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50 | CIÊNCIAHOJE | 336 | VOL. 56 Nem tudo o que vem de fora é inimigo Espécies exóticas, introduzidas ou invasoras, têm diferentes efeitos no ambiente onde proliferam fora do quadro ensino médio A biodiversidade do planeta tem so- frido uma série de ameaças, princi- palmente, devido ao intenso cresci- mento da população humana nos úl- timos milhares de anos. Os humanos, aliás, são um exemplo de espécie que se originou em uma região (na África), onde se estabeleceu e morou por mi- lhares de anos. Depois, porém, ela se dispersou e colonizou praticamente todo o planeta. Além disso, populações humanas de diferentes culturas e origens geo- gráficas fizeram intensos eventos mi- gratórios nos últimos séculos. Du- rante essa dispersão, transportamos outras espécies de animais e vegetais também para regiões distintas da- quelas de onde eram nativas. Em seus novos ambientes, essas espécies são chamadas pelos cientistas e ambien- talistas de espécies exóticas. Aquelas sabidamente transporta- das por seres humanos para novas regiões são também conhecidas co- mo espécies introduzidas. Muitas delas passam a ser consideradas es- tabelecidas, pois convivem com as espécies nativas locais, reproduzin- do-se e mantendo-se de forma está- vel, sem causar grandes prejuí zos. Outras espécies exóticas, porém, são denominadas invasoras, porque pro- vocam danos ao ambiente, à saúde humana ou às espécies nativas, mui- tas vezes eliminando-as, por com- petição ou predação. VERDADEIRAS PRAGAS Outras espé- cies invasoras surgem regularmente, mas não é simples detectar sua che- gada ou prever o impacto de sua pre- sença recente. Em alguns casos, po- rém, os efeitos devastadores são per- cebidos rapidamente. Nesse caso, destacam-se duas es- pécies de corais-sol (Tubastraea coc- cinea e Tubastraea tagusensis) trans- portadas do Caribe para o litoral do Rio de Janeiro e de São Paulo por navios e plataformas petrolíferas. A competição entre os corais-sol e os corais brasileiros tem levado à dimi- nuição destes últimos e pode causar a extinção de espécies nativas exclu- sivas da costa brasileira como o coral- cérebro (Mussismilia hispida). O caramujo-gigante-africano, in- troduzido para ser utilizado como alimento para fins comerciais, é outro caso de invasão rápida, em que plan- tas nativas são intensamente devo- radas. Em águas doces, a invasão do mexilhão-dourado (Limnoperna for- tunei), transportado pela água de las- tro de navios atracados no rio da Pra- ta, na Argentina, já alcançou toda a bacia do rio Paraná. Esses moluscos destroem a vegetação local, além de causar prejuízos econômicos consi- deráveis ao entupir tubulações de usinas hidrelétricas. Todas as três invasões se torna- ram, portanto, verdadeiras pragas após menos de 20 anos de sua in- Muitos animais ou vegetais intro- duzidos no Brasil são espécies domes- ticadas anteriormente em outras re- giões do planeta. Elas foram trazidas para cá por sua importância comer- cial. É o caso da manga, da laranja, da banana, da cana-de-açúcar, da bata- ta, do gado bovino, do porco e da ga- linha (ver ‘A invasão do javali’, nesta edição). Porém, outras espécies intro- duzidas ou exóticas também usadas na alimentação, ainda que em escala comercial menor, se tornaram tão co- nhecidas que às vezes nos parecem nativas, como ocorre com a jaca e o jambo. Espécies não domesticadas podem ser introduzidas acidentalmente e se estabelecer. Esse parece ser o caso dos mexilhões marinhos, para os quais estudos arqueológicos e gené- ticos sugerem uma origem africana, tendo chegado ao Brasil por meio de navios há centenas de anos. Já as espécies invasoras são mais notáveis pelo seu grande impacto am- biental. O eucalipto – originário da Austrália e cultivado em monocultu- ras em larga escala, por todo o Brasil, para produção de papel desde a déca- da de 1910 – inibe o crescimento de outras plantas ao seu redor, além de não oferecer condições de vida ade- quadas para a fauna nativa. Assim, plantações de eucalipto, embora se pareçam com florestas, têm efeitos deletérios na flora e fauna nativas.

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50 | ciÊnciahoje | 336 | vol. 56

Nem tudo o que vem de fora é inimigoEspécies exóticas, introduzidas ou invasoras, têm diferentes efeitos no ambiente onde proliferam

fora do quadro ensino médio

A biodiversidade do planeta tem so­frido uma série de ameaças, princi­palmente, devido ao intenso cresci­mento da população humana nos úl­timos milhares de anos. Os humanos, aliás, são um exemplo de espécie que se originou em uma região (na África), onde se estabeleceu e morou por mi­lhares de anos. Depois, porém, ela se dispersou e colonizou praticamente todo o planeta.

Além disso, populações humanas de diferentes culturas e origens geo­gráficas fizeram intensos eventos mi­gratórios nos últimos séculos. Du­rante essa dispersão, transportamos outras espécies de animais e vegetais também para regiões distintas da­quelas de onde eram nativas. Em seus novos ambientes, essas espécies são chamadas pelos cientistas e ambien­talistas de espécies exóticas.

Aquelas sabidamente transporta­das por seres humanos para novas regiões são também conhecidas co ­ mo espécies introduzidas. Muitas delas passam a ser consideradas es­tabelecidas, pois convivem com as espécies nativas locais, repro duzin ­ do­se e mantendo­se de forma está­vel, sem causar grandes prejuí zos. Outras espécies exóticas, po rém, são denominadas invasoras, porque pro­vocam danos ao ambien te, à saúde humana ou às espécies nativas, mui­tas vezes eliminando­as, por com­petição ou predação.

Verdadeiras pragas Outras espé­cies invasoras surgem regularmente, mas não é simples detectar sua che­gada ou prever o impacto de sua pre­sença recente. Em alguns casos, po­rém, os efeitos devastadores são per­cebidos rapidamente.

Nesse caso, destacam­se duas es­pécies de corais­sol (Tubastraea coc­cinea e Tubastraea tagusensis) trans­portadas do Caribe para o litoral do Rio de Janeiro e de São Paulo por navios e plataformas petrolíferas. A competição entre os corais­sol e os corais brasileiros tem levado à dimi­nuição destes últimos e pode causar a extinção de espécies nativas exclu­sivas da costa brasileira como o coral­cérebro (Mussismilia hispida).

O caramujo­gigante­africano, in­troduzido para ser utilizado como alimento para fins comerciais, é outro caso de invasão rápida, em que plan­tas nativas são intensamente devo­radas. Em águas doces, a invasão do mexilhão­dourado (Limnoperna for­tunei), transportado pela água de las­tro de navios atracados no rio da Pra­ta, na Argentina, já alcançou toda a bacia do rio Paraná. Esses moluscos destroem a vegetação local, além de causar prejuízos econômicos consi­deráveis ao entupir tubulações de usinas hidrelétricas.

Todas as três invasões se torna­ram, portanto, verdadeiras pragas após menos de 20 anos de sua in­

Muitos animais ou vegetais intro­duzidos no Brasil são espécies domes­ticadas anteriormente em outras re­giões do planeta. Elas foram trazidas para cá por sua importância comer­cial. É o caso da manga, da laranja, da banana, da cana­de­açúcar, da bata­ta, do gado bovino, do porco e da ga­linha (ver ‘A invasão do javali’, nesta edição). Porém, outras espécies intro­duzidas ou exóticas também usadas na alimentação, ainda que em escala comercial menor, se tornaram tão co­nhecidas que às vezes nos parecem nativas, como ocorre com a jaca e o jambo.

Espécies não domesticadas podem ser introduzidas acidentalmente e se estabelecer. Esse parece ser o caso dos mexilhões marinhos, para os quais estudos arqueológicos e gené­ticos sugerem uma origem africana, tendo chegado ao Brasil por meio de navios há centenas de anos.

Já as espécies invasoras são mais notáveis pelo seu grande impacto am­biental. O eucalipto – originário da Austrália e cultivado em monocultu ­ ras em larga escala, por todo o Brasil, para produção de papel desde a déca­da de 1910 – inibe o crescimento de ou tras plantas ao seu redor, além de não oferecer condições de vida ade­quadas para a fauna nativa. Assim, plantações de eucalipto, embora se pareçam com florestas, têm efeitos deletérios na flora e fauna nativas.

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ciÊnciahoje | 336 | maio 2016 | 51

Para discutir em sala de aula

trodução acidental ou intencional no Brasil.

A fauna e a flora silvestres nativas de regiões geográficas muito restri ­ tas (endêmicas) também podem ser vítimas de rápidas invasões por mi­cro­organismos. Esse foi, e ainda é, um problema no caso dos anfíbios – sobretudo, sapos e rãs – devido à disseminação de um fungo (Batra­chochytrium dendrobatidis). Trans­portado pelo simples contato com roupas e calçados humanos, esse fun­go levou à extinção da rã­dourada na natureza (Atelopus zeteki) na Amé ­ rica Central e se espalhou por toda a região tropical, onde está diziman­do muitas espécies de anfíbios.

Mas qual a chance de uma espé ­ cie exótica ou introduzida se tornar invasora? A resposta não é sim ples, pois o mecanismo de estabeleci­mento, dispersão e reprodução varia de local para local e difere em es­pécies distintas – algumas se disper­sam mais rápido porque alcançam maior sucesso reprodutivo.

Além disso, muitas vezes, a pro­liferação das espécies depende de diversos fatores ambientais, como

dativa, pois as árvores nativas rein­troduzidas têm crescimento lento e vão demorar a produzir frutos e se­mentes. Enquanto isso ocorre, a fau­na local remanescente pode con­tinuar usando as jacas como fonte de alimento.

Monitorando com rigor as espé ­ cies existentes e introduzidas nos di­ferentes biomas brasileiros, po dem­se prevenir as invasões e preservar a biodiversidade de cada região. As ­ sim, evitaremos também a armadi ­ lha de considerar tudo o que não é nativo (brasileiro, no nosso caso) co­mo indesejável, tratando cada es­pécie adequadamente.

E é bom lembrar que estamos nos referindo a um conceito ainda mais complexo, o da própria definição de ‘espécie’. Mas esse é assunto para outra ocasião.

maurício luz instituto oswaldo cruz, Fiocruz

Paulo cEsar dE Paivainstituto de Biologia, universidade Federal do rio de Janeiro

aquecimento global, condições cli­máticas no momento da primeira in­vasão etc. Há mesmo casos de es­pécies exóticas que sofrem uma re­dução drástica em suas populações depois de uma propagação inicial muito rápida.

Ao abordarmos as espécies não nativas de uma região, temos de levar em conta se são exóticas, introduzidas ou invasoras, já que cada uma tem consequências distintas em relação às espécies nativas. Depois de ver tantos casos de invasões, pragas e ex­tinções de espécies, vale a pena saber que processos bem­sucedidos de reintrodução de espécies nativas ex­tintas localmente já ocorreram.

Os lobos (Canis lupus) reintrodu­zidos no Parque Nacional de Yellow­stone, nos Estados Unidos, por exem­plo, controlam as populações de her­bívoros e, ao fazê­lo, parecem con­tribuir também para a recuperação de plantas que crescem à beira dos rios e córregos.

No Brasil, as jaqueiras estão sen ­ do gradativamente substituídas por espécies nativas em parques nacio­nais. Essa remoção tem de ser gra­

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À esquerda, exemplar de coral-sol (invasor); à direita, outro coral-sol ao lado de um coral-cérebro (nativo). Quando presentes em grandes densidades, as duas espécies acabam competindo por espaço, colocando a nativa em risco