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NAS FRONTEIRAS DO CRIME: VIGILÂNCIA E SOCIABILIDADES ENTRE MERETRÍCIO E POLICIAMENTO NA CURITIBA DA DÉCADA DE 1930 Nayara Elisa de Moraes Aguiar (Universidade Federal do Paraná) Resumo: A historiografia recente vem se dedicando ao estudo do ato criminoso e do seu autor, especialmente, a partir da perspectiva cultural, repensando a periculosidade e a insegurança social como temas que possuem uma historicidade própria. Em um período comumente caracterizado como moderno, as sensações de insegurança e medo tem relação com comportamentos que insistem em desviar-se de normas impostas culturalmente. Tais comportamentos nem sempre atentam contra o indivíduo diretamente, no entanto, representam um problema para a coletividade e uma idealizada ordem pública; os grupos que não respeitam tais normas de conduta vivem constantemente nas fronteiras da ilegalidade, transitando ora pela inaceitação social, ora pelo delito propriamente dito. Este trabalho pretende pensar a relação entre um destes grupos fronteiriços, o das prostitutas, com a coletividade urbana no começo do século XX, no contexto da cidade de Curitiba. Para tanto, um acontecimento específico será analisado, o assassinato de uma prostituta no ano de 1937 cometido pelo seu amante, um investigador policial. A partir de reflexões foucaultinas será analisada a configuração da vigilância e do controle exercido pela polícia, e exigida por parte da população curitibana, em relação ao meretrício que circulava pelas ruas da cidade. Contudo, este crime permite repensar estas relações de poder a partir de considerações sobre o cotidiano, as sociabilidades urbanas e o contexto local, possibilitando uma análise que privilegie as nuances e especificidades do crime enquanto fenômeno cultural. Palavras-chave: prostituição; vigilância; cotidiano. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) As reflexões desenvolvidas neste artigo tem como ponto de partida a pesquisa de mestrado que realizo no Programa de Pós Graduação em História da UFPR e que tem como principal objeto analisar o controle policial do meretrício curitibano entre os anos de 1929 e 1937. Este recorte temporal específico foi determinado a partir das datas de criação do principal conjunto documental da pesquisa, os prontuários de identificação de meretrizes. Entre os 914 prontuários de identificação disponíveis, um chamou atenção por conter uma informação diferenciada no campo dedicado a observações diversas. Este prontuário específico

NAS FRONTEIRAS DO CRIME: VIGILÂNCIA E … · UFPR e que tem como principal objeto analisar o controle policial do meretrício curitibano entre os anos de 1929 e 1937. Este recorte

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NAS FRONTEIRAS DO CRIME: VIGILÂNCIA E SOCIABILIDADES ENTRE MERETRÍCIO E POLICIAMENTO NA CURITIBA DA DÉCADA DE 1930

Nayara Elisa de Moraes Aguiar

(Universidade Federal do Paraná) Resumo: A historiografia recente vem se dedicando ao estudo do ato criminoso e do seu autor, especialmente, a partir da perspectiva cultural, repensando a periculosidade e a insegurança social como temas que possuem uma historicidade própria. Em um período comumente caracterizado como moderno, as sensações de insegurança e medo tem relação com comportamentos que insistem em desviar-se de normas impostas culturalmente. Tais comportamentos nem sempre atentam contra o indivíduo diretamente, no entanto, representam um problema para a coletividade e uma idealizada ordem pública; os grupos que não respeitam tais normas de conduta vivem constantemente nas fronteiras da ilegalidade, transitando ora pela inaceitação social, ora pelo delito propriamente dito. Este trabalho pretende pensar a relação entre um destes grupos fronteiriços, o das prostitutas, com a coletividade urbana no começo do século XX, no contexto da cidade de Curitiba. Para tanto, um acontecimento específico será analisado, o assassinato de uma prostituta no ano de 1937 cometido pelo seu amante, um investigador policial. A partir de reflexões foucaultinas será analisada a configuração da vigilância e do controle exercido pela polícia, e exigida por parte da população curitibana, em relação ao meretrício que circulava pelas ruas da cidade. Contudo, este crime permite repensar estas relações de poder a partir de considerações sobre o cotidiano, as sociabilidades urbanas e o contexto local, possibilitando uma análise que privilegie as nuances e especificidades do crime enquanto fenômeno cultural. Palavras-chave: prostituição; vigilância; cotidiano. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

As reflexões desenvolvidas neste artigo tem como ponto de partida a

pesquisa de mestrado que realizo no Programa de Pós Graduação em História da

UFPR e que tem como principal objeto analisar o controle policial do meretrício

curitibano entre os anos de 1929 e 1937. Este recorte temporal específico foi

determinado a partir das datas de criação do principal conjunto documental da

pesquisa, os prontuários de identificação de meretrizes. Entre os 914 prontuários de

identificação disponíveis, um chamou atenção por conter uma informação

diferenciada no campo dedicado a observações diversas. Este prontuário específico

era o arquivo de Antonieta Dino.

Primeiramente, é necessário explicar o que eram estes prontuários de

identificação. No ano de 1928, o chefe da Polícia Civil do Paraná cria a delegacia de

Costumes para a cidade de Curitiba. A nova repartição deveria zelar por questões

relativas à moral, vigiando comportamentos que não eram considerados criminosos,

mas atentavam contra a ordem pública e os preceitos idealizados de trabalho e

família, próprios de uma forma de pensar burguesa. Alguns exemplos dos grupos

que eram responsabilidade da nova delegacia são os mendigos, os trabalhadores

domésticos e as prostitutas. Aproximadamente, um ano após a criação da polícia de

Costumes, inicia-se o registro das meretrizes.

A ação foi a solução encontrada pelo então delegado, Francisco Raitani,

como dispositivo de vigilância e controle das mulheres que exerciam a atividade,

especialmente na região central da cidade. Entre os anos de 1929 e 1937, a guarda

deveria encaminhar as meretrizes para o Gabinete de Identificação e Estatísticas,

onde era criada uma pasta que registrava dados pessoais, a antropometria,

endereços, crimes e contravenções cometidas1. Em troca, as mulheres receberiam

“certidões de meretrizes”, uma espécie de carteira de identidade que deveria ser

apresentada sempre que solicitada.

O investigador e a meretriz: um crime passional

A meretriz Antonieta Dino foi prontuariada2 logo no início da ação de

identificação por parte da Delegacia de Costumes, no dia 02/04/1929. Através das

informações do documento é possível saber que era natural da Itália, nasceu em

1900 e chegou ao Brasil no ano de 1914. Registra-se no campo de endereços que,

em 1929, Antonieta residia na rua Racticliff. Esta é uma rua importante para o estudo

da prostituição do período. O logradouro, que logo depois passaria a se chamar

Desembargador Westphalen3, se tornou um famoso reduto da marginalidade e

1 Os prontuários de identificação das meretrizes fazem parte do Fundo da Polícia Civil do Paraná, que está disponível para pesquisas no Arquivo Público do estado. 2 Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 18 de Antonieta Dino. 3 Nome atual da rua.

criminalidade curitibana graças ao local conhecido como Barranco, parte da rua que

comportava botequins e bordéis do baixo meretrício. O Barranco é fechado pela

polícia em 1929, mas a região continua sendo um famoso ponto de prostituição e

atividades ilícitas. Ao contrário de outras mulheres identificadas, Antonieta não

abandona a atividade com o tempo. Oito anos depois, se torna proprietária de uma

pensão alegre, forma como a imprensa chamava as pensões em que residiam

meretrizes. O estabelecimento de Antonieta também ficava na Desembargador

Westphalen, provavelmente a poucos metros da casa em que residia quando era

mais nova.

No campo Observações do prontuário de identificação da meretriz foi escrito

que “Em 25-08-1937 foi assassinada pelo investigador Pedro Freitas”. A informação,

suscinta mas elucidativa, pode ser complementada através de algumas notícias

encontradas nos periódicos Gazeta do Povo e Diário da Tarde4 que circulavam na

cidade de Curitiba no período. Na verdade, o prontuário é impreciso, o assassinato

de Antonieta ocorreu no dia 27 quando, poucos minutos antes da 1 hora da manhã,

o seu amante Pedro Freitas a mata com três tiros nas costas5. Pedro e Antonieta

mantinham um relacionamento a oito anos. Os antecedentes profissionais de Freitas

chamam a atenção por se relacionarem com a segurança pública e a manutenção

da ordem, ele era investigador policial na época e havia lutado da Revolta Paulista

de 19246.

O relato que será realizado a seguir sobre os acontecimentos da madrugada

de 27 de agosto se baseiam nas matérias dos jornais citados. Entre os dias 26 e 27,

o casal teve uma discussão na pensão. Havia várias pessoas no local que

presenciaram a briga, incluindo Helena Quadros, também meretriz, que residia em

outra pensão da Des. Westphalen. Pedro vai até ela, insistindo em uma aproximação

e é repelido com veêmencia chegando até a levar um tapa no rosto: “Repellido

4 O Diário da Tarde começa a circular em Curitiba no ano de 1899 e a Gazeta do Povo no ano de 1909. Os dois jornais adotaram, nas três primeiras décadas do século XX, uma postura crítica em relação ao governo, criando uma situação de oposição ao órgão da imprensa republicana, o periódico A República. Ver: BENVENUTTI, Alexandre Fabiano. As Reclamações do Povo na Belle Époque: a cidade em discussão na imprensa curitibana (1909-1916). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, 2004. PILLOTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paraná (1854-1954). Curitiba: Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1976. 5 DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 27 de agosto de 1937, p. 8. 6 GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre. 28 de agosto de 1937, p. 2.

Pedro insistiu tanto, obrigando mesmo a mulher a aggredil-o. Não reagiu”7. Nova

discussão se segue entre Antonieta e Pedro na qual, segundo o Diário, a dona da

pensão teria dito a Pedro que não ficava com homem que “se deixava espancar por

mulher”8. O investigador, então, se retirou furioso da casa.

Freitas sai, para retornar horas depois, desta vez armado. Dois clientes que

estavam na casa naquela madrugada solicitaram que a proprietária fizesse as

contas de suas despesas, Antonieta senta em uma mesa no salão de bebidas para

atender os clientes. Neste momento, Pedro Freitas desfere três tiros contra a

meretriz, que morre instantaneamente. O criminoso e os clientes fogem pulando uma

janela. As meretrizes que residiam com Antonieta chamam as autoridades policiais.

As reportagens não deixam claro se Pedro foi preso ou se entregou, mas foi detido

em algum momento da manhã do dia 27. Presta depoimento e é liberado através de

um habeas corpus, o corpo de Antonieta é sepultado às 16 horas daquele mesmo

dia.

Após o recolhimento do depoimento do acusado e de testemunhas, que

incluíam as três meretrizes que residiam na pensão e um dos clientes presentes no

momento do crime, o delegado do 2.º Distrito policial de Curitiba encaminha ao juiz

da 2.ª Vara Criminal um relatório sobre o caso, no qual recomenda que o

investigador seja preso. O relatório do delegado foi resumido e publicado em matéria

do Diário9. Aí finalizam-se as matérias jornalísticas sobre o crime passional, dali em

diante o caso pertenceria a esfera burocrática e desinteressante do poder judiciário.

A história de amor e crime chega ao leitor curitibano através dos periódicos.

Conhecidos como fait-divers, as escritas sensacionalistas eram consideradas

atrasadas e sem qualidade por intelectuais e literatos contemporâneos, mas as

constantes e numerosas publicações nos periódicos indicavam que havia público

para tais leituras10. Dos diferentes tipos de fait-divers, os relatos de crimes

passionais eram os mais populares: “seu potencial dramático e plástico, próprio da

ficção, é aproveitado pelo cronista para transformar a realidade em objeto

7 DIÁRIO..., op.cit, 27/08/1937, p. 8. 8 Idem. 9 DIÁRIO DA TARDE, Amor infeliz, 28 de agosto de 1937, p. 1. 10 GUIMARÃES, Valéria. Sensacionalismo e modernidade na imprensa brasileira no início do século XX. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n.º 18, jan/jun. 2009, p. 231.

midiático”11. A dramaticidade já começava pelo título, responsável por atrair leitores.

A Gazeta escolhe intitular sua série de textos sobre o caso como Ensopada de

sangue uma Pensão Alegre! Fazendo referência tanto ao crime quanto a

prostituição, uma associação já presente no senso comum. Já o Diário escolhe o

título Amor infeliz enfatizando o caráter passional do caso.

Valéria Guimarães explica que dentre os vários recursos utilizados pelos

autores dos fait-divers está o da imaginação, que entra preenchendo possíveis

lacunas das histórias reais. Como no caso do escritor da matéria do Diário de

27/08/1937, que se dedica a contar a história pregressa do relacionamento entre

Pedro e Antonieta:

“Rapaz impulsivo, apaixonado, Pedro Freitas queria só para elle o amor e

os carinhos da mulher que era de todos. As rusgas surgiam de vez em

quando. Mas os impulsos do affecto, de dois corações que se attrahiam,

acabavam unindo, ainda mais, aquellas duas almas que vicejavam no

lodaçal do vício. E tudo acabava bem. As palavras mal pensadas

transformavam-se em beijos ardentes...Assim foi-se escrevendo a historia

daquelle amor.”12

A caracterização do relacionamento como intenso e impulsivo poderia se basear nas

discussões entre o casal no dia do crime, mas pessoas que conviviam com o eles no

cotidiano declararam que eles viviam bem13. O autor pode ter se aproveitado do

tema literário da intensidade dos amores, principalmente os ilícitos, para tornar a

história mais interessante. A impulsividade em relação aos desejos, especialmente

se cometidos por uma prostituta e um criminoso, remetem também ao discurso

científico que circulava no período e que associava os atos anti-sociais com um

primitivismo originário da degenerescência.

Outro recurso utilizado para atrair atenção para as notícias eram as imagens.

A reportagem feita pela Gazeta do Povo no dia do acontecimento fotografou o local

11 Idem, p. 234. 12 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 13 GAZETA DO POVO, Ensopada de sangue uma pensão alegre! 27 de agosto de 1937, p. 1.

do crime e no dia seguinte publicou fotografias referentes ao caso14. Mas, das quatro

fotos publicadas apenas uma era da cena do crime. Trata-se da imagem de

Antonieta já morta no chão de sua pensão. Esta é a maior fotografia da reportagem,

que foi posicionada bem ao meio, de forma que as outras duas fotografias e o texto

a circundassem. As demais imagens utilizadas são fotos de Pedro Freitas e Helena

Quadros, posicionadas uma de cada lado da fotografia da vítima. Esta disposição,

aliada as legendas, eram um indicativo visual de parte da trama, o envolvimento

daquelas três pessoas tinha resultado em uma tragédia. Provavelmente, causasse

algum tipo de impressão no leitor que passasse os olhos pela página do jornal.

Sobre o cenário da tragédia é possível fazer algumas inferências que auxiliam

a compreender a dinâmica destes espaços ocupados pelo meretrício. A casa de

Antonieta era uma pensão, nela residiam três mulheres que exerciam a atividade da

prostituição. Nesta residência, também havia um espaço de socialização, um

cômodo que foi chamado pelo delegado do caso de salão de bebidas e danças. Era

neste salão que os clientes que se encontravam na casa confraternizavam com as

meretrizes e foi ali, neste espaço público que paradoxalmente ficava dentro de uma

residência, que Antonieta foi assassinada por Pedro.

Se a pensão foi o cenário desta história, Antonieta foi uma das protagonistas.

Apesar de ser a vítima do crime, nas matérias há algumas sutis sugestões que

apontam certa parcela de culpa por parte da meretriz. Primeiramente, a atividade

que exerce e o fato de que o relacionamento com Pedro havia começado através

dela já explicava o acontecimento: “Amor nascido no vicio, no vicio mesmo elle

dever'a se extinguir”15. Outro fator que culpabilizava a vítima nas matérias foi a

humilhação a que teria submitido Pedro na ocasião em que este foi esbofeteado por

Helena: “Voltando para á presença de Antonieta, Pedro foi por esta insultado,

humilhado”16. A vítima teria atacado a masculinadade de Pedro ao apontar sua

passividade diante do ocorrido.

O subtítulo de uma matéria da Gazeta também parece sugerir a

responsabilidade da meretriz: “O desprezo daquela com quem convivera durante

14 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 2. 15 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 16 Idem.

oito anos, impeliu um investigador policial a' pratica de um monstruoso crime”17.

Segundo esta chamada, Pedro teria sido compelido pelas ações da meretriz a

cometer o ato de violência18. A caracterização da mulher como culpada da violência

que sofria de seus parceiros nestes casos levou o delegado, em seu relatório, a

declarar que “as testemunhas são contestes em afirmar que a vitima era

demasiadamente fiel ao indiciado”19, afim de que o argumento de uma possível

traição não servisse de atenuante no julgamento.

Além da figura da prostituta que era culpada pelo seu destino, também evoca-

se a imagem da mulher vitimizada pela sua condição: “Era mais um crime que se

tinha a registrar na dolorida história da prostituição”20. A situação de risco em que,

possivelmente, viviam as meretrizes que serviram de testemunha para o caso serviu

como argumento para que o delegado solicitasse a prisão de Pedro Correia:

“Dada a temibilidade revelada pelo indiciado, as testemunhas ouvidas no

inquérito, sabendo-o solto, certamente que o temerão, tanto mais que taes

testemunhas de vista são mulheres da vida, sem poderes propriamente, de

reacção”21.

Antonieta representava a vítima, parcialmente culpada devido a vida que

levava como prostituta. Pedro era a outra personagem principal da história relatada

através do sensacionalismo dos jornais. Um fator que auxiliava a narração

melodramática dos fatos era a aparente surpresa por um investigador da Polícia,

aparentemente um cidadão de respeito, se transformar em um assassino: “era afeito

ao trabalho, motivo pelo qual chegou a ser o chefe dos investigadores da Vigilância,

de nossa Polícia Civil”22. Mas ao traçar a história de Pedro Freitas, os periódicos já

apontam sinais de um comportamento errático, a começar pelo próprio envolvimento

com uma meretriz e por ser afeito a uma vida boemia.

Os termos monstruoso e bárbaro foram utilizados para explicar tanto a ação

17 GAZETA..., op. cit., 27/08/1937, p. 1. 18 É importante destacar que o conteúdo da matéria não segue esta tônica, priorizando a caracterização de Pedro como um indivíduo selvagem e monstruoso. 19 DIÁRIO..., op. cit., 28/08/1937, p. 1. 20 DIÁRIO..., op. cit., 27/08/1937, p. 8. 21 DIÁRIO..., op. cit., 28/08/1937, p. 1. 22 Idem.

do crime, quanto o indivíduo que a cometeu: “Nada até agora a justifica. Nada?

Talvez o delírio sádico, do sangue, o desejo bestial e simples do assassino...”23. A

figura do monstro e do homem primitivo, que aproxima criminosos da figura do

animal, da besta, da inumanidade, para explicar os atos de violência em um contexto

urbano são comuns no discurso jornalístico, o aproximando da literatura policial e de

horror dos séculos XIX e XX e do discurso médico tributário do pensamento

lombrosiano, evidenciando a partilha de uma sensibilidade moderna caracterizada

pelo medo e pela insegurança. A proximidade aparente com o “real” transformava o

texto do jornal em um agente destas sensações modernas ao trazer o elemento

anormal e animalesco do crime para o cotidiano do leitor24. Pedro representa

exatamente esta ameaça do real, que transitou tanto tempo nos espaços da

normalidade, mas com certo descontrole sempre latente, sempre a ponto de vir à

tona.

Entre os vários vícios urbanos que reforçavam as noções de insegurança

social estava a embriaguez. O álcool, assim como o jogo, eram os responsáveis por

desvirtuar pais de família e trabalhadores. Em seu depoimento, Pedro atribuiu suas

ações a embriaguez, condição confirmada pelas testemunhas:

“Entregue ás autoridades, Pedro Freitas maldizia, desesperado, o estado de

embriaguês em que se encontrava no momento do seu gesto impensado, e

sob cuja ação passára para o ról dos culpados”25.

Estar embriagado não redimia Pedro pelos seus atos, pelo contrário, representava

mais uma evidência de que era um indivíduo de máus instintos.

As matérias sobre os casos trazem ainda outras representações e imagens

que tocam nos temas das sensibilidades modernas e urbanas e que não foram

analisadas aqui. A imagem da prostituta que paga pela sua imoralidade e da

prostituta-vítima, assim como, do investigador desvirtuado pelos vícios da vida

23 Idem. 24 GRUNER, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura, e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, 2012, p. 90. 25 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 1.

boemia e do assassino monstruoso são ideais para atrair leitores ao contar uma

história que só poderia ter um destino imaginável. Histórias que acabavam de forma

trágica reiteravam as concepções moralistas sobre comportamentos desviantes e

indisciplinados.

Apesar de seu caráter de objeto midiático, que transforma a “realidade”, os

fait-divers eram escritos por sujeitos históricos que partiam das referências do meio

que lhes cercava para escrever as suas histórias, naqueles pequenos detalhes que

não são centrais para história, é possível perceber alguns elementos que remetem à

trocas e práticas daquele contexto. É a partir desta premissa que busco pensar a

sociabilidade de vários grupos que circulavam pelas ruas curitibanas e que tinham

como ligação atividade ilegais e anti-sociais tomando como base os acontecimentos

relatados nas matérias analisadas.

Sociabilidades da “outra” Curitiba

Enquanto fonte, os periódicos tem a sua relevância por circularem como

material de leitura entre um número relativamente grande de pessoas. No caso dos

jornais Gazeta do Povo e Diário da Tarde no contexto curitibano, apesar de não ser

possível ter acesso à sua tiragem, é possível conjecturar certa relevância na

circulação e importância das publicações através das solicitações da população nos

próprios jornais. A dissertação de Alexandre F. Benvenutti, As reclamações do povo

na Belle Époque, tem como principal tema as demandas da população ao poder

público em matérias como a segurança pública e urbanismo feitas através do Diário

da Tarde26 na década de 1910. Nas décadas seguintes, ao pesquisar em fontes

jornalísticas o tema da prostituição, constatei que várias matérias chegavam até as

redações através da denúncia da população, que ligava ou ia até as sedes do

periódicos para comentar sobre algum fato que ocorrera na cidade. Portanto, os

periódicos constituiam um canal para que uma parte da população fosse ouvida, seja

para cobrar o poder público ou para denunciar atos imorais e criminosos que haviam

presenciado pelas ruas.

Através do contato relativamente próximo das redações com a população e os

26 BENVENUTTI, op. cit.

acontecimentos do centro urbano, é possível conjecturar sobre alguns elementos

presentes nas matérias dos jornais além das interpretações dos fatos feitas pelos

jornalistas. No caso do relato do assassinato de Antonieta Dino se destaca o tema

das sociabilidades constituídas no ambiente do submundo curitibano. Enquanto

figuras como Antonieta e Helena são representadas pelo jornal como típicos

membros do meretrício urbano, mantendo relações amorosas intensas e resolvendo

suas questões com brigas e agressão, Pedro Freitas representa uma contradição.

Membro da instituição policial e sobrevivente da Revolta de 1924, Pedro era também

um ativo frequentador de ambientes como a rua Desembargador Westphalen, se

relacionava com prostitutas e, possivelmente, consumidor assíduo de álcool.

Somente o caso de Pedro não seria suficiente para afirmar que os membros

da força policial, assim como outras instituições relacionadas a segurança pública,

agiam pela contradição de que, ao mesmo tempo, em que mantinham a ordem,

frequentemente a desestabilizavam. Ao analisar a instituição policial no Rio de

Janeiro, no começo do século, Marcos Bretas afirma que apesar de ser comumente

associar a polícia com o Estado, a independência entre os dois pólos do poder eram

maiores do que se imagina27. Esta afirmação vale, principalmente, no que tange a

ação cotidiana. Não eram excepcionais os casos de confusão e violência que

envolviam membros da segurança pública em desordens que ocorriam em bórdeis e

botequins, provavelmente se valendo da sua condição de “autoridade”28. Portanto,

não é absurdo pensar que parte da força policial estava mais próxima de

compartilhar de valores das classes baixas urbanas do que do Estado e das elites.

Portanto, pensando as relações sociais decorrentes da convivência em

bordéis e botequins, é possível incluir agentes das instituições policiais e da Força

Militar convivendo com meretrizes, talvez significando uma parcela significativa da

sua clientela. Outro grupo que chama atenção nas reportagens são os clientes que

27 BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 207. 28 Alguns exemplos são a matéria do Diário da Tarde, E o “pau comeu”, sobre um conflito entre soldados e guardas cívicos na chamada Zona do Tigre; a da Gazeta em que um homem denuncia dois praças da Força Militar que estavam agredindo duas meretrizes na rua e outra que noticia a prisão de um sargento da Força Militar que, embriagado, também agrediu um meretriz. In: DIÁRIO DA TARDE. E o “pau comeu”. 02 de julho de 1931; GAZETA DO POVO. Duas praças da Força Militar aggridem 2 mulheres. 19 de fevereiro de 1929, p. 2; GAZETA DO POVO. Embriagado esbofeteou a meretriz. 05 de março de 1929, p. 3.

estavam na pensão no momento do assassinato, referenciados pelos jornais através

de sua nacionalidade, como portugueses. O que chama atenção é o fato dos dois

terem fugido quando Freitas atirou em Antonieta, já que não há nenhuma informação

de que eles tinham alguma relação com o acontecimento ou que conheciam o

investigador. A sua reação é no mínimo curiosa, novamente apelamos para

conjecturas, talvez os dois tivessem alguma situação mal resolvida com a polícia,

que inevitavelmente apareceria no local do crime. Ou ficaram com medo de serem

culpabilizados pelo crime. Não é possível saber, o fato é que um deles até saiu da

cidade depois do ocorrido. O interessante é que as figuras suspeitas dos dois

clientes frequentavam os mesmos ambientes que um investigador policial. Neste

sentido, os salões de bebidas das casas de tolerância e as próprias zonas de

meretrício eram espaços de socialização em que ocorriam a suspensão de

diferenças como aquelas, entre a criminalidade e as autoridades policiais.

Por fim, outro ponto relativo as sociabilidades na marginalidade curitibana e

que fica implícito nas matérias dos jornais, são as relações entre as mulheres

envolvidas na história. A meretriz Helena foi representada pelo jornais como o pivô

dos acontecimentos apesar das testemunhas afirmarem que o casal Antonieta e

Pedro já haviam discutido antes do seu envolvimento. Segundo a Gazeta, Helena

residia na pensão de Antonieta até o dia 26, e teve que se mudar devido a ciúmes29.

Se este foi o caso, por quê Helena estava na pensão de Antonieta no dia seguinte? A

possibilidade de este não ser um relacionamento conflituoso deve ser levada em

consideração, talvez Helena tenha rejeitado Freitas justamente porque sabia do seu

relacionamento com a dona da pensão. Pensando sobre a prostituição no mesmo

período, mas na cidade de Florianópolis, Ivonette Pereira afirma que “amizade e

companherismo deveriam ser uma constante, bem como suas paixões e amores”30

ao citar as relações entre as próprias meretrizes e refletindo sobre a criação de laços

entre estas mulheres geralmente afastadas de suas famílias. Ainda segundo a

reportagem da Gazeta, o enterro de Antonieta no cemitério do Água Verde, teve

grande acompanhamento. Considerando que a sua pensão ficava em uma rua

29 GAZETA..., op. cit., 28/08/1937, p. 2. 30 PEREIRA, Ivonete. “As decaídas”: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, p. 108.

conhecida pelas atividades e espaços marginais, inclusive uma considerável zona de

meretrício, é provável que muitas dos suas companheiras de atividade pertecessem

ao grupo que participou do enterro, enfatizando a possibilidade de uma rede de

solidariedade entre as meretrizes.

Provavelmente, há muitas nuances que não foram abordadas aqui e reforçam

a distância entre o cotidiano do meio urbano e as relações que nele se desenvolvem

das visões de mundo que buscavam um sociedade ideal baseada na moral

burguesa. O controle efetuado pela identificação das meretrizes buscava perseguir a

trajetória dos indivíduos e, através do saber e da tecnologia que destacavam o corpo

e alguns aspectos das suas relações sociais, classificá-los em categorias

estabelecidas a partir de concepções como família e trabalho, como se buscasse

através da identificação atribuir uma identidade. No entanto, percebe-se que as

relações diárias, acontecimentos e situações tornavam o arquivo policial

constantemente incompleto quando se tratava das classes perigosas das cidades.

Acontecimentos trágicos como o assassinato de Antonieta, capitalizados em forma

de notícias sensacionais, permitem ao historiador reunir fragmentos destes aspectos

mais cotidianos e que, de outra forma não ficariam registrados, afim de compreender

as dinâmicas próprias do meio urbano da Curitiba do começo do século.

Referências

Fontes documentais

DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 27 de agosto de 1937, p. 1, 8.

DIÁRIO DA TARDE. Amor infeliz. 28 de agosto de 1937, p. 1.

Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 18 de

Antonieta Dino.

Gabinete de Identificação e Estatística do Estado do Paraná. Promptuario n. 16071

de Helena Quadros.

GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre! 27 de agosto de

1937, p. 1.

GAZETA DO POVO. Ensopada de sangue uma pensão alegre. 28 de agosto de

1937, p. 1-2.

Referências bibliográficas

BENVENUTTI, Alexandre Fabiano. As Reclamações do Povo na Belle Époque: a

cidade em discussão na imprensa curitibana (1909-1916). Dissertação (Mestrado em

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