria?

Professor 1 Partes íntimas 1 Mãos 1 Cabeça 1 Cabelo 1

Colegas 2 Cabelo 1 Pés 1 Cabelo 2 Mais alto 1

Irmão 1 Todo o corpo 2 Pênis 1 Pernas 2 Menos gordo 1

Mãe 3 Seios 1 Cabelo 2 Olhos 1 Nada 1

Ninguém 1 Pernas 1 Mãos 1 Seios 2

Bigode 1 Barriga 1

Rosto 1

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O Quadro 5 apresenta os resultados dostestes por complementação espontânea de fra-ses. Admite-se que essas complementações re-velam o sentimento que os adolescentes nutremem relação ao seu corpo e como se relacionamcom a própria sexualidade. Os resultados per-mitem concluir que existe, entre os adolescen-tes cegos entrevistados, uma forma positiva derelacionamento com o próprio corpo, expressa,invariavelmente, de forma positiva, com pala-vras tais como bonito, muito bonito, lindo e fontede prazer. Em relação às modificações da puber-dade, observa-se uma variação de sentimentosque vai desde normalidade a insatisfação. Estestipos de comportamento são também caracte-rísticos da fase da adolescência nos videntes.

Em relação ao corpo do sexo oposto, mes-mo para aqueles que ainda não conhecem, exis-te uma busca por formas de expressar o queimaginam, a exemplo da adolescente nº 1, de

19 anos, que está namorando pela primeira vez,que disse: “Desconhecido, sei que tenho muitoa descobrir. É um mar que pretendo navegar”.

Observou-se a falta de informação acercados processos naturais da puberdade, como aejaculação: dos seis adolescentes, somente trêsresponderam alguma coisa, mesmo assim, apósuma rápida explicação; os demais preferiram seomitir. Com relação à menstruação, dois dosadolescentes não deram nenhuma resposta.

Ao falarem sobre as manifestações da sexua-lidade, como o sexo, o ser tocado, o namoro e ocasamento, os adolescentes expressaram curio-sidade, boa aceitação e, inclusive, o desejo deconstruir uma família, desejos esses reconheci-damente semelhantes aos da maioria dos jovensvidentes. A grande diferença consiste, todavia,na forma como a sociedade encara a sexualidadeda pessoa com cegueira, e não na maneira comoo deficiente visual vivencia sua sexualidade.

Quadro 4 - Parte do corpo que os seis adolescentes com cegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira deSantana, Bahia, informaram gostar de tocar e de ser tocado, e o que eles, por resposta espontânea, percebem atravésda voz*

*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.

Que parte do corpo Em que parte do corpovocê gosta de tocar?

Nvocê gosta de ser tocado?

N Que coisa a voz pode revelar? N

Mãos 2 Costas 1 Bonito 1

Rosto 1 Pescoço 1 Feio 1

Cabelo 3 Genitais 1 Tristeza 1

Pernas 3 Seios 1 Alegria 1

Braços 1 Nádega 1 Homem 1

Nenhuma 1 Mulher 1

Rosto 1 Simpático 2

Todo o corpo 1 Nada 1

Pernas 1 Amor 1

Jeito de ser 1

Falsidade 1

Verdadeira 1

Zangada 1

Satisfação 1

Grosseria 1

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Atenção especial merece o comportamento daadolescente nº 3, que, no conjunto das frases,deixou de completar seis itens e, nos demais,apresentou negatividade, principalmente em

relação ao corpo masculino, como também aofeminino e à menstruação, isto é, àquilo que aconfirma mulher. Porém, em sua auto-imagem,ela se qualifica como “maravilhosa” (QUADRO

Quadro 5 - Resultado da complementação de frases feita pelos seis adolescentes com cegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia

*A adolescente complementou: “Sei que tenho muito a descobrir. É um mar que pretendo navegar”.

Adolescentes

Frases para No1 No2 No3 No4 No5 No6

complementação

Meu corpo... Sentir e dar Bonito Bonito Lindo Muito Bonitoprazer bonito

Gostaria que... Família feliz Mais magro Nada Amor Mais Enxergassemudasse bonito

Me tocar... Desejo No rosto --- Muito Todo ---Gosto de... Beijar Jogo Passear Tudo Dormir MúsicaMinha aparência... Boa Bonita, Maravilhosa Simpático Bonita Boa

simpáticaA menstruação... Normal Não ligo É ruim --- Não gosto ---A ejaculação... Uma --- --- Às vezes --- Bom

conseqüênciaGosto de falar... Coisas boas Muito --- Muito Coisas De futebol

bonitasOs seios crescem... Ótimo Ruim --- Coisa que Ligeiro ---

menosgosto

Os pêlos aparecem... Normal Bom --- Admiro Muitos SimO corpo masculino... Desconhecido* Bom Não gosto Simpático Muito Bom

muito bonitoO corpo feminino... Sem mistério Maravilhoso Feio, horrível, Bonito Muito Bonito

não gosto bonitoO sexo... Amor Bom, eu --- Amor Não sei Bom

gosto, apesarde não terpraticado

Namorar... Bom, ótimo Gosto muito, É bom. Muito Nunca Muito bomapesar de Nuncaalgumas experimenteidificuldades

O casamento... União, Bonito e bom Bom, ótimo Casar e ter Nunca É bomcom sexo, filhos tambémcom tudo

Ser tocado... Desperta No rosto Mais ou Gosto Por toda Bomalguma coisa. menos minhaÉ bom, famíliaa gente senteuma coisasboas

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3). Esta mesma adolescente, durante o contatopesquisador/pesquisado, comportou-se de for-ma impaciente e inquieta, afirmando que nãoera cega, apesar de se locomover de forma igualà dos seus companheiros e de constar na avalia-ção médica, registrada na ficha escolar, que amesma é portadora de cegueira congênita. Estaobservação corrobora a afirmativa de Gil (2000)de que, na fase da adolescência dos indivíduoscom cegueira, alguns manifestam, de forma acen-tuada, sentimentos de revolta contra a deficiên-cia, por não aceitarem as limitações e a discri-minação social. Há grande influência da socie-dade no padrão de beleza que o adolescentebusca para si, o que pode levar à angústia e àinsegurança quando o assunto é o corpo(SUPLICY; EGYPTO, 1995).

A fim de melhor explorar o aspecto da au-tovaloração nos adolescentes com cegueira, cons-truiu-se um instrumento em arte plástica, queconstava de um corte vertical em uma escada,com seis degraus, passível de ser percebida comas mãos, por tato, em alto-relevo. Os adolescen-tes eram solicitados a indicar, com os dedos,subindo os degraus, em qual altura eles se reco-nheciam em relação a cada uma das dez pala-vras ditas pela Pesquisadora. Na Figura 1, apre-senta-se o resultado da aplicação desta escala deautovaloração. Nota-se a confirmação da eleva-da auto-estima entre esses adolescentes com ce-gueira: eles se percebem como pessoas fortes,

inteligentes, alegres, bonitas, amadas e entur-madas. Este resultado é indicativo de bom rela-cionamento com a própria sexualidade, pois aauto-estima é de fundamental importância parase estabelecer uma vida afetivo-sexual prazero-sa. Evidencia-se, assim, que a falta da visão nãointerfere na percepção positiva sobre si mesmo.A auto-estima permite ao indivíduo cresceremocionalmente, ter segurança, ser alegre, li-vre, otimista e com capacidade de dar e receberafeto. Concluiu-se que essas qualidades inde-pendem de deficiência visual.

Finalmente, o estudo da literatura perti-nente e os dados coletados revelaram a inexis-tência de informações sistemáticas sobre educa-ção sexual para adolescentes com cegueira, o que,além de ser uma violação aos direitos dos não-videntes, torna mais desafiadora a experiênciade vida nesta fase. No sentido de contribuir parao tema, uma das Autoras (FRANÇA, 2002)desenvolveu e testou entre educadores especiaisum modelo pedagógico de educação sexual paraadolescentes com cegueira, reconhecendo ser esteo primeiro modelo proposto no Brasil.

CONCLUSÕES

O estudo realizado direciona para as se-guintes conclusões:

a) Nos adolescentes com cegueira, a ado-

Figura 1 - Resultado da aplicação do teste de autovaloração em seis adolescentes comcegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana,Bahia

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lescência se caracteriza da mesma forma que naspessoas dotadas de visão, isto é, com deslum-bramentos, inseguranças, desejos e sonhos.

b) Existe notória auto-estima nos adoles-centes com cegueira.

c) Não obstante a visão ser o principalmeio para construção da imagem corporal, osadolescentes com cegueira conseguem a cons-trução dessa imagem através do tato e da audi-ção, principalmente.

d) O toque do próprio corpo e a formacomo outras pessoas os descrêem são as fontes

GIL, M. (Org.). Caderno da TV escola: Deficiência visual.Brasília, DF: MEC, Secretaria de Educação à Distância,2000. p.55-62.

SCHOENFELD, W. A. El cuerpo y la imagen corporalen los adolescentes. In.: CAPLAN, G. (Comp.). El

desarrollo del adolescente. Buenos Aires: Paidós, 1968.p.27-41.

SUPLICY, M. ; EGYPTO, A. C. Sexo se aprende na

escola. São Paulo: Olho d’Água, 1995.

Self body image and sexuality in young blind students of a special public schoolin Feira de Santana, Bahia

AbstractSix congenital blind adolescents, who attend the Jonathas Telles de Carvalho Foundation, in Feira deSantana, Bahia, Brazil, agreed on participating in this research project, by answering questions on theirself corporal image. The results showed that blind adolescents have true perception of their body image thatis built up by listening to others and by touching their own bodies. In every blind adolescent interviewed,high self-esteem and self-perception of being sexually attractive were observed. In spite of being poorlyinformed about body changes in adolescence, the blind students are aware of those alterations. Similar toany young boy or girl who can see, the blind students hope to have a sexual and affectionate relationshipwith a partner. The lack of special pedagogical models in Brazil to develop their sexual education stressestheir adolescence challenges and predispose them to more social prejudice.

Keywords: Body image. Sexuality. Blindness. Adolescence.

fundamentais de informação para a construçãoda imagem corporal nos adolescentes com ce-gueira.

e) Não existem modelos pedagógicos es-peciais orientando adolescentes com cegueirasobre as modificações corporais da puberdade ea sexualidade.

f ) É urgente a implantação de programaspedagógicos para orientação sexual dos porta-dores de cegueira, assim como para desfazer pre-conceitos em relação à manifestação da sexuali-dade nessas pessoas.

REFERÊNCIAS

DAVIS, P. K. O poder do toque. São Paulo: Best Seller,1991.

FRANÇA, D. N. O. Imagem corporal e sexualidade em

adolescentes com cegueira em escolas públicas de Feira

de Santana. 2002. 98f. Dissertação (Mestrado emEducação Especial) - Departamento de Educación,Centro de Referencia Latinoamericano para la EducaciónEspecial, La Habana, 2002. Dissertação defendida naUniversidade Estadual de Feira de Santana.

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Agradecimentos

Aos entrevistados, por aceitarem colaborar conosco nesta pesquisa, e à Fundação Jonathas Tellesde Carvalho, por disponibilizar as informações necessárias para que fosse possível conhecer umavivência diferente.

TIBA, I. Puberdade e adolescência: desenvolvimentobiopsicossocial: esquema corporal. 3. ed. São Paulo: Ágora,1986.

VIGOTSKY, L. S. Obras completas. La Habana: Puebloy Educación, 1995. v.5, p.41-48.

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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM) Brasília – 2006

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM

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Leitura musical na ponta dos dedos: o ensino da musicografia Braille

Fabiana Bonilha Mestre e Doutoranda em música pelo Instituto de Artes da UNICAMP

e-mail: [email protected]

Claudiney Carrasco Docente do Departamento de Música – Instituto de Artes da UNICAMP

e-mail: [email protected]

Sumário: O presente estudo foi motivado pela experiência pessoal de sua autora, enquanto musicista com deficiência visual. Ele aborda aspectos referentes ao ensino de Musicografia Braille. A partir de um enfoque qualitativo, buscou-se investigar a percepção de estudantes de Música com deficiência visual e de seus respectivos professores acerca das condições atuais de aplicação da Musicografia Braille ao campo da educação musical.

Palavras-Chave: musicografia braille – deficiência visual – inclusão educacional

Introdução Existe uma estreita relação entre a Música e as pessoas com deficiência visual e,

notoriamente, as atividades musicais têm um papel muito importante na vida de muitas dessas pessoas.

Há, inclusive, um pensamento bastante difundido segundo o qual as pessoas com deficiência visual tendem a ser bem-sucedidas no campo da Música, caso se dediquem ao estudo dessa manifestação artística. Tal raciocínio se apóia na tendência desses indivíduos a possuírem habilidades ligadas sobretudo à percepção e memória musical.

Deve-se notar que, as pessoas desprovidas de visão recorrem a outros sentidos, sobretudo à audição, para que possam perceber o ambiente que as cerca de forma eficaz e adequada. E isso pode justificar em parte o grande interesse delas pela música.

Através de um estudo realizado por Belin et al (2004), buscou-se investigar se a superioridade das habilidades auditivas das pessoas cegas ultrapassava o domínio da orientação espacial. Para tanto, os sujeitos foram submetidos a uma tarefa que envolvia habilidades musicais específicas.

A partir desse estudo, concluiu-se que as pessoas cegas desde a primeira infância tiveram um desempenho muito superior à performance dos indivíduos pertencentes aos outros dois grupos na atividade proposta.

Encontrou-se, assim, uma correlação negativa entre a idade em que os indivíduos ficam cegos e o nível de desempenho nessa tarefa. Isso pode ser explicado considerando-se que, na infância, há uma maior plasticidade do cérebro, em relação às idades mais avançadas.

Assim, uma vez que, de maneira geral, a capacidade auditiva seja mais amplamente desenvolvida por essas pessoas, a música, por conseguinte, acaba se tornando uma rica fonte de expressão para elas.

Nesse sentido, Figueira (2002) aponta que, ao longo da história, podem ser encontrados inúmeros exemplos de pessoas com deficiência visual que se dedicaram à Música e que obtiveram reconhecimento nessa área.

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Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM

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Considerando a arte como um instrumento de inclusão social, o autor cita diversos casos em que os deficientes visuais se fizeram presentes em manifestações artísticas distintas, dentre as quais a música aparece como predominante.

Oliveira (1995), também discorre sobre o papel que a música desempenha na vida das pessoas deficientes visuais. Em seu trabalho, ele utiliza a memória de quatro músicos cegos e, dessa forma, reconstrói suas histórias de vida, à luz do pensamento de Deleuze. Em sua análise dos depoimentos colhidos, o autor considera que a música aparece como um eixo condutor dos relatos de vida dos sujeitos, e assim, afirma o papel dessa arte na construção da identidade desses indivíduos.

Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual tenham acesso a uma formação musical qualificada, que lhes permita desenvolver suas potencialidades. Para tanto, conforme defende Smaligo (1998) torna-se imprescindível que seja oferecida a essa população a possibilidade de acesso ao sistema de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.

Esse código de notação musical, que é universalmente adotado por pessoas cegas, denomina-se Musicografia Braille. Seus primeiros fundamentos foram criados, em 1828, pelo próprio Louis Braille (1809 - 1852), inventor do sistema de escrita destinado a deficientes visuais, segundo biografia editada pela Unesco (1975). Antes disto, os estudantes cegos aprendiam a ler música através de um sistema em que a simbologia da notação em tinta era impressa em alto relevo. Esse sistema, evidentemente, impedia que os alunos tivessem uma leitura fluente, assim como dificultava o processo em que eles próprios pudessem escrever música. Tem-se registro de que, em 1829, foi realizada a primeira edição da obra intitulada "Método de palavras escritas, Músicas e canções por meio de sinais, para uso de cegos e adaptados a eles".

A escrita musical em Braille é composta dos mesmos 63 caracteres usados no sistema Braille em geral. Essa escrita é feita somente em sentido horizontal, diferentemente do código em tinta, em que se pode escrever também verticalmente. Não se usam claves nem pentagramas, e a altura das notas se representa por sinais de oitavas. Os acordes são representados por sinais de intervalos correspondentes. Nota-se que é imprescindível que o leitor decore a partitura para que a execute, e isso requer que ele tenha um bom conhecimento musical para que realize uma leitura eficiente.

Deve-se considerar que, desde a criação da Musicografia Braille, foram realizadas diversas reformulações e melhorias ao código musical, até que se chegasse aos padrões concebidos na atualidade. Apesar do empenho constante na consolidação desse método de escrita, deve-se notar que o ensino dessa notação sempre foi muito pouco difundido, sobretudo devido à falta de capacitação de professores, e devido à grande escassez de partituras e materiais didáticos transcritos para esse código.

Nesse sentido, no presente trabalho, tencionou-se problematizar o ensino de música para pessoas com deficiência visual, e analisar as condições que garantam o acesso desses indivíduos a uma formação qualificada. Partiu-se do pressuposto de que o aprendizado da Musicografia Braille é um elemento imprescindível na formação musical de pessoas cegas, do mesmo modo como o aprendizado do Sistema Braille é essencial para que elas tenham acesso à informação e ao conhecimento.

Deve-se destacar que a experiência pessoal da autora dessa pesquisa, enquanto musicista com deficiência visual, consistiu em uma motivação para que ela se dispusesse a produzir um conhecimento relacionado a essa área. Seu contato com a Musicografia Braille e suas dificuldades enfrentadas durante a formação musical a impulsionaram a discutir aspectos relevantes acerca do ensino de Música para pessoas com deficiência visual.

Objetivos

A presente pesquisa teve por objetivo geral investigar junto a alunos de música com deficiência visual e a seus respectivos professores, aspectos ligados ao aprendizado de leitura

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através da musicografia Braille, tendo em vista a elaboração de um material de caráter reflexivo, que tenha aplicabilidade a esse processo.

A pesquisa também teve os seguintes objetivos específicos: a) Investigar, junto a estudantes de música deficientes visuais e a seus professores,

aspectos referentes às estratégias pedagógicas adotadas no aprendizado musical através do sistema Braille, bem como a disponibilidade de recursos que os auxiliem na utilização desse sistema.

b) Investigar a existência de ferramentas tecnológicas produzidas até a atualidade, que auxiliem no processo de leitura e escrita musical em Braille, e analisar em que medida esses recursos favorecem tal processo.

c) Produzir um material que sirva como subsídio para educadores musicais que atuem junto a alunos deficientes visuais e para os que, de alguma forma, utilizam-se da Musicografia Braille.

Metodologia

Esse estudo foi realizado segundo um enfoque qualitativo, uma vez que nele se buscou compreender a percepção de alunos e professores de música acerca do ensino de Música para pessoas cegas. Os dados foram coletados mediante o uso de entrevistas semi-estruturadas e de questionários contendo perguntas abertas. Após a aplicação desses instrumentos, os dados coletados foram subdivididos nas seguintes categorias e subcategorias de análise.

Após a formulação dessas categorias, os depoimentos foram analisados segundo a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, proposta por Lefevre (2003). Essa ferramenta de análise possibilita que se construa um único discurso representativo da amostra estudada, através do levantamento de idéias centrais e do encadeamento das falas dos sujeitos. Assim, é possível que se apreenda o pensamento comum aos sujeitos abordados, e isso facilita a elaboração de reflexões e conclusões relevantes para a pesquisa.

Paralelamente à coleta de dados junto a alunos e professores, foi realizada uma investigação acerca das ferramentas tecnológicas existentes para a transcrição de partituras em Braille. Dessa busca, resultou a criação de um acervo de obras musicais em Braille. Essa fase do trabalho contou com o apoio do Laboratório de Acessibilidade da Unicamp, e com a participação de bolsistas do SAE (serviço de apoio ao estudante) da mesma universidade.

Resultados

A partir dos depoimentos coletados, foi possível estabelecer um panorama das condições de ensino de Música para pessoas com deficiência visual, sobretudo no que se refere ao contato com a leitura e escrita musical em Braille.

Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille. Há professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, criam formas “improvisadas” para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos restritos a essas adaptações. Há também aqueles educadores musicais que sabem da existência desse método de escrita, mas desconhecem os caminhos de acesso a ele, os quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de cursos através dos quais ele seja divulgado.

De fato, o acesso à notação musical em Braille, dentro das condições atualmente oferecidas no Brasil, exige um grande empenho tanto por parte dos professores de música, quanto por parte de seus alunos com deficiência visual. Os professores necessitam de um alto grau de motivação para buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita em Braille, e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos de um modo quase autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim.

Dessa falta de informação e dessa escassez de meios que viabilizam o acesso à Musicografia Braille, decorrem a formação de diversas crenças que as pessoas com deficiência

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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM) Brasília – 2006

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM

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visual e seus respectivos professores possuem acerca de tal notação. Em geral, esse código é concebido como algo bastante complexo, e quase inatingível, cujo aprendizado demanda um longo tempo e esforço. Entretanto, os professores e alunos abordados reconhecem a importância da Musicografia Braille como uma ferramenta que possibilita a autonomia das pessoas com deficiência visual, em seu processo de formação.

De fato, a partir do aprendizado desse código, o aluno adquire independência para escrever e ler partituras, por meio de uma linguagem convencionada especificamente para o uso de pessoas desprovidas da visão. Isto possibilitará que essa população freqüente espaços de formação musical, comuns a todas as pessoas, o que remete à idéia de se conceber uma educação musical inclusiva. Em outras palavras, o acesso à Musicografia Braille se torna um elemento imprescindível para a inclusão dos alunos com deficiência visual em escolas de músicas regulares.

Deve-se notar, entretanto, que tais escolas não oferecem apoio e condições para que os alunos com deficiência visual estabeleçam contato com a leitura e escrita musical em Braille. Disto decorre a necessidade de que se viabilize o atendimento educacional especializado a esses alunos, através do qual eles possam ter acesso a esse ensino. Essa modalidade de atendimento, tal como é concebido por Mantoan (2002), consiste em uma forma de apoio ao processo pedagógico, capacitando o aluno com deficiência para que ele seja inserido em ambientes educacionais inclusivos.

Conclusão

A partir desse estudo, foram suscitadas reflexões acerca do ensino de Música para pessoas com deficiência visual. Mas pode-se considerar que as idéias nele apresentadas também se aplicam de alguma forma ao ensino de Música para qualquer pessoa, já que foram levantados aspectos sobre o aprendizado da leitura e escrita musical, sobre o papel do professor na formação do aluno e sobre a abordagem as diferenças individuais no campo da música.

O assunto tratado nessa pesquisa foi muito pouco contemplado em outros trabalhos acadêmicos. Por isso, ainda há muitas questões que podem ser problematizadas em novas pesquisas dentro dessa área.

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Smaligo, M.A. (1998) Resources for helping blind music students. Music Educators Journal, v.85, n.2, p 23-45.

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Modos de intervir com jovens deficientes visuais:dois estudos de caso

Modos de intervir com jovens deficientes visuais

Marcia Moraes

Resumo

Este trabalho investiga as relações entre corpo e cognição entre jovens deficientes visuais. Dois estudos de caso são apresentados, fundamentados emcontribuições da pesquisa ação-crítica e da teoria ator-rede. Os dois sujeitos eram cegos congênitos, ambos os alunos inscritos na Oficina de Teatro doInstituto Benjamin Constant (IBC), no Rio de Janeiro. Estes alunos eram também membros da Oficina de Expressão Corporal do IBC, que tinha comofinalidade promover experimentações corporais lúdicas que facilitassem a construção das personagens. As ações propostas baseavam-se nos impassese nas dificuldades vivenciadas pelos sujeitos durante os ensaios da peça. Os resultados indicam que a noção de corpo implica um certo modo de relacionarhumanos e não-humanos. Constatou-se ainda que intervir sobre o corpo implica produzir novos universos cognitivos. Com tais resultados, problematizam-se as relações entre psicologia e educação.Palavras-chave: cegueira; estudo de caso; cognição.

Ways of research with visual handicapped youths: two case studies

Abstract

This study investigates the relations between body and cognition among visual handicapped youths. Two case studies are presented based oncontributions from critical action research and from actor network theory. The subjects were born blind, both regular students enrolled at BenjaminConstant Institute’s Theatre Troupe, in Rio de Janeiro. These students were also members of Benjamin Constant Institute’s Body Expression Group thataimed to promote ludic body experimentations to easy the character building. The activities proposed were based on the difficulties experimented bythe subjects when they were rehearsing the play. The results underlines that the notion of body implies connection between humans and non-humansand that to change body gestures is the same of creating new cognitives experiences. These results show the relevance of the relation betweenpsychology and education.Keywords: blind; case study; cognition.

Formas de intervenir con jóvenes deficientes visuales: dos estudios de caso

Resumen

El trabajo investiga las relaciones entre cuerpo y cognición entre jóvenes deficientes visuales. Son presentados dos estudios de caso fundamentados encontribuciones de la investigación acción crítica y de la teoría actor-red. Los dos sujetos eran ciegos congénitos y alumnos inscriptos en el Taller de Teatrodel Instituto Benjamín Constant (IBC), en Rio de Janeiro. Estos alumnos también eran miembros del Taller de Expresión Corporal del IBC, que tenía comofinalidad promover experimentaciones corporales lúdicas que facilitasen la construcción de los personajes. Las acciones propuestas se basaban en lasdificultades vividas por los sujetos durante los ensayos de la obra. Los resultados presentados indican que la noción de cuerpo implica una cierta formade relacionar humanos y no humanos. Todavía, se constató que intervenir sobre el cuerpo implica en producir nuevos universos cognitivos. Con esosresultados se discuten las relaciones entre psicología y educación.Palabras clave: ceguera; estudio de caso; cognición.

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Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes312

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de apresentar algunsresultados obtidos através do estudo de caso desen-volvido a alguns anos no Instituto Benjamin Constant(IBC), um centro de referência sobre deficiência vi-sual, com mais de 150 anos de existência, situado nobairro da Urca, no Rio de Janeiro. Além disso, estetrabalho apresenta algumas reflexões acerca das rela-ções entre Psicologia e Educação, considerando emparticular o modo como o saber psicológico produzconhecimento em suas interfaces com o campo daEducação.

A pesquisa desenvolvida no Instituto BenjaminConstant foi elaborada numa parceria que envolveupesquisadores ligados à psicologia1, a professora deteatro do IBC2 e os alunos desta instituição regular-mente inscritos nas oficinas de teatro.

De início o trabalho consistia em observar asatividades de teatro, as quais incluem jogos e experi-mentações lúdicas com a finalidade de promover aencenação de uma peça ao final de cada ano letivo noIBC. A encenação da peça no final do ano é um grandemomento para toda a instituição, uma grande festa daqual participam alunos e professores. Nas primeirasobservações foi delimitado o interesse em seguir aconstrução das personagens, isto é, havia interessemais pelo processo do que pelo produto final, aindaque não se desconhecesse a importância do produto– a peça encenada – para todos os envolvidos naque-le trabalho. Neste processo de observação das ofici-nas de teatro notou-se que havia naquela atividade umponto relevante e que seria central nas reflexões pos-teriores.

O grupo de teatro era formado por crianças e jo-vens com diferentes resíduos visuais e a platéia para aqual a peça era encenada era também formada porpessoas com e sem deficiência visual. Estaheterogeneidade da condição visual tanto dos mem-bros do grupo quanto da platéia produzia uma sériede questões: Como levar os alunos cegos a construí-rem personagens que seriam representados para tal

platéia? De um lado, era preciso criar dispositivos quelevassem os cegos a elaborarem seus personagens.De outro lado, era necessário fazer com que a peçapudesse ser inteligível também para a platéia. Assim,refletiu-se sobre os modos de intervenção com estegrupo de teatro que pudessem agir no espaço entre

o ver e o não ver, isto é, modos de intervir que pu-dessem levar em conta os referenciais que o cegoutiliza para construir o seu universo cognitivo e, aomesmo tempo, produzissem efeitos inteligíveis e ca-pazes de afetar tanto cegos quanto videntes. De saí-da, seguindo as indicações de Masini (1994) buscou-se modos de intervir imanentes – isto é, cujosreferenciais partissem dos membros da oficina deteatro. Este desafio implicava, portanto, emproblematizar as relações entre a psicologia e a edu-cação uma vez que o trabalho era muito mais ummapeamento dos referenciais cognitivos dos mem-bros da oficina de teatro do que a “aplicação de umateoria” sobre a aprendizagem ou sobre o desenvolvi-mento cognitivo. É certo que este mapeamento eracondição para que se pudesse planejar e organizarmodos de agir e intervir naquele grupo.

Após um ano de observação delimitou-se uma pro-posta de trabalho conjunto que consistia em atrelar àoficina de teatro uma oficina de expressão corporalcuja finalidade era criar dispositivos e experimenta-ções corporal-sensoriais que levassem os alunos aconstruírem as suas personagens.

O trabalho foi desenvolvido adotando algunsreferenciais da perspectiva metodológica da pesqui-sa-ação crítica que se diferencia em alguns pontos dapesquisa-ação, tal como proposta por Lewin (1965)no final dos anos 60. Seguindo a argumentação deRocha e Aguiar (2003), pode-se afirmar que o traba-lho de Lewin é de fundamental importância no senti-do de reformular os métodos de investigação emPsicologia. Foi Lewin quem ressaltou a importânciada implicação do pesquisador no processo de inves-tigação, desestabilizando a noção de neutralidade eobjetividade que marcaram as pesquisas experimen-tais e, ao mesmo tempo, abriu o campo de investiga-

1 A equipe de pesquisadora era coordenada pela autora. Dela participavam as seguintes alunas da graduação em Psicologia da Universidade FederalFluminense: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.2 Professora Marlíria Flávia Coelho da Cunha.

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ção em psicologia para além dos muros do laborató-rio. O enfoque lewiniano foi decisivo para a inserçãodos grupos e coletivos sociais no campo de investiga-ção da psicologia. No entanto, ainda que a pesquisade campo lewiniana tenha constituído uma nova for-ma de ação no contexto social, “a ordem social é [nesteenfoque] naturalizada e as crises e os conflitos sãointerpretados como desordens, efeitos disfuncionais,cujas resistências à mudança são alvos de interven-ção” (Rocha & Aguiar, 2003, p.65). Diferentementedesta abordagem a pesquisa ação - crítica, propostapor Thiollent (2000), está ligada a projetosemancipatórios e autogestionários que visa a cons-truir coletivamente o conhecimento, promovendo,portanto, uma imbricação inequívoca entre sujeito eobjeto de pesquisa, de tal modo que o conhecimentoproduzido pelas ações implementadas pelo pesquisa-dor é co-construído e partilhado entre pesquisador epesquisado.

Segundo Rocha e Aguiar (2003, p.65)

entendida como uma ação que visa mudanças na re-

alidade concreta com uma participação social efetiva,a pesquisa ação crítica está centrada no agir, através

de uma metodologia exploratória, tendo seusobjetivos definidos no campo de atuação pelo pes-

quisador e pelos participantes (...) Tais experiênciascaminham no sentido da articulação entre teoria/prá-

tica e sujeito/objeto, na medida em que conheci-mento e ação sobre a realidade se fará na investiga-

ção das necessidades e interesses locais (...).

Com relação aos pontos destacados, pode-se di-zer que o trabalho encontra ressonâncias com a pes-quisa ação-crítica. No entanto, reconhece-se que estaaproximação tem alguns limites. Isso porque, instruí-dos com as propostas de Latour (1994) e Despret(1999), buscou-se refletir acerca das relações entrehumanos e não-humanos na construção do conheci-mento, o que não é de modo algum tematizado naperspectiva da pesquisa ação-crítica. Se forem segui-das as pistas destes autores, pode-se afirmar que aconstrução do conhecimento se faz em rede (Latour,1994), isto é, num plano de conexões híbrido no qualse articulam humanos e não-humanos.

Ainda adotando as indicações da teoria ator-rede,proposta por Latour (1994) e de algum modo, segui-da por Despret (1999), considera-se que as inter-venções em psicologia produzem unidades de medi-da imanentes, ou seja, os referenciais de medida da-quilo que é produzido pelas intervenções são pactua-dos e negociados com o grupo. Como já ressaltado,as ações realizadas com os participantes da pesquisaeram circunscritas nos limites entre o ver e o não-ver. O desafio era encontrar modos de agir que fizes-sem sentido e fossem pertinentes aos modos de co-nhecer e viver daquele grupo. Assim, as ações queeram levadas a cabo eram retificadas, negociadas. Al-gumas ações planejadas e executadas não produziamefeitos – pelo menos não aqueles efeitos que eramesperados. Despret (1999) sublinha que a produçãode conhecimento em psicologia implica em risco: nãoo risco de ser desmentido, mas sim o risco de nãoformular a boa pergunta para os sujeitos que partici-pam da pesquisa. E a boa pergunta é aquela que fazderivar o conhecimento, colocando em análise e vari-ação as versões do conhecimento que estavam empauta. Desse modo, considera-se que este trabalhoconduz a um modo de tratar das relações entre cor-po e cognição entre jovens deficientes visuais e, aomesmo tempo, a problematizar as relações entrepsicologia e educação. Porque se de um lado, as açõesexecutadas eram em certa medida, planejadas, deoutro lado, elas eram modificadas pelo grupo. Assimos sujeitos da pesquisa não são passivos, submissosàs ações da pesquisadora. Ao contrário, eles são ativos,são co-participantes, talvez fosse possível dizer, co-autores do trabalho. Adotando esta posturametodológica, considera-se a ética um exercício daimanência, isto é, um modo de considerar o não-verseguindo os referenciais do não-ver, um modo depactuar com o grupo os limites entre o ver e o não-ver. Limites que eram efetivamente pactuados quan-do se procurava elaborar um personagem que fizes-se sentido para um cego e para um vidente.

Questões epistemológicas: pensar longe

das visões e afirmar as versões

Em seu livro sobre as emoções, Despret (1999)estabelece uma interessante distinção entre visão e

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Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes314

versão no que diz respeito à construção do conheci-mento. Um conhecimento que se propõe como vi-são do mundo se impõe de fora, “[a visão] invade ocampo” e o desvela sob o modo da evidência e darevelação. Assim, uma visão exclui outras. Neste sen-tido, o trabalho não se propõe a afirmar uma visãosobre o papel do corpo como suporte da cogniçãoentre jovens deficientes visuais, isto é, não se preten-deu revelar o que são e como funcionam o corpo e acognição em um jovem cego. No estudo pretendeu-se produzir uma versão desta relação entre cogniçãoe corpo. A propósito do termo versão, Despret(1999, p. 37) afirma que ele “parece melhor do quequalquer outro para dar conta desta coexistênciamúltipla de saberes, de definições contraditórias e decontrovérsias”.

A versão não se impõe, ela se constrói. Ela não se

define no registro da verdade ou da mentira e dailusão, mas naquele do devir: devir de um texto in-

cessantemente retrabalhado e revirado, devir de ummundo comum, devir das reviravoltas e das tradu-

ções. A versão não desvela o mundo nem o vê-la,ela o faz existir num modo possível. A versão não é

o feito de um homem sozinho, ela é fonte e fruto darelação, ela é trabalho, no seio da relação, ela é ne-

gociação que se desvia, se transforma, se traduz(Despret, 1999, p.44).

Um dispositivo pode se definir em termos de oca-siões para uma versão, isto é, um dispositivo se cons-titui como uma oferta de oportunidade feita a um fe-nômeno. Por esta via, foi proposta uma reflexão so-bre o trabalho na oficina de expressão corporal comjovens deficientes visuais como um dispositivo quefaz existir uma certa relação entre o corpo e a cogniçãoe, ao mesmo tempo, um certo modo de tematizaresta relação. É neste sentido que se entende que taldispositivo implica uma relação de co-produção en-tre o objeto e o sujeito da pesquisa.

O trabalho se situa numa linha de investigação her-deira da psicologia do século XIX, já que a atençãodirigiu-se para a cognição em suas articulações com ocorpo. No entanto, neste ponto é necessário estabe-lecer duas ressalvas fundamentais. A primeira diz res-

peito ao sentido dado ao termo herdeira: Ao se con-siderar de algum modo, herdeiros da psicologia doséculo XIX, que sentido atribui-se a esta idéia de he-

rança? A segunda ressalva diz respeito ao estatutoconceitual da noção de corpo como suporte dacognição: Considera-se como eixo deste trabalho anoção de corpo-máquina, fundada na física mecanicistae retomada pela fisiologia experimental do século XIXou estabeleceu-se novos referenciais teórico-práticospara tratar desta noção?

A herança como vetor de transformação

Despret (1999) apresenta uma concepção de he-rança que se afasta das idéias de continuidade históri-ca e de origem na história. Para afirmar esta idéia aautora baseia-se na conhecida fábula árabe sobre os12 camelos, que é apresentada por Tahan (1955) numaversão um pouco diferente, mas que serve aos mes-mos propósitos: um homem muito velho, próximoda morte, reúne seus três filhos para dividir com elesos seus únicos bens que são onze camelos. Aoprimogênito, deixa metade dos bens; ao filho do meio,a quarta parte e ao mais novo a sexta parte. Quandoo pai morre, os filhos ficam atônitos. Como dividiresta herança? 11 camelos não são divisíveis por dois,por quatro nem por seis, como podiam os filhos par-tilhar a herança conforme a vontade do pai? Atônitos,os filhos decidem procurar ajuda recorrendo aos con-selhos de um sábio. Este lhes diz que a única coisaque pode fazer é dar-lhes o seu velho camelo, des-dentado, magro, mas muito valioso uma vez que eleirá ajudar os jovens na divisão da herança. Com o pre-sente recebido do sábio os filhos somam 12 camelose podem finalmente dividir a herança segundo a von-tade do pai: o mais velho recebe seis camelos, ou ametade dos bens; o do meio fica com três, o queequivale à quarta parte; e o mais novo herda dois ca-melos, ou seja, a sexta parte dos 12 camelos. Ao finalda divisão o camelo desdentado é devolvido ao velhosábio como forma de reconhecimento e gratidão.

Esta fábula permite levantar a questão acerca datransmissão através da herança. Os filhos recebemdo pai algo que não pode ser transmitido sem se trans-formar. A herança não está dada, antes deve serconstruída a partir do 12º camelo. Este por si só não

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é a solução do problema, mas sim aquilo que transfor-ma o problema de modo a que ele possa ser solucio-nado. Segundo Despret “uma herança se constrói etudo o que participa desta construção torna-se umdevir possível desta herança” (1999, p.28). Dessemodo, se de um lado os filhos são produtos de umaherança, de outro lado, eles são os vetores de trans-formação desta herança.

Entender, portanto, a herança como vetor de devire de transformação leva a uma reflexão que diz res-peito ao problema desta pesquisa, isto é, através dosestudos de caso, analisar as relações entre a cogniçãoe o corpo, temática de certo modo herdada da psico-logia do século XIX. No entanto, herdaram-se osimpasses, as controvérsias, não as soluções prontas edefinitivas. Neste sentido, considera-se o corpo a par-tir daquilo mesmo que aparecia como o seu limite napsicologia do século XIX: a sua labilidade, sua parciali-dade. Se a cognição enraíza-se no corpo, que desenhoda cognição pode-se esboçar se são consideradascomo positivas as noções de labilidade e parcialidadedo corpo? A psicologia experimental do século XIXinvestigava a cognição a partir de sua articulação como corpo considerado como referencial de objetividade,de quantificação e de controle. A aliança entre a psico-logia e a fisiologia experimental foi neste sentido umaaliança em torno de uma certa concepção de ciência.Ciência positivista cujo modelo era representado pe-las ciências da natureza. Definiu-se este trabalho comoherdeiro do século XIX na medida em que esta he-rança implica um vetor de devir e de transformação:o que interessa não é seguir o corpo entendido comoextensão e movimento, mas sim, acompanhar as suasderivas, as suas errâncias, as suas variações a partirdas múltiplas conexões que estabelece com o mundo.Trata-se, portanto, de uma herança que levará ao mes-mo tempo a definir um outro objeto para a psicologiae a entender de outro modo as relações entre acognição e o corpo.

Por esta via, neste trabalho operou-se um duplodeslocamento. Por um lado, deslocou-se a centralidadeda visão nos estudos sobre a cognição quando se per-guntou o que é o conhecer sem o ver. A relação entreo conhecer e o ver estabelece um referencial de in-vestigação bastante forte tanto na psicologia quanto

na filosofia. O paradigma visuocêntrico (Belarmino,2004) marcou as pesquisas no campo da psicologiacognitiva, em particular nos estudos acerca da per-cepção. Por outro lado, deslocaram-se as alianças te-órico-práticas que se estabeleceram para definir a psi-cologia. Os aliados não são mais os instrumentos dapsicofísica, nem a bancada do laboratório de pesquisaexperimental. Propõe-se estabelecer uma aliança en-tre a psicologia e as artes, em particular as artes cênicas.Daí, o interesse em seguir um grupo de teatro forma-do por jovens cegos e portadores de baixa visão a fimde acompanhar os impasses corporal-cognitivos quesão produzidos a partir dos jogos teatrais. Neste per-curso, impõe-se como tarefa seguir as marcas, os ves-tígios, os rastros que estes jogos teatrais produzemnos corpos dos deficientes visuais levando-os a co-nhecer diferentemente o mundo a sua volta.

A experiência do teatro com cegos e portadoresde baixa visão permite acompanhar o modo como apessoa utiliza os sentidos para a elaboração do mundoe do universo do personagem. O espaço cênico criaum campo de aprendizagem que engloba diversospontos fundamentais no desenvolvimento cognitivo dacriança cega: a orientação e a locomoção, as relaçõesinterpessoais, a orientação do corpo no espaço etc.O trabalho de construção dos personagens bem comoa memorização do texto implica, portanto, um dispo-sitivo cognitivo que leva à criação e a produção de umuniverso cognitivo cujos efeitos são incorporados pelacriança em seu dia-a-dia. O ponto central a ser desta-cado neste processo é aquele que diz respeito ao pa-pel que a arte assume na construção do mundocognitivo/perceptivo das crianças. Isso significa dizerque as percepções e aprendizagens que o teatroviabiliza passam a ser incorporada à vida da pessoadeficiente visual, ao seu cotidiano.

Masini (1994) comenta que a educação do cego eda pessoa com baixa visão é, na maior parte das ve-zes, centrada em padrões adotados pelos videntes.Segundo a autora, educar deficientes visuais de acor-do com padrões dos videntes produz um desconhe-cimento das especificidades do ser deficiente visual.Isso significa que conhecer o modo como estas pes-soas conhecem o mundo é fundamental para a elabo-ração de estratégias pedagógicas voltadas para o cego

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Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes316

e o portador de baixa visão. Outros autores que in-vestigam o tema da cegueira seguem a mesma argu-mentação de Masini (1994) no que toca à necessida-de de buscar conhecer os modos singulares e pró-prios pelos quais o deficiente visual conhece e se re-laciona com o mundo a sua volta. Assim, Belarmino(2004) analisa historicamente a centralidade da visãonas pesquisas sobre o conhecer e chama a atençãopara a necessidade de se investigar outras modalida-des de conhecimento, em particular aquela que secentra na percepção tátil. Para a autora, o tato é umórgão de conhecimento que se estende por todo ocorpo. Belarmino (2004) sublinha a importância dena educação da pessoa com deficiência visual se to-mar como referência a mundividência tátil, isto é, aconstrução da cognição por meio do exercício dapercepção tátil.

Caiado (2003) apresenta várias entrevistas com de-ficientes visuais a fim de investigar os impasses vividospor estas pessoas durante suas vidas escolares. Muitosdos relatos apresentados indicam a importância de en-raizar o ensino nas experiências corporais do deficientevisual, buscando assim mobilizar a experiência corporaldo deficiente visual a fim de promover a aquisição deconhecimentos. Batista (2005) também aponta consi-derações que vão nesta mesma direção quando analisa aformação de conceitos em pessoas cegas.

No teatro, a elaboração de cada personagem pas-sa por diversas etapas e o que se pode notar é o pro-gressivo envolvimento da criança com o universo dapersonagem. Merece destaque o papel que o corpoassume na construção e elaboração das personagens.Falar da importância do corpo na construção da per-sonagem não traz em si nenhuma novidade. O quesignifica, portanto, dizer que entre as crianças defici-entes visuais é o corpo o suporte das elaborações edo trabalho de construção das personagens? Qual-quer ator poderia afirmar o mesmo, sem dúvida. Oque nos interessa circunscrever com esta afirmaçãoé que não se trata do corpo-máquina, mas sim de umcorpo construído, elaborado a partir das múltiplasconexões que estabelece com o universo teatral: otexto, o cenário, o figurino, o espaço do palco, osoutros atores, a música etc. O processo de constru-ção e elaboração das personagens engloba a produ-

ção de tais articulações do corpo com o mundo. Apartir destas articulações são produzidos tanto o cor-po, com sua fala e gestos próprios, quanto ao mundoconhecido. Corpo e mundo são co-construídos a partirde tais articulações.

Partindo destas contribuições teóricas, este tra-balho de pesquisa pretendeu investigar o papel da artecênica como recurso pedagógico voltado para o en-sino do deficiente visual, focando principalmente narelação entre corpo e cognição. Para alcançar esteobjetivo geral foram estabelecidos dois objetivos es-pecíficos: elaborar e executar intervenções que vi-sassem produzir as posturas, gestos e cognições dospersonagens a serem interpretados na peça. Desta-ca-se que para a realização deste objetivo era funda-mental levar em conta as demandas do grupo; anali-sar dois casos a fim de acompanhar os efeitos queestas intervenções produziram.

Método

Participantes

As oficinas de expressão corporal aconteceramdurante todo o ano de 2005, uma vez por semana,com duração de uma hora e meia cada encontro. Taisoficinas eram coordenadas pelas pesquisadoras e delaparticiparam 10 alunos do IBC que fazem a oficina deteatro. Dentre estes alunos 3 tinham cegueiracongênita e 7 eram portadores de baixa visão, comgraus variados de resíduos visuais, com idades entre9 e 16 anos.

Para a definição de cegueira adotou-se o critériofuncional ou educacional referido por Amarilian(1997). Segundo este referencial é considerado cegoo sujeito que faz uso exclusivamente do Sistema Braillepara a leitura e a escrita e é considerado portador debaixa visão aquele que, através de recursos óticos eoutros, lê e escreve fazendo uso de material impres-so em tinta. Assim, sabe-se que alguns dos sujeitoscegos possuíam algum resíduo visual – por exemplo,a capacidade de distinguir luz e sombra, capacidadepara perceber alguns obstáculos. Os sujeitos que fi-caram cegos antes dos 5 de idade são consideradoscegos congênitos.

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Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 317

Os estudos de caso foram realizados por meiodas notas e observações do que se passou na Oficinade Expressão Corporal com dois dos seus partici-pantes. Todos os alunos que eram membros do gru-po de teatro faziam parte também das Oficinas deExpressão Corporal que eram organizadas em tornodos impasses que os jovens vivenciavam na constru-ção dos seus personagens. A proposta de interven-ção implicava um processo de construção recíprocano qual as ações eram constantemente renegociadascom o grupo, modificadas, colocadas em risco. Aomesmo tempo, observou-se que os jovensproblematizavam suas experiências, seus modos deconhecer o mundo a partir dos trabalhos na Oficinade Expressão Corporal.

Descrição dos sujeitos dos estudos de caso

Caso 1- Participante – menina de 11 anos, cegacongênita que estava participando do grupo de tea-tro pela primeira vez. A menina fazia outras atividadesartísticas como canto e piano. No entanto, até aquelemomento nunca havia realizado nenhum trabalho queenvolvesse atividades de experimentação corporal.

Caso 2- Participante – rapaz de 16 anos, cegocongênito, participava pela primeira vez do grupo deteatro. Este rapaz apresentava em seu cotidiano mo-vimentos estereotipados de balançar as mãos e o cor-po. O rapaz não se locomovia com o auxílio da ben-gala, andava sempre amparado pelos colegas, pelo res-ponsável ou tateando. O rapaz ainda não tinha feitonenhuma atividade voltada para a orientação e a mo-bilidade, comuns entre os deficientes visuais de suafaixa etária e não estava envolvido em nenhuma outraatividade artística.

Procedimento

Cada encontro era construído em torno dosimpasses que os alunos experimentavam na constru-ção dos seus personagens. A cada impasse relatadopelos alunos, uma estratégia de ação era proposta.Algumas vezes tais estratégias eram redimensionadaspelos alunos, algumas apareciam como intervençõesfracas, com as quais os alunos não se articulavam, comrelação às quais eles eram recalcitrantes. A noção derecalcitrância proposta por Latour (1997) é comen-

tada por Tsallis (2005, p.20-23) ao afirmar que a“recalcitrância acontece no terreno do vínculo, darelação. Ela explicita (...) um acontecimento singular[e pode ser utilizada como] uma medida para estabe-lecer os possíveis mapas sobre a movimentação dosvínculos”.

A recalcitrância colocava então todo o dispositivoem análise, fazendo a reformulação das ações. Destemodo, os efeitos cognitivos iam sendo criados, inven-tados ao mesmo tempo em que o conhecimento so-bre tais efeitos era articulado. Os grupos eram coor-denados por duas pesquisadoras, enquanto as outrastrês tomavam notas em um caderno e faziam registrosatravés de fotos. As notas eram digitalizadas e reunidasnum único documento. Alguns encontros foramregistrados em gravador e depois transcritos. Os res-ponsáveis pelos jovens que participaram da Oficina deExpressão Corporal assinaram o termo de consenti-mento livre e esclarecido autorizando a realização dosestudos de caso e a publicação dos resultados.

Resultados e Discussão

Os resultados foram discutidos em parceria coma professora de teatro do IBC. Na análise dos resul-tados consideraram-se pertinentes alguns eixos: opapel dos não-humanos, as transformações do cor-po, as transformações no modo de conhecer o mun-do, as negociações dos limites entre o ver e o não-ver no dispositivo do grupo de expressão corporal.

Caso 1: Corpo de bailarina

Partiu-se de uma questão levantada pelo grupo deteatro durante os ensaios da peça A Loja da Alegria

(Cunha, 2005) encenada no IBC em novembro de2005. A peça contava a história de uma loja de brin-quedos onde estes ganhavam vida sempre que o donode loja dela se ausentava. Havia vários personagens-brinquedos: um motociclista, um corredor, um luta-dor, uma bailarina. Na análise do caso 1 acompanhou-se a construção desta última personagem.

Durante os ensaios da peça e nas oficinas de ex-pressão corporal havia um impasse no que diz res-peito à personagem bailarina: aqueles alunos com re-

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síduos visuais tinham uma concepção do ser bailarinainteiramente desconhecida da menina cega que faria opersonagem porque muitos tinham memórias visuaisenvolvendo bailarinas.

Esta menina não conseguia entender o que os cole-gas diziam acerca da bailarina: “ela é leve, dança levan-tando as mãos, gira em torno do próprio corpo”.Embora entendesse o sentido das palavras, a meninanão conseguia “encarná-las”, isto é, não conseguia devir-bailarina, ter um corpo-bailarina. O impasse que taldificuldade produzia atingiu todo o grupo e fez apare-cer um problema: O que é ter um corpo-bailarina? Oque pode um corpo-bailarina? Tais questões nortearamo trabalho do grupo por vários encontros e foramdeslocadas, traduzidas para uma outra questão: Comoproduzir um corpo-bailarina numa menina cegacongênita? Como fazê-la afetar-se pelo mundo da bai-larina levando-a a inventar o seu corpo-bailarina?

Num primeiro momento, as psicólogas explicaram oque é ser bailarina. Tal estratégia mostrou-se pouco arti-culada, a menina não era afetada pelas palavras, não semodificava a partir do que lhe era dito. Tal situação pro-duziu um deslocamento nas intervenções propostas.

Foi planejada uma série de atividades que tinhacomo finalidade produzir um campo de experimenta-ções, um mundo-bailarina. Primeiramente, foi pergun-tado ao grupo de alunos o que cada um conhecia dabailarina. Algumas posturas corporais da bailarina fo-ram destacadas pelo grupo:

· a bailarina fica toda esticadinha;· a bailarina pula alto, “quase voa”;· parece que ela é leve, leve, como se fosse umapluma;· ela usa roupas leves, a saia da bailarina é todaleve e é bem diferente de uma saia feita de jeans,por exemplo.

Estas e outras características foram apontadas pelogrupo. A partir deste levantamento, foram propostasexperiências corporais e sensoriais que mobilizassemo corpo todo e que pudessem fazer conexão com oque era dito sobre a bailarina. Portanto, buscavam-semecanismos de tradução que produzissem um deslo-camento do universo das palavras para aquele dossentidos e das experiências corporais. Destaca-se quepor tradução entendia-se

um deslocamento, um desvio de rota, uma media-ção ou invenção de uma relação antes inexistente

que de algum modo modifica os atores nela implica-dos. Tradução não se confunde com interação (...) O

sentido de tradução envolve ao mesmo tempo umdesvio e uma articulação de elementos díspares e

heterogêneos (Moraes, 2004, p.326)

Desse modo, a primeira atividade proposta foiexperimentar as roupas da bailarina: uma saia feita deplumas e outra de um tecido bem leve foram tateadaspelos alunos. As saias passaram de mão em mão, fo-ram cheiradas, alisadas e os alunos constataram queela era bem diferente de uma saia feita com tecidogrosso como o jeans. Os alunos vestiram as roupasda bailarina e solicitaram que as pesquisadoras colo-cassem música para que eles pudessem percebercomo a saia podia ser movimentada ao som das músi-cas. As pesquisadoras decidiram colocar dois tiposde música: valsas e músicas brasileiras cujas letras fa-lavam de bailarinas. Ao som das músicas os alunoscomeçaram a dançar: “como se dança na ponta dospés?”- perguntou uma aluna cega. E concluiu ela mes-ma: “a bailarina dança e anda na ponta dos pés, compassos de formiga que quer guardar um segredo, andasem fazer barulho”.

Outras experiências foram trabalhadas: o som damúsica, o tatear de outras peças do vestuário da bai-larina. Uma poesia sobre bailarinas, de autoria deMeireles (1996), foi lida para o grupo e cada um pôdecomentar o que era indicado naquela poesia sobre ocorpo da bailarina, o mundo da bailarina.

Uma questão, no entanto, permanecia em abertopara a menina que iria interpretar o personagem: “aleveza, o que é isso, como fazer para que o corpopareça leve?”

A fim de dar conta desta questão, as pesquisado-ras propuseram duas atividades que envolviam umenorme balão de gás. Dentro do balão de gás foramcolocados grãos de arroz de modo que quando o balãoera movimentado os grãos de arroz produziam umsom suave. Optou-se pelo uso deste material e nãode guizos, muito comuns, por exemplo, no jogo defutebol com cegos. Por que o arroz e não o guizo?Considerou-se que o guizo produzia um som

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descontínuo, quando a intenção era que o som tam-bém pudesse transmitir a continuidade dos movimen-tos da bailarina.

A primeira atividade, com o balão de gás consistiuem articulá-la aos movimentos dos braços da bailari-na. Desse modo, as pesquisadoras pediam que a me-nina segurasse o balão e diziam: “a bailarina abraçaeste balão na frente do corpo, depois o levanta até oalto da cabeça, depois o leva para o lado”. Com estesmovimentos dos braços articulados ao balão, a meni-na ia construindo os movimentos dos braços da baila-rina que sobem ao ar arqueados, depois descem paraum lado e depois para o outro. Todas as crianças, in-clusive aquelas com baixa visão, fizeram estes movi-mentos com a mediação do balão. A segunda atividade,com o balão consistiu em colocá-lo sobre um enor-me lençol que era segurado pelas pesquisadoras. Ascrianças ficaram sob o lençol e empurravam o balão.Esta experiência produziu comentários: “como a bolaé leve, ela voa alto, basta um toquinho e ela já voa”,foi o que disse uma menina com baixa visão. Ao finaldestas experiências a menina cega finalmente concluiu:“a bola é leve e a bailarina também é leve” e em segui-da disse: “meu corpo pode ficar leve como esta bola”.

Interessante notar que estas intervenções produ-ziram um grupo-bailarina, com o qual a menina se ar-ticulava. Naquele grupo-bailarina não havia mais a dis-tinção entre cegos e portadores de baixa visão, baila-rinas e não-bailarinas. Ali havia um grupo, um coletivo,no sentido proposto pela teoria ator-rede, ou seja,uma articulação de humanos e não-humanos que pro-duzia efeitos, inventando um mundo bailarina único,singular. Considerou-se relevante ressaltar que o gru-po de expressão corporal funcionou como um dispo-sitivo, no sentido afirmado por Despret (2004), istoé, um dispositivo que produz novas formas de falar,novas formas de articular humanos e não-humanos e,ao mesmo tempo, novas formas de interrogar o queé a cognição e o corpo.

Caso 2: Articulando ritmos musical e corporal

As posturas corporais deste rapaz eram marcadaspor vários movimentos estereotipadas os quais, con-forme informado pelo seu responsável, apareceramquando ele tinha entre 7 ou 8 anos. Nas atividades do

dia-a-dia no IBC era comum que ele balançasse repe-tidamente as mãos, coçasse as pernas, pulasse, movi-mentos que também se faziam notar tanto durante osensaios da peça quanto nos encontros da Oficina deExpressão Corporal. Tais movimentos não faziam par-te do contexto corporal do seu personagem na peça:um velhinho, um pouco distraído, dono da loja debrinquedos.

Do mesmo modo que no caso da construção dabailarina, observou-se que não era suficiente dizer aorapaz que ele devia parar de balançar as mãos ou decoçar as pernas. A professora de teatro sugeriu queo personagem fizesse uso de uma bengala, um objetoque muitas pessoas velhas utilizam para auxiliar o ca-minhar. O objetivo era “ocupar” as mãos do rapaz demodo a que as estereotipias fossem deixadas de lado.Destaca-se que este rapaz, embora cego congênito,nunca havia sido treinado para o uso de bengala. Por-tanto, duas questões devem ser sublinhadas. Em pri-meiro lugar, o rapaz embora soubesse que muitaspessoas cegas usam bengalas, não tinha, ele próprio,a experiência corporal com o uso deste instrumentojá que se locomovia com a ajuda de outros colegas outateando a sua frente para evitar os obstáculos. Emsegundo lugar, e na mesma direção, o rapaz sabia queexistem no mundo pessoas chamadas de “velhinhas”,mas ele não tinha nenhuma vivência corporal que pu-desse auxiliá-lo na construção dos gestos e das pos-turas do velhinho que iria interpretar.

A fim de conhecer o modo como o rapaz conheciaos usos de uma bengala, as pesquisadoras pergunta-ram a ele: “Para que serve uma bengala?” E ele respon-deu: “para ver se tem obstáculos no caminho”. E aspesquisadoras: “então mostre como se pode usar abengala para ver se tem obstáculo”. O rapaz colocou obraço esticado para o alto e a bengala suspensa no arsendo agitada de um lado para outro. Tais movimentosindicavam que ele desconhecia o habitual modo comoum cego utiliza a bengala, isto é, à frente do corpo,sendo levada de um lado para outro e com uma desuas extremidades em contato com o chão. As pesqui-sadoras então perguntaram: “Você sabe por que pes-soas velhas usam bengalas?” O jovem não sabia.

Após estas experiências, uma das pesquisadorassugeriu ao rapaz que, ao invés de usar a bengala, o seu

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personagem tocasse um tambor. As pesquisadorassabiam que ele tinha uma enorme capacidade de pro-duzir ritmos com pandeiros, tambores e quaisqueroutros objetos que pudesse batucar. A articulação docorpo com o tambor produziu efeitos interessantes.O ritmo das batidas que ele dava no tambor pareci-am se coadunar com o ritmo de suas estereotipias. Oresultado era uma produção sonora bastante rica quealgumas vezes parecia um samba, outras vezes umsom circense. A partir deste momento, o trabalhofoi o de articular o som produzido com as falas dopersonagem que o menino interpretava. Um univer-so de novas questões abriu-se a partir desta articula-ção: corpo-tambor-música-fala do personagem. Quesons poderiam ser produzidos para cada um dos per-sonagens da peça? Em que momentos batucar e emque momentos silenciar o tambor? Eram questõestrabalhadas em grupo. Merece destaque ainda que apresença do tambor foi crucial para que se desenvol-vesse um traço cômico do personagem. Como eleera um velhinho meio distraído, o rapaz inventou umcerto modo de desafinar: o velho batucava, cantava,mas desafinava um pouco, tossia e engasgava no meiodas músicas, errava as letras das músicas.

Estas intervenções mobilizavam todo o grupo por-que os outros alunos da Oficina de Expressão Corporalparticipavam das decisões acerca do quando batucar,quando silenciar o tambor, além de opinarem tambémquanto à escolha das músicas que deveriam ser tocadaspara marcar a interação do velhinho com os demaispersonagens. Assim, ao interagir com a bailarina, o velhi-nho cantava e batucava uma música muito diferente da-quela que era dirigida a outro personagem, por exem-plo, ao motociclista, ou ao lutador. Era o grupo todoque se articulava com o tambor e seus sons e músicas.

Considerações Finais

Estes resultados indicam a necessidade de reto-mar o tema do corpo como suporte da cognição.Nos casos observados, considera-se o corpo, nãocomo corpo-máquina, mas como algo que é produzi-do, que é efeito de conexões entre actantes dísparese heterogêneos, humanos e não-humanos.

No grupo observado, os não-humanos foramactantes importantes que, ao se articularem com oscorpos das crianças cegas, produziram universoscognitivos que não foram dados, anteriormente. Emoutras palavras, parece que se pode considerar que,no caso da bailarina, o corpo-balão foi um actante queproduziu efeitos que não foram dados anteriormentee nem previstos. A articulação corpo-balão produziuuma bailarina única, singular, própria daquela meninaque experimentou esta articulação. Na perspectivada teoria ator-rede, proposta na atualidade por Latour(1997), entre outros autores, pode-se dizer que ocorpo-balão é um híbrido, um actante, que não sereduz nem a um sujeito puro, entendido como puraabstração, nem a um corpo, entendido como puramaterialidade. A cognição foi produzida na interfacecorpo-balão. Foi esta articulação que produziu porum lado, um conhecimento de si, do seu corpo, doque ele pode fazer em termos de gestos, movimen-tos, etc. e por outro lado, um conhecimento do mun-do, do mundo da bailarina, com a música, as suas rou-pas, a sua leveza. A cognição neste caso, longe de seratributo de um sujeito isolado, é efeito de conexõesque se estabelecem em rede: numa rede que articulaactantes díspares.

Do mesmo modo, na experiência corpo-tamborobserva-se a produção de uma articulação entre oritmo do corpo e o ritmo da música. Dito em outraspalavras, parece que a articulação corpo-tambor podeser entendida como um híbrido que produziu comoum de seus efeitos outros sentidos para asestereotipias. Assim, pode-se dizer que a articulaçãoestereotipia-música-tambor modifica a estereotipia.Na perspectiva das redes, seguiram-se alianças entreos actantes, seus rastros, suas transformações. Lon-ge de considerar cada elemento isoladamente,enfocaram-se as conexões entre os actantes e os efei-tos que tais conexões produziram.

O trabalho de campo levou, portanto, a redefiniçãodo corpo como suporte da cognição. Para isso, busca-ram-se alianças não no enfoque experimental, mas emferramentas conceituais que permitissem refletir so-bre corpo e suas redes. No campo da filosofia reto-mam-se algumas contribuições do filósofo Michel Ser-res, que entende o corpo como variação, como dife-

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renciação que implica na construção do mundo e de si.Assim, o trabalho de campo leva a concluir que o sujei-to e o mundo são co-construídos através das atividadesdo teatro. Nas palavras do filósofo, “o corpo é o su-porte da intuição, da memória, do saber, do trabalhoe, sobretudo, da invenção” (Serres, 2004, p.36).

Na atualidade, Bruno Latour (1999) afirma que terum corpo é ser afetado, movido e efetuado por co-nexões com outros homens e com não-humanos. Issosignifica dizer que o corpo é o efeito de redes dearticulação que ligam humanos e dispositivos técni-cos os mais heterogêneos e díspares. Foram estasafetações que foram acompanhadas por meio dasobservações no campo pesquisado. Tais observaçõespermitiram ainda levantar dois pontos relevantes:

No trabalho desenvolvido com os deficientes vi-suais foi extremamente relevante considerar oreferencial que estas pessoas têm do mundo, os seusmodos singulares de conhecer. O ponto de partidadas atividades observadas eram as questõesvivenciadas pelo grupo. Percebe-se que de nada adi-antava dizer ao rapaz cego para usar a bengala: elenão conhecia a bengala do mesmo modo que os vi-dentes a conhecem. O mesmo ocorria com a meninacega: ela não conhecia os movimentos típicos de umabailarina, portanto, era inútil apenas dizer para ela: le-vante os braços, ande na ponta dos pés. Tais palavras,centradas nas experiências cognitivas dos videntescareciam de sentido para a menina cega. Portanto,conclui-se que, como indicado por Masini (1994), aeducação da pessoa com deficiência visual deve serguiada pelos referenciais que o deficiente visual pos-sui do mundo.

A construção do conhecimento ocorre numa redeque articula humanos e não-humanos. Trata-se de umacognição distribuída por diversos actantes, cogniçãoque ocorre numa articulação com o corpo, com osnão-humanos. Nos casos observados, os não-huma-nos foram actantes fundamentais para a produção doconhecimento. Sem o balão de gás, o tambor, a músi-ca, as roupas da bailarina, não seriam produzidos osefeitos cognitivos que levaram aquelas pessoas a co-nhecerem o ser bailarina e o ser velho. Por esta via, énecessário a buscar novas ferramentas conceituaispara definir o que é a cognição e, conseqüentemente,

novas ferramentas para pensar o que é a própria psi-cologia, para construir uma psicologia em ação. Nes-te sentido, a relação entre a psicologia e a educaçãosão também relações de construção recíproca, deinvenção e criação de modos de agir que podem pro-duzir modos de ensinar distintos dos tradicionaismodelos centrados na repetição e na imitação. As-sim, de um lado este trabalho pode oferecer subsídi-os aos profissionais de educação que lidam com defi-cientes visuais para refletirem sobre suas práticas; deoutro lado, ele também levanta questões que levam aperguntar sobre o modo como a psicologia produzconhecimento, sobre quais são os seus alcances e li-mites. Em última instância, seguindo os termos deDespret (1999), pode-se dizer que a interface entrepsicologia e educação produz derivas, transformaçõesem ambos os domínios.

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Recebido em: 28/05/2007Revisado em: 03/12/2007Aprovado em: 29/01/2008

Sobre a autora:

Marcia Moraes ([email protected] ou [email protected]) - Professora do Programa de Pós-graduação strito senso em Psicologia daUniversidade Federal Fluminense. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC / SP. Consultora Científica no Centro de Estudos sobre Subjetividade, Cegueirae Baixa Visão do Instituto Benjamin Constant.

Endereço para correspondência: Rua Desembargador Cesínio Paiva 15São Francisco - Niterói - RJ - CEP: 24360 – 530

Nota da autora:

O trabalho contou com o apoio financeiro dos programas de iniciação científica (PIBIC) da Faperj e do CNPq. Agradeço à professora de teatro doInstituto Benjamin Constant (IBC) Marlíria Flávia Coelho da Cunha, por ter permitido que o trabalho de campo fosse realizado. Agradeço também aosprofissionais do IBC que me acolheram naquela instituição, aos responsáveis pelas crianças que autorizaram a realização da pesquisa. Por fim, agradeçode modo especial às alunas de graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense que estiveram vinculadas a esta pesquisa através doprograma de iniciação científica: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.

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245Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008

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Lucia Reily

MÚSICOS CEGOS OU CEGOS MÚSICOS:REPRESENTAÇÕES DE COMPENSAÇÃO SENSORIAL

NA HISTÓRIA DA ARTE

LUCIA REILY*

RESUMO: A representação de músicos cegos foi tema recorrente entreos artistas desde a Antiguidade. O presente estudo descreve historica-mente as concepções sobre a figura do músico cego baseado nas obrasque atravessam os séculos. A análise da concentração de harpistas naAntiguidade, de tocadores de viola de roda na Idade Média até o Bar-roco, de violinistas e violonistas entre os séculos XVII e XIX e o apareci-mento do acordeão a partir do século XIX permite falar do flutuantepapel do músico cego na sociedade. O estudo mostra que na Era Cris-tã predominava o papel de cego músico, trabalhando na marginalidadee na miséria, onde sua performance musical legitimava a mendicância.

Palavras chave: Música. Cegueira. Mundo do trabalho. História daArte. Representação.

MUSICIANS THAT ARE BLIND OR BLIND MUSICIANS:REPRESENTATIONS OF SENSORY COMPENSATION IN ART HISTORY

RESUMO: Representations of blind musicians have been a recurringtheme among artists since Antiquity. A survey of artworks uncoverednearly 160 portrayals of visual impairment, of which 25 representedblind musicians. This paper presents a historical description of con-ceptions of blind musicians based on these depictions covering severalcenturies. The analysis of the concentration of harpists in Antiquity,hurdy-gurdy players from the Middle Ages to the Baroque, violinistsand guitar players from the 17th to the 19th century and the emer-gence of the accordion by the mid 19th century enables us to reflecton the fluctuating role of blind musicians in society, depending on

* Doutora em Psicologia e docente da Faculdade de Ciências Médicas (CEPRE) da Universida-de Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]/[email protected]

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246 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008

Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

Músicos cegos ou cegos músicos...

prevailing stereotypes. Analyzing visual cues in artwork shows howmusicians that are blind often play the role of blind musicians, work-ing in poverty, on the fringe of society where their musical perfor-mance makes begging a legitimate business. The conceit of sensorycompensation for loss of sight through heightened hearing is also ex-plored.

Palavras-chave: Music. Blindness. Work. Art history.

Introdução

filme documentário A pessoa é para o que nasce, do diretorRoberto Berliner, coloca em evidência uma figura social que fazparte do cenário rural e urbano ocidental há séculos: o músico

cego. Maria, Regina e Conceição são três irmãs cegas que se sustentamcom esmolas, cantando e tocando ganzá em feiras e portas de igreja noNordeste. Quando eram meninas, a família de camponeses sem terrasacompanhava o pai alcoolista que buscava trabalho temporário nas gran-des propriedades rurais. A mãe contribuía fazendo artesanato. Depois queo pai faleceu, a família toda passou a viver com o dinheiro que as irmãsarrecadavam cantando e tocando ganzá. Residindo numa pequena vilaem Campina Grande, Paraíba, o primeiro curta-metragem realizado so-bre essa história tirou-as do anonimato, e o documentário posterior re-flete sobre as conseqüências da fama na vida das três. O filme retrata umarealidade brasileira, na qual deficiência, miséria e música se entrelaçam.

A referência ao documentário tem a função de introduzir o recor-te do presente texto, qual seja, o músico cego, visto à luz de representa-ções de cegos instrumentistas em obras da História da Arte. O título in-verte as posições das palavras cego e músico para deixar transparecer desdea abertura do texto a fragilidade do lugar social ocupado pelo cego mú-sico, que carrega historicamente a bagagem do assistencialismo, damarginalidade e da miséria, por um lado, e do mito da superação doinfortúnio e da compensação da perda visual pela hipersensibilidade au-ditiva de outro.

Fundamentação teórica

As concepções de deficiência são construções sociais, mesmo que,segundo os argumentos de Linton (1998, p. 143),

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247Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008

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Lucia Reily

(...) o significado geralmente atribuído à deficiência seja de condição pes-soal mais do que questão social, de sofrimento individual mais do queuma condição política. Quando indivíduos deficientes fracassam na es-cola, no trabalho ou no amor, o fracasso é atribuído à deficiência, elaprópria vista com um obstáculo ao bom desempenho, ou à fragilidadepsicológica do deficiente, ou à sua falta de resiliência, sua incapacidadede “superar” os infortúnios.

Para Linton, as artes têm um papel importante ao “desmontar es-tereótipos por meio da análise de metáforas, de imagens e de todas asrepresentações de deficiência nas culturas acadêmicas e populares” (idem,ibid., p. 142). Ela explica que a compreensão dos sentidos e das funçõesdas representações simbólicas e metafóricas da deficiência tem o objetivode subverter o seu poder. “É preciso traçar os padrões de uso de metáfo-ras e dos usos simbólicos da deficiência para determinar onde e comoemergem, e como funcionam nos diferentes gêneros artísticos, nas cul-turas e nos períodos históricos” (idem., ibid., p. 129).

Do ponto de vista de produção de conhecimento, podemos afir-mar com razoável grau de segurança que estudos sobre a temática domúsico cego são muito mais numerosos que estudos sobre artistas visu-ais surdos, a despeito do movimento relativamente recente da comuni-dade surda de desencavar biografias de artistas surdos do passado e deestudar as produções plásticas da comunidade surda como evidências deafirmação e resistência no presente (Lang & Meath-Lang, 1995). O lei-tor que queira fazer um inventário de cegos ou deficientes visuais profis-sionais que se destacaram na música popular brasileira e internacionalnão terá nenhuma dificuldade em lembrar de referências como StevieWonder, Ray Charles, os Cantores de Ébano, Sivuca, Hermeto Pascoal,dentre outros, sem conseguir desempenho equivalente para profissionaissurdos no campo das artes visuais. Percebe-se, assim, que a produção ci-entífica reflete o que poderíamos denominar de uma sólida tradição cul-tural, que atravessa espaços e tempos, da possibilidade de desenvolvimen-to profissional no campo da música para o cego – tradição que não seestende às habilidades artísticas em outras áreas de deficiência.

Pesquisas sobre música e deficiência visual

Os estudos recentes sobre música e cegueira se inserem emdiversos campos de conhecimento, incluindo medicina, psicologia,

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antropologia, música e educação musical, entre outros. Na medicina, en-contram-se trabalhos que estudam neuroimagens de funções cerebrais demúsicos cegos congênitos como evidência da plasticidade cerebral, par-tindo principalmente das competências de discriminação de tonalidade(ouvido absoluto, ou capacidade musical de reconhecer e identificarnotas ou tonalidades ao ouvir um tom ou acorde musical). Hamilton,Pascual-Leone e Schlaug (2004) estudaram 46 cegos que perderam a vi-são precocemente, dos quais 21 tinham formação musical, comparadosa um grupo controle de músicos videntes. A despeito de o treinamentomusical dos cegos ter se iniciado mais tardiamente do que a formaçãomusical dos não cegos, 12 sujeitos cegos (57,1%) relataram ter ouvidoabsoluto, quando tal habilidade se encontra em apenas 20% de músicosvidentes, segundo os autores.

Na mesma linha, Ross, Olson e Gore (2003) realizaram um es-tudo de caso; comparando os resultados de exames de neuroimagem(ressonância magnética funcional) do seu sujeito cego com formaçãomusical e ouvido absoluto aos de cinco músicos videntes com ouvidoabsoluto, os pesquisadores puderam demonstrar que as mesmas áreascerebrais no córtex auditivo direito haviam sido ativadas em grau se-melhante como resposta ao processamento musical. Os resultados mos-traram também ativação adicional no músico cego das regiões corticaisparietais associativas e de regiões extra-estriados do lobo occipital (aolado do córtex visual). Os autores consideraram que seu estudo forneceapoio para a explicação da plasticidade cortical como base para habili-dades musicais especiais e também justifica a metodologia do estudode caso para “fenótipos raros”.

Amedi et al. (2005) também investigaram, a partir de técnicasavançadas de neuroimagem, as mudanças e adaptações neuroplásticascorticais a partir das exigências e de processamentos sensoriais vividospor sujeitos deficientes visuais, sugerindo que o cérebro responde à ce-gueira, realocando regiões que processam informações visuais para ou-tras funções necessárias para as sensações preservadas, como memória,linguagem e habilidade musical.

Um estudo do campo da psicologia investigou os contatos iniciaiscom a música oferecidos e/ou incentivados na infância. Preocupados como desenvolvimento das habilidades musicais de crianças cegas, a psicólo-ga Linda Pring, pesquisadora inglesa conhecida por seus estudos sobre

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as altas habilidades de pessoas do espectro autista, e Adam Ockelfordrealizaram um levantamento exploratório comparativo (Pring & Ockel-ford, 2005) com 32 famílias de crianças com displasia septo-óptica, ten-do como grupo controle 32 famílias de crianças sem deficiência visualou qualquer outro tipo de problema de saúde. O objetivo do estudo foiinvestigar os interesses e habilidades musicais das crianças, a partir dasoportunidades oferecidas a elas de iniciação musical, bem como conhe-cer os benefícios que a música poderia trazer para o seu desenvolvimentoe desempenho escolar. Os resultados levantaram diversas implicações doponto de vista da educação especial. Segundo os autores, a literatura jávinha indicando que crianças com diagnóstico de displasia septo-ópticaapresentam altos níveis de interesse e habilidade musical, mas no estudodesenvolvido, contraditoriamente, as crianças videntes tiveram maioracesso às oportunidades de educação musical oferecidas que seus paresdeficientes visuais, enquanto poucas crianças do grupo com displasiasepto-óptica puderam desfrutar precocemente da aprendizagem ou tera-pia musical. Inesperadamente, o fator do resíduo visual parece ter influ-enciado o desenvolvimento musical mais do que outros fatores, como acompensação sensorial (auditiva).

Há diversos estudos de músicos cegos adultos desenvolvidos nocampo da antropologia (especificamente na etnomusicologia), muitosdos quais trabalham em abordagens etnográficas, bastante distintas dosprocedimentos empíricos dos estudos da medicina e da psicologia cita-dos acima. Um trabalho interessante foi desenvolvido por SimonOttenberg (1996) em Serra Leoa, onde conheceu três músicos cegostocadores de um instrumento chamado kututeng, também denominadoem outras regiões da África de mbira, e conhecido no Ocidente comopiano de polegar. Analisando as condições sociais destes homens, verifi-cou que os três eram pobres, solteiros, e não tinham filhos, uma grandedesvantagem agregada à condição de cegueira na sociedade Limba, ondeo status aumenta conforme o número de filhos. O autor investiga o pa-pel da profissão de músico para esses cegos, e como a história de vida decada um foi constitutiva do seu estilo distinto de performance, os con-textos onde tocavam e a relação da linguagem musical com outros as-pectos da cultura Limba. O leitor interessado poderá encontrar outrosinteressantes trabalhos de etnomusicologia sobre músicos cegos emKubik (1964), Kidula (2000) e Tsuge (1981).

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Apesar da variedade de objetivos, enfoques, abordagens emetodologias, esses trabalhos iluminam alguns pontos que merecem re-flexão. Do ponto de vista médico, as evidências dos estudos neurológicossugerem que a plasticidade cerebral leva a uma reorganização de funçõesmentais superiores de modo a valorizar a linguagem, a memória e amusicalidade como modalidades para constituição de sentidos. Paraantropólogos o que interessa é o lugar social do músico, enquanto a psi-cologia se preocupa com os mecanismos de compensação. Assim, profis-sionais dos campos da medicina, da psicologia e da antropologia inter-pretam a capacidade musical das pessoas com deficiência visual dediferentes maneiras, mas concordam que a música na vida de uma pes-soa com cegueira pode ter uma dimensão especialmente significativa. Aimplicação óbvia seria que as oportunidades de iniciação musical deveri-am ser priorizadas para crianças com cegueira congênita ou que perdema visão precocemente. No entanto, parece que não é isso que acontece.Os estudos citados mostram que a formação musical de pessoas cegastem início mais tardio do que ocorre na população no geral, mesmo naInglaterra, onde a música é disciplina obrigatória para todos nos ensinosfundamental e médio. Algumas hipóteses podem ser levantadas que me-recem ser investigadas a fundo para explicar as razões para a demora nainiciação musical de crianças cegas:

• não se oferece uma formação musical o mais cedo possível por-que se conta com a propensão inata do cego para a música;

• as famílias com filhos cegos vivem em condições socioeco-nômicas mais prejudicadas, dificultando a provisão de recur-sos para compra ou aluguel de instrumento e pagamento deprofessores de música;

• poucos professores de música se sentem habilitados para en-sinar alunos com deficiência visual;

• a música não é entendida como uma profissão, e sim como ummeio de sensibilizar o público para jogar moedas num chapéuou caneca; para isso, não é preciso estudar música, basta tocaralguma coisa.

Fundamentada em autores da sociologia da arte, como Bourdieue Darbel (2003), Brown (2007) traz uma reflexão que contribui paraelucidar a posição ambivalente do músico cego. Para esta estudiosa dos

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músicos do norte da Índia, no império Mughal (c. 1658 a 1858), osmúsicos profissionais da maioria das sociedades possuem um statuslimítrofe. Considera que a ocupação do músico é ao mesmo tempouma profissão de serviço e de trabalho cultural. O capital cultural pro-veniente do produto de sua labuta – sua música – permite aos músi-cos atravessar para espaços de status mais elevados, para se relaciona-rem em pé de igualdade com seus patronos, e no momento daperformance, é possível exercer poder sobre eles. Para aqueles que maisse destacam, essa mudança de lugar social poderá se tornar permanen-te. Mas a autora alerta que, em muitas sociedades, não interessa aospatronos permitir aos músicos escapar de seu lugar nas bordas e, paramantê-los subservientes, são capazes de utilizar sanções sociais.

A discussão desenvolvida por Brown sugere que, de um lado, osmúsicos cegos ficam muito mais vulneráveis às sanções sociais que osmúsicos videntes, encontrando ainda mais dificuldade para conseguirque o seu capital cultural seja reconhecido como um bem simbólico, ede outro, ao menos nas sociedades que professam o cristianismo, a mo-eda de troca talvez não seja propriamente a música. A performancemusical do deficiente oferece ao público a oportunidade de admirar aespantosa capacidade que o cego tem de superar a sua condição, decompensar o seu defeito, enquanto se sente satisfeito por fazer o bem,dando uma “ajudinha”; assim redime sua própria culpa e vacina-se con-tra a possibilidade de vir a se tornar deficiente (Gilman, 1994).

Retratos de cegueira

O presente estudo é um desdobramento de um levantamentoimagético desenvolvido a partir da pesquisa “Retratos de deficiência edoença mental: intersecções da educação especial e da história da arte”,que teve como objetivo mapear retratos de deficiência e doença mentalna história da arte, para investigar raízes do preconceito em obras de arteocidental. Partiu-se da premissa de Gilman (1994) de que os artistas ex-pressam estereótipos coletivos vigentes na sociedade, mas que estas ima-gens consolidam as atitudes perante a deficiência, estabelecendo um mo-vimento iconográfico de escritura e leitura de sentidos visuais.

Ao analisar as representações da deficiência visual em obras dahistória da arte, o pesquisador logo se dá conta do grande desafio que

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o artista enfrenta para mostrar que o seu tema é a cegueira, já que o“não ver” é ausência de função, uma abstração, não um traço físico de-finido. O desenhista ou pintor, então, lançará mão de alguns sinaisconstituídos por artistas que estabelecem uma tradição iconográficapara auxiliar o público na leitura da sua mensagem. Em se tratando dedeficiência física, há muitos sinais pictóricos disponíveis ao artista. Ca-deiras de rodas, muletas, tutores ou suportes amarrados às pernas, per-na de pau, membros mecânicos, próteses, bengalas, membros ausen-tes, deformidades e outros elementos são fáceis de identificar.

Para representar a cegueira numa imagem de natureza visual, noentanto, a dificuldade é maior. Os olhos são pequenos, meros detalhesnuma pintura; um olhar ausente, vago, pode ser equivocadamente in-terpretado como alguém com pensamento distante, em vez de alguémque não enxerga. Elencamos diversas soluções utilizadas pelos artistasnos seus retratos de cegos que foram constituindo uma tradiçãoiconográfica da cegueira, de tal forma que o público fosse aprendendoa ler esses detalhes em desenhos, pinturas, gravuras e esculturas.

Para começar, o título da obra pode conter referência explícita àcegueira ou pistas a serem confirmadas na própria imagem. Algumasobras não figurativas modernas e contemporâneas do século XX, como apintura de Max Ernst “Nadador cego” ou a escultura de LouiseBourgeois “Um cego guiando o outro”, sem a menção de cegueira notítulo, seria impossível ao público, tanto aos leigos quanto aos especia-listas em arte, identificar a representação da deficiência visual.

Muitos artistas contam com os subtextos para auxiliar os leitoresda imagem na interpretação dos sentidos. Quando o público sabe dacegueira de alguns personagens mitológicos, de figuras bíblicas e depersonagens históricos, este conhecimento prévio servirá de suportepara a interpretação da obra. Os artistas medievais, preocupados queforam com a leitura das imagens que ilustravam (iluminavam) textosreligiosos de toda natureza, mostraram-se muito inventivos na criaçãode pistas visuais para a leitura das imagens, as quais foram revisitadaspor muitos artistas ocidentais que se seguiram. Dessa forma, colabora-ram com a construção de uma iconografia sobre a cegueira.

No decorrer da história da arte, vemos a cegueira representadafigurativamente por meio dos seguintes elementos:

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• olhos fechados/abertos após a cura; olhos esbranquiçados, ór-bita vazia, olhos feridos ou disformes, olhos de vidro, direçãodo olhar assimétrico, olhar ausente, vazio;

• uso de vendas, de óculos escuros, de lentes grossas, de recursosópticos;

• indicação pelo apontar, mostrando ou tocando os olhos;

• pistas posturais, como a cabeça erguida, braços estendidos di-ante do corpo, mão aberta varrendo o ar, passo inseguro, comum pé à frente, mapeando o terreno a procura de obstáculosou buracos;

• corpo prostrado, figura deitada na cama, figura sentada deso-cupada ao lado de outra pessoa trabalhando a seu lado;

• presença de bengala, vara ou instrumento musical;

• tamanho das mãos proporcionalmente aumentadas; mãos to-cando, sentindo algo;

• presença de auxiliar, guia, criança ou cachorro levando o cego;

• presença de tigela ou chapéu para o público colocar moedas.

Analisando as obras no seu conjunto, constataram-se raros exem-plos de deficientes mostrados como pessoas capazes de fazer parte domundo do trabalho. Algumas exceções merecem menção. Artistas comdeficiência pintaram seus auto-retratos (Francisco de Goya – surdo;Henri de Toulouse-Lautrec – deficiente físico; Frida Kahlo – deficientefísica) e pintaram representações idealizadas de personagens históricosque tiveram papel destacado na sociedade. Retratos do filósofo Homero(cego), do general romano Belisário (cego) e do poeta inglês Milton(cego) são temas recorrentes. Também há diversas representações demilitares incapacitados, que se tornaram deficientes por mutilação nocampo de batalha, no entanto estes geralmente aparecem como men-dicantes, aposentados ou inúteis.

Cegos músicos

As representações de músicos cegos na história da arte atraves-sam tempos e espaços. Em nosso levantamento, encontramos 25 obras

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sobre tal temática. Na impossibilidade de reproduzi-las, um breve su-mário poderá auxiliar o leitor a se situar em meio ao conjunto de re-presentações.

São vários os instrumentos representados, com algumas mençõesnos títulos sobre o canto como acompanhamento. Nos tempos mais dis-tantes, na arte do Egito e da Mesopotâmia, a harpa é a preferência, en-quanto a viola de roda (hurdy-gurdy), instrumento de corda que soa comouma gaita de fole e funciona girando uma manivela, é comum nas obrasda Idade Média até o Barroco. Surgem no século XVII cegos tocando ins-trumentos de corda (violão, violino e viola da gamba); o acordeão faz suaprimeira aparição nas mãos de uma cega música no Romantismo. Já noséculo XX, vemos representações de blues e jazz, com músicos negros to-cando pandeiro e violão na pintura de William Johnson e piano, sax,trompete e bandolim em “Jazz Wall”, de Marisol.

A maioria das obras retrata cegos solitários, mas alguns trazemuma criança como acompanhante, cuja função é guiar o deficiente oucoletar moedas num chapéu ou tigela. Também há cães em cena, comfunções parecidas às das crianças, em desenhos como a iluminura me-dieval e a gravura em metal de Rembrandt. Os conjuntos apresentamdiversas composições: grupos de músicos, dentre os quais um instru-mentista é cego; duplas de cegos; grupos em que todos os integrantessão cegos.

O público é retratado em poucos trabalhos. A obra mais conheci-da, “O violonista cego” de Goya (Museo del Prado em Madri), traz umacena bucólica onde o músico cego é o centro das atenções, alegrando oconvívio social do grupo que se aproximou para ouvi-lo. Outros traba-lhos europeus trazem o músico como “vendedor de canções”, tocandopara um público restrito em residências humildes. Nos séculos XVII, XVIII

e XIX, o violino, a viola e o violão são os instrumentos preferidos peloscegos ambulantes, tocados muitas vezes a céu aberto ou em espaços do-mésticos. É interessante notar que as representações do final do séculoXX mostram que os instrumentos mudaram, a mendicância ficou me-nos escancarada, mas o músico cego ainda é representado nas bordasda sociedade.

Analisando os trabalhos numa dimensão cronológica, pudemosperceber alguns fatores de relevância para a nossa discussão, principalmen-te sobre as representações do músico cego em condições sociais diversas.

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Harpistas cegos retratados na Arte Antiga

Na Arte Antiga egípcia, assíria e mesopotâmica, as representa-ções encontradas de cegos tocando harpa aparecem predominantemen-te na arte mural, como detalhes em baixo-relevo em pedra decorandoconstruções públicas. Como exceção, temos uma placa em terracota daMesopotâmia que sobreviveu apesar de sua fragilidade (hoje no BritishMuseum) e um harpista num mural pintado no interior do túmulo doescriba e sacerdote Nakht, no Cemitério dos Nobres em Tebas, no Egi-to. A identificação da cegueira é difícil na maior parte das imagensantigas, devido ao tamanho das reproduções digitais, porque o detalhedisponível on-line não permite ver outras pessoas na cena que serviri-am de comparação. Sabemos que os harpistas são cegos pela descriçãofornecida nas fontes de busca (como o Art Resource/New York) e emobras de referência descritivas das obras em questão.

O harpista cego do mural egípcio faz parte de uma cena festivaonde moças dançam, enquanto um banquete é preparado. Os egípciosacreditavam que a morte seria uma etapa alterada da vida, daí a necessi-dade de prover tudo que fosse necessário para o conforto e bem-estar domorto durante toda a eternidade. Representações em tamanho menor eimagens bastavam para cumprir tal função; não era preciso sepultar ob-jetos e pessoas reais dentro das tumbas, segundo Brock (2006). A pre-sença de um harpista cego pintado na parede de calcário da tumba deNakht sugere que um músico cego trabalhava na corte deste nobre. Aoincluir sua imagem no mural, pretendia-se que a sonoridade da harpa oacompanhasse na nova etapa de sua viagem após a morte.

Já o harpista esculpido no baixo-relevo fixado nas paredes do Pa-lácio de Nineva nos jardins de Senaqueribe provavelmente está maisrelacionado ao gênero apoteótico militar do que ao ritualístico religio-so. Esse músico faz parte do friso decorativo que cobria boa parte dasparedes internas e externas do palácio. Senaqueribe mandou esculpirdois tipos de inscrições para enfeitar o edifício: 1) desenhos decorati-vos de procissões cuja intenção era enaltecer os seus feitos e 2) compo-sições narrativas, sobre as várias campanhas militares do rei.

Diferentemente do harpista egípcio, que trabalha ajoelhado, emposição estável, a figura assíria é ambulante. Produz música enquantomarcha. É interessante notar que, em muitas obras encontradas na Era

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Cristã, o cego músico aparecerá tocando de pé ou como ambulante,portando seu instrumento consigo, o que facilita o encontro de novospúblicos de um lado, mas, de outro, exige um guia, pois ele não podeusar uma bengala se caminha enquanto toca seu instrumento.

Cegos instrumentistas e a viola de roda

Na Idade Média, aparece um novo instrumento que não se ouvemais na atualidade: a viola de roda, ou hurdy-gurdy em inglês. SegundoGreen (1995), uma certa confusão decorre do fato de que o mesmotermo hurdy-gurdy se refere a dois instrumentos: “primeiro existe o ór-gão mecânico, que tem um mecanismo muito parecido com a pianola,

Figura 1Anônimo: Um harpista nos jardins de Senaqueribe

Baixo relevo em pedra do palácio de Nínive, século VII a.C. Neoassírio

Fonte: British Museum, Londres, Reino Unido).Foto: Erich Lessing/Art Resource, NY

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e era tocado no começo do século por imigrantes que pediam esmolascom seus macacos e canecas de latão nas esquinas das cidades america-nas”. No Brasil, conhecemos este instrumento como o realejo; os fran-ceses o chamam de orgue de barbarie.

Menos conhecido é um instrumento cujo som é produzido por umaroda coberta de resina que esfrega várias cordas, assim como o arco deum instrumento de cordas. A roda gira por meio de uma manivela. Al-gumas cordas têm uma função melódica e outras fazem a base, dando aoinstrumento uma sonoridade parecida com uma gaita de fole. (Green,op. cit., p. 1)

Na França, este instrumento é denominado de vielle; em portu-guês o termo usado é viola de roda. O instrumentista aprendia a contro-lar o vibrato da roda nas cordas para criar uma sonoridade expressiva quelembrava o canto. Não é possível variar a pressão da roda sobre as cor-das, como se faz passando o arco num instrumento de cordas como oviolino ou o violoncelo, de modo que a expressividade é conseguida alte-rando a velocidade com que a manivela é virada (Green, 1995).

Figura 2Jehan de Grise e ateliê, Bas-de-page – Músicos (e músico cego com seu cachorro e

tigela de esmolas toca uma viola de roda) – 1338-1344 dCBodleian MS 264 part I fol. 180v. Iluminura do “Romance de Alexandre” em

pergaminho

Fonte: Bodleian Library, Oxford, Reino Unido.

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Na iluminura de bas-de-page do manuscrito “Romance de Alexan-dre”, do acervo do Bodleian Library, o cego tocador de viola de roda fazparte de um grupo de músicos de rua. A cegueira é indicada pela ausên-cia de olhos e pelo cachorro que leva sua tigela para juntar as esmolas.

Segundo Green (1995), nenhum instrumento musical passou poruma perda de status tão marcante quanto a viola de roda. No século XI

na Alemanha, era usada em música sacra. No século seguinte, o instru-mento migrou para a corte, onde fez sucesso entre os nobres. Mas daíem diante, começou a perder prestígio. “Já no século XIV, era associada àsclasses baixas e no século XV havia se associado aos mendigos cegos” (idem,ibid., p. 1). Segundo o autor, como a cegueira era vista com repulsa, porser concebida como manifestação física resultante de uma cegueira mo-ral, a viola de roda tornou-se um instrumento desprezado que serviriaapenas para os mendigos deficientes.

Figura 3Francisco Herrera o Velho (c.1576-1656) – Cego tocador de viola de roda, 1640.

Óleo sobre tela, 71,5 x 92 cm

Fonte: Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria. Foto: Erich Lessing/ArtResource, NY

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A obra de Herrera expressa claramente esta situação. O cego mú-sico maltrapilho está acompanhado de um rapaz que segura sua bengalae estende o chapéu para coletar as esmolas. Os semblantes de ambos es-tão tristes e desesperançosos, coerentes com as tonalidades escuras, compredomínio de marrom. O músico está tocando ou está em compassode espera? Nada no quadro sugere o clima de alegria que a música cos-tuma despertar nas pessoas.

Sentidos expressos nos retratos de músicos cegos

Os temas miséria e mendicância são constantes nos retratos dos ce-gos músicos da Era Cristã. Rembrandt van Rijn, Pablo Picasso, Georgesde La Tour e vários outros utilizam a coloração sombria, a composiçãode figura em primeiro plano, com a postura de ombros caídos, a expres-são triste do rosto, para falar da condição precária desta figura urbana,cujo trabalho é ao mesmo tempo ganha-pão e manifestação de súplica.

A dualidade esperança desesperança também é expressa simbolica-mente, principalmente a partir dos artistas do Romantismo. JohnEverett Millais, pintor romântico inglês, desenvolveu diversos estudos so-bre a menina cega nos quais a temática em questão ganha uma dimen-são moralizante, de lição de vida.

No famoso quadro de Millais, a jovem cega está com sua sanfo-na no colo; a cabeça erguida permite que seu rosto tranqüilo seja ilu-minado pelo sol que saiu por detrás das nuvens, agora que a chuva pas-sou. A pista é o arco-íris no alto do quadro sobre um céu aindaescurecido pela chuva que agora se distancia. A criança que acompa-nha a cega se volta para olhar para este sinal de esperança. Mas a cegatem outros meios de saber que o sol saiu, que a vida pode ser boa, poisela sente o calor no próprio rosto.

Abordando a cegueira como uma situação possível de ser supe-rada, Millais inclui elementos para apresentar a idéia da compensaçãopela perda da visão: a luz e o calor do sol que tocam o rosto da jovem,o signo da capacidade musical indicado pela presença da sanfona. Cer-tamente o artista não fala só da condição de deficiência. Como pintordo Romantismo, sua mensagem tem um teor mais abrangente, e pre-tende atingir a sociedade de maneira geral. Millais utiliza a cegueiracomo metáfora para falar de quaisquer infortúnios e da possibilidadede superação, da chegada de tempos melhores.

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Refletindo sobre esta mesma temática a partir da figura do mú-sico que não pode ver, George Watts trabalha explicitamente com o re-vés deste tema. Numa pintura sombria denominada de “Esperança”,Watts coloca uma figura feminina de olhos vendados, com uma túnicaque revela sua condição social desfavorecida, sobre um globo. Sua har-pa não pode soar, porque as cordas romperam. É interessante que nummesmo signo, música e cegueira se associam para abordar esperança oudesesperança. Ambos os quadros foram favoritos da sociedade inglesaquando foram expostos no século XIX.

Desenvolver-se como músico afirma a validade do conceito decompensação da perda visual. Esta é a idéia que alinhava todas as obras

Figura 4John Everett Millais (1829–1896) – Menina cega, 1856

Óleo sobre tela, 82,5 x 62,2 cm

Fonte: Birmingham Museums & Art Gallery,Birmingham, Reino Unido

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encontradas que abordam a temática do músico cego: quem não enxer-ga, verá com outros olhos, os olhos de dentro. Para quem perdeu a visão,a audição será seu caminho de luz.

Ninguém acentua essa representação da cegueira com maior elo-qüência que Ben Shahn. A sonoridade da música produzida pelos defici-entes representados não pode ser traduzida pelos elementos de linguagemvisual e composição disponíveis para os artistas plásticos, então outros re-cursos são criados para falar das outras dimensões sensíveis do homem.

Figura 5Shahn, Ben (1898-1969) – O cantor cego, 1945

Têmpera, 64,7 x 97,1 cm, Coleção Particular

Foto: Scala/Art Resource, NY; Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008. © VAGA, NY

Ben Shahn, pintor e litogravurista de família imigrante lituana quepintou nos Estados Unidos em meados do século XX, transmite a idéiada compensação ao exagerar a dimensão das mãos do cantor cego. Osdedos sobre o teclado e os conjuntos de botões de seu acordeão revelama sua familiaridade com o instrumento e o seu domínio técnico. Con-trasta com a expressão de competência o fundo da pintura, onde árvoresmortas e secas no horizonte a distância recolocam a idéia de penúria. Osmúltiplos sentidos da figura da sequidão permitem ao intérprete pensar

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Músicos cegos ou cegos músicos...

nos olhos que secaram ou na sociedade que relega às margens aquelesque perderam alguma função, mesmo quando demonstram que são ca-pazes. Conhecendo Ben Shahn, militante, comunista “de carteirinha”,que utilizou sua arte para realizar críticas sociais ao capitalismo, defensorda classe trabalhadora, dos pobres, negros e excluídos, desiludido com osonho americano, nossa aposta é que ele utiliza a terra desgastada do fun-do para enfatizar a idéia do cego músico cantando nas bordas da socie-dade. Como explica Dijkstra (2003, p. 117):

A obra dos expressionistas americanos é impulsionada pela compaixão eempatia, pelo respeito pela dignidade dos derrotados, por uma compre-ensão de que as experiências pessoais, mesmo daqueles entre nós que sãomenos favorecidos, ajudam a definir as verdadeiras qualidades da socie-dade na qual vivemos.

Figura 6William H. Johnson (1901-1970) – Músicos cegos (ou “Músicos de Rua”),

circa 1940-45.

Foto: Smithsonian American Art Museum, Washington, DC/Art Resource, NY. © Copyright

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263Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008

Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

Lucia Reily

As duas últimas obras comentadas também apresentam o músicocego na marginalidade, mas os elementos tristeza e dependência se dissi-pam em ambos os trabalhos – uma pintura e uma escultura. Coinciden-temente, o gênero representado nessas obras é da família do blues e dojazz. Músicos – cegos – negros – pobres. Por todas essas condições, essesmúsicos são vulneráveis ainda, mas de certa forma tiveram êxito na tra-vessia para espaços de status mais elevado, ao menos durante a perfor-mance, conforme Brown (2007). Não se trata de uma conquista indivi-dual; estes músicos fazem parte de uma minoria de resistência negra dosul dos Estados Unidos que conseguiu o reconhecimento do valor do seu“capital cultural” na sociedade de brancos que os perseguiu e injustiçou.

Figura 7

Marisol (Marisol Escobar) – Parede de Jazz, c. 1962Papel, tinta e objetos encontrados em madeira, 241.3 x 271.8 x 35.6 cm

Coleção Museum of Contemporary Art, Chicago, doação parcial de Ruth Horwich

Foto: Museum of Contemporary Art, Chicago; Licenciado por AUTVIS, Brasil,2008 © VAGA, NY

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Pela mobilização política e social e pela qualidade musical, a vocalizaçãoprovocativa e a característica fugidia das improvisações que escapavam aqualquer dominação por partitura – assim sobreviveram os músicos, as-sim mudaram a história da música popular americana, com repercussõesinternacionais. A este contexto se somaram os cegos músicos, que ali pu-deram mudar de papel. Os músicos de Marisol tocam num bar e têmaté um piano!

Para finalizar, um alerta. Se este artigo termina em “tom maior”,mostrando que as condições de trabalho dos músicos cegos representa-das por artistas visuais da Era Cristã evoluíram, não nos deixemos enga-nar. As concepções de dependência, incapacidade e supercompensaçãopela perda da visão ainda permeiam as representações sociais da defici-ência visual. As precárias condições de vida continuam prejudicando aspossibilidades de acesso de crianças cegas à educação em geral e à educa-ção musical em específico, perpetuando a mendicância de um lado e oassistencialismo do outro – lugares sociais que coloriram a visão da soci-edade e dos artistas plásticos sobre a figura do cego músico durante todaa Era Cristã.

Recebido em março de 2008 e aprovado em julho de 2008.

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266 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008

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O PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CEGUEIRA CONGÊNITA E SUA INTERFACE COM A RELAÇÃO FRATERNA: ESTUDO DE DOIS CASOS BAZON, Fernanda Vilhena Mafra∗ – UEL e USP MASINI, Elcie Aparecida F. Salzano – USP GT-20: Psicologia da Educação

Introdução

A inclusão escolar é um tema de grande importância para a educação nacional ao

ter sido adotada a inserção do indivíduo com deficiência nas escolas regulares. Estudos

sistematizados sobre este tema poderão auxiliar educadores, coordenadores e familiares

a ampliarem seus conhecimentos sobre o que pode favorecer o processo de participação

escolar e social da criança com deficiência.

Este trabalho focaliza a inclusão escolar de duas crianças com cegueira

congênita e o papel desempenhado por sua irmã gêmea neste processo, este tema

contempla diversas questões visto que a vida escolar é de grande importância para o

desenvolvimento de um indivíduo e propicia a oportunidade para refletir sobre itens

diversos. Que situações favorecem a inclusão escolar de crianças com cegueira? Como a

companhia do irmão sem deficiência influencia a inclusão? A inclusão, influencia a

relação fraterna? Como esses irmãos se sentem ao freqüentar a mesma escola? Como

esses irmãos se sentem ao freqüentar a mesma classe?

A inclusão escolar representa valores simbólicos importantes que dizem respeito

à igualdade de direitos e oportunidades educacionais para todos os indivíduos, mas

ainda encontra sérias resistências que se referem principalmente ao acesso de todos os

alunos à escola comum. (Cf. BRASIL, 2001).

Segundo Mazzotta (2002) é de grande importância para todos os indivíduos

profissionais ou não, estar atento à questão da inclusão, não apenas escolar, mas

também no âmbito mais amplo que compreende a sociedade. Referindo-se à integração,

movimento que teve início na década de 70 e visava criar classes especiais em escolas

regulares para atender a crianças com deficiência em período integral ou parcial de

forma concomitante à sala comum (Cf. ANGELOTTI, 2004), Mazzotta (2002, 2003)

afirma que este movimento já vem sendo entendido como algo ultrapassado, falando-se

∗ Instituição de Vinculação dos Autores: Fernanda Vilhena Mafra Bazon (Universidade Estadual de Londrina / Universidade de São Paulo). Elcie F. Salzano Masini (Universidade de São Paulo). E-mail de contato: [email protected]

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Page 173: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

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hoje em inclusão. Chama a atenção ainda para a imprecisão conceitual que envolve a

utilização do termo integração e inclusão, que ora são empregados com o mesmo

significado, ora dispostos em contraste ou ainda propondo a superação da integração

pela inclusão. Uma das várias conseqüências desta indefinição é a contribuição para a

cisão dos profissionais que defendem a integração e dos que defendem a inclusão, como

se o sentido da educação em si não fosse a busca de integração ou inclusão social. Para

este autor a inclusão “é a base da vida social onde duas ou mais pessoas se propõem a,

ou têm que, conviver; já que muitas vezes o convívio não depende da vontade

individual. E conviver implica a presença de duas ou mais pessoas” (MAZZOTTA,

2002 p. 10).

Na Conferência Mundial que ocorreu em Jomiten (Tailândia) em 1990,

representantes de diversos países assinaram a Declaração Mundial sobre a Educação

para Todos e Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem,

comprometendo-se a buscar a inclusão de todas as crianças na escola, a partir do

respeito à diversidade e da garantia do ensino básico universal e de qualidade. Mazzotta

(2002) afirma que nesta declaração além da educação ser reconhecida como direito

fundamental de todos, foi explicitado o sentido dado às necessidades básicas de

aprendizagem, que compreendem os instrumentos essenciais para a aprendizagem e os

conteúdos indispensáveis para a sobrevivência do indivíduo e seu desenvolvimento

visando à participação ativa na vida social.

Porém a assinatura deste documento garante a inclusão escolar? Todas as

crianças encontram-se realmente na escola? Se sim, como está ocorrendo o processo

educacional? Se não, quem são elas e porque evadiram ou foram excluídas do ambiente

escolar?

Diversos organismos internacionais preocuparam-se em discutir o direito à

educação para todos, em especial nesta conferência na Tailândia em 1990 e na

Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em 1994 na Espanha, na

qual foi elaborada a “Declaração de Salamanca”. Nesta última reunião, foi reafirmado o

direito de pessoas com deficiência à educação (Cf. MARTINS, 2003).

A escola para todos pressupõe que a educação especial ocorra de forma

integrada à educação regular. Sendo assim, a escola torna-se aberta à diferença e busca

atender às necessidades de todos os alunos ao invés de excluir os que requerem práticas

e atenção diferenciadas (Cf. JIMÉNEZ, 1997).

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O modelo de escola para todos pressupõe uma mudança de estruturas e de atitudes e a abertura à comunidade; deve mudar o estilo de trabalho de alguns professores que deverão reconhecer que cada criança é diferente das outras, tem as suas próprias necessidades específicas e progride de acordo com suas possibilidades (JIMÉNEZ, 1997, p. 21).

Quanto ao conceito de deficiência visual, a partir da resolução adotada pelo

Conselho Internacional de Oftalmologia em Sidnei, Austrália, em 20 de abril de 2002, e

considerando a falta de clareza sobre a correta utilização do termo cegueira que originou

confusões acerca de sua prevalência e incidência, ficou definida a seguinte definição:

Cegueira – somente em caso de perda total de visão e para condições nas quais os

indivíduos precisam contar predominantemente com habilidades de substituição da

visão (Cf. CONSELHO BRASILEIRO DE OFTALMOLOGIA, 2002).

A cegueira congênita por sua vez, pode ser entendida como aquela que se

manifesta no nascimento ou logo após a ele, estando geralmente relacionada com

pigmentação difusa atípica, diminuição dos vasos da retina e atrofia do nervo óptico

(Cf. REY, 1999; TABER, 2000).

Ouvir pessoas com deficiência visual pode ajudar e nortear a compreensão das

mesmas, não mais a partir da falta ou prejuízo da visão, mas, sim, do uso dos sentidos

que propiciam seu contato e apreensão do mundo. Sob essa perspectiva, nessa

investigação os dados foram analisados a partir do que as criança cegas realizaram em

diferentes situações sem comparação entre crianças com deficiência visual e videntes,

respeitando assim a singularidade das primeiras.

Pode-se assinalar que a não comparação entre crianças com deficiência visual e

videntes é um ponto relevante desta pesquisa. É significativa esta observação porque, a

escola muitas vezes torna-se um ambiente que propicia a comparação entre crianças e

sob a ótica da inclusão escolar está o respeito à diferença. A comparação entre as

habilidades adquiridas por uma criança com deficiência visual e uma vidente ao fazer

uso do referencial da vidente, acarretará uma interpretação pautada no déficit, no que

falta à criança com deficiência visual. Esta comparação pode ser ainda maior quando

um irmão sem deficiência estuda na mesma escola, atribuindo qualquer falha,

dificuldade ou atraso à deficiência visual. O estudo do que a criança cega realiza em

diferentes situações e momentos estará considerando suas possibilidades e maneiras

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próprias de aprender. Esta pesquisa, ao focar-se no respeito à diferença, pode trazer

contribuições para a atuação dos profissionais de educação e saúde que trabalham com

pessoas com deficiência visual.

Quanto à relação entre irmãos, pode-se destacar que em nossa sociedade, a

família ocupa um lugar de extrema importância no desenvolvimento e na vida dos

indivíduos. As relações entre irmãos são parte significante do sistema familiar e

interdependente das outras relações presentes nesse sistema.

Vash (1988), ao falar da família com um membro com deficiência, assinala que

a descoberta da deficiência quebra o equilíbrio homeostático da unidade familiar,

havendo a necessidade de uma reestruturação dos papéis atribuídos aos membros da

família. Isso requer que as expectativas, os sonhos e as prioridades do grupo familiar

sejam, então, revistos. Todos vivenciam a perda, que provoca um choque e ainda o

medo das conseqüências futuras que a deficiência pode trazer.

A influência que uma criança com deficiência exerce sobre seus irmãos foi

menos estudada do que com relação aos seus pais. Freqüentemente, as necessidades dos

irmãos de uma criança com deficiência são negligenciadas por pais e professores.

Irmãos mais novos sem deficiência, muitas vezes, relutam em ir conversar com seus

pais sobre seus problemas e sentimentos. Seus problemas são, geralmente, deixados de

lado devido àqueles apresentados por seus irmãos com deficiência. Irmãs de crianças

com deficiência aparentemente são mais vulneráveis a dificuldades emocionais do que

irmãos. Os pais, com freqüência não estão aptos para ajudar os irmãos normais a

prepararem-se para o futuro em relação ao seu irmão com deficiência. Na maior parte

das famílias, as necessidades da criança com deficiência são colocadas em primeiro

plano (Cf. VADASY et al., 1984).

Dunn (1985) corrobora com esta afirmação, asseverando que quando um dos

irmãos possui uma deficiência, o irmão saudável tende a assumir responsabilidades que

não teria, caso a deficiência não estivesse presente. Especialmente quando se tratam de

irmãs mais velhas, elas têm a responsabilidade de tomar conta de seu irmão com

deficiência, e essa responsabilidade, pode provocar graves conseqüências para as

crianças normais. Estas crianças são, particularmente, vulneráveis a problemas

emocionais. Para que se compreenda quais as conseqüências para os irmãos sem

deficiência é necessário o entendimento de como a família, como um todo, lida com o

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stress de ter um membro com deficiência. De qualquer forma, ter um irmão com

deficiência, certamente, causa algumas dificuldades, e as crianças precisam de alguma

forma carregar o estigma de ter um irmão “diferente” que pode comportar-se de forma

estranha aos padrões habituais. Esta autora frisa, ainda, que pouco se sabe do

relacionamento entre irmãos quando um deles apresenta cegueira ou surdez.

Villela (1999), em uma pesquisa sobre irmãos de crianças com deficiência

visual, refere-se ao grande sofrimento psíquico causado pela repressão da hostilidade e

pelo afastamento das reais necessidades de afeto da própria criança. Conclui, então, que

essas crianças fazem parte de uma população de risco no que se refere ao sofrimento

emocional. Esses dados diferem dos encontrados por Powell e Ogle (1992) referentes

aos mecanismos psíquicos utilizados por essas crianças com a finalidade de preservar a

relação amorosa com o irmão com deficiência, o que estes autores interpretam como

evidência de níveis elevados de altruísmo, empatia e responsabilidade nos irmãos de

crianças com deficiência.

A partir desta breve exposição teórica, percebe-se que tanto a relação entre

irmão quanto sua interface com a inclusão escolar que já vem ocorrendo nas escolas

brasileiras necessitando de subsídios para auxiliá-las, nota-se a carência de maiores

estudos, apontando assim a relevância deste trabalho.

Foi realizado um levantamento bibliográfico nas Bibliotecas do Centro Latino

Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME) e no banco de

dados eletrônico (Dedalus) da Universidade de São Paulo (USP) referente ao

relacionamento de irmãos e foi encontrada uma dissertação de mestrado sobre a relação

entre irmãos de crianças com deficiência visual, um artigo científico sobre o mesmo

tema, um livro e dezenove artigos científicos sobre a relação entre irmãos sem

deficiência. Destes trabalhos apenas dois eram de pesquisas realizadas no Brasil. Bank e

Kahn (1982), McKeever (1993) e Villela (1999) apontam para a mesma questão ao

enfocarem a pouca quantidade de trabalhos acerca da relação fraterna. Cabe assinalar

que não foi encontrado nenhum trabalho que tenha como objetivo a compreensão da

inclusão escolar de crianças com cegueira e como um irmão sem deficiência que estude

na mesma escola pode ou não colaborar para a mesma. A pouca literatura encontrada a

respeito dificulta e ao mesmo tempo estimula o questionamento sobre a importância da

relação fraterna na vida dos indivíduos com deficiência visual e para a inclusão dos

mesmos em ambiente escolar.

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Além disto, como apontado anteriormente, a influência que a criança com

deficiência exerce sobre seu irmão foi menos estudada do que com relação aos seus

pais. Uma criança doente ou com alguma deficiência necessita de atenção e cuidado

especial, e, diversas vezes, seus irmãos saudáveis são chamados a ajudar ou mostrar

consideração especial devido à condição de seu irmão com deficiência (Cf. COLONNA

& NEWMAN, 1983).

A originalidade e relevância desta pesquisa está no pioneirismo de seu tema:

focalizar e buscar compreender a inclusão de duas crianças com cegueira frente a sua

relação com a irmã gêmea sem deficiência com quem estuda na mesma escola e na

mesma classe.

Objetivos:

Buscar compreender a concepção, sobre a inclusão escolar, de duas crianças

com cegueira congênita e de suas mães, ressaltando o papel que a irmã sem deficiência

desempenha no processo de inclusão. E ainda, compreender como as irmãs se

comportam na escola, se compartilham situações de aprendizado e lazer ou não.

Método:

Esta pesquisa foi pautada modalidade da pesquisa qualitativa voltada para a

descrição de um fenômeno buscando desvelar seu sentido. Bogdan e Biklen (1982)

afirmam que a pesquisa qualitativa encontra no ambiente natural uma fonte direta de

informações, sendo o pesquisador seu principal instrumento. Pressupõe, assim, o

contato prolongado e direto do pesquisador com o ambiente e a situação investigada.

Participantes:

Foram participantes da pesquisa:

• Duas crianças com cegueira congênita que possuíam irmãs gêmeas sem

deficiência;

• As mães das crianças com cegueira congênita.

Instrumentos:

• Roteiro de entrevistas que contemplavam temas relacionados com o foco da

pesquisa;

• Gravador para registro das entrevistas;

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• Termo de consentimento livre esclarecido, carta de informação à instituição e ao

sujeito de pesquisa.

Procedimentos:

Inicialmente foi realizada uma entrevista com as mães das crianças para

exposição dos objetivos da pesquisa e assinatura do termo de consentimento livre e

esclarecido. Nesta oportunidade também ocorreu a entrevista semi-estuturada com o

objetivo de conhecer a percepção das mães acerca da inclusão de sua filha com cegueira

e qual o papel da irmã sem deficiência neste processo, bem como da dinâmica de

relacionamento estabelecida entre as irmãs.

Posteriormente procedeu-se uma entrevista com as crianças com cegueira para a

coleta de dados sobre sua inclusão escolar e seu relacionamento com a irmã gêmea.

Em seguida a cada entrevista foi feita a transcrição da fala tanto da mãe quanto

da criança.

Resultados:

Neste tópico serão enunciados os resultados do estudo de caso, tanto referentes à

entrevista com a mãe quanto com a criança com cegueira. Cabe destacar que todos os

nomes utilizados são fictícios para assegurar o sigilo dos participantes desta pesquisa.

1. Caracterização dos participantes: identificação pessoal

Quadro 1: Identificação pessoal

Nome Idade

Meio de escolarização

Sexo Mãe Pai Irmãos

Karina (9 anos)

Escola regular. Atendimento especializado.

F Maria (52 anos); do lar.

João (43 anos) coordenador de tráfego da Dersa.

Kelly (16 anos); Karen (9anos) – irmã gêmea.

Luiza (10 anos)

Escola regular. Atendimento especializado.

F Carmem (36 anos); doméstica.

Antônio (37 anos); motorista de ônibus,

Alex (20 anos); Lúcia (10 anos).

2. Entrevista com a mãe:

A seguir serão apresentados os dados referentes à entrevista realizada com Maria,

mãe de Karina e com Carmem, mãe de Luiza. Os dados forma esquematizados em três

tabelas por entrevistada, a primeira com as informações acerca da composição da

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família, a segunda com informações prévias relevantes e a terceira que expõe a

percepção das mães acerca da vida escolar e das atividades de lazer da criança com

cegueira congênita.

1)MARIA

CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

Filhos Pais

Karina (9 anos), cegueira total, sensível à luz.

Causa: retinopatia da prematuridade.

Karen (9 anos), irmã gêmea de Karina.

Kelly (16 anos), irmã mais velha de Karina e

Karen, filha do primeiro casamento de Maria.

Maria (52 anos), separada do primeiro

marido e casada com João; era assistente

social, mas não trabalhava no momento da

pesquisa devido ao cuidado de Karina.

João (43 anos), coordenador de tráfego da

Dersa.

INFORMAÇÕES PRÉVIAS

• Maria engravidou das gêmeas com 42 anos apresentando pressão alta durante a gravidez

o que acarretou no parto prematuro (6 meses de gestação).

• Ambas ficaram na UTI, e Maria acreditava que a cegueira de Karina se devia a isto

• Contou que Karina teve outras complicações além da deficiência visual como, por exemplo,

uma parada cardíaca.

• A retinopatia foi descoberta na alta de Karina do hospital, e já ficou marcada a cirurgia

devido ao descolamento da retina.

PERCEPÇÃO DA MÃE ACERCA DA VIDA ESCOLAR E DAS ATIVIDADES DE LAZER

ESCOLA LAZER

Karina utilizava-se do Braille para ler e

escrever e do Soroban para a matemática.

Freqüentava uma escola regular (estava na

mesma sala de Karen. Maria disse que quando

precisava, a Karen ditava a lição para Karina ou

alguma outra amiga da classe fazia isto).

Na escola, em 2004, Maria disse que

Às vezes quando a Karen e a Karina

brincavam de professora e a Karen era a

professora ela espezinhava a Karina (falava:

“ai sua tonta, você é burra”).

A Karina e a Kelly gostavam de ouvir som e

a Karen gostava mais de desenhar e assistir

televisão (alguns programas a Karen e a

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separaram alguns gêmeos de classe (Karina

disse que iria falar com a professora, pois não

queria ser separada de Karen ao que Maria

respondeu que era importante pensar em sua

independência).

Karen e Karina faziam a lição juntas

(Karina ajudava Karen quando tinha lição de

matemática, especialmente na tabuada).

A Kelly estudou na mesma escola da Karina

até o colegial.

Karina gostavam de assistir juntas, como o

Chaves, e outros programas, como Malhação,

a Kelly também assistia com as duas).

Karen e Karina brincavam muito de

professor ou de encenação (por exemplo de

personagens do Chaves).

A Karina e a Karen tinham tipos de

brincadeira diferentes (a Karen gostava mais

de brincar com boneca e a Karina de

brinquedos que emitiam som).

2) CARMEM

CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

Filhos

Luiza (10 anos), cegueira total, sem percepção

de luz. Causa: retinopatia da prematuridade.

Lucia (10 anos), irmã gêmea de Luiza.

Alex (20 anos), filho do primeiro casamento de

Carmem. Não morava com a mãe e as irmãs.

Pais

Carmem (36 anos), viúva do primeiro

casamento e separada do segundo marido, pai

das gêmeas. Trabalhava como empregada

doméstica.

Antônio, não mantinha relação próxima com

as filhas, era motorista de ônibus.

Freqüentemente estava embriagado ao visitar

as filhas e então era impedido por Carmem de

vê-las.

INFORMAÇÕES PRÉVIAS

• Os pais estavam separados há aproximadamente 10 anos na época da pesquisa.

• Carmem falou que quando descobriu que Luiza era cega já estavam separados e o pai não a

ajudou.

• As gêmeas nasceram de 7 meses e precisaram ficar na UTI, segundo a mãe, tomaram

muitos antibióticos fortes, pois nasceram com icterícia.

• Carmem afirmou que o médico disse que a cegueira de Luiza foi devido ao excesso de

exposição ao oxigênio.

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• Disse ainda que foi erro médico, pois um dos profissionais que a atendeu disse isso a ela, só

que se negou a testemunhar a seu favor em caso de processo, porque não prejudicaria um

colega. Carmem comentou que foi até o juiz e a um advogado, mas que ambos disseram que

ela precisava de provas para entrar com um processo.

• Percebeu o problema visual de Luiza em casa por volta dos 4 meses de idade, quando

levou-a ao médico, este sugeriu que poderiam ser colocados dois olhos de vidro no lugar dos

olhos de Luiza afirmando que não havia possibilidade de recuperação. Carmem não aceitou a

sugestão.

• Contou que não se conformava por ter uma filha com cegueira, falou que a situação era

muito difícil, mas que tinha que aceitar, pois a situação não iria mudar de qualquer forma.

• Disse que chorou muito quando descobriu o problema de Luiza.

PERCEPÇÃO DA MÃE ACERCA DA VIDA ESCOLAR E DAS ATIVIDADES DE LAZER

Escola Lazer

Luiza não estudava na mesma escola de

Lúcia, pois lá não tinha professora

especializada, nem sala de recursos então

não foi aceita.

Luiza estava bem na máquina Braille, mas

tinha dificuldade com a reglete (tinha

problemas com a mão, as mãos dela enchiam de

bolhas que depois ressecavam, formando

feridas).

A professora disse que talvez Luiza precise

repetir de ano.

(Carmem pareceu concordar com a posição da

professora, disse: “não pode é a menina ir para

a quinta série sem saber de nada”)

Lúcia fazia a lição de escola antes que

Carmem chegasse do trabalho, mas Luiza a

esperava (mesmo se Carmem avisasse que ia

demorar Luiza a esperava. As irmãs nunca

faziam a lição juntas).

Irmãs não brincavam muito juntas (Luiza

brincava mais sozinha, pegava uma boneca e

falava sozinha. Lúcia por sua vez andava mais

de bicicleta e brincava de bola, mas não com a

Luiza).

Luiza preferia brincar com um primo do

que com Lúcia (pois, quando elas começavam

a brincar logo brigavam).

A única atividade de lazer que faziam

juntas, segundo Carmem era assistir

televisão.

Só brincavam juntas quando Carmem

levava uma amiguinha delas para passar o

fim de semana (brincavam as três juntas e

mais uma menina que era vizinha deles).

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3. Entrevista com Karina:

Os dados coletados na entrevista com Karina E Luiza foram divididos em três

categorias: identificação da criança, atividades que gostava de fazer com a irmã,

atividades que não gostava de fazer com a irmã e as atividades que não compartilhavam.

1) KARINA:

DADOS DA CRIANÇA

Gostava de:

1) Brincar de carrinho.

2) Ouvir música.

3) Jogar snooker (jogava sozinha).

4) Andar de bengala (tinha duas bengalas uma para sair e outra para todo dia).

5) Ouvir história.

6) Assistir novela (Assistia à novela “América” na época da pesquisa, e comentou que tinha

duas pessoas com deficiência visual na novela e que a mãe da menina não deixava que ela

saísse na rua, deixando-a presa quando saía para trabalhar. Contou que seu tio disse que ia

entrar uma menina com deficiência visual de verdade e que ela ia dançar ballet.).

7) Fazer imitações de pessoas como artistas da TV.

8) Zoar (“não sou uma pessoa séria, gosto muito de zoar!”, referindo-se às brincadeiras que

fazia com a Kelly e o ex-namorado dela).

Não gostava de: brincar de boneca; jogar baralho ou dominó; assistir a novela Como uma Onda.

Pegou pelo colarinho uma menina que riu dela na escola, na aula de educação física e disse a ela:

“quem ri por último ri melhor, sabia? Você faz isso de novo que vai se ver comigo, eu sou

deficiente visual, mas não sou tonta não!”.

Tinha responsabilidades em casa como lavar, enxugar e guardar sua caneca depois de usá-la.

ATIVIDADES QUE GOSTAVA DE

FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)

ATIVIDADES QUE NÃO GOSTAVA DE

FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)

1) Brincava com a Karen que eram

adolescentes (na brincadeira namorava

o vizinho e a Karen namorava o irmão

do vizinho, os namorados tinham ainda

um irmão mais novo que: “é um pouco

1) Era brava com as irmãs quando elas

começavam a irritá-la (como, por exemplo,

quando colocavam açúcar na carne que estava

comendo, contou que quando isso acontecia

ela saía e batia a porta de raiva).

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pirralho, mas é bonzinho, né?”).

2) Assistir TV com a Karen (como Will

Smith, Chaves e Caillou).

3) Cantar e zoar com a Kelly e o ex-

namorado dela. Disse que, às vezes,

zoava a Karen e a chamava de ganso ou

caniço e ela não reagia: “ninguém faz

nada para mim não, não faz”.

4) Assistir a novela Laços de Família

com as duas irmãs.

5) Comentou que seus amigos eram os

mesmos da Karen e que todos ficavam

juntos na escola e disse que tinha

amigos com deficiência visual e que eles

eram amigos da Karen também.

6) Na segunda feira quando ela ia para a

instituição de atendimento

especializado, a Karen assistia ao

Chaves para contar para ela depois.

2) Não gostava de brincar com a Karen de

criança (sem ser de adolescente, mas disse

que a Karen também não gostava e que

brincavam mais de ser adolescente).

3) Não gostava quando a Kelly falava para que

ela fosse cuidar de sua vida (isso acontecia

quando Karina falava algo que a Kelly não

gostava).

4) Preferia ter só a Kelly de irmã (disse que a

Karen era muito chata e que as pessoas

confundiam as duas; disse que até a mãe, às

vezes, as confundiam e que isso era chato.

Falou que não eram tão parecidas, mas que

tinha gente que achava).

ATIVIDADES QUE NÃO COMPARTILHAVA COM A IRMÃ (AO)

1) Não brincava com a Kelly porque ela não gostava muito e também não gostava de suas

amigas, tirando seu ex-namorado.

2) Algumas vezes ela queria assistir malhação e a Karen não; então, cada uma ia para um

quarto.

3) LUIZA

DADOS DA CRIANÇA

Gostava de:

Gostava:

1) dos irmãos, (só não gostava quando eles brigavam com ela, comentou que Alex brigava

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menos do que Lúcia).

2) de assistir teletubes na televisão.

ATIVIDADES QUE GOSTAVA DE

FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)

ATIVIDADES QUE NÃO GOSTAVA DE

FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)

1) Brincar com a Lúcia (mas disse que

durante a brincadeira, a irmã brigava

com ela).

2) Gostava de brincar de mercadinho e

banco (porque assim elas não brigavam

e que só brigavam quando a Lúcia

queria mexer no boneco de Luiza).

3) Assistir TV juntas

4) De ter irmão (“porque, às vezes,

quando ela quer brincar nós brinca,

quando ela quer sair a gente sai”. Iam à

casa da avó juntas, pois esta morava

perto).

5) De brincar de bola com o irmão

(quando ele morava junto com ela.

Comentou que ele dava as coisas para

ela e não brigavam tanto).

6) De andar na rua com o irmão (às

vezes a Lúcia ia junto, mas nem sempre,

pois ele não agüentava carregar as duas

na bicicleta).

1) Brigar (Lúcia brigava quando Luiza estava

cansada e queria parar de brincar. Quando

brigava com Luiza, Lúcia gritava, batia e

jogava suas coisas no chão. Luíza juntava tudo

e pedia que Lúcia não fizesse mais isso, mas,

às vezes, descontava e também batia nela).

2) Quando comiam salgadinhos juntas, pois a

Lúcia não dividia salgadinho ou

refrigerante (contou que pedia e Lúcia dizia

não e aí quando estava no finalzinho Lúcia

resolvia dividir com ela e aí ela não queria

mais porque só tinha um restinho)

3) Quando Luíza tinha alguma coisa ela

emprestava já Lúcia, quando tinha um boneco

ou uma bolsa não emprestava para ela.

4) Não gostava quando o irmão carregava a

Lúcia na bicicleta e não a carregava (até que

um dia a mãe mandou que ele carregasse

também a Luíza e ele carregou).

ATIVIDADES QUE NÃO COMPARTILHAVA COM A IRMÃ (AO)

1) Disse que não brigavam tanto porque a Lúcia quase nunca queria brincar.

2) Luiza brincava sozinha.

Achava que a relação com a irmã era pouco importante para ela, pois Lúcia brigava muito e

falou, então, que tinha hora que cansava das brigas.

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Reflexões sobre os resultados:

Com relação ao caso de Karina, ficou claro o papel que as irmãs representavam

quando: Karina, embora tenha falado que preferia ter apenas a Kelly como irmã, relatou

as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de forma prazerosa. A esse respeito

percebe-se que, independente da presença de ciúme e rivalidade, a criança encarava sua

relação com os irmãos como uma fonte de prazer em algum grau.

Quanto à Luiza, quando questionada sobre como é ter um irmão, verbalizou:

“Ah, é bom, porque as vezes quando ela quer brincar nós brinca, quando ela quer sair

a gente sai. Nós vai na casa da minha vó que mora perto, eu gosto de ir lá. E também

vou na rua com a Lúcia aí nós brinca de castelinho de areia”. Expressou, então,

sentimentos positivos acerca de possuir uma irmã apesar de ter relatado uma relação

conflituosa com a mesma. Estes dados reiteram Furman e Burhmester (1985), que

apontam a extrema importância da relação entre irmãos para o desenvolvimento social

da criança, sendo uma fonte freqüente de companheirismo, ajuda e suporte emocional.

Afirmam ainda que, muitas vezes, irmãos mais velhos cuidam de seus irmãos mais

novos e também podem ser modelos de identificação como fica claro, por exemplo, no

caso da relação entre Karina e Kelly.

A relação de irmãos, por ser a primeira relação intensa entre pares, é um

importante agente de socialização, sendo que esse relacionamento auxilia o

desenvolvimento social. Através da convivência com os irmãos as crianças

desenvolvem suas habilidades sociais que serão, posteriormente, utilizadas em outras

relações (Cf. POWELL e OGLE, 1992). Também aqui, esta afirmação pode ser

corroborada pelas entrevistas de Maria e Karina que contaram que esta brincava muito

com as irmãs e que, apesar de não ter os mesmos amigos que Karen, por fazerem parte

do mesmo grupo social, compartilhavam muito tempo. Deve-se ressaltar, ainda, que

através de uma das brincadeiras relatada por Karina, na qual ela e a irmã gêmea

encenam situações da vida adolescente, estão adquirindo habilidades sociais e de

adequação ao mundo. Luiza também, ao contar que brincava com sua irmã encenando

situações de compra (mercearia) ou de banco pode, através da imitação da vida adulta

estar recorrendo a habilidades sociais e adquirindo-as.

Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a

delegação de responsabilidade aos irmãos. Maria relatou que Karen costumava fazer

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tudo o que Karina pedisse e nas situações escolares Karen muitas vezes

responsabilizava-se pelo cuidado e assistência à Karina, como por exemplo,

acompanhá-la ao banheiro ou ajudá-la no horário do recreio. Carmem, por sua vez,

falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não estava, como servir o almoço para

a irmã.

Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui uma deficiência os irmãos

saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam, caso a deficiência não

estivesse presente.

No que se refere à aquisição de independência, Karina expressou que era capaz

de fazer as coisas sozinhas. Karina comentou: “Sabia que eu lavo a caneca, enxugo e

guardo?”. Neste caso parece importante demonstrar suas habilidades e a capacidade de

fazerem sozinhos, sem ajuda, buscando adquirir sua independência, o que está de

acordo com Burlingham (1961) que afirma que assim como qualquer outra criança, a

criança com cegueira busca sua independência. Essa busca pode, muitas vezes,ser

constatada através de protestos do tipo “eu quero fazer isso sozinha”. Quando falou

acerca de sua vida escolar também destacou situações em que consegue desenvolver

atividades sozinhas e que nem sempre tinha as mesmas amigas de sua irmã gêmea,

apesar de estarem na mesma classe. Isto demonstra a busca por sua independência e

também pela formação de sua identidade.

Também na entrevista de Maria percebe-se a preocupação em estimular a

aquisição da independência, e pode-se exemplificar este fator com a situação comentada

por Maria que este ano na escola vários gêmeos foram separados e que Karina disse que

não iria se separar de Karen: “Na escola comum, ano passado trocaram alguns gêmeos,

de sala, aí a Karina: ‘Ah eu vou falar com a dona Vera, porque não é para mudar a

gente de sala’ Eu falo que a independência, porque ano passado ficou definido que as

crianças ficaram este ano e o ano que vem, que aí cada uma vai fazer sua aula de

música etc e tal”. Maria parece ter consciência da grande vinculação à qual irmãos

gêmeos estão expostos e procura estimular a independência de cada uma, tendo então

decidido preparar Karina para que estudasse em sala separada de Karen no ano seguinte

à pesquisa.

Ainda relacionado à aquisição da independência, pode-se destacar o

relacionamento de Lúcia e Luiza que foi relatado tanto por Carmem quanto por Luiza

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como repleto de brigas e desacordos. Há que se chamar atenção para o fato de que

Luiza, apesar do relacionamento conturbado com a irmã, não buscava em seu ambiente

social companheiros de brincadeira preferindo brincar sozinha. Carmem frisou, ainda,

em sua entrevista, que Luiza falava muito sozinha e que isso a preocupava, tendo levado

a filha a um psicólogo que a tranqüilizou, afirmando ser este um comportamento

normal. Pensando nestes dados pode-se citar a obra de Warren (1994), na qual considera

a família como uma unidade social repleta de relações complexas entre as crianças e os

adultos, sendo esperável que o desenvolvimento social da criança varie de acordo com

as características presentes em sua estrutura familiar. Sobre este assunto Lairy e

Harrison-Covello (1973, apud WARREN, 1994) afirmam que a socialização das

crianças é, em grande parte, determinada pelo seu ambiente familiar, e o bom

ajustamento da família para com sua deficiência tende a proporcionar um

desenvolvimento social próspero.

Referindo-se diretamente à inclusão, Karina e Maria consideraram que Karina

estava bem incluída, participando das atividades escolares, e tendo um bom

desempenho. Também evidenciou - se uma relação de cooperação entre as irmãs

gêmeas, não apenas de Karen para Karina (quando a ajudava em atividades na escola)

mas também de Karina para Karen, pois segundo Maria muitas vezes Karina ajudava

Karen na lição escolar, em especial com matemática e as duas estudavam juntas em

casa.

No caso de Luiza, tanto a mãe quanto a criança ressaltaram que não havia

compartilhamento das atividades escolares por parte das irmãs e que Luiza estava

encontrando dificuldades para acompanhar a escola regular, levantando-se a hipótese de

que ela ficasse retida. Lúcia não foi considerado um fator facilitador da inclusão escolar

de Luiza, ao contrário do constatado nas entrevistas de Maria e Karina, já que ambas

consideravam que a presença de Karen em sala de aula foi um grande facilitador do

processo de inclusão escolar.

Considerações Finais:

Esta pesquisa preocupou-se em ouvir o depoimento de duas crianças com cegueira

congênita e de suas mães a respeito da inclusão, com o objetivo de registrar a concepção

das mesmas acerca da inclusão e de como a relação fraterna permeou esse processo.

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Ficou claro que em um dos casos estudado (Karina) a irmã sem deficiência

auxiliou a inclusão da irmã com cegueira, tanto na vida escolar quanto nas atividades de

lazer com amigos e familiares. Este auxílio aparentemente gerou uma sobrecarga de

tarefas na criança sem deficiência relatada por sua mãe. Esta sobrecarga da irmã sem

deficiência já foi relatada na pesquisa de Villela (1999).

A sobrecarga também foi notada por Carmem na relação entre Luiza e Lúcia,

porém não no que estava relacionado às atividades escolares, mas sim em questões do

dia-a-dia.

Houve diferenciação também no que tange a busca por independência, já que

Karina demonstrava o desejo por adquirir independência e Luiza não. Constatou-se

também que em ambos os casos havia o compartilhamento de atividades de lazer, porém

quanto às atividades escolares apenas Karina era acompanhada por Karen.

Constatou-se que a relação entre irmãos é de grande riqueza e importância na

vida do indivíduo, tanto na convivência familiar quanto escolar. Contudo, não foi

possível esgotar a investigação da inclusão de crianças com cegueira e a influência de

seu irmão sem deficiência na mesma, por se tratar de estudo de dois caso. Tentou-se,

então, a partir das informações coletadas delinear características percebidas pelas

crianças com cegueira e suas mães sobre este tema.

Cabe assinalar a importância da continuidade de pesquisas para aprofundar

conhecimentos a respeito de famílias com uma criança com deficiência e sua interface

na inclusão. Espera – se que a ampliação de estudos e conhecimentos possam auxiliar

aqueles que se preocupam com a educação da criança com deficiência visual tanto

profissionais como familiares.

Referências:

ANGELOTTI, A.P. Inclusão nas escolas municipais de São Paulo: um olhar dos

professores, 2004. 101 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de São Paulo.

São Paulo.

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1982. 363 p.

BOGDAN, R.C.; BIKLEN, S.K. Qualitative research for education: an introduction to

theory and methods. 2. ed. Boston: Allyn and Bacon, 1992. 262 p.

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Page 189: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

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BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação, Câmara

de Educação Básica (2001). Diretrizes nacionais para a educação especial na educação

básica. http://www.mec.gov.br/cne/pdf/CEB017_2001.pdf. Acesso em: 10 ago. 2005.

BURLINGHAM, D. Some notes on the development of the blind. The Psychoanalytic Study

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COLONNA, A.B.; NEWMAN L.M. The psychoanalytic literature on siblings. The

Psychoanalytic Study of the Child, Nova York, v. 38, p. 285-309, 1983.

CONSELHO BRASILEIRO DE OFTALMOLOGIA. (2002)

www.cbo.com.br/publicacoes/jotazero/ed90/comunicado.htm. Acesso em: 13 abr. 2005.

DUNN, J. Sisters and brothers. Cambridge: Harvard University Press, 1985. 178 p.

FURMAN, W.; BUHRMESTER, D. Children´s perceptions of the qualities of sibling

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MAZZOTTA, M.J.S. Deficiência, educação escolar e necessidades especiais: reflexões

sobre inclusão socioeducacional. Cadernos de Pós-Graduação, São Paulo, Universidade

Presbiteriana Mackenzie, n. 7, p. 15-24, 2002.

MAZZOTTA, M.J.S. Identidade dos alunos com necessidades educacionais especiais no

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http://intervox.nce.ufrj.br/~elizabet/identidade.htm. Acesso em: 01 ago 2005.

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for research and practice. American Journal of Orthopsychiatry, Washington, v. 53, n. 2, p.

209-219, abr. 1983.

POWELL, T.H.; OGLE, P.A. Irmãos especiais: técnicas de orientação e apoio para o

relacionamento com o deficiente. São Paulo: Editora Maltese, 1992. 281 p.

VADASY, P.F.; FEWELL, R.C.; MEYER, D.J.; SCHELL, G. Siblings of handicapped

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VASH, C.L. Enfrentando a deficiência. São Paulo: Pioneira, 1988. 286 p.

VILLELA, E. M. B. As repercussões emocionais em irmãos de deficientes visuais, 1999.

191 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade de São Paulo. São Paulo.

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OUVIDOS CEGOS

Christiane Reis Dias Villela Assano

Há cegueiras que não se referem necessariamente à ausência de visão. Mesmo para

aqueles que possuem a visão considerada “normal”, existe um “ponto cego”, ou seja, um

ponto em que, na ausência de cones, bastonetes e receptores visuais, não se pode ver.

(Foerster, 1996, p.60). Mas existem outras tantas cegueiras.

Como professora de música, tenho refletido sobre a cegueira dos ouvidos - daqueles

que ouvem, mas não escutam. Há pontos cegos na escuta, ou melhor, há escutas que, por se

limitarem a pontos fixos, se tornam cegas. Castro (1988) as denominou “ponto de escuta”,

conceito que pode ser entendido ao misturarmos suas palavras às de Boff: todo ponto de

escuta é a escuta de um ponto. Escutar de um ponto significa limitar a escuta ao que se está

acostumado a ouvir, não mover a escuta, fixá-la em determinado lugar, imobilizá-la. A

escola de música tradicional, ao valorizar e limitar a escuta ao repertório dos séculos XVIII

e XIX, cega o ouvinte. Por esta razão, muitos professores e professoras formados por

escolas que “se orientam pelas normas e pelos critérios em que estavam baseados os

programas e currículos dos conservatórios europeus do século passado”, parecem não

compreender obras contemporâneas (Kollreuter apud Freire, 1992, p.187). Da mesma

forma que só se pode ver o que se compreende, também só se pode ouvir o que se pode

compreender.

Foerster (op.cit.), baseado nas pesquisas de Maturana e Frenk, reafirma que

“devemos crer para ver” pois “a retina está sujeita a um controle central que faz com que só

possamos ver aquilo em que cremos” (p.71). Garcia e Alves (1997) trazem o caso de um

homem que continuava cego mesmo após uma operação que traria de volta sua capacidade

de ver as coisas. O homem que teria agora a possibilidade de ver, não via. Seu cérebro teria

de aprender a ver...

Uma das inúmeras lendas do Conde Drácula também pode ilustrar bem o que

significa compreender para ver. Diz-se que um conde romeno apaixonou-se por uma

cantora de ópera em Paris que morreu subitamente. O conde amargurado voltou ao seu

castelo, mantendo sua amada viva todas as noites ao ouvir árias gravadas por sua suave voz

e ao admirar, também todas as noites, a estátua de mármore de sua amada. Mas enquanto

para o conde aquele era um meio de superar a ausência da amada, para os camponeses que

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habitavam em sua propriedade, a visão denunciava a “verdadeira” identidade do conde. Por

não conhecerem a possibilidade de gravar a voz, os camponeses não poderiam supor que a

voz feminina que preenchia as noites do conde era produzida por uma engenhoca mecânica

chamada fonógrafo, e não, por uma mulher morta. Entretanto, ao associarem a visão da

estátua à audição de uma voz feminina, imaginaram os camponeses que o conde era um

drácula que, em romeno, quer dizer, diabo. Viam um drácula que ressuscitava os mortos.

Viam o que compreendiam.

Ao alargarmos o conceito de visão, podemos afirmar que também só se ouve o que

se compreende. Em algumas das oficinas de música e teatro de minha escola, ao pedir que

meus alunos pesquisassem sobre o silêncio, tornava-se claro que cada um poderia ou não

ouvir o silêncio, de acordo com sua compreensão musical do entorno sonoro.

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Vanessa parece dizer em seu trabalho que, como acredita na inexistência do silêncio

absoluto, também seu ouvido não pode encontrá-lo. No entanto, Andressa encontrou

facilmente o silêncio, como revela seu sucinto parágrafo. Tanto Andressa como Vanessa

ouviram o que podiam “ver”.

E para “ver melhor com os ouvidos”, temos de ampliar nossos pontos de escuta,

tentando desenvolvê-los de modo a distinguir figura de fundo sonoro (Schafer, 1991), de

modo a estranhar o que é tão “natural” ou “óbvio” que nossos ouvidos simplesmente

ignoram. Diria Stravinsky: “o verdadeiro criador pode ser reconhecido por sua capacidade

de sempre encontrar à sua volta, nas coisas mais simples e humildes, detalhes dignos de

nota” (1996, p.57).

É nessa perspectiva que venho trabalhando com Márcio, um aluno que, como cego,

“não pode ver”, e por “não poder ver” tem provocado em mim muitas reflexões sobre o que

pode ser a cegueira do olhar de quem vê, mas não captura, sobre o que pode ser a cegueira

de quem ouve, mas não escuta.

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Olhos aprisionados

Embora a atividade musical seja baseada no som, muitas escolas de música

acreditam que para ensinar música é necessário começar pelo ensino da leitura e da escrita

musicais, fazendo com que a representação musical tenha mais importância que o “fazer

música” (Castro, op. cit.). O compositor Villa-Lobos já denunciava tal prisão quando

alertava os compositores para os perigos do encarceramento na “música-papel” e do

esquecimento da “música-som”.

Duas pinturas de artistas famosos retratam a

prisão ao papel já denunciada por Villa: “A lição de

piano” de Henri Matisse e “Duas meninas jovens ao

piano” de Pierre-Auguste Renoir.

Na obra de Matisse, uma criança aparece

sentada ao piano junto a um metrônomo e de frente

para uma partitura, denunciando talvez a atrofia que

a música sofre ao ser aprisionada no papel. Tempo

medido e leitura musical: duplo aprisionamento.

Na tela de Renoir, duas meninas

acompanham atentamente a partitura escrita apoiada

sobre a estante do piano fazendo-nos trazer as

palavras de Penna (1994) ao descrever algumas

cenas cotidianas nas escolas de música: “De olho na partitura a menina ‘cata’ as teclas do

piano, ‘tirando’ uma nova música”. Sobre as pinturas de Renoir e Matisse, bem como na

cena descrita por Penna, Hermeto Pascoal possivelmente diria que os personagens em

questão podem ser leitores de música, mas não, musicistas. A atividade musical aprisionada

nos olhos atrofia também os ouvidos que deveriam estar sendo sensibilizados pelos sons do

instrumento que esses jovens tocam nas pinturas. A relação do instrumentista com o

instrumento empobrece-se porque se prende à condição visual-motora, tratando os sons

como “cadáveres imóveis”, diria Schafer (1991, p.123).

Numa das cenas mostradas pelo filme iraniano “O silêncio”, Korshed, o menino

cego que “não pode ver”, mostra a prisão dos olhos de quem “vê”. Num trajeto de ônibus,

duas estudantes tentam decorar uma lição. Tentam inúmeras vezes em vão, até que

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Korshed, que estava sentado bem próximo, mas não

havia ainda sido notado por elas, fala de uma só vez

todo o texto que teria de ser decorado. As meninas,

surpresas, então, questionam: “Como você

conseguiu?” E Korshed singelamente responde que,

“às vezes, os olhos nos distraem”. Após esse filme

marcante, pude refletir mais sobre o porquê do

incômodo que me causavam os olhos abertos dos

alunos quando eu pedia para que reconhecessem

sons ou cantassem. O hábito de pedir que os alunos

fechassem seus olhos para ouvir a fim de que

pudessem “limpar os ouvidos”, era sutilmente

explicado por Korshed. Mas, pensar que podemos

fechar os olhos por alguns instantes e abri-los em segundos para tornar a ver o mundo, é

diferente de se colocar no lugar de Korshed. Com Korshed, seria diferente.

Com Márcio a história foi, ou melhor, tem sido outra.

Texturas musicais

Como professora de teclado na Escola de Música do Centro de Ensino Técnico e

Profissionalizante de Niterói – RJ, tenho olhado de forma diferente para o ensino da música

desde que Márcio nos procurou. Márcio freqüenta o Curso de Musicalização que

oferecemos nessa Instituição.

Desejava que Márcio também freqüentasse as aulas coletivas de Canto Coral, mas o

professor da disciplina disse-me que a aula de Márcio teria de ser diferente e, por isso,

achava melhor que Márcio fizesse o Curso de Musicalização em Teclado, ou seja,

permanecesse matriculado somente na aula de instrumento, por enquanto. Não pretendo

julgar qualquer atitude do professor, mas ressaltar a dificuldade de nós, professores e

professoras, introduzirmos o “diferente” em nossas salas de aula.

Como começar? Por onde começar? Como se ensina música a quem não pode ver?

Essas eram perguntas que passavam a habitar meu cotidiano.

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6

Haveria sim, uma escrita musical em Braille, mas eu não a conhecia.

Primeiro dia. Márcio chega com muitas expectativas e começamos a conversar. Pedi

a ele que tocasse, sentisse o teclado, colocando suas mãos sobre as teclas até que elas

afundassem como um navio que navega sobre o mar aberto. O cluster , forma de tocar muito

utilizada pelo norte-americano Henry Cowell em que o músico pode utilizar os punhos,

antebraços ou pulso para tocar blocos sonoros, também foi utilizado por nós para produzir e

reconhecer os sons. Comecei a questionar Márcio sobre as diferenças entre os sons do

teclado, a fim de que ele pudesse descobrir as diferentes alturas, os sons agudos e graves.

Introduzimos, então, as subidas e descidas possíveis dentro desse novo mar em que

entrávamos sem bússola.

Navegamos pelas teclas pretas. Por intuição, já que jamais tive em minhas mãos

qualquer material de música produzido para um deficiente visual, pensei que seria mais

interessante começar pelas teclas pretas já que elas se destacam no teclado por se

localizarem em parte mais alta. Após muitas experimentações, pedi a Márcio que

inventasse pequenos trechos, pois, como o compositor Stravinsky, penso que é importante

formar “inventores” de música. Márcio criou alguns trechos que foram tomando forma de

frases que se completavam para formar uma peça musical. Finalmente, pedi a Márcio que

escrevesse a sua partitura e mais uma vez, meu porto seguro de professora desmoronava.

Márcio rapidamente anotava em Braille a sua música – idéia sua, pois não determinei como

ele deveria registrar. Agora era eu quem “não podia ver”, simplesmente porque não

compreendia o que ele escrevia. Márcio explicava-me, então, que inventara a seguinte

forma de escrever aquela música: para cada oitava, utilizava uma fração. Desta forma, a

primeira oitava seria representada com a fração 1/8, a segunda, 2/8, e assim por diante. Já

as teclas pretas escolhidas seriam representadas por um número. Como cada oitava possui

teclas pretas (escala pentatônica), Márcio decidiu utilizar os números após indicar a oitava

desejada. E, conversando sobre partituras, pois Márcio já havia tido algum contato com

pessoas da área de música, perguntei se ele queria uma “ver” uma partitura que eu

escreveria para ele. Foi assim que terminou nosso primeiro encontro.

Mas como continuar a navegar sem bússola? Que caminho escolher sem o auxílio

de um mapa? Por que eu que condenava a “música-papel” optava por este caminho da

partitura tão cedo?

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Talvez eu tenha optado por me desafiar, por tentar dar a Márcio a sensação que

meus alunos poderiam ter ao observar a beleza de uma partitura, a beleza de um

manuscrito, mesmo que, ao vê-los, meus alunos não pudessem ainda “ver” tudo o que podia

estar escrito naquele pedaço de papel, mas pudessem construir a sua leitura. Mesmo que eu

não compreenda os hieróglifos egípcios, nada me impede de lê-los à minha maneira quando

vou a um museu. Da mesma forma, embora eu não pudesse compreender a partitura de

Márcio, não havia impedimento para que eu pudesse fazer a minha leitura de seu registro.

Por que então não fazer um outro movimento?

Mas no encontro seguinte, Márcio questionou-me sobre as notas musicais, pois uma

amiga com quem conversava lhe falara sobre isso. Perguntei se Márcio já ouvira falar dos

nomes dados às sete notas musicais e como ele as conhecia, toquei-as no teclado para que

ele pudesse ouvi-las. Ao mesmo tempo, recuperamos um pouco as subidas e descidas que

trabalhamos na aula anterior. As notas das quais ele falava foram facilmente encontradas

por ele no teclado devido às teclas pretas que ele já conhecia. Teria eu acertado?

Tomávamos, eu e ele, a melhor decisão?

Olhando outros pontos do mapa, lembro-me que, ao ler meu diário de bordo,

esqueci-me de relatar o processo de construção da partitura de Márcio. Embora soubesse da

existência, mesmo sem conhecer, da linguagem musical em braille, não havia tempo para ir

até o Instituo Benjamin Constant, muito menos para conhecer essa nova linguagem

profundamente. E agora? Como fazer?

Pensei que deveria explorar diferentes texturas, pois me lembrava de uma menina

cega que estudava no Curso de Iniciação Musical da Escola de Música da UFRJ na época

em que eu era estagiária do Curso de Licenciatura. O professor parecia esquecê-la dentro da

sala, ou talvez não pudesse se relacionar de forma diferente. Ela se apegara a mim, apenas

uma estagiária que não sabia nem mesmo o que fazer com as crianças ditas normais. Mas,

certo dia, o professor ensinava às crianças como fazer a Clave de Sol e me surpreendeu

quando levou para a menina uma clave de sol grande desenhada num papel, bem como um

rolo de barbante e cola para que a sua clave de sol pudesse ser reconhecida pelo toque.

Lembrei-me desse aprendizado quando tinha à minha frente o desafio de escrever a

partitura de Márcio. Mas eu não tinha barbante em casa e fui à procura de outros materiais.

Pensei em areia. Mas também não havia areia em minha casa. Foi então que me sentei ao

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computador e fiz umas tabelas bem grandes de sete colunas compridas que representavam

as teclas brancas de uma oitava. E as teclas pretas, como destacá-las? Tinha algumas fichas

em casa que cortei em pequenos pedaços para que Márcio pudesse identificar as teclas

pretas. Colei os cinco pedaços de cada oitava. É importante ressaltar que a música já havia

sido feita antes da criação da partitura.

Pensei em identificar as notas que seriam tocadas com uma outra textura. Colei

papel em forma de pequenas bolinhas nas teclas que seriam utilizadas, mas, na segunda

frase da música, havia uma nota que após a subida dos sons, retornava. Tentei indicar o

retorno com um pedaço de palito de dente colado sobre a nota (não é preciso dizer que até o

dia em que levei a partitura para Márcio o palito já havia caído...). Entretanto, faltava um

detalhe importante: como indicar de que lado Márcio deveria começar a tocar, já que eu

havia criado uma música que tanto começava de um lado como do outro? Resolvi grampear

o lado em que Márcio começaria a tocar a música. Quase tudo pronto...

Escrever esta partitura era mais que simplesmente criar uma nova forma de registrar

a música, era criar uma partitura onde eu teria de sair da minha lógica para entrar numa

outra, onde eu teria de me colocar por um momento no lugar do outro.

Durante nosso encontro, pedi para que Márcio tocasse, sentisse a partitura e aos

poucos, mostrava-lhe as diferentes texturas nela existentes. Construímos uma “legenda”

com essa conversa inicial. Márcio não só pôde executar a música, como também duas

semanas depois completou a minha partitura. Disse-me ele que na hora de tocar não

utilizou uma única oitava, pois eu não havia indicado isso na partitura. Foi então que ele me

sugeriu que, na próxima partitura, nós poderíamos colocar as frações que ele havia

inventado para identificar as oitavas.

Na semana seguinte, um grande susto. Márcio faltou à aula e o que num aluno dito

normal eu pensaria num pequeno problema de navegação, em Márcio o problema tomava a

proporção de um maremoto. Entretanto, na aula seguinte, Márcio voltou. Mas a falta de

Márcio causara em mim uma profunda reflexão sobre como ensinar-aprender música. Foi

justamente nesse período que eu pensara que o toque, tão excluído da escola, seria de

grande importância no meu contato com Márcio. O que a muitos eu dizia com o olhar, a

Márcio eu falaria com um singelo toque.

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Mas a pergunta de um navegador perdido retornava. Questionava a mim mesma

como deveria prosseguir nessa viagem. Foi Márcio quem me mostrou a latitude mais

aproximada. Falava ele sobre dois alunos que tinham aula de teclado após a sua, pois

algumas vezes chegou a “assistir” a aula desses alunos, que eram irmãos. Márcio falava das

músicas que Walquíria e Vanderson tocavam, do reconhecimento de algumas músicas

interpretadas por eles, do desejo de tocar um dia aquelas músicas... Eureca!

Por que não tocarmos uma música já conhecida?

Da mesma forma que eu nunca aprendi a “tirar uma música de ouvido” pois como

Penna (op. cit.) relata em uma das cenas musicais cotidianas das escolas de música, esse

tipo de conhecimento é excluído da escola, não é visto como saber; da mesma forma que

“aprendi a aprender” a tirar de ouvido na minha prática como professora, poderia aprender

a utilizar o ouvido nada cego de Márcio. Perguntei sobre o estilo de sua preferência e ele

me respondeu que gostava de tudo. Aprendemos “Cai, cai balão”. Íamos rascunhando em

nossos ouvidos alguns trechos e, à medida que cantávamos, íamos percebendo se o som

subia ou descia, até que pudéssemos realizar o mesmo movimento no teclado. Apenas

orientava Márcio no dedilhado a ser utilizado. E nessa construção coletiva, percebi que

mesmo sem bússola poderia encontrar algumas rotas.

Não perder a capacidade de criar rotas parece ser a vida da poetisa Virginia

Vendramini. Embora tenha perdido a visão aos 16 anos, Virginia não perdeu a

possibilidade de “pensar por imagens”. Sua cegueira não é branca, como os novos cegos de

Saramago. Sua “cegueira” é colorida e cheia de formas, como o arco-íris que costumava

observar nas tardes de sua infância. Sua cegueira tem as cores das “flores bonitas” que

encontrava na estrada, já que seu pai fazia questão de parar e interromper a viagem para

que Virginia pudesse apreciar melhor a natureza. Hoje, a poetisa e artesã cria belos tapetes

em seu “cinema mental”, uma rota construída por ela.

Calvino, no ensaio intitulado visibilidade, fala da importância das cenas/imagens

mentais. Pede ele que nós transformemos as cenas/imagens que lemos/vemos em “outras

cenas e imagens”, como num “cinema mental”. E é com a idéia de “cinema mental” que

pretendo continuar trabalhando com Márcio a fim de que, com as imagens sonoras que

circulam em seu entorno, ele possa criar outras imagens sonoras, tornando-se um inventor

de sons, “transvendo” através da imaginação, pois como diz Manoel de Barros:

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“O olhar vê, a lembrança revê e a imaginação transvê”.

Ainda tenho muito a aprender, pois se “o poeta é aquele que encontra uma

moedinha perdida” como diz Quintana, tenho de continuar a navegar em busca de uma

moedinha que pode estar perdida entre os muitos baús existentes no fundo do oceano.

Caminhos complexos, incertos, mas não insensíveis para acreditar que Márcio ainda

tocará as músicas que deseja, pois é com o nosso desejo que estamos construindo alguns

caminhos possíveis. Como os rascunhos de artistas que apontam inúmeros caminhos, pois

que “a obra verdadeira consiste não em sua forma definitiva, mas na série de aproximações

para atingi-la”, diria Calvino, muitas vezes nossos contatos têm me obrigado a “ver” outras

trajetórias que, antes, estavam em meu ponto cego.

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Referências Bibliográficas

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. CARDOSO, Carlos Eduardo, GONÇALVES, Mário. Vivendo Música - Entrevista com

Hermeto Pascoal. Revista Backstage, Rio de Janeiro, fev. 98, ano 4, no 39, p. 46 - 59. CASTRO, Antônio Jardim de. A produção musical e o ensino de música – um estudo

filosófico. Rio de Janeiro, 1988. Dissertação (Mestrado em Educação Musical) - Conservatório Brasileiro de Música.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In:

SCHNITMAN, D. F. (org.). Novos paradigmas e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

FREIRE, Vanda Lima Bellard. Música e Sociedade - uma perspectiva histórica e uma

reflexão aplicada ao ensino superior de música. Rio de Janeiro, 1992. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

GARCIA, Regina Leite, ALVES, Nilda. Uma infinidade de mundos possíveis – fragmentos

de um discurso em construção. Caxambu: XX Reunião Anual da ANPEd, 1997. GARCIA, Regina Leite, VALLA, Victor Vincent (org.). A fala dos excluídos. Caderno

CEDES - 38. Campinas: Papirus, 1996. GRIFFITHS, Paul. A música moderna - de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1994. PENNA, Maura. O desafio necessário: por uma educação musical comprometida com a

democratização no acesso à arte. Educação Musical, São Paulo, Atravez, n. 4/5, p. 15-29, 1994.

QUINTANA, Mário. Nova antologia poética. São Paulo: Globo, 1994.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991. STRAVINSKY, Igor. Poética musical em seis lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. VILLA-LOBOS. Educação Musical. Presença de Villa-Lobos, vol. 13. Rio de Janeiro,

MEC: Museu Villa-Lobos, 1991.

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Imagem

Sou cego e pianista profissional

Diz que a cegueira lhe reforçou o ouvido e que, por isso, oajudou na música.

Diz que a cegueira lhe reforçou o ouvido e que, por isso, o ajudouna música. Mas não relaciona o facto de ter perdido a visão com acircunstância de ter vindo a tornar-se pianista. Gosta sobretudo dosbarrocos do século XVIII, mas também dos românticos do séculoXIX – e até da música popular contemporânea, desde que boa. Se ocomparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, outros pianistas cegos,torce o nariz. Admira-os pelo que conseguiram na música, não necessariamente pelacegueira. Senhores e senhoras, eis outra força da natureza.

Perder a visão foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida”, diz JorgeGonçalves. Surpreendente? Só para quem não se senta numa tarde de sol a conversarcom ele. Cego desde os cinco anos, Jorge tornou-se entretanto pianista profissional.Diz que “A Paixão Segundo São João”, de Johann Sebastian Bach, é a sua peçapreferida. Explica que foi a polifonia, tanto quanto a possibilidade de dispensar apartitura, que o fez optar pelo piano em vez da trompa, que a certa alturaexperimentou. Fala dos tempos de Paris e de como, apesar de tudo, a competitividadeentre jovens candidatos a músicos foi muitas vezes intercalada por inesperadosmomentos de solidariedade – e fala de cada uma dessas coisas com um discursoarticulado, um léxico rico, ideias reflectidas para além da forma perfeita. Tem 23 anose uma licenciatura em piano. Toca em concertos com orquestra, recitais a solo portodo o País, galas de alerta para os problemas dos deficientes. E é invisual. “ComoRay Charles ou Stevie Wonder”, podia dizer-se. “Como muitos outros, músicos ounão”, diz ele.

“Enquanto tive visão, vivia num inferno. Tinha dores fortíssimas nos olhos, sobretudoquando olhava para o sol, e passava imenso tempo internado. Quando perdi a visão,aos cinco anos e tal, pude finalmente livrar-me disso”, explica. Com um glaucomacongénito, patologia que se centra no atrofiamento no nervo óptico, Jorge Gonçalvestem na verdade dois olhos capazes de ver, mas já não consegue que a informaçãochegue ao cérebro e seja efectivamente processada em visão. A irmã, mais velhaquatro anos, sofre do mesmo problema, embora veja alguma coisa – e a coincidênciada deficiência nos dois irmãos significa necessariamente que ambos os progenitoressão portadores da doença, embora vejam os dois normalmente. “Se a cegueira levou àmúsica, isso já não posso dizer em absoluto”, explica Jorge. “Talvez sim, talvez não.É difícil separar uma coisa da outra, pois todos nós vimos de um determinadocon-texto. Como cego, tenho o ouvido mais desenvolvido e isso naturalmente ajudou.Mas a verdade é que foi a minha irmã quem começou por aprender piano e foiouvindo-a tocar que eu me interessei. E, de qualquer forma, tenho a necessidadebásica de exprimir-me como artista, não como deficiente.”

Incentivado pelos pais, uma efermeira e um tenente-coronel com especial apreço pelacultura, Jorge Gonçalves tomou pela primeira vez contacto com o piano aos seis anos.Aos nove, quando vivia com os pais em Tancos (o pai estava destacado na respectivaBase Aérea), tentou entrar para o Conservatório Regional de Tomar. “Não me

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aceitaram logo. Foram esses os primeiros problemas com que me deparei: nãoquererem aceitar-me como aluno. Aconteceu em Tomar e aconteceu depois emCoimbra: rejeitavam-me, ouviam-me tocar e, então sim, aceitavam-me”, conta. “Naverdade, não levo a mal. As pessoas têm todas muito medo da diferença. Sãopreconceitos naturais. Mas é preciso lutar contra eles, de qualquer forma.” E osestudos prosseguiram, de Tomar ao Conservatório de Música de Coimbra, deste àÉcole Normale de Musique de Paris Alfred Cartot. Iniciado nos estudos em 1992,Jorge Gonçalves concluiu o Curso Geral em 2001, em regime articulado com o ensinosecundário, o Diploma de Ensino em 2002 e o Diploma Superior de Ensino em 2004.

Desde então, é pianista profissional. Realizou recitais em locais tão diversos como oPorto ou o Fundão, Castelo Branco ou Sintra, entre muitos outros. Tocou comosolista do Concerto de Grieg em três ocasiões diferentes, nomeadamente com aBanda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana e com a Banda de Música daForça Aérea Portuguesa. Foi a programas de televisão e à Gala de Abertura doPirilampo Mágico, em 2005, de cuja campanha foi um dos rostos. “Faço sobretudoconcertos. Ou tenho feito concertos, o que é mais bem dito. Sou um prestador deserviços, no fundo, e só espero poder continuar a sê-lo”, explica. “Vivo comdificuldades, mas sobrevivo. Se quisesse ganhar dinheiro, não escolhia esta profissão.Às vezes os meus pais têm de ajudar-me. Mas mantenho-me à tona de água. E faço oque gosto. Nunca me arrependi da opção que fiz.”

Recentemente, e depois de uma experiência a viver sozinho em Lisboa, voltou paraCoimbra. Tinha saudades dos pais, dos amigos, das rotinas, dos lugares, dos objectos.Em Paris, chegou a ter a mesma sensação de solidão e abandono – mas nesse casoresistiu. “Estive lá três anos sozinho, o que foi ao mesmo tempo enriquecedor edifícil. Primeiro porque a vida de emigrante é cheia de solidão e de sofrimento.Depois porque o curso era exigente, cheio de competitividade, com um grupo decolegas que incluía alguns dos melhores pianistas do mundo da minha idade. Foipreciso dar um salto qualitativo muito grande”, explica. “Mas acabei por fazergrandes amigos, que permanecem até hoje. Vivia numa residência de músicos e, acerta altura, começámos a ajudar-nos uns aos outros. Para além disso, conheci muitosportugueses.”

Hoje, em Coimbra, ensaia uma média de seis horas por dia, sete dias por semana. Eembora goste dos românticos, nomeadamente de Grieg, explica que é Bach o seufavorito. “Passo 60 por cento do meu tempo a tocar Bach. Os outros 40 é que sãopara os românticos. Gosto muito do Barroco e acho que Bach é o sol da música, o seucentro gravitacional, o homem que trouxe à música uma visão mais elevada,universal. Mais: como ele escreveu sobretudo para órgão, cravo e clavicórdio, osrecursos do piano moderno permitem-nos quase reinventar a sua obra,valorizando-a”, diz. Tem sobretudo quatro referências entre os grandes intérpretes domundo: Sviatoslav Richter, que considera “o manual da interpretação”; Maria JoãoPires, que diz ter “o som mais bonito”; Glenn Gould, em quem encontra a perfeita“reivenção do ordenamento” e Rosalyne Tureck, que gostou de ver “separar asharmonias”. Em Bach, gosta principalmente das ‘Paixões’, entre elas de São João. A‘Arte da Fuga’ ou os ‘Concertos de Brandenburgo’ são outras das suas obraspredilectas.

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“Ninguém toca piano com os olhos, mas com a cabeça. E cabeça todos nós temos”,diz. Se o comparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, fica indiferente. Admira-ossobretudo pela música, muito mais do que pela cegueira. Principalmente Ray Charles.“Foi uma pessoa que viveu numa América difícil, cheia de contrariedades, e queconseguiu apesar disso encantar multidões. Mas não me refiro especialmente àcegueira. As pessoas cegas podem fazer as mesmas coisas do que as outras”, explica.E apesar da sua propensão para a música erudita, faz questão de vincar que também amúsica popular o encanta. Desde que boa, claro. “Aquilo de que gosto é daqualidade. E há música boa em todos os estilos. O Ray Charles, por exemplo, foi defacto um grande músico. Pôs grande humanidade na música. É admirável.”

A PAIXÃO DA TROMPA

Jorge Gonçalves passa metade do dia a ler em Braille, de literatura diversa àspartituras de música, e a outra metade a tocar. Em 1995, quando estudava há já trêsanos, decidiu alargar a sua acção do piano à trompa. “Precisava de ter a noção docanto, porque essa é a essência da música, a expressão mais natural do ser humanosob a forma de música. Os grandes instrumentistas são aqueles que conseguemsublimar a voz humana noutras realidades e a trompa, como outra expressão da vozhumana, podia dar-me uma noção do sopro e da respiração, por exemplo”, explica.

“É o meu instrumento preferido, aquele que tem o timbre mais bonito. Ainda hoje,quando ensaio com uma orquestra, peço sempre aos trompistas que toquem um poucopara mim. Mas a questão é que, ao contrário do piano, a trompa exige partitura parase poder tocar numa orquestra. O piano toca-se de cor, mas a trompa não: tem de seler e tocar ao mesmo tempo. E isso, naturalmente, é uma coisa impossível para umcego”, explica.

Garante, porém, não estar arrependido da opção pelo piano. A polifonia(possibilidade de extrair vários sons em simultâneo, inexistente na trompa) é a grandevantagem.

Fonte:Correio da Manhã[Fim de Notícia]

Notícias » Destaque13 / 09 / 2006 - 14 : 55

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Redesenho da identidade visual de uma associação de deficientes visuais Redesign of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind

HEIDRICH, Regina,

Doutora, Centro Universitário Feevale BLUM, Arina,

Especialista, Centro Universitário Feevale

Palavras-chave : deficiência visual, comunicação, design gráfico Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de Deficientes Visuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais, este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dos sentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados. Key-Words: visual impairments , comunication, graphical design This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind or visually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people without vision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology of creation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter. The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority of the projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses like touch, olfact and audition are not boarded. 1- Introdução Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos. Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixa visão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algum grau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos países desenvolvidos, a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças, enquanto os idosos são 75% desse contingente. Dados oficiais de cada país não estão disponíveis. Observamos que a percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.

Segundo a revista eletrônica Saúde e Vida Online, desenvolvida pelo Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é considerado cego aquele que apresenta desde ausência total de visão até a perda da percepção luminosa. Sua aprendizagem se dá através da integração dos sentidos remanescentes preservados. O principal meio de leitura e escrita é o sistema Braille. O deficiente visual, no entanto, precisa ser incentivado a usar seu resíduo visual nas atividades de vida diária sempre que possível.

Pessoa com baixa visão ou visão subnormal é aquela que possui resíduos visuais em grau que permitam ler textos impressos à tinta, desde que se empreguem recursos didáticos e equipamentos especiais, excluindo as deficiências facilmente corrigidas pelo uso adequado de lentes (BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto, 1993). Sua aprendizagem se dá através dos meios visuais, mesmo que sejam necessários recursos especiais.

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Tanto a cegueira total quanto a visão subnormal pode afetar a pessoa em qualquer idade. Bebês podem nascer sem visão e outras pessoas podem tornar-se deficientes visuais em qualquer fase da vida. A perda de visão pode ocorrer repentinamente de um acidente ou doença súbita, ou tão gradativamente que a pessoa atingida demore a tomar consciência do que está acontecendo. Ela também ocorre independentemente de sexo, religião, crenças, grupo étnico, raça, ancestrais, educação, cultura, saúde, posição social, condições de residência ou qualquer outra condição específica. A deficiência visual interfere em habilidades e capacidades e afeta não somente a vida da pessoa que perdeu a visão, mas também dos membros da família, amigos, colegas, professores, empregadores e outros. Entretanto, com tratamento precoce, atendimento educacional adequado, programas e serviços especializados, a perda da visão não significará o fim da vida independente e não ameaçará a vida plena e produtiva. 2- Sistema Braille de Leitura e Escrita

O Braille é um dos códigos de apoio da língua, e sua importância está no fato de habilitar o ser humano a compreender o mundo através de um sistema organizado de símbolos, substituindo o alfabeto convencional por um alfabeto de pontos em relevo, o que possibilita ao deficiente visual a escrita e a leitura. As primeiras tentativas de criar um método de acesso à linguagem escrita aos cegos datam do século XVI e XVII. Entre eles estava a gravação de letras e de caracteres em madeira ou metal (usando parte da idéia da imprensa de Gutenberg), sistemas de nós em cordas, caracteres recortados em papel e até mesmo alfinetes de diversos tamanhos pregados em almofadas. Até 1829, os portadores de deficiência visual aprendiam a ler através desses e de outros complicados métodos de leitura. Naquele ano um jovem francês de 15 anos cego desde os 3 anos de idade, chamado Luis Braille, desenvolve o sistema que é até hoje o mais efetivo recurso para a educação de cegos. Braille era aluno da escola Haüy, a primeira escola para cegos do mundo e foi influenciado por um método de transmissões de mensagens sigilosas criadas pelo oficial de exército francês Charles Barbier, que consistia na combinação de 12 pontos em relevo com valor fonético. O Braille é composto por 6 pontos, que são agrupados em duas filas verticais com três pontos em cada fila (cela Braille). A combinação desses pontos forma 63 caracteres que simbolizam as letras do alfabeto convencional e suas variações como os acentos, a pontuação, os números, os símbolos matemáticos e químicos e até as notas musicais. Para os cegos poderem ler números ou partituras musicais, por exemplo, basta que se acrescente antes do sinal de 6 pontos um sinal de número ou de música.

3 - Metodologia de desenvolvimento Para o redesenho da identidade visual desta instituição, levou-se em consideração a necessidade de uma assinatura que abordasse fatores não somente visuais, mas também táteis. A equipe envolvida no projeto foi constituída por 4 estagiários e um assistente gráfico do Centro de Design Feevale, além do professor responsável pela orientação ao trabalho. Notou-se, no primeiro contato com o projeto, que a equipe necessitava de preparação para entender os aspectos não-visuais. Até então, todos os trabalhos desenvolvidos pelo grupo seguiam padrões fortemente visuais. Nota-se, inclusive, que os termos utilizados pela equipe permaneceram conforme indicativos visuais comumente utilizados em design gráfico, quando “identidade visual” e “assinatura visual” são expressos para designar o trabalho realizado. Os termos, utilizados pela equipe de designers nos projetos diariamente desenvolvidos, são destacados de STRUNCK (2003:52) que faz uma interessante abordagem a respeito da criação de identidades corporativas, mas privilegia a visão nos aspectos de percepção, afirmando que “este sentido, o mais imediato, rico e independente do tipo de cultura que tenhamos, é indispensável a nossa comunicação”.

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Desta forma, a metodologia utilizada para desenvolvimento deste projeto, baseou-se primeiramente numa etapa de preparação da equipe para lidar com aspectos da comunicação não visual. A intenção foi buscar conhecimento para interação junto ao público de deficientes visuais. Posteriormente seguiu-se com a metodologia já utilizada pela equipe em outros projetos anteriormente realizados, sendo as etapas definidas como: levantamento de dados; desenvolvimento de estudos; definição da identidade visual. Ressalta-se, porém, que a abordagem de todas as etapas acabou por permear aspectos não-visuais, visto a necessidade de aplicação dirigida ao público de deficientes visuais. A primeira etapa do projeto, a interação com aspectos não visuais, foi conduzida sob a orientação de uma professora com experiência junto ao público em questão. Através de uma oficina para apresentação da escrita Braille, a equipe de design gráfico pôde entender como se dá a comunicação escrita junto aos cegos. Nesta mesma oficina, a equipe fez uso de softwares utilizados por deficientes visuais, podendo vivenciar a experiências táteis e sonoras. Os principais questionamentos da equipe eram: Como se fazer entender sobre design gráfico para pessoas cegas e como ter certeza de que este entendimento realmente estava ocorrendo? Os conceitos de semiótica e percepção passaram a reorganizar as idéias da equipe. Segundo HEIDRICH e FLORES (2002) a Semiótica estuda os efeitos do sentido. Ela investiga o significado em relação às diferentes culturas. O signo é cultural, porque representa um determinado conceito e nunca aparece isolado, mas sempre dentro de um sistema de signos, contextualizado. A percepção visual é semiotizada embora seja algo que ocorra automaticamente e sem esforço, desde o momento em que abrimos os olhos e tomamos consciência dos objetos e que estes passam a ter algum significado para nós. Ao observarmos uma imagem, primeiramente, temos a percepção global, que visualiza o todo, mas destaca os elementos pop-out . Posteriormente passamos à percepção analítica que é mais detalhada, dirigida pela atenção que é intencional e cultural. Considera-se a primeira percepção, a mais global, que chama atenção pelo todo. Destaca os elementos pop-out, que são os alvos que nos saltam aos olhos. Segundo TREISMAN (1999:143), “os traços que permitem o pop-out na pesquisa visual são extraídos por módulos autônomos, onde, cada um estabelece sua própria série de “cartas” topográficas codificando a disposição no espaço de traços particulares cuja análise lhes retorna”. O elemento perturbador denominado por TREISMAN como estímulos não alvo, também faz parte da percepção visual inicial dividindo a atenção do observador em relação ao pop-out. Foi constatado que os estudos sobre percepção e semiótica abrangem aspectos possíveis de serem analisados por videntes. Como tornar a comunicação efetiva numa relação de designer-cliente se este é cego? A partir deste primeiro estudo acerca da percepção e da linguagem visual para não-visuais, a equipe partiu para um etapa de pesquisa, onde levantou-se dados para fundamentação de um trabalho permeado por aspectos não-visuais. A leitura de artigos e textos abordando o tema foi a base para o início desta etapa. Ainda, a realização de um levantamento de identidades visuais em instituições similares, permitiu uma visão da área a ser abordada. Buscando maiores informações sobre processos de impressão e materiais específicos para deficientes visuais, recorreu-se a reuniões junto à profissional responsável pelo atendimento pedagógico aos deficientes visuais na Associação dos Deficientes Visuais de Novo Hamburgo. Estes encontros permitiram a compilação e entendimento acerca de possibilidades técnicas para produção de material gráfico dirigido ao público em questão. Através das etapas anteriores, interação com aspectos não-visuais e levantamento de dados, a equipe pôde iniciar os primeiros estudos para desenho do símbolo. Tendo como pressuposto tratar-se de um redesenho, levou-se em consideração que a estrutura geral do símbolo seria mantida, porém aspectos formais seriam revistos a fim de promover melhor leitura do desenho. Nesta etapa, identificou-se os principais problemas do desenho até então utilizado pela instituição (Fig. 1), sendo eles: desestruturação, desproporção e descontinuidade formal.

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Fig. 1 – Assinatura visual utilizada pela instituição antes do projeto de redesenho. A reformulação do desenho seguiu para a busca de solução que estruturasse a forma do ícone, a fim de que a proporção e a continuidade formal fossem características presentes. O desenho do corpo e a posição da bengala foram arranjados de maneira a permitir uma leitura mais continuada do símbolo (Fig. 2).

Fig. 2 – Evolução no redesenho do símbolo Para o logotipo (Fig. 3), buscou-se aspectos essencialmente de equilíbrio, dando-se destaque maior a abreviatura “ADEVIS-NH”, nome pelo qual a associação é mais conhecida. A tipografia escolhida tem aspectos de proporção em relação ao símbolo, sendo as letras de espessura similar à moldura do símbolo.

Fig. 3 - Logotipo A junção entre símbolo e tipografia apresentou-se de maneira horizontal e vertical (Fig. 4), respeitando-se um módulo geométrico para definir posicionamentos e espaçamentos. A preocupação em dividir o espaço de forma geométrica, facilitaria a etapa seguinte do trabalho, quando a assinatura visual deveria apresentar-se dirigida ao público de deficientes visuais.

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Fig. 4 – Junção do símbolo e logotipo: vertical e horizontal Destaca-se, ainda, que enquanto estruturava-se o desenho visual, paralelamente já se traçavam os esboços referentes ao desenho em relevo (Fig. 5). A similaridade do desenho em relevo com o desenho visual deveria refletir a identidade da assinatura. Com esta premissa, o estudo da assinatura em relevo contou com o apoio da professora responsável pelo ensino do Braille na Associação. Foram necessárias diversas tentativas até se chegar à aplicação ideal em relevo, observando fatores como tamanho, proporção e facilidade de leitura pelos deficientes visuais. Segundo PIERON (2003) sobre a superfície cutânea total do corpo “somos levados a admitir cerca de trezentos e cinqüenta mil sinais táteis locais distintos. Graças à presença de uns trinta destes receptores táteis individualizados num centímetro quadrado da polpa dos dedos, a discriminação dos pontos, cujo número e disposição caracterizam as letras no alfabeto Braille e asseguram a leitura tátil, torna-se possível para cegos”. Tanto a tipografia quanto a linha de moldura do símbolo foram adaptados para serem representados através de uma fileira de pontos. Esta observação, informada pela professora de Braille, revela a melhor adaptação dos deficientes visuais para identificar letras e desenhos expressos em linhas e formas mais simplificadas. Linhas duplas apresentariam empecilhos de leitura, tal como a dificuldade de identificação da forma.

Fig. 5 – Imagem em pontos, compondo o desenho em relevo. Espaçamentos seguiram a proporção permitida pela impressora Braille. A última etapa metodológica consistiu das aplicações da assinatura em material gráfico (Fig. 6). A necessidade de produzir material específico para cegos e com custo reduzido, dependeria de grande interação

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entre os designers, a Associação e uma gráfica. Esta troca de informações e serviços permitiria o andamento das aplicações onde, cada um dos envolvidos, teria a participação numa parte do processo.

Fig. 6 – aplicação em material de expediente básico O material de expediente básico (cartões de visita, papel de carta, envelope e pasta) seguiu com a utilização das cores institucionais. Dentre estes materiais, destaca-se o cartão de visita que receberia impressão sobre papel apropriado para registro do Braille, respeitando a seguinte ordem de produção: na gráfica, o papel receberia a impressão em tinta; ainda sem corte, a gráfica repassaria a impressão para associação que, em impressora especial, adicionaria o Braille; os papéis já impressos em tinta e relevo retornariam à gráfica para corte. Este esquema permitiu produção com base nos recursos disponíveis, além de dispensar a fabricação de matriz para relevo, oportunizando maior facilidade para inclusão de informações Braille. 4 - Considerações Finais Encontra-se em estudo, no momento, os demais materiais gráficos, tais como uma capa para apostila de alfabetização Braille e capas para livros da biblioteca. Neste último, observa-se a importância de privilegiar a possibilidade dos próprios deficientes visuais localizarem os livros na estante, abrindo espaço para inclusão e independência dos mesmos. O trabalho ainda não está finalizado, mas os resultados são otimistas, na medida que o próprio desenvolvimento do projeto permitiu a interação dos designers com um aspecto pouco abordado no design gráfico: a percepção não visual. Nota-se que a integração com o público em questão, os cegos, foi fundamental para entender a comunicação por meio do tato, bem como permitiu que limitações técnicas fossem sanadas através de um trabalho conjunto entre designers e profissionais acostumados a lidar com deficiência visual. A possibilidade de rever os conceitos de apresentação de projeto, privilegiando a comunicação pelo tato, foi de fato o aspecto mais interessante deste trabalho. Pensando que, sob o ponto de vista do design gráfico impresso, a percepção é, geralmente, fortemente atrelada a fatores visuais, este estudo contribuiu para uma abordagem diferenciada, verificando-se que a comunicação impressa pode se dar de maneira mais completa, à medida que os conceitos de design são perpassados para além do sentido da visão.

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Bibliografia ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DESPORTOS PARA CEGOS - ABDC. Legislação. Disponível em: http:// www.abdcnet.com.br. Acesso em: 11 abr. 2005. BOZZINI, A. C. A.; MALAVIDA, L. M. S.; POLONIO, L. M. Prevenção: a única solução. APAE: CAPELL, 1991. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria da Educação Especial. Subsídios para a formulação da política nacional de educação especial. Brasília, 1993. CAVALCANTE, A. M. M. Educação visual: atuação na pré-escola. Revista Benjamin Constant, Rio de Janeiro, n.1, p.11-30, set. 1995. CIDADE, R. E.; FREITAS, P. S. Introdução à educação física e ao desporto para pessoas portadoras de deficiência. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002. CRAFT, D. H.; LIEBERMEAN, L. Deficiência visual e surdez. In: WINNICK, J. P. Educação física e esportes adaptados. Barueri: Manole, 2004. p.181-205. FUGITA, M. A percepção do próprio nadar, de nadadores deficientes visuais e nadadores videntes. 2002. 81f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação Física, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2002. HEIDRICH, R. O., FLORES, M. B., SANTOS, S. C. Análise Semiótica do quadro “Lãs Meninas” a partir de viagem em mundo virtual In: I Congresso Internacional de Pesquisa em Design e 5º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2002, Brasília. INTERNATIONAL Blind Sports Association-IBSA. Manual. Disponível em: http://www.ibsa.es. Acesso em: 01 abr. 2005. KIRK, S. A.; GALLAGHER, J. J. Educação da criança excepcional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MUNSTER, M. A. VAN; ALMEIDA, J. J. G. Atividade física e deficiência visual. In: GORGATTI, M. G.; COSTA, R. F. Atividade física adaptada: qualidade de vida para pessoas com necessidades especiais. São Paulo: Manole, 2005. NABEIRO, M. Atividade física e o deficiente visual. In: SIMPÓSIO PAULISTA DE EDUCAÇÃO FÍSICA ADAPTADA, São Paulo, 1992. Anais. São Paulo: EPESUSP, 1992. p. 99-102. PIÉRON, Henri. A Sensação. Portugal: Publicações Europa-América, 2003. STRUNCK, Gilberto Luiz Teixeira Leite. Como criar identidades visuais para marcas de sucesso. Rio de Janeiro: Rio Books, 2003. TREISMAN, ANNE. A percepção, os traços e a percepção dos objetos. In: Introdução às Ciências Cognitivas de Daniel Andler, tradução de Maria Suzana Marc Amoretti, editora UNISINOS, 1998. Regina de Oliveira Heidrich [email protected] Arina Blum [email protected]

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Esta é a versão em html do arquivo http://www.anpedesign.org.br/artigos/pdf/Redesenho%20da%20identidade%20visual%20de%20uma%20associa%E7%E3o%20de%20defici%85.pdf.G o o g l e cria automaticamente versões em texto de documentos à medida que vasculha a web.

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Redesenho da identidade visual de uma associação de deficientes visuaisRedesign of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind

HEIDRICH, Regina,Doutora, Centro Universitário Feevale

BLUM, Arina,Especialista, Centro Universitário Feevale

Palavras-chave : deficiência visual, comunicação, design gráfico

Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de DeficientesVisuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais,este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dossentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortementeatrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado comoforma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.

Key-Words: visual impairments , comunication, graphical design

This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind orvisually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people withoutvision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology ofcreation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter.The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority ofthe projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses liketouch, olfact and audition are not boarded.

1- Introdução

Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos.Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixavisão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algumgrau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos paísesdesenvolvidos a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças enquanto os

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BEST CITY EVENTSM

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TRIBODE JAH

August 2008 www.bestcityevents.com

The top names in Brazil and America!The Best in Movies!

BRAZIL’S BESTREGGAE BAND

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A Melhor Banda Reggae do Brazilno Clube Cinema

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Premios Juventud (Awards)

The Best in Concerts & Movies!O melhor em shows e filmes!

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Welcome to the premiere of Best CityEvents - your monthly bi-lingual news-paper, bringing you the best in entertain-ment, movies, society events, and muchmore.

This issue highlights Tribo de Jah, an in-novative “Brazilian Reggae” group from

Brazil. Also, read about Madonna, one of the most accom-plished performers of all time. She will bring Miami her “Stickyand Sweet Tour” which is sure to be a concert you won’t wantto miss!

Summer blockbuster movies are out and there is certainly some-thing for everyone to enjoy! Check out our movie listings tofind where these fantastic films are playing near you.

Be sure to pick up your complimentary copy of Best CityEvents every month! Also look for Nubia Rose, the BrazilianLifestyle Magazine, by the publishers of Best City Events!

Peace and love to all!Nubia Rose, Publisher

THE PUBLISHER’S PAGE

PublisherNubia R. Cohen 954.684.6421

[email protected]

Editor/EditoraHelene Foster

Reviser - Portuguese/Revisão-PortuguêsHeloisa Machado

Art Director/Diretor de arteHelene Foster

Sales/VendasDiane Gabbara/954.756.5214

(Portuguese, English & SpanishMagali - Português/561-483-4236

Luciene - English &Português/561-483-4236

Photographer/fotografoAnderson Esperança

Representante no BrazilVeronica Silva

BEST CITY EVENTSMelhores Eventos da Cidade

Bem-vindo ao lançamento de Best City Events – nosso jornalmensal bilíngüe, que leva até você o melhor em entretenimento,cinema, eventos sociais e muito mais.

Esta edição destaca a Tribo de Jah, um grupo inovador de“Reggae Brasileiro”, vindos diretamente do Brasil. Leiatambém sobre Madonna, uma das mais completas artistas detodos os tempos. Ela apresentará seu show ‘Sticky and SweetTour’ em Miami, o que promete ser um concerto que vocêcertamente não vai querer perder!

Os filmes sucessos arrasadores estão aí para serem vistos e, certamente, há filmespara todos desfrutarem! Confira nossa relação para descobrir onde esses fantásticosfilmes estão sendo exibidos em um cinema perto de você.

Não se esqueça de levar nossa cópia gratuita do Best City Events cada mês! Levetambém a revista Nubia Rose, the Brazilian Lifestyle Magazine, uma publicação doBest City Events!

Paz e amor para todos!

Nubia Rose

CONTENTS:

2 www.bestcityevents.com Best City Events/Melhores Eventos da Cidade

COVER/CAPATribo de Jah ........................... 2

MOVIES/FILMES................. 4-5

BEST EVENTS/MELHORES EVENTOSMadonna................................. 7

BEST CELEBSUnivision ................................. 8-9

BEST FOR KIDS/O MELHOR PARA AS CRIANÇAS ..... 11

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COVER STORY

Tribo de Jah will bring their uniquebrand of “Brazilian Reggae” to fansin South Florida this summer.

Presented by Nubia Rose Magazine, MWStar Productions and Best City Events, thisgroup will perform in English, Portugueseand Spanish for a one night engagement atClub Cinema, 3251 N. Federal Highway,Pompano Beach on Friday, August 1 at 9p.m.

Tribo de Jah is a six-member band ofmusicians who met at the School for theBlind in São Luís, capital of the state ofMaranhão, in northern Brazil.

That region has been called the “BrazilianJamaica.” Another unique feature of Tribode Jah is that five of the six members of thegroup are blind (one has only partial visionwhile the other four are totally without sight).

When the group later met up with vocalistand broadcaster Fauzi Beydoun, a native ofSao Paulo who had just returned to Brazilfrom the Ivory Coast in Africa, he broughtwith him a love of the reggae rhythms. Theythen fused their “reggae” music withmessages of political and social issues,spiritual love and peace.

The style of Tribo de Jah includes manyelements of Brazilian culture blended withoriginal Jamaican reggae to create “BrazilianReggae.”

Their energetic performances and onstageexpression are quite impressive and havedelighted audiences around the world.

For more than ten years of performance,Tribo de Jah has performed throughout Braziland internationally.

Their current tour takes them from theirengagement in South Florida to Orlando onAugust 2.

Tribo De Jah brings “Brazilian Reggae” to South FloridaTribo De Jah para o Sul da FlóridaA Tribo de Jah trará sua marca

exclusiva do “Reggae Brasileiro”aos fãs do sul da Flórida neste verão.

Apresentados pela Revista Nubia Rose,Estilo de Vida Brasileiro, MW StarProductions e o Jornal Best City Events, estegrupo se apresentará em inglês, português eespanhol para um encontro de uma noite noClub Cinema, 3251 N. Federal Highway,Pompano Beach, na sexta-feira, dia 1º deagosto, às 21 horas.

A Tribo de Jah é uma banda formada porseis músicos que se conheceram na Escolapara Cegos em São Luís, capital do estadodo Maranhão no norte do Brasil. Essa regiãoé chamada de “Jamaica Brasileira”. Umaoutra característica exclusiva da Tribo deJah é que cinco dos seis membros são cegos(um possui apenas visão parcial e os outrosquatro são totalmente cegos).

Quando o grupo mais tarde conheceu ovocalista e comunicador Fauzi Beydoun,natural de São Paulo, que havia acabadode retornar ao Brasil vindo da Costa doMarfim, na África, trazendo com ele o amorpelos ritmos do reggae. Eles entãocombinaram seu “reggae” com mensagensde conteúdo político e social, amor espirituale paz.

O estilo da Tribo de Jah inclui muitoselementos da cultura brasileira mescladacom o reggae jamaicano para criar o“Reggae Brasileiro.” Suas apresentaçõesdinâmicas e presença de palco sãoextraordinárias e têm deliciado as platéiasem todo o mundo.

Durante mais de dez anos de espetáculos, aTribo de Jah se apresentou em todo o Brasile internacionalmente. Sua turnê atualcontinua depois da apresentação no sul daFlórida, levando-os para Orlando, no dia 2de agosto.

SHOW INFORMATION/INFORMAÇAO DO SHOW

Tribo de JahFriday, August 1 at 9 p.m.

Na sexta-feira, dia 1º de agosto,às 21 horas.

Club Cinema, 3251 N. FederalHighway, Pompano Beach

Tickets are $25 in advance and $30 at thedoor. For more information or to purchasetickets, please call 954-684-6421or visitwww.bestevents.com.

Os ingressos custam $25, se comprados comantecedência ou $30 na hora do show. Paramais informações ou para compraringressos, ligue para 954-684-6421 ouvisite o site www.bestcityevents.com.

Places to purchase tickets/Estabelecimentos para comprar os tickets:

Brazil USA Sandalfoot Plaza, 561-483-2618A Brazilian Hair, Atlantic Blvd.,Pompano Beach, 954-678-8714

Best City Events/Melhores Eventos da Cidade www.bestcityevents.com 3

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A Visão

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Quero celebrar os serviços Lionísticos comunitários, renovar o orgulho do significado de ser Lion…

Ajudarmos as pessoas que perderam a visão a se ajustarem àsua nova condição.

Divulgar a mensagem Milagres Através do Serviço e Heróis de Todos os Dias, com:

• Trabalho em equipe• Serviços humanitários• Apoio total/captação de recursos.

“O companheiro Lion mais importante é o sócio do clube. O que é vital são as pessoas que servimos e os Lions que as servem.”

Mensagem do P.I. Al Brandel(Partes do seu Programa)

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Objectivos1. Implementar um Programa para instruir o público sobre

a cegueira

2. Evitar e combater a cegueira evitável

3. Organizar a recolha de armações e óculos usados

4. Incentivar a realização de rastreios visuais

5. Comemoração do Dia Mundial da Visão

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Programa

1. Identificar e caracterizar os deficientes visuais segundo as várias patologias.

2. Promover e melhorar a qualidade de vida dos deficientes visuais.

3. Fomentar a criação, em todos os Clubes Lion do D115CN, de um grupo de trabalho “Comissão para a Visão”.

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Caracterização do ProgramaIncidência e Prevalência

A OMS calcula que nos próximos 25 anos a população invisual poderá duplicar.

1 em cada 4 crianças não consegue ver sem óculos e há cerca de 40 milhões de cegos em todo o mundo.

Portugal com 130 a 140 mil invisuais.

Cerca de 500 milhões de pessoas melhoraria com uns simples óculos de graduação mínima.

A OMS estima que 153 milhões de pessoas têm erros de refracção não corrigidos.

Em 2.000 havia cerca de 15 milhões de pessoas portadoras de Oncocercose.

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Referências estatísticas

- A reciclagem de óculos custa menos de 10 cêntimos a unidade.

- Óculos colectados em 2005/2006 75.898

- Óculos distribuídos em 2005/2006 18.186

- Em 2004/2005 recolheram-se cerca de 5 milhões de óculos

- Foram distribuídos mais de 3 milhões a nações em desenvolvimento.

- Os Lions de todo o mundo recolhem cerca de 20 milhões de óculos por ano.

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Centro de Reciclagem

Espanha

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

40969

4733 5183 4119 4121

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10000

15000

20000

25000

30000

35000

40000

45000

S/grauatribuído

< 30% 30 - 59% 60 - 80% > 80%

Referências estatísticasCaracterização segundo o grau de incapacidade

Fonte: INE – Censos 2001

N = 59.125

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

0,7%72.519Glaucoma

36,0%59.125163.569Deficientes visuais

35,3%3.744.34110.599.095P. Residente

%NORTEPAÍS

Referências estatísticasDistribuição Nacional e Glaucoma

Fonte: INE – Censos 2001

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Visão e Trabalho com Cegos

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Referências estatísticasDistribuição - áreas geográficas - Lions Clubes

1.157Vila Real506Ponte de Lima5.155Vila Nova de Gaia621Paços de Ferreira2.181Vila Nova Famalicão1.114Oliveira de Azeméis

101Vila Nova Cerveira3.202Matosinhos1.447Vila do Conde1.727Maia2.479Viana do Castelo284Macedo de Cavaleiros

464Vale de Cambra2.082Guimarães510Trofa706Fafe52Tarouca673Esposende

306São João da Madeira372Espinho1.286Santo Tirso511Bragança1.576Santa Maria da Feira3.521Braga1.218Póvoa de Varzim1.705Barcelos5.161Porto / Foz / Boavista420Arouca

Nº. D VClubes LionNº. D VClubes Lion

Fonte: INE – Censos 2001

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Visão e Trabalho com Cegos

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Referências estatísticasPatologias mais frequentes

OncocercoseRetinopatia

GlaucomaTracoma

Degenerescência macularCatarata

HipertensãoDiabetes

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Referências estatísticasPatologias mais frequentes em números

15.000.000ONCOCERCOSE

163.515DEFIC. VISUAIS

2.013.619HIPERTENSÃO

78.403RETINOPATIA

140.000CEGUEIRA

72.519GLAUCOMA

658.945DIABETES

Fonte: INE – Censos 2001; Pesquisa Google

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Visão e Trabalho com Cegos

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Louis Braille

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Visão e Trabalho com Cegos

Caracterização do ProgramaAprovação

1. Apresentação do Programa ao Gabinete do D115CN para aprovação

2. Elaboração de uma “Comissão da Visão” em cada Clube Lion e eventualmente em cada Divisão Lion

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Caracterização do ProgramaCalendarização

- Projecto de trabalho para o D 115 CN AL de 2008 / 2009

- Início no mês de Outubro

- Recolha dos materiais em Junho de 2009

- Eventual aplicação em anos futuros

Visão e Trabalho com Cegos

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Actividades

REALIZAÇÃO DE RASTREIOS

RECOLHAS DE ÓCULOS, ARMAÇÕES E OUTROS

ANGARIAÇÃO DE FUNDOS

SENSIBILIZAÇÃO DA POPULAÇÃO

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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RASTREIOS

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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Visão e Trabalho com Cegos

Rastreios

1. Realização de rastreios visuais, envolvendo a população e com a colaboração de:

a) Escolas e Ópticas

b) Entidades ligadas à saúde, Município e outros

2. Rastreios de Diabetes / Hipertensão / Dislipidémia, e com a colaboração de:

a) Laboratórios da especialidade

b) Farmácias e Sector da saúde

c) Associações de utilidade pública

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

RECOLHA DE ÓCULOS

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Visão e Trabalho com Cegos

Recolha de Óculos

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1. Contactar os serviços que têm actividades ligadas à visão:

a) Hospitais, Clínicas médicas, U.S.F e Centros de Saúdeb) Ópticas e afinsc) Associações ligadas à problemática da visão

2. Promover a recolha de todo o material que possa servir e beneficiar o deficiente visual.

3. Criação de Caixas para a recolha dos materiais e colocação nos locais de maior impacto:

a) Cafés e restaurantesb) Centros comerciais e mercadosc) Farmácias, ópticas, consultórios e outros locais de saúded) Bancos, mercados, e estações de transportes

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

ANGARIAÇÃO

DE

FUNDOS

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1. Venda de materiais elaborados pelos deficientes visuais

2. Elaboração de projectos e candidaturas a Lions Internacional visando a obtenção de subsídios para campanhas.

3. Solicitar às entidades locais materiais de apoio e ou subsídios visando a actividade que se pretende dinamizar.

4. Comunicação Social.

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

Angariação de Fundos

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Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

SENSIBILIZAÇÃO

DA

POPULAÇÃO

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1. Promoção de Reuniões, Simpósios e ou Workshops• Problemática da visão• Reinserção social

2. Comemoração do Dia Mundial da Visão – 15 de Outubro – com a participação responsável e responsabilizável da

• Comunicação Social• Público em geral

3. Elaboração de cartazes e panfletos apelativos, distribuindo-os e afixando-os nos locais apropriados.

4. Utilização da Comunicação Social para a divulgação dos projectos a realizar.

Visão e Trabalho com Cegos

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Sensibilização da população

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Page 241: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

5. Solicitar a passagem de slogans alusivos ao tema nos jornais e rádios, de acordo com as características locais da comunidade.

6. Criação de Bolsas de Estudo para deficientes visuais, promovidas pelos Lions das respectivas comunidades.

7. Apoio aos Lares de 3ª. Idade que pela sua múltipla patologia associada à diminuição da visão para elaboração de trabalhos de artesanato, música, dança e passeios.

Visão e Trabalho com Cegos

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Sensibilização da população

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Visão e Trabalho com Cegos

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13 Centros de Reciclagem

7 – Estados Unidos;

1 – Austrália, Canadá, Itália, França, A. do Sul e Espanha

Centro Reciclaje de Gafas Melvin Jones

Calle Espronceda, 22 – bajo dcha

03690 SAN VICENTE DEL RASPIEG – ALICANTE

ESPANHA

Contacto: Pedro Bellón, cc, DM 116

E-mail: [email protected] / [email protected]

[email protected]

Telefone – 34 965 22 91 92 e 34 966 30 24 44

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Page 243: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

Dear Lions and Ladies:

I am your opportunity. I am knocking at your door. I want to be adopted. I am the youngest here, and what I offer you is full of splendid opportunities for service.

The American Foundation for the Blind is only four years old. It represents the best and most enlightened thought on our subject that has been reached so far.

Picture yourself stumbling and groping at noonday as in the night; your work, your independence, gone. In that dark world wouldn't you be glad if a friend took you by the hand and said, "Come with me and I will teach you how to do some of the things you used to do when you could see"?

It is the caring we want more than money. The gift without the sympathy and interest of the giver is empty. If you care, if we can make the people of this great country care, the blind will indeed triumph over blindness.

The opportunity I bring to you, Lions, is this: Will you not help me hasten the day when there shall be no preventable blindness; no little deaf, blind child untaught; no blind man or woman unaided? I appeal to you Lions, you who have your sight, your hearing, you who are strong and brave and kind. Will you not constitute yourselves Knights of the Blind in this crusade against darkness?

I thank you.

Visão e Trabalho com Cegos

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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Page 244: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

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Visão e Trabalho com Cegos

“Lions, eu sou a vossa oportunidade”

Vocês que enchergam e escutam,Vocês que são fortes, corajosos e bondosos,Vocês aceitariam ser os Paladinos dos Cegosnesta cruzada contra a escuridão?

9ª. Convenção Internacional de Lions Clubes

Cedar Point, Ohio - EUA

30 de Junho de 1925 Helen Keller

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Page 245: Música | Musicoterapia | Cegueira | Deficiência Visual

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Visão e Trabalho com Cegos

“… os Lions são

os heróis de todos os dias”

Milagres através do Serviço

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Visão e Trabalho com Cegos

E vós Lions de Portugal

Aceitais ser os heróis de todos os dias

e trabalhar para a melhoria da qualidade de vida

dos vossos dependentes visuais

nesta cruzada contra a escuridão?

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