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screver sobre a vida de famosos e de anônimos. Essa é a rotina diária de muitos jornalistas. Mas e se a vida em questão for a morte? Estranho? Não. O obituário ou necrológio refere-se ao gênero biográfico, à narração de vidas, uma tradição no jornalismo. Não é uma tarefa fácil de fazer, deman- da pesquisa, apuração, e porque não dizer paixão. O obituário é elaborado pelos mais qualificados profissionais, por aqueles com capacidade de en- xergar detalhes do cotidiano e contar histórias. Borges Neto, 70, ingressou no jornalismo em 1969, como repórter para copydesk. – Foi engraçado porque logo fui contratado com carteira assinada e sem a mínima experiência – diz Neto. Julho/Dezembro 2004 18 ANA CRISTINA FERNANDES, FERNANDO CHAVES, FLÁVIA MORETTI E T AISA ALOY Na hora de nossa mort e , A m é m Obituários: o retrato 3x4 de uma vida Obituário publicado no jornal O Globo de 22/01/2005

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s c rever sobre a vida de famosos e deanônimos. Essa é a rotina diária demuitos jornalistas. Mas e se a vida emquestão for a morte? Estranho? Não. Oobituário ou necrológio re f e re-se ao

g ê n e ro biográfico, à narração de vidas, uma tradiçãono jornalismo. Não é uma tarefa fácil de fazer, deman-da pesquisa, apuração, e porque não dizer paixão.

O obituário é elaborado pelos mais qualificadosprofissionais, por aqueles com capacidade de en-xergar detalhes do cotidiano e contar histórias.Borges Neto, 70, ingressou no jornalismo em 1969,como repórter para copydesk.

– Foi engraçado porque logo fui contratado comcarteira assinada e sem a mínima experiência – dizNeto.

Julho/Dezembro 200418

ANA CRISTINA FERNANDES, FERNANDO CHAVES, FLÁVIA MORETTI E TAISA ALOY

Na hora de nossa mort e , A m é mObituários: o retrato 3x4 de uma vida

Obituário publicado no jornal O Globo de 22/01/2005

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Um mês depois, foi demitido e logo foi admitidocomo revisor no Jornal do Brasil. Em 1972, virourepórter e, em 2001, foi destacado para escreverobituários.

– Eu nunca tinha pensado em fazer obituários e,em 1969, acho que isso nem existia, se existia erauma coisa muito relativa, muito secundária. Sódepois, com a influência do The New York Times foique se percebeu que a morte também era notícia, eos jornais se preocuparam com isso – conta Borges.

Nos Estados Unidos, jornais como o WashingtonPost e o Indianapolis Star não escrevem apenassobre pessoas famosas, mas também sobre anôni-mos, moradores da região. O obituário faz uma re-trospectiva dos principais acontecimentos de suasvidas, acompanhado, em alguns casos, por foto.

No caso do Jornal do Brasil, os obituários são compessoas famosas, embora também se noticie,através de pequenas notas, a morte de anônimos.Isso é recorrente na imprensa paulista, em que é depraxe dizer nome, idade, parentes e onde se reali-zou o enterro da pessoa. No jornal Estado de S.Paulo há um telefone para envio de notícias deFalecimento ou Missa. A seção da Folha de S. Pauloé menos destacada, a linguagem é mais direta, e acoluna diária publicada no cader-no Cotidiano se denomina “Mor-tes”.

No Rio, o estilo do Globo é maissolto, criativo e livre. Em algunscasos, há uma frase de impacto noinício do texto ou uma citação. Jáno Jornal do Brasil, segue-se ummodelo mais objetivo, direto, devi-do ao menor espaço reservado para o obituário.

Segundo Borges, a liberdade para se escrever umobituário é um fator positivo, mas deve-se ter cuida-do para não se perder com o excesso de informações.

– No Globo você é soberano, pode começar comuma citação bela e a partir daí desenvolver suahistória. O desafio é prender o leitor, não se perdercom detalhes e minúcias que o cansam e o levamaté a mudar de página – afirma Borges.

O resumo de uma vida Ao fazer a “biografia” de um morto, deve-se pro c u-

rar entrevistar pessoas que conviveram com ele.

– Sabe qual a forma que eu descobri que agrada-va os leitores do Jornal do Brasil? Logo que eu apre-sento o morto, abro com um travessão e coloco umdepoimento, esse recurso dá muita “vida à morte”.

Esse é o segredo. Eu criei isso – re-vela Borges Neto.

As biografias fazem parte doobituário, mas nada têm a ver comelogios fúnebres. Não precisam serportadoras de tristezas, podem sermensageiras de grandes proezas.Independente do formato, a bi-ografia não pode escapar de sua

principal obrigação: mostrar uma pessoa atravésde suas qualidades e defeitos.

– Um retrato não tem que esconder rugas. Agoracabe ao bom redator escrever o texto com elegância– completa Borges.

Para evitar perfis biográficos ou obituários escritosàs pressas, todas as redações costumam manter, emseus arquivos, material biográfico sobre personali-dades idosas ou que estejam com problemas desaúde. O objetivo do jornal é retratar a dimensão davida daquele personagem de uma forma precisa ede acordo com os interesses do leitor. Veículos maisp reocupados com a qualidade dos seus textos

A indesejada das gentes 19

“Eu ajudei esse morto a ser

mais bonito”Borges Neto

Obituário publicado no Jornal do Brasil de 05/02/2005

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encomendam obituários por antecipação, peri-odicamente revistos e atualizados, como é o caso doP a p a .

A função do obituário é informar ao leitor dam o rte e perpetuar a existência da pessoa nesta vida.Ao passar essa história para o papel, o jorn a l i s t atem a sensação de ter ajudado a torná-la conhecida.

– Eu contribuí para a existência de uma pessoa.Tem tudo a ver com o lado bom davida. Eu ajudei esse morto a sermais bonito – emociona-se Borges.

Os leitores de obituários eanúncios fúnebres

Alguns lêem obituários e anún-cios fúnebres movidos por umaespécie de “curiosidade mórbida”, outros, comomuitos jornalistas, para estarem informados, já quea morte é notícia. De modo geral, as pessoas instin-tivamente são levadas a saber quem morreu.

Inês de Albuquerque lê com freqüência a seção deanúncios fúnebres do jornal O Globo. Ela conta queadquiriu o hábito da leitura depois de ter perdido oenterro e a missa da tia de uma amiga.

– Depois desse dia, passei a ler os nomes de pessoasque faleceram porque já aconteceu algumas vezes deter pessoas conhecidas e eu me manifestar. Eu leiopara não ficar em falta com as famílias – diz Inês.

Quem já precisou comprar um anúncio fúnebre,

sabe que divulgar a morte sai caro. No jornal OGlobo, o menor anúncio, de segunda a sábado,custa R$435, enquanto no domingo o preço sobepara R$690. O mais caro chega a R$4.350, desegunda a sábado, e R$6.900 no domingo.

– O espaço é importante, mas acho que deveria sermais barato. Conheço muita gente que faleceu e afamília não teve condições de pagar um anúncio

f ú n e b re. E quando o anúncio émuito pequeno, quase ninguém vê.Eu mesmo já não vi – critica Inês.

O advogado Felipe Jucá diz queo obituário é a “coluna social dosdefuntos”. Ele também costumaler os anúncios fúnebres e já en-controu conhecidos.

– Certa ocasião, eu estava pronto para visitaruma amiga. Não a via fazia muitos anos. Derepente, minha mulher, que só acidentalmente lê oobituário do jornal que assino, desfez meus planos:avisou-me que a tal amiga havia morrido no diaanterior. Agora, para vê-la, eu só tinha um cami-nho: ir ao seu enterro, no Jardim da Saudade, comoindicava o anúncio fúnebre – conta o advogado.

Para quem não gostar de freqüentar cemitérios,velórios e enterros, visitar os obituários de jornais éa melhor forma de se despedir dos mortos conheci-dos sem passar pelo constrangimento de vê-losdesaparecer.

O obituário é a coluna social dos defuntos

O envio de condolência o n - l i n e éuma nova curiosidade mórbida naera da internet. Esta prática já estácomeçando a se difundir em SãoPaulo. Três portais já oferecem os e rviço. Além do envio de men-sagens de pêsames, o s i t e i n c l u iainda guia funerário além de dicase procedimentos para quem pre-cisa lidar com esta situação, que éa morte.

Em um recado do site http:/ / w w w.osan.com.br/obito/, no dia8 de novembro de 2004, a Sra.Ninha solicita obter mais infor-

mações sobre André Luiz de SouzaGrande, jovem de 21 anos, dacidade de Santos, falecido em 24 deo u t u b ro de 2004. A senhora Ninhasuspeita que o morto seja um co-nhecido que, de acordo com ela,“sumiu do mapa”. De fato, a inter-net se tornou uma teia onde seencontra qualquer tipo de infor-mação, inclusive, sobre pessoasf a l e c i d a s .

Saiba mais nos links:http://www.obito.com.br/; h t t p : / / w w w. o s s e l . c o m . b r / o b i t u a r i o /http://www.osan.com.br/obito/

Você sabia que é possível enviar “Condolências Virtuais”?

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