2
GAROTOS DE PROGRAMA Gus Van Sant, My Own Private Idaho, EUA, 1992 A sensação de dia, de ser atravessado por uma unidade de tempo que condensa experiências (de forma a ser talvez a mais concreta medida desta percepção abstrata), colore a obra de Gus Van Sant de uma forma intensa. Não como dado que organiza a narrativa (datas e passagens de tempo que situam a história – humoristicamente satirizadas por Buñuel em Um Cão Andaluz), mas como atmosfera que embala atividades e sentimentos. Have a nice day. A epígrafe de Garotos de Programa é também o mote que ecoa no perambular de Scott e Mike, repleto de vivências efêmeras e esparsas; de inesperados encontros e rumos imprevisíveis. E a trajetória destes personagens – ou o que conhecemos dela – é, para Van Sant, uma questão de estudo de atmosfera. Atmosfera do submundo de Portland; das estradas de Idaho; da memória; de uma amizade. Nesta “meteorologia”, a observação do céu, das paisagens, das mudanças de clima, tornase questão cinematográfica. O sol, o vento, as nuvens, as tempestades, os relâmpagos, são manifestações em sintonia com as variações humanas, que o cinema pode melhor compreender quanto mais afinado estiver com este etéreo captado pela câmera. Assim como o balançar das folhas das árvores nos filmes dos irmãos Lumière prenunciava a potência silenciosa da arte que nascia, as nuvens em movimento de Gus Van Sant estabelecem uma conexão secreta entre homem e natureza, que seus filmes testemunham sem alarde. Em Elefante, a tempestade que se anuncia no avançar imponente de nuvens carregadas sugere que o tempo está para mudar, que algo pesado irá impregnar o dia; em Garotos de Programa, as camadas de nuvens correm, como as imagens tremidas dos sonhos em Super8 de Mike, selando a ligação íntima da paisagem com o interior do personagem. Estes planos fugidios, do tempo esvanecente e das memórias imprecisas, trazem para o filme a dimensão narcoléptica (e lacunar) de sua vida. O desenrolar elíptico da narrativa é o de um roadmovie sonolento, em que a “collage” de diferentes registros e situações faz a disparidade das experiências ceder lugar a um único fluxo contínuo, permeado de pequenas confidências. Garotos de Programa se descobre arritmicamente; se deixa levar, entregue a seus personagens. Mike é o jovem cuja alma parece residir exatamente na estrada em que ele se encontra no início do filme, um vasto caminho aberto entre pradarias que se estendem até o horizonte. Um nãolugar; espaço paradoxal, ao mesmo tempo pura passagem e rota em uma mitologia da conquista, filmado por Gus Van Sant como um espaço de absoluta imobilidade; planícietabula rasa, onde as motos morrem e onde Mike é capaz de deitar, dormir e imaginar uma casa no centro do universo. Nesta paisagem apreendida afetivamente (“my own private Idaho”), somos imersos, para transitar livremente pelo universo emotivo de Mike. É desta forma que Scott subitamente irrompe no filme: A estrada que habita o espírito de Mike. A paisagem tornada lar: a apreensão afetiva do mundo transformao em território livre. As imagens em Super8: memórias fugidias e imprecisas, como as nuvens em movimento.

My Own Private Idaho

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Uma análise do filme 'My Own Private Idaho'

Citation preview

Page 1: My Own Private Idaho

06/06/2015 contracampo :: revista de cinema

http://www.contracampo.com.br/87/dvdprivateidaho.htm 1/2

GAROTOS DE PROGRAMAGus Van Sant, My Own Private Idaho, EUA, 1992

A sensação de dia, de ser atravessado por uma unidadede tempo que condensa experiências (de forma a sertalvez a mais concreta medida desta percepção abstrata),colore a obra de Gus Van Sant de uma forma intensa. Nãocomo dado que organiza a narrativa (datas e passagensde tempo que situam a história – humoristicamentesatirizadas por Buñuel em Um Cão Andaluz), mas comoatmosfera que embala atividades e sentimentos.

Have a nice day. A epígrafe de Garotos de Programa étambém o mote que ecoa no perambular de Scott e Mike,repleto de vivências efêmeras e esparsas; de inesperadosencontros e rumos imprevisíveis. E a trajetória destespersonagens – ou o que conhecemos dela – é, para VanSant, uma questão de estudo de atmosfera. Atmosfera dosubmundo de Portland; das estradas de Idaho; damemória; de uma amizade. Nesta “meteorologia”, aobservação do céu, das paisagens, das mudanças declima, torna­se questão cinematográfica. O sol, o vento, asnuvens, as tempestades, os relâmpagos, sãomanifestações em sintonia com as variações humanas,que o cinema pode melhor compreender quanto maisafinado estiver com este etéreo captado pela câmera.

Assim como o balançar das folhas das árvores nos filmesdos irmãos Lumière prenunciava a potência silenciosa daarte que nascia, as nuvens em movimento de Gus VanSant estabelecem uma conexão secreta entre homem enatureza, que seus filmes testemunham sem alarde. EmElefante, a tempestade que se anuncia no avançarimponente de nuvens carregadas sugere que o tempo estápara mudar, que algo pesado irá impregnar o dia; emGarotos de Programa, as camadas de nuvens correm,como as imagens tremidas dos sonhos em Super­8 deMike, selando a ligação íntima da paisagem com o interiordo personagem. Estes planos fugidios, do tempoesvanecente e das memórias imprecisas, trazem para ofilme a dimensão narcoléptica (e lacunar) de sua vida. Odesenrolar elíptico da narrativa é o de um road­moviesonolento, em que a “collage” de diferentes registros esituações faz a disparidade das experiências ceder lugar aum único fluxo contínuo, permeado de pequenasconfidências.

Garotos de Programa se descobre arritmicamente; sedeixa levar, entregue a seus personagens. Mike é o jovemcuja alma parece residir exatamente na estrada em queele se encontra no início do filme, um vasto caminhoaberto entre pradarias que se estendem até o horizonte.Um não­lugar; espaço paradoxal, ao mesmo tempo purapassagem e rota em uma mitologia da conquista, filmadopor Gus Van Sant como um espaço de absolutaimobilidade; planície­tabula rasa, onde as motos morrem eonde Mike é capaz de deitar, dormir e imaginar uma casano centro do universo. Nesta paisagem apreendidaafetivamente (“my own private Idaho”), somos imersos,para transitar livremente pelo universo emotivo de Mike.

É desta forma que Scott subitamente irrompe no filme:

A estrada que habita o espírito de Mike.

A paisagem tornada lar: a apreensão afetiva do mundo transforma­o emterritório livre.

As imagens em Super­8: memórias fugidias e imprecisas,

como as nuvens em movimento.

Page 2: My Own Private Idaho

06/06/2015 contracampo :: revista de cinema

http://www.contracampo.com.br/87/dvdprivateidaho.htm 2/2

quando retorna ao cotidiano do protagonista, trazendo àsuperfície um profundo afeto. Ele é o filhinho do prefeitoque resolveu se aventurar pelo underground, sendoapadrinhado por Bob, o Falstaff de Van Sant. Mas Scottestá em iminente desequilíbrio: anuncia que vai seendireitar em breve e assume um tom de aventuraproibida para os seus “anos selvagens”. Neste movimentode declínio, ele pende para o amigo Mike; e, como “últimacruzada”, toma para a si a missão de ajudá­lo a encontrara mãe. Os dois partem, então, numa jornada que ganhaum delicado caráter íntimo e termina por configurar umnovo equilíbrio para o microcosmo em torno de Mike.

Há três linhas narrativas intercruzadas em Garotos dePrograma: a amizade de Scott e Mike; a relação de Mikecom o mundo, marcada pela narcolepsia e por suamemória familiar; a dupla paternidade shakespeariana deScott, com sua ascendência burguesa e sua degeneraçãomarginal. Mas apenas uma sensibilidade a guiar o filme: ade Mike. Uma irremediável melancolia é, portanto,disseminada pelos dias que as imagens sintetizam, nomomento em que Scott rejeita sua declaração de amor,cruzando um ponto de não­retorno em direção ao seuafastamento da vida “livre”, desregrada, quecompartilhavam. Em volta de uma fogueira, os doispersonagens conversam, evidenciando sua posição nomundo e o estado afetivo de um em relação ao outro,numa das mais belas e tristes cenas de todo o cinema deGus Van Sant.

O “declínio” paradigmático de Scott carrega tudo consigo:prenuncia o falecimento do pai, de quem ele será oherdeiro, e condena Bob à morte, pela indiferença –,selando a supremacia de uma ordem social sobre aliberdade de existir. Se antes seu desvio particular eramotivo de regozijo e possuía um efeito potencializador datransgressão praticada como declaração de princípios, suacorreção de rumo é o lamento que só pode ser remediadoatravés de radiante afirmação libertária. O velório de Bob,promovido sob forma de uma alegre farra, por toda a“comunidade” que liderava, acontece próxima eparalelamente ao velório formalíssimo do outro pai deScott, o ex­prefeito da cidade. A troca de olhares que sedá entre Mike e Scott catalisa o peso da escolha deste e ainfeliz distância que agora os separa.

Mas o dia muda – e, com ele, a atmosfera. Solto nomundo, Mike continuará descobrindo as horas, sob as maisdiversas companhias. Afinal, liberdade é tomar o mundopara si. E não morrer de amor.

Tatiana Monassa

(DVD: PlayArte)

No mesmo momento em que desponta, o amor é condenado. Solto nomundo, resta a Mike aceitar sua condição

de eterno desgarrado...

...e ostentá­la, frente à decadência de Scottrumo à “normalidade”.