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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO JORNALISMO
NO LUGAR DO GRANDE OUTRO: ENSAIO SOBRE MÍDIA E CULTURA PÓS-MODERNA
GUILHERME REOLON DE OLIVEIRA
NOVEMBRO DE 2008
UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO JORNALISMO
NO LUGAR DO GRANDE OUTRO: ENSAIO SOBRE MÍDIA E CULTURA PÓS-MODERNA
Monografia de conclusão de curso de graduação,
apresentada como pré-requisito para a obtenção do título de
Bacharel em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo,
sob a orientação do Prof. Dr. Jayme Paviani, na
Universidade de Caxias do Sul.
GUILHERME REOLON DE OLIVEIRA
NOVEMBRO DE 2008
2
Àqueles que constroem uma realidade mais-real,
livre de virtualidades, e uma ficção mais-
ficcional, essencialmente de fantasia,
especialmente aos meus pais, José e Vera.
3
A pior das armas, a razão.
As torres de Nova Iorque
projetam salas aéreas
alongam sombras infinitas.
rasgam nossos endereços
e empurram Platão
para o interior da caverna.
Todos os dias retornamos ao primitivo
entre estilhaços
na luta
entre o Bem e o Mal.
Terrível Lucidez, Jayme Paviani
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela existência, pela essência fundamental.
Aos meus pais, pelo amor incondicional: à Vera, pelo incessante incentivo, pela orientação, pela
correção, pelas leituras criteriosas, pela paixão transferencial à psicanálise; ao José, pela presença
sem-igual, atenta, acolhedora, conselheira.
Aos meus tios; avós, especialmente à Thereza (in memoriam), muito presente em meu
desenvolvimento; e tio-avós, alguns que tive a honra de reencontrar no período de escrita desta
pesquisa.
A todos professores que passaram pela minha vida educacional, acadêmica, especialmente à Salem,
pela iniciação nos bancos escolares; à Marli, por propiciar a entrada no mundo das letras; ao
Marcelo Giovanela, pela “deves escolher”; à Sinara Boone, pelas reflexões sobre arte e pela
inscrição no terreno do teatro; e ao Fernando Cotanda, pelas indicações bibliográficas e elucidações
sociológicas, durante a escrita deste trabalho.
À bibliotecária Neusa Pizzamiglio, pelas conversas e pelo incentivo à escrita.
Ao professor Jayme Paviani, pela orientação nas pesquisas (nesta e nas de Iniciação Científica), que
prima pela liberdade, em seu sentido mais filosófico-conceitual, pelas palavras nos momentos
certos, pelo trato ímpar, pela elegância de caráter, por tornar “real” a filosofia.
À Marliva Vanti Gonçalves, pelos ideais, pela paixão ao jornalismo e à comunicação, pelas
extravagâncias conceituais, por instigar ao pensar, pela amizade, pelos conselhos profissionais.
Ao Luiz Arthur Ferraretto, pelas discussões, pelos questionamentos, pelas inquietações e pela
afinidade no campo do conhecimento.
À Brigith, pela excelência existencial, pelo ensinamento à evolução.
Aos colegas do curso de Jornalismo, especialmente à Larissa Quissini Rizzon, à Suelen Spido
Mapelli, à Carolina Tavares, à Joseane Strey Corrêa, à Gabriela Alcântara da Silva, à Marília
Santolin e à Rocheli Camargo, pela amizade e companheirismo.
5
Aos colegas do curso de Psicologia, especialmente aos amigos Fábio Anacleto Schuch e Marcelo
Vanzin.
Aos colegas de trabalho, especialmente aos amigos: Juliano Viali dos Santos e Adriana Karina
Diesel Chesani, do Ministério Público; João de Lima, Elisabete Finger, Cristiane Postingher da
Fonseca, Emanuele Bianchin, Lara Casagrande, Nestor Pistorello e Arno Costanzi, da Secretaria
Municipal da Agricultura; Élida de Almeida, da Trium Comunicação Publicitária; e Cátia Regina
Susin, da Secretaria Municipal da Cultura.
Aos amigos, que a correria do dia-a-dia impossibilita de encontrar: à Michele Salibe de Oliveira, à
Franciele Cristiane dos Santos, à Fabiana Sedina Antunes, à Paola Brandão Turatto, à Bibiana
Screbsky de Almeida, ao Márcio Oselame de Almeida e ao Mário Júnior Segala. Ao Marc Emerim,
que revi durante a finalização deste escrito e cujo gesto amigo durante o vestibular foi muito
importante.
Ao Colégio Nossa Senhora do Carmo, ao Cetec, à UFRGS, à UCS e à FSG, instituições de ensino
que propiciaram, direta ou indiretamente, meu desenvolvimento intelectual.
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 O COMPLEXUS CULTURAL: DO MITO BABILÔNICO À CULTURA DAS
MÍDIAS
2.1 Cultura e arte: uma simbiose à antiga
2.2 Do Simbólico ao Clássico: uma transformação artístico-cultural
2.3 A filosofia e o novo paradigma: a razão
2.4 Revolucionários: novas ordens culturais
2.5 Cultura das mídias, a indústria cultural
3 METAMORFOSEAR-SE: QUEBRA DE PARADIGMAS OU MAL-ESTAR
CONTEMPORÂNEO?
3.1 Metamorfose: sintoma, patologia?
3.2. Sociedade pós-moderna: reflexões
3.3 In(conclusão): considerações contemporâneas
4 FRAG(PENSA)MENTO: DA REPRODUÇÃO EM SÉRIE À SOCIEDADE DO
HÍBRIDO
4.1 Tempos (pós/hiper)modernos: a industrialização e os processos contemporâneos
4.2 Carência ou excesso de paradigmas?
4.3 Ciência e razão como orientadores da vida social
4.4 A hibridização como imperativo ético contemporâneo: Dalí e a fragmentação
5 O GRANDE OUTRO SUBSTITUTO – A PARTIR DA METÁFORA DE “O
PERFUME”, DE PATRICK SÜSKIND
5.1 Uma estrutura híbrida constituída pelo Outro-midiático
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANEXO
08
12
13
15
17
19
21
25
29
31
33
37
38
39
41
44
48
51
54
58
65
7
1 INTRODUÇÃO
O século XX provocou uma série de colapsos paradigmáticos que se refletem nos estilos de
vida e no comportamento das pessoas. Com a inserção dos meios de comunicação, especialmente a
televisão, na metade do referido período, a sociedade passa a ser espelho de suas configurações.
Este estudo pretende ir um pouco além: busca investigar se a mídia vem ocupando o lugar
de Grande Outro, conceito introduzido por Jacques Lacan para explicar o campo de inscrição de
significantes do sujeito, que o estrutura enquanto tal, normalmente ocupado pela mãe, enquanto
estruturadora. Assim, tem como temática a correlação mídia e pós-modernidade, a partir de uma
análise filosófico-psicanalítica.
A atualidade apresenta características singulares, as quais delimitam o século XX como um
período ímpar: consumismo, individualismo, comunicação de massa e fragmentação –
conhecimento especializado. Pensar a cultura pós-moderna é algo instigante, à medida que
analisamos nosso tempo e, conseqüentemente, nos analisamos. Desta forma, faz-se importante
analisar a função/o papel desempenhado pela mídia na contemporaneidade.
Esta pesquisa, assim, é relevante pois procurará compreender a inserção da mídia na cultura
pós-moderna. A filosofia e a psicanálise – enquanto “hermenêutica da realidade” – questionam e
analisam fatores constituintes e estruturais da humanidade, por isso utilizá-las neste estudo. Como
pressuposto, analisar-se a evolução da cultura, investigando a inserção da mídia como constituinte
da cultura contemporânea.
Importante será, também, pois estudará a pós-modernidade do ponto de vista filosófico-
psicanalítico, utilizando conceitos e teorias destas áreas do conhecimento, a saber: modernidade
liquida, de Zygmunt Bauman; sociedade do espetáculo, de Guy Débord; sociedade do consumo, de
Jean Baudrillard; indústria cultural, de Theodor Adorno; e o processo de estruturação do sujeito, de
Jacques Lacan.
Compreendendo seus mecanismos de controle e persuasão, investigando de que forma a
comunicação exerce seu poder e qual a sua função na atualidade, a partir de um resgate histórico de
seu surgimento e inserção na sociedade, poderemos identificar o seu papel. Entendendo o
capitalismo, enquanto comando da cultura e da ação pós-moderna, compreender-se-á a estruturação
do homem pós-moderno e questionar-se-á se o lugar ocupado pela mídia é saudável para a atual
geração.
A partir de pesquisa bibliográfica, procurar-se-á entender se/como a mídia atua na
estruturação do sujeito, algo de fundamental relevância na pós-modernidade, tempo no qual valores
e leis são encobertos por outros fatores, deturpados ou suprimidos. Principalmente se partirmos do
pressuposto que a mídia atua no psíquico, e a indústria cultural, propiciada pela dominação da
9
técnica, exerce um poder de contenção do desenvolvimento da consciência das massas.
Assim, a questão que norteia este trabalho é: Se a mídia vem exercendo papéis antes
ocupados pela Igreja, pela família e pela escola, estaria ela atuando na estruturação do
sujeito, no lugar de Grande Outro, campo de inscrição de significantes, lugar materno?
Apresenta-se, como possíveis respostas a este questionamento, quatro hipóteses. São elas: a)
a mídia atua na estruturação do sujeito; b) a mídia não exerce função estruturadora, contudo é
persuasiva e tem ampla influência no comportamento das pessoas; c) a mídia não exerce função
estruturadora, nem influencia o comportamento, é apenas formadora de opinião; e d) a mídia não
exerce qualquer tipo de influência na sociedade.
Desta forma, o objetivo principal desta pesquisa é investigar se a mídia atua na estruturação
do sujeito, ocupando o lugar de Grande Outro, campo de inscrição de significantes, lugar materno.
Para tanto, partir-se-á de um estudo do conceito de cultura e de sua história para delimitar o
contexto de transição modernidade/pós-modernidade. Por fim, analisar-se-á a configuração da
contemporaneidade e investigar-se-á como o sujeito se estrutura, a partir da teoria psicanalítica. Ao
término, a pesquisa objetiva, especificamente, compreender qual a função da mídia na cultura pós-
moderna.
Como procedimento metodológico, utilizar-se-á, estritamente, o método qualitativo. A partir
da leitura de obras selecionadas relativas ao tema, realizar-se-á pesquisa bibliográfica, delimitando
conceitos e analisando-os a partir de observação empírica da realidade, sob as perspectivas da teoria
da comunicação, da filosofia contemporânea e da psicanálise lacaneana.
A contribuição de uma pesquisa científica tem como base o seu valor enquanto fonte de
informação no sentido de ampliar as discussões sobre o tema enfocado. Pretende-se, portanto,
contribuir à Teoria da Comunicação e destinar os resultados da pesquisa a estudiosos da cultura, da
mídia e da constituição (humana) contemporânea e a acadêmicos dos cursos de Comunicação
Social, bem como a profissionais de comunicação e demais interessados sobre o assunto.
Contribuirá para o melhor entendimento acerca da mídia e seu papel na contemporaneidade.
Desta forma, servirá também para o aprofundamento dos estudos relativos aos processos midiáticos,
estruturais e culturais, uma vez que investiga estes a partir de uma análise da pós-modernidade sob
o viés filosófico-psicanalítico. Dividir-se-á o estudo em quatro capítulos, de modo a partir de um
estudo macro para chegar ao micro.
O capítulo 2, intitulado O complexus cultural: do mito babilônico à cultura das mídias,
pretende analisar o conceito de cultura, diferenciando-o dos conceitos de técnica e arte, e traçar um
panorama, a partir do que se entende como o início do processo cultural, a saber os mitos
babilônicos, até a inserção da mídia como base estrutural contemporânea, o que se denomina como
“cultura das mídias”.
10
O capítulo 3, intitulado Metamorfosear-se: quebra de paradigmas ou mal-estar
contemporâneo?, investiga a transição modernidade/pós-modernidade. Desta forma, analisa, a
partir de uma interpretação da obra A metamorfose, de Franz Kafka, as características da
contemporaneidade, período singular, iniciado, primariamente, após a Revolução Industrial.
O capítulo 4, intitulado Frag(Pensa)mento: do trabalho em série à sociedade do híbrido,
é uma continuidade do capítulo anterior. Contudo, investiga a configuração pós-moderna, do ponto
de vista do conhecimento e da construção do saber. Assim, analisa a evolução da cultura
contemporânea, desde sua origem, com as transformações industriais, até o início do século XXI,
caracterizado pela hibrização, utilizando como pano-de-fundo os filmes Ponto de Mutação e
Tempos Modernos, e a obra pictográfica de Salvador Dalí.
O capítulo 5, intitulado O Grande Outro substituto – a partir da metáfora de “O
perfume”, de Patrick Süskind, centra seu estudo nos processos de estruturação do sujeito,
teorizados pela psicanálise freudo-lacaneana, e procura elucidar, mais especificamente, a questão
norteadora desta pesquisa, a partir de uma análise da obra O perfume, de Patrick Süskind.
Por fim, anexar-se-á um organograma da cultura pós-moderna, esquema que procurará traçar
um perfil da contemporaneidade, suas características gerais e específicas.
11
O complexus cultural: do mito babilônico à cultura das mídias
Arqueiros de Dário I
Relevo persa que decorava o palácio de Dário I
12
2 O COMPLEXUS CULTURAL: DO MITO BABILÔNICO À CULTURA DAS MÍDIAS
A poesia é a filosofia ainda não traduzida.
Ricardo Timm de Souza
Controverso, complexo e em constante mutação é o conceito de cultura1. A cultura é um
complexus que compreende todos os processos do agir e pensar humanos. Pensar, neste sentido,
compreendido como ação do conhecimento. Desta forma, todo fazer humano é cultural, mesmo que
em nível estritamente, cognitivo. Cabe, contudo, investigar desconstrutivamente este conceito. Para
isso, saber como, quando e onde surge a transposição natureza-cultura é condição para tal.
As pinturas e os desenhos da Antigüidade, encontrados nas mais escuras, esquecidas e
abandonadas cavernas, nos remetem a um certo tipo ou manifestação cultural. Quais saberes, neste
sentido, determinam a cultura? Seria a cultura, assim, sinônimo de arte ou conjunto de técnicas
artísticas? O contrário se aplica? Se assim procedermos, poderíamos dividir a cultura, ou o
continuum cultural, em períodos? Ou seria ela um processo sem entraves de transição, uma
continuidade?
A cultura, se a pensarmos como quaisquer fazeres ou ações, é ligada a valores. Nossos
valores – morais, éticos, familiares, sociais – seriam, assim, valores instituídos a partir de uma
prática cultural? Estas perguntas iniciam e permeiam todos os meandros desta pesquisa, são fios
condutores deste trabalho. Procuraremos, assim, respondê-las ou suprimi-las através de outros
questionamentos, mais amplos ou mais específicos, enfim, mais complexos.
2.1 Cultura e arte: uma simbiose à antiga
A arte2, assim como a cultura, ultrapassa qualquer definição. Conceitos ou descrições são
perigosos, uma vez que descrevê-las não é a melhor saída. Senti-las, ou procurar elaborar abstrações
mentais, talvez ainda seria um método interessante para tal. Lúcia Santaella, no artigo O conceito
de cultura revisitado (2003), destaca:
1 “Para os antropólogos, a cultura tem significado amplo: engloba os modos comuns e aprendidos na vida, transmitidos pelos indivíduos e grupos, em sociedade. [...] Desde o final do século passado, os antropólogos vêm elaborando inúmeros conceitos sobre cultura. Apesar da cifra ter ultrapassado 160 definições, ainda não chegaram a um consenso sobre o significado exato do termo. Para uns, cultura é comportamento aprendido; para outros, não é comportamento, mas abstração do comportamento; e para um terceiro grupo,a cultura consiste em idéias. Há os que consideram como cultura apenas os objetos imateriais, enquanto que outros, ao contrário, aquilo que se refere ao material.” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p.42) 2 “A arte é uma das características universais da cultura. Acha-se presente em todos os agrupamento humanos, mesmo os mais simples e isolados. Em todas as épocas e em todos os tempos, o homem empenhou-se na busca da beleza, usando sua imaginação criadora na espectativa de satisfazer sua necessidade de expressão estética. [...] Toda manifestação do impulso criador da beleza e do prazer é esteticamente válida e merece ser chamada de arte.” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p.204)
13
Quaisquer que sejam as variações nos conceitos de cultura, eles podem ser considerados tradicionais quando colocam ênfase na cultura como um dispositivo contra a aleatoriedade e a desordem dela decorrente. Na luta infinita entre a ordem e o caos, a cultura sempre foi colocada no lado da ordem. (SANTAELLA, 2003, p.177)
Cultura é conceito em constante renovação, transformação. Certo é que cultura “pode ser
critério de definição do grupo, da comunidade e da sociedade, cada momento com suas marcas
identificadoras e diferenciadoras”, afirma Jayme Paviani, em Cultura, Humanismo e Globalização
(2004, p.77)3.
O vocábulo, como é encontrado no dicionário e utilizado pelo senso-comum, foi definido
pela primeira vez por Edward Tylor, em 1871, como “tomado em seu amplo sentido etnográfico é
esse todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.
Isolar e separar arte e cultura é atitude equivocada, uma vez que ambas, na Antigüidade,
primitivamente, estavam fortemente relacionadas – entre si e com a religião4 e a política5; tinham
valor de igualdade. A arte é constituinte da cultura, a integra. A civilização foi desenvolvida através
dos processos de aculturação e, conseqüentemente, através da arte. Nas civilizações antigas,
especialmente a grega e a romana, uma tênue diferenciação, quase imperceptível, havia entre as
duas. A arte era, largamente, conectada à teologia, ao divino. Os deuses, dessa forma, estavam
simbolizados, representados e constituídos nas obras artísticas e nos mitos. A religião, desta forma,
refletia no desenvolvimento da cultura antiga.
Os mitos6, hoje entendidos como obras de arte, a serem apreciadas e contempladas, na
Antigüidade tinham o papel de reguladores e orientadores de conduta social. A cultura, assim, foi e
ainda é a organizadora da civilização. Os mitos traziam, subliminarmente, a Lei. Lei essa não
3 Paviani, ainda, destaca: “Cultura é a ação humana e também a reflexão sobre a ação humana. Daí a relevância do estudo dos aspectos éticos e estéticos nos processos culturais” (2004, p.75).4 “As normas religiosas de comportamento humano baseiam-se nas incertezas da vida e variam muito de uma sociedade para outra. Entretanto, tornam-se mais evidentes nos momentos de crise, ou seja, nascimento, adolescência, casamento, enfermidade, fome, morte, etc. Por meio de cultos e rituais, públicos ou privados, os homens tentam conquistar ou dominar, pela oração, oferendas, sacrifícios, cantos, danças, etc., a área de seu universo não submetida à tecnologia. Os registros arqueológicos mais antigos sobre religião datam do Paleolítico Superior, com o homem de Neandertal, que enterrava seus mortos com oferendas, demonstrando assim uma crença em algo sobrenatural. [...] A primeira e mais curta definição de religião foi dada por Edward Tylor: 'a crença em seres espirituais'” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p.162)5 Segundo a maioria dos dicionários, é a ciência do governo dos povos; a direção de um Estado e determinação das formas de sua organização; o conjunto dos negócios de Estado, maneira de os conduzir. Marconi e Presotto (2001) a definem: “A organização politica de um povo abrange o conjunto de instituições através das quais se mantém a ordem, o bem-estar e a integridade do grupo, sua defesa e proteção. Essas instituições regulam e controlam a vida da sociedade, garantindo a seus membros: direitos individuais, organização do governo local, sistema de governo, defesa e proteção” (p.150)6 Entendido, neste estudo, como narrativa popular ou literária, que coloca em cena seres sobre-humanos e ações imaginárias, para as quais se faz a transposição de acontecimentos históricos, reais ou fantasiosos (desejados), ou nas quais se projetam determinadas estruturas subjacentes das relações familiares.
14
questionada, não criticada, muito menos ignorada, pois era percebida como “ensinamento” dos
deuses.
Os mitos, assim, tinham significados muito diferentes nos contextos babilônico, grego e
romano. Os valores estéticos7 formam e constituem os valores éticos. A moral8 é determinada pelo
trágico; a conduta é orientada pelo gosto, pelo valores “artísticos” da sociedade. Percebe-se, ainda,
claramente, as diferenças entre arte clássica e arte contemporânea. A primeira permite que nós,
hoje, analisemos, de maneira complexa, a civilização antiga. A atual, ao contrário, precisa ser
contextualizada e explicada, para que possamos compreendê-la.
Na narrativa babilônica Epopéia de Gilgamesh (2001)9, de autor desconhecido, uma das
primeiras manifestações artísticas até então descobertas, observa-se o ensinamento moral vigente na
época: a dominação divina sobre os homens, uma inferiorização do ser humano. Gilgamesh,
humano mortal, é o herói terreno que melhor representa, na arte, o homem em busca da
imortalidade e do conhecimento. Para isso, combate monstros, percorre caminhos tortuosos e busca,
incessantemente, a meta traçada. Ao fim, morre, descobrindo que essa era impossível de ser
alcançada. A partir da narrativa, fica-se com as idéias concebidas na época: os deuses são superiores
aos homens, os atos humanos são realizados pelos deuses, o divino governa o homem.
2.2 Do Simbólico e ao Clássico: uma transformação artístico-cultural
Hegel10, em Curso de Estética (1999-2000), estabelece um sistema de formas de arte;
disserta sobre a diferença entre a Arte Simbólica e a Arte Clássica. Segundo ele, a primeira está à
procura do ideal, a segunda o atinge. Essa transformação cultural é analisada pelo autor através dos
mitos. Segundo Hegel, os deuses que, na Arte Simbólica, eram governadores da natureza, na Arte
Clássica, têm uma relação sublime e bela com o natural. Os deuses clássicos não são “senhores da
natureza”, são limitados, pois suas potências são transformadas em beleza. São deuses com
7 Estética é a ciência que trata do belo em geral e do sentimento que ele proporciona no humano.8 Moral é a a parte da filosofia que trata dos costumes, deveres e modo de proceder dos homens nas relações com seus semelhantes. É, por vezes, confundida com ética. Pode ser entendida, também, como o corpo de preceitos e regras, segundo a justiça e a eqüidade natural; as leis da honestidade e do pudor; a moralidade”.9 Epopéia de Gilgamesh é a história de um rei sumério da cidade-estado de Uruk, que teria vivido no século XXVIII a.C. O registro mais completo deste mito provém de uma tábua de argila escrita em língua Acádia do século VII a.C., pertencente ao rei Assurbanipal. No entanto, foram encontradas tábuas com excertos que datam do século XX a.C., sendo assim o mais antigo texto literário conhecido. Esta epopéia contém a mais antiga referência conhecida ao mito do dilúvio, que é recorrente em várias culturas e que está presente na Bíblia. Segundo algumas teorias, o dilúvio foi um tombamento do eixo planetário, causado ou pela gravidade de um meteoro que passou perto da terra durante a época, ou pela inversão do pólo magnético da terra que acontece de tempos em tempos.10Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi filósofo. Fascinado pelas obras de Spinoza, Kant e Rousseau, assim como pela Revolução Francesa, representa o ápice do idealismo alemão do século XIX, que teve impacto profundo no materialismo histórico de Karl Marx. Filósofo da Totalidade, do Saber absoluto, do Fim da História, da dedução de toda realidade a partir do Conceito, da Identidade que não concebe espaço para o contigente, para a diferença; filósofo do estado prussiano, que hipostasiou o Estado. Todas essas são algumas das recepções da filosofia de Hegel na contemporaneidade.
15
sentimentos e formas humanas, cujas ações são representadas nos mitos. São seres vivos, não
abstratos, conceitos, alegorias.
Se, por um lado, os antigos deuses eram grotescos e radicais, os novos são tênues e
cooperativos. No período clássico, os deuses são uma prefiguração do espírito livre que ainda não
se libertou completamente, mas que, ao menos, iniciou uma liberação do determinismo. Para Hegel,
os homens do período clássico já não são tão temerosos em relação aos deuses, característica da
Arte Simbólica. Isso porque, segundo o pensador, através dos mitos, há transformações, surgem
novos paradigmas. O autor acrescenta, também, que na época clássica, os oráculos não mais emitem
um mandamento; neste momento, eles são enigmáticos e necessitam ser interpretados.
Se, na Grécia Arcaica, a educação se dava oralmente através dos mitos, na Grécia Clássica,
com o surgimento das tragédias, há uma mudança de hábito: os mitos são encenados. Exemplos são
Antígona11 e Édipo Rei12, obras de Sófocles. Nelas, os princípios morais, que vigem até hoje, estão
claramente contidos. Em Antígona, presentes estão as dicotomias família-estado (polis), privado-
público, natureza-cultura. Antígona representa o humano que não nega; ao contrário, honra e
persegue seu desejo constituinte, Desejo. Antígona, filha de Édipo com Jocasta, mãe deste, é a
representante da Ética, do Direito Natural, a Lei Divina. Antígona não cede de Desejo, ela o
assume, o persegue, independentemente da lei social, da moral. Creonte, por sua vez, é o
representante do terreno, do humano, da lei societária. Em Édipo Rei, são os questionamentos em
relação às constituições familiares que são postos em questão. O incesto13 é posto como algo
incorreto, impuro, um miasma para a sociedade. É, através de uma representação, colocado como
inaceitável e, portanto, inconcebível.
Vera Marta Reolon, em mulheres para um homem... para O Homem, A Mulher (2008), a 11 Antígona é uma figura da mitologia grega, filha de Édipo e Jocasta. A versão clássica do mito sobre Antígona é descrita na obra Antígona, do dramaturgo grego Sófocles, um dos mais importantes escritores de tragédia. A peça é composta pelo prólogo, que nesse caso é dialogado, onde as irmãs Antígona e Ismênia conversam e nos dão uma visão geral dos acontecimentos; cinco episódios; cinco estásimos, que são as entradas do coro em cena, trazendo informações ao público sobre o assunto da peça; e o êxodo, parte final. Antígona foi a única filha que não abandonou Édipo quando este foi expulso de seu reino, Tebas, pelos seus dois filhos, Etéocles e Polinice. Antígona acompanhou o pai em seu exílio até sua morte. Quando voltou a Tebas, seus irmãos brigavam pelo trono. Eles decidem disputar o trono com um combate singular, através do qual ambos morrem. Creonte, tio deles, herda o trono, faz uma sepultura com todas as honras para Etéocles, e deixa Polinice onde morreu, proibindo qualquer um de enterrá-lo sob pena de morte. Antígona, indignada, tenta convencer o novo rei a enterrá-lo, pois, quem morresse sem os rituais fúnebres, seria condenado a vagar cem anos nas margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem poder ir para o outro lado. Não se conformando, ela enterra Polinice com as próprias mãos e é pega enquanto o fazia. Creonte ordena que ela seja enterrada viva, uma vez que ignorou a lei terrena, lei por ele imposta. 12 Édipo Rei é uma peça de teatro grega, mais precisamente uma tragédia, escrita por Sófocles por volta de 427 a.C. Trata de uma parte do mito de Édipo, especificamente a investigação sobre sua própria origem. Considerado por Aristóteles o mais perfeito exemplo de tragédia grega, o mito de Édipo Rei é um dos pilares da psicanálise clássica. A definição do Complexo de Édipo remonta a uma carta enviada por Freud a seu amigo Fliess, na qual discute relações de poder e saber num drama encenado tipicamente por pai, mãe e filho.13 Incesto é a relação sexual ou marital entre parentes próximos, ou alguma forma de restrição sexual dentro de determinada sociedade. É um tabu em quase todas as culturas humanas, sendo por isto considerado um tabu universal. Em alguns casos, é punido como crime; em outros, é considerado “pecado” (como o é para as maiores religiões); e em outros, é simplesmente motivo de zombaria. Na maior parte dos países o incesto é legalmente proibido – mesmo que haja consentimento de ambas as partes.
16
partir das perspectivas da psicanálise e do movimento estruturalista, coloca que a cultura, desde a
Antigüidade, está calcada, formada, na interdição do incesto, originada no mito edípico de Sófocles:
Nossa cultura, segundo Lévy-Strauss, se funda numa interdição. Para Freud, a interdição é a do incesto. O menino teme perder o pênis, ficar igual à menina, então estrutura a castração, a interdição de ter a mãe (pois ela é do pai e este pode castrá-lo). A menina, percebendo a diferença sexual, já se sente castrada, não tem o pênis, já lhe foi tirado, é diferente do menino. Para Lacan, em sua leitura do texto freudiano, o significante cultural é o falo, que na estruturação infantil pode ser representado no pênis, no ter ou não ter o pênis, mas o falo é mais do que isso, ele é da ordem da energia pulsional do sujeito. No plano cultural, a questão sexual está do lado do ideal de eu, como vai se apresentando este ideal na evolução cultural e que efeitos subjetivos porta. Então, ser masculino ou feminino depende do que opera como falo simbólico na cultura, o que na cultura adquire um valor. Nos dias de hoje, o falo simbólico estaria provavelmente representado na palavra e em suas manifestações culturais. (REOLON, 2008, p. 67-68).
Segundo Hegel, a passagem da Arte Simbólica para a Arte Clássica representa um progresso
estético, pois nos permite um acesso mais livre aos nossos próprios pensamentos. Essa passagem
marca também uma libertação, uma liberação dos medos dos deuses que, antes, na Arte Simbólica,
o homem possuía.
2.3 A filosofia e o novo paradigma: a razão
Com o surgimento da filosofia14, um novo paradigma15 cultural vem à tona. Os mitos são,
parcialmente, esquecidos, à medida que o racional, o cognosível e o inteligível são valorizados.
Platão16 é o primeiro filósofo que utiliza campos semânticos para diferenciar as formas de saber: a
especulação (inerente ao ser humano) e o saber técnico/tecnológico (racional, calculável,
controlável e demonstrável). Antes de Platão, apenas uma forma de saber vigia: a téchne/mechané
(compreendida como invenção, especulação divina, também oposta/relacionada ao conceito de
arte). Platão concebe o mundo através da dualidade. Inova, entretanto, quando transforma o mundo
“superior”, antes de deuses, em um mundo “inteligível”, de idéias, contrapondo-o ao mundo
14 Filosofia é uma disciplina, ou uma área de estudos, que envolve investigação, análise, discussão, formação e reflexão de idéias (ou visões de mundo) em uma situação geral, abstrata ou fundamental. Originou-se da inquietação gerada pela curiosidade humana em compreender e questionar os valores e as interpretações comumente aceitas sobre a sua própria realidade.15 Paradigma é a representação de um padrão a ser seguido. É um pressuposto filosófico, matriz, ou seja, uma teoria, um conhecimento que origina o estudo de um campo científico; uma realização científica com métodos e valores que são concebidos como modelo; uma referência inicial como base de modelo para estudos e pesquisas. Thomas Kuhn (1922 – 1996), físico americano, em seu livro “A estrutura das Revoluções Científicas” coloca que “um paradigma, é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. 16 Platão (428/27 – 347 a.C.) foi filósofo. Discípulo de Sócrates e fundador da Academia, foi mestre de Aristóteles. Em linhas gerais, desenvolveu a noção de que o homem está em contato permanente com dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível. A primeira é a realidade mais concreta, permanente, imutável, igual a si mesma. A segunda são todas as coisas que nos afetam os sentidos, são realidades dependentes, mutáveis, e imagens das realidades inteligíveis. Tal concepção de Platão também é conhecida por Teoria das Idéias ou Teoria das Formas.
17
“sensível”, onde temos acesso apenas às sombras das Idéias.
Junto à Filosofia, surge a Ética17: os critérios éticos servem, neste momento, para avaliar
uma cultura, uma civilização. A cultura, aqui, permanece ligada aos princípios morais, às virtudes,
aos ensinamentos passados hereditariamente. Com a Ética, os valores são questionados e pensa-se
nas relações humanas, ou seja, pensa-se e questiona-se a cultura.
Com o Iluminismo18 e seus ideais revolucionários, a ação individual é valorizada e, então,
ganha destaque o “Eu”, portador e agente cultural. A cultura deixa de estar firmemente ligada aos
ensinamentos divinos, constituídos e representados nos mitos, e passa a ser produto da ação
humana. A racionalidade permite ao homem um auto-libertar-se. Aqui há uma retomada da
liberdade. O sujeito é visto como fonte de conhecimento, fonte de auto-determinação. A cultura
desvincula-se, em parte, da arte e conjuga-se com a ciência19.
René Descartes20 e Isaac Newton21, representantes desse novo período, inauguram uma nova
configuração sócio-cultural. A razão e a ciência constituem a essência deste momento. Com isso, o
pensamento, antes global, atento ao todo, através da arte e das manifestações técnicas, mecânicas e
artísticas (concebidas igualitariamente), parcializa-se, fragmenta-se. A cultura, a sociedade e, por
conseguinte, o homem passam a ser vistos em parte: objetos de pesquisa, desvinculados uns dos
outros.
Kathrin H. Rosenfield, no artigo Libertinagens (Meta)Físicas (2003), explica a nova ordem
17 A palavra Ética é originada do grego ethos, modo de ser, caráter. Em Filosofia, Ética significa o que é bom para o indivíduo e para a sociedade, e seu estudo contribui para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento indivíduo - sociedade. Define-se Moral como um conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. Moral e ética não devem ser confundidas: enquanto a moral é normativa, a ética é teórica e busca explicar e justificar os costumes de uma determinada sociedade, bem como fornecer subsídios para a solução de seus dilemas mais comuns. Ética também não deve ser confundida com lei, embora, com certa freqüência, a lei seja baseada em princípios éticos. Ao contrário do que ocorre com a lei, nenhum indivíduo pode ser compelido, pelo Estado ou por outros indivíduos, a cumprir as normas éticas, nem sofrer qualquer sanção pela desobediência a estas; por outro lado, a lei pode ser omissa quanto a questões abrangidas no escopo da ética.18 Iluminismo ou Esclarecimento ou Ilustração designam uma época da história intelectual ocidental. É um conceito que sintetiza diversas tradições filosóficas, correntes intelectuais e atitudes religiosas. O uso do termo Iluminismo é ligado à ênfase nas idéias de progresso e perfectibilidade humana, assim como a defesa do conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e ideologias tradicionais.19 Ciência é o conhecimento ou um sistema de conhecimentos que abarca verdades gerais ou a operação de leis gerais especialmente obtidas e testadas através de um método. O conhecimento científico depende muito da lógica. As áreas da ciência podem ser classificadas em duas grandes dimensões: Pura (o desenvolvimento de teorias) versus Aplicada (a aplicação de teorias às necessidades humanas); ou Natural (o estudo do mundo natural) versus Social (o estudo do comportamento humano e da sociedade). Menos formalmente, a palavra Ciência geralmente abrange qualquer campo sistemático de estudo ou o conhecimento obtido desse. 20 René Descartes (1596-1650) foi filósofo, físico e matemático. Notabilizou-se sobretudo por seu trabalho revolucionário na filosofia, mas também obteve reconhecimento matemático posterior por sugerir a fusão da álgebra com a geometria, fato que gerou a geometria analítica e um sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por estes feitos, ele teve um papel-chave na Revolução Científica, influenciando o desenvolvimento por Leibniz e Newton do Cálculo moderno. É considerado "o fundador da filosofia moderna".21 Sir Isaac Newton (1643-1727) foi cientista, mais reconhecido como físico e matemático, embora tenha sido também astrônomo, alquimista e filósofo natural. Newton é o autor da obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, publicada em 1687, na qual descreve a lei da gravitação universal e as Leis de Newton, as três leis dos corpos em movimento que fundamentaram a mecânica clássica.
18
trazida por Newton e Galileu, no século XVII:
Regrar e disciplinar a observação, descrever o ponto de vista e o modo de representação a partir do qual vemos coisas de uma certa maneira, renunciar a conclusões, refreiar juízos morais – eis a repercussão que a nova forma de investigação científica e filosófica provoca na arte. (ROSENFIELD, 2003).
2.4 Revolucionários: novas ordens culturais
Semelhantes a esta nova ordem, mais tarde, três grandes revoluções culturais são
provocadas, respectivamente, por Nicolau Copérnico22, Charles Darwin23 e Sigmund Freud24.
Revoluções culturais pois abalaram o homem em suas mais concretas certezas: 1) ser o centro do
Universo (a Terra gira em torno do Sol); 2) ser uma entidade criada por Deus, a partir do “nada”
(somos frutos da evolução, parentes dos primatas); e 3) ser um ser de razão (somos movidos pelo
inconsciente).
Com a Revolução Burguesa25, percebemos que a cultura liga-se à economia. Adam Smith26 e
Karl Marx nos colocam que a economia27 passa a determinar os valores culturais da sociedade (ou
os são, propriamente). Os meios de produção e a indústria constituem o novo ponto determinador da
cultura. A cultura começa, com isso, a interligar-se ao capitalismo. Os modos de produção se
refletem nos processos de estruturação e desenvolvimento da cultura. A economia é entendida como
a base social, a base desenvolvedora da cultura. O capital e o trabalho, neste sentido, são as bases
22 Nicolau Copérnico (1473 - 1543) foi astrônomo e matemático. Desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. Foi também cónego da Igreja Católica, governador e administrador, jurista, astrólogo e médico. Sua teoria do Heliocentrismo, que colocou o Sol como o centro do Sistema Solar, contrariando a então vigente teoria geocêntrica (que considerava a Terra), é uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia moderna. A teoria copernicana permitiu também a emancipação da cosmologia, em relação à teologia.23 Charles Robert Darwin (1809 - 1882) foi naturalista. Alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual. Esta teoria se desenvolveu no que é agora considerado o paradigma central para explicação de diversos fenômenos na Biologia.24 Sigmund Freud (1856 - 1939) foi médico neurologista, fundador da psicanálise. Interessou-se inicialmente pela histeria e, tendo como método a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse quadro. Mais tarde, a partir da descoberta do inconsciente e das pulsões, entre outros, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da psicanálise. Freud, além de ter sido um grande cientista, é considerado escritor (Prêmio Goethe, 1930).25 Segundo Karl Marx, as Revoluções Burguesas seriam os movimentos ocorridos na época da Revolução Industrial, do declínio do feudalismo e do início da adoção da teoria econômica do capitalismo.26 Adam Smith (1723 - 1790) foi economista e filósofo. É o pai da economia moderna, considerado o mais importante teórico do liberalismo econômico. É autor de "Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações", a sua obra mais conhecida. Procurou demonstrar que a riqueza das nações resultava da atuação de indivíduos que, movidos apenas pelo seu próprio interesse (self-interest), promoviam o crescimento econômico e a inovação tecnológica.27 Economia é a ciência social que estuda produção, distribuição e consumo de bens e serviços.
19
constituintes do homem. Diz Marx, neste sentido, que “ao produzirem seus meios de existência, os
homens produzem indiretamente sua própria vida material. [...] O que os indivíduos são depende,
portanto, das condições materiais da sua produção” (1998, p.11)
Entre este período e o próximo, a cultura de massa, reproduzida, assim como os produtos
industriais, em série, toma lugar socialmente. Santaella (2003) lembra que, até meados do século
XIX, dois tipos de cultura se delineavam no Ocidente: de um lado, a cultura erudita – que pertencia
à elite – e, de outro, a cultura popular, produzida pelas classes dominadas. A explosão dos meios de
reprodução técnico-industriais (jornal, cinema, foto) provocou o surgimento de uma cultura de
massa que, mais tarde, com o rádio e a televisão (a onipresença da eletrônica de difusão) produziu
um impacto até hoje atordoante da divisão concebida até então28.
A partir do século XX, por conseguinte, a cultura é determinada pelos meios de
comunicação. Surge a cultura midiática, a cultura da Era Digital, com valores voláteis, inconstantes
e mutáveis. O virtual é o novo configurador. Tem-se, neste momento, uma cybercultura29, uma
cultura do pós-humano30, fusão entre homem e máquina. As pessoas não conseguem mais
desvincular Imagem e Discurso. A cultura vigente, na contemporaneidade, é a cultura televisiva, a
“cultura da imagem”31, a cultura do espetáculo, produto da indústria cultural, termo empregado por
Theodor Adorno e Max Horkheimer, quando da publicação de Dialética do esclarecimento, em
1947.
Entende-se por indústria cultural um conjunto de fatores que massificam e generalizam o
modus-vivendi de uma determinada população. A partir do momento em que determinada cultura
passa a ser uma mercadoria, reproduzida de forma sistemática e organizada, esta se torna produto da
‘indústria cultural’32.
O homem tornou-se vítima da indústria cultural, do progresso da dominação técnica. Esse
progresso propiciou à indústria cultural um poder de contenção do desenvolvimento da consciência
das massas. A mídia, com isso, passa a ser a ditadora da vida contemporânea: usamos, comemos, 28“Ao absorver e digerir, dentro de si, essas duas formas de cultura, a cultura de massas tende a dissolver a polaridade entre o popular e o erudito, anulando suas fronteiras. Disso resultam cruzamentos culturais em que o tradicional e o moderno, o artesanal e o industrial mesclam-se em tecidos híbridos e voláteis próprios das culturas urbanas” (SANTAELLA, 2003, p.52)29 Cibercultura tem vários sentidos. Mas se pode entender por Cibercultura a forma sociocultural que advém de uma relação de trocas entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônicas surgidas na década de 70, graças à convergência das telecomunicações com a informática. A cibercultura é um termo utilizado para definir os agenciamentos sociais das comunidades no espaço eletrônico virtual.30 Pós-humano é o termo utilizado, por teóricos, para denominar o homem contemporâneo: mescla de homem e máquina, homem dependente das máquinas, vivência determinada pelas máquinas.31 Somos constituídos pelo Olhar do Outro, pela imagem (nossa) refletida no olhar deste. É através do Olhar, contudo, que transferimos para a mídia o lugar de Outro. Procuramos, especialmente na TV, na imagem especular, este Outro. Voltaremos e este ponto durante o estudo, especificamente no Capítulo 5.32 “não só o cinema, como também o rádio, não devem ser tomados como arte. O fato de não serem mais que negócios basta-lhes como ideologia. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais.” (ADORNO, 2000, p.07).
20
vestimos, bebemos, assistimos, lemos o que ela determina. Emmanuel Lévinas33 previu, em 1934,
no ensaio Algunas reflexiones sobre la filosofía del hitlerismo (2002), que um poder de contenção
das massas surgiria no século XX. O que ele não sabia é que meio século após a publicação deste,
um tubo de imagens “governaria” o pensamento e as ações dos homens, tornando-os “iguais”:
La idea que se propaga se aparta esencialmente de su ponto de partida. Se transforma, pese al acento único que le comunica su creador, en patrimonio común. Es fundamentalmente anonima. Aquel que la acepta se vuelve su amo tanto como aquel que la propone. La propagación de una idea crea de este modo una comunidad de “amos”: es um proceso de igualación. Convertir o persuadir es crearse pares. La universalidad de un orden en la sociedad occidental refleja siempre esta universalidad de la verdad. (LEVINAS, 2002, p.20).
2.5 Cultura das mídias, a indústria cultural
Theodor Adorno e Max Horkheimer, pensadores do século XX, pertencentes à chamada
Escola de Frankfurt, empregaram pela primeira vez o termo “indústria cultural”, quando da
publicação da Dialética do Iluminismo, em 1947. Os frankfurtianos trataram de um leque de
assuntos que compreendia desde os processos civilizadores modernos e o destino do ser humano na
era da técnica até a política, a arte, a música, a literatura e a vida cotidiana. De forma original,
vieram a descobrir a crescente importância dos fenômenos de mídia e da cultura de mercado na
formação da vida contemporânea34.
Adorno, em uma série de conferências radiofônicas, pronunciadas em 1962, explicou que a
expressão indústria cultural visava substituir cultura de massa. Isso porque acreditava que esta
segunda satisfazia os interesses dos meios de comunicação, uma vez que dava a entender que se
tratava de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas.
A indústria cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural como o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. [...] A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema. Aliada à ideologia capitalista [...] a indústria cultural contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma espécie de antiiluminismo (ADORNO, 2000, p.08)
33 Emmanuel Lévinas (1906 - 1995) foi filósofo. Influenciado pela fenomenologia de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim como pelas obras de Martin Heidegger e Franz Rosenzweig, o pensamento de Lévinas parte da idéia de que a Ética, e não a Ontologia, é a Filosofia primeira. É no face-a-face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à idéia o Infinito.34 “os pensadores do grupo foram os primeiros a ver que, em nosso século, a família e a escola, depois da religião, estão perdendo sua influência socializadora para as empresas de comunicação. O capitalismo rompeu os limites da economia e penetrou no campo da formação da consciência, convertendo os bens materiais em mercadoria”. (RÜDIGER, 2001, p.139).
21
Segundo Adorno, a indústria cultural não apenas adapta seus produtos aos consumos das
massas, mas, principalmente, determina o próprio consumo. A indústria cultural nada mais é que a
administradora do mundo social capitalista. Segundo Adorno, prometer e não cumprir, ou seja,
oferecer e privar, são um único e mesmo ato da indústria cultural.
A televisão, enquanto indústria cultural, se torna “Senhor” e nós, consumidores, nos
tornamos “Escravo”. Faz-se, assim, a Dialética do Senhor e do Escravo35, de Hegel. Sentimos
necessidade de usar o que o outro está usando, ler o que o outro está lendo, assistir ao que o outro
está assistindo. Às vezes, vamos mais longe e tentamos sentir o que o outro está sentindo (para nos
parecermos com os personagens das novelas – nossos ícones, nossos modelos, nossos padrões de
beleza, de inteligência e de ser como um todo). Hegel, em Fenomenologia do Espírito (1992),
coloca que:
Essa consciência [estóica] é por isso negativa no que diz respeito à relação de dominação e escravidão. Seu agir não é o do senhor que tem sua verdade no escravo, nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do senhor e em seu servir; mas seu agir é livre, no trono como nas cadeias e em toda [forma de] dependência de seu ser aí singular. (HEGEL, 1992, p.136)
Jayme Paviani, em Estética mínima: notas sobre arte e literatura (2003), explica que, a
partir da Revolução Industrial, no século XVIII, as transformações econômicas e a economia, em si,
baseada nos bens de consumo permitem-nos falar na transposição da cultura para os princípios
vigentes na produção industrial, ou seja, em uma industrialização da cultura36.
Muniz Sodré, em Televisão e Psicanálise (2000), destaca que a televisão é um momento
típico dessa nova ordem social e que existe uma solidariedade lógico-histórica entre ela e a
economia monopolista de mercado. Complementa dizendo que a essência de seu poder reside em
seu estatuto de significação, que implica o controle do processo de significação cultural por um
espírito empresarial. O teórico, ainda, lembra que a imagem opera mutações na estrutura psíquica e
nos modos de percepção do indivíduo contemporâneo. Segundo o autor, a televisão não é um
simples meio de informação que, ao lado de outros, veicularia conteúdos específicos; trata-se, na 35 Dialética do Senhor e do Escravo é o mecanismo social analisado por Hegel e depois por Lacan para designar momentos, história, em que o senhor depende do escravo para ser senhor, e o escravo depende do senhor para ser escravo. Há, entre ambos, uma relação de reciprocidade, dependência. É que observamos na atualidade, quando pensamos em mídia e sociedade. Isso fica mais claro quando partimos do pressuposto que a mídia não é algo isolado, amorfo, mas uma instituição também comandada por pessoas, Senhor.36 “A indústria cultural [...] infiltra-se, cada vez mais, em todos os setores de produção, assume cada vez mais, as funções de comando e o controle do trabalho e da criatividade humana. Deste modo, a arte, como outros fenômenos culturais e sociais, é fortemente atingida em sua estrutura e função. Daí, a crise da arte e a busca de novas saídas para não sucumbir, de um lado, ao modelo saudosista e conservador, e, de outro lado, aos interesses da ideologia e da cultura de massa”. (PAVIANI, 2003, p.14)
22
verdade, de uma estrutura, uma forma de saturação informacional do meio ambiente na sociedade
pós-moderna, gerida, cada vez mais, pela tecnologia eletrônica.
A televisão, enquanto representante da mídia/da indústria cultural na segunda metade do
século XX, da mesma maneira exercida pela Igreja Católica na Idade Média, recalca o desejo do
indivíduo, sua diferença, à medida que iguala todos os telespectadores, tornando-os robôs guiados
pelo consumo e pelo materialismo, a partir do capitalismo. Ela insere e instaura, na estrutura
psíquica do sujeito, um não-objeto, causa de um pseudo-desejo. O consumidor, desta maneira, perde
a identidade e a subjetividade, pois isola seu diferencial: o desejo constituinte e estruturador.
Adorno coloca que a indústria cultural reprime a imaginação, fazendo as pessoas terem a satisfação
de anular sua capacidade criativa que envolve o prazer pelo esforço e pela atividade mental.
Verlaine Freitas, em Adorno & a arte contemporânea (2003), afirma que os heróis da
indústria cultural são pensados para refletir algo que as pessoas já percebem em si mesmas. Isso,
segundo o filósofo, explica o sucesso dos reality shows, programas de televisão que mostram ‘a
vida como ela é’, com suas hipocrisias e falsidades, seus ‘jogos’, etc.37
Gilles Lipovetsky, em Metamorfoses da cultura liberal (2004), procura ser um ‘advogado’
da mídia. Coloca que as polêmicas são conhecidas: acusada, principalmente, de imbecilizar e
infantilizar o público. O autor defende que, através dos noticiários e dos debates, a mídia
“mecanicamente” abre os horizontes de cada um, dando a conhecer diferentes pontos de vista e
oferecendo diversos esclarecimentos. Segundo ele, as questões relativas à vida política, aos
problemas sociais, à cultura e à saúde chegam a todos. Afirma que a mídia não conseguiu dissolver
os desejos e as exuberâncias das festas, os momentos de afetividade partilhada, as diversas formas
de agregação social, alegres ou tristes.
A mídia, de fato, é uma das forças subentendidas na formidável dinâmica de individualização dos modos de vida e dos comportamentos da nossa época. A imprensa, o cinema, a publicidade e a televisão disseminaram no corpo social as normas da felicidade e do consumo privados, da liberdade individual, do lazer e das viagens e do prazer erótico: a realização íntima e a satisfação individual tornaram-se ideais de massa exaustivamente valorizados. (LIPOVETSKY, 2004, p.70)
Lipovetsky é radical ao afirmar que restringir a culpa à mídia não garante nenhum progresso
real. Para avançar numa via de maior autonomia e responsabilidade dos indivíduos, segundo o
autor, precisa-se menos de disposições éticas e midiáticas que de inovação, de imaginação, de
diversificação e de experimentação aplicadas aos processos de ensino e aprendizagem.37 Pedro Gilberto Gomes, em Comunicação Social: Filosofia, Ética e Política (2001), disserta sobre o indivíduo na era da indústria cultural: “As potencialidades humanas são neutralizadas pela racionalidade tecnológica. [...] O discurso do consumo, largamente reiterado pelos meios de massa, consolida a dessublimação repressiva. As capacidades criativas e cognoscitivas são neutralizadas. [...] A sociedade industrial converte o supérfluo em necessidades e as necessidades humanas em mercadorias supérfluas”. (GOMES, 2001, p.46)
23
Atualmente, a investigação científica sobre o jornalismo e as notícias constitui um dos
campos de investigação que vem apresentando um grande crescimento na communication research.
No campo das pesquisas em comunicação, os estudos sobre a questão dos efeitos dos mass media e
a forma como eles constróem a imagem da realidade social ocupam um papel relevante. Nessas
pesquisas, destacam-se os estudos do agenda-setting38.
Theodor Adorno detecta, ainda, um mal-estar da civilização, da cultura. E, juntamente com
Nietzsche, percebe, na cultura grega, uma ambivalência necessária ao humano: violência39 e beleza.
Os mitos, segundo o filósofo, constituem uma esfera de representações e, portanto, desconhecem a
distinção entre palavra e objeto. Para Adorno, o mito é dominação burguesa, em torno do poder/ter.
É símbolo da exploração, da dominação e da violência velada. Isso porque não conseguimos pensar
a sociedade sem violência, sem a Dialética do Senhor e do Escravo.
Por fim, cabe ressaltar ainda que os mitos teorizam a cultura antiga, à medida que esta
representa a passagem do Caos (falta de referências e coordenadas) à Ordem. Além disso, a partir
da Modernidade, ocorre uma clivagem nos discursos teóricos e na arte, que começa a perder o seu
terreno e pára de refletir sobre a cultura. Assim, a arte é vista como uma manifestação cultural, uma
representação. Na atualidade, sua concepção muda novamente: a arte é representante de uma crítica
à cultura. Desta maneira, podemos afirmar que arte é conceito mutável, em constante transformação
e que a cultura, mais complexa que a arte, precisa urgentemente ser repensada pela filosofia e pela
psicanálise.
38 O agenda-setting, ou hipótese de agendamento, sustenta que as pessoas agendam seus assuntos e suas conversas em função do que os meio de comunicação veiculam. Os media, pela disposição de suas notícias, determinam os temas sobre os quais o público falará ou discutirá durante o dia. Mauro Wolf, em Teorias da Comunicação (2002), afirma que: “embora apresente o agenda-setting como um conjunto integrado de pressupostos e estratégias de pesquisa, na realidade, a homogeneidade existe mais a nível de enunciação geral da hipótese do que no conjunto de confrontações e de verificações empíricas, e isso devido, também, a uma certa falta de homogeneidade metodológica” (WOLF, 2002, p.145). Wolf acrescenta, ainda, que, atualmente, a hipótese do agenda-setting é mais um núcleo de temas e conhecimentos parciais, suscetível de ser, posteriormente, organizado e integrado numa teoria geral sobre a mediação simbólica e sobre os efeitos de realidade exercidos pelos mass media, do que um modelo de pesquisa definido e estável. 39 Selvageria não negativa. Violência, neste sentido, como propulsora de vida, motor vital, para romper com a apatia.
24
Metamorfosear-se: quebra de paradigmas ou mal-estar contemporâneo?
Relógio mole no momento de sua primeira explosão1954, Salvador Dalí
25
3 METAMORFOSEAR-SE: QUEBRA DE PARADIGMAS OU MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO?
A verdade tem estrutura de ficção.
Jacques Lacan
A Revolução Industrial40 e o progresso da técnica propiciaram à sociedade um grande
avanço na tecnologia e nos processos maquinários tão importantes para a reprodução em série e o
advento do capitalismo. O homem, com isso, foi colocado, por si próprio, em segundo plano.
Elevou seu potencial industrial, progredindo em escala geométrica na área técnica, avançando em
campos jamais imaginados por seus ascendentes.
As grandes corporações, visando o necessário lucro, objetivaram o ser humano. A partir da
visão empresarial, ele é enquadrado em uma nova categoria: a de subordinado-trabalhador-operário.
Com o surgimento das máquinas, essa nova categoria é obrigada a se acoplar aos botões, às
alavancas, às engrenagens, tornando o homem apenas um executor de tarefas.
O empresário, para gerir com eficácia sua empresa, sua máquina produtiva, cria formas com
vistas a controlar seus subalternos. Michel Foucault41, em suas obras Vigiar e Punir (1999) e
Microfísica do Poder (1981), analisa essa nova forma de poder, representada através de uma
estrutura social denominada por ele de “sociedade disciplinar”. Essa sociedade, caracterizada por
métodos de vigilância, controle e correção, tinha como dispositivo estratégico a utilização de
micropoderes, segmentos de um poder absoluto de um tirano ou um ditador (como no hitlerismo).
Os micropoderes, por estarem instalados em diferentes instâncias da sociedade, não são percebidos,
estão mascarados e disfarçados de cidadãos comuns. O objeto dos micropoderes, ao contrário do
que se pensa, não é o fim de algo, mas seu desenvolvimento, sua criação. Isso porque os “meios”
são mais fáceis de serem dominados, já que os fins já estão conclusos, já estão estruturados: são
mais fortes, mais concretos.
A “sociedade disciplinar” e seus micropoderes provocam no homem do final do século XIX
e século XX, um não-lugar, segundo Marc Auge (1994). No não-lugar, um pseudo-lugar, as
pessoas são apenas clientes, sem diferença, identificadas apenas por dados, diagnósticos, fichas
cadastrais; a singularidade não é observada
40 Revolução Industrial foi o movimento que significou o início do processo de acumulação rápida de bens de capital, com conseqüente aumento da mecanização e advento do capitalismo como sistema econômico vigente. Antes da Revolução Industrial, a atividade de produzir era realizada pelos artesãos, que, na maioria das vezes, eram proprietários da matéria-prima e comercializavam o produto final de seu trabalho manual. Depois da Revolução Industrial, os trabalhadores deixam de ser os “donos” do processo. Eles passam a trabalhar para um patrão como operários ou empregados. 41 Michel Foucault (1926-1984) foi filósofo e professor de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France de 1970 a 1984. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores um pós-moderno. Suas obras, em geral, têm teor estruturalista.
26
Michel Foucault, filósofo estruturalista42, à semelhança do psicanalista Jacques Lacan43, do
semiólogo Roland Barthes44, do antropólogo Claude Lévi-Strauss45 e dos filósofos Gilles Deleuze46
e Jean-François Lyotard47, faz uma crítica da tradição moderna: questiona seus pressupostos
epistemológicos e problematiza a fundamentação do conhecimento, da ética e da política. Conforme
ele próprio afirma, as influências que o marcaram inicialmente foram Freud, Marx e Nietzsche, os
três grandes críticos: do indivíduo, da sociedade e da moral, respectivamente.
A virada entre os séculos XIX e XX é marcada por grandes rupturas paradigmáticas. Em
especial, pelo surgimento da psicanálise, com Sigmund Freud, e pela grande efervescência cultural,
com a criação da fenomenologia48 (a partir do filósofo Edmund Husserl49) e do existencialismo50 (a
partir do pensador Jean-Paul Sartre51). Não menos importante que a descoberta do inconsciente e as
novas linhas filosóficas, encontramos a arte moderna52 (especialmente de Picasso, Salvador Dali, 42 Estruturalismo é uma das correntes de pensamento das ciências humanas, inspirado no modelo lingüístico de Ferdinand de Saussure e que apreende a realidade social a partir de um conjunto de relações formalizadas. Este conjunto forma a estrutura. É um dos movimentos mais extensamente utilizados para o estudo da cultura e da sociedade a partir da segunda metade do século XX. O estruturalismo procura explorar as inter-relações (as estruturas) que produzem um significado dentro de uma determinada cultura. 43 Jacques Lacan (1901-1981) foi psiquiatra e psicanalista. Revolucionou a prática analítica, a partir de uma releitura de Freud. Sua teoria teve influência, principalmente, dos movimentos estruturalista e surrealista. A partir de sua abordagem da obra freudiana, introduziu diversas categorias conceituais, como a tripartição estrutural Real-Simbólico-Imaginário. Sua obra perpassa a psicanálise, à medida que percorre as teorias da lingüística, da antropologia, da filosofia, da arte e da topologia matemática. 44 Roland Barthes (1915-1980) foi semiólogo, filósofo, crítico literário, escritor e sociólogo. Fez parte da escola estruturalista e foi crítico de conceitos teóricos complexos que circulavam nos meandros educacionais franceses dos anos 50. Usou a análise semiótica em revistas e propagandas, destacando seu conteúdo político. Dividia o processo de significação em denotativo e conotativo. O primeiro tratava da percepção simples, superficial; o segundo continha os sistemas de códigos que nos são transmitidos e são adotados como padrões. Segundo ele, esses conjuntos ideológicos eram, às vezes, absorvidos despercebidamente, o que tornava viável a persuasão dos veículos de comunicação. 45 Claude Lévi-Strauss (1908-) é antropólogo e filósofo. Considerado o pai da Antropologia Estruturalista, em meados dos anos 50, é um dos grandes intelectuais do século XX. No Brasil, lecionou de 1934 a 1938, período em que conduziu seu primeiro trabalho etnográfico de campo, realizado em Mato Grosso do Sul e na Floresta Amazônica. Esta experiência consolidou sua identidade como antropólogo. Em sua obra As estruturas elementares de parentesco, Lévi-Strauss levanta a questão do incesto como passagem do estado pré-cultural (ou de natureza) para o estado cultural do homem. 46 Gilles Deleuze (1925-1995) foi filósofo. Em parceria com o psicanalista Félix Guattari, escreveu inúmeras obras. Sua filosofia vai de encontro à psicanálise, que aos seus olhos reduz o desejo ao Complexo de Édipo. Parte de sua reflexão é destinada à esquizofrenia, “a queda de um processo molecular num buraco negro”, segundo ele. Para Deleuze, “a filosofia é a arte de formar, inventar, fabricar conceitos”, coisa que sempre fez.47 Jean-Françoise Lyotard (1924-1998) foi filósofo. É autor da frase “Não podemos mais recorrer à grande narrativa – não podemos nos apoiar na dialética do espírito nem mesmo na emancipação da humanidade para validar o discurso científico pós-moderno”. Foi um dos mais importantes pensadores na discussão sobre uma vivência pós-moderna. 48 Fenomenologia é o movimento filosófico do século XX que procura descrever, compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção. Propõe a extinção da separação entre “sujeito” e “objeto”, opondo-se ao pensamento positivista do século XIX. 49 Edmund Husserl (1859-1938) foi filósofo. Considerado o pai da fenomenologia, acreditava que o conhecimento das essências seria possível apenas se “colocarmos entre parênteses” todos os pressupostos relativos à existência de um mundo externo.50 Existencialismo é a corrente filosófica que destaca a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade. Considera cada homem um ser único, mestre de seus atos e seu destino. Afirma o primado da existência sobre a essência. 51 Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi filósofo. É dele a frase “A existência prece da essência”. Com Sartre, a existência toma lugar na discussão filosófica, partindo de questões cotidianas, caminhando em direção à universalidade. 52 Arte moderna é o termo genérico utilizado para designar a maior parte da produção artística do fim do século XIX ate meados dos anos 70. Refere-se a uma nova concepção e abordagem da arte, que não tinha mais a preocupação de retratar literalmente um objeto ou um assunto. São idéias novas sobre a natureza, os materiais e a função da arte, que
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Paul Klee e Kandinsky) e a literatura contemporânea (de James Joyce, Fiódor Dostoievski, Albert
Camus e Franz Kakfa).
Todos, cada um com sua singularidade, sua diferença, sua arte, pensam o humano em crise.
Procuram, através de suas criações, seus sintomas, manifestar suas idéias, suas ilusões, suas
esperanças. Em tempos e espaços diferentes, interpretam e analisam a sociedade, através do
indivíduo dominado e escravizado (lembremos da Dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel!).
Hoje, pensamos, ainda, na dominação do homem pela cultura da mídia. Uma cultura que
dita regras e impõe um modus-vivendi à sociedade de acordo com os interesses das grandes
corporações de entretenimento, a partir da visão mercantilista e capitalista. Vivenciamos, também,
grandes revoluções53: revolução informática (e a inteligência artificial) e revolução biológica (com
os debates bioéticos). Revolução mais drástica, encontramos nas neurociências, com as
conseqüências éticas das descobertas proporcionadas com o mapeamento cerebral.
Pensemos: o homem desde a segunda metade do século XIX está em crise! Como sair dessa
emboscada? Elevar a subjetividade a primeiro plano, dando espaço às ciências humanas e
colocando a interdisciplinaridade54 como pauta do dia nas academias e na sociedade pode ser um
bom caminho.
Uma metáfora da crise do homem moderno pode ser encontrada na obra A Metamorfose, de
Franz Kafka, publicada, ironicamente, no início do século XX. No final de 1912, Franz Kafka
escreve aquela que se tornaria uma das mais famosas obras mundiais: A Metamorfose55 (2002).
Indicado a todos que tenham interesse por literatura, especialmente àqueles que apreciam o gênero
conto, o enredo de A Metamorfose pode servir de análise do ser humano para públicos mais seletos,
como os psicanalistas e os filósofos existencialistas. Kafka é um símbolo da literatura
contemporânea, um dos escritores mais comentados e estudados do século XX. Isso porque suas
obras, em especial A Metamorfose, refletem a vida cotidiana, mesmo quando metaforizam e falam caminham rumo à abstração. 53 A atualidade é marcada por grandes avanços e, conseqüentemente, por grandes mudanças, sejam elas a favor ou contra o Ser – entende-se por Ser todo e qualquer ser vivo. Desta forma, novos saberes vão dando início a novas reflexões. Uma delas é a neuro-ética, que procura analisar o que os avanços nas neurociências podem ocasionar e quais suas conseqüências para a humanidade. As descobertas realizadas a partir do mapeamento cerebral permitem que, através de exames como o PET, o SPECT e a Ressonância Magnética Funcional (RMf), possamos visualizar quais áreas do cérebro são ativadas a partir de um estímulo ou ação. Cabe ressaltar também que as neurociências proporcionaram e proporcionam melhorias no tratamento de distúrbios psíquicos, tais como o TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo) e as epilepsias. Contudo, o tratamento visa a eliminação de sintomas, o que, por vezes, é questionado por outras áreas da psicologia, como a psicanálise, que têm o objetivo de tratar as causas da patologia. Alguns estudiosos afirmam que as neurociências acabam por “medicinizar” a psicologia. Outros, entretanto, relacionam saberes, objetivando um avanço de teorias e técnicos, como o caso de Mark Solms e Karen Kaplan-Solms, criadores da neuro-psicanálise, articulação entre a ciência criada por Sigmund Freud e as ciências que se dedicam a estudar o funcionamento do cérebro. 54 Interdisciplinaridade é, segundo autores, um pressuposto epistemológico e uma condição pedagógica. É um processo real, um modo de sistematizar saberes, de formar, de integrar e de transformar as disciplinas.55 A Metamorfose só foi publicado em 1915, ainda que Kafka tenha proibido (este foi seu último desejo em vida) a publicação de seus escritos. A obra é composta, basicamente, por quatro personagens, ainda que outros sete sejam mencionados. Os principais são Gregor Samsa (o protagonista), sua irmã (Grete Samsa, de 17 anos), sua mãe e seu pai (Sr. E Sra. Samsa, idosos). Os demais, mais periféricos, são o chefe de Gregor, o serralheiro, o médico, a empregada e os três inquilinos que aparecem no último capítulo da obra.
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em símbolos.
A Metamorfose é dividida em três capítulos não intitulados. É possível que Kafka assim a
tenha dividido para dar uma noção ao leitor de início, meio e fim. Ao mesmo tempo que dá um
sentido cronológico à obra, esta divisão parece provocar três sensações: surpresa, atenção e
reflexão, respectivamente.
A Metamorfose é uma obra que suscita, ao menos, um certo “desconforto”, seja por
perplexidade, enojamento ou reflexão. Gregor Samsa é um caixeiro-viajante, um rapaz com vida
rotineira, cujas preocupações são com o trabalho: horários de trens, alimentação ruim e irregular.
Seus relacionamentos são provisórios, nunca perduram e nunca o trazem emoção. Certa manhã,
Gregor acorda metamorfoseado em um inseto monstruoso. Pergunta-se: “O que aconteceu
comigo?”. A partir daí, o enredo se inicia: Gregor não vai trabalhar, pois mal consegue se mexer.
Seus pais começam a se preocupar e logo o chefe aparece para saber o que estava acontecendo.
Todos descobrem a metamorfose. Com isso, a família se distancia: Gregor permanece, quase que
em toda a obra, isolado em seu quarto. Sua irmã passa a alimentá-lo todos os dias, o que acontece
sem comunicação entre os dois. O enredo não se concentra, simplesmente, no relato dos
acontecimentos, mas, principalmente, nos questionamentos que Gregor vai se fazendo, já que
“dessa forma, [isolado e sem comunicação com os familiares], tinha muito tempo para refletir com
tranqüilidade sobre como deveria reorganizar sua vida” (KAFKA, 2002, p.44). O momento crucial
da obra se dá ao final, refletindo o que há de mais concreto e ao mesmo tempo mais abstrato,
singular, na vida: a morte.
A Metamorfose pode servir, simplesmente, como leitura prazerosa, o que, sem dúvida, já a
qualificaria. Mas Kafka vai além: com sua obra, pensamos em nossa existência, no nosso agir, no
nosso fazer, no nosso viver... Cabe a nós permanecermos intactos ou provocar mudanças,
quebrando paradigmas, vivendo de forma mais digna, mais original, mais singular.
3.1 Metamorfose: sintoma, patologia?
Kafka, em A Metamorfose, reflete a ironia e a visão de um homem condenado à rotina.
Rotina essa que, à semelhança da caverna de Platão ou, mais recente, da Matrix, nos aprisiona num
sistema insuportável e, ao mesmo tempo, confortável, seguro. Kafka questiona e põe “em xeque” o
simples existir. O metamorfosear-se não seria uma tentativa de fugir do já determinado? Não seria
um ascender ao “mundo inteligível”? Ou descobrir a “real realidade”?
Gregor Samsa é um sujeito pacato. Sustenta sua família e vive rotineiramente. Entra em
metamorfose como tentativa de sair desse mundo que sufoca, desse mundo apenas de trabalho,
imposto pela sociedade industrial. É um sujeito em crise existencial, à medida que está inserido em
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uma sociedade disciplinar, que adapta os indivíduos segundo seus interesses.
Sob o olhar médico, sob a lente “diagnosticadora”, poderíamos dizer que Gregor sofre de
esquizofrenia, caracterizada por um afastamento, uma fragmentação da realidade. Gregor entra em
um processo de centramento em si, no seu mundo interior, ficando entregue às próprias fantasias.
Manifesta incoerência de pensamento, de ações e afetividades. Tem delírios acentuados e mal
sistematizados.
O transformar-se em inseto poderia ser interpretado como um sintoma de sua patologia, uma
produção resultante de um conflito psíquico. Um conflito que é produto de sua angústia existencial
frente à realidade exterior. Gregor possui uma sensação de vazio, uma falta de sentido vital, não
traça objetivos.
Gregor Samsa representa o homem moderno em crise. Um homem dividido, fragmentado56
(como acontece nas ciências, a partir do positivismo lógico57, proposto no Círculo de Viena). Um
sujeito dividido entre a razão, a vontade e a emoção. Um ser que não vai em busca de seus desejos,
sem sentido, sem verdades espirituais.
Kakfa, através de Gregor, denuncia o sintoma social propiciado a partir do Panoptismo58.
Gregor simboliza o homem do início do século XX, repleto de dúvidas existenciais, não autêntico
em suas ações. Um homem que veste máscaras, que se torna uma persona, encobrindo o verdadeiro
indivíduo que há por trás. Gregor não tem projetos existenciais, não pensa em seu futuro, apenas no
de sua família. Não vive plenamente, não é considerado um ser, com potencialidades para se
superar.
Com a metamorfose, parece dar o salto transcendente às avessas. No lugar de um mudar,
converter, superar obstáculos, Gregor se vê doente. A metamorfose representa uma angústia diante
da temporalidade, do morrer, diante da culpa por não ter realizado suas potencialidades. Há,
inconscientemente, um corte existencial. Gregor tenta, através do sintoma, fazer com que os outros
o vejam como sujeito desejante; sujeito com personalidade.
A metamorfose é a única saída de Gregor perante a realidade. Kafka denuncia, através de
sua obra, a hipocrisia da sociedade e o parasitismo da família burguesa do início do século, à
56 Fragmentado, pois não possui referências, base estrutural. O homem da pós-modernidade é caracterizado pela especialização focada em campos de estudo micro; caracterizado por um pensamento fragmentado atento às partes e não ao todo. 57 Positivismo é a corrente filosófica iniciada por Auguste Comte. Tem por base teórica a observação, ou seja, toda especulação, toda metafísica e toda teologia devem ser descartadas. Comte classificou as ciências que já haviam, segundo ele, alcançado a positividade: a matemática, a astronomia, a física, a química, a biologia e a sociologia. Mais tarde, ele acrescenta a Moral. 58 Panoptismo é a metáfora, a representação da forma dominante de poder na sociedade pós-moderna. Panopticon é um modelo arquitetônico: um edifício de forma circular, no meio do qual havia um pátio com uma torre no meio. Cada andar deste prédio seria formado por diferentes celas, que tinham janelas para o interior e para o exterior, permitindo que a luz entrasse. O maior destaque dessa metáfora deve ser dado ao seguinte aspecto: o único vigia, que permanecia na torre central, podia controlar todas as celas (e ver o que ali acontecia), e nenhuma das celas podia ver quem estava na torre. Isso porque a luz incidia sob um ângulo que impossibilitava as pessoas que ali estavam/residiam de enxergar e visualizar o centro do pátio.
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semelhança do filme Menina de Ouro, de Clint Eastwood. Isso fica claro ao final da obra. Quando
Gregor morre, seu único destino diante da família “sanguessuga”, seus pais e sua irmã mudam
drasticamente: voltam ao trabalho e passam a se responsabilizar pela vida.
3.2 Sociedade pós-moderna: reflexões
É consenso que presenciamos um momento conturbado na atualidade. A História mundial
vivencia um novo período; um período singular, caracterizado por elementos novos, propiciados a
partir da Revolução Industrial e do período pós-guerras. Família, Estado, relacionamento, religião e
educação, antes conceitos impermeáveis e rígidos, tornaram-se conceitos flexíveis e extremamente
maleáveis, instáveis, pois só permanecem ‘vivos’ se contextualizados. Consumismo e
individualismo são os parâmetros, os paradigmas da pós-modernidade59, expressão que alguns
teóricos utilizam para denominar a contemporaneidade.
A exposição “É Hoje na arte contemporânea brasileira” (Santander Cultural, Porto Alegre-
RS, março de 2006), coleção de Gilberto Chateaubriand, nos fez pensar e pôs “em xeque” as novas
concepções do mundo contemporâneo: coabitar, associar-se, produzir e consumir. As obras
questionam aspectos como ONGs, ética da diferença, formas de representação (política e de
comportamento), meio ambiente, violência, mídia, novas tecnologias, especialização x
multidisciplinaridade.
Gilles Deleuze, filósofo francês do século XX, afirmava que filosofia e arte têm igual valor à
ciência, à medida que ambas são “ciências da criação”60. Penso que filosofia e arte (pensemos em
Marcel Duchamp61 – dadaísmo – e Andy Warhol62 – pop art) são “ciências da reflexão”, pois
questionam o inquestionável, investigam e discutem acerca de problemas ditos supérfluos e “sem
importância”. A reflexão é a inimiga da pós-modernidade. Somos guiados pela máquina da 59 Pós-modernidade é a condição sócio-cultural e estética do capitalismo contemporâneo, também chamado de pós-industrial. Teóricos e acadêmicos têm diferentes concepções do termo. É o conjunto de valores que norteiam a produção cultural desde a década de 1980. Entre esses valores, poderíamos citar a multiplicidade, a fragmentação, a desreferencialização e a entropia – que, com a aceitação de todos os estilos e estéticas, pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores. Privilegia serviços e informação sobre a produção material, o que dá importância e função de difusores de valores e idéias do novo sistema à Comunicação e a Indústria Cultural.60 “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. [...] Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. [...] Para falar a verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito” (DELEUZE; GUATARI, 1992, p.13). E o comentário de Bento Prado Jr. à obra: “Filosofia, ciência e arte são planos irredutíveis, mas podem ser explorados segundo uma mesma estratégia; às três instâncias da instauração filosófica, corresponderão instâncias simétricas da instauração artística e científica: ‘plano de imanência da filosofia, plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do conceito, forma da sensação, forma de conhecimento; conceitos e personagens conceituais, sensações e figuras estéticas, funções e observações parciais.’” (DELEUZE; GUATTARI, 1992). 61 Marcel Duchamp (1887-1968) foi pintor e escultor. É um dos precursores da arte conceitual e introduziu a idéia de ready made, transporte de um elemento da vida cotidiana, a priori não reconhecido como artístico, para o campo das artes. 62 Andy Warhol (1928-1987) foi pintor e cineasta. Foi um dos maiores precursores da pop art, movimento que usava figuras e ícones populares como tema de suas obras artísticas. Usa elementos da cultura de massa para resgatar a função da arte como participante do dia-a-dia, tentando diminuir as lacunas entre as chamadas baixa e alta cultura.
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“indústria cultural”, expressão criada por Theodor Adorno e Max Horkheimer, pensadores da
Escola de Frankfurt63, para substituir “cultura de massa”. A indústria cultural iguala os
consumidores de seus produtos e programa nossos desejos, nosso tempo ocioso, nossos
pensamentos e nossas ações. Abole a singularidade, à medida que se volta ao capital, ditando o
modus-vivendi da sociedade.
Antônio Sérgio Mendonça, estudioso da psicanálise lacaniana, em A insustentável leveza da
cultura (1994), define o momento atual:
[...] para a referida Indústria Cultural, a cultura, propriamente dita, subordina-se ao entretenimento para que possa sobreviver em sua estratégia de divulgação mercadológica, mesmo que para tal tenha que se fundir à animação própria do espetáculo: daí o termo “animação cultural”. O que não deve ser confundido com a função da cultura no Humanismo Renascentista, onde a Razão era o próprio espetáculo ou, dito de outra forma (tomando-se o teatro “sheakespereano” como marco), o espetáculo transformava-se em cultura e não a cultura em espetáculo. Vale dizer que Hamlet era culturalmente maior do que seus intérpretes e/ou porta-vozes críticos, enquanto na contemporânea sociedade do espetáculo o porta-voz faz-se passar pela autoria (maestria). (MENDONÇA, 1994, p.67).
A indústria cultural é análoga à caverna do mito platônico. Platão, em A República, diz que
não presenciamos a realidade. O filósofo nos alerta, afirmando que vivenciamos apenas uma
“sombra”, uma “reflexão” do real. Para conseguirmos “sair da caverna”, precisamos utilizar a
filosofia, a reflexão, o pensar, para atingir as idéias de Justiça, de Amor, de Belo, de Liberdade e,
por fim, de Bem, a última a ser apreendida. Se falamos em idéias, em valores, em virtudes, como
esquecer da Ética? Usa-se, com freqüência, o vocábulo em assembléias, reuniões e conselhos,
entretanto parece ser o valor que mais perdeu seu significado na atualidade. O jurar, a palavra falada
não servem mais como “aliança de garantia”. Não fazemos nada sem o uso da assinatura, do
contrato escrito.
Fala-se em fraternidade, em solidariedade, em proteção ao meio ambiente, entretanto o
egocentrismo fala mais alto. Será que ainda buscamos, como Aristóteles afirmava, em Ética a
Nicômacos, eudaimonia, a felicidade, nosso fim último? Ou será que estamos mais interessados em
uma satisfação pessoal rápida e passageira, a todo custo?
Se falamos em pós-modernidade, assim como em outros períodos da história, não podemos
nos isentar de mencionar sua contextualização espaço-temporal e suas origens. Se a pós-
modernidade é caracterizada por um mal-estar, já exposto por Freud, quando da publicação de Mal-
estar da civilização, no início do século, este (o mal-estar) não é fruto de um nada. Um mal-estar
advém de um ponto de partida, através de um ponto de ruptura estrutural.
63 Escola de Frankfurt é o nome dado ao grupo de filósofos e cientistas sociais de tendências marxistas (dentre eles, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Jürgen Habermas) que se encontraram no início do século XX. Associa-se diretamente à chamada Teoria Crítica da sociedade. Deve-se à Escola de Frankfurt a criação de conceitos como Indústria Cultural e Cultura de Massa.
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Desta forma, onde estariam os ideais de “sociedade”, sempre presentes na História Mundial?
Hoje, pensamos em “sociedade ideal”, ou o idealismo não estagnara após os grandes entraves das
duas grandes guerras e outros acontecimentos tão catastróficos do século XX?
Karl Marx64, pensador do final do século XIX, através das teorias do materialismo dialético
e do materialismo histórico, elabora uma nova teoria para explicar a sociedade, do ponto de vista
político-filosófico. Segundo Marx, é indispensável compreender a realidade histórica em suas
contradições, para tentar superá-las dialeticamente. Na teoria marxista, o materialismo histórico
pretende explicar a história das sociedades humanas, em todas as épocas, através dos fatos
materiais, essencialmente econômicos e técnicos. Haveria, segundo a concepção marxista, uma
permanente dialética das forças entre poderosos e fracos, opressores e oprimidos. A história da
humanidade seria constituída por uma permanente luta de classes.
A base da sociedade é a produção econômica. Sobre essa base econômica se ergue uma
estrutura, um estado e as idéias econômicas, sociais, políticas, morais, filosóficas e artísticas. Marx
queria a inversão da pirâmide social, ou seja, pôr a maioria (os proletários) no poder, que seria única
força capaz de destruir a sociedade capitalista e construir uma nova sociedade, uma sociedade
socialista.
Para Marx, os trabalhadores estariam dominados pela ideologia da classe dominante, ou
seja, as idéias que eles têm do mundo e da sociedade seriam as mesmas idéias que a burguesia
espalha. Marx afirma que o proletário seria fruto de um processo de objetificação, pois todo
trabalho é alienado, na medida em que se manifesta como produção de um objeto que é alheio ao
sujeito criador. Ao criar algo fora de si, o operário se nega no objeto criado. A partir do momento
que o sujeito-produtor dá valor ao que produziu, segundo Marx, ele já não está mais alienado.
3.3 (In)conclusão: considerações contemporâneas
A partir das colocações anteriores, cabe a pergunta: “Na pós-modernidade, quais seriam os
ideais de sociedade?” Ou melhor: temos ideais de sociedade, ou estes seriam apenas “pseudo-
ideais”, quando, por trás, pensamos apenas em um bem-estar individual65, atento apenas às
satisfações imediatas, a qualquer preço?
Jean Baudrillard66, sociólogo francês contemporâneo, ao sugerir que nossa sociedade seria 64 Karl Marx (1818-1883) foi filósofo. É considerado um dos fundadores da Sociologia. Teve participação como intelectual e como revolucionário no movimento operário. Influenciou diferentes teorias sobre a sociedade e, principalmente, sobre a economia do século XX. 65 “A mídia, de fato, é uma das forças subentendidas na formidável dinâmica de individualização dos modos de vida e dos comportamentos da nossa época. A imprensa, o cinema, a publicidade e a televisão disseminaram no corpo social as normas da felicidade e do consumo privados, da liberdade individual, do lazer e das viagens e do prazer erótico: a realização íntima e a satisfação individual tornaram-se ideais de massa exaustivamente valorizados”. (LIPOVETSKY, 2004, p.70).66 Jean Baudrillard (1929-2007) foi sociólogo e filósofo. Suas teorias contradizem o discurso da “verdade absoluta” e
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guiada pelo consumo, inicia sua obra A Sociedade de Consumo (1995) com uma citação de Fiódor
Dostoievski, de No meu subterrâneo: “Dêem-lhe todas as satisfações econômicas de maneira que
não faça mais nada senão dormir, devorar pastéis e esforçar-se por prolongar a história universal;
cumulem-no de todos os bens da terra e mergulhem-no em felicidade até a raiz dos cabelos: à
superfície de tal felicidade como à tona de água virão rebentar bolhas pequeninas”.
Somos reféns de uma sociedade do consumo. Consumir é o novo paradigma, o parâmetro da
sociedade pós-moderna. Uma sociedade que impõe regras mercantilistas e conduz o ser humano a
partir de ideais da cultura da mídia; uma sociedade do espetáculo.
A pós-modernidade é entendida como um período atribulado, em que os valores parecem ser
voláteis e descartáveis. O egocentrismo, antes característico apenas da fase infantil, hoje impera em
todos os níveis sociais. O ser humano, antes classificado como sujeito pela psicanálise (pois é
sujeito ao meio social e ao Outro67 e não apenas fruto de uma herança genética), hoje parece ser um
indivíduo, uma mônada a qual o outro é apenas um objeto de manipulação.
Posturas gentis, solidárias e fraternas, muitas vezes, são exercidas apenas como estratégia de
marketing, são meros produtos elaborados para uma auto-promoção. Posturas que por vezes
encobrem estruturas perversas68 ou psicóticas69 (pensemos na cultura do narcisismo70 e dos reality
shows), seduzem e sugam energia dos demais. A sociedade do espetáculo, constatada
primeiramente por Guy Debord71, exalta a estetização. A aparência é a grande chave para a entrada
contribuem para o questionamento da situação de dominação imposta pelos complexos e contemporâneos sistemas de signos. Os impactos da tecnologia serviram de objeto de estudo para Baudrillard. Sua postura profética e apocalíptica (que influenciou, inclusive, o filme Matrix) é fundamentada em teorias irônicas que refletem sobre questões atuais e sobre o papel que o homem neste meio. 67 Outro é um conceito da teoria lacaneana. É o campo da linguagem, o lugar materno (não necessariamente da mãe), lugar onde o sujeito inicia suas primeiras significações. É um campo simbólico, a partir do qual o sujeito recebe seus primeiros significantes. Desta forma, para Lacan, o humano constitui-se a partir do Outro. Daí a frase célebre do psicanalista: “O desejo do homem é o desejo do Outro”. 68 O perverso, para a psicanálise, dá-se apenas ao Outro simbólico. Todos os “outros”, inclusive o próprio sujeito, são para esse Outro instrumentos de gozo. Para o perverso, o desejo é pulsão. Nele, o Real se separa do simbólico, mas é imaginarizado. Daí a fantasia da plenitude. Nele, o fetiche é o desejo do Outro. E a violência exercida sobre o outro é uma antecipação do fetiche. A perversão é a transgressão da lei, da norma, da natureza. Nela, o inconsciente estaria a descoberto. Aparece sob as formas: masoquismo, sadismo e narcisismo.69 A psicose, para a psicanálise, é um tipo de falência no que concerne à realização do “amor”. O psicótico quer o gozo absoluto. Para ele, o desejo é violência (é assim que ele interpreta). Ele se apega ao outro, para não deixar que se abra um espaço provocado por sua falta. Nele, o Real, o Simbólico e o Imaginário (na teoria lacaneana) se confundem. Ele produz um outro “real” – a alucinação – e um outro “simbólico” – o delírio – para acreditar-se sem falha, puro imaginário. Os objetos do delírio não passam das faces objetais dele. 70 “Do mesmo modo que Narciso, o personagem da mitologia grega, apaixonou-se por sua própria imagem numa lagoa, os indivíduos do capitalismo contemporâneo também precisam de um espelho em que possam recobrar o amor por sua própria imagem, tão comprometido pelo esforço de continuar a gerar valores financeiros. É por causa disso que Adorno diz que a cultura de massa como um todo é narcisista, pois ela vende a seus consumidores a satisfação manipulada de se sentirem representados nas telas do cinema e da televisão, nas músicas e nos vários espetáculos” (FREITAS, 2003, p.19).71 Guy Debord (1931-1994) foi pensador da Internacional Situacionista e da Letrismo Internacional. Seus textos serviram de base para as manifestações de maio de 68. Segundo Debord, o sentimento de alienação pode ser atribuído a forças do “espetáculo”, que podem ser traduzidas como a natureza sedutora do capitalismo. Em sua análise, desenvolve as noções de “reificação” e “fetichismo das mercadorias”, introduzidas por Karl Marx em sua obra O Capital, comprovando as raízes históricas, econômicas e psicológicas da “mídia”.
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no “maravilhoso” mundo pós-moderno72. Exercícios, cirurgias plásticas, toxinas injetadas no rosto,
liftings, lipoaspirações são justificados com a esperada vida eterna. A qualidade de vida virou tema
dos debates e a espiritualidade, cada vez mais descartada, é “exercida” como algo com um enorme
valor.
A psicologia, atenta, quase que exclusivamente, às neurociências, faz um corte na
subjetividade do sujeito, enquadrando-o em diagnósticos neuronais, a partir de exames que
percebem apenas as manifestações sintomáticas das patologias. A investigação psicopatológica pós-
moderna, focada nas abordagens biológica e farmacológica, é a principal derivação da crise do
homem e da ciência contemporâneos. A psicanálise, a filosofia do sujeito, as ciências humanas e o
estudo do homem a partir de uma visão macroscópica, que leva em conta a subjetividade e,
portanto, a diferença não estão na moda, ao contrário da psicofarmacologia, que, nos últimos anos,
ganhou destaque como forma de igualar, logo normatizar o sujeito, enquadrando-o, mais uma vez,
numa cultura narcisista e de “iguais”.
A educação entrou em decadência. O pensamento fragmentado, atento apenas às
especializações, cada vez mais focadas em objetos de estudo menores, se alastrou em todos os
meandros educacionais: ensino básico e superior. Professores parecem estar cada vez mais perdidos,
à medida que os alunos, sem limites impostos pela família, dominam as bancas escolares. As
relações entre colegas, antes relações de amizade e companheirismo, hoje são de competição.
As relações de poder são medidas pelo capital. As grandes companhias de entretenimento
exercem poder de manipulação sobre a maioria da população. Empresas de grande porte são
soberanas no mundo mercantil. Produtos em série são valorizados e o homem é visto apenas como
um funcionário, uma máquina produtiva, uma ficha cadastral, um diagnóstico.
O diálogo foi substituído pela linguagem virtual, pelos bate-papos e pelos chats na Internet.
As relações, com isso, se tornaram fúteis e extremamente vulneráveis, sem consistência. A
cybercultura, atenta apenas à tecnologia e ao progresso técnico propiciou um desgaste nas relações
pessoais, deixando as máquinas intervirem no que há de mais humano em nossa espécie: os
sentimentos.
Pertencemos a uma sociedade atenta apenas às máscaras, ao externo. Ideais de sociedade,
como os tidos pelos clássicos, pelos medievais ou pelos modernos, parecem estar perdidos pela
história, já que não fazem mais parte de nosso cotidiano. Fala-se em ideais, porém apenas “fala-se”.
O bem-comum já não é mais o parâmetro para uma sociedade ideal. A sociedade, contudo, se
reduziu a um transgredir, a um “passar a perna” e a um “passar por cima” do outro. Isso porque o
72 Segundo Mike Featherstone (1995), o pós-modernismo é caracterizado pela transformação da realidade em imagens e pela fragmentação do tempo numa série de presentes perpétuos. Esta segunda característica tem como paradigma a esquizofrenia, considerada um colapso da relação entre os significantes, o colapso da temporalidade, memória, senso de história. A experiência imediata e indiferenciada da presencialidade do mundo, para o esquizofrênico, conduz a uma noção de “intensidades”.
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descartável impera. Não apenas o descartável dos objetos de plástico e borracha, mas o descartável
das relações, da educação, das leis e da cultura. Há saída para o mundo pós-moderno? O que virá
após a era do pós-moderno, pós-humano? O que será o pós-futuro?
Se trouxermos A Metamorfose para nossa realidade pós-moderna, certamente,
visualizaremos ali o que há de mais patológico em nossa sociedade. A mídia, com seu discurso
capitalista e suas atitudes tiranas, dominadoras, recalca nosso desejo (nosso diferencial) e impõe um
pseudo-desejo, de acordo com seus interesses. Com isso, vemos, cada vez mais, novas doenças
surgindo.
O homem centra-se, progressivamente, em si. Esquece-se dos outros, pensa em formas de ter
e possuir mais bens (que o outro). O discurso capitalista impera. Somos arrastados pela onda
mercantilista, em que a televisão é o ditador supremo. Assistimos, usamos, lemos, somos o que ela
nos impõe. O certo e o errado, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso, o digno e o não digno, tudo é
dito pela mídia.
Vemos nossas “metamorfoses” representadas nas depressões, nos transtornos, nas psicoses,
nas perversões, nas neuroses, nos cânceres, na violência urbana. Mas como driblar o capitalismo e
suas implicações? Lacan, em Televisão (1993), aponta uma solução: “Quanto mais somos santos
mais rimos, é meu princípio, e até mesmo a saída do discurso capitalista -, o que não constituirá um
progresso se for somente para alguns”.
36
Frag(Pensa)mento: do trabalho em série à sociedade do híbrido
Composition VII
1913, Wassily Kandinsky
37
4 FRAG(PENSA)MENTO: DO TRABALHO EM SÉRIE À SOCIEDADE DO HÍBRIDOOnde está a sabedoria que perdemos no conhecimento,
onde está o conhecimento que perdemos na informação.
T.S.Eliot
4.1 Tempos (pós/hiper)modernos: a industrialização e os processos contemporâneos
“Tempos modernos é uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em
busca da felicidade”. Assim inicia Tempos Modernos, obra cinematográfica, dirigida e atuada por
Charles Chaplin73, nos anos 30. Tempos modernos é representação fidedigna da sociedade
industrial, produto da Revolução iniciada na Inglaterra, no século XIX: uma sociedade que
privilegia a técnica, em detrimento da sapiência.
O filme inicia com uma analogia: porcos e operários em um frenético movimento ao interior
do local onde ganham ora comida, ora dinheiro, que se “transforma” em comida. Essa associação é
uma das principais cenas da obra, se não a mais importante, uma vez que traz à tona o elemento
humano transformado em animal, com significância de máquina, ou seja, desprovido de ânima. A
obra, também, traz questões como liderança e provoca reflexão quanto ao aumento da
produtividade, tão ambiciosamente forçado, a qualquer preço, sem preocupações relativas à
qualidade de vida e às condições de trabalho dos funcionários.
O trabalho em série é a grande “sacada” do filme. Chaplin soube, através do humor, trazer
todas as mazelas provocadas por este sistema, cuja valorização está na produção especializada, e
não no olhar atento ao todo, o que se refletiu, e ainda hoje reflete, nos meandros acadêmicos e
administrativos da contemporaneidade.
Desta forma, a “máquina alimentadora”, exibida em Tempos modernos, é o que empurra o
espectador ao “muro” dos enigmas: “por que parar o trabalho para o almoço?”. Neste sentido – com
a necessidade de aumentar a eficiência e a competência das organizações, a partir de um melhor
rendimento de recursos – e com a pseudo-justificativa de substituir o empirismo por uma
abordagem cientifica, Frederick Taylor74 é o primeiro teórico a formular uma Teoria da
73 Sir Charles Spencer "Charlie" Chaplin Jr. (1889-1977) foi ator, diretor, roteirista e músico britânico. Seu principal e mais conhecido personagem é conhecido como Carlitos, no Brasil (O Vagabundo): um andarilho pobre, que possui todas as maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro, e usa um fraque preto, calças e sapatos desgastados e mais largos que o seu número, uma cartola, uma bengala e um pequeno bigode (sua marca pessoal). Chaplin foi uma das personalidades mais criativas que atravessou a era do cinema mudo: atuou, dirigiu, escreveu, produziu e financiou seus próprios filmes.74 Frederick Winslow Taylor (1856-1915) foi engenheiro mecânico, inicialmente técnico em mecânica e operário. É considerado o “Pai da Administração Científica”, por propor a utilização de métodos científicos cartesianos na administração de empresas. Seu foco era a eficiência e a eficácia operacional na administração industrial. Sua orientação cartesiana extrema é, ao mesmo tempo, sua força e fraqueza. Seu controle inflexível, mecanicista, elevou enormemente o desempenho das indústrias em que atuou, todavia, igualmente, gerou demissões, insatisfação e estresse para seus subordinados e sindicalistas.
38
Administração.
Compreendendo que as indústrias padeciam de três males, a saber a “vadiagem” dos
operários, as gerências sem informações e a falta de uniformidade das técnicas e métodos de
trabalho, Taylor propõe uma divisão especializada das operações, uma padronização de máquinas,
uma supervisão funcional e incentivos salariais e prêmios por produção, alicerçados no conceito de
homo economicus. Toda pessoa, neste caso, é influenciada por recompensas econômicas ou
materiais, uma vez que o trabalho é seu meio de subsistência. Taylor, contudo, vê o operário como
um ser limitado, mesquinho e preguiçoso que, neste sentido, deve ser controlado por meio do
trabalho racionalizado e do tempo padrão.
As máquinas funcionando não permitem ao colaborador uma parada. O ritmo frenético,
atento à redução do tempo ocioso e ao aumento da produção acaba por “criar” um sujeito doente:
Carlito está em crise de nervos. Curado dela “e desempregado, ele deixa o hospital para começar
nova vida”. O furor cotidiano, todavia, o deixa às margens: como líder comunista é taxado e preso,
por ingressar em uma marcha de movimentos sindicalistas, sem assim o desejar.
A realidade das toxicomanias, com o tráfico de cocaína, também vem à tona em Tempos
modernos. Na prisão, Chaplin se depara com este social ilícito. Quando é liberto, assim conclama
ao policial: “Posso ficar um pouco? Sou feliz aqui!”. Prefere a prisão, já que a sociedade está em
crise, sem empregos. No presídio, ao menos, tem alimentação...
O operário, ainda, se depara com a greve e com um colega de fábrica que ingressa no crime.
Imagina-se em uma casa com fartura, onde comida, leite, conforto não faltam. Por fim, não se abala.
Para sua companheira, assim o diz: “Erga-se! Não desista! Nós vamos conseguir!”. Ótima obra:
através do sarcasmo, põe à luz a realidade moderna e, porque não?, contemporânea.
4.2 Carência ou excesso de paradigmas?
É consenso de todos que estamos enfrentando uma crise de paradigmas, advinda dessa
realidade especializada, desde o início do século XX. O homem está um tanto confuso em relação a
uma série de aspectos: sua existência, sua função no meio em que vive, seu conhecimento, sua
inteligência. Há carência ou excesso de paradigmas? Afinal, o pathos paradigmático surge a partir
de uma anormalidade no real do pensamento e/ou do fazer.
Neste sentido, distingo duas modalidades de pensamento: o Frag(Pensa)mento,
característico da atualidade, e o Comple(Pensamen)to, presente sobretudo na Grécia Antiga. O
Frag(Pensa)mento, além de configurar-se como restrito, tem como principal adjetivo a objetividade,
a razão. Reina com toda a sua soberania: é fechado em uma única área do conhecimento, não
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enxerga a diferença. Caracteriza-se, portanto, em um pensamento-fragmento75, ou seja, um
pensamento parcial, um pensamento fragmentado, que não compreende o todo, a totalidade, a visão
global. Totalidade essa, não sinônimo de soma, mas de inter-relação entre as partes76.
O Frag(Pensa)mento origina-se de três vertentes: o cartesianismo, oriundo da Idade
Moderna; o positivismo, de meados do século XIX; e o fenômeno da indústria cultural, descoberto
– ou constatado - na década de 40.
Sem dúvida, nos últimos 50 anos, houve um progresso científico dramático. Se observarmos
os séculos que precederam esse progresso, eles acabam por parecer uma pré-história longínqua.
Constatamos, também, que ainda nos movemos em um campo teórico solidificado pelos cientistas
do século XVIII até os primeiros 20 anos do século XX. O tempo presente é um tempo de transição,
descompassado em relação a tudo que o habita: aos poucos, alicerçamos um novo ponto mutacional.
Estamos, assim como no século XVIII (quando das rupturas científicas de Copérnico, Galileu e
Newton), perplexos, perdemos a confiança epistemológica em um saber dito universal, que abarque
as diferentes áreas do conhecimento sob um determinado paradigma. Com isso, precisamos
responder, novamente, às perguntas mais simples, mais elementares77.
A partir da Revolução Científica do século XVI, as ciências naturais se sobressaem e
ancoram-se em uma supremacia às demais. As humanidades, os ciências sobre o homem, as
ciências humanas, são colocadas em termos iguais ao senso-comum, a saber como uma não-ciência.
No século XVII, por conseguinte, há uma busca por um único saber verdadeiro, que abarque todas
as questões-problema daquele período.
A Idade Moderna78, neste sentido, apresenta um novo paradigma: há uma luta apaixonada
contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade; uma nova visão de mundo e de vida. A
observação empírica dos fatos é o grande valor deste período. Com isso, a natureza é separada do
humano: passam a ser enxergados e observados diferentemente, como realidades não associáveis.
Bacon79, neste sentido, afirma: “a ciência fará da pessoa humana o senhor e possuidor da natureza”.
Na modernidade, a matemática ascende. E, como conseqüências, o homem valoriza a
75 “A fragmentação do conhecimento ocorre juntamente com a fragmentação da produção, com a divisão do trabalho e com a estruturação e hierarquização das organizações que, por sua vez, andam paralelas às organizações sociais e políticas” (PAVIANI, 2008, p.73)76 Neste sentido, encaixa-se o princípio gestáltico: 'O todo é maior que a soma das partes'77 Nosso tempo é um tempo de incertezas. Não há verdade-absoluta em nenhum sentido, em nenhum lugar ou área do conhecimento. O relativismo penetrou nos mais diferentes meandros da educação, da cultura e da sociedade. Sob esta perspectiva, Bauman acrescenta que vivemos uma modernidade líquida, que há uma liquidez no viver, nas relações afetivas, nas relações sociais, nos conceitos.78 “Na Idade Moderna, com Descartes e Bacon, tem início a cisão entre a filosofia e a ciência moderna. A visão cosmológica da episteme grega é substituída pelo modelo antropológico moderno que origina os movimentos do empirismo, do racionalismo, do iluminismo e do idealismo. O método científico adquire status de problema central.” (PAVIANI, 2008, p.91)79 Francis Bacon (1561-1626) foi político, filósofo e ensaísta inglês. É considerado o fundador da ciência moderna. Como filósofo, destacou-se com uma obra, na qual a ciência era exaltada como benéfica para o homem. Em suas investigações, ocupou-se especialmente da metodologia científica e do empirismo.
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quantidade, em detrimento da qualidade (que permanecerá esquecida até o início do século XXI):
conhecer, aqui, significa quantificar, dividir e classificar. A classificação causará, ainda, uma
redução da complexidade. Essa classificação reificada com a justificativa de classificar para melhor
compreender as menores, e mais-menores partículas ou partes dos problemas. Neste sentido, o
objetivo era parcializar para entendimento do micro.
O cartesianismo, voltado à racionalização, centrado na objetividade pura, privando o
subjetivo e a interpretação, privilegiará o “como funciona”, em detrimento de “qual o agente da
ação” ou “qual o fim do ato”. A ciência moderna transforma o mundo em uma máquina, cujo motor
mecanicista é regido por leis físicas e matemáticas, a partir de um racionalismo exacerbado. Neste
sentido, também o positivismo, filosofia de Auguste Comte, teve como principal conseqüência a
separação entre a filosofa e as ciências positivas (matemática, física, química, biologia, astronomia,
sociologia), que antes andavam juntas àquela, nas teorias dos pensadores clássicos.
As leis da natureza dão lugar, com Comte, às leis da sociedade. No século XIX, há a
emergência das ciências sociais, no início vistas como inferiores às naturais. Com isso, percebemos,
resumidamente, que no século XVI, as lutas científicas estavam girando no embate natureza versus
ser humano. Entre os séculos XVI e XVIII, passam para natureza versus cultura e ser humano
versus animal. Desde o século XVIII, contudo, o que está em xeque é o ser humano: o que o define
enquanto tal, qual a sua natureza, sua diferença.
4.3 Ciência e razão como orientadores da vida social
Com o endeusamento da ciência, iniciado com Descartes e concretizado com Newton, o
homem é visto em partes. A ciência fecha-se na razão e tudo é enxergado a partir de uma visão
mecanicista. Com o progresso da genética, no século XX, o homem é compreendido como uma
estrutura, composta por moléculas, DNA, código. O ser humano, agora, é sinônimo de uma
combinação genética, decifrada pelo Projeto Genoma. Esquece-se a subjetividade, a linguagem, o
psíquico80.
As ciências exatas e biológicas têm a sua supremacia sob as demais áreas do conhecimento.
Tudo é explicado, metodologicamente, através da medicina, da biologia molecular, da física e da
química. A computação e a recente inteligência artificial, conhecimentos originados próximos ao
final do século XX, procuram adentrar na vida humana, determinando-a. Há, hoje, uma crise
80 Santuário (2005) coloca que: “Estamos entrando em uma era em que os seres humanos poderão ser intencionalmente (choice) aperfeiçoados como são as galinhas, com elevado QI, melhor aparência e maior longevidade. Isso virá substituir a modalidade antiga de deixar a natureza seguir seu próprio curso (chance)”. (p.185)
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paradigmática, iniciada por Einstein81 e a Física Quântica82: estruturam-se insuficiências estruturais
para um referencial contemporâneo de ciência, de paradigma orientador.
A indústria cultural83, fenômeno que se alastrou com o surgimento da televisão, vem
tomando forças exorbitantes. Com ela, esquecemos o que é refletir e a nossa percepção, na maioria
das vezes, parece ser ridicularizada. A mídia torna-se a ditadora do modus-vivendi: vem
desempenhando papéis antes ocupados pela igreja, pela escola e, principalmente, pela família,
enquanto socializadora e ‘educadora’. ‘Educação’ errônea, frisa-se. A televisão, que desmembrada
em tele-visão, tem o significado de “visão à distância”, enquanto produto da cultura industrializada,
torna-se ‘tele-cegueira’, pois nos cega, à distância, e não nos permite enxergar/interpretar a
realidade com olhos próprios, olhos de sujeito.
Com o conhecimento especializado, advindo da separação das ciências em disciplinas, cada
vez mais divididas, sabe-se mais sobre menos, ou seja, cada vez estamos nos tornando mais ‘sábios’
sobre menos aspectos. Com isso, a ignorância é o grande mal-estar contemporâneo, o mal do século
XXI. Com o pensamento fragmentado, especializado, o homem detém-se, de forma contínua, em
campos progressivamente menores. A parte é valorizada e o todo é cada vez mais esquecido. A
situação se torna mais preocupante quando transportamos estas idéias, essa realidade, para o campo
educacional, para o ensino, a educação. Um Frag(Pensa)mento gera um pensamento ainda mais
superficial, fragmentado, atento às partes. Professores e educadores que transmitem uma visão
mecanicista, fechada e especializada originam alunos e futuros profissionais com pensamentos mais
parciais.
Não podemos esquecer que o mundo é um feixe de inter-relações. A árvore não está
separada da terra que, por sua vez, não está isolada da água, dos sais minerais. Estamos inter-
relacionados com o universo. Somos inter-dependentes uns dos outros. Assim, estudar, analisar e
observar um objeto, um fenômeno, descontextualizando-o, separando-o de sua origem, sua raiz e
seu meio é uma atitude extremamente equivocada. Um grande, mas extremamente lento, esforço
vem sendo tomado por alguns pensadores da atualidade: tentar retomar o que há muito vem se
81 Albert Einstein (1879-1955) foi físico alemão. É conhecido por desenvolver a Teoria da Relatividade. Ganhou o Prêmio Nobel da Física de 1921 pela correta explicação do efeito fotoelétrico. Seu trabalho teórico possibilitou o desenvolvimento da energia atômica, apesar de não prever tal possibilidade.82 Mecânica Quântica é o estudo dos sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou abaixo da escala atômica, tais como moleculas, átomos, elétrons, prótons e de outras partículas subatômicas. A Mecânica Quântica é um ramo fundamental da Física, que generaliza a mecânica clássica e fornece descrições exatas para muitos fenômenos previamente inexplicados tais como a radiação de corpo negro e as órbitas estáveis do elétron. Os efeitos específicos da mecânica quântica não são somente perceptíveis em escalas microscópicas. Por exemplo, a explicação de fenômenos macroscópicos como a superfluidez e a supercondutividade só são possíveis se considerarmos quântico o comportamento microscópico da matéria. A mecânica quântica recebe este nome por prever um fenômeno bastante conhecido dos físicos: a quantização. 83 Adorno e Horkheimer (1985), no prefácio da Dialética do esclarecimento, põe em xeque: “A humanidade, em vez de adentrar em uma situação verdadeiramente humana, afunda em um novo tipo de barbárie”.
42
perdendo, a interdisciplinaridade. Edgar Morin sugere também que façamos um “pensar
complexo”84, contrário ao pensar cartesiano, que pregava uma racionalização, uma objetivação e
uma simplificação. Ele nos diz que essa complexidade conduzirá, gradativamente, a restituir o
diálogo entre as ciências, as disciplinas e entre o sujeito e o objeto, ou seja, entre o observador e
aquele que é observado.
O filme Ponto de Mutação, baseado na obra homônima de Fritjof Capra85, também nos
alerta sobre esses problemas. Capra conseguiu, através de sua obra, unir uma cientista, um poeta e
um político discutindo questões relacionadas à física quântica, à consciência ecológica e ao
castesianismo, que chegaram a conclusões como essas, que precisam, urgentemente, ser postas em
prática. A mais importante e essencial: pensar na inter-relação entre as partes. A solidez das coisas é
um dos problemas levantados pelos “pensadores”, partindo da realidade material para questionar a
cultura imaterial, as idéias e o conhecimento, em nível cognitivo.
Precisamos de uma manutenção do pensamento86. Utilizo, aqui, manutenção como sinônimo
de reforma. Reforma capaz de derrubar paradigmas errôneos, como a separação do conhecimento
em disciplinas isoladas, e gerar novos paradigmas, como o da interdisciplinaridade (sinônimo de
combinação de conhecimentos), ou melhor, como coloca, originalmente, o pensador Jayme Paviani
(2008)87, uma intradisciplinaridade (disciplinas que estejam internalizadas, dentro, assimiladas uma
nas outras, que sejam dependentes entre si), ou uma transdisciplinaridade (um conhecimento que
esteja além das disciplinas, uma fusão, um holismo). Isso porque, ele acrescenta, ainda, que está
“cada vez mais consciente dos males do ensino fechado sobre sua própria linguagem, limitado ao
84 “O princípio da complexidade anda junto com o de emergência. Um remete ao outro. A complexidade é um conceito que procura expressar múltiplas faces da realidade. A realidade não é mais percebida como um objeto inerte, mas como processo, devir, doação, construção. Por isso, o princípio da complexidade remete às inter-relações entre as partes e o todo, a continuidade e a descontinuidade. A complexidade manifesta-se em diferentes níveis. Esses níveis recursivos, sem considerar a precedência de um sobre o outro, podem ser descritos quantitativa e qualitativamente.” (PAVIANI, 2008, p.46) 85 Fritjof Capra (1939-) é físico. Tornou-se mundialmente conhecido com seu livro O Tao da Física. Nele, traça um paralelo entre a física moderna (relatividade, física quântica, física das partículas) e as filosofias e pensamentos orientais tradicionais. Outra obra de Capra que se tornou referência para o pensamento sistêmico foi O Ponto de Mutação. Nele, compara o pensamento cartesiano, reducionista, modelo para o método científico desenvolvido nos últimos séculos, e o paradigma emergente no século XX, holista ou sistêmico (que vê o todo como indissociável, de modo que o estudo das partes não permite conhecer o funcionamento do organismo). 86 “O retorno ao saber e não apenas ao conhecimento teórico passa necessariamente pelo solo humanista da cultura geral. A cultura geral ou a capacidade de se entender a si e aos outros é o verdadeiro lastro que sustenta os conhecimentos científicos e as práticas profissionais. O estudo das humanidades implica positivamente valorização dos direitos fundamentais do homem, descoberta das relações profundas entre a sensibilidade e a inteligibilidade. Não se trata de nostalgia nem de lamento frente ao desenvolvimento tecnológico. Ao contrário, a tecnologia sem as humanidades e as mais altas expressões do espírito humano é vazia, nada tem a comunicar. A cultura em geral não significa 'saber tudo', mas possibilidade de compreensão da época em que vivemos e a compreensão de nós mesmos e dos outros. É educação da sensibilidade e da inteligência, formação da vontade e da capacidade de decidir. A cultura humanista, em seus verdadeiros termos, é uma ponte natural entre o ensino e a pesquisa, a tradição e o futuro, o social e o histórico” (PAVIANI, 2008, p.123)87 “Nesse cenário, a interdisciplinaridade, vista na perspectiva epistemológica e institucional, é um recurso de mediação dialética entre análise e síntese do conhecimento, entre divisão e uniformização, tradição e renovação das organizações. A interdisciplinaridade impõe-se objetivamente contra o excesso de padronização e de institucionalização administrativas” (PAVIANI, 2008, p.73)
43
território de sua especialização, sem abertura para outras abordagens.”
Vivemos, assim, na atualidade, sob um excesso de paradigmas, na medida em a informação
é a grande mentora contemporânea, e que surge, rapidamente, uma quantidade enorme de
disciplinas, ciências e conhecimentos, isolados e sem comunicação. Esse excesso, entretanto, gera
uma falta, uma carência de paradigmas, pois nos tornamos cada vez mais confusos e sem caminhos
a seguir, sob a égide da incerteza total.
Se a crise surgiu com a filosofia, como afirma Morin, pois “ao mesmo tempo que
permanecia plural em seus problemas e nas concepções, a filosofia dos tempos modernos foi
animada por uma dialética que remetia reciprocamente à busca de um fundamento certo para o
conhecimento”, cabe a nós ‘consertarmos’ os erros: unir os pensamentos, intermediar os diálogos
entre as ciências e promover um debate sério, com efeitos de grandes proporções, a respeito da
interdisciplinaridade e o pensamento complexo, global e do total, sinônimo de relação entre as
partes.
4.4 A hibridização como imperativo ético contemporâneo: Dalí e a fragmentação
Como conseqüência desta super-especialização, adentrada em todos os meandros sociais,
não apenas na educação, ou no conhecimento, mas em toda a cultura, sem seu sentido mais amplo,
há hibridização por todos os lados. A palavra híbrido tem dupla origem, grega e latina: do grego,
hybris, ultraje; do latim, hybrida, miscigenação. Segundo os gregos, híbrido era o que violava as
leis naturais. Pois bem, a hibridização é a principal característica da contemporaneidade. Chamada
por alguns de pós-modernidade, prefiro nomear nossa sociedade, assim, de sociedade do híbrido.
A sociedade do híbrido88 prima pela mistura, pela fusão, em todos os sentidos, sejam eles
materiais e físicos (com as próteses, os microchipes, a fertilização in vitro, a manipulação genética),
subjetivos e afetivos (a inteligência artificial, as relações líquidas, as incertezas existenciais). A
polarização é suprimida, abafada, em favor da valorização da mistura. Não há mais bem e mal, ético
e anti-ético, belo e feio, uma vez que além da conceituação, o próprio existir é relativizado.
Todos são “normais”89. A normalidade passe a ser sinônimo de anormal, uma vez que a
88 Santaella (2003) ressalta que, no campo das tecnologias, a inteligência artificial, a robótica e a protética são, evidentemente, construções pós-humanas: “Também pós-humana é a nonotecnologia [...] a máquina está ficando cada vez mais parecida com o orgânico, e o humano, ao receber implantes maquinícos não é mais o que costumava ser. [...] Ainda outra tecnologia pós-humana é a vida artificial. São programas artificiais que têm a forma de vida, quer dizer, simulam sistemas biológicos em um espaço virtual. Dessa simulação, originam-se seres viventes secos, réplicas em silício dos seres vivos úmidos, de carbono” (p.241-242) 89 Zizek (2001) lembra que Lacan propôs: “uma visão libidinal de nossas sociedades capitalistas tardias ao falar da proliferação de sintomas, dos tiques particulares e contingentes que dão corpo ao gozo e que estão mais bem exemplificados pelos inúmeros aparelhos com os quais a tecnologia nos bombardeia todos os dias. Na perversão generalizada do capitalismo tardio, a própria transgressão é solicitada; somos bombardeados com aparelhos e formas sociais que não apenas nos permitem viver com nossas perversões, mas também conjuram diretamente novas
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diferença deve ser a suprema. Há andróginos, uma vez que o padronizador deve ser abolido de todas
as formas. Não há mais diferença: todos a visando, acabam por se igualarem. “É homem ou
mulher?” Há fusão homem-máquina, com a sobreposição de materiais inorgânicos a orgânicos. Não
há relacionamento duradouro, duradouro mesmo. Nem “solteirice” plena. Há um meio-termo90. Os
relacionamentos qüânticos são os grandes valores contemporâneos, já que a satisfação a qualquer
preço, sem solidez, é a melhor 'sacada' do pós-modernismo. O ideal é parecer sólido externamente,
quando na matriz real o que há é fluidez. O normal é ser normal, ou seria o contrário?
Há mescla de psicose e perversão. Esta última, antes da pós-modernidade excluída pela
sociedade, caracterizada como patológica, é motivada pela sociedade do espetáculo, em que a mídia
passa do papel de outro para Outro, ou seja, passa a estruturar o sujeito91. Enquanto campo da
linguagem, campo de significações, neste caso exercido pela mídia92, o Outro da pós-modernidade
perversões” (p.11) 90 A música Já sei namorar, de Os Tribalhistas, ilustra esta nova realidade, no que concerne aos sentimentos, às
relações e ao culto ao narcismo:“Já sei namorar, já sei beijar de língua, agora só me resta sonhar / Já sei onde ir, já sei onde ficar Agora só me
falta sair. / Não tenho paciência pra televisão, eu não sou audiência para solidão. / Eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem. / Eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também. / Já sei namorar, já sei chutar a bola agora só me falta ganhar / Não tenho juízo se você quer a vida em jogo eu quero é ser feliz. / Não tenho paciência pra televisão, eu não sou audiência para solidão. / Eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem. / Eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também. / Tô te querendo como ninguém, tô te querendo como Deus quiser. / Tô te querendo como eu te quero, tô te querendo como se quer. / Tô te querendo como ninguém, tô te querendo como Deus quiser. Tô te querendo como eu te quero, tô te querendo como se quer...”91 Voltaremos a esta questão, especificamente, no Capítulo 5.92 Neste sentido, a música A fórmula do amor, composta por Léo Jaimee Leoni, exemplificam a atual realidade:
Eu tenho o gesto exato, sei como devo andarAprendi nos filmes pra um dia usarUm certo ar cruel de quem sabe o que querTenho tudo planejado pra te impressionar
Luz de fim de tarde, meu rosto encontra luzNão posso compreender, não faz nenhum efeitoA minha aparição será que errei na mãoAs coisas são mais fáceis na televisão
Mantenho o passo alguém me vêNada acontece, não sei porqueSe eu não perdi nenhum detalheOnde foi que eu errei
Ainda encontro a fórmula do amorAinda encontro a fórmula do amorAinda encontro ohohoh a fórmula, a fórmula do amor
Eu tenho a pose exata pra me fotografarAprendi nos livros pra um dia usarUm certo ar cruel, de sabe o que querTenho tudo ensaiado pra te conquistar
Eu tenho um bom papo e sei até dançarNão posso compreender, não faz nenhum efeitoA minha aparição será que errei na mãoAs coisas são mais fáceis na televisão
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incute para o sujeito um pseudo-objeto, o que, conseqüentemente, gera um pseudo-desejo.
Este pseudo-desejo, à semelhança do gozo, é puro fora-de-si, exterioridade plena. Daí o
consumismo: realização dessa busca, plenitude desta constante procura pela satisfação, com o
pseudo-objeto. As perfomances e a indústria cultural, enquanto representações da sociedade pós-
moderna, acabam por ser estimuladas, mesmo que inconscientemente, pelo sujeito. É o que
observamos, também, na cybercultura, na qual o sujeito pensa estar realizando algo, quando, nem
mesmo, pensa naquilo. A cybercultura é o símbolo da transgressão – principal característica da
perversão – e da alucinação – uma das manifestações da psicose. No ambiente virtual, o sujeito
pode desejar tudo, realizar tudo, imaginar tudo e sentir tudo, sem fazer, realmente, tais coisas. É o
fetiche, o gozo pleno.
O meio-termo é perigoso. Não há referências, já que todas as anteriores perderam seu valor-
de-verdade, foram relativizadas, questionadas e colocadas à berlinda do real contemporâneo. Não
há ícones, não há gênios especialmente geniais, ao mesmo tempo que há ícones demais, há
celebridades, há sujeitos instantâneos, que surgem e desaparecem sob um mesmo surtir de tempo.
Isso confunde, o que iguala os não-iguais, com a padronização imposta pelas leis de mercado.
Não há divisão de funções, já que as novas teorias administrativas pregam o saber fazer
tudo, o ser multifuncional, cujo saber deve estar focado na missão empresarial, no objetivo final, no
produto acabado. Mas, no mesmo instante, há cobrança de especialização super-especializada, que
saiba lidar com as crises, com os problemas emergenciais.
Há crise de costumes. “Afinal, para quê, eles?” A moral é entendida como atadora da
liberdade, que, por sua vez, é sinônimo de fazer o que se quer, sem Outro que me lembre das
limitações sociais internas. Não há tradição, já que ela está ultrapassada, mas há retrôs, que estão na
moda, na crista da onda. Não há comunicação, mas há excesso de meios para comunicação, há
excesso de informação, ainda que superficial. Não há ideologia, que passa a categoria de utopia. Há,
contudo, excesso de ideólogos, que proclamam saberes e verdades pretendentes a absolutas... Como
disse, é a sociedade do híbrido. Está feita a confusão.
Uma representação desta realidade é encontrada na obra pictográfica de Salvador Dalí93.
Dalí soube ousar, fundamentando-se na escola surrealista, na qual o real é substancializado de
Eu jogo charme, alguém nem vêNada acontece, não sei porqueSe eu não perdi nenhum detalheOnde foi que eu errei
Ainda encontro a fórmula do amorAinda encontro a fórmula do amorAinda encontro ohohoh a fórmula, a fórmula do amor93 Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech (1904-1989) foi um importante pintor catalão, conhecido pelo sua obra surrealista. O trabalho de Dalí chama a atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, oníricas, com excelente qualidade plástica.
46
forma sui generis. Figuras amorfas, além-real, hibridizadas, derretidas, extrapoladas, super-
quantificadas nos remetem à sociedade atual, que prima pela instabilidade e pela desequilibração.
Eis o imperativo ético contemporâneo: “Hibridize toda e qualquer substância, sobretudo as
orgânicas, afim de que novos estilos emerjam, como forma de aceitação e congregação da
diferença”.
47
O grande Outro substituto – A partir da metáfora de “O Perfume”,
de Patrick Süskind
obra surrealista, autor desconhecido
48
5 O GRANDE OUTRO SUBSTITUTO – A PARTIR DA METÁFORA DE “O PERFUME”,
DE PATRICK SÜSKINDA satisfação é o azar do desejo.
Zygmunt Bauman
O humano é um ser relacional. Logo, é inscrito no discurso pela alteridade. Contudo, para
constituir-se sujeito, uma vez que nunca será indivíduo, é necessário que esse alter o olhe. Antes do
verbo, então, no início, era a visàge, a imagem especular. Para ser chamado de sujeito, para ser
formado enquanto tal, é preciso que um Outro, o grande Outro, o veja e, mais que isso, o olhe com
olhar de diferença, com olhar desejante que este, à sua frente, o seja sem-igual. Este Olhar,
constitutivo, é que lança desejo, falta no sujeito. E esta falta é condição primordial para que ele seja
barrado, à procura de algo, do objeto, que o complete; é essência para que o humano se desenvolva
da forma mais “saudável”. É através de seu reflexo, descoberto no Olhar do Outro, que há, com
identificação, a noção de eu.Sem esta falta, ele não tem a chave necessária para a entrada no
simbólico, na linguagem, no discurso; será um amorfo. Sem essa falta, ele estará completo, sem
algo que o impulsione à procura, à vida por excelência.
Lacan concebe o humano como uma estrutura. Essa estrutura é concebida a partir de três
registros: Real, Simbólico e Imaginário. O Real é tudo aquilo que não pode ser simbolizado, só é
conhecido através de suas manifestações no Simbólico. É o inconsciente, o lugar onde os
significantes são inscritos, é o profundo, o não-acessível, o sem-nome, o desordenado, o não-
interdito. O Simbólico é o sistema de representações, a linguagem, a realidade, baseado nos signos e
nas significações, é por onde o sujeito pode ser conhecido, uma vez que só é sujeito, pois é o sujeito
da fala. O Imaginário se relaciona com a imaginação, com a faculdade de representar coisas em
pensamento, independentemente de sua realidade. É o lugar do eu por excelência, com seus
fenômenos de ilusão, captação e engodo.
Acabada, fechada, a estrutura estará quando da chegada à idade adulta; antes, então, é uma
estrutura em formação, na infância; e em processo de consolidação, acabamento, na adolescência. A
teoria psicanalítica de Lacan, neste sentido, descreve três possíveis estruturas as quais o sujeito,
indiscutivelmente, se configurará. São elas: neurose, psicose ou perversão. Os fatores
determinantes, os papéis fundamentais na formação da personalidade, sob esta perspectiva, serão o
Outro, primordial, e a metáfora paterna, instituída pelo Outro. O campo e o significante Nome-do-
Pai, assim, serão os fundantes do sujeito, os alicerces. O sujeito, na verdade, é sujeito a
significantes, inscritos ou não pelo grande Outro. Por isso, o Outro, mais que um lugar, mais que
um papel, normalmente exercido, ocupado pela mãe, é um campo. E, como todo campo, abarca o
que nele está contido. Pois bem, este campo, o Outro, é um campo de inscrição de significantes e o
sujeito é o que nele está.
49
No início, então, o Outro e o sujeito são uma única e mesma coisa. Esta coisa é uma mescla,
um todo, um completo, ainda que sem nome. De maneira geral, sujeito e Outro, sujeito e seu
campo, estão em simbiose. Mas este todo, esse sem nome, não é. Não sendo, permanece na vida,
sem nela nunca ter entrado, até a morte. Se assim permanecido, ausência de desejo, ausência de
separação, de corte, psicose o é. Psicose é a estrutura do sujeito sem desejo, do amorfo que nem
sujeito é, pois a nada está sujeitado. É a estrutura daquele que intrínseco ao Outro está, pois não foi
incluído no discurso – o que só de dá pelo amor lançado pelo Outro – mas foracluído. Sem antes
sujeitar-se, não foi lhe permitido viver, foi esquecido, ao mesmo tempo preso.
Mais que uma marca negativa, o psicótico, aquele que foraclui, possui uma não-marca. Essa
foraclusão é do Nome-do-Pai, significante da ordem do limite, que introjeta lei interna, ética,
princípio e fundamental para a lei externa, a moral social. É deste significante que o sujeito está
fora, é ele que o sujeito foraclui, junto com o Outro, que não o mostrou, ao contrário, privou da
metáfora. É função do campo, do grande Outro, lançar Nome-do-Pai no sujeito, para que assim ele
possa ser nomeado, chamado de sujeito. Esse lançamento, essa inscrição se dá através do desejo,
desejo do campo para com o sujeito. Esse desejo, lançado pelo grande Outro, constituirá Lugar de
Desejo da Mãe, base para a inscrição da metáfora paterna, Nome-do-Pai.
Não nomeado, não-sujeito, o não-sujeito, o psicótico, o sem-amor, entrelaçará os três
registros, uma vez que desatados estão. Não foi permitido o enlace, que só se dá pela falta. Assim,
eles estarão sobrepostos, o que causará ora a alucinação, ora o delírio. Sem a chave que o permite
entrar no discurso, que possibilita o recalque ou a denegação, ele permanece foracluído, ou seja,
não-incluído na realidade. Ele cria uma outra, criada, na verdade, pelo Outro.
O perverso, por outro lado, é o que denega, o que conhece, porém finge não conhecer, nega
a metáfora. Ela está introjetada, pois o sujeito foi desejado, mas é denegada, pois está enfraquecida,
dilacerada. A lei é presente, mas é posta de lado. O grande Outro a apresenta, mas não a favorece,
não a abarca, a coloca às margens: provoca uma violação. Violada à lei, antes inscrita fraca, o
sujeito a substitui pelo fetiche, pelo gozo a qualquer preço, pelo voyeurismo. Não há concepção de
alteridade, todos são instrumentos de manipulação e gozo do sujeito. O inconsciente do perverso
está a descoberto. Há fantasia de plenitude, uma vez que o Real está desprendido da metáfora, do
discurso. No lugar de uma simbolização, está imaginarizado. O sujeito é um sujeito da transgressão
à norma, à natureza, à lei, que se manifesta através do masoquismo, do sadismo, do narcisismo.
O neurótico, neste sentido, é o “oposto” do perverso: no lugar do ato, o neurótico fantasia.
Fantasia com os atos que o perverso faz. Fantasia, pois aqueles estão interditos em seu inconsciente,
são impossibilitados. Se realizados, a descuido, são culpáveis, já que a lei está presente a todo
instante, a lei é o fio-condutor de sua existência. O neurótico, manifestado na histeria – que deseja a
atenção, a busca – e na obsessão, cujas regras estão ato-a-ato, é o sujeito da lei internalizada, é o
50
sujeito que precisa de um simbólico suplementar, ou seja, do sintoma, para que o deseja se
mantenha recalcado. O recalque, pois, é o mecanismo de defesa do neurótico. Para ele, o desejo é
compreendido a partir da demanda. Ele cria o sintoma, para doá-lo ao Outro, como retribuição ao
amor a ele depositado. Ele acredita no Outro, ao passo que o psicótico é o Outro, e o perverso se dá
ao Outro, como forma de gozo, como objeto e instrumento deste.
5.1 Uma estrutura híbrida constituída pelo Outro-midiático
Uma metáfora da estruturação do sujeito pós-moderno está na obra O Perfume (1985), de
Patrick Süskind, transposta para o cinema no século XXI. Jean-Baptiste Grenouille é um sujeito
nascido do desconhecido em meio aos restos e ao lixo da Paris de tempos não-higiênicos94. É o não-
desejado, o sem-nome, por isso caracterizado e descrito como um ser sem cheiro95. Quando bebê era
visto como estranho, uma vez que de nada, nem mesmo de odor ruim, ele era constituído. Mas nem
Outro Grenouille teve. Não houve campo de inscrição no discurso, não houve possibilidade de
constituição pela significação. Assim, ele procura por um Outro substituto, um Outro que o
abarque, que o constitua, que lance olhar ou que, no mínimo, o complete, afim de que absoluto ou
faltante se torne.
Nesta busca, o Outro acaba por ser o cheiro, o odor, o que o não pertencia. Grenouille foi
posto a perecer pela mãe, junto aos peixes podres, ao sangue, ao lixo. Coube a ele, sozinho então,
para melhor sobreviver ao mundo conturbado, procurar um Outro, um campo que o inscrevesse na
linguagem, ainda que de maneira falha. Uma vez desprovido de cheiro, de odor, de caracterização
pelo sentido olfativo, Grenouille inscrevesse na significância a partir do perfume, através das
exalações. Assim, o mundo, para ele, é um mundo essencialmente de cheiro. É pelo odor que o sem-
nome, agora com, conhece e compreende as pessoas, os objetos – animados ou inanimados –, os
sentimentos.
Desprovido de uma estrutura, uma vez sem-Outro, sem campo, sem linguagem, então, o
quase-sujeito vai em busca de um substituto. Uma vez estruturado de uma forma híbrida – estrutura
ainda não catalogada – Grenouille cria-se a partir do que sente pelo olfato. O olfato, logo, é seu
Outro, é seu referencial sígnico, simbólico. É pelo cheiro que ele concebe a realidade, a imaginação;
se estrutura enquanto ora uno, ora múltiplo, sujeitado a este campo que não sente, não lança Olhar
afetivo. Assim, este Outro é um campo que não deseja Grenouille, mas que inscreve pseudo-desejo
– se a falta é superficial –, um protótipo daquele, para que, de alguma forma, ele se constitua sujeito
ou amorfo simbiótico ao campo, que é o caso em questão.
94 “Bem ali, no lugar mais fedorento de todo o reino, foi que nasceu Jean-Baptiste Grenouille, a 17 de julho de 1738” (SÜSKIND, 1995, p.8)95 “Ele, o bastardo, é que não tem cheiro nenhum” (SÜSKIND, 1985, p.13)
51
A estrutura pós-moderna, a híbrida – mescla de estruturas e, ao mesmo, uma quarta
estrutura, indissociável das demais96 –, é a estrutura descrita, metamoricamente, em Grenouille, o
sujeito contemporâneo inscrito no discurso através de um Outro substituto. Com a figura paterna
enfraquecida, ou anulada, uma vez que este Outro substituto é um Outro inumano, ficcional, o
homem da pós-modernidade não abstrai, não introjeta lei, não a conhece, ou a ignora.
Isso, pois, a ética, enquanto significante de marca, não é inscrita, já que, em seu sentido
estrito e original, é a referência aos antepassados, o respeito às origens, aos valores familiares
apreendidos durante a existência. Este Outro, uma vez fantasioso, não se alude ao ethos, já que
desprovido deste é. O contemporâneo, ser híbrido, é marcado por uma estrutura híbrida, na qual o
Outro substituto, um Outro “por procuração”, uma vez que o Outro real está oculto, é a mídia. O
discurso da mídia, do consumo, do espetáculo, capitalista, é o vigente na sociedade do híbrido, na
sociedade que privilegia a hibridização à singularidade, à diferença.
Desta forma, o sujeito contemporâneo é marcado por um campo que Olha a todos da mesma
forma, indiferente. A mídia nos olha, através de nosso Olhar97. Ou seja, a situação acaba invertida.
Se o estádio do espelho, modelo proposto por Lacan para designar os primeiros passos da
estruturação do sujeito, prevê que o Outro lance Olhar no sujeito para que ele, vendo sua imagem
refletida neste Olhar, se constitua, há uma inversão da estruturação na pós-modernidade. Isso
porque, hoje, o sujeito é que lança Olhar na mídia e a mídia reflete o que há aí.
Através deste Olhar que o sujeito projeta, ele próprio se constitui, assim como Grenouille.
Ele, sem Outro, é que procura por este. Sem campo, ele o deseja. Sem discurso, ele próprio, de
maneira falha – substituta – se constituirá, já que este Outro só o será porque o sujeito assim o quis.
Por isso, na atualidade, o sujeito é marcado pela padronização, pela igualdade, pela pseudo-
aceitação de todos. Se todos possuímos um mesmo Outro, que lança mesmos olhares, refletidos
pelos nossos, nossos ideais – nossa ética, nosso imperativo ético – são constituídos igualitariamente.
Com isso, vemos rostos, corpos, pensamentos, idéias, ações e relações com características
iguais: superficiais, hibridizadas, com discursos muito semelhantes. O Outro do sujeito pós-
moderno é um discurso falho, ligado à interesses mercantis, cujos olhares são mesclas de
desprendimento da realidade, ou seja, nem reais, nem ficcionais. Esses olhares, assim, nos
confundem, tornam o sujeito um intrínseco, um acumulado de tarefas, de horários, de 96 “O sujeito da cultura do narcisismo é tão 'socialmente determinado' quanto qualquer outro, mas tem que se acreditar livre para tudo desejar e tudo consumir. Esta fantasia de liberdade – o delírio da autonomia do homem moderno, no dizer de Lacan – tem seu preço em culpabilidade. O sujeito da cultura do narcisismo sente-se inteiramente responsável por suas escolhas e ignora que está sendo 'escolhido' pelo discurso do Outro; sente-se culpado por não ser capaz de obedecer ao imperativo do gozo desconhecendo que é impossível de se cumprir” (KEHL, 1996, p.133).97 “Desejo, imagem televisiva, imagem publicitária reencontram-se na afinidade de remeterem sempre a um objeto fadado a não poder jamais satisfazer o sujeito, ou seja, a um real que não se aprovará nunca. A imagem sob a forma de simulacro é apenas um signo feérico e, como tal, deve gerar a sua própria ordem baseada numa economia de frustração. Sua dinâmica de funcionamento consiste em não poder jamais cumprir inteiramente aquilo que promete: no caso do vídeo, o real indigitado; no caso da publicidade, o objeto anunciado, que não pode ser definitivamente satisfatório, pois deve deixar margem ao desejo ininterrupto de consumo”. (SODRÉ, 1994, p.61).
52
preenchimentos fluídos, de fraqueza no agir, de formas inacabadas, de superficialidades, de carência
e excessos, de angústia e gozo, sem interdição alguma, de fazer-por-fazer, de ter-por-ter.
Neste sentido, a poesia cabe, como reflexo de uma realidade crua, complexa e ao mesmo
não profunda, com ligações estreitas (para que o híbrido aconteça) e ao mesmo tempo quase-
rompidas, frágeis, já que o Outro é uma ficção, um holograma, um campo de significantes sem
significado, de signos imagéticos, não fáceis de decrifar, inscritos por um campo forte, já que o real
(o Outro de concepção, o materno), com medo, ou por não querer ocupar este lugar, se deixa
vencer, entrega sua tarefa, a vende sem preço, por também estar inserido no contexto estabelecido
histórico-culturalmente:
E nessa desordematiro,suspiro,lamento,tormento,em meio à desordem, cadê a saída?Nego-me,engano-me,soluço,choro,mas nessa desordem me sinto perdida.Onde está a senhoria?Cigarro, maltrato,tortura,vacilo,pois, nessa desordem, o céu é o limite.Torno-me a rebelde,grito, protesto,essa vida é um manifesto!Desdenho (é a revolta!),e o comodismo, na desordem, ecoa em meu ouvido.Sossego?Quem sabe...Menina nua está na capa,é um apelo, desespero!Loucura, embalo,notícia, perícia,um não, João, Maria,Aquiles, Jandira, oração,descrença, é sina? Errado... é a maldita desordem, não sei o final.
Ana Maria Vieira (2001)
53
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há consenso que, a partir da segunda metade do século XX, o mundo sofreu mudanças
radicais em todos os meandros sociais, especialmente no que concerne à cultura. Uma série de
rompimentos paradigmáticos, refletidos no cotidiano e no agir humano, foi provocada por sui
generis acontecimentos históricos. Com a inserção da mídia, inicialmente sinônimo dos meios de
comunicação primários, a saber o rádio, o jornal e o cinema, a sociedade passa a se configurar de
maneira muito diferente, ora refletindo o veiculado, ora servindo de fonte para aqueles se
configurarem98.
Características singulares marcam a atualidade, denominada por alguns de pós-modernidade,
cujos adjetivos mais freqüentemente mencionados são o individualismo, a fragmentação, o
consumismo e a informação. Sob a égide da televisão, o tempo contemporâneo é um período de
simulacros midiáticos que, mais que influenciar comportamentalmente, agem sobre a estruturação
do sujeito. Atuam, assim, como grande Outro, conceito introduzido por Jacques Lacan, a partir de
Hegel, para explicar o campo de inscrição de significantes aos quais o sujeito está à mercê.
Para Lacan, assim como para Hegel, em sua Dialética do Senhor e do Escravo, na qual há
uma interdependência entre senhor e escravo para ambos existirem, o sujeito está vinculado ao
Outro para que a estrutura se dê. Dessa forma, é o Outro que(m) fornecerá as ferramentas (os
signos) essenciais ao sujeito para sua constituição.
Desde o início do século XX, a cultura é determinada pelos meios de comunicação. A
contemporaneidade é produto da indústria cultural, termo empregado por Adorno e Horkheimer
para denominar o conjunto de fatores que, de certa forma, massificam e generalizam os modos de
vida sociais, que propiciam à mídia um poder de contenção do desenvolvimento da consciência das
massas. Desde então, a cultura é uma mercadoria, produzida segundo as regras industriais. A mídia,
I
F
E
Š M (O-s)Š a
b
98 “A televisão não é, portanto, como se costuma afirmar, mero “reflexo do real”, mas antes “real do reflexo”. Em termos mais claros: num espaço visualizado à distância (telecomunicações), comandado à distância (telecomandos, informática), com coordenadas de tempo e espaço alteradas (simultaneidade, instantaneidade e globalidade dos acontecimentos), com uma produção ilimitada de simulacros (reproduções ou duplicações do real), a técnica televisiva apresenta-se com um aspecto real dessa ordem de reflexos ou simulacros” (SODRÉ, 1987, p.59).
55
onde:
S: sujeito estruturado
Š: sujeito pós-moderno
I: Igreja
F: família
E: escola
M: mídia (Outro-
substituto)
a: objeto real
b: objeto simulado
ocupando o lugar da família, da Igreja e da escola, acaba por recalcar o desejo do sujeito, sua
diferença; instaura um não-objeto, objetos simulados, causas de pseudo-desejos.
O estruturalismo, neste sentido, especialmente com Foucault, faz uma crítica da atualidade,
questionando seus pressupostos e problematizando a ética e a política vigente. Ele aborda nosso
tempo a partir do que denomina de “sociedade disciplinar”. Essa sociedade, metáfora da vivência
contemporânea, caracterizada por métodos de vigilância e controle, atua a partir de um dispositivo:
os micropoderes, que, não percebidos, agem em todos os pontos relacionais.
Uma outra metáfora, essa da crise do homem moderno, pode ser encontrada em A
Metamorfose, de Kafka. Gregor Samsa, o metamorfoseado em inseto monstruoso, é o homem
condenado à rotina, aprisionado no determinado, sujeito pacato, que, através de um sintoma, tenta
sair do mundo sufocante, desse mundo apenas de trabalho, imposto pela sociedade (pós-)industrial.
É o sujeito contemporâneo: em crise existencial, inserido num contexto disciplinar, que adapta os
indivíduos aos seus interesses.
Isso, pois a pós-modernidade é um período atribulado, cujos valores são voláteis e
descartáveis. A sociedade, baseada no consumismo e no espetáculo, exalta a aparência. As relações
sociais são medidas pelo capital. As grandes companhias de entretenimento exercem poder de
manipulação sobre as massas. O diálogo foi substituído pela linguagem virtual. Os relacionamentos,
pela ficção ou pela superficialidade.
Nosso agir, assim como o conhecimento, está fragmentado, conseqüências dos movimentos
cartesiano e positivista. Simultaneamente ao progresso técnico e cientifico, assistimos ao
endeusamento da ciência, fechada em uma visão mecanicista. Com a superespecialização, advinda
da separação das ciências em disciplinas, em caixas, cada vez sabemos mais sobre menos. O
pensamento, nesse sentido, torna o homem um ser desconectado de seu meio. Resultado desse corte,
e como tentativa de solução a este impasse, há hibridização por todos os lados. A sociedade do
híbrido prima pela mistura, pela fusão, em todos os sentidos, impondo um imperativo ético como
forma de aceitação e congregação da diferença.
Na sociedade pós-moderna, calcada na hibridização, o sujeito é uma estrutura híbrida, cujo
Outro, enfraquecido, perde valor ao Outro substituto, campo ocupado pela mídia. É o que observa,
metaforicamente, em O Perfume99, obra de Patrick Süskind, que ilustra a trajetória de Jean-Baptiste
Grenouille, sujeito nascido na imundície – física e emocional. Não-desejado, sem-nome e descrito
como “sem cheiro”, Grenouille não foi inscrito no discurso social, na linguagem. Dessa forma,
busca um Outro substituto, uma vez que o real, não desejando ocupar esse lugar, o deixou em
99 A literatura e o cinema são hiper-reflexos do real. O conceito de hiper-reflexo cabe, neste estudo, visto que o reflexo, sendo reflexo de p (do real), é p ao mesmo tempo que não-p, ou seja 1/p, inverso de p:
p = (p ۸ 1) = (p ۸ ¬p) p
56
aberto.
Grenouille adapta o olfato a esta função, a esse campo. Assim, conhece o mundo através do
cheiro, recebe seus significantes a partir desse novo referencial. O olfato, logo, é seu Outro, sua
base sígnica, simbólica. A estrutura contemporânea, híbrida, é a estrutura psíquica descrita,
metaforicamente, em Grenouille, sujeito constituído através de um Outro substituto, a saber a mídia.
Com a figura paterna anulada, uma vez que o Outro, que inscreve Nome-do-Pai no sujeito, é
substituto, inumano, ficcional, o homem da pós-modernidade não abstrai, não introjeta lei. O
discurso ao qual o contemporâneo está inscrito, então, é o do consumo, do espetáculo, líquido, que
privilegia a hibridização e a congregação dos iguais à singularidade.
O tempo parece modificar com a tecnologia. Há uma aceleração, que remete a uma situação
de caos. Como parar o tempo, já que a tecnologia adquire vida própria, impossível de ser detida?
Sem agirmos para cessar nosso tempo, adaptarmos nossas necessidades a uma nova rotação, como
ficaremos? A falta de tempo para realizar tudo o que nos é incutido a fazer, frente ás necessidades
que são criadas constantemente pela onda mercantil, nos fere. Com isso, nos sentimos perdidos. Por
isso, a busca por respostas imediatas, por medicamentos, por terapias breves, por aparelhos mais
velozes. Qual a saída? Eis uma opção à sociedade que prima pelo visual e utiliza da ignorância
nesse sentido para manipular e persuadir: uma educação voltada à alfabetização das imagens, uma
educação aos signos imagéticos100.
100 Pois, como coloca Giovanni Sartori (2001), “é bastante evidente que o mundo em que vivemos já está se apoiando nos ombros da 'geração-televisiva': uma espécie recentíssima de ser humano criado pela tele-visão – diante de um televisor – antes mesmo de saber ler e escrever” (p.8). Ou seja, o sujeito está diante de um espectro imagético, cuja decodificação consciente é, sobremaneira, de maior complexidade que a dos signos lingüísticos formais. Se ele não possui as ferramentas essenciais para o entendimento destes últimos, o que dizer em relação àqueles? Sem dúvida, no mundo regido por imagens, o contemporâneo, é mais que necessária uma educação para essa realidade. Não basta decodificar letras, é preciso entender e compreender as imagens. Caso contrário, elas continuarão exercendo papel estruturador, uma vez que não passam pelo nível consciente: introjetam-se, diretamente, nos registro do Real.
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