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A RELAÇÃO CIVIL-MILITAR NO BRASIL: UMA ANÁLISE DO PERÍODO DE 1985 A 2006. MARCIO ROCHA 1 Nada é possível sem homens, mas nada se mantém sem Instituições. Jean Monnet O estudo das relações entre civis e militares se ressente de pouquíssimas teorizações (HUNTINGTON, 1996). Esta assertiva nos remete à reflexão de que, sob o enfoque da instituição militar, ainda é atual o questionamento seguinte: as Forças Armadas, como profissão, defrontam-se com uma crise: de que modo organizar-se para atender às suas múltiplas funções de intimidação estratégica, guerra limitada e maior responsabilidade político- militar? (JANOWITZ, 1967) Torna-se importante a compreensão de qual o real papel das Forças Armadas e, no nível político, como deve ser conduzido o relacionamento entre os militares e as autoridades civis democraticamente eleitas. Para isso, é essencial considerar, sempre, que “as instituições militares de qualquer sociedade são moldadas por duas forças: um imperativo funcional, que se origina das ameaças à segurança da sociedade, e um imperativo societário, proveniente das forças sociais, das ideologias e das instituições dominantes dentro dessa mesma sociedade. É na interação dessas duas forças que está o nó do problema das relações civis e militares” (HUNTINGTON, 1996). Em conseqüência, o sucesso nessa interação implica em considerar que “qualquer sistema de relação civil-militar envolve um complexo equilíbrio entre autoridade, influencia e ideologia dos militares, por um lado, e autoridade, influencia e ideologia de grupos não-militares, por outro” (HUNTINGTON, 1996). É consenso entre estudiosos, acadêmicos e políticos, que na sociedade onde predomina um sistema democrático de governo, a forma mais efetiva de se obter o controle político civil sobre as Forças Armadas seria a de propiciar as condições para que estas possam se dedicar aos problemas técnicos e profissionais sob suas responsabilidades, tendo a 1 Doutor em Ciência Política. Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos (PPGEST) da Universidade Federal Fluminense. [email protected].

Nada é possível sem homens, mas nada se mantém sem ... · político civil sobre as Forças Armadas seria a de propiciar as condições para que estas possam ... necessária autonomia

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A RELAÇÃO CIVIL-MILITAR NO BRASIL:

UMA ANÁLISE DO PERÍODO DE 1985 A 2006.

MARCIO ROCHA1

Nada é possível sem homens, mas nada se mantém sem Instituições.

Jean Monnet

O estudo das relações entre civis e militares se ressente de pouquíssimas

teorizações (HUNTINGTON, 1996). Esta assertiva nos remete à reflexão de que, sob o

enfoque da instituição militar, ainda é atual o questionamento seguinte: as Forças Armadas,

como profissão, defrontam-se com uma crise: de que modo organizar-se para atender às suas

múltiplas funções de intimidação estratégica, guerra limitada e maior responsabilidade político-

militar? (JANOWITZ, 1967)

Torna-se importante a compreensão de qual o real papel das Forças Armadas e, no

nível político, como deve ser conduzido o relacionamento entre os militares e as autoridades

civis democraticamente eleitas. Para isso, é essencial considerar, sempre, que “as instituições

militares de qualquer sociedade são moldadas por duas forças: um imperativo funcional, que se

origina das ameaças à segurança da sociedade, e um imperativo societário, proveniente das

forças sociais, das ideologias e das instituições dominantes dentro dessa mesma sociedade. É

na interação dessas duas forças que está o nó do problema das relações civis e militares”

(HUNTINGTON, 1996). Em conseqüência, o sucesso nessa interação implica em considerar

que “qualquer sistema de relação civil-militar envolve um complexo equilíbrio entre

autoridade, influencia e ideologia dos militares, por um lado, e autoridade, influencia e

ideologia de grupos não-militares, por outro” (HUNTINGTON, 1996).

É consenso entre estudiosos, acadêmicos e políticos, que na sociedade onde

predomina um sistema democrático de governo, a forma mais efetiva de se obter o controle

político civil sobre as Forças Armadas seria a de propiciar as condições para que estas possam

se dedicar aos problemas técnicos e profissionais sob suas responsabilidades, tendo a

1 Doutor em Ciência Política. Professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos (PPGEST) da Universidade Federal Fluminense. [email protected].

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necessária autonomia para tratar de tais questões. Em tese, isso criaria o ambiente para mantê-

las afastadas das questões políticas.

Esta é uma questão complexa e que exige maturidade política. Nessa relação, a

maturidade e o nível político envolvido são enfatizados, também, por Janowitz, quando afirma

que “o controle civil dos assuntos militares continua intacto e, como conceito,

fundamentalmente aceitável pelas Forças Armadas; qualquer desequilíbrio nas contribuições

militares a questões político-militares – internas ou internacionais – é, por conseguinte,

frequentemente resultado de omissão por parte da liderança política civil (JANOWITZ, 1967).

No caso específico do Brasil, verifica-se, ainda, a carência de estudos que possam

apresentar, com um razoável grau de confiança, as reais condições e os fatores que

influenciam, ou influenciaram, no relacionamento civil-militar, ao se considerar os parâmetros

estabelecidos por Janowitz e Huntington. A percepção da maioria dos brasileiros sobre a

relação civil-militar é bastante tênue (OLIVEIROS, 2008). De acordo com Celso Castro,

“continua a haver um déficit de pesquisas sobre o mundo militar, daí compreender-se pouco o

funcionamento dessas instituições. Durante muito tempo, havia grande rejeição do meio

acadêmico em se estudar o assunto, como se isso fosse sinônimo de adesão ideológica ou

poluição moral. Nada mais equivocado” (CASTRO). Também Ramalho, em seus estudos,

enfatiza que “a própria destinação das Forças e suas dimensões, suas hipóteses de emprego, seu

orçamento, suas condições de interoperabilidade, tudo reclama discussão mais ampla e

profunda. E o público interessado é escasso; os interlocutores qualificados são raros

(RAMALHO, 2010)”.

Foi considerando as dificuldades presentes no adequado entendimento dos fatores que

influenciam na relação civil-militar, que o objetivo proposto para esta pesquisa foi o de

contribuir para o estudo da relação entre o poder civil e as Forças Armadas, no Brasil, no

período compreendido entre os anos de 1985 e 2006. O principal intento foi o de verificar

como as transformações políticas, ocorridas nesse período, influenciaram na relação entre o

poder político e as Forças Armadas. A tese central da pesquisa é que houve um ganho e

resultados positivos na relação entre políticos e militares, em função da consolidação de um

processo democrático no período de 1985 a 2006.

A TEORIA SOBRE A RELAÇÃO CIVIL-MILITAR.

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Uma obra que se tornou referência e base para as discussões sobre a relação civil-

militar foi o “Soldado e o Estado: teoria política das relações entre civis e militares”, de

autoria de Samuel Huntington, editada em 1957. Considerado um pioneiro nessa discussão,

Huntington aborda a relação entre o poder político (Estado) e os militares (Forças Amadas),

destacando o “profissionalismo militar” como um método para harmonizar os freqüentes

conflitos entre política e militares.

Considerava Huntington que o “profissionalismo militar” seria uma solução para a

permanente ameaça da ascendência do poder militar sobre o poder civil. O que prevalecia nas

argumentações deste autor é que as políticas relativas ao setor de segurança e defesa, aí

incluídas as Forças Armadas, e de acordo com as necessidades do Estado, deveriam ficar sob

controle e responsabilidade das autoridades políticas civis eleitas em um processo democrático.

Nesse caso, ao militar profissional caberia apenas se dedicar aos estudos e às práticas para o

desenvolvimento técnico-profissional das Forças Armadas.

Portanto, o controle político civil das Forças Armadas é a questão central nos

argumentos de Huntington. Ao afirmar que a responsabilidade pelos problemas do setor de

defesa, e a tomada das grandes decisões estratégicas, é da liderança política civil, coloca em

perspectiva a relação entre o poder político civil e o das Forças Armadas. No entanto, para que

isso possa ocorrer implica em que este seja subordinado àquele.

As opções apresentadas por Huntington para maximizar o poder político civil, e em

contrapartida minimizar o poder das Forças Armadas, foram o controle civil subjetivo e o

controle civil objetivo.

O controle civil subjetivo ocorreria pela “civilização” das Forças Armadas, ao

estimular o envolvimento dessas na política institucional. No entanto, essa forma de controle

mostrou-se impraticável, sendo que um maior envolvimento político das Forças Armadas

poderia levar a uma manipulação das mesmas por grupos políticos diversos.

O controle civil objetivo foi a opção que se tornou mais viável na ótica de

Huntington. O controle civil objetivo seria alcançado pela profissionalização das Forças

Armadas, direcionando os esforços da mesma para as atividades técnicas e de incremento da

capacidade militar. Com isso, os militares não teriam razões para interferências em assuntos

políticos. As ideias defendidas por Huntington, quanto à questão da profissionalização militar

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foram motivo de críticas, em função de aspectos que não teriam sidos considerados por este

teórico.

O sociólogo Morris Janowitz (JANOWITZ, 1967), autor da clássica obra “O Soldado

Profissional: um estudo social e político”, editada em 1960, foi um desses críticos. As

preocupações de Janowitz, além da referente ao controle civil, também aborda a complexa

questão da manutenção da habilidade e capacidade militar de responder às necessidades de

segurança e defesa do Estado. Ao contrario de Huntington, argumenta que a criação de

mecanismos para criar Forças Armadas apolíticas, de modo a assegurar o controle civil, é um

argumento sem base na realidade.

Janowitz defende que o aspecto referente à profissionalização militar é influenciado

pela variação temporal. A profissionalização militar se modificaria com o tempo e seria

influenciada pelas condições históricas e sociais em que se inserem as Forças Armadas.

Também, ressalta que as Forças Armadas constituem um grupo de pressão único, devido à

dimensão dos recursos que controlam e fortalecido pela gravidade de suas funções. Além disso, a

formação unificada e a forte característica de coesão interna incrementam ainda mais a posição

como grupo de pressão. Este argumenta que na classe militar existem as mesmas divergências

que a sociedade apresenta em relação a diferentes problemas sociais, políticos, econômicos, etc.,

pois, afinal, os militares são parte integrante desta mesma sociedade que defendem.

Ao considerar-se o cerne da relação civil-militar, ou seja, como harmonizar o poder

político civil em relação ao poder militar, torna-se destacada a afirmativa de Huntington de que a

verdadeira causa das intervenções militares não é militar, mas política, sendo que essa causa

reflete falhas na estrutura político institucional da sociedade. Também Janowitz apresenta

argumento semelhante, quando diz que qualquer desequilíbrio nas contribuições militares a

questões político-militares é, por conseguinte, frequentemente resultado de omissão por parte da

liderança política civil.

A contribuição de Huntington foi apresentar uma teoria do controle civil objetivo

sobre as Forças Armadas, enquanto Janowitz apresentou uma teoria com enfoque cívico-

republicano, onde defendeu uma maior interação entre a sociedade civil e a militar, de modo a

existir uma maior participação cívica das Forças Armadas.

RELAÇÃO CIVIL-MILITAR – O CASO DO BRASIL

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No caso do Brasil, a influência dos militares na política foi um fato recorrente em todo

o período republicano. No período em que prevaleceram no Brasil governos autoritários2

(1964-1985), Alfred Stepan, cientista político e pesquisador das relações civil-militar no

Brasil, identificou no militar brasileiro características de profissionalização que criaram as

condições para um expansão daquilo que os militares compreendiam como seu papel na

sociedade civil e política. Segundo Stepan, os militares começaram a identificar

incompetência na liderança civil para a formulação e execução de políticas públicas como

uma das causas do subdesenvolvimento e, em conseqüência, fator de fragilidade para a

segurança nacional. Essa compreensão teria provocado a progressiva intromissão militar na

condução dos assuntos de Estado. A partir de então, emerge um perfil profissional que Stepan

chama de "novo Profissional militar da segurança interna e do desenvolvimento nacional"

(STEPAN, 1986)

Portanto, no início do governo de transição, em 1985, a grande discussão política girava

em torno de dúvidas quanto à continuidade da autonomia militar na política. De acordo com

Zaverucha, o Estado brasileiro continuava a ser autoritário em vários de seus componentes,

embora a democracia procedural estivesse em vigor. Considerava que essa discordância -

refere-se ao fato de alguns acreditarem que os militares não mais teriam participação política, e

outros não - repercutiria sobremaneira na discussão sobre a (im)possibilidade do

estabelecimento de um controle civil sobre os militares e na perspectiva dos limites da (falta

de) consolidação democrática (ZAVERUCHA, 2003).

Sobre o período de transição, observa-se nas palavras de Ramalho o seguinte: a

transição democrática não reduziu a distância entre civis e militares no Brasil, estes se

fecharam em seus quartéis e se calaram; aqueles, por muito tempo, não quiseram se aproximar

das Forças Armadas, ou por não verem vantagens imediatas nisso, ou por preconceito, com

medo de terem sua imagem associada a um passado que a sociedade reluta em enfrentar.

Quanto ao futuro, os incentivos de curto prazo para se aproximar das Forças são restritos

(RAMALHO, 2010).

2 Para diferenciar de governo totalitário, Boris Fausto classifica o governo autoritário como um produto das condições políticas vigentes no século XX, caracterizando-se, negativamente, por menor investimento em todas as esferas da vida social; pela inexistência de uma simbiose entre Partidos e Estado, sendo o primeiro, quando existente, dependente do último; e, pelas restrições à mobilização das massas. Fausto, Boris. O pensamento nacionalista autoritário.

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No entanto, a despeito das expectativas negativas anteriormente citadas, um

levantamento dos eventos políticos no período de 1986 a 1991, permitiu verificar um gradual

afastamento dos militares na participação de assuntos políticos.

Como forma de ilustrar esses eventos, caracterizados por declarações de militares, é

possível destacá-los conforme registrados no gráfico 1, onde pode ser visualizada uma

tendência de queda na influência militar na política nacional. O período de 1986 a 1991 foi

escolhido em função de o Brasil já se encontrar sob regime democrático, condição fortalecida

com a promulgação da Constituição Federal, portanto com regras democráticas claras e em fase

de consolidação. A escolha desse período foi reforçada, também, pelo fato de ter ocorrido o

impeachment de um Presidente da República, em 1992, de forma democrática e sem

sobressaltos políticos e interferências militares, e isso mostrar que a transição política estava

realmente fortalecida.

As notícias com enfoque político e de Defesa são aquelas em que se verificaram a

participação direta de autoridades militares, sejam emitindo opiniões, sejam defendendo as

posições e as necessidades das instituições militares. Embora no período considerado, o Brasil

já estivesse sob as regras de um governo democrático, as criticas ou as opiniões das autoridades

militares despertavam interesses da imprensa em geral, em função da influência que ainda

exerciam na política; e no caso dos assuntos de defesa, pelo nível de conhecimento profissional

sobre os mesmos, em contraste com conhecimentos semelhantes encontrados em autoridades

civis, além da baixa priorização política dada aos mesmos.

Gráfico 13

3 A escolha desses veículos baseou-se na necessidade de se obter um equilíbrio entre as posturas dos mesmos. O jornal Folha de São Paulo tem uma visão liberal, adotando uma posição crítica quando se trata das Forças Armadas. Por outro lado, o jornal O Estado de São Paulo apresenta uma postura conservadora, apresentando uma defesa da existência de Forças Armadas modernas e fortalecidas.

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Os assuntos classificados como políticos referiam-se ao posicionamento das lideranças

militares sobre questões variadas, tais como os trabalhos da Constituinte, a lei de anistia e de

segurança nacional, o conflito agrário, o orçamento, a crise econômica, o problema salarial, etc.

Os assuntos classificados como de Defesa referiam-se a problemas e necessidades específicas

de Defesa ou das Forças Armadas. Os principais temas tratados pelos militares referiam-se ao

projeto do submarino nuclear brasileiro, às necessidades de reequipamento das Forças

Armadas, ao projeto Calha Norte, à situação da obsolescência dos armamentos das Forças

Armadas, à redução do orçamento militar, às necessárias ações das Forças Armadas na

Amazônia, às questões de guerrilhas na fronteira norte, etc.

O importante a ser destacado é que existiu um gradual declínio na participação das

lideranças militares em pronunciamentos com teor político nesse período. As declarações

políticas envolvendo as Forças Armadas foram, gradativamente, sendo absorvidas pelas

lideranças políticas. Com o advento do Ministério da Defesa, em 1999, os pronunciamentos

militares quase desaparecem. Isso mostra que, à medida que as instituições democráticas se

consolidavam, existiu um natural afastamento e perda de espaço político para as lideranças

militares no cenário político.

A análise acima descrita pode ser comprovada pelo fato político envolvendo o

impeachment do Presidente Collor em 1992. Ao contrário das expectativas de alguns teóricos,

os eventos em si mostraram o distanciamento militar daquele importante fato político. De

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acordo com Celso Castro, “contrariando uma histórica “vocação messiânica”, os militares se

mantiveram em posição estritamente institucional, sem pronunciamentos ou ameaças de golpe

ou intervenção a pretexto de “salvar” quer o presidente, quer a nação. Este foi o “batismo de

fogo” dos militares na nova democracia. Apesar da expectativa geral de que iriam tomar

alguma atitude contra ou a favor do impeachment, os ministros militares limitaram-se a dizer

que seu papel era o de respeitar a Constituição e o processo político legal” (CASTRO,

MARIA CELINA, 2001).

PODER POLÍTICO E FORÇAS ARMADAS

A postura política referente às Forças Armadas e questões de Defesa, no período

imediatamente pós 1985, pode ser definida como de distanciamento e baixa prioridade política.

A pesquisa apontou para dois momentos distintos relacionados às Forças Armadas: o primeiro

ocorrido entre 1985 e 1995, e o segundo entre 1996 e 2006.

O primeiro momento foi marcado por um distanciamento e baixo interesse político

pelos temas envolvendo as Forças Armadas. O que se destacou nesse primeiro momento foi a

instabilidade política de um governo de transição; pela sombra da existência de uma tutela

militar ao governo; pelas discussões envolvendo os trabalhos de uma Assembléia Constituinte;

por discussões sobre mudanças na Lei de Segurança Nacional; pelos debates sobre as primeiras

eleições democráticas que ocorreriam em 1989; pelo impeachment de um Presidente da

República; por instabilidades nas áreas econômicas e sociais, etc. O segundo momento pode ser

caracterizado como aquele em que tem início um processo de obtenção do controle político,

ainda que gradual, dos debates e das atividades relacionadas com as Forças Armadas e a Defesa

Nacional.

Primeiro momento (1985 a 1995) - Uma forma de aferir o interesse político pelos

problemas relativos às Forças Armadas e à Defesa Nacional foi, dentre outros, analisar as

mensagens presidenciais enviadas anualmente ao Congresso Nacional. O conteúdo dessas

mensagens, relativas ao período de 1985 a 1995, permitiu verificar que a temática Defesa não

teve a devida atenção política do governo, quando comparado com assuntos de maior interesse

e intensidade política e social naquele momento.

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Não foi possível identificar uma ação coordenada pelo Governo Federal relativa a

orientações normativas ou políticas sobre as atividades a serem executadas pelas Forças

Armadas. Apesar disso, verificou-se que as ações desenvolvidas pelas forças militares

apresentavam uma forte consistência quanto aos objetivos de modernização, reequipamentos,

incrementos na capacidade operacional e, algumas vezes, quanto à definição de uma ação

estratégica para o emprego da força. É possível constatar que esse procedimento, onde cada

Força apresentava suas atividades de forma isolada, se encerra em 1993. Também, é possível

constatar que, em 1994 e 1995, não foi encontrada nenhuma referência às Forças Armadas

nessas Mensagens.

Segundo momento (1996 a 2006) - O segundo momento representa o período em que

o poder político começa, de forma gradual, a se engajar e a buscar um controle dos debates e

das atividades relacionadas com as Forças Armadas. Nesse segundo momento, verificou-se o

ineditismo da edição da primeira Política de Defesa Nacional brasileira em 1996. Foi um

período em que autoridades do Poder Executivo, principalmente Ministros de Estado, também

de forma inédita, foram questionadas por representantes do Legislativo sobre questões e

problemas afetos às Forças Armadas e área de Defesa. Igualmente, esse período foi marcado

pelas discussões sobre a criação do Ministério da Defesa; pelas discussões sobre o papel das

Forças Armadas na nova Constituição; pela realização de seminários sobre Defesa Nacional,

ocorridos em 2003, no Ministério da Defesa e em Itaipava; pelas primeiras diretrizes políticas e

militares para as Forças Armadas; pela edição da segunda Política de Defesa Nacional em

2005; pelas discussões e decisão política sobre a participação das Forças Armadas brasileiras

em missões de paz, etc.

RESULTADO E DISCUSSÃO

Em que pese os avanços verificados no período de 1996 a 2006, verifica-se que os

mesmos foram desenvolvidos em um ambiente instável, em função do relacionamento da

classe política com as Forças Armadas, no Brasil, sempre ter sido conflituoso. Uma

explicação para esse distanciamento foi a permanente instabilidade política que prevaleceu no

Brasil durante todo o período republicano. Figueiredo registra que “a história republicana do

Brasil, marcada por intermitentes rupturas institucionais, não obstante racionalizadas por

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persistente retórica impregnada por valores republicanos e democráticos, não pôde apresentar

políticas de Estado, duradouras e persistentes, em relação à defesa e à segurança internacional

capazes de produzirem as devidas conseqüências a médio e longo prazo” (FIGUEIREDO,

2007).

Um exemplo marcante desse conflito encontra-se nos trabalhos da Assembléia

Constituinte (1987-1988). Ao ser debatido o papel das Forças Armadas, uma forte resistência

à área militar foi levantada, incluindo propostas de extinção das próprias Forças Armadas.

Jobim afirma que “o tema foi marginalizado durante os trabalhos da Assembléia Constituinte,

pois as lideranças emergentes não queriam tocar em nada que pudesse vinculá-las ao regime

anterior – nada que pudesse identificá-las com o “entulho autoritário” (JOBIM, 2008).

Os estudos de Oliveira & Soares registram com clareza o clima reinante naquele

período:

[...] de um lado, embora com pouca repercussão, manifestaram-se teses sobre a falta de necessidade do aparelho militar. Em outras palavras, as Forças Armadas poderiam ser extintas pelo bem do Brasil. [...] Não havendo prosperado na Constituinte, poucos anos depois voltou com alguma expressão em conseqüência da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria. Se não mais havia uma divisão no mundo, o Brasil poderia prescindir da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, destinando-se para políticas de forte conotação social os recursos antes empregados na defesa. (OLIVEIRA & SOARES, 2000).

Em relação ao sentimento dos constituintes sobre as Forças Armadas, as palavras de

Murilo de Carvalho complementam as registradas por Oliveira & Soares: [...] se não é sensato nem realista defender, como fazem alguns, a inutilidade de forças armadas nas condições atuais, deve-se reconhecer que elas consomem recursos avultados e precisam ter seu novo papel discutido, justificado e definido. [...] a discussão, justificação e definição do papel das Forças Armadas em regime democrático cabem à sociedade e a seus órgãos de representação, tanto quanto a elas próprias (OLIVEIRA & SOARES, 2000).

Nesse conflito, envolvendo a importância e o papel das Forças Armadas, registram-se

duas posições antagônicas, a da classe política e a da sociedade e estudiosos. Contrastando com

a visão da sociedade sobre as Forças Armadas, verifica-se na classe política um enfoque

diferente a respeito desta Instituição. Uma razão básica para o comportamento da classe política

reside nas transformações históricas de nosso país, que em função da permanente instabilidade

política no período republicano e das freqüentes intervenções militares, via nas Forças Armadas

um ator político adversário, portanto, que representava uma ameaça.

Por outro lado, uma percepção da sociedade sobre a contribuição das Forças Armadas

naquele período pode ser verificada nas palavras de José Murilo de Carvalho, qual seja: a prova

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da modernização está no fato de que o Brasil saiu dos governos militares como um país

capitalista, industrializado e urbano, com boa infraestrutura de energia, transporte e

comunicação, muito distante daquele que os tenentes encontraram quando chegaram ao poder

em 1930. (MURILO DE CARVALHO, 2005).

Ramalho também registra a visão da sociedade sobre as Forças Armadas. Apresenta que

a relevância dos militares na política nacional sobressai tanto por suas ações diretas como pelas

indiretas. A despeito das sombras ainda existentes quanto ao período 1964-1985, as Forças

Armadas figuram, sistematicamente, entre as instituições mais respeitadas pela sociedade

brasileira, em companhia da imprensa e da Justiça, mas, nos dois casos, com mais do dobro dos

índices de confiança. Nessas pesquisas, os políticos, seus partidos e o Congresso Nacional

aparecem nas últimas posições. (RAMALHO, 2010).

Ao buscarmos as origens da conflituosa relação civil-militar, em nosso País,

encontramos algumas evidências que confirmam as afirmativas de Huntington e Janowitz, ou

seja, de que “verdadeira causa das intervenções militares não é militar, mas política, sendo que

essa causa reflete falhas na estrutura político institucional da sociedade”, e, que “qualquer

desequilíbrio nas contribuições militares a questões político-militares é, por conseguinte,

resultado de omissão por parte da liderança política civil”,

Esse conflito e postura ficam claro no questionamento de Trevisan: “porque foi possível

que um único segmento da sociedade, que deveria somente cuidar da Defesa, tivesse tal

importância na história contemporânea brasileira? (TREVISAN, 2005); ou pelo

questionamento de Eliezer Rizzo: “por que a sociedade civil, o governo e o Legislativo relegam

o aparelho militar ao seu próprio cuidado, como se os temas militares fossem ‘coisas de

milicos’, não merecendo um tratamento efetivamente nacional? (OLIVEIRA, 1996); ou ainda,

pela afirmativa de Murilo de Carvalho: “entre os governantes, não há sinal de mudança

substantiva na postura tradicional de conivência e omissão. [...] O Congresso mantém sua

posição de omissão e incompetência em assuntos militares. (MURILO DE CARVALHO,

2005).

Assim, a ausência de interesse político pelos problemas referentes às Forças Armadas e

Defesa resultou em estímulo à participação dos militares em áreas que deveriam ser exclusivas

e de responsabilidades da classe política. Conforme visto anteriormente, a cultura vigente na

classe política foi negativa e, também, contribuiu para a manutenção de uma relação civil-

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militar conflituosa. Segundo Eliezer Rizzo, “há muito de verdadeiro nas afirmações de que a

sociedade brasileira é desarticulada e que esta desarticulação tem sido responsável pelo espaço

político preenchido pelas intervenções militares” (OLIVEIRA, 1994), ou ainda, quando diz que

“é comum às formas institucionais das relações civis-militares, no Brasil, o perfil

acentuadamente tímido, ineficiente e irresponsável mesmo do Congresso Nacional no tocante à

temática militar. A sociedade civil manifesta-se de modo semelhante” (OLIVEIRA &

SOARES, 2000). A seguinte afirmativa de Murilo de Carvalho, também aponta nesse sentido:

predomina nos estudos sobre militares, certamente naqueles feitos por civis, a tendência a

atribuir a eles quase que exclusivamente a responsabilidade pelas intervenções na política”

(MURILO DE CARVALHO, 2005).

Outra evidência, registrada por um parlamentar, o Deputado Raul Jungmann, ex

Presidente da recém criada Frente Parlamentar de Defesa, torna ainda mais significativo o

distanciamento da classe política dos assuntos referentes às Forças Armadas.

o próprio Congresso Nacional tem sua parcela de culpa nessa situação, já que vem se eximindo de atuar com mais firmeza nessa área. Muitos parlamentares não enxergam estímulo para se dedicar ao tema. Até porque as políticas externa e de Defesa não dão votos, cargos e não proporcionam emendas (JUNGMANN, 2009).

Essas evidências, além de inúmeras outras obtidas por esta pesquisa, levam ao

encontro da posição de Eliezer Rizzo, de que o sistema político brasileiro não conseguiu

equacionar adequadamente as relações de autonomia e controle do aparelho militar, até porque

raramente lhe atribuiu funções claramente definidas. A sociedade parece dar-lhes as costas

mesmo no regime democrático (OLIVEIRA, 1994), ou com a posição de Pesce & Silva,

quando defendem que a elite política brasileira nunca viu os militares como servidores do

Estado, mas como adversários na disputa pelo poder no campo interno. Por isso, investimentos

na área de defesa foram sempre considerados "desperdício de recursos" - ou até mesmo

"munição para o inimigo (PESCE & SILVA, 2007).

Nesse contexto, ao considerarmos o que diz Samuel Finer, estudioso das relações

civil-militar nos países em desenvolvimento, encontramos a defesa de que, para que as forças

armadas não intervenham na política devem acreditar num princípio da supremacia civil, a qual

em países com baixo nível de cultura política não é hegemônico (FINER, 1975).

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Relativo ao problema cultural influenciando a relação civil-militar é interessante

observar a seguinte posição de Thomas-Durell. Afirma este pesquisador que,

fundamentalmente, as diferenças culturais e as condições existentes entre os lideres políticos e

militares serão sempre as fontes de tensão nas democracias. Os politicos circulam em

ambientes de incertezas e ambiguidades e encontram oportunidades de sucessos em tais

condições e onde são mestres. Os militares, por outro lado, sempre buscam obter clareza nas

missões a eles atribuídas, além de certeza das condições em que isso ocorrerá. Na guerra, uma

falha em qualquer destas condições pode resultar em uma decisão falha e consequencias

devastadoras. (THOMA-DURELL, 2006)

O que se verificou nesse cenário, ainda de forma parcial, foi a existência de uma classe

política brasileira com baixo nível de interesse pela temática envolvendo Forças Armadas e

Defesa. Em conseqüência, isso gerou um “vazio político” e, naquilo que se aplica à questão da

relação civil-militar, as Forças Armadas não vendo seus anseios atendidos, principalmente no

que consideravam essencial ao cumprimento de sua missão constitucional, tomavam a

iniciativa de, politicamente, expor suas idéias e necessidades sobre o que achavam correto para

a área de Defesa e para as instituições militares. Isso é corroborado pelas teorias de Huntington,

Janowitz e Finer, além de outros teóricos.

CONCLUSÃO

A instabilidade política foi uma constante durante todo o período republicano brasileiro.

Nessa instabilidade estiveram presente o necessário amadurecimento da sociedade brasileira,

assim como de sua classe política. Aliado a essa situação, a falta de ameaça ao território ou à

soberania brasileira influenciou no comportamento da classe política quanto a um desinteresse

pelos assuntos de Defesa e das Forças Armadas.

O desinteresse da classe política pelas Forças Armada teve como consequencia a falta

de uma orientação política quanto à importancia e ao papel dos militares para o Estado

brasileiro. A instabilidade política, a falta de amadurecimento da classe política, a falta de

diretrizes políticas para as Forças Armadas, teriam contribuído para que a relação civil-militar

fosse conflituosa durante todo o período republicano, ao considerarmos os parâmetros

estabelecidos por Huntington e Janowitz. Nessas condições, dificilmente o controle político

civil objetivo poderia ocorrer.

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Conclui-se, portanto, que o desejado nível na relação civil-militar será proporcional à

qualidade da política desenvolvida na sociedade. O nível político aqui referido significa a

compreensão, valoração e adequação das diretrizes para as Forças Armadas e asuntos de

Defesa, com as consequentes ações decorrentes. Assim, será a existência de atividades políticas

maduras e eficazes que proporcionará as condições para que as Forças Armadas possam

adequadamente se inserir na sociedade e, em consequencia, possibilitar um bom estado na

relação civil-militar como deve ser em um sistema democrático.

REFERENCIAS

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