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Página 1 de 5 Maria Miguel Vidreiro da Rocha Nota de Leitura: “Para uma concepção intercultural dos direitos humanos” de Boaventura de Sousa Santos (BSS) Aluna nº 20092326, Maria Miguel Vidreiro da Rocha Multiculturalismo e Educação, FLUC, 2010 “Nos tempos que correm o importante é não reduzir a realidade apenas ao que existe.” (p.59) Num primeiro ponto, BSS aborda as tensões da modernidade ocidental e os direitos humanos, referindo que estes últimos se relacionam, de alguma forma, com a esperança de um mundo melhor, como uma solução para os problemas que existem. No entanto, de acordo com BSS, isso só seria possível se a política dos direitos humanos não constituísse um só todo, mas fizesse parte integrante de um conjunto mais amplo de tentativas emancipatórias, o que implica uma política completamente distinta. BSS aponta três tensões dialécticas da modernidade ocidental entre: regulação social e emancipação social; estado e sociedade civil; e, estado-nação e globalização. A primeira tensão dialéctica entre regulação social e emancipação baseia-se na discrepância entre as experiências sociais (presente) e as expectativas sociais (futuro). Quando o contexto de expectativas é negativo, no entanto, a emancipação torna-se a repetição de uma regulação social precária e a tensão criativa entre ambas desaparece, anulando-se mutuamente. Neste sentido, a politica dos direitos humanos pode ser simultaneamente emancipatória e regulatória e, por isso, tanto está armadilhada nesta dupla crise como representa o desejo de a ultrapassar. A segunda tensão dialéctica é entre o Estado e a sociedade civil, porém um e outro são produzidos pelos mesmos processos políticos, ou seja, o Estado produz as leis mas a sociedade pode usar essas mesmas leis para pedir que se auto-regule e produza. Isto significa que, dependendo das conjunturas, passa do domínio do Estado para o da sociedade e vice-versa, sendo que a distinção entre ambos resulta das políticas modernas. Nesta tensão pode acontecer que a dialéctica seja entre os interesses e os grupos sociais, em que os primeiros se reproduzem melhor sob a forma de Estado e os segundos sob a forma de sociedade. Por sua vez, a política dos direitos humanos sofreu com a alteração das concepções nesta tensão dialéctica. Na sua primeira geração, os direitos humanos tinham como inimigo o Estado, para na segunda geração este passar a ser o seu principal garante. Este aspecto, em conjunto com a volatilidade do Estado e da sociedade, demonstra que a sequência de gerações pode ser reversível, diferente, oposta e até estagnante. Com a ascensão do neoliberalismo na década de 1980, o Estado deixou de ser fonte de soluções para os problemas

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Resumo explicativo do texto. FLUC.

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Nota de Leitura: “Para uma concepção intercultural dos direitos humanos” de Boaventura de Sousa Santos (BSS)

Aluna nº 20092326, Maria Miguel Vidreiro da Rocha Multiculturalismo e Educação, FLUC, 2010

“Nos tempos que correm o importante é não reduzir a realidade apenas ao que existe.” (p.59)

Num primeiro ponto, BSS aborda as tensões da modernidade ocidental e os direitos humanos, referindo que estes últimos se relacionam, de alguma forma, com a esperança de um mundo melhor, como uma solução para os problemas que existem. No entanto, de acordo com BSS, isso só seria possível se a política dos direitos humanos não constituísse um só todo, mas fizesse parte integrante de um conjunto mais amplo de tentativas emancipatórias, o que implica uma política completamente distinta.

BSS aponta três tensões dialécticas da modernidade ocidental entre: regulação social e emancipação social; estado e sociedade civil; e, estado-nação e globalização. A primeira tensão dialéctica – entre regulação social e emancipação – baseia-se na discrepância entre as experiências sociais (presente) e as expectativas sociais (futuro). Quando o contexto de expectativas é negativo, no entanto, a emancipação torna-se a repetição de uma regulação social precária e a tensão criativa entre ambas desaparece, anulando-se mutuamente. Neste sentido, a politica dos direitos humanos pode ser simultaneamente emancipatória e regulatória e, por isso, tanto está armadilhada nesta dupla crise como representa o desejo de a ultrapassar.

A segunda tensão dialéctica é entre o Estado e a sociedade civil, porém um e outro são produzidos pelos mesmos processos políticos, ou seja, o Estado produz as leis mas a sociedade pode usar essas mesmas leis para pedir que se auto-regule e produza. Isto significa que, dependendo das conjunturas, passa do domínio do Estado para o da sociedade e vice-versa, sendo que a distinção entre ambos resulta das políticas modernas. Nesta tensão pode acontecer que a dialéctica seja entre os interesses e os grupos sociais, em que os primeiros se reproduzem melhor sob a forma de Estado e os segundos sob a forma de sociedade. Por sua vez, a política dos direitos humanos sofreu com a alteração das concepções nesta tensão dialéctica. Na sua primeira geração, os direitos humanos tinham como inimigo o Estado, para na segunda geração este passar a ser o seu principal garante. Este aspecto, em conjunto com a volatilidade do Estado e da sociedade, demonstra que a sequência de gerações pode ser reversível, diferente, oposta e até estagnante. Com a ascensão do neoliberalismo na década de 1980, o Estado deixou de ser fonte de soluções para os problemas

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e a sociedade deixou de ser o seu espelho para passar a ser o seu oposto. As duas versões das políticas dos direitos humanos (hegemónica e contra-hegemónica) ainda não se recuperaram desta rápida viragem de concepções.

Na terceira tensão dialéctica a dinâmica situa-se entre o Estado-nação e a globalização. No modelo actual, os Estados-nação coexistem num sistema inter-estatal, relativamente anárquico, no qual o direito internacional não é impositivo e onde o internacionalismo operário é mais aspiração do que realidade. Com a globalização e a consequente erosão dos Estados-nação levanta-se a questão se a regulação e a emancipação devam passar para o nível global. Os direitos humanos fragmentaram-se a nível económico e social com esta fragilização do Estado-nação, mas não deixam de aspirar a um reconhecimento mundial, sendo pilar fundamental da política pós-nacional. Paralelamente, por serem os que deveriam garantir os direitos humanos que em última análise os violam, as ONG contribuem fundamentalmente para novas concepções dos direitos humanos. Uma particularidade pertinente da política dos direitos humanos é que esta se apresenta como bastante cultural e até religiosa e, uma vez que é precisamente no campo da cultura e da religião que se manifestam acentuadamente as diferenças, como poderá a política dos direitos humanos ser simultaneamente cultural e global? Para BSS, os direitos humanos devem ser a energia e a linguagem de todas as esferas públicas – locais, nacionais e transnacionais -, actuando em rede para garantir novas e formas mais intensas de inclusão social.

No ponto seguinte, BSS debruça-se sobre o fenómeno das globalizações que constituem conjuntos diferenciados de relações sociais e que implicam sempre conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. A definição proposta é: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival. No seu ponto de vista existem duas vertentes de globalismo, cada uma com duas formas possíveis. As vertentes são a hegemónica/neoliberal e a contra-hegemónica. As duas formas de produção de globalização da vertente hegemónica são o localismo globalizado e o globalismo localizado. Por seu lado, as duas formas da vertente contra-hegemónica são o cosmopolitismo insurgente e subalterno, e o património comum da Humanidade.

O localismo globalizado é o processo pelo qual determinado fenómeno, entidade, condição ou conceito local é globalizado com sucesso, sendo o vencedor, dado que tem capacidade de ditar os termos de integração, competição/negociação e da inclusão/exclusão. O globalismo localizado consiste no impacto específico nas condições locais das práticas e imperativos transnacionais que emergem dos localismos globalizados. Estes processos obrigam as condições locais a se desintegrar, marginalizar, excluir, desestruturar e reestruturar sob a forma de inclusão subalterna. Estas duas formas de globalização hegemónica operam em conjunto e

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constituem a versão mais recente do capitalismo e imperialismo globais. Basicamente, no sistema-mundo uns especializam-se em dominar e outros escolhem os dominadores.

O cosmopolitismo subalterno e insurgente é a resistência transnacionalmente organizada contra a globalização hegemónica. São os grupos oprimidos que organizam a resistência e consolidam as coligações na mesma medida da opressão com o objectivo de maximizar o seu potencial emancipativo. Esta concepção de cosmopolitismo distancia-se da de Marx, pois inclui todo o tipo de exclusão social, não implica uniformização, não são regidos por uma teoria geral e dão um peso equivalente à igualdade e à diferença. A sua força e fraqueza reside na sua abertura, uma vez que é instável, problemático e exige uma grande capacidade de auto-reflexão para evitar que se torne em mais um localismo globalizado. O êxito do cosmopolitismo subalterno e insurgente confere um cariz provisório, parcial e reversível à globalização. Naturalmente, as políticas dos direitos humanos são uma componente importante desta luta entre globalizações hegemónicas e contra-hegemónicas.

Também no domínio do património comum da Humanidade se jogam concepções rivais de direitos humanos. Trata-se de lutas transnacionais por valores ou recursos tão globais quanto o próprio planeta que deveriam ser geridos por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.

Uma vez que os direitos humanos podem ser concebidos nas formas de globalização hegemónica e contra-hegemónica, o objectivo de BSS consiste em discriminar afinal em que condições culturais os Direitos Humanos constituem uma forma de globalização contra-hegemónica. Uma dessas condições é a sua reconceptualização como interculturais. Para isso, o multiculturalismo emancipatório é a pré-condição de uma sã e equilibrada relação entre a competência global e a legitimidade local. Portanto, mais importante que determinar a origem e a validade dos Direitos Humanos é o esclarecimento daquilo que permitirá uma boa relação: a articulação entre uma identificação cultural que une e a energia mobilizadora que concretiza e efectiva a vigência dos direitos humanos. Na verdade, apenas um aspecto é transversal a todas as culturas no entender de BSS e esse é a relatividade de todas as culturas, expressas na sua incompletude e diversidade. Assim, a universalidade dos direitos humanos, concepção aliás ocidental, deixa de ser legítima, especialmente porque estes foram disfarce de atrocidades indescritíveis por estarem ao serviço dos interesses económicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemónicos.

Para que a política dos direitos humanos seja contra-hegemónica são precisas cinco premissas: a superação do debate sobre o universalismo e o relativismo cultural; a identificação de preocupações isomórficas entre diferentes culturas; o aumento da consciência de incompletude cultural; a definição de qual das versões propõe um círculo de reciprocidade mais amplo; e, finalmente, saber distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim de poder travar ambas as lutas eficazmente.

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Para que estas cinco premissas sejam exequíveis é necessário que haja um diálogo consciente de todos estes dinamismos e que estabeleça eficazmente ligações entre as culturas através dos seus lugares comuns: uma hermenêutica diatópica. A compreensão é um processo difícil que implica a necessidade de explicar e justificar o que para uma cultura é tido como óbvio para, assim, possibilitar uma identificação profunda que, por sua vez, favorecerá ao máximo a consciência de incompletude mútua. Esta incompletude pode ser identificação local como também inteligibilidade translocal. Será, portanto, um diálogo assente nas duas culturas e, por isso, diatópico. BSS apresenta como exemplo de exercício de hermenêutica diatópica os direitos humanos na cultura ocidental, o dharma na cultura hindu e a umma na cultura islâmica. Através da hermenêutica diatópica percebemos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste nas suas dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, como também percebemos que a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica reside na ausência do reconhecimento de que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível.

A hermenêutica diatópica deve ajudar a encontrar espaços comuns (nas raízes/matrizes de uma cultura), especialmente para identificar impulsos emancipatórios na própria cultura que fomente a sua adesão. É um exercício dignificante para cada cultura, pois o facto do impulso ou a argumentação não ser originalmente estrangeira exclui certa necessidade de rejeitar os fundamentos da sua própria cultura e identidade, ao mesmo tempo que, indirectamente, radica prováveis sentimentos de inferioridade/superioridade. Quer isto dizer: é muito importante que os impulsos partam de dentro da própria cultura, desimpedindo a adesão; tem de ser praticada pelo menos entre duas culturas que saem mutuamente enriquecidas pelo convite à abertura e auto-revisão; pressupõe uma produção de conhecimento colectiva, participativa, interactiva, intersubjectiva e reticular consciente da necessidade de relativizar as zonas de compreensão difícil em nome dos interesses comuns na luta conta a injustiça social; e, por fim, privilegia o conhecimento-emancipação (do colonialismo à solidariedade) em detrimento do conhecimento-regulação (do caos à ordem).

O conhecimento do empobrecimento recíproco, ainda que assimétrico, da vítima e do opressor é a condição básica para um diálogo intercultural e este deve partir da dupla constatação de que as culturas foram sempre interculturais, e de que as trocas e interpenetrações entre elas foram sempre muito desiguais e quase sempre hostis ao diálogo cosmopolita. Neste sentido, as dificuldades da reconstrução dos direitos humanos que se apresentam são as seguintes: simultaneidade temporal; a concepção das culturas como entidades incompletas, correndo o risco de não ser forte o suficiente para evitar a descaracterização e dissolução. Na falta do diálogo intercultural corre-se o risco do fechamento cultural ou da conquista cultural, ao que BSS sugere a solução de se elevarem as exigências do diálogo intercultural.

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Posteriormente às dificuldades, BSS expõe cinco condições para uma reconstrução intercultural dos direitos humanos, começando pela transição da completude para a incompletude. Através das desilusões e descontentamentos para com a própria cultura, ou seja, com a experiência da própria incompletude, surge uma certa curiosidade e uma pré-compreensão da existência do outro que conduz ao impulso individual ou colectivo para o diálogo intercultural ancorado na hermenêutica diatópica que, por seu turno, resultará no reconhecimento da própria incompletude tal como ela é vista pela outra cultura e, simultaneamente, faz brotar a consciência da grande diversidade interna. A segunda condição é a transição das versões culturais mais estreitas às versões amplas, de forma a abranger o mais possível e a excluir o menos possível. A terceira condição é a transição de tempos unilaterais a tempos partilhados. Não há como obrigar uma cultura dialogar interculturalmente, assim como só ela pode decidir quando terminar ou suspender o diálogo, sendo a reversibilidade crucial para o processo da hermenêutica diatópica. A quarta condição é a transição de parceiros e temas unilateralmente impostos a parceiros e temas escolhidos por mútuo acordo, enraizando-se nas preocupações isomórficas, independentemente de os motivos serem diferentes ou não. A quinta condição é a transição da igualdade ou diferença à igualdade e diferença, garantindo igualdade quando se é inferiorizado e diferença quando se é descaracterizado.

A nova política de direitos humanos tem de, segundo BSS, buscar os seus fundamentos, as suas normatividades originárias que foram eficazmente suprimidas pela modernidade capitalista. São denominados de ur-direitos pelo autor e são seis. O primeiro abordado é o direito ao conhecimento (outro) – pré-condição epistemológica para quebrar o ciclo vicioso de produção recíproca de vítimas e vitimizadores. O segundo é o direito a julgar o capitalismo ou o direito ao mútuo cuidado, seguido do direito à transformação do direito à propriedade que deve confrontar abertamente o individualismo possessivo da concepção liberal de propriedade. O direito de ter direitos a quem não tem deveres, nomeadamente a natureza e as gerações futuras, de forma a serem protegidos da sua exploração económica enquanto objectos. O direito à auto-determinação democrática enquanto direito colectivo e individual e, em último, o direito à organização e participação na criação dos direitos que é a base para o funcionamento dos outros direitos. É a negação destes direitos humanos que legitima os direitos humanos hegemónicos e os incapacita para imaginar o futuro além do capitalismo.

Para terminar e concluir, as políticas emancipatórias dos direitos humanos devem basear-se em duas reconstruções radicais: a reconstrução intercultural por meio da tradução da hermenêutica diatópica, através da qual se encontra o caminho para uma política cosmopolita insurgente e a reconstrução pós-imperial dos direitos humanos centrada na desconstrução dos actos massivos de supressão constitutiva (ur-direitos), através dos quais se transforma os direitos dos vencedores em direitos universais.