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“Não há nada mais que possa ser dito hoje ou em qualquer outro dia depois ou antes de agora” de Nana Rodrigues Peça escrita durante a Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, 1

_NÃO Há Mais Nada

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peça teatro

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Page 1: _NÃO Há Mais Nada

“Não há nada mais que possa ser dito hoje ou em qualquer outro dia depois ou antes

de agora”

de Nana Rodrigues

Peça escrita durante a Oficina Regular

do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná,

sob orientação de Roberto Alvim,

no ano de 2010.

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AnotaçõestodasaspalavrasquevieremacabeçatodososdiastodasashorastodootempotodoemCADERNOSdeanotaçãocadernosBROCHURAcomtodasasminhasanotaçõestentativasdefixaroqueévolúveltransitóriopassageiroefêmeromasoscadernosdeanotaçõesmeajudamsãos

óCADERNOSumapanhadode folhascomlinhascomlistrascompáginassãocadernosdeANOTAÇÃOsemgravaçãosemgravadorcadernoscanetapapelcanetalápisecanetatudoemfolhasembrancoaospoucospreenchidascompalavraspunhadosapanhadosdelassãoosmeusCADERNOSsãotodasasanotaçõesquefizatéagorasãotodososCADERNOSdeNOTASquejálheentregueisãoonossoex

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NÃO HÁ NADA MAIS QUE POSSA SER DITO HOJE OU EM QUALQUER OUTRO DIA DEPOIS OU ANTES DE AGORA

UM “breve” PROJETO DE REESTRUTURAÇÃO

Pode ser um número, uma coisa, qualquer coisa, um tempo, um espaço, uma pessoa, duas ou mais delas. Pode ser é a palavra que norteia o experimento. Experimentação é a palavra que norteia o pode ser. Não há norte, sul, leste ou oeste. É só mais um experimento que será arquivado ao final de algumas páginas ou horas ou coisas.

1 – um homem

A – a mulher

A - Vou anotar tudo! Anotar cada passo, pensamento ou palavra. Vou anotar e guardar nesta gaveta pra não misturar com as outras anotações.

1 - Refere dores de cabeça?

A - Vou anotar também hora exata e os minutos. Se tiver um relógio com cronometro, posso cronometrar tudo isso.

1 - Referencie as cores que estão aqui. Anote as cores e também a cor desta folha de anotação.

A - Eu já lhe disse que um dia tive um namorado?

1 - Relate pra mim o que sonhou na última noite.

A - Pode ser agora?

1 - Relate pra mim o sonho completo da última noite.

A - Ele tinha a pele branca, bem clara. Andava de um lado para o outro no campo de futebol. Eu estava na arquibancada e ela me viu de longe. Quando me viu, ele parou de andar e veio na minha direção. Eu abri meus olhos contra o sol. O sol estava bem no meio. Abri meus olhos e.

1 - Eu não sonho de noite!

A - Relate.

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1 - Vou anotar o dia de hoje com caneta. Ele disse que de lápis há a “possibilidade” de eu apagar e dar um novo enredo.

A - Mentiras. Mais mentiras.

1 - Do que nós estávamos falando mesmo?

A - Da partida?

1 - Você abriu os olhos e?

A - Lá no fundo tinha uma cor que eu não conseguia reconhecer como uma cor formal.

1 - Era da partida sim!

A - Continue relatando, por favor?

1 - Eu já lhe pedi “por favor”? (pausa) Algum dia eu já lhe disse a palavra mágica? Minha mãe disse que “por favor” é uma das palavrinhas mágicas!

A - Já preencheu quantos cadernos brochura?

1 - Espere um pouco. Eu não consigo ouvir com todo esse barulho. Vocês podem fazer o favor de calar a boca? Agora! Não! Todos vocês!

A - Cores?

1 - Não, apenas uma cor.

A - Sua mãe já chegou?

1 - Eu não sei...

A - Já chegou a falar com você sobre o motivo dessas reuniões?

1 - Ainda não chegou.

A - Pois então eu falo.

1 - Fale.

A - Era um sonho diferente. Eu não conhecia as cores das coisas que estavam no sonho. Não reconhecia nenhuma delas e tinha dificuldade de ver o que estava acontecendo, por conta das cores. Quantas cores existem de verdade? Você pode relatar isso pra mim?

1 - Meu pai já está.

A - Relate sua relação com ele.

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1 - Era boa. Uma pena que tudo acabou. Uma pena! Eu tinha vontade de ficar no colo dele, deitada com a cabeça escutando os barulhos que a sua barriga fazia. Sempre imaginei que o corpo do outro se comunica com as pessoas ou coisas ou comigo ou com a própria pessoa pelos barulhos que faz.

A - Quando foi que acabou?

1 - Eu tomei até o fim, conforme tava escrito. Mas eu não anotei isso. Não tenho certeza.

A - Você consegue tentar lembrar?

1 - Acabou em dezembro. Lembro das luzes e enfeites.

A - Dezembro de que ano?

1 - Lembro da praça, das pessoas passando de um lado para o outro. Tudo em preto e branco. Sentei no banco. Um copo de coca-cola na mão esquerda. Na direita, cinco dedos dormentes. Ele ficou de pé.

A - Está tudo anotado?

1 - No pé da página você encontra a data, horário, minutos e segundos. No rodapé, desenhos de pés pra fazer mais sentido. Faz sentido pra você?

A - Não. Ele não quis sentar. Eu devia saber que se ela não quis sentar havia algum problema. Mas eu sou lento pra isso também.

1 - Você mesma fez os desenhos?

A - Foi. (pausa) Foi uma quarta-feira eu acho.

1 - Você mesmo fez os desenhos?

A - Foi. Foi uma quarta-feira de tarde. Aquele horário ruim em que todas as pessoas saem à rua pra fazer alguma coisa, nem que seja voltar pra casa. Está tudo anotado, sim!

1 - Ele e ela. Os dois gêneros ou gêmeos. Não me lembro.

A - Desculpe. Não pretendo trocar sempre.

1 - Minha mão estava dormente porque eu carreguei a sacola até o centro. Precisava de uma coca-cola urgentemente. Ele comprou pra mim.

A - Ele ou ela?

1- Ela.

A - Como você sabe? Tem certeza?

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1 - Eu sempre sei quando preciso de uma coca-cola. Foi a última vez que ela comprou alguma coisa pra mim.

A - A última?

1 - Sim. A última folha do bloco 10.

A - Foram mais do que 10?

1- Não.

A - Foram 11 então?

1 - Foram 12.

A - Foram 13?

1 - Foram 10 ou 13!

A - Quanto então?

1 - 30.

A - 30 anos?

1 - Não mais do que 10 ou 30.

A - E isso também está anotado, eu imagino...

1 - Claro.

A - Claro de branco ou claro de “é claro”?

1 - Eu não sei.

A - Como se fala isso em inglês?

1 - Eu não sei.

A - Em que página?

1 - 23.

A - De que bloco?

1 - 13.

A - De que ano?

1 - Eu não sei.

A - Tem uma cópia?

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1 - Sim.

A - Pode me emprestar?

1 - Cla-ro que pos-so. (pausa) Eu levo ao centro na quarta-feira.

A - Leva?

1 - Não.

A - Não se lembra ou não anotou?

1 - Não me lembro em que caderno anotei.

A - Disque auxílio à lista.

1 - Ela ficou de pé ao meu lado e eu não podia olhar porque o sol tava bem no meio da minha cara. Devo ter ficado com uma cara estranha, contorcida pelo sol. Ele deve ter confundido isso com dor. Que bobagem!

A - E foi tudo o que aconteceu naquele dia?

1 - Não.

A - O que mais?

1 - Este número não consta na lista.

A - Tente de novo.

1 - Você realmente quer me dar mais uma chance ou só quer me testar?

A - Eu tenho motivos pra te testar?

1 - Tem.

A - Então... Tente de novo!

1 - Eu quero ficar com você mais um tempo.

A - Era esse o conteúdo do caderno 12?

1 - Não.

A - Não era?

1 - Não era.

A - Não acredito que você está me testando de novo.

1 - Onde eu assino?

A - Na linha penúltima da antepenúltima folha do bloco 1.

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1 - Era lá que estavam as anotações do primeiro ano?

A - Não.

1 - Em qual então?

A - No 30.

1 - Que sala do bloco?

A - 1A.

1 - É preciso bater pra entrar?

A - Não.

1 - Com licença...

A - Você poderia ter batido e esperado lá fora até eu chamar.

1 - Desculpe.

A - Eu não vou desculpar.

1 - Eu não sabia.

A - Então da próxima vez pergunte.

1 - Posso tentar novamente?

A - Não.

1 - Eu achei que tinha mais uma chance.

A - Sua mãe está?

1 - Sim.

A - Pode ir lá dentro e chamá-lo pra mim?

1 - Ela ou ele?

A - Tanto faz.

1 - Não podemos continuar discutindo se tanto faz.

A - Eu não estou discutindo com você.

1 - Não?

A - Não.

1 - Então o que é isso?

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A - São todos os cadernos que eu preenchi até agora.

1 - Você espera que eu veja tudo?

A - Espero.

1 - Vou lá dentro e já volto.

A - Fique à vontade.

1 - Não consigo!

A - Olhe nos meus olhos então!

1 - Ela demora?

A - Acredito que não.

1 - Você anda anotando corretamente os relatórios?

A - Você acredita que isto vai dar certo?

1 - Por que tantas perguntas?

A - É o fim?

1 - Não.

A - Não é o fim?

1 - O que você acha?

A - Acho que essas perguntas todas só nos confundem. Deveríamos ficar em silêncio por alguns instantes.

1 - Ainda há uma chance disto tudo dar certo. Se nós conseguirmos ao menos agora falar tudo o que queremos, tudo o que sempre quisemos dizer um para o outro.

A - Você tem feito com a freqüência que eu sugeri?

1 - Sim. (pausa) Desculpe. Uma para a outra.

A - Sua mãe esteve aqui ontem.

1 - E o que ela disse?

A - Que não havia mais chance de dar certo.

1 - Ela estava sozinha?

A - Quando eu cheguei sim.

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1 - Relate mais...

A - Disse que num mesmo momento você passa de uma pessoa extremamente feliz para uma pessoa profundamente deprimida.

1 - Ela te ligou ontem, não foi?

A - Eu não anotei.

1 - Não vejo sentido nenhum pra vir aqui falar com você, se ela te liga todos os dias e relata pelas palavras dela o que quer.

A - Não vá embora.

1 - Não vejo motivos pra ficar.

A - Ela ainda pode estar aqui, talvez bem perto.

1 - Por que você escreve tanto. Passa dias com esses cadernos, com essas canetas. Escreve tanto que talvez algum dia fique sem palavras.

A - Eu fiquei sem palavras.

1 - E ela?

A - Ele!

1 - E ele?

A - Ela me disse que deveria ficar naquela praça até o dia amanhecer. Ele me pediu pra dizer umas últimas palavras. Uma última vez...

1 - E você entendeu?

A - Sim.

1 - Tem certeza?

A - Não.

1 - Qual foi a parte que você não entendeu?

A - A das anotações. Elas deverão ser feitas o tempo todo?

1 - Eu sempre fiz. Sempre. Mas nunca foi o suficiente. Ela tinha “ele”. Dizia que se comunicava com o corpo dele.

A - A senhora está feliz?

1 - Agora estou.

A - E antes?

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1 - Antes daquela quarta-feira?

A - Sim.

1 - Antes daquele dia, nós nunca discutimos. Estávamos sempre juntos, é... juntas(!), chegamos a andar de mãos dadas pela rua. Eu não entendo o que mudou. Eu não mudei, ela também não.

A - Ela?

1 - Sim. Ela não mudou comigo. Mas depois decidiu que eu deveria vir até aqui.

A - Eu tenho medo do que possa acontecer.

1 - E essas últimas anotações serão entregues quando?

A - Quando você quiser. É só me dizer o dia e o local.

1 - Esta semana?

A - Na quarta talvez?

1 - Na quarta-feira fim de tarde?

A - Foi a última vez que ele comprou alguma coisa pra mim. Depois eu fiquei sentado lá e ela foi embora.

1 - Às vezes, eu tenho a sensação de que a voz dela vai ecoar dentro da nossa casa. (pausa) Da minha casa...

A - E vai?

1 - Ela não está mais lá.

A - E algum dia esteve?

1 - Nunca.

A - Eu acho que ela vai baixar o som e dizer alguma coisa pra mim. Alguma coisa da qual eu não vou gostar e vou engolir seco e dizer “sim, senhora!”.

1 - Você referia dores de cabeça no início?

A - Eu tenho os primeiros cadernos, você quer ver?

1 - Relate.

A - Os primeiros?

1 - Sim.

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A - Eu teria que olhar novamente. Faz tanto tempo, não sei se consigo chegar lá sozinha.

1 - Seu pai esteve aqui ontem.

A - Eu sei.

1 - Ele costuma vir sempre aqui?

A - Eu não sei o que ele costuma fazer...

1 - Você o conhece bem?

A - Conhecia...

1 - E onde estão estas anotações?

A - Na página 11.

1 - E em que caderno?

A - No único que lhe entreguei até hoje.

1 - Você pode ler para mim?

A - Relate as cores, por favor?

1 - Você está me pedindo “por favor”?

A - Sim.

1 - Você está me pedindo “por favor”!

A - E?

1 - Faz tempo que não nos falamos de maneira tão cortês.

A - É só isso?

1 - Não.

A - Há mais algum?

1 - Sim.

A - Meu pai.

1 - O que tem?

A - Ele ainda está aqui.

1 - Ele?

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A - Sim. Ele ainda está aqui!

1 - Ainda está?

A - Onde?

1 - Eu não sei. Relate o que você sente neste momento.

A - Dentro de uma frase, dentro de um gesto.

1 - Dentro de mim?

A - Ou dentro de um dos cadernos?

1 - Eu preciso atender ao telefone, você espera?

A - Eu não esperava isso de você.

1 - Qual é o verdadeiro significado dessas palavras que você está me dizendo?

A - O verdadeiro?

1 - Sim.

A - Eu não sei o significado de verdadeiro.

1 - E depois?

A - Ela se foi e eu fiquei.

1 - Era engano.

A - Sempre foi.

1 - Do que estávamos falando?

A - Da minha mãe e do meu pai.

1 - Eles já voltaram de viagem?

A - Sim.

1 - E qual foi a sua reação?

A - Eu achava que era um menino, chutava o tempo todo. Mas daí era uma menina, eu fiquei pensando o que eu ia fazer agora que era uma menina. Ai a médica chegou e me disse pra chamar de Maria. Então tocou aquela música no rádio e eu escolhi outro nome.

1 - E o que ela disse?

A - Que talvez fosse melhor assim. Cada um vivendo a sua vida.

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1 - E quem foi que saiu primeiro?

A - Eu não sei.

1 - Você ou ela?

A - Preciso olhar as anotações.

1 - Você ou ele?

A - Quem é esse “você” de quem você tanto fala?

1 - Está nas anotações do caderno 30.

A - Você pode ler pra mim então?

1 - Eu não tenho mais palavras, você se lembra?

A - Não.

1 - Não se lembra novamente?

A - Estou com dor de cabeça.

1 - Quer um remedinho?

A - Não me trate assim!

1 - Qual é o melhor tratamento?

A - Gastei todas em cadernos de anotação.

1 - E o que você fará agora?

A - Vou chamá-la e dizer que você está aqui.

1 - Obrigada!

A - Apertei tanto os dedos contra a palma das mãos, tão fundo, que ficou tudo fundido. Virou uma massa sólida, um bloco.

1 - Qual deles?

A - O Bloco 3...

1 - Você sabe o que vai acontecer quando chegar lá, não sabe?

A - Não, eu não sei.

1 - Tem certeza que não sabe?

A - Tenho!

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1 - Não é isso o que dizem os seus blocos de anotações...

A - Você andou mexendo nas minhas coisas?

1 - Qual é o problema?

A - Eu saio e você corre mexer nas minhas coisas?

1 - Se você não me disser qual é o problema, eu não posso ajudá-la.

A - Ajudá-la?

1 - Eu não preciso da sua ajuda!

A - Se não precisa, melhor pra mim.

1 - Sua mãe estava certa?

A - Meu pai também.

1 - Eles dois estavam certos de que queriam ter mais filhos?

A - Ajudá-lo seria mais correto!

1 - Quem lhe disse isso?

A - Eles mesmos.

1 - Chegaram um belo dia na sua frente e lhe disseram que foi um engano?

A - Não com essas palavras.

1 - Com quais palavras então?

A - Com essas!

1 - Relate melhor seus sentimentos.

A - Todos?

1 - Relate melhor os de agora.

A - Agora?

1 - Pare de fazer tantas perguntas e relate!

A - O que eu devo dizer?

1 - O que você quiser. Nada vai mudar. Nada que você disser pode mudar o que vai acontecer.

A - Posso lhe passar o relatório por fax?

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1 - Se você fizer mais uma pergunta dessas, eu juro que...

A - Os juramentos ainda são possíveis.

1 - Você fez uma pergunta?

A - Talvez...

1 - Eu preciso de calma e silêncio. Não sempre. Mas agora preciso (pausa curta) e preciso dos dois juntos.

A - Quando eles se separaram?

1 - Não me lembro.

A - Você tem uma certa dificuldade em lembrar das coisas.

1 - Por isso eu anoto tudo!

A - Eu posso te ajudar com isso.

1 - Você não pode me ajudar.

A - Mas podemos tentar, não?

1 - Não. Nós não podemos tentar.

A - Por quê?

1 - Porque esse “nós”, eu desconheço.

A - Não faça isso comigo!

1 - Continue relatando.

A - Você não pode me deixar, deixá-los aqui comigo!

1 - Ela gritou?

A - Eu não lembro.

1 - Então foi você quem gritou?

A - Espere um momento.

1 - Sim.

A - Você poderá anotar tudo em cadernos como este, ou poderá gravar seus pensamentos em fitas cassete. Você tem um gravador?

1 - Não.

A - Então como é que eu vou saber os seus pensamentos?

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1 - Eu não sei.

A - Você não consegue se esforçar pra me ajudar, não é?

1 - Não consigo.

A - Tente. É importante!

1 - Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo. Eu não consigo!

A - Então não tem mesmo como isso tudo dar certo.

1 - Não tenho mesmo.

A - Não se trata só de você.

1 - Eu sei.

A - Então não se culpe o tempo todo.

1 - Eu não consigo.

A - Mas deveria.

1 - Mas eles ainda poderiam...

A - Não. Eles não poderiam.

1 - Relate em resumo esses últimos cadernos que você trouxe.

A - Talvez se eu não tivesse dito tudo o que sempre falei. Talvez eles pudessem ter continuado...

1 - Eu prefiro um resumo mais detalhado.

A - Eu sempre tive minhas preferências, eu sei disso. E sei o que isso acarretou...

1 - Pode ser com as suas próprias palavras.

A - Mas eles nunca me disseram nada. Ele nunca me disse que isso o incomodava.

1 - Não precisa ser exatamente como escreveu aqui.

A - Na verdade ela nunca me disse mais do que duas ou três palavras.

1 - Pode começar.

A - Eu não sei o que dizer...

1 - Eu aguardo. Se você prefere assim, eu aguardo.

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A - E nada mais.

1 - Minha filha, eu não sei o que dizer...

A - As dores de cabeça não são tão freqüentes, mas as de estômago e os tremores sim.

1 - Então vocês discutiram?

A - Não. Nós conversamos.

1 - Então vocês conversaram?

A - Sim. Uma pequena discussão. Ele começou.

1 - Embora você tenha anotado tudo isso, é importante falar alguma coisa aqui também.

A - Você está me controlando?

1 - Não. Eu só quero entender.

A - Você só quer entender?

1 - Recapitular para poder entender tudo o que está escrito.

A - Terminamos hoje?

1 - Você é quem sabe...

A - Mas você não vai nem tentar argumentar. Você sempre faz isso.

1 - Não faço mais.

A - É assim que uma pessoa adulta age?

1 - Eu não sou exatamente uma pessoa adulta.

A - O que você é então?

1 - Mas deveria ser...

A - Chame-os aqui, por favor.

1 - Eu não consigo.

A - Pegue os seus cadernos e saia daqui.

1 - Eu não consigo.

A - Se você não sair daqui agora...

1 - Eu não consigo.

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A - Ao menos tente.

1 - Isso de anotar tudo está nos deixando doentes.

A - Nos deixando?

1 - Sim.

A - Você não pode fazer isso.

1 - Ele e ela.

A - E você?

1 - Ela e ele.

A - Explique melhor.

1 - Eu tinha vontade de dizer uma porção de coisas, mas as palavras não vinham. Ele levantou e se foi. Eu fiquei sentada, com uma vontade de falar que não passava. Ela ainda olhou pra trás. Se eu ao menos tivesse dito algumas palavras...

A - Isso faz parte de todo um experimento.

1 - Porque as palavras mudam tudo, ele me disse uma vez.

A - Todo um complexo experimento científico.

1 - Mas eu não disse nada.

A - Se você pretende colaborar com o nosso estudo, terá que seguir tudo o que eu lhe disser.

1 - Eu não disse e nem poderia dizer.

A - Serão encontros semanais.

1 - Eu me lembrei de tudo. Cada momento, cada coisa, cada palavra. Tudo!

A - Nas quartas-feiras!

1 - Nesses encontros você poderá falar sobre o que quiser.

A - De como eramos felizes.

1 - Teremos algumas horas para isso.

A - Nós três.

1 - Os blocos.

A - O senhor sabe se minha mãe virá até aqui hoje?

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1 - Não. Ele não me disse nada.

A - O senhor pode telefonar pra alguém vir me buscar?

1 - E outro detalhe, muito importante.

A - Eu não tenho condições de ir sozinha.

1 - As anotações. Os relatórios!

A - Eu já lhe entreguei todas as anotações!

1 - Você fará anotações em cadernos brochura.

A - Eu não tenho mais nada pra lhe dizer.

1 - Prefira anotações com caneta. Sabe que há uma tendência quando as pessoas anotam de lápis. Já lhe falei sobre isso, não?

A - Eu nunca gostei de dar novo enredo as coisas...

1 - E a cada nova conversa, você trará o caderno da semana anterior.

A - Ela pode trazer por mim?

1 - Prefiro que pergunte só ao final, ok?

A - Se nós viermos juntos, há algum problema?

1 - Dona Beta, me traga um novo bloco.

A - Algumas vezes nós ainda fazemos algumas coisas juntos...

1 - Estou no bloco 6.

A - Bloco 6, página 12.

1- Isso, bloco 6, sala 12.

A - Neste bloco eu anotei coisas sobre a minha infância. Não sabia se era um diário ou anotações aleatórias.

1 - Seja breve.

A - Por isso eu vim aqui hoje.

1 - Se era só por isso poderia ter me telefonado.

A - Eu não poderia falar isso com você pelo telefone.

1 - Certamente. Eu nem atenderia sua ligação se soubesse o motivo.

A - Você poderá anotar qualquer coisa, de qualquer época da sua vida.

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1 - Obrigada Dona Beta.

A - Eu não consigo ver você. Pode me ajudar?

1 - Dona Beta?

A - Ligue para minha mulher e diga que tem coisas que eu não consigo entender.

1 - Sua mulher?

A - Sim, minha mulher!

1 - Do que você está falando?

A - Dos procedimentos para o bom andamento da pesquisa.

1 - Pesquisa?

A - Sim, a pesquisa!

1 - Eu imaginava que seria diferente.

A - Não há como ser diferente. É um experimento.

1 - Pensei que pudéssemos conversar.

A - Sempre será assim. Não há como ser de outro jeito, não com você!

1 - Mas há esperança disso tudo dar certo?

A - Depende das suas anotações, de você.

1 - Só de mim?

A - Sim. Só falta você terminar o preenchimento dessa ficha.

1 - E nada mais?

A - Aqui não.

1 - E pra onde...

A - Segue até o fim desse corredor.

1 - E?

A - Depois você vai saber o que fazer. Ou então siga as placas.

1 - Eu posso te seguir, se você quiser.

A - Eu ficarei aqui. Você é quem vai.

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1 - Eu não vou a lugar algum.

A - É claro que você vai.

1 - Se você não for, eu não vou.

A - Então eu é que vou.

1 - E eu devo ficar onde?

A - Sentada nesse banco para sempre. Acabou.

1 - Para sempre? Eu não sabia que isso ainda existia.

A - Dona Beta, chame a próxima ou próximo.

1 - Próximo?

A - Eu não vou responder.

1 - Próxima?

A - Ela nunca mandou em mim, nunca vai mandar. Eu não vou responder...

1 - Filha?

A - Mãe?

1 - Porque você não vem até aqui comigo?

A - Eu posso ficar?

1 - Melhor que venha...

A - Melhor pra quem?

1 - Para nós três.

A - Para nós três?

1 - Sim!

A - Dona Beta?

1 - Próximo!

A - Por onde eu vou?

1 - Por onde você quiser. Eu não faço mais parte disso.

A - Relate as cores por favor.

1 - Amarelo, BRANCO, vermelho, amarelo, branco.

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A - Refere dores de cabeça?

1 - Refiro dores de cabeça.

A - Você sabe o motivo de nossas conversas?

1 - Sei.

A - Pode explicitar melhor?

1 - Posso.

A - Eles me mandaram até aqui.

1 - Você pode dizer quem eles são?

A - Posso!

1 - Por favor.

A - Eu não faço favores. Você tem algumas folhas em branco, um bloco?

1 - Que bloco?

A - E um lápis?

1 - Um lápis?

A - Sim, um lápis. Algum problema?

1 - Não.

A - Doutor...

1 - Você está me chamando de Doutor?

A - Há um nome pelo qual eu devo chamá-la?

1 - Não. Doutor?

A - Aqui estão, papel e caneta.

1 - Obrigada.

A - Você não deveria estar aqui.

1 - Eu sei.

A - Você sabe?

1 - Nós sabemos...

A - Ainda há alguma forma disso tudo dar certo?

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1 - Se não houver mais nada que possa ser dito hoje. Podemos terminar.

A - Somente hoje?

1 - Escreva.

A - Somente hoje?

1 - Escreva o mais rápido que puder e não olhe para trás.

A - Somente?

1 - Ela...

A - Qualquer outro dia.

1 - Ele...

A - Em que bloco?

1 - Assine aqui, por favor.

A - Beije meu rosto, por favor.

1 - Não há como beijar números, há?

A - Ou papéis.

1 - Ou dias, horas, meses.

A - Não há!

1 - E o que faremos depois daqui.

A - Voltaremos ao primeiro bloco.

1 - E depois de lá?

A - Talvez certas coisas não nos importem mais. Talvez...

1 - Mas talvez devêssemos avisá-la.

A - Ele saberá.

1 - Saberá que está tudo acabado.

A - Que é o fim!

1 - Próximo...

FIM

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