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Uma análise do filme 'My Own Private Idaho'
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06/06/2015 contracampo :: revista de cinema
http://www.contracampo.com.br/87/dvdprivateidaho.htm 1/2
GAROTOS DE PROGRAMAGus Van Sant, My Own Private Idaho, EUA, 1992
A sensação de dia, de ser atravessado por uma unidadede tempo que condensa experiências (de forma a sertalvez a mais concreta medida desta percepção abstrata),colore a obra de Gus Van Sant de uma forma intensa. Nãocomo dado que organiza a narrativa (datas e passagensde tempo que situam a história – humoristicamentesatirizadas por Buñuel em Um Cão Andaluz), mas comoatmosfera que embala atividades e sentimentos.
Have a nice day. A epígrafe de Garotos de Programa étambém o mote que ecoa no perambular de Scott e Mike,repleto de vivências efêmeras e esparsas; de inesperadosencontros e rumos imprevisíveis. E a trajetória destespersonagens – ou o que conhecemos dela – é, para VanSant, uma questão de estudo de atmosfera. Atmosfera dosubmundo de Portland; das estradas de Idaho; damemória; de uma amizade. Nesta “meteorologia”, aobservação do céu, das paisagens, das mudanças declima, tornase questão cinematográfica. O sol, o vento, asnuvens, as tempestades, os relâmpagos, sãomanifestações em sintonia com as variações humanas,que o cinema pode melhor compreender quanto maisafinado estiver com este etéreo captado pela câmera.
Assim como o balançar das folhas das árvores nos filmesdos irmãos Lumière prenunciava a potência silenciosa daarte que nascia, as nuvens em movimento de Gus VanSant estabelecem uma conexão secreta entre homem enatureza, que seus filmes testemunham sem alarde. EmElefante, a tempestade que se anuncia no avançarimponente de nuvens carregadas sugere que o tempo estápara mudar, que algo pesado irá impregnar o dia; emGarotos de Programa, as camadas de nuvens correm,como as imagens tremidas dos sonhos em Super8 deMike, selando a ligação íntima da paisagem com o interiordo personagem. Estes planos fugidios, do tempoesvanecente e das memórias imprecisas, trazem para ofilme a dimensão narcoléptica (e lacunar) de sua vida. Odesenrolar elíptico da narrativa é o de um roadmoviesonolento, em que a “collage” de diferentes registros esituações faz a disparidade das experiências ceder lugar aum único fluxo contínuo, permeado de pequenasconfidências.
Garotos de Programa se descobre arritmicamente; sedeixa levar, entregue a seus personagens. Mike é o jovemcuja alma parece residir exatamente na estrada em queele se encontra no início do filme, um vasto caminhoaberto entre pradarias que se estendem até o horizonte.Um nãolugar; espaço paradoxal, ao mesmo tempo purapassagem e rota em uma mitologia da conquista, filmadopor Gus Van Sant como um espaço de absolutaimobilidade; planícietabula rasa, onde as motos morrem eonde Mike é capaz de deitar, dormir e imaginar uma casano centro do universo. Nesta paisagem apreendidaafetivamente (“my own private Idaho”), somos imersos,para transitar livremente pelo universo emotivo de Mike.
É desta forma que Scott subitamente irrompe no filme:
A estrada que habita o espírito de Mike.
A paisagem tornada lar: a apreensão afetiva do mundo transformao emterritório livre.
As imagens em Super8: memórias fugidias e imprecisas,
como as nuvens em movimento.
06/06/2015 contracampo :: revista de cinema
http://www.contracampo.com.br/87/dvdprivateidaho.htm 2/2
quando retorna ao cotidiano do protagonista, trazendo àsuperfície um profundo afeto. Ele é o filhinho do prefeitoque resolveu se aventurar pelo underground, sendoapadrinhado por Bob, o Falstaff de Van Sant. Mas Scottestá em iminente desequilíbrio: anuncia que vai seendireitar em breve e assume um tom de aventuraproibida para os seus “anos selvagens”. Neste movimentode declínio, ele pende para o amigo Mike; e, como “últimacruzada”, toma para a si a missão de ajudálo a encontrara mãe. Os dois partem, então, numa jornada que ganhaum delicado caráter íntimo e termina por configurar umnovo equilíbrio para o microcosmo em torno de Mike.
Há três linhas narrativas intercruzadas em Garotos dePrograma: a amizade de Scott e Mike; a relação de Mikecom o mundo, marcada pela narcolepsia e por suamemória familiar; a dupla paternidade shakespeariana deScott, com sua ascendência burguesa e sua degeneraçãomarginal. Mas apenas uma sensibilidade a guiar o filme: ade Mike. Uma irremediável melancolia é, portanto,disseminada pelos dias que as imagens sintetizam, nomomento em que Scott rejeita sua declaração de amor,cruzando um ponto de nãoretorno em direção ao seuafastamento da vida “livre”, desregrada, quecompartilhavam. Em volta de uma fogueira, os doispersonagens conversam, evidenciando sua posição nomundo e o estado afetivo de um em relação ao outro,numa das mais belas e tristes cenas de todo o cinema deGus Van Sant.
O “declínio” paradigmático de Scott carrega tudo consigo:prenuncia o falecimento do pai, de quem ele será oherdeiro, e condena Bob à morte, pela indiferença –,selando a supremacia de uma ordem social sobre aliberdade de existir. Se antes seu desvio particular eramotivo de regozijo e possuía um efeito potencializador datransgressão praticada como declaração de princípios, suacorreção de rumo é o lamento que só pode ser remediadoatravés de radiante afirmação libertária. O velório de Bob,promovido sob forma de uma alegre farra, por toda a“comunidade” que liderava, acontece próxima eparalelamente ao velório formalíssimo do outro pai deScott, o exprefeito da cidade. A troca de olhares que sedá entre Mike e Scott catalisa o peso da escolha deste e ainfeliz distância que agora os separa.
Mas o dia muda – e, com ele, a atmosfera. Solto nomundo, Mike continuará descobrindo as horas, sob as maisdiversas companhias. Afinal, liberdade é tomar o mundopara si. E não morrer de amor.
Tatiana Monassa
(DVD: PlayArte)
No mesmo momento em que desponta, o amor é condenado. Solto nomundo, resta a Mike aceitar sua condição
de eterno desgarrado...
...e ostentála, frente à decadência de Scottrumo à “normalidade”.