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Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
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2017
Nossa Senhora de Guadalupe,
Patrona do Continente Americano,
nos mostra o caminho da santidade
no amor misericordioso de Deus
Côn. Dr. Eduardo Chávez
Agradeço muito a honra deste convite, de maneira especial ao Cardeal Orani João
Tempesta e a Dom Karl Josef Romer, Bispo Auxiliar Emérito, para participar deste curso para
Bispos brasileiros nesta cidade do Rio de Janeiro.
Em fevereiro de 2016, o Papa Francisco visitou o México e, de maneira especial,
esteve na insigne e Nacional Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe; foi um momento pleno
da presença de Deus. Ante a surpresa e a emoção do povo mexicano, o Santo Padre havia pedido
aos mexicanos que o deixássemos orar diante da Virgem de Guadalupe. Para todas as nações,
não somente para os mexicanos, isto foi transcendental; contemplar o Vigário de Cristo, Sucessor
de Pedro, o Papa Francisco, diante da Virgem de Guadalupe em profunda oração e contemplação
foi um momento de eternidade. Milhões de pessoas em todo o mundo, estivemos com ele nesse
instante transcendental. Estávamos compenetrados na mesma oração contemplativa, no mais
completo silêncio. Estávamos no mesmo palpitar e na mesma respiração do Santo Padre em uma
comunhão íntima e santa, testemunho da Igreja católica no mundo inteiro. Recordemos que a
Imagem de Nossa Senhora de Guadalupe é a da mulher grávida, por isso Jesus Cristo é o centro
tanto da Imagem como da mensagem. Ela é a Arca viva da Aliança, é Ela que nos guia ao
verdadeiro Deus, por quem vivemos. Confirmei que esta é a fonte de toda a santidade, respirar
do mesmo alento de Deus na oração que preenche o coração, que emociona e que motiva para
lançar-se a amar com alegria aos outros, sempre tendo como honra a possibilidade de ser parte
desta história de salvação, na qual somos chamados a colaborar e a ser parte importante dela.
O Papa Francisco esteve nesta “casita sagrada”, como São Juan Diego, exatamente
nessa humildade santificada na misericórdia de Deus. Dizia um escritor do século XVI sobre São
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Juan Diego, o humilde indígena macehua l1, eleito pela Virgem para ser seu intercessor e
mensageiro diante do primeiro Bispo do México, Frei Juan de Zumárraga: “Se escondia na
sombra para poder entregar-se sozinho à oração e estar invocando a Senhora do Céu”.2
Exatamente como estava o Papa Francisco diante dela.
Nossa Senhora de Guadalupe tem um objetivo muito preciso: Ela muito quer e muito
deseja que sejamos santos, e isto significa edificar sua “casita sagrada”, templo do Espírito Santo,
templo do verdadeiro Deus por quem vivemos; templo, lugar, família, civilização do Deus
onipotente, em cujo centro se deve manifestar, exaltar e ofertar ao único e verdadeiro Deus e
Senhor, seu amado Filho; templo que se edifica no mais profundo do coração.
Esta “casita sagrada”, assim como a mensagem e a imagem portentosa da Virgem de
Guadalupe são a mesma Igreja católica, sinal e testemunho do infinito amor misericordioso de
Deus para o mundo inteiro.
Para situar e compreender este grande sinal da misericórdia de Deus no
Acontecimento Guadalupano e a missão, tanto do leigo São Juan Diego, indígena macehual,
vidente e mensageiro da Virgem de Guadalupe, como do humilde Bispo, sacerdote consagrado
para Deus e seu povo, é importante ter em conta o contexto histórico no qual Deus intervém com
seu amor e sua misericórdia por meio de sua Mãe, Nossa Senhora de Guadalupe., irrompendo na
história humana naqueles dias 9 a 12 de dezembro de 1531 em Tepeyac, ao norte da Cidade do
México, trazendo uma mensagem que transcende tempos e espaços e, com Ela, levando todos os
seus filhos a ser protagonistas nesta história que se torna história de salvação.
Esse momento histórico foi ao mesmo tempo trágico e repleto de esperança. Em meio
à tremenda depressão indígena no tempo dramático da Conquista, a uma peste de varíola que
dizimou milhões de indígenas, e à decepção de constatar que nada havia adiantado os sacrifícios
humanos que travavam juntos na batalha cósmica para sustentar a vida; em meio à consciência
inquieta dos espanhóis da época, suas divisões, sua avareza que fazia estragos e sua soberba que
chegava ao ponto de fazê-los destruir-se a si próprios, e a inclusive tentar assassinar seu próprio
Bispo, Frei Juan de Zumárraga, a quem não restou outra saída a não ser lançar a excomunhão aos
governantes espanhóis católicos e o interdito à Cidade do México (Frei Juan de Zumárraga assim
dizia: “Sacerdotes esta Cidade do México, que esta Cidade fique sem Deus” e todos abandonaram
a orgulhosa e grande capital do México, que agora havia se tornado tão somente testemunho da
grandeza e da baixeza de seus moradores); Frei Toribio de Benavente, Motolinia3, fala da
1 Na sociedade asteca, los macehualli (ou macehualtin, no plural) eram a classe social que estava acima apenas dos escravos,
e hierarquicamente abaixo dos pīpiltin ou nobres. Prestavam serviço militar, pagavam impostos e realizavam trabalhos
coletivos. Como os escravos, também podiam possuir bens, casar-se com pessoas livres, ter filhos livres, tendo uma relativa
liberdade. Tinham direito a possuir uma porção de terra enquanto a cultivassem, e poderiam deixá-la como herança a seus
filhos, se estes igualmente nela trabalhassem. Não podiam aliená-la ou dá-la em troca de outro bem, pois na verdade eram
usufrutuários. (N.T.) 2 FERNANDO DE ALVA IXTLILXÓCHITL, Nican Motecpana, p. 305. 3 Toribio de Benavente, OFM (1482-1569), mais conhecido como Motolinia, foi um missionário franciscano que serviu como
historiador da Nova Espanha. Formo parte dos Doze Apóstolos do México. Caracterizou-se pela promoção de uma intensa
evangelização das populações da América Central. Motolinia é o nome que o mesmo adotou para assim ser nomeado pelos
habitantes do México, que significa pobre ou afligido em náhuatl. Seus escritos sobre os costumes e tradições locais depois
da Conquista do México foram tomados historicamente como documentos válidos de etnografia, contudo Montolinia tinha a
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seriedade do problema a tal ponto que os missionários pensavam abandonar o México e retornar
à Espanha. Assim, com dores de parto, com clamores de um povo que agonizava, com o pranto
daqueles que pereciam, chegou a luz da esperança, uma luz resplandecente que seria a identidade
de um novo povo chamado a ser uma verdadeira civilização do amor misericordioso de Deus.
Precisamente neste intenso e dramático momento da história se deu o encontro entre
Deus e os homens por meio de Nossa Senhora de Guadalupe, fazendo deste acontecimento um
encontro cuja mensagem está repleta de esperança, que provoca a fé para vivê-la no amor; e foi
um leigo, Juan Diego Cuauhtlatoatzin, primeiro indígena canonizado do continente americano,
o portador desta mensagem para o mundo inteiro; foi um humilde indígena macehual, que não
tinha credibilidade em seu tempo e em sua sociedade, leigo humilde, o intercessor da Mãe de
Deus, da Mãe do Onipotente, para que se cumprisse sua vontade de edificar um templo, um novo
templo, uma “casita sagrada”, lugar de encontro entre Deus e os seres humanos, um lugar de
harmonia cósmica em novo gênesis, onde Ela manifestará, exaltará, oferecerá seu máximo amor,
que é Jesus Cristo, nosso Senhor Ressuscitado. Ou, como disse o Papa Bento XVI: “O
Ressuscitado é o novo templo, o verdadeiro lugar de contato entre Deus e o homem.”4
A mensagem é para todos, porém, obviamente, só os humildes como São Juan Diego
são capazes de compreendê-la, fazê-la sua e enfeitá-la com flores e cantos de um agir cotidiano
no amor misericordioso cuja fonte é o mesmo Senhor Jesus Cristo, por meio de Maria, a corajosa
Menina do Céu que disse “sim” ao Senhor. Diz o Papa Francisco: “Diante de Deus só se pode
permanecer se se é pequeno, órfão, mendicante. O protagonista da história da salvação é o
mendigo.”5
Como todo acontecimento salvífico, o Guadalupano, embora se verifique em um
momento histórico – 9 a 12 de dezembro de 1531 –, e em um lugar determinado – no cerro de
Tepeyac –, transcende fronteiras, culturas, povos, tradições, costumes, etc.; chega até o mais
profundo de todos; além disso, leva em conta precisamente a participação do ser humano,
concreto e histórico, com seus defeitos e virtudes, com seus vazios e limitações, para que com
sua intervenção tudo transcenda. Uma das mais claras manifestações de que na verdade se trata
de um acontecimento salvífico é a conversão do coração, é o mover, em um verdadeiro
arrependimento, o ser humano no mais profundo do coração, da alma, do espírito e da razão,
como fruto deste encontro com Deus, que sempre toma a iniciativa para que sejamos santos;
tornando realidade uma vida plena e total, dando-lhe todo sentido.
A Virgem de Guadalupe nos conduz sempre a seu Filho Jesus Cristo. Ela é a “Estrela
da primeira e da nova evangelização”. Por isso, na V Conferência do Episcopado Latino-
americano e do Caribe, em Aparecida, os Bispos afirmaram:
responsabilidade de fomentar a religião católica nos povos do México e aculturá-los às práticas espanholas da época. Por isso
foi intensamente denunciado por Frei Bartolomeu de las Casas ante o Rei da Espanha Carlos V, o que suscitou um conflito
entre estes dois religiosos, especialmente pelo desacordo na aplicação das Lei Novas (ou Leis de Burgos). (N.T.) 4 PP. BENTO XVI, Jesús de Nazaret. Desde la Entrada en Jerusalén hasta la Resurrección, Eds. Planeta e Encuentro, México
2011, p. 55. 5 PP. FRANCISCO, Discurso aos Bispos do México, Catedral Metropolitana da Cidade do México, 13 de fevereiro de 2016, p.
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Maria, Mãe de Jesus Cristo e de seus discípulos, esteve muito perto de nós, nos
acolheu, cuidou de nós e de nossos trabalhos, abrigando-nos, como a Juan Diego e a
nossos povos, na dobra do seu manto, sob sua maternal proteção, que nos ensine a ser
filhos no seu Filho e a fazer o que Ele nos disser (cf. Jo 2,5). 6
Isto é o que Ela tanto deseja, uma “casita sagrada” em cujo centro está Jesus-
Eucaristia. Deus que se entrega de forma muito especial na Eucaristia, sacramento central desta
“casita sagrada”, deste templo. Os indígenas acreditavam que era preciso oferecer corações e
sangue aos “deuses” para que o universo pudesse continuar com vida, porém Nossa Senhora de
Guadalupe lhes ensina que não são nem seu sangue nem seus corações que sustentam esses
ídolos, mas é seu Filho Jesus Cristo que se entrega na Cruz em um verdadeiro sacrifício pleno e
total, só por amor; que é seu Filho amado, Jesus Cristo, o único, máximo e eterno sacrifício que
nos alimenta com seu sangue, seu coração e sua carne. Isto é a Eucaristia. Ela é a mulher
eucarística, tabernáculo imaculado onde está Jesus, o Amor. Por isso, é tão importante a palavra
do Papa Bento XVI que chega até o profundo de nosso ser: “Somente da Eucaristia brotará a
civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe, para que, além de ser o
continente da esperança, seja também o continente do amor!”7
O que há de mais importante e mais novo da reflexão é o fato de descobrir como Jesus
Cristo se encontra no ser humano, por meio de Nossa Senhora de Guadalupe, no preciso
momento das mais importantes festas que os indígenas celebravam, sob uma “liturgia
celebrativa” muito semelhante à Páscoa judaica, que Jesus leva à plenitude tornando essa
celebração em sua própria pessoa: Ele é a Páscoa, já que é o cordeiro imolado, o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo, que nos purifica com seu sangue, que se sacrifica oferecendo
sua vida na Cruz, sinal máximo do amor de Deus pelo ser humano, e é precisamente da Cruz que
Ele nos entrega seu bem mais precioso: sua própria Mãe como nossa Mãe.
Deus, antes de tudo, é um Deus que ama; é um Deus que vence as trevas da angústia
e da morte com a luz verdadeira; é um Deus que nos entrega para sempre seu belo canto eterno;
é um Deus por quem o coração humano pode palpitar ou, como também expressavam os
indígenas, ter um “coração endeusado”, ou seja, cheio de Deus, pleno de sua vida divina. O Papa
Francisco maravilhosamente se expressa:
Antes de tudo, a “Virgem Morenita” nos ensina que a única força capaz de conquistar
o coração dos homens é a ternura de Deus. Aquilo que encanta e atrai, aquilo que
abranda e vence, aquilo que abre e liberta das cadeias, não é a força dos instrumentos
ou a dureza da lei, mas a debilidade onipotente do amor divino, que é a força
irresistível de sua misericórdia.8
Desta maneira, Jesus Cristo, o Amor, passou da Paixão à Morte e posteriormente à
Ressurreição. Ele é a Páscoa, nosso Redentor e Salvador, o Senhor da Vida. Assim acontece
6 Documento de Aparecida, 1. 7 PP. BENTO XVI, Discurso Inaugural, Aparecida, 13 de maio de 2007, p. 16. 8 PP. FRANCISCO, Discurso aos Bispos do México, Catedral Metropolitana da Cidade do México, 13 de fevereiro de 2016, p.
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exatamente no mês de dezembro, no momento da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe,
Mulher de Advento, Mulher de Esperança, Mulher Apocalíptica, centrada totalmente em seu
amado Filho, uma vez que, como dissemos, Jesus Cristo, o Amor, se encontra com este ser
humano por meio dela, na forma de uma impressionante inculturação: no preciso tempo em que
os indígenas celebravam as festas mais importantes – como o mesmo missionário do século XVI,
Frei Toribio de Benavente, Motolinia, chamava a festa indígena Panquetzaliztli como uma
espécie de “Páscoa Principal” dos indígenas, onde eram oferecidos milhares de sacrifícios
humanos, uma das mais sangrentas celebrações –, que coincidia com o dia 12 de dezembro
daquele ano de 1531.
Por meio de Nossa Senhora de Guadalupe, Jesus Cristo é quem purifica tudo isto e
lhes dá plenitude, Ele, o verdadeiro Deus por quem vivemos, que é a resposta aos anseios dos
indígenas e dos homens de hoje. Jesus se apresenta como o Caminho, a Verdade e a Vida, o
máximo e pleno sacrifício na sua Cruz, Morte e Ressurreição, a Verdadeira Páscoa, que tem
como lugar uma “casita sagrada”, templo que a Virgem de Guadalupe tanto desejava e que se
localiza, transcendentalmente, no mais profundo de cada coração, no sagrado da vida de todo ser
humano.
A Virgem de Guadalupe deseja hoje a edificação da “casita sagrada” para seu
Amor-Pessoa
Nossa Senhora de Guadalupe realiza uma perfeita inculturação, tomando apenas
algumas características claras, “sementes do Verbo”, como descreve o Concílio Vaticano II, e
com isso assinala quem é o Verdadeiro Deus por quem vivemos. Nunca toma nenhum ídolo,
nenhuma idolatria, nem faz sincretismo, mas sim uma perfeita inculturação do Evangelho.
Ela vem hoje com uma verdade grande e poderosa, uma verdade maravilhosa: o Deus
verdadeiro não está afastado, mas vem em seu imaculado ventre para entregar-se ao ser humano,
um Deus que vem para dar-se no único e eterno sacrifício, simplesmente por amor. Como
dizíamos, Ela é a mulher “grávida”, portanto não vem sozinha, é Deus mesmo que vem junto
com Ela, sua Mãe, sacrário imaculado do verdadeiro Deus. Uma mulher que esperava um bebê,
na mentalidade indígena, significa que espera a síntese da energia dispersa no universo. Nossa
Senhora de Guadalupe é clara: não espera a síntese da energia dispersa no universo, é a Mãe do
Senhor do céu e da terra.
E esta mulher de espera, de advento, de esperança, chega com Aquele que se faz
próximo, Jesus, como disse o Papa Bento XVI: Ela é a Arca vivente da Aliança, portadora deste
maravilhoso presente para toda a humanidade.
Antes de tudo, a história de um indígena é como a história de todo ser humano, sedento
do amor verdadeiro; o indígena, em geral, guardava um grande desejo de encontrar a verdade de
Deus, como expressa o historiador Miguel León-Portilla:
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Consciente o pensador náhuatl 9 de que é muito difícil encontrar autênticas flores e
cantos, tem a esperança de encontrá-los um dia (…) A suprema missão do homem
náhuatl será descobrir novas flores e cantos. O simbolismo de sua arte terá de chegar
aos mais afastados recantos do universo, até o mais oculto dos rostos e dos corações,
até aproximar-se de todos os enigmas, sem excluir o enigma de Deus. Homens de ação
e pensamento se converterão, então, em cantores e poetas. O mundo será o cenário,
sempre mutável, que oferece a matéria-prima da qual criarão os símbolos igualmente
mutáveis [o ser humano será] poeta, cantor, pintor, escultor, ourives ou arquiteto,
criador do novo lugar cósmico em que vivem os símbolos portadores de um sentido
capaz de dar raiz e verdade aos homens.10
Assim, Jesus, Luz dos povos, vem ao encontro do ser humano, por meio de sua Mãe,
ao romper da aurora daquele sábado 9 de dezembro de 1531, no cerro de Tepeyac, que significa
cerro ponta ou cerro coração. Juan Diego contemplou, com assombro, o rosto da Mãe do
verdadeiro Deus por quem vivemos, que em seu virginal ventre portava a Jesus Cristo. Desta
maneira, algo maravilhoso se tornava realidade: o Deus onipotente, criador de todas as coisas –
que, para os indígenas, era tão distante e altíssimo, tão poderoso que nunca viria a seu encontro
–, agora se revelou como Deus que vinha a eles por meio de sua Mãe. Embora todo isto tenha se
dado há quase quinhentos anos, a mensagem da Virgem de Guadalupe continua atual, ou melhor,
atualíssima. Pois continua pedindo que se edifique, no coração de cada um de nós, a “casita
sagrada”, em cujo centro o próprio Senhor quer cumprir a sua promessa: “Eu estarei convosco
todos os dias até o fim do mundo”. O pensador chileno, Pe. Joaquín Alliende Luco, diz: “Esse
Deus transcendente e imanente, muito próximo e distante, nasce desta Mãe. Ela não somente fala
do “céu” e da “terra”, mas quer enraizar o céu neste pedaço de terra. Ela quer um sacramental
tangível. ” 11
Isso é algo que ultrapassa toda expectativa, que assombra tanto, que a alegria
transbordante não se pode esconder, como o Papa Bento XVI descreveu em termos atuais: “Deus
mesmo, que para nós é o estrangeiro e distante, se pôs a caminho para vir se encarregar de sua
criatura maltratada. Deus, o distante, se converte em próximo em Jesus Cristo.”12
E é por meio de um humilde leigo, indígena recém-convertido e batizado, “Juanito,
Juan Dieguito”, que representa todos os leigos de todos os séculos e locais, a quem a Virgem de
Guadalupe reveja o objetivo de sua missão: “Quero e desejo muito que aqui se construa para
mim uma ‘casita sagrada’ onde mostrarei, exaltarei manifestarei e oferecerei a Ele, que é meu
Amor-Pessoa, a Ele, que é meu olhar misericordioso, meu auxílio, minha salvação”. (Nican
Mopohua, vv. 26-28).
Portanto, é seu grande desejo a construção de uma “casita sagrada”, de um lugar
sagrado, de um templo onde Ele mostre, exalte, ofereça todo seu amor, que é Jesus Cristo, nosso
9 O náhuatl é uma das culturas indígenas mais importantes no México. Sua língua encontra-se entre as de maior número de
falantes. Reconhece-se o náhuatl como a língua mexicana. (N.T.) 10 MIGUEL LEÓN-PORTILLA, Los antiguos mexicanos, pp. 180-181. 11 JOAQUÍN ALLENDE LUCO, Para que nuestra America viva, Ed. Nueva Patris, Chile 2007, p. 75. 12 Bento XVI, Jesus de Nazaré, Ed. Planeta, México 2007, p. 242.
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Senhor, que é o lugar, a “casita sagrada” onde todos os povos terão abrigo, para formar a única
família de Deus, civilização do amor misericordioso de Deus.
É preciso recordar que na mentalidade dos indígenas, quando se construía uma cidade,
uma civilização, o templo era o que primeiro se edificava. Não se constituía nenhum povo,
nenhuma civilização, sem construir em primeiro lugar o templo. Por isso, a Virgem de Guadalupe
não somente pede que lhe edifiquem um templo material, mas, com isso, está pedindo uma nova
civilização de seu amor. E aqui se radica a fonte da santidade mesma, naquele que é o Santo,
Jesus Cristo, centro da “casita sagrada”.
Agora compreendemos melhor a grande admiração e a imensa alegria que suscita o
grande amor de Deus para com o ser humano limitado, que, mesmo sendo o Senhor do céu e da
terra, quer fazer sua morada no coração de todo ser humano; e que, além disso, ardia de desejos
de que se construísse essa “cassita sagrada”, esse “novo lugar cósmico e eterno”. É uma entrega
absoluta da parte de Deus. O júbilo foi imenso ao entender a plenitude deste fruto que tinha sua
semente e sua raiz em sua cultura e, a partir dela, para todos os seres humanos de todos os tempos
e lugares; um amor universal, como Maria mais adiante confirmou. Isto precisamente evoca o
salmo 8,2-5:
Ó Senhor, nosso Deus, como é grande
vosso nome por todo o universo!
Desdobrastes nos céus vossa glória. (…)
Contemplando estes céus que plasmastes,
e formastes com dedos de artista,
vendo a lua estrelas brilhantes,
perguntamos: ‘Senhor, que é o homem
para dele assim vos lembrardes
e o tratardes com tanto carinho?’ 13
Nossa Senhor de Guadalupe continua descrevendo a razão pela qual queria esta
“casita sagrada”. Diz Maria: “Porque, na verdade, eu tenho a honra de ser tua Mãe compassiva,
tua e de todos os homens que viveis juntos nesta terra, e também de toda as demais variadas
estirpes de homens, que me amem: os que me invoquem, os que me busquem, os que confiem em
mim. Porque assim, em verdade, escutarei seu pranto, sua tristeza, para remediar, para curar
todas suas diferentes penas, suas misérias, suas dores”. (Nican Mopohua, vv. 29-32).
São Juan Diego escutou algo que complementou e que seria por demais maravilhoso:
que Ela, a Mãe de Deus, era também sua Mãe, e que tinha, além disso, honra e imensa alegria de
sê-lo; e, assim mesmo, que era a Mãe de todos os que estavam juntos nesta terra, assim como “de
todas as demais estirpes de homens”. Ela se apresentou como Mãe de todas as nações, cujas
fronteiras não existiam; um continente que era sua terra e, mais que isso, estendia seu amor a
todas as mais variadas estirpes, ou seja, a todas as nações. Portanto, este encontro com o Amor
de Deus compreende todo ser humano, em um encontro direto, humilde e pessoal, superando
toda divisão e toda barreira; a humanidade é a grande família de Deus, por meio da humildade
13 Tradução oficial extraída da Liturgia das Horas para o Brasil. (N.T.).
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da serva, Maria. Desde este primeiro encontro, Ela sanava as feridas, era consolo, alívio, força e
esperança com um grande amor. A Mãe de Deus evangelizava na mesma forma que seu Filho
Jesus Cristo, e, mais que isso, Ele é a fonte mesma de sua evangelização: “Ensinando,
proclamando, curando” (Mt 4,23). Tudo era algo novo que superava toda expectativa para o
indígena e segue sendo para todos nós, pois foi o verdadeiro Deus, por meio de sua Mãe, quem
tomou a iniciativa de ter um profundo encontro com cada um de nós, seus amados filhos, e guiar-
nos com ternura para ser santos, destruindo nosso egoísmo e soberba, ajudando aos mais
necessitados, lutando pela justiça e paz, construindo juntos a civilização do amor. O Papa
Francisco atualiza assim esta mensagem:
Na construção desse outro santuário, o da vida, de nossas comunidades, sociedades,
culturas, ninguém pode ficar fora. Todos somos necessários, especialmente aqueles
que normalmente não contam por não estar à “altura das circunstâncias” ou por não
“contribuir com o capital necessário” para a construção das mesmas. O santuário de
Deus é a vida de seus filhos, de todos e em todas as suas condições.14
Tudo isso evoca a Palavra de Deus quando diz:
‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Deus vai morar no meio deles. Eles serão
o seu povo, e o próprio Deus estará com eles. Deus enxugará toda lágrima dos seus
olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto nem choro nem dor, porque
passou o que havia antes’. Aquele que está sentado no trono disse: (…) ‘Está feito!
Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, eu darei, de graça,
da fonte da água viva. O vencedor receberá esta herança, e eu serei seu Deus, e ele
será meu Filho’. (cf. Ap 21,3-7)15
Nossa Senhora de Guadalupe pede ao leigo São Juan Diego sua intercessão e ao
Bispo Zumárraga sua aprovação
A humilde serva de Deus pede a São Juan Diego que vá até o Bispo para que o mesmo
aprove a edificação desta “casita sagrada”. Não se faz nada sem a autoridade de quem é cabeça
da Igreja, o Bispo. Maria se submete à autoridade do Bispo, a Mãe do Senhor do céu e da terra
se submete à aprovação do Bispo da Igreja instituída por seu Amor-Pessoa, Jesus. Assim se
comunica ao leigo humilde, São Juan Diego, para que se apresente diante da autoridade e cabeça
da Igreja: “E para realizar o que pretende meu compassivo olhar misericordioso, irás ao palácio
do Bispo do México e lhe dirás como Eu te envio, para que lhe descubras como muito desejo que
aqui me faça uma casa, me erija na planície meu templo; contarás tudo quando viste e admiraste
e o que ouviste”. (Nican Mopohua, v. 33).
A Virgem de Guadalupe se submete ao Bispo, que na ocasião era Frei Juan de
Zumárraga; era necessária sua aprovação para que a vontade dela fosse feita, que não era outra
14 PP. FRANCISCO, Homilia, Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, Cidade do México, 13 de fevereiro de 2016, p. 23. 15 Tradução extraída do texto oficial, da Liturgia das Horas, vol. II.
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que não oferecer a todos sua misericórdia. Assim, o destinatário de sua mensagem era ele, a
cabeça da Igreja.
Assim como se submete à autoridade do Bispo, a Mãe de Deus se submete à
intercessão do humilde leigo a quem promete todo seu agradecimento. Diz-lhe a Mãe do céu: “E
tem por certo que muito te agradecerei e o recompensarei, e, por isso, na verdade te enriquecerei
e glorificarei; e muito merecerás que eu retribua teu cansaço, teu serviço com que vais solicitar
ao assunto para o qual te envio. Já escutaste, menor dos meus filhos, meu alento, minha palavra;
anda, faz o que esteja ao teu alcance.” (Nican Mopohua, vv. 34-37). Desta maneira tão sublime
a Senhora do céu envia São Juan Diego como seu mensageiro e intercessor, diante da cabeça da
Igreja no México, o Bispo Frei Juan de Zumárraga, para solicitar sua aprovação.16 A Virgem deu
seu alento e sua palavra, porém buscou a colaboração de um humilde leigo, que pusera todo seu
esforço, tudo que lhe estava ao alcance e de um humilde Bispo; a Virgem de Guadalupe nos
ajuda a ser portadores da verdade, porém requer também nosso esforço, o que está ao nosso
alcance realizar.
A Virgem de Guadalupe teria todo o poder de aparecer diretamente ao Bispo e
alcançar a realização de sua vontade; contudo, buscou a participação de um homem humilde,
simples e obediente, para que se cumprisse sua vontade; certamente, este é o tempo da preparação
do leigo na Igreja, na cultura da vida, este é o tempo para que o leigo “faça o que estiver ao seu
alcance” na história humana que, com a intervenção de Deus por meio de Maria, se converte em
história de salvação, onde reina a justiça e a paz.
Juan Diego se manifestou com muito boa disposição, fiel e humilde para levar a
mensagem ao sumo sacerdote do México; este foi o “sim” de Juan Diego que, em Maria, se
transformava no servidor de Deus, como se tomasse as mesmas palavras dela: “Eis aqui a
escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua Palavra” (Lc 1,38). O humilde Juan Diego se
dispõe a desempenhar sua missão, ser o mensageiro da Mãe de Deus. Para Juan Diego não seria
fácil convencer o Bispo, pois para qualquer um seria difícil crer que a Virgem lhe havia aparecido
e falado com ele.
Embora o Bispo Frei Juan de Zumárraga o tenha tratado bem, com respeito e
dignidade, contudo não acreditou no humilde leigo, o que o fez voltar frustrado ao monte, no
mesmo ponto onde a Mãe de Deus havia aparecido. O humilde indígena estava tremendamente
triste, o fracasso preenchia todo seu ser; com candura havia acreditado que o Bispo iria acreditar
imediatamente que a Virgem lhe falara. Ao chegar ao cume, encontrou consolo de contemplar
novamente a Rainha do céu, que com ternura o esperava. Como verdadeira mãe, Ela sempre nos
espera, até que cheguemos.
Juan Diego informa a Maria que havia percebido que o Bispo pensava ou que mentia
ou que estivesse fantasiando, sem querer ofender nem manifestar alguma frase contra o Bispo ou
16 Em 2 de setembro de 1530, o Papa Clemente VII havia aceitado e confirmado a nomeação de Frei Juan de Zumárraga como
Bispo da Cidade do México, razão pela qual de fato Zumárraga era o Bispo eleito e, portanto, se aprovavam suas obras de
forma retroativa; isso significa que o Santo Padre aceitava tudo que ele fizesse desde sua nomeação; portanto, no tempo das
aparições da Virgem de Guadalupe, de 9 a 12 de dezembro de 1531, Frei Juan de Zumárraga era um Bispo eleito e aprovado
pelo Papa. Zumárraga seria consagrado até 1533 em Valladolid, Espanha.
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seus serventes. Juan Diego diz com toda humildade: “Por isso, suplico, minha Senhora, minha
Rainha, minha Menina, que encarregues a algum dos estimados nobres, que seja conhecido,
respeitado, honrado, para que leve teu venerável alento, tua venerável palavra para que lhe
creiam. Porque, na verdade, sou um home do campo, sou mecapal 17, sou parihuela 18, sou apenas
cauda, sou asa; eu mesmo necessito ser conduzido, levado às costas, não é lugar para eu andar
ou parar lá onde me envias, minha Menina, menor das minhas filhas, Senhora, minha Menina”
(Nican Mopohua, vv. 54-56).
São Juan Diego, embora mostrasse uma alta educação, manifestou sempre ser um
macehual, um homem que era praticamente um instrumento de carga, ao comparar-se com
“mecapal” ou uma “parihuela”.
São Juan Diego manifestou sua convicção de ser inútil para a missão que lhe havia
encomendado. Porém, a Santíssima Virgem reafirmou sua eleição. Deus sempre escolhe os
humildes (1Cor 1,27-29) para que se veja mais claramente que é Ele quem realmente intervém.
Nossa Senhora de Guadalupe suplica a este humilde leigo que seja seu intercessor. Respondeu-
lhe a Virgem: “Escuta, tu que és o menor dos meus filhos. Tem por certo que não são escassos
meus servidores, meus mensageiros, a quem encarrego que levem meu alento, minha palavra,
para que realizem minha vontade; porém, é necessário que tu, pessoalmente, vás, rogues, que
por tua intercessão se realize, se leve a efeito meu querer, minha vontade. E muito te rogo, menor
dos meus filhos, e com rigor te mando, que outra vez vás amanhã a ver o Bispo”. (Nican
Mopohua, vv. 57-60).
Ela põe a luz da verdade entre o humilde leigo e o humilde Bispo e, apesar das
dificuldades e dos obstáculos, brilha esta luz da Verdade, Jesus Cristo, para que se edifique a
“casita sagrada” que tanto desejava a Virgem Mãe, cheia do amor misericordioso de Deus. Em
um tempo no qual a mulher não era tomada como pessoa de credibilidade, Maria se apresentou
como a discípula e missionária ativa que dá testemunho verdadeiro do amor de Deus.
Com expressões requintadamente indígenas, Juan Diego, apesar de entristecido pelo
que havia acontecido, escutou a Mãe de Deus que voltou a lhe enviar ao Bispo para que levasse
a termo sua vontade; esta insistência nos está falando da necessidade e importância da aprovação
do Bispo; Juan Diego aprende a levar a termo sua missão na Igreja com grande disponibilidade,
usando todas as suas capacidades e colaborando ao máximo para o êxito de sua missão; ele havia
sido enviado pela vontade divina e devia ser confirmado pela autoridade eclesiástica.
A Virgem de Guadalupe pede a um leigo humilde sua intercessão, e a um humilde
consagrado sacerdote, o Bispo, sua aprovação.
Depois de muitas adversidades, Juan Diego pode voltar a insistir ante o Bispo, que
agora lhe pede um sinal para poder crer; contudo, teria que passar por provas muito dolorosas,
como a fatal enfermidade de seu tio ancião Juan Bernardino.
17 Faixa de couro com duas cordas nas extremidades que se põe à frente para levar carga às costas. (N.T.). 18 Utensílio para transportar coisas entre duas pessoas, que consiste em duas varas entre as quais se sustenta uma plataforma
na qual se apoia o peso ou carga. (N.T.).
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Na madrugada da terça-feira 12 de dezembro, Juan Diego deu a volta no cerro para se
esquivar da presença da Virgem de Guadalupe, pois tinha muita pressa para buscar um sacerdote
para que preparasse seu tio ancião para morrer bem. Maria Santíssima desceu o cerro e saiu ao
encontro de Juan Diego e o interrompeu, precisamente no desvio do caminho; Ela não espera,
não se resigna; nela, Deus é quem sai ao encontro desse ser humano que desviou seu caminho
pela pena, pela angústia, pela dor e pelo sofrimento. Nela se manifesta a plena misericórdia de
Deus, ou, como disse Ela, “Ele, que é meu olhar misericordioso”. As perguntas que a Virgem
fez ao desconcertado indígena eram um sinal de ajuda. Para que ele estivesse consciente em que
ponto se encontrava, Ela queria que lhe revelasse suas angústias, suas penas, suas dores, seus
sofrimentos, pois para isso precisamente havia vindo; exatamente para isso queria a “casita
sagrada”, essa era a razão de querer a edificação do “templo”, lugar do infinito amor
misericordioso de Deus. Ela nos interrompe os passos para remediar nossa dor, para sanar nossas
feridas, para entregar-nos a seu Amor-Pessoa, que é seu próprio Filho Jesus Cristo.
Juan Diego continuou com um ar melancólico, fatalista, nada estranho em sua cultura
e muito menos nesse momento de destruição e desolação que experimentava ao seu redor. Então
lhe informou da grave enfermidade que estava levando à morte seu tio ancião, que também era
um servo da Menina do céu, e que não era um interesse egoísta que o atrasava em cumprir sua
vontade, mas que era para realizar o último desejo de um moribundo. Juan Diego expressou uma
das frases mais terríveis que denotavam um tremendo fatalismo: “porque, na realidade, para
isto nascemos, para esperar o trabalho de nossa morte” (Nican Mopohua, v. 114). Em Juan
Diego se refletia o ser humano conquistado, enfermo, abatido, humilhado, decepcionado,
descartado, afligido pelo medo e pela angústia; neste caso, pela enfermidade de seu tio que partia
seu coração. Ele havia feito de tudo para evitar o sofrimento e a morte de seu tio, que ao mesmo
tempo era sua raiz, sua cultura, sua autoridade, seu mundo; o humilde indígena tinha ido pedir
auxílio aos médicos que conhecia, mas não podia fazer absolutamente nada. A sinistra morte
pairava à sua volta e em seu coração.
Assim como ocorre em toda a sociedade atual, por mais meios de comunicação que o
homem tenha, por mais globalização que supostamente aproxima as pessoas, por mais
tecnologia, por mais riquezas materiais, por mais poder, por mais fama, continua a experimentar
em seu ser uma vida desordenada que, em muitas ocasiões, se mergulha em vícios, acabando por
ser uma vida cheia de vazio, na solidão mais espantosa, coberta de temores, angústias, tristezas.
Nada se pode fazer, não somente diante da morte, mas diante da própria vida convertida em
sepulcro, onde a angústia a corrói. É uma vida sem sentido que se arrasta nas sombras da morte;
é a cultura da morte. É muito forte o grito dos que sofrem, como expressa a Comissão para a
América Latina, com seu Presidente, o Cardeal Marc Ouellet:
Interpelam-nos o rosto sofrido dos excluídos e descartados da mesa comum, dos
imigrantes e refugiados em sua via crucis, dos meninos e anciãos abandonados, das
mulheres maltratadas, das vítimas da violência e das drogas, dos confinados em
Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
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cárceres desumanos, dos enfermos sem cuidados. Eles são os que completam em sua
carne o que falta à Paixão de Cristo.19
O Papa Francisco expressou que não devemos ser indiferentes ao sofrimento do ser
humano:
Como ensina a bela tradição guadalupana, a “Morenita” guarda os olhares daqueles
que a contemplam, reflete o rosto daqueles que a encontram. É necessário aprender
que há algo de irrepetível em cada um daqueles que nos olham procurando Deus. Cabe
a nós não nos tornarmos impermeáveis a tais olhares, mas sim guardar em nós cada
um deles, conservá-los no coração, resguardá-los.20
São Juan Diego apresentou à Virgem sua situação amarga de contemplar um ser de
sua própria carne, de seu próprio sangue, seu tio ancião, que estava à beira da morte, e que não
podia fazer nada mais para dar-lhe a vida, apenas buscar um sacerdote para que o preparasse para
bem morrer. De alguma forma, Juan Diego também apresentou como a alma de muitos que
estavam na agonia existencial, resignados ao fato de estarmos nesta terra simplesmente para
esperar a morte.
Tudo isso recorda o que o sábio rei Netzahualcóyotl dizia:
Tu, Tloque Nahuaque, Ipanemohuani, Teyocoyani, Moyocoyotzin, onde estás? Tu
estás longe de mim, não te importas comigo, me deste a vida somente para morrer. Tu
zombas de mim, ris de mim, lançaste-me a este mundo somente para morrer. Onde
estás Tloque Nahuaque…? Poderei levar a flor de minha vida aonde estás? Porque,
quando quero possuir a flor de minha vida, ela murche e morre nas mãos. Poderei
levar minha vida aonde estás? Onde estás, Tloque Nahuaque…?
Nossa Senhora de Guadalupe, mais que ninguém, sabia que em São Juan Diego,
efetivamente, não havia lugar para a mentira; na verdade, ele tinha um coração bom, cheio de
amor tanto para com seu próximo como para com Ela. Maria não se equivocou ao escolhê-lo
como seu mensageiro fiel, pleno de toda sua confiança, mas agora cegado pela dor e pelo temor.
Nossa Senhora de Guadalupe respondeu-lhe com ternura, com amor, com uma doçura
que toca o coração enchendo-o da esperança de seu Filho, que venceu a morte, precisamente o
Ressuscitado. O novo Templo é na verdade o próprio Ressuscitado. “Ao ouvir a palavra de Juan
Diego, respondeu-lhe a misericordiosa, a perfeita Virgem: “Escuta e põe no teu coração, menor
dos meus filhos, que não é nada o que te espantou e afligiu; não se perturbe o teu rosto, teu
coração; não temas esta enfermidade bem como nenhuma outra, nem coisa alguma, preocupante
ou aflitiva. Não estou aqui, eu, que tenho a honra e a ventura de ser tua Mãe? Não estás sob
minha sombra e proteção? Não sou a fonte de tua alegria? Não estás na dobra de meu manto,
envolto em meu abraço? Acaso tens necessidade de alguma outra coisa? ” (Nican Mopohua, vv.
117-119). Maria responde precisamente com aquilo pelo qual tanto deseja a construção da “casita
19 PONTIFÍCIA COMISSÃO PARA A AMÉRICA LATINA, O indispensável compromisso dos leigos na vida pública dos países
latino-americanos. Recomendações pastorais, Reunião Plenária 1-4 de março de 2016, Cidade do Vaticano, p. 18. 20 PP. FRANCISCO, Discurso aos Bispos do México, Catedral Metropolitana da Cidade do México, 13 de fevereiro de 2016, p.
16.
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sagrada”, “casa do Deus todo-poderoso”. É como se Maria dissesse: “O verdadeiro Deus não
vem apenas visitar-te, vem ficar, morar para sempre contigo”; é como se Jesus, por Maria,
cumprisse tacitamente sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo. ”
(Mt 28,20).
Nossa Senhora mostrou sua maternal misericórdia, como recorda o Papa Bento XVI
ao fazer alusão à palavra “entranhas”. Diz o Santo Padre: “O Evangelho utiliza a palavra que em
hebraico fazia referência originalmente ao seio materno e à dedicação maternal. Comoveram-se
as entranhas, no profundo da alma, ao ver o estado em que havia ficado o homem. ” 21
San Juan Diego voltou à vida; a Virgem tirou-lhe todo o temor, todo vazio, restituiu
sentido a todo seu ser, não somente colocou-o no mesmo lugar de seu Filho Jesus Cristo, mas lhe
deu a vida divina, devolveu-lhe a esperança mais plena, que o fortificou em sua fé, e lhe deu o
misericordioso amor verdadeiro que dá sentido pleno a toda sua existência. Juan Diego, pois, ao
ouvir estas terníssimas palavras, e escutar novamente que a Mãe de Deus era sua própria
venerável mão, não podia receber melhor garantia de que, de fato, nada tinha a temer, pois nada
mais protetor, amoroso e cuidados que uma mãe. Os indígenas descreviam-na assim:
A mãe virtuosa é vigilante, ligeira, atenta, solícita, preocupada; cria seus filhos, tem
cuidado constante com eles, vigia para que não lhes falte nada, presenteia-os, é como
escrava de todos em sua casa, preocupando-se com a necessidade de cada um; não se
descuida de nada que é necessário em casa.22
As outras expressões “sombra e amparo, fonte de alegria, na borda do meu manto,
envolvido pelo meu abraço”, para o mexicano, não somente significavam ternura e amor, mas
também segurança de governo. Assim o conselho de anciãos, a máxima autoridade entre os
indígenas, dizia ao rei Tlatoani, recém-eleito:
Talvez alguém busque mãe, busquem pai (proteção); também diante de ti porão seu
pranto, suas lágrimas, sua indigência, sua penúria (…) Talvez também com calma,
com alegria te tomarão e te escolherão, a ti que és sua mãe, seu amparo, porque muito
os amas, os ajudas, és seu guia, és sua senhora.23
Ela é a alegria da santidade, pois nos preenche do amor santo e misericordioso de
Deus; um amor que não se pode encerrar e ocultar, que é preciso compartilhar; Ela é a fonte de
toda alegria, pois nos dá seu amadíssimo Filho; sendo Ela nossa Mãe, somos também irmãos de
Jesus Cristo. Ela é portadora da compaixão, do consolo e da paz. A frase que Maria disse a Juan
Diego: “Que não se perturbe teu rosto, teu coração” tem também grande profundidade, já que,
na mentalidade indígena, isto significava a pessoa inteira; além disso, se enriquecia se se leva em
conta que, para eles, um professor, um sábio, é aquele que pode transformar o ser humano a partir
do mais profundo da vida. O que expressavam como “pôr um rosto humano no coração alheio”
era humanizar o coração, humanizar a vida: “Como se repete muitas vezes ‘humanizar o coração
da gente’, ‘fazer mais sábios seus rostos’, ajudar-lhes a descobrir sua verdade, quer dizer, sua
21 BENTO XVI, Jesus de Nazaré, p. 238. 22 FREI BERNARDINO DE SAHAGÚN, História Geral, Lib. X, Cap. I, Nº 2, p. 545. 23 ANÔNIMO, Testemunho da antiga palavra, p. 161.
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raiz na terra”24; ou como também expressavam: ‘fazer sábios os rostos e firmes os corações’.
Portanto, trata-se de uma verdadeira transformação, uma conversão, um constituir-se cada dia
mais como ser humano; portanto, a missão deste ser humano é ajudar o irmão para que nele reine
a paz no mesmo palpitar do ‘coração humanizado e divinizado’ com e pelo rosto de Deus. Deus,
por meio de Nossa Senhora de Guadalupe, falou ao coração, ao rosto de São Juan Diego, e
também ao nosso rosto, ao nosso coração, a todo o nosso ser, manifestando que o verdadeiro
Deus por quem vivemos, antes de tudo, é um Deus que ama, um Deus que vence as trevas da
angústia e da morte com a luz verdadeira, é um Deus que nos entrega para sempre seu belo canto
eterno, é um Deus por quem o coração humano pode palpitar, ou, como também expressavam os
indígenas, ter um “coração endeusado”, quer dizer, cheio de Deus, pleno de sua vida divina.
A Virgem Maria, Estrela da Evangelização, discípula e missionária de Jesus Cristo,
havia começado sua missão em uma nova era que Deus havia inaugurado em sua intervenção
com os homens, precisamente graças ao “sim” de Maria; e foi Juan Diego o primeiro a receber
seu consolo e sua proteção. Ela lhe entregou com imenso amor e ternura a alegria do
Ressuscitado, seu Filho, de quem Ela era portadora, e o constituiu um mensageiro no qual
depositou toda sua confiança; -preencheu seu coração com alegria, o gozo e o júbilo indescritível
da presença de um Deus que o ama. Tudo muda, como também entendem atualmente os
indígenas de Zozocolco, Veracruz, quando, descrevendo a imagem portentosa de Nossa Senhora
de Guadalupe, dizem:
É importante esta Mulher, porque está voltada para o sol, pisa a lua e se veste com as
estrelas, porém sem rosto nos diz que há alguém maior que Ela, porque está inclinada
em sinal de respeito. Nossos antepassados ofereciam corações a Deus, para que
houvesse harmonia na vida. Esta Mulher diz que, sem arrancá-los, ponhamos os
nossos corações em suas mãos, para que Ela os apresente ao verdadeiro Deus…25
Maria, ao dar-nos seu amado Filho, nos deu aquele que é a “Fonte de vida e de
Santidade”. Por isso, podemos definir Maria como Arca vivente da Aliança, Consoladora dos
aflitos, Trono da Eterna Sabedoria, Causa de nossa alegria, Tabernáculo Imaculado onde está
Jesus Cristo vivo, Mãe do Ressuscitado, Mãe da Misericórdia, Mãe do Amor, Mãe da Santidade.
Estamos envolvidos no abraço de Maria e na borda dos eu manto. Ela nos ama tanto
que nos toma entre seus braços amorosos e nos cobre com seu manto cheio de estrelas; Ela, em
sua mensagem e em sua imagem, que mais adiante se plasmará na humilde tilma26 de Juan Diego,
é que se encontra envolta no abraço e na borda da tilma de seu amado mensageiro; isto é um sinal
profundo de que Ela se faz nossa, como confirma ao humilde leigo indígena: “Não estou aqui,
eu que tenho a honra e a ventura de ser tua Mãe?” Ela é nosso sangue, nossa cor, nossa
identidade, nossa raiz; como Deus mesmo nela se faz nosso, nela é Deus quem se entrega a cada
ser humano; nela, é nosso Senhor e Salvador quem se dá. No rosto moreno de Nossa Senhora de
Guadalupe estamos todos os seus filhos, ou, como de fato os indígenas se dirigiam a seus
24 MIGUEL LEÓN-PORTILLA, Os antigos mexicanos, p. 172. 25 Tradição Indígena de Zozocolco, Veracruz, México. O texto completo e sua ratificação judicial se encontram na Sagrada
Congregação para a Causa dos Santos, Arquivo para a Causa de Canonização de Juan Diego. 26 Manta composta por tecido tradicionalmente indígena de pouca qualidade, feito a partir do cacto. (N.T.).
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pequenos filhos com toda ternura, “tu és meu sangue, minha cor, em ti está minha imagem, minha
pintura.”27 Estamos diante de um encontro pleno do amor de Deus, por meio da humilde Virgem
de Nazaré. Diante do verdadeiro amor que entrega em um coração humilde, o Papa Bento XVI
disse: “Uma coisa é clara: se manifesta uma nova universalidade baseada no fato de que, em meu
interior, já sou irmão de todo aquele que encontro e que necessita de minha ajuda.”28
Nossa Senhora de Guadalupe assegurou a São Juan Diego: “Que nenhuma outra coisa
te aflija ou te inquiete; que não te angustie a enfermidade de teu tio, porque não morrerá agora,
tem por certo que ele já sarou.” (E logo naquele mesmo momento seu tio ficou curado, como
depois se soube). E Juan Diego, quando escutou o venerável alento, a venerável palavra da
Rainha do céu, se tranquilizou bastante, e assim se apaziguou seu coração; e lhe suplicou
imediatamente que o enviasse como mensageiro a ver o Bispo, a levar-lhe seu sinal, de
comprovação, para que ele cresse.” (Nican Mopohua, vv. 120-123).
Nossa Senhora dispôs que o sinal para o Bispo fossem flores, flores enraizadas no
solo árido, salitroso, pedregoso, morto do Tepeyac e em um tempo frio. Flores! Um sinal
totalmente adequado para a mentalidade indígena, um sinal extremamente coerente, dada a
grande importância deste sinal que manifestava a verdade. Maria novamente se manifestou como
aquela que arraiga o Evangelho na cultura, no coração, de uma forma assombrosa.
Observa o chileno Pe. Joaquín Allende:
Como pedagogia divina, a Encarnação se prolonga decisivamente na vinculação do
lugar, porque é tangível, porque a maternidade da terra não se pode esquecer. Em
Guadalupe, essa maternidade tangível é a manta de Juan Diego, a tilma onde o céu
pinta a imagem mestiça de Maria, e é a “casita”, o templo de Tepeyac, que a
Santíssima Virgem exigiu como cofre do novo ícone que Ela presenteava. A
maternidade do Tepeyac estabelece a casa de encontro dos povos mestiços no ontem,
no hoje e no amanhã da América Latina e do Caribe.29
Todos contemplaram com assombro a Sagrada Imagem e escutavam cheios de
emoção o relato de como havia aparecido, bem como cada um dos sinais que expressavam em
todo este momento e em sua maravilhosa imagem. Iniciou-se uma das conversões mais
impactantes e maravilhosas, sem precedentes na história: em cerca de oito anos se converteram
aproximadamente nove milhões de pessoas, e não somente indígenas, mas também espanhóis. O
ser humano, quando se converte, como diz o Papa Bento XVI quando apresenta a conversão do
filho pródigo, “caminha para a verdade de sua existência, ‘para casa’.”30
No Documento final de Aparecida, é-nos oferecida uma maravilhosa verdade, cheia
do orvalho de Tepeyac: “[Maria], assim como deu à luz ao Salvador do mundo, trouxe o
27 Códice Florentino (textos dos informantes de Sahagún), Lib. VI, Cap. XVII, ff. 74v. e ss. 28 BENTO XVI, Jesus de Nazaré, p. 239. 29 JOAQUÍN ALLENDE LUCO, Para que nossa América viva. Maria Educadora dos Discípulos e Missionários, Ed. Nueva Patris,
S. A., p. 74. 30 BENTO XVI, Jesus de Nazaré, p. 246.
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Evangelho à nossa América. No acontecimento guadalupano, presidiu, junto ao humilde Juan
Diego, o Pentecostes que nos abriu aos dos do Espírito.”31 E proclamaram com alegria:
Todos os batizados somos chamados a ‘recomeçar a partir de Cristo’, a reconhecer e
seguir sua Presença com a mesma realidade e novidade, o mesmo poder e afeto,
persuasão e esperança, que teve seu encontro com os primeiros discípulos às margens
do Jordão há 2000 anos, e com os ‘Juan Diegos’ do Novo Mundo.32
Agora nesta “casita sagrada” chegam, dos quatro cantos do mundo, milhões de
peregrinos. E chegam para visitar e agradecer à sua Mãe em sua “casita sagrada”, templo do amor
misericordioso de Deus, templo da infinita misericórdia, templo da santidade, como disse o Papa
Bento XVI: “O Ressuscitado é o novo templo, o verdadeiro lugar de contato entre Deus e o
homem.” 33
31 Documento de Aparecida, 269. 32 Documento de Aparecida, 549. 33 PP. BENTO XVI, Jesus de Nazaré. Desde a entrada, p. 55.