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NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO CONTEMPORÂNEO DONALD A. HAGNER Baseado na Edição Contemporânea de Almeida

Novo Comentário Bíblico Contemporâneo - Hebreus

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NOVOCOMENTÁRIO BÍBLICO

CONTEMPORÂNEO

DONALD A. HAGNER

Baseado na Edição Contemporânea de Almeida

NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO

CONTEMPORÂNEO

HEBREUS

DONALD A. HAGNEREditor do Novo Testamento

W. Ward Gasque

Digitalização:Emanuence Digital

Edição Geral: Escriba Digital

jE D fT O R A MV idaDedicados à Excelência

ISBN 85-7367-076-2

Categoria: Comentário

Este livro foi publicado em inglês com o título Hebrews, por Hendrickson Publishers

© 1993, 1990 por Donald A. Hagner © 1997 por Editora Vida

Traduzido pelo Rev. Oswaldo Ramos

Todos os direitos reservados na língua portuguesa por Editora Vida, Rua Júlio de Castilho, 280 03059-000 São Paulo, SP — Telefax: (011) 292-8677

As citações bíblicas foram extraídas da Edição Contemporânea da Tradução de João Ferreira de Almeida, publicada pela Editora Vida, salvo quando outra fonte for indicada.

Capa: John Coté

Impresso no Brasil, na Imprensa da Fé

CONTEÚDO

Prefácio do E d ito r................................................................................................ 5A breviaturas......................................................................................................... 7In tro d u ção ........................................................................................................... 11

1. A Revelação Definitiva de Deus (Hebreus 1:1-4)..................... 312. Cristo É Superior aos Anjos em Sua Divindade

(Hebreus 1:5-14)............................................................................... 403. Um Chamado à Fidelidade (Hebreus 2 :1 -4 )...............................514. Cristo É Superior aos Anjos a despeito de Sua

Humanidade (Hebreus 2 :5 -9 )......................................................... 555. Os Benefícios da Natureza Humana de Cristo

(Hebreus 2:10-18)............................................................................. 626. Cristo É Superior a Moisés (Hebreus 3 :1-6)...............................727. Uma Exortação Inspirada pelo Êxodo (Hebreus 3 :7 -1 9 )........778. A Promessa Remanescente de Descanso (Hebreus 4:1-13) .. 849. O Supremo Sacerdócio de Jesus (Hebreus 4:14 - 15:10)........94

10. A Importância da M aturidade Cristã (Hebreus 5:11 - 6 :3). 10311. A Seriedade da Apostasia (Hebreus 6 :4-12).............................10712. O Caráter Imutável do Propósito de Deus

(Hebreus 6:13-20)........................................................................... 11513. O Enigma de Melquisedeque e Sua Ordem Sacerdotal

(Hebreus 7:1-14)..............................................................................12014. A Legitimidade e Superioridade do Sacerdócio de Cristo

(Hebreus 7:15-28)........................................................................... 1281 5 .0 verdadeiro Sumo Sacerdote e Seu Ministério

(Hebreus 8:1-6)................................................................................ 13716. A Promessa de uma Nova Aliança (Hebreus 8:7-13)............. 14417. Descrição do Ritual do Antigo Testamento

(Hebreus 9:1-10)..............................................................................14918. A Natureza Definitiva da Obra de Cristo

(Hebreus 9:11-14)............................................................................15819. O Sacrifício de Cristo: O Fundamento da Nova Aliança

(Hebreus 9:15-22)............................................................................165

4 Conteúdo

20. Cristo e Sua Obra: a Solução Final do Pecado(Hebreus 9:23-28)................................................................................... 171

21. A Ineficácia da Lei (Hebreus 10:1-4).................................................. 17622. O Antigo e o Novo em Salmos 40:6-8 (Hebreus 10:5-10)............. 17923. A Oferta Perfeita e o Cumprimento de Jeremias 31:31-34

(Hebreus 10:11-18).................................................................................. 18424. O Fundamento da Fidelidade (Hebreus 10:19-25)...............................18825. O Pecado da Apostasia e a Realidade do Julgamento

(Hebreus 10:26-31)...................................................................................19526. Uma Exortação à Perseverança e à Fidelidade

(Hebreus 10:32-39)..................................................................................20027. A Natureza e a Importância da Fé (Hebreus 1 1 :1 -3 )......................... 20628. A Fé Demonstrada por Abel, Enoque e Noé (Hebreus 11:4-7)... 21129. A Fé Demonstrada por Abraão e Sara (Hebreus 11:8-12)..............21630. A N atureza Transcendental da Esperança (Hebreus 11:13-16) ... 22131. Abraão Oferece Isaque; a Fé em Isaque, Jacó e José

(Hebreus 11:17-22).................................................................................. 22432. A Fé Demonstrada por M oisés e pelos Israelitas

(Hebreus 11:23-29).................................................................................. 22833. A Fé Demonstrada por Raabe e Inúmeros Outros Crentes

(Hebreus 11:30-40).................................................................................. 23334. Olhando para Jesus, o Padrão Perfeito (Hebreus 12:1-3)...............24035. O Propósito da Disciplina Punitiva (Hebreus 12:4-11)...................24536. O Desafio à Santidade e à Fidelidade (Hebreus 12 :12-17)........... 25037. A Glória da Posição Atual do Cristão (Hebreus 12:18-24)............25538. Um a Advertência Final a Respeito da Rejeição

(Hebreus 12:25-29).................................................................................. 26139. O Chamado para uma Vida Ética (Hebreus 1 3 :1 -4 )........................26540. A Segurança do Crente (Hebreus 13:5-6).......................................... 2694 1 .0 Chamado para a Fidelidade e uma Advertência

Contra os Falsos Ensinos (Hebreus 13:7-9)....................................... 27142. O Sacrifício de Cristo e os Sacrifícios Espirituais dos Cristãos

(Hebreus 13:10-16)................................................................................. 27543. A Obediência aos Guias da Igrejas e um Pedido de Oração

(Hebreus 13:17-19)..................................................................................28044. Uma Oração Final (Hebreus 13:20-21).............................................. 28345. Posfácio e Bênção Final (Hebreus 13:22-25)................................... 286

Prefácio do Editor

Embora não apareça nas listas comuns de bestsellers, a Bíblia continua a ser mais vendida que qualquer outro livro. E, apesar do crescente secularismo ocidental, não há sinais de que o interesse pela mensagem da Palavra de Deus esteja esfriando. Muito pelo contrário, um número cada vez maior de pessoas está examinando suas páginas em busca de luz e orientação, em meio à crescente complexidade da vida moderna.

Esse interesse sempre renovado pelas Escrituras, encontrado tanto dentro como fora da Igreja, é fato notável entre os povos da Ásia e da África, bem como da Europa e das Américas. N a verdade, à medida que nos afastamos de países tradicionalmente cristãos, parece aumentar o interesse pela Bíblia. Pessoas ligadas às igrejas tradicionais católicas e protestantes manifestam, pela Palavra, o mesmo anseio presente em igrejas e comunidades evangélicas mais recentes.

Por isso, ao oferecer esta nova série de comentários, desejamos estimular e fortalecer esse movimento mundial de estudo da Bíblia pelos leigos. Conquanto esperamos que pastores e mestres considerem esses volumes muito úteis à compreensão e à comunicação da Palavra de Deus, não os editamos primordialmente para esses profissionais. Nosso objetivo é forne­cer, a todos os leitores das Escrituras, guias confiáveis que os ajudem a melhor compreender os livros da Bíblia, guias que representem o que há de melhor nas pesquisas contemporâneas, apresentados de maneira que não exijam preparo teológico formal para ser entendidos.

É convicção do editor, bem como dos autores, que a Bíblia pertence ao povo, e não meramente aos acadêmicos. A mensagem da Bíblia é tão importante que de modo algum pode ficar acorrentada a artigos especializados, presa a ensaios e monografias herméticos, redigidos apenas para os especia­listas em teologia. Embora a pesquisa rigorosa, esmerada, tenha seu lugar no serviço de Cristo, todos quantos participam do ministério do ensino, na igreja, são responsáveis por tomar acessíveis à grande comunidade cristã os resulta­dos dessa pesquisa. Por isso, os especialistas que se unem para apresentar esta série de comentários o fazem tendo em mente esses objetivos superiores.

Em português, há diversas traduções e edições contemporâneas do Livro sagrado. N a maioria são excelentes e devem ter a preferência do leitor no que concerne à compreensão e a beleza literária do texto.

6 Prefácio do Editor

A Bíblia de Jerusalém, baseada na obra de eruditos católicos franceses, vividamente traduzida para o português, talvez seja a mais literária das traduções recentes. A Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH), da Sociedade Bíblica do Brasil, é a tradução mais acessível às pessoas pouco familiari­zadas com a tradição cristã. Há, ainda, em português, a Almeida Revista e Atualizada e a Edição Revisada de Almeida, além de outras.

Todas essas versões são. à sua própria maneira, muito boas, devendo ser consultadas com proveito pelo estudante sério das Escrituras. E possível que a maioria dos estudantes deseje possuir diversas versões para consulta, objetivando especialmente a clareza de compreensão — embora se deva salientar que de modo algum qualquer delas esteja isenta de falhas humanas, não devendo ser considerada a última palavra sobre qualquer questão. De outra forma, não haveria a menor necessidade de uma série de comentários como esta!

Esta série de livros, por ser tradução da língua inglesa, faz referências à NEB, que constitui verdadeiro monumento à pesquisa modema protes­tante, e a outras versões em inglês, entre elas a RS V, a N AB e a conceituada NVI. (E s ta já se acha parcialmente disponível em português. O Antigo Testamento ainda está sendo elaborado e deve em breve vir a lume.)

Como texto bíblico básico desta série decidimos usar a ECA, por ser essa edição a que está-se tornando padrão, de modo especial nos seminá­rios e institutos bíblicos. Por representar, no momento, o que há de melhor na literatura evangélica em língua portuguesa, ela está aos poucos se tomando a mais utilizada por pastores e outros estudiosos das Escrituras.

Cada volume desta série contém um capítulo introdutório que expõe em minúcias o intuito geral do livro, os temas mais importantes e outras informações úteis. Depois, cada seção do livro é elucidada como um todo e acompanhada de notas sobre aqueles pontos do texto que necessitam de maior esclarecimento ou de explanação mais minuciosa.

Oferecemos esta nova série aos leitores com uma oração: que ela se tome instrumento de renovação autêntica e de crescimento entre a comu­nidade cristã no mundo inteiro, bem como meio de enaltecer a fé das pessoas que viveram nos tempos bíblicos e das que procuram viver, em nossos dias, segundo a Bíblia.

Editora Vida

Abreviaturas

Ang'ThR A n g lica n T h eo lo g ica l R ev iew (R esen h a T eo ló g icaAnglicana)

Am. Josefo, Antiquities (Antigüidades)ASV A m erican S tan d ard V ersio n (V ersão P ad rão

Americana)AT Antigo TestamentoBAGD Bauer, A rndt, G ingrich e D anker, A G reek-E nglish

L ex ico n o f the N eu T esta m en t a n d O th er E a r ly Christian Literature (1979) — Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento e Outras Literaturas Cristãs Primitivas

Barclay The New Testament: A New Translation (1969) (O NovoTestamento: Uma Nova Tradução)

B ih lhco Biblical Theology ■ - Teologia Bíblica B , Bíblia de JerusalémCB( ) Catholic Biblical Quarterly (Publicação Trimestral Bíblica

Católica)C U Calvin Theological Journal (Periódico Teológico de

Calvino)1J( "i A. Richardson, ed.. Dictionary o f Christian Theology ( 1969)

- Dicionário de Teologia Cnstã l'.BT J. B. Bauer, ed. E ncyclopedia o f B iblical Theology

(reimpressão de Sacramentum Verbi, 1970)EC A Edição Contemporânea de Almeida (Ed. Vida)EJ C. Roth, ed., Encyclopedia Judaica (1971)EQ Evangelical Quarterly — Publicação Tnmestral EvangélicaExp I Expository Times — Expositor dos TemposGNB Good News Bible (Bíblia das Boas Novas)HTR Harvard Theological Review — Resenha Teológica de

Harvard Interp InterpretaçãoJBL Journal o f Biblical Literature — Periódico de Literatura BíblicaJE I. S inger, ed., Jew ish E ncyclo p ed ia (1901-06) —

Enciclopédia Judaica

JETS

JSJ

JSN T

JTS

KJVLXX

MoffattNASB

NCBCS

NDITNT

8

NEBNovTNTNTL

NTS

NVIPhillips

RefThRRestQ

Journal o f the Evangelical Theological Society (Periódico da Sociedade Teológica Evangélica)Journal fo r the Study o f Judaism (Periódico para o Estudo do Judaísmo)Journal fo r the Study o f the New Testament (Periódico para o Estudo do Novo Testamento)Journal o f Theological Studies (Periódico de Estudos Teológicos)King James Version (Versão Autorizada)S ep tuag in ta (T rad u ção g rega p ré -c ris tã do A ntigo Testamento)The New Testament: A New Translation (1922)New Am erican S tandard B ible (Nova B íblia Padrão Americana)New Century Bible Commentary Series (Série Novo Século de Comentário da BíbliaC. Brown, ed. Novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, trad. Gordon Chown. São Paulo, Vida Nova, 1983New English Bible (Nova Bíblia Inglesa)Novum Testamentum Novo TestamentoNew T estam en t L ib ra ry (B ib lio tec a do N ovo Testamento)New Testam ent S tu d ies (N ovos E studos no N ovo Testamento)Nova Versão Internacional (M V )The New Testament in Modern English (O Novo Testamento em Ingles Modemo) (1959). Há em português, publicado pelas Edições Vida Nova, em 1994, um fragmento dessa tradução de Phillips correspondente às cartas do Novo Tes­tamento. O livro recebeu o nome: Cartas para hoje: uma paráfrase das cartas do Novo Testamento, de tradução de Márcio Loureiro Redondo.Reformed Theological ReviewR estoration Q uarterly (P u b licação T rim estra l da

Abreviaturas

Abreviaturas 9

SBLMS

Strack-Billerbeck

StudThTBTCGNT

TDNT

TIUBSVoxEvWarWPCS\vr.i

z n w

ZPEB

Society o f Biblical Literature Monograph Series (Série de Monografias da Sociedade Literária Bíblica)

K om m entar zum N euen T estam en t aus T a lm u d nd M id ra sh (1 9 2 2 -3 8 ) — C o m en tá rio do N ovoTestamento, segundo o Talmude e o Midras Studia Theologica (Estudos Teológicos)Tyndale Bulletin (Boletim Tyndale), Cambridge, Inglaterra B. Metzger, A textual commentary on the Greek New Testament (UBS, 1971)G. Kittel e G. Friedrich, eds., Theological Dictionary o f the New Testament, trad. G W. Bromiley (1964-72)Tradução InglesaUnited Bible Societies (Sociedades Bíblicas Unidas)Vox Evangélica (Voz Evangélica)Josefo, (juerrasjudaicas Westminster Pelican Commentary Series Westminster Theological .Journal (Periódico Teológico de Westminster)Zeitschrift fur die Neutestamentliche Wissenschaft M C . Tenney, ed., Zondenan Pictorial Encyclopedia o f the Bible (1975) — Encilopedia Zondervan Ilustrada da Bíblia

Introdução

Conquanto Hebreus seja um livro singular dentre todos os escritos do Novo Testamento, na verdade sabemos pouca coisa a respeito de sua origem, seu autor e seus primeiros leitores. A designação tradicional e antiga desse I i v t o como "Epístola do Apóstolo Paulo aos Hebreus”, que se encontra, por exemplo, na página de abertura da carta na Edição Corrigida e Revisada, Fiel ao Texto Original, da Sociedade Bíblica Trinitariana, não faz parte do documento original: é mera opinião da igreja primitiva que, inicialmente, expressou-se na igreja Oriental (Alexandria), em fins do segundo século, e na igreja Ocidental dois séculos mais tarde. Acrescente-se que tal atribuição de autoria teria sido inferida com base no próprio documento, por força dos especialistas da atualidade, não tendo sido extraída de nenhuma tradição independente a respeito de suas origens. Por conseguinte, cabe-nos extrair conclusões próprias a partir do conteúdo real de Hebreus.

No entanto, escrevendo sobre as circunstâncias bem conhecidas dele e de seus leitores, o autor presume muita coisa que gostaríamos de saber Como muitas vezes acontece na interpretação de outras cartas do NT. temos a impressão de estar ouvindo só um lado de uma conversa por telefone Temos de suprir mentalmente o que a outra pessoa teria dito, a fim de tomar inteligível a parte da conversa que pudemos ouvir. Precisamos admitir, então, que as conclusões a que chegarmos a respeito dos leitores da cana. de seu autor e das circunstâncias que deram origem a esse livro extraordinario só podem ser exploratórias, hipotéticas, nunca definitivas. A verdade dessas conclusões não se baseia em declarações particulares do livro, examinadas isoladamente da obra. nem deve ser apreciada apenas por tais declarações. As conclusões mais convincentes são as que explicam melhor o documento todo.

Os destinatáriosÉ claro que Hebreus não se inicia com a identificação do autor, nem das

pessoas a quem a carta foi endereçada, como ocorre na maioria das cartas do NT. Tampouco Hebreus se inicia à feição de uma carta, a despeito de sua conclusão tipicamente epistolar. Além disso, em parte alguma dessa carta o autor se refere aos primeiros leitores como hphrpn« nu htHpiu n

12 Introdução

título “Aos Hebreus” surgiu pela primeira vez no final do segundo século (com Clemente de Alexandria e Tertuliano). Embora se encontre também no manuscrito mais antigo das cartas paulinas (/>l6), mais ou menos da mesma época, talvez só reflita uma opinião em surgimento.

No entanto, é provável que a igreja primitiva estivesse certa ao entender que os primeiros leitores dessa carta tivessem sido judeus cristãos. A grande maioria dos estudiosos da atualidade concorda com essa conclusão, com base na análise do conteúdo do livro. O AT é de importância vital: é mencionado e exposto com freqüência em forma de "‘midras",* e a argumentação da carta depende em grande parte do uso do AT. Falando de modo mais especítico: a ênfase na liturgia e no sacerdócio levitico, no santuário do tabernáculo erigido no deserto e na aliança mosaica tudo isso forma contraste minucioso com o cumprimento que Cristo operou. Esses fatos apontam para a grande possibilidade de os leitores originais serem judeus.

Também é verdade que Hebreus se interessa muito pela cristologia (a doutrina da pessoa de C nsto) e pelo cumprimento das promessas do AT. bem como pelo modo por que as experiências de Israel são utilizadas pelo autor como advertências a comunidade. Certas passagens parecem particularmen­te cabiveis aos leitores judeus. Por exemplo, as palavras iniciais — ' 1 iaven- do Deus outrora falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais. pelos profetas” (1:1) — referem-se naturalmente aos pais tísicos. Outra evidência que nos empurra para essa conclusão é 2:16: “Pois na verdade ele não socorre a anjos, mas sim a descendência de Abraão” . Nessa passagem explica-se que a encarnação é devida à identificação de Cristo com a humanidade (e não com os anjos), ainda que isso se expresse mediante alusão a 1 saias 4 1:8s.. que tem em mira Israel, de modo específico. Tal fato se reveste de importância especial para os leitores judeus. E seriam os leitores judeus em particular, mais que quaisquer outros leitores, por causa da excelência intrínseca do judaísmo, os mais tentados a voltar à sua primitiva fé religiosa. E é contra isso que o autor de Hebreus adverte continuamente em seu livro Tais leitores, mais que quaisquer outros, teriam sido forçados a agarrar-se ao relaciona­mento existente da antiga aliança com a nova.

*Midras é um tipo de texto que se baseia no uso caracteristicamente judaico do AT

Introdução 13

Até fins do século dezenove a convicção firme e unânime dos estu­diosos era que os primeiros leitores do livro de Hebreus eram cristãos de origem judaica. A partir de então há quem sustente que os primeiros leitores eram gentios, e não judeus. Visto que o título “Aos Hebreus” é tradicional, mas não originário, a certeza de tais leitores serem judeus ou gentios cristãos só se pode obter pelo estudo do próprio livro.

Iais estudiosos argumentam que nenhum elemento do conteúdo do I i v t o comprova ter sido dirigido a judeus. Ainda verdadeira a assertiva, permanece, contudo, a pergunta: que hipótese teria maior sucesso em explicar os fenômenos descritos nesse livro, como um todo?

Seguem-se as objeções levantadas contra a identificação dos leitores corno judeus (e algumas réplicas). A apostasia em potencial descrita em 3 :12

- “Vede. irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo” — parece difícil se a referencia se faz a um retomo ao judaísmo. Se os gentios crentes voltassem a seu paganismo, na verdade se poderia considerar que abandonaram o Deus vivo No entanto, à vista de nossa compreensão do argumento maior do autor. desviar-se do cumprimento da obra que Cristo realizou na verdade é tão grave que. até mesmo para leitores judeus, isso seria um afastamento “do Deus vivo" Da perspectiva do autor, a annga aliança já passou; voltar a ela. segundo seu pensamento, de modo algum poderia ser entendido como o retomo a uma religião válida, em que o Deus vivo estaria em plena atividade.

De modo semelhante, embora alguns sejam de opinião que a referência a "obras mortas” em 6:1 e 9:14 seja uma descrição mais adequada do paganismo que dojudaísmo. a perspectiva do autor de Hebreus pode muito bem possibilitar tal avaliação dojudaísm o. Além disso, as referências a visões com laivos de gnosticismo. em 13:4,9 não implicam necessaria­mente que os leitores eram gentios. O judaísm o da diáspora estava sujeito a influências "gnósticas" (c f Colossenses 2 :16,21s.).* O grego elegante do livro e as citações regulares do AT na tradução grega chamada Septuaginta (LXX) não indicam necessariamente que os leitores seriam gentios. Insistimos: é certo que não é ojudaísmo, nem o templo, mas. antes,

*(jnosticismo refere-se a uma grupo de ideias orientais e gregas, de natureza religiosae filosófica, comuns naeracnstã primitiva. Tradicionalmente o gnosticismo era considerado heresia no seio do cristianismo, mas a maioria dos estudiosos de hoje o considera fenômeno de acepção mais ampla.

14 Introdução

os ritos levíticos e o tabernáculo do deserto que constituem o foco dos argumentos do autor, mas isso não indica conclusivamente que os leitores sejam gentios. O recurso do autor ao passado e ao que está registrado nas Escrituras advém de seu desejo de salientar a razão da promessa e de seu cumprimento. Assim, a nova aliança em Cristo substitui não apenas a manifestação do judaísmo, mas também sua afirmação ideológica na Tora (Gênesis-Deuteronômio), vigentes até então.

Se os leitores originais de Hebreus eram judeus, é muito prováv el que devamos concebê-los como judeus helenistas, ou de língua grega, isto é, judeus cujo judaísmo pertencia à variedade não-confonnista. Em outras palavras, não se tratava do judaísmo rabínico típico, ainda que pudesse ter sido influenciado por este.

E preciso admitir: assim como nada em Hebreus leva a crer que os leitores originais fossem judeus, a despeito da forte tendência para essa possibilidade, nada. de semelhante forma, exclui a possibilidade de a carta ter sido dirigida a um público gentílico. Na verdade, alguns especialistas propugnam um público misto, feito de judeus e gentios! Km virtude do conteúdo. Hebreus possui aplicação universal.

Se. como vimos argumentando, a explicação mais natural do I i v t o .

levando em conta seu conteúdo total, é que seus primeiros leitores eram judeus cristãos, poder-se-ia afirmar algo mais específico a respeito deles0 Uma opinião que se toma cada vez mais aceita e popularizada é que seus leitores pertenciam à comunidade essênia de Qumran, de cuja existência tomamos conhecimento pela descoberta dos rolos do mar Morto; pelo menos tais leitores estiveram sob a influência dessa perspectiva. Embora haja algumas similaridades marcantes entre o conteúdo de Hebreus e o dos rolos do mar Mono, mediante análise mais profunda verifica-se que tais similaridades são mais superficiais que substanciais (veja-se f; E. Bruce, “ To the Hebrews’ or ‘To the Essenes’?” — ‘Aos Hebreus' ou ‘Aos Essénios’0 NTS 9 [1962-63], pp. 217-32). Além disso, o realce ao sacerdócio e ao ntualismo levítico, presente em Hebreus, não indica necessariamente que seus leitores eram antigos sacerdotes ícf. Atos 6:7). A argumentação do autor não é tão técnica que exclua os judeus que se haviam convertido ao cristianismo. De modo semelhante, a crítica do autor aos leitores, quando afirma que deveriam ter sido “mestres” (5:12) não significa necessariamente que eram profissionais (em contraste com leigos). Pode significar que, uma vez judeus cristãos, detentores de

Introdução 15

profundo conhecimento do AT, deveriam ocupar uma posição superior de ensino (especialmente aos gentios), sobre o significado total do cris­tianismo.

A hipótese de os leitores serem judeus cristãos é, quando muito, apenas possível de estar correta; sabe-se, no entanto, que certos fatos sobre os leitores são irrefutáveis. Em primeiro lugar, é evidente que os destinatários da carta formavam uma comunidade específica com uma história especí­fica. Ficamos sabendo que, embora tenham sido cristãos durante algum tempo, permaneciam imaturos na compreensão da fé cristã (5:11— 6:3). Parece que a razão disso são o temor da perseguição e a relutância em separar-se do judaísmo, a razão não seria, pois, nenhuma obstrução mental desses leitores. Essa incapacidade funcional toma-se mais relevante em face de sua história, em que demonstraram amor a seus companheiros cristãos, mediante o serviço a eles dedicado (6:9s ). Em tempos de perseguição, em que esses mesmos leitores sofreram bastante, identifica­ram-se ainda assim com os que sofriam provações mais atrozes, incluindo- se a perda de propriedades ( 10:32ss.). Todavia, a despeito desse passado cheio de honra, parece haver evidências de que estavam enfraquecendo em seu compromisso, talvez por causa da ameaça de novas perseguições. Embora antes, aparentemente, não hou\essem sofrido o martírio, é possí­vel que essa possibilidade agora se lhes apresentava como ameaça seriíssima ( 10:3 5s.; 12:4).

Podemos ainda afirmar a respeito dos leitores de Hebreus que o autor não só os conhecia bem, mas mantivera relacionamento com eles, talvez como antigo líder da comunidade (1 3 :18s.,22ss.; cf. 13:7,17).

E menos evidente (mas, apesar de tudo, constitui boa possibilidade) que essa comunidade de crentes judaicos fizesse parte, ou pelo menos tivesse feito parte, de uma comunidade cristã maior; talvez fosse a ala judaica de uma congregação maior (cf. a referência a “todos os vossos guias” em 13:24). Poderiam ter-se reunido todos numa casa que funcionava como igreja; todavia, certas pressões novas aparentemente os estavam impedin­do de continuar a reunir-se dessa forma (cf. 10:25). Na verdade, é possível que a iminência da perseguição fazia que eles começassem a separar-se do principal corpo de cristãos.

Poderíamos dizer com alguma certeza em que lugar esse grupo de cristãos judeus residia? Os judeus convertidos ao cristianismo residiam por todo o mundo mediterrâneo e também na Palestina. A única pista de

16 Introdução

natureza geográfica que encontramos em Hebreus está em 13:24, que, por sinal, é bastante ambígua. As palavras “os da Itália vos saúdam” com toda a probabilidade significam que alguns compatriotas italianos, longe de casa, mas ao lado do autor de Hebreus, enviam saudações a seus irmãos na terra natal. Isso é muito mais natural que a conclusão segundo a qual alguns cristãos em Roma (nesse caso não esperaríamos encontrar a preposição “de”) enviam saudações a irmãosem quaisquer outros lugares. Além disso, nosso primeiro contato com Hebreus — contato antiquíssimo — vem da parte de Clemente de Roma, em 95 d.C. ( 1 Clemente). A primeira carta de Clemente traz inúmeras citações de Hebreus, mas é de lamentar que não nos dê indicações sobre seu autor, cuja identidade ele com toda a probabi­lidade conhecia, caso a cana houvesse sido dirigida a judeus cristãos de Roma. Também é digno de nota que a igreja cristã de Roma. à semelhança dos primeiros leitores de Hebreus, havia sofrido perseguições, sendo conhecida por sua generosidade (cf. Hebreus 6:1 üss.; 10:32ss ). Timóteo, mencionado em 13:23. também era conhecido da igreja de Roma (cf. Romanos 16:21).

Afirmam, contudo, alguns estudiosos que Hebreus havia sido em iada a uns poucos judeus cristãos da Palestina. Não estariam os judeus cristãos ali sob tremenda pressão para que voltassem à sua antiga religião'.’ Haviam sofrido perseguições da pane de seus irmãos incrédulos, e alguns ate haviam sido monos (cf. Hebreus 12:4, em que o autor diz a seus leitores que estes ainda não haviam derramado seu próprio sangue). A cnse iminente que pareciam enfrentar segundo Hebreus podena ser a destruição de Jerusalém pelos romanos. Contra essa opinião, contudo, levanta-se o caráter fortemen­te helenístico do I ív t o . que não se enquadra muito bem. por exemplo, na hipótese de os leitores serem de Jerusalém. E preciso que nos lembremos ainda de que a igreja de Jerusalém estava empobrecida quanto a bens materiais, de modo que dificilmente poderia mostrar a generosidade pela qual o autor da carta a cumprimenta (6:10; 10:34; 13:16).

A vista de sinais aparentes de uma perspectiva alexandrina na carta — por exemplo, o dualismo entre os arquétipos celestiais e as cópias terres­tres, o emprego do AT, similaridades com o estudioso judeu alexandrino Filo — alguns eruditos têm defendido a idéia de que Alexandria seria a cidade destinatária de Hebreus. No entanto, talvez essa evidência seja pertinente ao contexto do autor da carta mais do que ao contexto de seus leitores. Seria de estranhar, também, que a igreja alexandrina não se

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lembrasse do nome do autor, visto ter sido em Alexandria, em fms do segundo século, que pela primeira vez Hebreus foi atribuída a Paulo. Mas ali mesmo se acreditava que a carta originariamente havia sido enviada a judeus cristãos da Palestina, não aos da Alexandria!

Para T. W. Manson, célebre teólogo inglês, Hebreus fora dirigida a judeus cristãos que enfrentavam os mesmos problemas de Paulo, e aos quais ele se refere em sua carta aos colossenses; por isso. Hebreus também teria sido enviada as igrejas do vale do Lico. Tanto Colossenses como Hebreus referem -se ao escrúpulo sobre determ inados alim entos (Colossenses2:16; Hebreus 13:9; cf. Colossenses 2:20-23: Hebreus9 :10), bem como sobre a veneração dos anjos (Colossenses 2:18; Hebreus 1:4 ss.). No entanto, não existe a menor razão para crermos que essas manifestações de certa forma de gnosticismo judaico teriam sido limitadas ao vale do I.ico

Ha ainda uma serie de lugares como Ffeso. Síria. Asia. Galacia. Corinto e Chipre também apresentados como a possível residência dos leitores. No entanto, esses lugares acarretam um grau ainda maior de especulações em relação aos já mencionados. Depois que todos os dados são estudados, Roma permanece a hipótese mais atraente como a cidade de destino da carta aos Hebreus. Todav ia, essa opinião não passa disto mesmo: opinião ou mera hipótese.

DataPortanto, se aceitarmos provisoriamente que os primeiros leitores da

carta aos Hebreus foram os judeus cristãos que constituíam pane da igreja cristã, relativamente grande, de Roma. que podemos dizer a respeito da data da composição? Visto que a carta aos Hebreus foi usada por Clemente de Roma. podemos ter certeza de que foi redigida antes de 95 d.C. O fator mais importante na apuração da data aproximada da carta e a identificação da perseguição a que se refere IO:32ss. Segundo essa passagem, em alguma época em "dias passados" os leitores haviam sofrido abusos, insulto público e perda de propriedades. Há três perseguições romanas conspícuas por ser consideradas: a sofrida sob o poder do imperadoi Doinício. entre 80 e 100 d.C. , a sofrida sob Nero, iniciada em 64 d.C , e a de Cláudio, em 49 d.C. As perseguições sob a tirania de Nero e de Domício importaram na perda de muitas vidas, ainda que os leitores de Hebreus não houvessem aparentemente sofrido perseguição culminada

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em martírio (12:4). Entretanto, a perseguição sofrida sob a tirania de Cláudio enquadra-se bem na descrição apresentada em 10:32ss. Cláudio expulsou os judeus de Roma, incluindo-se os judeus cristãos (dentre os quais estavam Priscila eÁqüila; cf. Atos 18:2). Na verdade, de acordo com o historiador romano Suetônio (A Vida de Cláudio 25.4), a expulsão se deveu a arruaças em tomo de uma pessoa chamada “Cresto” (provavel­mente grafia errônea de Chnstus [ou Cristo]). Essas badernas com toda a certeza estavam relacionadas à recente conversão de judeus à fé cristã, cujas conseqüências foram a agitação que atingiu a comunidade judaica. As dificuldades dessa ocasião teriam propiciado aos leitores de Hebreus amplas oportunidades de demonstrar o amor e o espírito de serviço pelos quais o autor os cumprimenta.

Uma segunda questão de grande importância quanto à datação de Hebreus é se a carta foi escrita antes ou depois da queda de Jerusalém e da destruição do templo, em 70 d.C. Os rituais sacrificiais e a obra do sacerdócio levítico são descritos portodo o livro no tempo verbal presente. No entanto, devemos lembrar-nos de que o que se descreve dessa forma não é o ritual da época, mas o apresentado no AT. Por isso. a descrição é feita em termos ideais. Além disso, acrescente-se que os autores cristãos de depois de 70 d .C. ainda descrevem o ritual do templo mediante o uso do presente do indicativo (e.g., Clemente de Roma e Justino Mártir). A despeito dessas observações, no entanto, o tempo presente poderia ser um sinal de que a carta aos Hebreus havia sido escrita antes de 70 d.C É extraordinariamente digno de nota — na verdade, é incrível que. se o autor de Hebreus a houvesse escrito depois da destruição do templo, não mencionasse tal fato. visto que um evento histórico dessa magnitude poderia ter sido interpretado como autenticação divina do argumento central do autor de que o rito levítico estava ultrapassado, obsoleto e. por isso. destituído de significado (cf. 8:13). Na verdade, a destruição da cidade e do templo teria fornecido a pedra angular de seus argumentos destinados a persuadir os leitores a que não voltassem ao judaísmo. Portanto, é especialmente o silêncio a respeito dos eventos de 70 d.C. que nos induz à possibilidade de uma datação anterior, para a carta aos Hebreus. Se a perseguição de Nero ainda não fora lançada, como parece, somos levados a uma data situada mais ou menos em inícios dos anos sessenta. Essa datação parece compatível com a declaração de 2:3, segundo a qual os leitores ouviram o evangelho de pessoas que o haviam

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ouvido do próprio Senhor Jesus, presumindo-se que essa declaração é literal, e não simples declaração genérica a respeito da integridade da tradição. Quando foi que essa mensagem chegou pela primeira vez a esses leitores, e mediante quem, em particular, são questões que estão além de nosso alcance, como fica também a questão de quem teria fundado a igreja de Roma.

AutorHebreus recebeu bem cedo um lugar garantido no cànon do NT, sendo

atribuído a Paulo, pela igreja do Onente, em fms do século segundo. Clemente da Alexandria (c. 200 d.C .) seguiu seu mestre Panteno na crença deque Paulo teria sido o autor de Hebreus; todavia, pela natureza diferente do grego da carta, ele ensinava que Paulo a havia escrito em hebraico (aramaico) e Lucas a teria traduzido para o grego. Várias décadas depois. Orígenes. embora negasse a origem paulina da carta (nem mesmo acredi­tava que o apóstolo a tivesse escrito originariamente em hebraico), afirmaria que o conteúdo do livro era essencialmente paulino. Depois de Orígenes. a autoria paulina de Hebreus permaneceu intacta, sem ser desafiada no Oriente; so então a carta foi inserida jmediatamente apos Romanos, no meio do corpus paulino ein / M'\ a cópia em papiro mais antiga desse corpus que sobreviveu até a era moderna.

A auiona paulina de Hebreus foi objeto de divergências na igreja do Ocidente até tins do século quarto e início do século quinto. Só com Jerónimo e Agostinho a autoria paulina foi aceita na igreja do Ocidente, mais por causa da forte tradição e conformação vindas da igreja do Oriente e de considerações canônicas, do que por convicções genuínas. Essa conclusão permaneceu solidamente firmada no Ocidente até o período da Reforma, quando Erasmo, Lutero e Calvino a desafiaram de novo.

E difícil aceitar a autoria de Paulo para a carta de Hebreus pelas seguintes razões significativas: primeira, diferentemente de todas as cartas que. sem a menor dúvida são paulinas, esse texto é anônimo. Além disso, não existem alusões pessoais na carta que nos induzam à conclusão de que Paulo foi o autor. Em parte alguma a experiência pessoal do autor se insere no conteúdo da carta, o que era prática frequente de Paulo. Em segundo lugar, o autor alinha-se pessoalmente entre as pessoas que têm apenas um conhecimento indireto do Senhor (2:3), algo que Paulo nega veemente­mente (e.g., Gálatas 1:12; 1 Corintios 9:1). Paulo não admite ser inferior

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aos doze apóstolos, de modo especial pelo fato de essa acusação ter-lhe sido lançada reiteradamente. A terceira razão, conforme se verificara na igreja primitiva, é que o estilo do grego dessa carta — linguagem mais elegante do NT — é diferente de qualquer das cartas de Paulo. É claro que se pode atribuir isso ao emprego de outro amanuense, ainda que isso nos pareça improvável. Em quarto lugar, a razão mais importante: há diferen­ças consideráveis entre Hebreus e as cartas paulinas. A mais importante é o elevado sacerdócio de Cristo para o autor de Hebreus, aluo que está ausente de vez nos escritos de Paulo. Acrescente-se que vánas ênfases notadas nas cartas de Paulo estão ausentes em Hebreus: a união com Cristo (“em Cristo”), a justificação pela fé, a oposição entre fé e obras, e a tensão entre a came e o espírito; a ressurreição de Cristo (mencionada apenas em 13:20) deu ensejo a uma ênfase repetida na exaltação de Cristo à destra de Deus; e a ênfase comum de Paulo no caráter redentor da obra de Cristo fica subordinada a outra ênfase em Hebreus: a purificação e a santificação do povo de Deus por Cristo. Todavia, nada em Hebreus contradiz o ensino de Paulo; na verdade, há muitas facetas em comum entre Paulo e o autor dessa carta. Essa circunstância levou Origenes a concluir que, embora a carta em si mesma não fosse de Paulo, grande parte de seu conteúdo tem o caráter paulino. Esse fato, aliado à menção de Timóteo (13:23), sugere que o autor estivera associado aos círculos de Paulo.

Visto, pois, que não se pode confiar na antiga tradição segundo a qual Paulo redigiu Hebreus, pomo-nos a especular a respeito da identidade do seu autor, a partir do conteúdo da carta. Uma proposta que se toma cada vez mais popularizada, defendida em primeiro lugar por Lutero. é que seu autor foi Apoio, o judeu convertido de Alexandria, descrito em Atos 18:24 como “homem eloqüente e poderoso nas Escrituras". Também se diz de Apoio que “com grande veemência refutava publicamente os judeus, demonstrando pelas Escrituras que Jesus era o Cristo” ( Atos 18:28). Tanto os dados biográficos como as habilidades de Apoio concordam com o que sabemos a respeito do autor de Hebreus. Além disso, está claro que Apoio conhecia o apóstolo que, mediante Priscila e Áqüila. havia instruído esse obreiro cristão. Deveria conhecer a Timóteo também. A única dificuldade diante da hipótese de que Apoio teria sido o autor de Hebreus é a falta de um testemunho da antigüidade que lhe dê apoio. Visto conhecermos tão pouco, Apoio só pode constituir uma hipótese. Hipótese, aliás, excelente, talvez a melhor que se possa aventar.

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Outro nome proposto é o de Bamabé, que tem o apoio do pai da igreja primitiva Tertuliano (c. 200 d .C ). Bamabé (veja-se Atos 4:36) era levita e, por isso, estaria bastante interessado no sistema levitico, de que tinha pleno conhecimento. Era natural de Chipre, onde teria sido influenciado pela cultura helenística, tendo excelente domínio da língua grega. Outro ponto notável, embora de menor importância, é a tradução do nome de Bamabé (Atos 4:36), “Filho da Consolação”, comparável à designação da carta aos Hebreus como “palavra de exortação” (Hebreus 13:22; a palavra grega [paraklesis] é a mesma em ambas as passagens, e também poderia ser traduzida por “consolação” , como o faz GNB).

A hipótese de que Bamabé teria sido o autor de Hebreus é admissível, mas ainda vale a pena tentar imaginar se Tertuliano se apoiou em alguma inferência do conteúdo da carta, como aconteceu a Lutero, ou em alguma tradição autêntica a esse respeito.

Vários outros nomes — todos frutos de especulação — têm sido aventados nessa ou naquela época, a fim de descobrir a identidade do autor de Hebreus. Podemos mencioná-los de modo resumido, e acrescentar o principal argumento de apoio a cada um: Lucas (pelas similaridades de estilo e de conteúdo em relação a Atos, de modo especial o discurso de Estêvão): Silas (similaridades de estilo entre 1 Pedro e Hebreus); Filipe (defendendo o paulinismo perante os judeus cristãos de Jerusalém); Clemente de Roma (quase a mesma linguagem, nos mesmos lugares); Epafras (em relação às similares com Colossenses); Priscila (com base no anonimato da carta e por ter tutelado Apoio; veja-se a nota sobre 11:32); e ate mesmo Maria (o toque “ feminino” e a afinidade com Lucas 1 e 2)!

Essa multipl icidade de candidatos reflete em si mesma a dificuldade em descobrir a identidade do autor. Foi Origenes que. no terceiro século, depois de pesquisar uma lista de possíveis autores, pronunciou estas famosas palavras: “Deus sabe na verdade quem escreveu esta carta” (citadas por Eusébio, Eclesiastical History — História Eclesiástica — 6.25). Quem quer que tenha sido o autor ou autora, seu conhecimento do AT erá maravilhoso, excepcional, tendo sido capaz de interpretá-lo sob o aspecto de Cristo, estando provavelmente familiarizado com o idealismo platônico popularizado na Alexandria, demonstrando maestria no manejo da língua grega e usufruindo da perspectiva universal dos cristãos helenistas primitivos. O autor ou autora provavelmente fazia parte do círculo paulino e tinha fé cristã, sendo proveniente da raça judaica. Fica evidenciada em

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toda a carta o tremendo interesse do autor pela situação e pelo destino dos leitores. E pessoa que escreveu como se fora um de seus leitores, alguém que tivera contato com eles anteriormente, mediante algum tipo de ministério. E difícil dizer algo mais do que isso. Se o próprio Orígenes julgou difícil comprovar a identidade do autor de Hebreus, no terceiro século, não é provável que tenhamos condições de fazê-lo; é certo que não teremos sucesso num aspecto em que até Origenes falhou.

PropósitoA capacidade de discemir os propósitos do autor ao escrever essa carta

namralmente depende em grande parte da identificação dos destinatários. Não há a menor dúvida de que um dos principais propósitos, senão o maior propósito do livro, é advertir seus leitores a respeito de certo perigo e exortá-los à fidelidade. Daí decorrem as freqüentes aplicações, como, por exemplo, 2:1-3; 3:6,12-14; 4:1,11-13; 6:1-12; 10:26-31,35-39; 12:3-17; 13:9). Se o argumento apresentado acima for correto, a preocupação do autor é advertir seus leitores, judeus cristãos, contra a apostasia e retomo ao judaísmo antigo. Outras ênfases básicas da carta recebem marcante importância quando esse propósito principal é atingido. Assim, o autor entende que, para os leitores ser motivados a permanecer fiéis, precisam chegar à compreensão do verdadeiro significado do cristianismo. É por isso que o autor, de forma coerente, estabelece a superioridade incompa­rável e a natureza definitiva da obra de Deus, singular e totalmente acabada em Jesus Cristo. O cristianismo, assim entendido, de modo correto, tem caráter absoluto e é universal em seu escopo. O cristianismo é, portanto, nada menos do que a fruição dos propósitos estabelecidos por Deus desde o princípio e o cumprimento daquilo que Deus havia “falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas...” (1:1). A conclusão inescapável é que um desvio do cristianismo, para outra direção qualquer— não importando quão excelente seja o novo caminho — está definitiva­mente excluído e condenado. A resposta a ser dada a qualquer tendência encontra-se na compreensão do verdadeiro significado de Jesus Cristo e de sua obra. E isso que explica, portanto, a elevada cristologia de Hebreus, ao lado de sua explicação plena da obra vicária e sacerdotal do Senhor. Pela sua própria natureza, o cristianismo é muito mais do que mera seita judaica surgida há tempos. O cristianismo tem significado absoluto e universal.

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Todos os demais motivos de Hebreus subordinam-se a esse propósito central do autor. Embora haja evidências no livro de que seu autor intenciona combater os ensinos heréticos, talvez uma forma de gnosticismo judaico (e.g., 9:10; 13:9; 1:4— 2:16), isso representa interesse secundário.

form a e fstrvturaO gênero literário de Hebreus é: sermão exortativo. Inicia-se não com

a identificação usual do autor e dos leitores, seguida de uma saudação e agradecimentos, mas com um prólogo cristológico impressionante, que, em muitos aspectos, nos faz lembrar o evangelho de João. Todavia, fica bem claro, como já vimos, que a carta aos Hebreus é dirigida a uma comunidade específica. Além disso, o livro encerra-se como se fora uma carta, incluindo alguns elementos de informações pessoais a respeito das circunstâncias do autor e as de um amigo comum, Timóteo, bem como saudações e bênção. (Alguns estudiosos entendem que o capítulo 13 não pertencia originariamente ao livro, ao lado dos doze primeiros capítulos; teria sido acrescentado mais tarde, a fim de dar ao documento a aparência de carta. Admite-se que a discussão ali não faz parte da argumentação do resto do livro, pois consiste principalmente de vánas mjunções éticas. No entanto, grande parte do conteúdo do capítulo 13 relaciona-se com muita clareza às ênfases dos capítulos de 1 a 12; além disSo, a forma por que os textos tirados do Pentateuco [i.e., textos de Gênesis e Deuteronòmio] são elaborados e aplicados em 13:10-15 é muito semelhante ao uso que se faz deles e de todo o AT em toda a carta de Hebreus.)

Portanto, o que parecemos encontrar no livro de Hebreus é um tratado em forma de sermão, que o autor enviou a uma comunidade particular, como se fora uma carta. É um tratado em forma de sermão por causa de sua combinação singular de discurso exortativo e argumentativo, e é carta porque foi escrito para uma comunidade específica, constituída de judeus cristãos, provavelmente localizada em Roma, à qual foi enviado.

Ainda que o propósito central de Hebreus seja claro, é precisamente sua mistura de discurso com exortação que às vezes toma a estrutura do livro e a seqüência de argumentação difíceis de discernir. Além da freqüente inserção de exortações, as diferentes seções do sermão muitas vezes são interligadas por nada mais que uma simples palavra, o mesmo argumento às vezes é repetido com variações ligeiras, e os resumos das seções podem obscurecer o fluxo do pensamento.

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É por isso que tem havido muita discussão a respeito da estrutura do livro. Albert Vanhoye dedicou muito tempo e energia na análise literária de Hebreus, numa série de publicações sobretudo em língua francesa (quanto a um resumo bastante prático, veja-se D. A. Black, “The Problem o f the Literary Structure o f Hebrews: An Evaluation and a Proposal” — O Problema da Estrutura Literária de Hebreus: Avaliação e Proposta —, Grace Theological Journal 1 [1986], pp. 163-77); todavia, nem todos se convencem com seus argumentos (veja-se J. Bligh, "The Structure of Hebrews”, Heythrop Journal 5 [1964], pp. 170-71, e de modo especial J Swetnam, “Form and Content in Hebrews 1-6” — Forma e Conteúdo de Hebreus 1— 6, Bíblica 53 [1972], pp. 368-85 e “Form and Content in Hebrews 7-13”, tíibhca 55 [1974], pp. 333-48). Na realidade, afora os elementos comumente reconhecidos do exórdio, em 1:1-4, ou a argumen­tação de 7 :1-28, a respeito da ordem de Melquisedeque, o documento por sua própria natureza é passível de diferentes análises estruturais.

No comentário que faremos do livro, a seguir, as seções individuais recebem tratamento uniforme, estando quase sempre de acordo com o modo de distribuição de parágrafos da NVI ou da ECA. Essas seções receberam títulos, os quais estão relacionados no índice da obra. Alem desse esboço, não tentamos mostrar nenhum outro aqui. Em termos muito genéricos poder-se-ia dizer que a argumentação desse livro parte da cnstologia (1:1— 3:6) em direção ao sacerdócio de Jesus (4 :1 4 -5 :1 0 : 7 :1— 8:6) e a superioridade da nova aliança e da obra sacrificial de Cristo (8:7— 10:18). Advertências e exortações estão espalhadas, contudo, por todo o livro. Note-se, no entanto, que endossamos os pontos de vista da maioria dos comentaristas, colocando-nos contra as opiniões de Vanhoye no que concerne a 10:19, as quais consideramos momento decisivo do livro de Hebreus. E certo que temos ali exortações e aplicações misturadas com argumentações; no entanto, o àmago da epistola, o principal argumento doutrinário da carta conclui-se com 10:18. A última parte da carta focaliza a fé (10:19— 11:40), mas inclui várias aplicações salpicadas, como na primeira parte, de repetidas advertências.

Todos concordam de modo geral em que o estilo literário do autor encerra muita arte e impressiona muitíssimo. Muitas vezes, quando examinamos o texto com muito cuidado, percebemos uma simetria concêntrica. Como exemplos, poderiamos mencionar que 2:1-4 foi torneado com simetria; a seqüência Cristo-anjos, em 1:5-8, repete-se em 1:13— 2 :4 ;e 3 :l encontra-

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se de novo sob forma quase simétrica em 4:14.Outra marca da arte especial do autor (que nesse caso parece revelar

antecedentes judaicos) é o uso do AT e, de modo singular, o tratamento de ‘midras’ que se lhe aplica (i.e., a exposição prática da citação, pelo emprego de palavras tiradas do próprio texto citado) repetidas vezes. O emprego do AT é predominante por todo o livro. O capítulo primeiro — as palavras que se seguem à primeira frase — é um debate que comprova a superioridade do Filho sobre os anjos, com base em sete citações do AT, apresentadas sem comentários. Em 2:5-8 uma citação de Salmos 8:4-6 vem acompanhada de um comentário em forma de ‘midras’. E provável que o fato mais impressionante a esse respeito seja a construção artística que o autor faz em 3:12—4:11, baseada na citação (acompanhada de vários refrões) de Salmos 95:7-11, ao lado de uma aplicação em forma de m idras’ dessa passagem a situação dos leitores. Pode-se dizer, a respeito

da segunda seção mais importante de Hebreus, que depende da citação de Salmos 2:7 e 110:4 em 5:5,6. A discussão a respeito do sacerdocio de Melquisedeque. que fora interrompida por uma longa digressão (5:11— 6:12). reinicia-se em 7 1, quando (além de citar Gênesis 14) Salmos 110:4 e mencionado mais duas vezes. A discussão do capítulo 7 é uma elaboração muito habilidosa de textos veterotestamentános. O capítulo 8 depende da longa citação de Jeremias 31:31-34. No capítulo 9 reencontramos uma apresentação em forma de 'm idras', de texto tirado do Pentateuco, sem citação explicita. O capitulo 10 combina uma citação de Salmos 40:6-8 com um breve comentário da natureza de ‘midras’; a seguir, temos nova menção de Jeremias 3 1:33.34e uma exortação que se encerra com a citação de Habacuque 2:3,4. E claro que o capítulo 14 depende muito do AT, ao descrever alguns heróis da fé. No capítulo 12 reencontramos, no meio de uma exortação, uma citação de texto do AT, outra vez com tratamento de 'm idras’ (Pv 3:11,12 e Ag 2:6).

O caso é que praticamente a argumentação toda de Hebreus baseia-se em passagens do AT. De fato, o autor parece ter estruturado sua argumen­tação em questões-chave. O costume favorito dele é citar uma passagem apropriada e, a seguir, comentá-la à semelhança de um ‘m idras’ judaico, aplicando sua verdade aos leitores da maneira mais prádca possível. Esse procedimento faz lembrar os comentários das Escrituras produzidos Dela comunidade de Qumran (cf. os comentários sobre Habacuque, Miquéias, Naum e Salmos 37, que se encontram nos rolos do mar Morto).

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Inteqwetação do Antigo TestamentoSegue-se, pois, que o livro de Hebreus depende muito do AT (contamos

cerca de trinta citações diretas e mais de setenta alusões). Nas citações, o autor acompanha com regularidade o texto grego (LXX), e não o texto hebraico (ou massorético) que herdamos. É esse fato que explica primor­dialmente as diferenças entre as citações que encontramos em Hebreus e as de nossas versões do AT em português.

Em sua interpretação do AT, o autor usa o que se poderia chamar hermenêutica cristocèntrica. Em outras palavras, Cristo é considerado a chave do verdadeiro sentido do AT, da forma por que a Bíblia dos judeus hoje pode ser entendida, em nossa era, na qual ela vem sendo cumprida. A partir desse ponto de vista, o AT inteiro aponta de modo direto ou indireto para Cristo, que. por definição, é o telos (objetivo) dos propósitos salvíficos de Deus.

E óbvio que esse tipo de interpretação exige que se vá além do sentido literal do texto — isto é, além do que os escritores originais desses textos queriam dizer. Entretanto, em virtude de unidade dos propósitos salvíficos de Deus e da relação básica do passado com o presente, sob a forma de promessa e cumprimento, pode se dizer que o texto da AT tem significado mais profundo ou pleno (a que os teólogos denominam sensu.s plcmor), ultrapassando aquilo de que os autores hebreus pudessem ter consciência, tendo em vista seu antigo status na história da salvação. O significado último do AT só pode ser contemplado a partir do ponto de vista de seu cumprimento. A aurora da era escatológica* em Cristo e a experiência de seu cumprimento na morte e ressurreição dão aos autores do NT, dentre os quais o próprio autor anónimo de Hebreus, um ponto de orientação radicalmente novo, com base no qual o AT pode ser lido com nova interpretação e compreensão.

Essa nova perspectiva do AT não significa que aprovaremos qualquer interpretação arbitrária, frívola ou alegórica do AT. Ainda que esse tipo de abuso tenha ocorrido na igreja do segundo século e nas formas de judaísmo

* A escatologia(do grego eschaton, “últimas coisas”) refere-se ao ensino bíblico de que Deus agirá de modo decisivo “nos últimos dias” a fim de revelar-se, salvar seu povo, julgar o mundo e consumar seus propósitos santos. O “agora” da era escatológica iniciou-se com o “acontecimento” chamado Cristo O “ainda não” da era escatológica — a consumação de todas as coisas — ainda está por acontecer

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da época do NT, a interpretação que o NT faz do Antigo é relativamente restrita e sóbria. Tal interpretação jam ais traz consigo algo estranho ao texto, em sua tentativa de destrinçar o AT (como Filo fez ao interpretar Moisés mediante Platão), porque contempla o texto à luz de seu cumpri­mento. Assim, em vista da igreja primitiva e do autor de Hebreus, a interpretação cristocêntrica do AT requer que se descubra a intenção principal do Inspirador Divino das Escrituras e o reconhecimento da unidade que sublinha a obra de Deus na história.

Antes de Cristo, não dispúnhamos de uma chave que nos abrisse aporta da intenção primeira das Escrituras. Agora, todavia, em Cristo, Deus nos deixa descortirar o verdadeiro objetivo das promessas do AT (cf. 2 Co 1:2 0 ). Os autores do NT foram capazes de entender o Antigo em retrospecto e concluir: “Mas isto é o que foi dito” (At 2:16). (Esse tipo de interpretação era conhecido em círculos judaicos como pesher, sendo encontrado comumente nos escritos da comunidade de Qumran. No entanto, os membros de Qumran usavam a interpretação tipo pesher a fim de retratar sua época como a imediatamente anterior ao cumprimento escatológico: mas os autores do NT a usavam a fim de expressar o cumprimento ja ocorrido em Cristo. Vê-se com clareza que esse foi o ponto de vista do autor de Hebreus: e podemos vê-lo, não só a partir de como ele usou o AT, mas tambern pelo conteúdo total de sua carta.)

A importância fundamental do AT e o procedimento interpretativo do autor de Hebreus só podem ser bem avaliados com base numa perspectiva desse tipo. Nesse sentido, o autor não é tão singular e marcante, dentre os autores do NT; todavia, ele se destaca, por exemplo, no modo de usar os textos veterotestamentários sob a forma de ‘midras’. Ao lado dos demais escritores, o de Hebreus compartilha o entusiasmo da alegria e do cumpri­mento das promessas do evangelho.

Perspectiva TeológkaEm seu esboço mais amplo, a perspectiva do autor de Hebreus está de

acordo com a de outros escritores ao NT. Em sua elevada cristologia e uso de linguagem “dualista”, referente ao mundo lá em cima e ao outro mundo em baixo, ele se parece com João. Já observamos as semelhanças com Paulo. Mencionamos apenas a elevada visão da Pessoa de Cristo, a centralidade do sofrimento e da obediência de Cristo, a expiação vicária realizada por Cristo e o contraste entre a antiga aliança e a nova.

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Entretanto, certas ênfases teológicas do livro podem ter derivado do círculo judaico-helenístico representado por Estêvão. Pelo que sabemos, Estêvão (At 7) teria sido o primeiro na igreja primitiva que começou a articular o significado verdadeiro e, por isso, universal, do cristianismo e as implicações desse fato para o templo de Jerusalém e para o judaísmo. A ênfase do autor de Hebreus nessas questões é bem semelhante. E claro que em certo sentido o AT é de importância capital em Hebreus. O autor recorre repetidamente ao AT, que cita como se fora o verdadeiro oráculo de Deus; o Senhor continua a falar por intermédio desses antigos textos. No entanto, a autoridade desses escritos não lhes é inerente, pois só é reconhecida naquilo em que remetem para o que aconteceu em Cristo e por meio de Cristo. Para a antiga aliança, remeter para algo que ainda jazia no futuro representava algo intrinsecamente incompleto. As promessas do AT eram válidas como preparação, mas, como um de seus próprios escritores reconheceu, era preciso algo novo (Jr 31:31 ss.). Foi assim que o autor de Hebreus, com coragem semelhante à de Estêvão, remete para a obsolescènc ia da velha aliança, agora que a nova chegara. A semelhança de todos os escritores do NT, esse autor opera segundo a tensão existente entre a autoridade continuada do AT, como testemunha da verdade do cristianis­mo, e o sentido óbvio pelo qual o que é velho deve ceder lugar ao novo. Na verdade, para o autor de Hebreus, o velho deixa de ter sentido ein si. mas vale apenas naquilo a que remete: a revelação definitiva de Deus em seu Filho.

A linguagem e a teologia de Hebreus são as de um cristão que também era judeu helenista. Mas até que ponto teria sido influenciado pelo helenismo? De modo particular, até que ponto deve — se é que deve alguma coisa — sua perspectiva singular a respeito de arquétipos e cópias terreais, aojudeu alexandrino Filo? A visão da realidade de Filo derivava do idealismo dualista de Platão, para quem, para cada objeto percebido mediante os sentidos, existe um arquétipo que lhe corresponde, perfeito e imutável, sob a forma de “Idéia” ou “ Forma”, que só pode ser conhecida mediante o intelecto. Há uma similaridade óbvia entre essa perspectiva e a de nosso autor, quando este fala de cópias terreais de realidades celestes (e.g., 8:1,5; 9 :11,23,24; 10:1; 11:1,3). A linguagem de 8:5 pode na verdade parecer platônica no estilo; no entanto, devemos notar que essa visão do santuário terreno de Deus como cópia de seu santuário celeste tem origem anterior a Platão, pois é vista no Pentateuco (Êx 25:9,40; 26:30; 27:8; cf.

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lC r 28:19; Sabedoria de Salomão 9:8). No entanto, mais importante é o fato de que o dualismo de Hebreus não se orienta para as questões metafísicas dos filósofos. A estrutura básica da obra do autor é temporal ou escatológica, na qual Cristo e seu ministério trazem um cumprimento correspondente ao propósito eterno e perfeito de Deus. As cópias terreais das realidades celestes estão para estas assim como as promessas estão para o seu cumprimento. As promessas são as sombras, ou as cópias; o cumprimento são as coisas boas que advieram. Cristo na cruz e, assim, no processo histórico, realizou e cumpriu o que os protótipos terrenos repre­sentavam, apontando para as realidades espirituais eternas. Por causa de sua natureza gloriosa e do caráter definitivo do cumprimento que Cristo efetuou na história, tal cumprimento se expressa na linguagem exaltada do reino espiritual, a linguagem da realidade eterna. Todavia, isso está afastado, distanciado da perspectiva de Platão e de Filo.

A teologia de Hebreus reflete a perspectiva de um judeu helenista. Seu estilo e vocabulário são claramente helenísticos. mas sua orientação é muito mais a de um judeu cristão dotado de um paradigma de promessa e cumprimento que se lhe ergue como arco triunfante. Sendojudeuhelenístico. e não palestino, o autor está mais aberto às conseqüências radicais oriundas do antigo, agora que o novo chegou. A teologia de Hebreus harmoniza-se também com a teologia dos demais escritos do NT. Assim e que. de acordo com Paulo e os demais autores neotestamentários. Hebreus enfatiza o carater definitivo e escatológico de Cristo, além de seu significado universal.

Fica aparente, depois da discussão acima, que somos incapazes de prover algo mais do que respostas exploratórias para algumas questões básicas, como. por exemplo, quem foram os primeiros leitores de Hebreus, qual era o endereço do documento, qual foi a data de composição e quem escreveu Hebreus'.’ Felizmente, a maior parte da epístola pode ser interpre­tada eficazmente sem que tenhamos informações sólidas em resposta a essas perguntas. Como o que temos na verdade é o conteúdo do livro, esse deve permanecer normativo; todas as hipóteses levantadas devem incli­nar-se perante o conteúdo e a ele submeter-se.

Hebreus, bem como todos os demais livros do NT, deve ser entendido pelo seu contexto histórico, ainda que isso ocorra, até certo ponto, como produto de inferências. No entanto, em certo sentido a mensagem de Hebreus transcende sua própria situação histórica. Tal mensagem possui

30 Introdução

aplicação universal e pertinência contínua perante todas as gerações de cristãos, sejam quais forem seus contextos culturais. É que o principal tema desse livro — a incomparável superioridade e inegabilidade de Cristo, o cumprimento da antiga aliança, o estabelecimento da nova aliança, o significado universal da fé cristã — deve ocupar sempre posição central, para que as pessoas encontrem um cristianismo genuíno. No entanto, mais ainda do que isso, esse livro, com seu rico conteúdo teológico, é ao mesmo tempo maravilhosamente prático. Compulsando suas paginas, os crentes de todas as eras podem aprender a peregrinação da fé e os imensos recursos disponíveis a todos mediante a obra consumada (e perfeita) de Cnsto.

Nota: No inicio desta obra ha uma lista de abreviaturas usadas no comentário. Quando ao nome de um autor se seguir simplesmente o numero de página (em lugar do título de livro ou abreviatura), a referência diz respeito ao comentário desse autor.

/ . A Revelação Definitiva de Deus (Hebreus 1:1 -4 )

Os magníficos versículos de abertura dessa passagem mostram a expressão imediata da perspectiva teológica do autor: ele movimenta-se, saindo da revelação do passado e entra na revelação definitiva; ele parte da palavra de Deus aos “pais” do Antigo Testamento e penetra na palavra final de seu Filho, Jesus Cnsto. Primeiramente, o autor dá-nos sua doutrina a respeito de Cristo, a fim de estabelecer o tom do livro todo. Portanto, o prólogo cristológico introdutório nesses versículos é semelhante ao prólo­go do quarto evangelho (Jo 1:1-18), em sua função e também na teologia cristocèntrica. Todavia, o autor não deseja apresentar essa cristologia exaltada sem primeiro indicar que a palavra falada de Deus em seu Filho constitui obra proveniente do passado, das realidades com que se identifi­ca, não sendo estranho a elas. O que Deus fez em Cnsto foi o clímax do que o Senhor havia iniciado em épocas remotas.-Tendo encerrado a obra da expiação. Cristo usufrui um stum.s superior, uma posição muito acima da dos anjos.

1:1 Havendo Deus outrora falado muitas vezes, e de muitas ma neiras... Aqui temos uma boa caracterização daquilo a que damos o nome de Antigo Testamento — um relato da revelação de Deus a Israel, mediante não apenas sua palavra, pelos seus atos. Mais ainda: o autor identifica a si e a seus leitores como pessoas a quem o Senhor falou, no passado, aos pais. Essa declaração resume o compromisso a que os judeus sempre estiveram ligados: na verdade Deus falou conosco no passado pelos profetas. Profetas aqui deve ser palavra que entendemos como os porta-vozes de Deus, seus representantes perante seu povo em todas as épocas; portanto, entendemos que indica todos os autores das Escnturas, e não apenas as pessoas designadas nos escritos sagrados como “profetas”. Essa afirmação nos dá um forte senso de continuidade, a sensação de longo alcance para dentro do passado. Afirma que Deus iniciou sua obra com Israel, mas até agora está operando na igreja e naquilo em que a igreja crê. Podemos ver a unidade da revelação à medida que nos movemos do passado e penetramos no incom­parável presente.

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1:2 / nestes últimos dias (lit., “no fim destes dias”) Deus nos falou por meio de seu Filho. O autor usa linguagem escatológica, isto é, linguagem dos tempos finais, dos últimos dias; isso significa que penetramos na era escatológica. Em outras palavras, chegou a hora de fruir dos planos de Deus; chegamos a uma nova época (cf. 9:26). Atingimos um ponto de retomo fundamental, em que Deus nos fala de um clímax, de modo definitivo, por meio de seu Filho. Qualquer palavra a respeito do que falta acontecer, no futuro, nada mais é que o aprimoramento do que já se iniciou. Tudo quanto Deus fez anteriormente funciona como preparativo, parece uma enorme seta que aponta para um alvo. Jesus Cnsto Essa é a argumentação que o autor de Hebreus apresenta em seu livro Cnsto é o lelus. o objetivo, o sentido último de tudo que o precedeu.

Mas em que sentido o autor, ou quaisquer dos escritores do Novo Testamento, foi justificado ao referir-se ao seu tempo como os últimos d ias0 A chave para a compreensão desse tipo de declaração (veja-se também 4:3; 6:5; 9:26; I2:22ss.), encontra-se no fato de C nsto ser a finalização teologica. Não existe a possibilidade de o autor ter reconhecido a realidade de Jesus Cnsto — quem é , que fez — sem confessar a seguir que estamos nos últimos dias. O sentido de últimos dias não é cronológico, mas teológico. A cruz. a morte e a exaltação de Jesus apontam automati­camente para o início do fim. Chegamos teologicamente ao momento crucial do plano que Deus havia traçado ao longo dos séculos e milênios, de modo que, por definição, atingimos os últimos dias. A escatologia e feita de um tecido teológico singular: quando Deus falou mediante seu Filho, iniciou-se a era escatológica, e vemo-nos necessariamente nos últimos dias. no sentido teológico. Estes são os últimos dias por causa da grandeza da obra que Deus vem executando. A grande surpresa, portanto, e que este penodo de cumpnmento escatológico prolonga-se tanto, que estes últimos dias não são necessariamente (ainda que para qualquer era de fato são) os últimos dias sob o aspecto cronológico.

Esse livro, essa passagem de abertura e. de modo particular, o v. 2. apontam para a centralidade do Filho, para a superioridade do Filho em face de tudo que o precedeu, de tudo que existe agora, de tudo quanto possa vir a existir no futuro. Deus nos falou pelo Filho, e isso constituiu um clímax; como diz Paulo, as “promessas... de Deus, têm nele o sim” (2 Co 1:20). A simples menção do Filho traz consigo sobretons messiânicos do Antigo Testamento, como se toma evidente de imediato no v. 5, citando

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Salmos 2:7: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” , e 2 Samuel 7 :14: “Eu lhe serei por Pai, e ele me será por Filho” . N a verdade, o resto do capítulo, com suas numerosas citações do Antigo Testamento, aponta para a identidade singular do Filho como o Prometido, o Messias designado por Deus para fazer cumprir o grandioso plano e propósito de Deus.

A verdadeira natureza do Filho a seguir é exposta em sete gloriosas trases que retratam sua incomparável superioridade. No primeiro exem­plo, ele é o Filho, a quem [Deus] constituiu herdeiro de tudo. Na cultura hebraica, ser filho significa ser herdeiro, de modo especial quando tal filho é unico, ou unigénito. Portanto, o Filho de Deus, em virtude de sua filiação, toi designado herdeiro de todas as coisas. Ao filho messiânico de Salmos 2:7 (citado acima), também são dirigidas estas palavras: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e os fins da terra por tua possessão” (SI 2:8). Assim, o Filho tem significado central no início, na criação e no fim, na herança. A linguagem de Paulo é paralela: “Nele foram criadas todas as coisas... tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1:16).

Em segundo lugar, o Filho e descrito como aquele por quem [Deus] fez o mundo. O Filho e o agente de Deus na criação do universo, de todo o espaço e de todo o tempo — em suma, de tudo que existe. Essa visão de Cristo tainbem está presente no quarto evangelho (Jo 1:3: "todas as coisas foram feitas por meio dele. e sem ele nada do que foi feito se fez"), e em Paulo (Cl 1:16: ‘nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra"; 1 Co 8:6: "um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas"). Ü contexto dessa perspectiva esta, possivelmente, no conceito de Sabedoria Divina, personificada, e instrumental na Criação, de acordo com Provérbios 8:27-31 (cf. Sabedoria de Salomão 9:1 s.,9).

1:3 / A terceira e a quarta expressão dessa caracterização de Cristo referem-se ao modo por que o Filho é a verdadeira expressão do Pai O Filho (lit., "que” , pronome relativo) é o resplendor da sua glória [ae Deus]. A palavra resplendor ou 'luz radiante” significa “brilho” intenso. Barclay parafraseia, com êxito: "O Filho é a radiação da glória de Deus, assim como o raio é a luz do Sol” . Outra vez encontramos um paralelismo com a personificação da sabedoria, agora no livro apócrifo de Sabedoria de Salomão (7:25f.): “Porque ela é o fôlego do poder de Deus, e emanação pura da glória do Todo-poderoso... é reflexo da luz eterna, espelho sem mancha da obra de Deus, e imagem de sua bondade” (RSV). Outros

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escritores do Novo Testamento mantêm uma visão semelhante de Cristo. No prólogo do evangelho de João, Cristo é chamado Luz: “A luz verdadei­ra que ilumina a todos os homens estava vindo ao mundo” (Jo 1:9); “vimos a sua glória, a glória como do unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14). Para João, como para o autor de Hebreus, Jesus expressa a brilhante glória de Deus. Paulo também fala da luz que Cristo trouxe, ao referir-se à “iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (2 Co 4:6; cf. 4:4).

A expressão seguinte, a expressa imagem da sua pessoa, é apenas outra forma mais explícita de falar do que o autor acabou de afirmar. O Filho é a perfeita representação da Pessoa de Deus, “assim como a marca no papel é a impressão exata do carimbo” (Barclay). Esse pensamento é outra vez reminiscência da cristologia, conforme a vemos noutra passa­gem do Novo Testamento; por exemplo, na declaração de Paulo de que “Cristo... é a imagem de Deus” (2 Co 4:4); “[Cristo] é a imagem do Deus invisível” (Cl 1:15); embora nesses dois exemplos a palavra grega (eikon, de que denva a palavra portuguesa “ícone” e as que apresentam o prefixo “icono-” ) é diferente da usada aqui. João expressou a mesma idéia nas palavras “quem me [Jesus] vê. vê o Pai” (Jo 14:9). Devemos notar ainda que é a imagem da sua Pessoa [do Pai. isto é, de Deus], que se expressa de modo tão exato; a palavra imagem aqui deve ser entendida como “substância” ou “essência” . Essas duas expressões paralelas no inicio do v. 3 obviamente falam da singularidade do Filho: ele é único. Apontam também para a conexão extraordinária entre o Pai e o Filho. Para que o Filho seja expressão direta, autêntica e obrigatória do Pai. conforme se descreve nessas expressões — para que Cristo seja o brilho majestoso da glória de Deus e a imagem (impressão exata) de sua essência total - Cristo precisa participar da essência de Deus, isto é, ele próprio precisa ser Deus, a fim de levar a cabo a missão maravilhosa descrita aqui. O autor de Hebreus deseja que cheguemos à conclusão, sem que neguemos distinção entre Pai e Filho, de que o Filho pertence à mesma ordem de existência de Deus, o Pai, pelo que é Deus acima de tudo e antes de tudo que existe.

Assim como o Filho foi instrumental na criação do universo (v. 2), assim também prossegue o significado do Filho, como o vemos no quinto segmento de frase: sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder. Os filósofos de todas as eras sempre estiveram ansiosos para perguntar o que sublinha a realidade — isto é, que dinâmica sustenta e dá

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coerência a tudo quanto existe. O autor de Hebreus, revelando um pouco mais de sua perspectiva cristocêntrica, encontra a resposta na poderosa palavra do Filho. Essa perspectiva também encontra paralelismos em Paulo e em João. Quando João emprega o termo “Verbo” ou “Palavra” (logos) para descrever a Jesus, escolhe o termo que tem associações judaicas e gregas ao mesmo tempo. Para os filósofos gregos estóicos, logos era o princípio sublinhador da racionalização, que criou o mundo com ordem, coerência e lógica. Sem usar o termo técnico logos, Paulo argumen­ta de maneira semelhante: “Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Cl 1:17). Embora o autor de Hebreus não empregue o termo específico logos nessa passagem, a idéia de que Cristo sustenta o universo e o mantém em movimento (como indica o particípio presente (sustentando) está por trás do texto e constitui paralelismo.

No entanto, o autor de Hebreus não está contente com apenas marcar o caráter incomparável do Filho, em relação a todos os outros e a todas as coisas, como fez nas primeiras cinco expressões. Ele deseja também atingir um dos principais pontos da epístola, a obra expiatória do Filho, visto que essa é também parte vital da singularidade do Filho, da qual depende. O que torna estes dias os últimos é a realidade “de uma vez por todas” (para tomarmos de empréstimo uma expressão que encontraremos mais adiante nessa epístola), pois Cristo fez por si mesmo a purificação dos nossos pecados. Essa é de fato a obra preeminente do Filho. A “purificação dos nossos pecados” (lit.: “a limpeza de pecados” ) pode parecer estranha no meio de orações gramaticais gloriosas que apontam para a deidade do Filho. Afinal, essa expressão descreve a obra do sumo sacerdote e, embora em si mesma seja impressionante, pareceria familiar a um leitor judeu. No entanto, com a inserção dessa expressão, o autor antecipa uma discussão principal de Hebreus (cf. caps. 9 e 10): o trabalho do sumo sacerdote não é eficaz por si mesmo, mas apenas constitui sombra da obra sacerdotal daquele que realmente pode realizar — e ninguém mais— a expiação de nossos pecados. Só Deus, no Filho, pode realizar o sacrifício que possibilita a purificação de pecados e o perdão (veja-se Rm 3:24-26). Por isso, a purificação de pecados relaciona-se corretamente a frases que descrevem a singularidade do Filho em seu relacionamento com Deus.

Quando o Senhor havia cumprido cabalmente o propósito de sua encarnação, assentou-se à destra da Majestade nas alturas. As palavras

36 (Hebreus 1:1-4)

que compõem esta frase final, elevadíssima, transmitem uma idéia de obra acabada, de cumprimento dos propósitos de Deus. Foram tiradas de um salmo messiânico do Antigo Testamento (SI 110), sendo excepcionalmen­te importante para a discussão proposta pelo autor de Hebreus. Salmos 110:1 é citado aqui, ou a ele se faz alusão, bem como em 1:13 (de modo mais completo); 8:1; 10:12,13, e 12:2. Salmos 110:4, que é uma passagem sobre Melquisedeque, é citado ou a ele se alude em 5 :6 ,10; 6:20; e por todo o capítulo 7 (w . 3,11,15,17,21,24,28). Por que esse salmo tem tão grande importância para o autor de Hebreus? Duas principais discussões da carta podem ser sustentadas pelo salmo 110: a incomparável superioridade de Cristo (que se revela em sua exaltação à destra de Deus) e o extraordinário sumo sacerdócio de Cnsto (que fora prefigurado por Melquisedeque, como num paralelismo). A ascensão de Cristo a uma posição de poder e de autoridade, ao lado do Pai, é vindicação da verdadeira identidade da Pessoa que sofrera e morrera a fim de cumprir o perdão de pecados. Essa idéia encontra-se com freqüência no Novo Testamento, estando quase sempre relacionada à ascensão de Cristo. “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas” (E f 4:10); Jesus Cristo, “que está à destra de Deus, tendo subido aos céus; havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potestades” (1 Pe 3:22). Jesus faz alusão a Salmos 110:1 na tradição sinótica (veja-se Mc 12:36 e 14:62. passagens que têm paralelismos em Mateus e Lucas). O que o salmista havia prometido havia sido cumprido — daí a nota de término de obra. de finalização. O fato de o verbo dizer assentou-se à destra significa o encerramento, a conclusão de sua obra expiatória (cf. 10:11.12).

1:4 /Assim ele se tornou tanto mais excelente do que os anjos descreve o resultado da referência, na frase anterior, à exaltação de Cristo; refere-se, pois. não ao caráter do Filho desde o início, mas à última parte do v. 3, que se refere à ascensão de Cristo. Nessa exaltação à direita do Pai, o Filho chega a ocupar uma posição que na verdade sempre lhe pertenceu em virtude de sua identidade, a qual fora, todavia, colocada de lado durante a encarnação. A ascensão foi um atestado impressivo da verdadeira identidade do Filho e, assim, de sua superioridade sobre os anjos. Mediante a ascensão, o Filho tomou-se tanto mais excelente do que os anjos. Nesta declaração, o autor emprega uma de suas palavras favoritas, para descrever o caráter definitivo do Filho e sua obra, a expressão comparativa mais excelente (lit., “melhor”).

(Hebreus 1:1-4) 37

Chegamos ao final desse importante prólogo cristológico. É passagem que estabelece o tom do livro, e foi colocada logo no início pelo autor, a fim de que nós, leitores, entendamos tudo quanto se segue. O Filho é apresentado como alguém que incorpora os três principais ofícios do Antigo Testamento: profecia (falar em nome de Deus), sacerdócio (obter o perdão de pecados) e reinado (reinar com Deus à sua direita). Todavia, o Senhor é algo mais do que essa maravilhosa combinação de caracterís­ticas consegue expressar. O Senhor é a Pessoa mediante a qual e para a qual tudo quanto existe foi criado, a Pessoa que sustenta o universo, a expressão verdadeira da glória e da essência de Deus. Cristo é alguém com quem nem mesmo os anjos podem comparar-se. A Pessoa de Cristo é a chave para a compreensão da epístola aos Hebreus.

Notas Adicionais #71:1 / A frase inicial no texto grego foi inteligentemente elaborada, do ponto

de vista literário começa com uma aliteração eficaz e com uma cadência medida. Veja-se D W B Robinson, “The Literary Structure of Hebrews 1:1- 4”, Australian Journal o f Bihlical Archaeology — A Estrutura Literária de Hebreus 1.1-4, Revista Australiana de Arqueologia Bíblica— 1 (1972), pp 178-86 M uitas vezes ( l i t , “em muitas partes”) e de muitas maneiras correspondem a duas palavras gregas que ocorrem só-aqui, em todo o Novo Testamento, cuja tonalidade é captada lindamente em NEB "de forma fragmentaria e variegada” . Quanto a profetas como porta-vozes de Deus, veja-se G Friedrich, “prophetes”, TDNT, vol. 6, pp. 830ss.

1:2 nestes últimos dias é tradução de texto grego que, por sua vez, é tradução do hebraico, do Antigo Testamento (LXX), comumente utilizada para descrever a expectativa escatológica dos profetas (e.g., Jr 23:20, Ez 38:16, Dn 10:14) A primeira vinda de Cristo e sua volta estão intimamente relacionadas entre si, teologicamente, porque ambas têm caráter escatológico. Assim, e normal esperar que a segunda vinda ocorra imediatamente após a primeira. A conexão teológica intima das várias facetas da obra de Cristo implica a iminência cronológica da segunda vinda (mas não depende desta, nem a exige). Os cristãos devem ter máximo cuidado em preservar o caráter escatológico da primeira obra de Cristo, sem enfraquecer sua expectativa da obra futura do Senhor Quanto a uma descrição magistral da tensão existente a respeito deste tempo, como sendo o tempo do fim, sem ser o fim veja-se O. Cullmann, Christ and Time — Cristo e o Tempo — trad. de F.V. Filson (Filadélfia: Westminster Press, 1964). A respeito da escatologia de Hebreus, veja-se C. K. Barrett, “The Eschatology of the Epistle of Hebrews”, —

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Escatologia da Carta aos Hebreus — em The Background ò f the New Testament and Its Eschatology — O Contexto do Novo Testamento e Sua Escatologia — Festschrift for C. H. Dodd), ed. W.D Davies e D Daube (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1964), pp. 363-93.

Quanto à designação do Messias como Filho de Deus, veja-se E. Lohse, a respeito de hyios em TDNT, vol 8, pp. 360ff., veja-se também M Hengel, The Son o f G o d — O Filho de Deus — (Filadélfia: Fortress, 1976), pp 85-88, quanto à Cristologia de Hebreus, veja-se V. Taylor, The Person o f Christ — A Pessoa de Cristo — (Londres. Macmillan, 1958), pp 89-98

O mundo é literalmente “as épocas”, por isso Barclay traduziu assim: “o mundo atual e o mundo que virá” (cf. 6.5). Quanto a “época” como termo espacial, com o sentido de “mundo,” veja-se H. Sasse, a respeito de aion, em TDNT, vol 1, pp 203s.

As dimensões escatologicas de “herdeiro” e suas conexões com filiação são 1 mportantes não apenas para Cristo, mas para seu povo também De acordo com Paulo (Rm 8 17) e Pedro (1 Pe 3:7), o povo de Cristo usufrui a filiação mediante a adoção e são feitos co-herdeiros com Cristo Para o autor de Hebreus, a herança dos santos é sumamente importante Veja-se 6 12, 17,9 15. 10 36, 11:8

1:3 / Alguns eruditos têm argumentado que o v 3 originariamente fazia pane de um hino confessional O pronome relativo inicial hos (“que”, não aparece na ECA), os particípios característicos e seu conteúdo, tudo aponta para esta possibilidade (Quanto a este ponto, veja-se a similaridade com outros “hinos” em outras cartas do Novo Testamento, e.g., Coloncnses 1:15, Filipenses 2:6ss e 1 Timoteo 3:16). Veja-se ainda J T Sanders. The New Testament ChristologicalHymns — Hinos Cristologicos do Novo Testamen­to — SNTSMS 15 (Cambridge: Cambridge Univ Press, 1^71), pp I9 se p p 92ss E notável que as principais passagens cristológicas do Novo Testamento apresentam sinaisde terem sido adaptações de hinos. Afinal, a melhor teologia é sempre cantada em vez de falada. Veja-se também J Frankowski, "Early Christian Hymns Recorded in the New Testament: A Consideration of the Question in the Light o f Heb 1,3” — Os Primitivos Hinos Cristãos Registrados no Novo Testamento: Uma Consideração dessa Qustão à Luz de Hebreus 1 3— Biblische Zeitschrift — 27 (1983), 133-94, que argumenta que esse hino é da autoria de quem escreveu Hebreus, tendo sido criado a partir de fragmentos de hinos já existentes.

Este versículo contém duas palavras-chave que só se encontram aqui em todo o Novo Testamento: “esplendor” (apaugasma) e “expressa imagem” (<Charakter). A primeira tem o sentido ativo de “refulgência”, bem como o sentido passivo de “reflexão”, quando ocorre em Filo, que usa essa palavra

(Hebreus 1:1-4) 39

para descrever o que Deus assoprou no homem, ao criá-lo. É provável que o sentido ativo seja uma tonalidade especial aqui. (Veja-se R. P. Martin em NIDNTT, vol. 2, pp. 289s.) A segunda palavra, também encontrada em Filo, significa “representação exata” no sentido de “impressão”, “carimbo”, ou “estampagem”, como a máquina que estampa moedas (Veja-se U. Wilckens em TDNT, vol. 9, pp 418-23.) A palavra grega katharismos é termo técnico para purificação cultual e, com esse sentido, é empregada na LXX, e até mesmo no NT, onde pode significar “lavagem ritual” (Jo 2:6; 3:25), ou, com sentido mais genérico, purificação (como também ocorre em Lc 2:22; 2 Pe1.9). Seu emprego aqui não é acidental, por causa do argumento central do autor acerca do ritual de sacrifício do templo, cujo objetivo está na obra de Cristo A purificação dos nossos pecados é termo empregado em seu sentido absoluto, incluindo os pecados de toda a humanidade.

O salmo 110 tinha tremenda importância para a igreja primitiva. Tinha grande significado messiânico, no entender dos intérpretes judaicos dos tempos de Jesus, teria sido cumprido com o máximo vigor quando Cristo ressurgiu e ascendeu ao céu, o Cristo que agora é adorado e louvado como o Senhor Soberano da Igreja. Veja-se o excelente estudo de David M. Hay, Glory ai lhe Right Hand: Psalm 110 in Early Christianity, SBLMS 18 (NashvilleeNovaYork Abingdon, 1973). O extensivo uso do salmo 1 lOpelo autor de Hebreus é notável, explicado pela forma eficaz por que seu conteúdo apóia os argumentos da carta. Mas G. W. Buchnanan, talvez vá longe demais ao descrever Hebreus como “ ‘mídras’ homilético, baseado no salmo 110” . To lhe Hehrews, AB 36 (Nova York Doubledav, 1972), p xix.

O autor do texto grego do prólogo evita cuidadosamente o uso desneces­sário da palavra “ Deus” (theos), como se propositalmente seu documento se destinasse a leitoresjudeus que consideravam essa palavra santíssima. Assim e que, afora seu emprego no v. 1, a palavra Deus não aparece de novo no texto grego Nossas traduções (inglesas) a repetem no v. 3 apenas com o uso de pronomes Duas palavras que representam circunlóquios, isto é, que represen­tam Deus, aparecem no v. 3 glória e M ajestade nas alturas

1:4 / Este versículo apresenta a expressão favorita do autor, ao traçar o contraste entre o novo e o antigo “mais excelente” (kreisson, que também pode ser substituída por kreitton) E expressão que ocorre treze vezes, com referência ao Filho (1:4), a Melquisedeque (7 7), à salvação (6:9), à aliança (7 22,8:6), ao sacri ficio (9 .23 ,12:24), às promessas (8:6), às possessões atuais (10:34) e as expectativas futuras (7:19; 11 16,35,40). O uso freqüente dessa expressão está alinhado com exatidão ao argumento central do livro.

Quanto ao significado teológico da ascensão, v J G. Davies, “Ascensão de Cristo”, em DCT, pp. 15s.

2. Cristo È Superior aos Anjos em Sua Divindade (Hebreus 1 :5 -14)

A grande atenção dedicada à superioridade de Cristo em relação aos anjos, a qual ocupa o resto do capítulo 1 e a maior parte do capítulo 2, provavelmente nos deixa espantados, como se fora algo estranho, pois não temos a mesma consciência, a respeito dos anjos, que tinha o mundo antigo. A idéia de anjos era tão importante no primeiro século, que nós a encontramos tanto no pensamento religioso grego como no judaico. No sistema religioso grego enfrentamos o gnosticismo, que enfatizava o conhecimento especial que induzia à experiência da salvação. No gnosticismo, o dualismo entre o espírito e a matéria era fundamental. Deus sena espirito puro e, portanto, bom; os seres humanos têm corpos físicos que os envolvem no mal, algo intrínseco à matéria (a salvação consiste em a alma escapar do corpo). Entre Deus e a humanidade há a mediação das emanações divinas, sob a forma de hostes de seres espirituais, os agentes do governo de Deus, os quais, por isso mesmo, evocam a adoração. Estes seres espirituais, não dispondo de corpos materiais, eram considerados intrinsecamente superiores a Jesus (a menos que se argumente, como o faziam os gnósticos cristãos, que Jesus jamais teve um corpo físico real; so aparentemente o Senhor teve corpo material).

Até mesmo no âmbito do pensamento judaico, segundo o qual havia bondade na matéria, e desprezava-se o dualismo dos gnósticos. Deus era percebido remotamente, em sua transcendência, e sentia-se a necessidade de intermediários angelicais. É por isso que na literatura rabínica. e na que surgiu entre os dois testamentos, o papel dos anjos é considerado de vital importância. Não sabemos se a situação enfrentada em Hebreus tinha suas raízes primordialmente nos círculos gnósticos, ou nos judaicos, ou numa mistura indefinida de ambos. No entanto, se estivermos corretos em afirmar que os destinatários da carta eram judeus que corriam o perigo de recaída no judaísmo obsoleto, é bem provável que julgassem boa solução considerar Jesus um anjo e, dessa forma, evitar a pedra de tropeço de adorar o Senhor como se fora Deus. Para o autor de Hebreus é intolerável o pensamento de que Cristo pudesse ser considerado inferior aos anjos, ou

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que fosse tido como anjo. A única perspectiva aceitável seria a que vê o Filho como superior às hostes angelicais — Alguém que está ao lado de Deus, contra tudo o mais que existe, em esplendor incomparável.

Visto que na ascensão o Filho assumiu a posição que lhe pertencia de direito, nesse dia ele também recebeu um nome que sempre foi seu. No Novo Testamento, a ascensão de Cristo vem associada à atribuição de um nome ao Cristo que subiu aos céus. Por trás da atribuição desse nome está o ponto de vista hebraico, segundo o qual os nomes não são meras etiquetas de identificação, mas relacionam-se à natureza e ao caráter da pessoa ou circunstância que recebe os nomes. Assim é que a palavra “Filho”, nome a que nos referimos (veja-se o versículo seguinte), ainda que em certo sentido seja própria para designar Jesus Cristo, assume o significado adequado e especial nesse evento, em que o Senhor é investido de poder à destra de Deus. Tal investidura, logo depois do termino da obra do Filho encarnado, que revelou a Deus e realizou nossa redenção, agora entra em nova realidade, coincidente com o significado de seu nome. Nas cartas de Paulo a ascensão também esta ligada à atribuição de um nome a Jesus. Numa passagem clássica. Paulo escreveu: "Pelo que Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome” (Fp 2:9; veja-se também Ef 1:20.21). Nesse caso, o nome é "Senhor” (kynos), titulo cujo sentido é comparável a "Filho” . O argumento do autor de Hebreus é que a ascensão do Filho à direita de Deus concede-lhe posição única e nome singular, destacando-o como muitíssimo superior aos anjos.

1:5 / A fim de fortalecer o argumento da superioridade de Cristo sobre os anjos (cf. v. 4). o autor apresenta-nos agora uma série de sete citações do Antigo Testamento, cujo sentido considera evidente, pois não tem a preocupação de interpreta-las para nós. a não ser numa observação casual na introdução. A abordagem do Antigo Testamento aqui, bem como em toda a carta, é claramente cristocêntnca. Em outras palavras, a respeito de Jesus Cristo como objeto de todas as obras e de todas as palavras vindas de Deus, o autor vê no Filho o significado último de todas as coisas, a chave da compreensão. A luz do cumprimento realizado, podemos agora obter um sentido mais profundo e verdadeiro do Antigo Testamento. (Na Introdução há uma discussão da hermenêutica do autor.)

A primeira citação foi tirada do salmo 2, que tem ambientação histórica própria. O salmo 2 originariamente fora um salmo da realeza, composto

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para a coroação de algum rei israelita. No entanto, o conteúdo do salmo é de tal ordem, que os intérpretes judaicos anteriores à era do Novo Testamento viam nele um sentido mais profundo do que se poderia imaginar mediante simples leitura. Conquanto não seja diretamente profé­tico, o salmo é, não obstante, uma antecipação da vinda do Ungido, que traria consigo julgamento e bênção — julgamento para os perversos e bênção para Israel, mediante o livramento que se esperava havia tanto tempo. Portanto, o rei histórico é sombra do Rei que haveria de vir. Por isso esse salmo é cabivelmente chamado “messiânico” . O termo “messiânico” significa simplesmente que esse Libertador “Ungido” é aquele por que tanto se aguardou (a palavra hebraica “Messias” e a palavra grega “Cristo” significam “Ungido”). O salmo 2 refere-se de modo específico a esse “Ungido” (2:2), a quem serão entregues todas as nações da terra, o qual trará julgam ento (2:8-9). Identifica-se que esse Ungido, ou Messias, tem um relacionamento singular com Deus: T u és meu Filho, eu hoje te gerei (SI 2:7). Portanto, provém sobretudo desse salmo o contexto doutrinário que identifica o Messias de Deus como o Filho de Deus, pelo que o autor de Hebreus pode usar o título de “Filho” em seu sentido absoluto, como ocorre no prólogo cristológico (veja-se v. 2). Salmos 2:7 é citado de novo pelo autor de Hebreus em 5:5, com nova alusão em 7:28. Era um texto importante na igreja primitiva (veja-se At 13:33), que, combinado com Isaías 42:1, aplica-se a Jesus tanto em seu batismo (Mc 1:11 e passagens paralelas) como na transfiguração (veja-se Mc 9:7 e paralelismos; cf. 2 Pe 1:17). O advérbio hoje entende-se mais apropriadamente em referencia à ressurreição (veja-se Rm 1:4), ou de modo especial à ascensão, dado o contexto de nosso versículo. Deus jam ais falou de modo tão glorioso a respeito de nenhum de seus anjos.

O segundo elo dessa cadeia de citações também se refere ao Filho especial, agora com palavras retiradas da aliança com Davi: E u lhe serei p o r Pai, e ele me será por Filho (2 Sm 7:14; veja-se também a passagen paralela, 1 Cr 17:13). Outra vez é um rei que se tem em vista, um descendente de Davi, de tal modo que uma análise exegética histórico- gramatical deve levar-nos naturalmente a Salomão. Este edificará o templo e, ao lado de Davi, será o principal da dinastia que durará para sempre (2 Sm 7:13,16). Todavia, a natureza gloriosa dessa promessa é de tal calibre, que esse “filho de Davi” virá a fim de amalgamar-se com a expectativa de um rei messiânico que trará o cumprimento das promessas

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de Deus. Segundo a linha interpretativa dos líderes judaicos anteriores a Jesus, essa passagem teria um significado mais profundo do que quaisquer tentativas de cumprimento porventura percebidas em algum descendente de Davi. Considerava-se que esta passagem, à semelhança de Salmos 2:7, tinha significado escatológico distinto. Na verdade, a combinação desses dois textos, segundo esta perspectiva, nós a encontramos na literatura da comunidade da aliança em Qumran, nas praias do mar Morto, em época anterior à do Novo Testamento. A reiterada referência a Jesus, nos evangelhos, como o “filho de Davi”, é o que o identifica de pronto como o Messias, e com a aliança davídica (a respeito desta última aliança, veja- se Lc 1:32,69e Rm 1:3). Nessas duas primeiras citações, o autor estabelece a filiação singular do Filho e, dessa forma, a superioridade do Filho, com base na autondade das Escrituras (autoridade que o autor pressupõe ao escrever a leitores judeus).

1:6 / A terceira citação consiste de palavras provenientes apenas da LXX (Dt 32:43). Todos os anjos de Deus devem adorá-lo, embora haja também uma passagem paralela em Salmos 97:7 que diz: “Prostrai-vos diante dele. todos os deuses!” . A LXX, porém, diz “todos os seus anjos” . Com toda a probabil idade o autor de Hebreus citou a LXX aqui, bem como em Deuteronòmio 32:43. como em outras passagens, a versão do Antigo Testamento. O que é notável nesta passagem (também em SI 97:7) é que a Pessoa adorada é o Senhor, ou lavé (i.e., esse é o nome pessoal de Deus, que se escreve com as consoantes YHWH), pelo que o Filho é identificado com o lavé do Antigo Testamento. Esta citação é usada primordialmente em referência á adoração de anjos. Mas, se as palavras pronunciadas para o Senhor referem-se ao Filho, fica claramente implícita a deidade do Filho (e. desse modo. sua superioridade sobre os anjos).

1:7 / A quarta citação apresenta uma descrição da função dos anjos, a qual. de modo muito decisivo, coloca os anjos em posição subserviente. A fonte da citação de novo é a LXX (SI 104:4). Os anjos são assemelhados aos elementos naturais que funcionam segundo o querer de Deus, pois são seus mensageiros. Os anjos são espíritos que servem a Deus, como o autor de Hebreus o diz no v. 14. Há também um elemento de contraste implícito entre a inconstância e transitoriedade dos ventos, que estão sempre mudando, e do fogo (e diga-se o mesmo dos anjos), que contrasta com a

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permanência do Filho, no v. 12: “Tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” (veja-se também 13:8). Verdadeiramente os anjos são mensa­geiros e agentes de Deus, elementos distintamente subordinados, destitu­ídos de importância central, não podendo de modo algum ser assemelha­dos a Deus ou a Cristo, o Filho.

1:8-9 / Na quinta citação, Salmos 45:6-7, entende-se que as palavras usadas originariamente nas bodas de um rei têm aplicação total, completa, ao Filho de Deus. O rei que se tinha em mente a princípio era um monarca israelita: mas as palavras pronunciadas a ele são tão gloriosas, que seu cumprimento final só pode ocorrer com referência ao rei messiânico, o Filho de Davi, o Filho que agora está à direita do Pai. As palavras de abertura dessa citação sofrem de ambigüidade tanto no texto hebraico como na LXX. “ Deus” deve ser entendido como uin vocativo: O Deus. pelo que Deus é a Pessoa a quem se fala; ou “Deus” é o sujeito da oração, e trono é predicado nominal, “Deus é o meu trono" (essa é a tradução na margem da RSV). Esta tradução não faz muito sentido; todavia, às vezes é a preferida em vista da dificuldade de imaginar Deus falando a outro Deus (como no v. 9), e, por causa da dificuldade, de entender o contexto histórico onginal. em que a pessoa se dirige a um rei de Israel como se este fora Deus. Esta última dificuldade pode ser explicada como se se tratasse de uma hipérbole do rei que funciona como representante de Deus. ou seja. como rei. No entanto, ao entender que essas palavras se referem a Cnsto. o autor as toma de modo literal, e não em sentido hiperbolico. Assim e que ele afirma a divindade do Filho (como vimo-lo fazer tambem no v. 6 1 O Filho não é mero representante de Deus; o Filho é Deus em virtude de sua natureza e de sua função. O trono que subsiste pelos séculos dos séculos, o qual será caracterizado pela eqüidade (justiça), é o reino messiânico prometido, com seus sobretons escatológicos.

No v. 9 a palavra Deus. como ocorre pela primeira vez, pode significar “O Deus” , o que indicaria o prosseguimento da oração a Deus nessa passagem. (Por isso é que a NEB traz: “Portanto, ó Deus, teu Deus te colocou acima de teus companheiros” .) A Pessoa a quem a palavra é dirigida goza de posição de honra singular. As dimensões messiânicas desta passagem são elevadas mediante as palavras Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros. É adequada esta passagem, porque o Filho, o Messias, foi revelado corretamente ao

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autor e a seus leitores. O Ungido é a consumação dos propósitos de Deus, é corretamente mencionado como Deus, e adorado como Deus. Por isso, não há quem se lhe compare... te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus com panheiros. Esta última palavra pode ser alusão à realidade da encarnação, visto ser cognato do verbo “participam” de 2:14; de modo mais específico pode referir-se a todos os demais reis ungidos, em cuja linhagem surge o Filho. Embora não haja referências específicas a anjos nesta citação, a ligação com a citação anterior é de tal ordem que a intenção do autor continua a ser um contraste com os anjos. Se este Filho é quem o salmo afirma ser, a superioridade do Filho fica transparentemente óbvia.

1:10-12 / A citação mais longa nesta cadeia é a sexta: Salmos 102:25-27. No meio de suas provações o salmista louva ao Senhor (Iavé), que provê a permanência e a segurança que tanto lhe faltam. Entendemos que tais palavras devem aplicar-se ao Filho. O que temos em vista é a eternidade do Filho, em comparação com o que é transitório. Os versos de abertura. Tu, Senhor, no princípio fundaste a te rra , e os céus são obra de tuas mãos, fazem eco da declaração inicial, no prólogo, segundo a qual o Filho é aquele “mediante quem [Deus] fez o universo” (por quem fez o mundo, v. 2). O Filho é identificado como o Senhor (Iavé). No que diz respeito à criação, vai chegar o tempo em que ela será renovada e totalmente alterada. Na linguagem metafórica dos últimos tempos, qual um m anto os enro larás; como roupa se m udarão, refenndo-se à terra e aos céus. Todavia, no meio de uma crise escatológica em que aparente­mente tudo estará falhando, tu perm anecerás... tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão, assim afirma o salmista. Nada existe que se possa afirmar permanecerá para sempre, exceto Deus e o que ele decidir sustentar Segundo esta passagem, os anjos são menos ainda do que na passagem anterior O Filho está sendo adorado e louvado como Deus. Assim é que o prólogo cristológico dos w . 1-4 tem o apoio firme destas passagens do Antigo Testamento.

1:13 / A sétima citação, a que constitui o clímax, introduz Salmos 110:1; trata-se de passagem de importância fundamental para o autor de Hebreus, que de início vimos no fmal do versículo 3, na parte final e mais elevada do prólogo cristológico. No entanto, aqui é o versículo inteiro que se nos apresenta. De novo o autor tem em mente a ascensão de Cristo à

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posição de honra e autoridade sem paralelo, à mão direita do Pai. Ali ele exerce seu reino; é de estranhar, todavia, pois trata-se de uma época em que seus inimigos ainda não foram transformados em estrado dos teus pés. E quase certo que este aspecto aumentou o significado deste versículo para a igreja primitiva, capturando a tensão existente entre o que já foi realizado* (o cumprimento efetuado) e os aspectos da era escatológica, que serão realizados no futuro (o enrolamento dos céus). Para o autor de Hebreus este salmo é duplamente significativo por causa da referência ao sacerdócio de Melquisedeque e em razão da utilidade desta referência para o principal argumento do autor (veja-se abaixo, 5:6-10 e o cap 7). As palavras que introduzem esta citação outra vez suscitam a questão da superioridade do Filho sobre os anjos. Este versículo, que descreve a pedra angular, que atesta o encerramento do ministério perfeito do Filho, serve como uma das armas básicas do arsenal de argumentos do autor a respeito da superioridade da Pessoa e da obra do Filho

1:14 / Qual é então a estimativa realística dos anjos e de suas funções? Eles são espíritos m inistradores; mas, como tem sido demonstrado, apresentam um papel subordinado no serviço que prestam a Deus. A preocupação de Deus não se dirige aos anjos, mas a nos. pelo que o Senhor os envia para serv ir a favor dos que hão de herdar a salvação. Deus e o Filho são a fonte de nossa salvação, como o autor vai demonstrar de modo tão audacioso nesta epístola. Pela graça de Deus. seus servos nos ajudam de modo que atinjamos aqueles objetivos. A idéia de que recebemos ajuda pessoal da parte dos anjos baseia-se em ensino firme do Antigo Testamen­to (e. g., SI 91:11), traz-nos à memória o ministério dos anjos a Jesus (Mt 4:11; compare-se com 26:53), tendo o sentido de conforto e encorajamento pessoais, em face de dificuldades reais enfrentadas por esses judeus cristãos.

*“Escatologia realizada” é termo usado pelos teólogos para representar a convicção do Novo Testamento de que as bênçãos da era messiâmcajá se tomaram realidade, pelo menos até certo grau, mediante a Primeira Vindade Cristo, de modo especial pela sua morte e ressurreição. Essa perspectiva está associada ao trabalho de C.H Dodd.

Notas Adicionais # 2A grande preocupação com anjos, nos capítulos iniciais de Hebreus,

ajudou alguns eruditos a chegarem a algumas conclusões a respeito das pessoas a quem a carta foi dirigida. T. W. Manson viu uma correlação entre a discussão do autor de Hebreus e a que Paulo desenvolveu contra os gnósticos judeus, a heresia colossense, segundo a qual, dentre outras coisas, a adoração de anjos era um problema específico (Cl 2:18, cf. 2:15). Conclui Manson que foi Apoio quem escreveu Hebreus à igreja de Colossos. (Veja-se “The Problem of the Epistle to the Hebrews” — O Problema da Carta aos Hebreus— Studies in the Gospels and Epistles — Estudos nos Evangelhos e nas Cartas— [Manchester: Manchester Univ. Press, 1962].)Hughesachaqueapreocu- pação a respeito de anjos dá apoio às tentativas de conclusões a que chegou: os destinatarios teriam inclinação para o ensino da seita do mar Morto, segundo a qual os anjos desempenhavam papéis excepcionalmente importan- tes(p 52s.). Em contraste, Montefioreaponta com muita segurança paraoutra direção: o interesse pelos anjos não salienta nada mais específico senão a probabilidade de os leitores judeus terem julgado ser mais fácil reter suas pressuposiçõesjudaicas, e certa forma de experiência cristã, se conseguissem considerar Jesus meramente um anjo de Deus (p. 41s ). Afinal, a angelologia florescia vigorosamente na literatura rabínica e na intertestamentária.

1:5 / Há boas possibil idades de que o autor tenha tomado como empréstimo esta cadeia de citações (w. 5-13) de uma coleçãojá existente. Certas evidências de Qumran indicam que se usavam algumas coleções de textos das Escrituras, no primeiro seculo e, na verdade, sugerem que Salmos 2:7 e 2 Samuel 7:14 haviam sido combinados muito antes de Hebreus ter sido redigido. (Veja-se JM . Allegro, “Further Messianic References in Qumran Literature” JBL 75 [1956], pp 174ss., J . A. Fi tzmver, “4Q Testi mom a and the New Testament”, Theological Studies — Estudos Teológicos — 15 [1957], pp. 513-37.) E claro que a dependência do autor a tal fonte é mera especulação E possível que tenha sido ele próprio quem coligiu essas passagens do Antigo Testamento. Veja-se J. W. Thompson, “The Structure and Purpose of the Catena in Heb. 1:5-13”, CBQ 38 (1976), pp. 352-63 De modo mais genérico, a respeito de citações do Antigo Testamento em Hebreus (além dos textos específicos incluídos na Introdução), veja-se R. N. Longenecker, Biblical Exegesis in the Apostolic Period— Exegese Bíblicano Período Apostólico — (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp. 158-85; G.B. Caird, “Exegetical Method of the Epistle to the Hebrews”, Canadian Journal o f Theology— Periódico Canadense de Teologia— 5 (1959), pp. 44- 51, S. Kistemaker, The Psalm Citations in Hebrews — Citações de Salmos em Hebreus — (Amsterdam, 1961); S. Sowers, The Hermeneutics o f Philo and Hebrews — Hermenêutica de Filo e de Hebreus — (Zurique, 1965).

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O salmo 2 era um texto messiânico excepcionalmente importante no primeiro século, segundo a interpretação judaica e cristã. Quanto aosjudeus, mencionamos os rolos do mar Morto, e podemos acrescentar os Salmos de Salomão 17:23-27. Quanto aos cristãos, além das três ocorrências de SI 2:7 em Hebreus (veja-se 5.5 e 7:28), veja-se também Mt 3:17, 2 Pd 1:17, e de modo especial At 13:33. Também digna de nota na proclamação cristã primitiva é a citação de Salmos 2:1-2 em Atos 4:25-26. Finalmente, encontram-se também no Apocalipse várias alusões a outros versículos do salmo 2.

Salmos 2:7 é texto fundamental para o autor de Hebreus, cuja cristologia se expressa de modo preeminente no conceito de “Filho de Deus" i4 14, 6 6, 7 3,10:29). A palavra Filho, como é usada de modo absoluto no prólogo, certamente tem a conotação de “Filho de Deus” E nessa fiiiação que se encontra a singularidade especialíssima de Jesus, como participante pleno da divindade do Pai Ser “Filho de Deus” é o mesmo que ser Um com Deus. Veja- se O Cullmann, The Christology o f the New Testament — Cristologia do Novo Testamento — (Filadélfia. Westminster Press [ET], 1959) pp 303-5

A citação de 2 Samuel 7 14 implica no titulo “Filho de Davi”, com suas claras conotações messiânicas. Estava claro para todos que a expressão “Fiiho de Davi”, o descendente messiânico, significava a chegada da era escatològica. no entanto, nem todos entendiam que ele deveria ser Filho de Deu^ antes do cumprimento da promessa experimentada pela igreja na ressurreição e na exaltação de Jesus

1 :6 /0 autor de Hebreus menciona repetidamente a LXX em sua obra. o que fica mais evidente na presente citação de Deuteronômio 32:43. do que em qualquer outra passagem da carta, Deuteronômio 32 43 não se encontra na Bíblia Hebraica. A LXX é uma tradução pre-cristã do Antigo Testamento (feita por uma plêiade de tradutores do terceiro seculo a.C ), baseada em manuscritos primitivos hebraicos, anteriores aos documentos passados as gerações futuras, eram considerados livros canônicos, cheios de autoridade, pelos massoretas (eruditos judeus que acrescentaram as vogais acs textos consonantais e transmitiram esses textos com fidelidade aos cristãos da Idade Média) No primeiro século d.C. havia alguns documentos hebraicos diver­gentes, um tanto diferentes dos mesmos textos, isto se comprova pela descoberta da atual citação em um manuscrito em hebraico de Deuteronômio, entre os rolos de Qumran (gruta 4). O tradutor da LXX aparentemente tinha consigo este versículo do manuscrito hebraico que traduziu (Veja-se F M Cross, Jr TheAncient Library o f Qumran — A Antiga Biblioteca de Qumran— [Nova York: Doubleday, 1958], pp 181 ss.) A LXX é importante para a teologiae para as discussões do autor de Hebreus, o que se nota por toda a carta. Aqui, por exemplo, se pode apontar atradução da LXX de YHWH pela palavra

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grega kyrios (Senhor), no contexto de nossa citação, servindo de antecedente do pronome “o”, isto facilitou o uso que o autor faz desta citação, aplicando- a a Cristo. Visto que kyrios era o título favorito dado a Cristo pela igreja primitiva, fica fácil identificar Cristo como o kyrios (YHWH) da LXX. No v.10 (“Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra”) a identificação é explícita. Veja-se ainda K J Thomas, “The Old Testament Citations in Hebrews” — Citações do Antigo Testamento em Hebreus — NTS 11 (1964-65), pp 303- 25, T F Glasson, “Plurahty of Divine Persons and the Quotations in Hebrews 1,6ss.” — Pluralidade de Pessoas Divinas nas Citações de hebreus 1:6ss. — NTS 12 (1966), pp 270-72.

Nas palavras que apresentam esta citação Ao introduzir o primogênito no mundo, diz [Deus] não ficou claro o tempo em que o Filho seria enviado ao mundo, isto é, se o texto se referia ao seu ministério terreno ou à sua segunda vinda Se a referência e ao ministério terreno, podemos notar a menção a anjos em Lucas 2:13s. (ou possivelmente Mt 4 11); é claro que os anjos estão regularmente associados ao advento escatologico Se o advérbio novamente for tomado como referência ao envio, tem-se em mira o segundo advento No entanto, e mais provável que novamente se refira apenas à adição de outra citação em que Deus fala a respeito de seu Filho.

A palavra primogênito, aplicada ao Filho, deve ser entendida em sentido especial, não em referência a criação do Filho, mas à sua supremacia hierárquica O Filho fica no topo de tudo quanto existe, não como se houvera nascido em primeiro lugar, mas antes, com Deus, em contraposição a toda a criação que. na verdade, so existe por mediação do Filho Assim é que a preeminência do Filho é transmitida por mediação da palavra, como também ocorre em Paulo (Cl 1 15,18) As outras duas ocorrências dessa palavra em Hebreus (1 1 28, 12:23) não se reterem de modo direto ao Filho Veja-se ainda L R Helyer, "The Proíotokos Tule in Hebrews” — O Titulo Prototokos em Hebreus,” Studia fíiblica et The< logtca 6 ( 1Q76), pp 3-28.

1:7 O livro apócrifo 2 Esdras (821) comem este paralelismo interessante: que es serv ido pelas hostes de anios que tremem, quando se transformam em

vento e fogo, quando tu os chamas” (NEB), que por sua vez depende provavelmente de Salmos 104:4

1:8-9 / teu reino em alguns manuscritos e substituído por seu reino [dele]. As evidências dos manuscritos dão ligeiro apoio preferencial para teu, como o faz o sentido da passagem que. caso aceitassemos seu, exigiria a aceitação de uma expressão mais difícil: "Deus é teu reino”. Quanto a um estudo excelente destes versículos, veja-se M.J Harris, “The Translation and Significance of h o theos in Hebrews 1 8-9” — Tradução e Significado de ho lheos em Hebreus 1 8-9,” TB 36 (1956), pp 129-62.

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1:10-12 / A LXX (SI 101:26 [NIV 102:26]) inseriu “Senhor” (kyrios) na primeira linha da citação e, dessa forma, fez que a aplicação dessa passagem pelo autor de Hebreus, ao Filho, ficasse muito mais fácil (já que o Filho é realmente o Senhor). Embora o texto hebraico não tenha o vocati vo exatamen­te nesse ponto, a linha imediatamente precedente (SI 102:24) diz “O meu Deus. . teus anos prosseguem por todas as gerações” .

l:13/Quantoàcentralidade do salmo 110 no conceito do autor de Hebreus e no da igreja primitiva, veja-se o comentário e a nota sobre 1:3

1:14 / A expressão espíritos min\stradores(leilourgika pneumuta) não se encontra no Antigo Testamento, mas apresenta considerável semelhança com a descrição dos anjos como “mensageiros” e “ministros” (lilourgoi) de Sal mos 104 4(LXX SI 103 4),queémencionadopeloautorno v 7 Servir I lit , “para ser\ iço”) e palavra que vem sublinhada na tradução de NIV pelo substantivo do Novo Testamento Jiakoma, que ocorre apenas aqui, em Hebreus A palavra herdar (kleronomeo) é importante para o autor (cf. 6:12, bem como seus cognatos, em 6 17, 9:15, 11 7s ) Esta linguagem reflete o recebimento do cumprimento das promessas do Antigo Testamento e é, por isso, apropriada de modo especial aos propósitos do autor, quando este escreve a respeito da salvação que os cristãos ganharam. Veja-se W Foerster, TÍJNT, vol 3, pp. -7 ò-S5 A respeito de salvação (soteria), veja-se a nota sobre 2:3

Quanto a passagem toda, veja-se J P Meier, “Symmetrv and Theology in tne Old Testament Citations of Heb. 1, 5-14” — Simetria e Teologia nas C itações do Antigo Testamento Encontradas em Hebreus 15-14 — Bihlica 66 (1985). pp 504-33.

3. Um Chamado à Fidelidade (Hebreus 2 :1 -4 )

Estes quatro versículos são uma exortação parentética, a primeira de uma série de exortações desse tipo, que se seguem ao estilo e método tão bem formulados pelo autor de Hebreus. Ele não gosta de discutir teologia de forma abstrata, mas, ao contrário, constantemente está conclamando seus leitores para a importância prática da teologia e para a reação apropriada. De fato Paulo escreve como teólogo consumado, e também como pregador cheio de preocupações pastorais.

2:1 / Se o Filho demonstra esplendor incomparável, os leitores devem a ten ta r com mais diligência para as coisas que já temos ouvido, isto é, a mensagem de salvação, para que em tem po algum se desviem. Pressões violentas tentavam esmagá-los, a fim de que comprometessem a verdade do evangelho. Veja-se 10:29, 12:25. O argumento do autor de Hebreus é que uma avaliação adequada do Filho (é a força denotada na conjunção portanto) resultará no reconhecimento da verdade e da suprema importân­cia da mensagem cristã (que já temos ouvido) e também encorajará a fidelidade a essa mensagem.

2:2 / Com esse versículo, o autor inicia uma argumentação a fo rtio n , ou seja. parte de uma verdade já aceita sobre um assunto para outra com razões ainda mais fones para ser aceita como verdadeira: se uma já convence, que se dirá da outra. A questão menos importante implica a palavra falada pelos anjos. O que se tem em mente é a lei mosaica recebida no monte Sinai por intermediários angelicais. Essa palavra era, é claro, firm e (o autor aceita a validade da mensagem de Deus a seus antepassados; veja-se 1:1), e o nosso autor tem em mente sobretudo a realidade do julgamento sobre toda violação e desobediência. Era a palavra de Deus; e a retribuição (punição), portanto, caía sobre os desobe­dientes.

2:3 / Se é verdade o que se disse anteriormente a respeito da palavra de Deus proferida aos antepassados dos leitores, quanto mais não será

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verdadeira a realidade do julgamento que sobrevirá aos que deixarem de ouvir a palavra definitiva de Deus proferida em seu Filho! Implícita no argumento está a superioridade da mensagem de Deus falada. Se eles de fato receberam julgamento naquela situação inicial, como escaparem os nós, se negligenciarm os tão grande salvação? As palavras finais reme­tem à esplêndida salvação realizada pelo Filho, algo retomado posterior­mente com detalhe. naespístola. Em 12:25 encontra-se o mesmo argumen­to a fortion .

A verdade dessa salvação é agora realçada para reforçar a advertência aos leitores. O Filho, ja tão excelentemente descrito no prólogo, ou o Senhor, foi o primeiro a anunciá-la (cf. Mc 1:1,15). É, portanto, iniciada pela autoridade daquele que com Deus vai de encontro o tudo o mais que existe. Não pode haver maior autoridade do que essa para garantir a verdade da palavra da igreja. E essa palavra foi além do mais cuidadosa­mente confirmada aos autores e aos leitores (confirm ada pelos que a ouviram ) pelos que de fato ouviram a proclamação dos lábios de Jesus. A comprovação das testemunhas oculares é tida em alta conta, e o escritor claramente se separa dos que tiveram o privilégio de testemunhar as palavras e as obras de Jesus. Assim, enquadra-se na segunda geração de discípulos. A esse respeito, pode-se comparar a Lucas (Lc 1:2).

2:4 / Essa mensagem de salvação não é menos verdadeira do que a mensagem anterior, falada por Deus no Sinai: e. assim como àquele acontecimento se seguiram smais esplêndidos (os quais, embora o nosso autor mencione apenas os anjos, certamente eram subentendidos pelos leitores), assim também Deus testificou com eles a sua mensagem definitiva. Sinais, prodígios e vários m ilagres foram realizados por ele por meio dos apóstolos. Mas o sinal que marca o apogeu da autenticidade é o novo derramamento dos dons do Espírito Santo. Assim, como Pedro em Pentecostes (veja-se At 2:14-18), nosso autor considera o Espírito Santo o principal indicador do cumprimento das promessas de Deus e a aurora da nova era. Tudo isso inegavelmente aponta para a incomparável superioridade e para o caráter definitivo da mensagem proclamada pelos apóstolos e pela igreja. Só pode ser inútil e perigoso para os leitores deixar que se afastem da verdade.

(Hebreus 2:1-4) 53

Notas adicionais # 4A exortação e as admoestações nessa epístola não são de somenos; são

antes fundamentais para o argumento do livro e para o objetivo do autor, que apresenta sua obra como minha “palavra de exortação” (13:22). Embora haja mais exortação nessa epístola além do que indica a seguinte lista de passagens, ela merece menção especial: 2:1-4; 3:7-19; 4:14-16; 10:19-39; 12:12-17,25-29. Essas exortações às vezes se dirigem aos leitores na segunda pessoa do plural (“vós”), mas também ocorrem muitas vezes na pnmeira (“nós”), quando o autor se identifica com os leitores, daí refletindo a unidade de todos na igreja. Assim, embora os líderes estejam em especial necessidade, a mensagem tem aplicação maior a todos os cristãos.

2:1/ A palavra grega traduzida por desviemos (pararreo) ocorre somente nessa parte do NT Essa idéia é muito bem expressa na tradução de Barclay "senão, bem podemos ser como o navio que, desatracado do cais, ruma ao naufragio”

2:2 / A idéia de anjos como intermediários na concessão da lei no Sinai era aceita pelos rabis (há referências em Marmorstein, EJ, vol 1, p. 643) e pelos cnstãos do primeiro seculo, a despeito do escasso apoio do Antigo Testamento (Dt 33:2). Assim é que, na defesa de Estêvão, há referência ao "anjo que lhe falava [a Moisés] no monte Sinai” e aos judeus como “vós, que recebestes a lei por ordenação de anjos, e não a guardastes” (At 7:38, 53). Paulo tambem escreve: “[a lei] foi ordenada por intermédio de anjos, pela mão de um mediador” (G13:19). De modo indireto esta referência dá apoio à tese do autor de Hebreus a respeito do papel de ministros (servos) desempenhado pelos anjos, e de sua inferioridade em relação ao Filho. Os anjos têm importância instrumental em questões menores; o Filho tem máxima importância na questão magna.

Por trás das palavras violação e desobediência encontram-se dois substantivos gregos (parabasis eparakoe) que dizem respeito às violações da lei; a pnm eira refere-se à transgressão específica, à quebra dos manda­mentos; a segunda, de modo mais genérico, a todas as formas de desobe diência.

2:3 \ foi-nos depois confirm ada é tradução do verbo “firmar” ou “estabelecer” (bebaioõ), no sentido de prover uma garantia, e corresponde ao adjetivo (bebaios) cognato (derivado), que quer dizer “verdadeiro’ ou “válido”, aplicado no v. 2.

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Salvação (s õ tê n a ) é palavra importante para o autor de Hebreus. É a salvação prometida no Antigo Testamento, cumprida no presente (cf. 2:3, 10; 5:9) e que seria consumada no futuro (cf. 1:14; 6:9; 9:28). Veja-se W. Foerster, TDNT, vol. 7, pp. 989-1012.

2:4 / Os sinais, prodígios e vários m ilagres e dons do Espírito Santo, a que o versículo faz alusão, são os do início da era apostólica, e não os do ministério de Jesus. Estes três termos (semeia , terata, dynameis) tomam- se virtualmente elementos de fórmula ritualística, ao descrever fenômenos da igreja primitiva (vejam-se essas mesmas três palavra em At 2:22 e 2 Co 12:12). Menos comum é a ocorrência dos primeiros dois termos (“sinais e prodígios”) na descrição da igreja primitiva (veja-se At 2:43: 4:30; 5:12; 6:8; 14:3; 15:12). Em Romanos 15:19, como essa passagem, os dois termos vêm associados ao "poder do Espírito” .

A referência a dons do Espírito Santo, distribuídos segundo a sua vontade faz-nos lembrar de termos idênticos expressos por Paulo em 1 Corintios 12:4, 11: "Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, distribuindo particularmente a cada um como quer” Para ambos os autores, a simples presença desses dons do Espínto Santo transmite a mensagem do cumprimento escatológico, e assim testifica da verdade do evangelho cristão.

*

4. Cristo E Superior aos Anjos, a despeito de Sua Humanidade (Hebreus 2:5-9)

Não há dúvida de que o grande obstáculo diante da argumentação do autor a respeito da superioridade do Filho é a humanidade autêntica do Filho, que o fez passar por sofrimento e morte. Pela primeira vez o autor emprega o nome do homem de Nazaré, Jesus (v. 9). A humanidade, o sofrimento e a morte de Jesus, tudo parece apontar com clareza irrefutável para a inferioridade do Senhor em comparação aos anjos. Sem dúvida essa questão merece atenção, para que o argumento do autor se sustente; em vez de refugir do problema, o autor na verdade o enfrenta e resolve.

2:5 \ Embora no pensamento judaico o mundo atual fosse considerado sujeito aos anjos, de certo modo tal não aconteceria com respeito ao mundo vindouro. Quando o autor de Hebreus acrescenta de que falamos, encontramos a tensão entre o cumprimento e a consumação, que percorre toda a teologia cristã. Em outras palavras, em certo sentido o mundo vindouro já veio. mas, em outro, ainda há de vir, por ser vindouro. Já nos deparamos com esta tensão quando estudamos o sentido da frase “nestes últimos dias’" (1:2) e a citação de 1:13. O Filho foi exaltado à direita de Deus. posição do poder absoluto; no entanto, certo tempo há de passar, antes que seus inimigos sejam postos sob seus pés. A realidade da obra terminada pelo Filho, a essência do evangelho, sem dúvida trouxe o mundo vindouro ao presente momento e à igreja atual. Por isso, o autor de Hebreus apresenta-nos uma escatologia realizada e outra futura. Esta se expressa vividamente em 6:5, em que o autor descreve a experiência cristã como forma de experimentar (provar) “os poderes do mundo vindouro” . (Veja-se também a expressão “mas tendes chegado”, de 12:22-24.) Na verdade, o mundo de que o autor de Hebreus vem falando é aquela nova realidade que veio à existência mediante a exaltação do Filho, cujo resultado fmal ainda será provado; é por isso que permanece o mundo vindouro. Essa tensão se manifestará nos versículos que se seguem.

2:6-8a / A citação de Salmos 8:4-6 apresenta outra indicação da

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compreensão cristológica do autor a respeito do Antigo Testamento. Quando redigido, esse salmo proclamava a glória do universo criado, em comparação com o qual os seres humanos parecem melancolicamente insignificantes: “Quando vejo os teus céus... a lua e as estrelas... que é o homem?” . No entanto, ao mesmo tempo, segundo a narrativa de Gênesis (1:26,28), à humanidade foi dado o domínio sobre toda a criação, sobre todos os animais, aves e peixes, e tal posição de honra é celebrada pelo salmista. O autor de Hebreus entende que o salmo se refere a Cristo, bem como à humanidade, não meramente pelo fato de indicar algumas associ­ações messiânicas (nas duas últimas linhas do texto citado), mas, princi­palmente, por considerar o Filho o arquétipo dos seres humanos. Em outras palavras, Cristo é a verdadeira incorporação da humanidade, o último Adão, que realiza em si mesmo a glória e o domínio que o primeiro Adão e seus filhos perderam por causa do pecado. Em Cristo as palavras do salmista têm seu cumprimento. Se originariamente o salmo teve a intenção de aplicar-se a meros seres humanos, acabam encontrando seu cumpri­mento pleno naquele que foi preeminentemente humano, que revela a humanidade como foi criada.

A aplicação desse salmo a Jesus fica entendida com clareza pelas palavras filho do homem, o título preferido por Jesus durante seu minis­tério. Este título pode ser traduzido por “mero homem” (como o faz GN B), que na verdade é uma nuança do original hebraico (o que se pode ver pelo paralelismo homem, na linha precedente), tendo porém a desvantagem de esconder tudo que deveria ter sido atirado sobre o autor de Hebreus e seus leitores. Estes entendiam que filho do homem era o própno Jesus. Quando a mente volta-se para Jesus, no v. 6, a seqüência temporal da encarnação e da exaltação pode ser percebida de pronto no v.7. A ultima linha da citação apresenta uma ligação íntima com o texto de exaltação favorito do autor de Hebreus (SI 110:1, citado em 1:13): Todas as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés, ou, mais literalmente: “tendo sujeitado todas sob seus pés” . Assim, a passagem do Velho Testamento é efetivamente utilizada pelo autor em sua discussão. O Filho fora verdadeiramente feito homem e, coerentemente, feito um pouco menor do que os anjos NIV faz que brachy ti tenha o sentido de gradação, como se modificasse a palavra “menor”, de que resultou um pouco menor. Contudo, deve-se preferir aqui uma tradução alternativa das palavras, dando-lhes um sentido de tempo, pelo que a nota marginal de NIV diz: “durante um pequeno tempo”

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(é assim que dizem NASB, RSV, GNB). A discussão do autor de Hebreus não está voltada para o grau em que Jesus foi feito um pouco m enor do que os anjos. Contudo, se tais palavras forem tomadas no sentido de tempo, “durante um pequeno tempo”, enquadram-se com perfeição, como termos descritivos da humilhação temporária do Filho ao encarnar (cf. o mesmo problema no v. 9). Portanto, o Filho foi temporariamente humilhado, ao ser colocado num estado inferior ao dos anjos; logo depois, contudo, o Filho foi exaltado (à destra do Pai), coroado de glória e de honra, pelo que todas as coisas lhe foram sujeitas debaixo dos pés. A riqueza que a humanidade tivera uma vez, tendo-a perdido, foi recuperada por Aquele que, sendo Deus, tomou-se ser humano com um objetivo bem definido. Em Cristo a humanidade começa a perceber sua verdadeira herança.

2:8b-9 / Nestes versículos encontramos o primeiro exemplo do trata­mento de ‘mídras’ que o autor de Hebreus dá a passagens do Antigo Testamento — isto é, quando ele apresenta uma interpretação da citação, usando palavras específicas tiradas da própria citação. (Veja-se o mesmo fenômeno e m 3 :7-4 :l l ; 10:5-14; 12:5-11.) O resultado pode ser descrito honestamente como se fora um comentário cristão (i.e., visto da perspec­tiva do cumprimento realizado por Cristo) da passagem que capacita o autor a esclarecer bem seu ponto de vista, pelo qual também demonstra o vinculo entre o antigo e o novo.

Pode-se entender a ocorrência tríplice da referência a Cristo no v. 8b (lhe, a ele) como referência à humanidade, em harmonia com o sentido original a parte do salmo 8 que está sendo mencionada. Entretanto, como vimos argumentando, se é esse salmo que se tem em mente, especialmente a referência a "filho do homem", como alusão e Jesus (cf. v. 9), os pronomes da passagem também poderiam apresentar uma ambigüidade deliberada. É quase certo que o autor tenciona aqui, como na citação, refenr-se não meramente à humanidade, mas a Cristo também.

É claro que o autor entende que a citação do salmo 8 refere-se a Cristo e também à humanidade, ao aplicar as palavras específicas da citação a Jesus, no v. 9: foi feito um pouco menor (ou melhor, “durante um curto tempo, menor” ; veja-se o comentário no v. 7) do que os anjos, Jesus, coroado de glória e de honra. Jesus, coroado dessa forma, tem todas as coisas, em princípio, “debaixo dos pés” (v. 8a). Entretanto, ainda não conseguimos ver esse reino no mundo atual. Na verdade, a demora pode

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ter sido mencionada num texto-chave citado antes (1:13): “Assenta-se à minha destra até que ponha os teus inimigos por estrado para os teus pés” (SI 110:1). Na verdade, agora não conseguimos ver nem o homem nem Cristo governando todas as coisas; mas no futuro o governo de Cristo será plenamente consumado; quando isso ocorrer, a humanidade experimenta­rá o governo total de que fala o salmo 8 (cf. Fp 3:21). |D eus| nada deixou que não lhe esteja sujeito. O autor de Hebreus não especifica a exceção óbvia anotada por Paulo em 1 Coríntios 15:27: “Quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, claro está que se excetua aquele que lhe sujeitou todas as coisas” .

Vemos, porém, aquele [Jesus]. Temos aqui a primeira menção direta feita ao Senhor, com o objetivo de focalizar a nossa atenção em sua humanidade. E o fato da encarnação que faz que Jesus seja temporariamen­te um pouco m enor do que os anjos; o propósito da encarnação foi que se possibilitasse a morte do Senhor em prol de todos os homens, para que, pela graça de Deus, provasse a m orte por todos A expressão provasse a m orte significa apenas “que sofresse a morte”, como o explica o segmento anterior, e não meramente a experiência parcial da morte (cf. Mc 9:1). A encarnação e seu objetivo, a cruz, são a gloriosa expressão da graça de Deus. isto é, a misericórdia ou favor de Deus isentos de custo para nós. Há de ocorrer a exaltação de Jesus, que há de ser coroado de glória e de honra, em vista de ter sofrido a paixão da m orte. Visto que Jesus desceu temporariamente de sua posição exaltada nos céus e se fez menor do que os anjos, não devemos pressionar demais o aspecto causal (cf. 12:2). O que temos em vista primordialmente é a seqüência: situação de exaltação — humilhação — exaltação (como e.g., explicitamente em Fp 2:6-11). Ao mesmo tempo, a exaltação que se segue à humilhação apresenta nova dimensão de alegria e triunfo, permanecendo no final da realização do plano salvífico de Deus.

Portanto, a plena humanidade do Filho traz consigo as maiores vanta­gens, incluindo-se a superioridade do Filho sobre os anjos; Jesus é Aquele que possibilita a nossa salvação, ao cumprir a vontade de Deus, ao submeter-se ao sofrimento e à morte. Outros benefícios da humanidade de Jesus são exploradas pelo autor da carta, no resto desse capítulo.

Notas Adicionais # 42:5 / Supõe-se que os anjos desempenhem um papel importante na presente

era. As evidências indicam a crença amplamente divulgada de que anjos- príncipes, sob Deus, governam as nações. Dizia Filo que o Criador emprega anjos como seus assistentes e ministros no cuidado dos mortais (On Dreams— Dos Sonhos — 1 22); de acordo com 1 Enoque (89:59) setenta anjos da guarda cuidam de setenta nações (cf. Dt32:8 [LXX]; Dn 10:20-21, Siraque 17:17) Veja-se Kohler, JE, vol 1, p 594 No entanto, este vice-reinado aparentemente não se manterá, quando o Filho do homem, Jesus, houver terminado sua obra.

2:6-8a / A fórmula que introduz a citação é incomum: M as em certo lugar testificou alguém Outras fórmulas de introdução indefinidas encontramos em 4:4 ("‘Pois em certo lugar disse ele assim”) e 5:6 (“alguem que lhe disse”). Este emprego de fórmulas introdutórias indefinidas é singular no Novo Testamento Em outros lugares, o autor introduz claramente a Escritura como palavra pronunciada por Deus, por Cristo ou pelo Espírito Santo. Em apenas dois lugares ha referência a um ser humano que falou algo (9:20, 12:21), e em ambos encontramos Moisés como o que fala, no Antigo Testamento, descre­vendo a narrativa Veja-se R Longenecker, Biblical Exegesis in the Apostolic Period (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp. 164-70. E especialmente apro­priado que o Filho do homem seja entendido como o representante da humanidade Esse título inclui prontamente a idéia da comunidade dos fiéis, como o faz nas fontes do conceito Dn 7:13s., 22 (Cf. Jo 1:51, que alguns aplicam ao Filho e à comunidade dos crentes.) Quanto a “Filho do homem”, veja-seO Michel, NIDNTT, vol. 3, pp 613-34; P Giles, “The Son of Man in the Epistle to the Hebrews” — O Filhodo Homem na Epístola aos Hebreus — Exp'T 86 (1975), pp 328-32

O Antigo Testamento, segundo NIV, apresenta-nos o primeiro verso de Salmos 8 5 desta forma: “Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais” A palavra hebraica traduzida por “seres celestiais” é ’elohim, “Deus” (cf. nota marginal de NIV) O livro de Hebreus seapóianaLXX, cujos tradutores na verdade traduziram 'elohim por angelous, “anjos” . (Uma tradu­ção semelhante de 'elohim por um plural pode ser visto em Salmos 82:6, ‘sois deuses” [Jo 10 34], termo que provavelmente era entendido como “anjos ”) E óbvio que o argumento do autor de Hebreus se beneficia do texto da LXX, neste ponto, embora 'elohim possa ser entendido também como comprovante do ponto sob consideração. Embora o hebraico de Salmos 8:5 se refira ao pequeno grau por que os seres humanos são inferiores, “fizeste-o um pouco menor do que Deus (RSV), a LXX citada em Hebreus 2:7 também pode ser entendida num sentido temporal, pelo que teríamos: “fizeste-o durante um

(Hebreus 2:5-9) 59

60 (Hebreus 2:5-9)

pequeno tempo inferior”. O entendimento temporal dessa frase tem o apoio do argumento do v. 9. Veja-se brachys, BAGD.

Muitos manuscritos acrescentam ao v. 7 as palavras: “fizeste-o o que govema sobre tudo o que criaste”. A despeito do testemunho textual a favor de sua inclusão (mas falta no documento P 46 e B), esse texto quase com certeza é uma adaptação da LXX, pelo que o texto mais curto deve ser preferido

2:8b-9 / Quatro expressões-chave do texto grego são transcritas ao pé da letra, ou quase, dos versículos precedentes, numa exposição de ‘mídras’ na citação do salmo 8 Refletem-se na versão NIV “Colocando todas as coisas debaixo dele” , “tudo lhe está sujeito”, “ele foi feito um pouco inferior” e “coroado de glória e de honra”. A ECA diz: “ lhe sujeitou todas as coisas” , “ todas as coisas sujeitas a ele” ; “ foi feito um pouco m enor” , “de glória e de honra o coroaste”. Não seria inapropriado colocar essas expressões no texto entre aspas. Na exposição sob a forma de ‘mídras’, o autor redige seu argumento usando frases da citação e assim produz um tipo de comentário da passagem escolhida. O autor de Hebreus e mestre nesta arte. e no seu uso freqüente reflete sua convicção teológica basica, segundo a qual Cristo e sua obra representam o cumprimento do Antigo Testamento, não so das profecias diretas, mas também dos padrões correspondentes de eventos que encontram seu lelos, ou objetivo, em Cristo O autor de Hebreus faz uso intenso de comentários tipo ‘mídras’ de textos do Antigo Testamento em sua carta, na verdade, ele parece ansioso por fazer derivar seu argumento das Escrituras, e isto sem dúvida reflete a importância do Antigo Testamento para seus leitores. (Veja-se a Introdução, sob “Forma e Estrutura ”)

Os comentaristas estão divididos quase em partes iguais quanto a se o pronome lhe, a ele, no v. 8b, refere-se a homem ou a Jesus Mas F F Bruce anota corretamente: “A dificuldade é de pequena monta, visto que de qualquer modo é Cristo que esta em questão, como homem que representa a humanida­de” (Commentary on the Epistle to the Hebrews — Comentário sobre a Cana aos Hebreus — NICNT [Grand Rapids: Eerdmans, 1964], p 37, n. 35).

No v 9, para que (hopos)... provasse a morte por todos é oração que deve ligar-se à declaração de que Jesus foi feito um pouco menor do que os anjos, a despeito do fato de as cláusulas não serem consecutivas no texto grego (cf. GNB, e contraste-se a impropriedade de NASB, como exemplo)

O fato de alguns manuscritos e de alguns pais da igreja primitivos testemunharem uma redação mais difícil choris theou (“sem Deus” ou “à parte de Deus”) em vez de chariti theou (pela graça de Deus) produziu muita discussão. Ainda que seja difícil explicar a origem do texto anterior, e embora o texto geralmente considerado mais difícil, ou estranho, deva ser preferido pela crítica textual, aqui as evidências documentais em prol de pela graça de

(Hebreus 2:5-9) 61

Deus são esmagadoras (inclusive os manuscritos antiqüíssimos P*6). Além disso, a frase faz sentido do jeito como está e, por isso, deve ser aceita como texto original. Quanto a graça (charis), veja-se a nota sobre 4 :16. Na sentença para que... provasse a morte por todos temos o ensino da expiação vicária, ou substitutiva, que é doutrina central em Hebreus (cf. 5.1,7:27). Quanto a este uso da preposição para (hyper), veja-se M.J Harris, NIDNTT, vol. 3, pp 1196s Quanto a uma negação de que o v. 9, mais os capítulos 1 e 2, como um todo, tencionam afirmar a preexistência de Cristo, veja-se L.D Hurst, “The Christology of Hebrews 1 and 2” — A Cristologia de Hebreus 1 e 2 — em The Glory ofChrist m lhe New Testameni: Studies in Chnstology — A Glória de Cristo no Novo Testamento: Estudos sobre Cristologia — em memória de G B Caird; L D Hurst e N T Wright, eds. (Oxford: Clarendon Press, 1987), pp 151-64

5. Os Benefícios da Natureza Humana de Cristo (Hebreus 2 :1 0 -18 )

O autor de Hebreus desenvolve o argumento de que a natureza humana de Cristo possibilita o cumprimento do plano salvifico de Deus e, por isso, não pode existir nenhuma inferioridade em Jesus em relação aos anjos, pelo que o autor focaliza a realidade integral e os benefícios da natureza humana do Filho.

2:10 / C onvinha e verbo que se refere a total adequação da forma pela qual Deus fez cumprir sua vontade pela morte de Jesus. Na verdade, foi da vontade de Deus. o Soberano Cnador de todas as coisas, que houvesse a encarnação de seu Filho, e sua morte na cruz. Assim foi que o Criador tomou-se também o Redentor de sua criação. Portanto, a morte de Jesus não envolve fraqueza nem inferioridade, mas poder e superioridade. Ao cumprir o plano de Deus, Jesus toma-se o au to r da salvação deles (lit., "'originador” ou "fundador” da salvação). Mas a verdadeira questão, a da adequação, a que se fez referência no começo deste versículo, éque o Filho se tomaria em tudo semelhante aos seres humanos, compartilhando o sofrim ento deles, o que. aqui. significa identificação com a humanidade ate o ponto de experimentar a morte, a fim de os seres humanos poderem tomar-se filhos e mediante Jesus serem conduzidos à glória. Jesus tomou- se semelhante a nós. para que pudéssemos tomar-nos semelhantes a ele (Quanto a uma troca de experiências, semelhante a esta, veja-se 2 Co 5 :21.) A expressão consagrasse pelas aflições o au to r da salvação (Jesus) refere-se primordialmente ao cumprimento dos propósitos de Deus. A perfeita consagração aqui mencionada não é consagração moral ou ética, visto que nesse sentido Jesus sempre foi perfeito. O Senhor foi consagrado no sentido de ser conduzido a “plenitude” relacionada ao cumprimento do plano de Deus. Portanto, no sofrimento e na morte de Jesus há uma plenitude de sua humanidade que corresponde à sua plenitude como Filho de Deus. P ara quem são todas as coisas, e mediante quem tudo existe é termo que se aplica a Deus — mas é linguagem que se aplica ao Filho também em 1:2 (“a quem"; cf. 1 C o8:6;C l 1:16; Jo 1:3). T razendo muitos

(Hebreus 2:10-18) 63

filhos à glória expressa de vez o propósito da encarnação, sofrimento e morte de Jesus. G lória e salvação salientam-se como termos paralelos que descrevem o objetivo que os cristãos atingem pela obra de Cristo. Aquele que vem “trazendo muitos filhos” a esse estado de bênção é “o autor da salvação deles” .

2:11 / A obra de Jesus, mediante a qual ele santifica os crentes, resume- se em sua morte, que decorre de sua natureza humana (cf. as palavras de 10:10: “temos sido santificados pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez por todas”). Em sua natureza humana Jesus se faz plenamente um conosco, pelo que viemos todos de um só. Jesus identificou-se conosco, de tal modo que se fez nosso irmão, e não se envergonha de [nos] cham ar irm ãos. Três citações do Antigo Testamento são apresentadas pelo autor de Hebreus para dar apoio a essa afirmativa.

2:12 \ De novo vem à tona a interpretação cristocêntrica do Antigo Testamento, feita pelo autor. A primeira citação é do salmo 22. As palavras de abertura deste salmo foram mencionadas por Jesus, pendurado na cruz: “Deus meu. Deus meu, porque me desamparaste?” (Mc 15:34; Mt 27:46). Certos pormenores do salmo correspondem de modo extraordinário às narrativas evangélicas a respeito da crucificação (e.g., a agonia física, w . 14-17, a zombaria, w . 6-8; o jogo de azar para ver quem ficaria com as roupas de Jesus, v. 18); e os evangelistas fazem alusão a este salmo com esta interpretação. Fica óbvio que a igreja primitiva considerava o salmo 22 excepcionalmente apropriado nos lábios de Jesus. Se Jesus estivesse recitando esse salmo para Deus, então — para grande alegria do autor de Hebreus — ele estana refenndo-se às pessoas na assembléia como seus irm ãos. Trata-se de um homem, entre seres humanos, que fala a respeito de Deus. Assim e que o autor de Hebreus encontra uma passagem ideal para basear seu argumento a respeito da plena humanidade de Jesus.

2:13 / Jesus também é visto como a Pessoa que fala nas duas breves citações seguintes. O autor apresenta a primeira com a expressão: E ou tra vez, e a segunda, com e ainda. Trata-se de citações de versículos conse­cutivos de Isaías 8 (w . 17 [LXX] e 18). Aqui, diferentemente da citação anterior, não encontramos um raciocínio elaborado e evidente, que nos prove que Jesus é a Pessoa que fala tais palavras. Visto que no Antigo

64 (Hebreus 2:10-18)

Testamento quem fala é Isaías, argumenta-se comumente que as seme­lhanças entre Isaías e Jesus, bem como o “tom messiânico” da passagem mais ampla (que dificilmente se vê nestes versículos), explicam a razão por que se pode entender que é Jesus quem está falando. Entretanto, esse tipo de argumento é fraco demais, não podendo estabelecer o fulcro da questão proposta pelo autor de Hebreus. Em vez disso, a solução encontra-se no fato de que, segundo a LXX, que obviamente está sendo utilizada aqui (cf. a primeira citação com Is 8:17), o Senhor, e não Isaías, é quem fala as palavras em questão. Assim, as referências a “Senhor” na LXX de Isaías 8:17 são mudadas para “Deus” . Por isso, é o “Senhor” (kyrios) quem fala a “Deus” (theos). Certamente era muito comum na igreja primitiva identificar “o Senhor" no Antigo Testamento com Jesus, de modo especial quando o contexto ajudava nessa identificação. Na verdade, já temos visto essa identificação de Jesus com Iavé nas citações de 1:6 e 1:10-12. Se o Senhor fala a Deus, assim raciocina o autor de Hebreus, de que outra forma haveremos de entender a passagem, senão que aqui Jesus fala a seu Pai° Se isto for verdade, há aqui, então, lugares em que Jesus se identifica com a humanidade e não com Deus. Jesus, à semelhança dos seres humanos crentes, coloca sua confiança em Deus (porei nele a m inha confiança)O Senhor se associa aos filhos que Deus me deu.

2:14 / Assim como a palavra irmãos no final do v. II antecipa sua ocorrência na citação do v. 12 (ela ocorre de novo no v. 17), assim também, de modo semelhante, a palavra filhos com toda a certeza foi tirada da citação anterior. Não existe um pensamento novo na primeira metade deste versículo, apenas um grau mais elevado de especificidade: como seres humanos participam da carne e do sangue, seguindo K.JV e. de modo geral, as demais versões (a ordem do texto grego é invertida em N'IV); ECA prefere tam bém ele participou das mesmas coisas (lit., “participou deles”, isto é, da carne e do sangue; “da humanidade”, como diz NI V. De novo, como indica o tempo aoristo (no grego, o aoristo em geral indica uma ação que se completou no passado) tem-se em vista um Ser preexistente que, em determinado momento da história, assumiu a forma e a natureza humana. A segunda metade do versículo consiste numa oração subordina­da final que faz conexão entre a encarnação e o seu objetivo, a m orte. Mas nas afirmações anteriores a respeito deste propósito, o objetivo é declarado de forma positiva como salvação, ou purificação de pecados; agora ele é

(Hebreus 2:10-18) 65

expresso de forma negativa: para que pela m orte aniquilasse o que tinna0 im pério da m orte, isto é, o diabo. De novo é necessário que se faça distinção entre cumprimento e consumação. O diabo foi derrotado em princípio e mediante o ministério de Jesus (Lc 10:18) e, de modo especial, mediante a cruz (cf. Jo 10:31); no entanto, ele não está destruído, mas prossegue no exercício de poder real, embora limitado (cf. E f 4:27; 6:11;1 Tm 3:7;T g4:7; 1 Pe5:8). De modo semelhante, o Novo Testamento pode afirmar que “Cristo Jesus... destruiu a morte” (2 Tm 1:10). No entanto, a morte continua a ser uma realidade que a humanidade precisa levar em consideração. O diabo e a morte foram vencidos pela obra de Cristo — isto ficou claro — ainda que nesse período entre a cruz e o retom o do Senhor não consigamos ver os efeitos totais da vitória de Cristo. O império da m orte sob o comando de Satanás relaciona-se à sua obra nefasta de introduzir o pecado no mundo, pois “o pecado reinou pela morte’’, i.e., a morte provém do pecado (cf. Rin 5:21).

2:15 / E significativo, à luz dos comentários precedentes, que a libertação experimentada, a que faz referência o autor de Hebreus, é descrita não como livramento da morte, mas do medo da m orte. De fato a morte ainda ocorre, mas não precisamos temê-la. O poder da morte é como o poder do diabo: é limitado e logo cessará de vez. Mediante a morte de Jesus, e tudo o que ela representa, os cnstãos estão livres do medo que escraviza os pecadores por toda a eternidade. O autor de Hebreus concor­daria com o desafio de Paulo: "Onde esta. ó morte, o teu aguilhão? Onde está. ó morte, a tua vitória?” ( 1 Co 15:55). Jesus veio "para destruir as obras do diabo" ( 1 Jo 3:8). e apresenta-se a João no Apocalipse (1:8) com estas palavras: "Eu sou o que vivo; fui morto, mas estou vivo para todo o sempre! E tenho as chaves da morte e do mfemo” .

2:16 / Jesus não estava preocupado com os anjos, mas com a humanidade. Este versículo serve de lembrete da razão por que Jesus se tomou por pouco tempo “um pouco menor do que os anjos” (v. 7); houvesse ele vindo a fim de redimir os anjos, essa é a implicação, teria assumido a natureza dos anjos. Longe de refletir alguma inferioridade em Jesus, sua humildade demonstra a fidelidade de Deus e seu propósito salvífico para seu povo, que aqui se identifica como descendência de A braão. Embora isto pudesse configu­rar uma alusão a Isaías 41:8s., tal conclusão de modo algum é necessária.

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É possível que o autor de Hebreus esteja referindo-se deliberadamente à descendência de A braão com o objetivo de focalizar a atenção nos leitores judeus da carta. Todavia, visto que a igreja é a herdeira das promessas feitas em Cristo, no Antigo Testamento, não é errado de modo algum entender essa expressão num sentido mais amplo, como se se referisse a toda a comunidade da fé (cf. G1 3:7).

2:17 A fim de ajudar seus irm ãos (o autor alude à citação do v. 12), expressão pela qual o autor de Hebreus quer dizer: "fazer propiciação pelos pecados do povo”, Jesus precisou tomar-se “semelhante a seus irmãos” em tudo (v. 14). E claro que estas últimas palavras não devem ser tomadas de modo literal, pois Jesus não é pecador. Esta observação o autor de Hebreus a faz em 4:15 (cf. 7:26s.). A plena humanidade de Jesus capacita o Senhor a desempenhar as funções de sumo sacerdote. E a primeira vez que o autor de Hebreus atribui este titulo tão importante a Jesus. É título que em todo o Novo Testamento só ocorre em Hebreus. O sacerdote representava a humanidade perante Deus (cf 5:1); para que o sacerdote desempenhasse suas funções, precisava constituir uma unidade com as pessoas a quem representava diante de Deus. Quando o autor de Hebreus pensa em Jesus como Alguem que é m isericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus. ele tem em mente, como veremos nos capítulos 9 e 10. a obra importantíssima do sumo sacerdote no dia da expiação O trabalho deste Sumo Sacerdote, à semelhança dos demais sacerdotes, cujo trabalho era uma sombra profética de seu grande trabalho, é realizado a fim de fazer propiciação pelos pecados do povo (cf. v. 11)

2:18 / Embora a observação feita pelo autor da carta aos Hebreus não seja estritamente pertinente à argumentação aqui, ele não consegue resistir ao desejo de deixar uma breve nota pastoral a respeito do benefício prático de termos Jesus como nosso Sumo Sacerdote. Por causa da plena humani­dade de Jesus e do rigor de seus sofrimentos, o Senhor ocupa uma posição especial a fim de socorrer aos que são tentados, e que a ele clamam. Esta aplicação é mais explícita em 4:5, e com toda a certeza deve ter raízes nas dificuldades reais enfrentadas pelos leitores.

Notas Adicionais # 52:10 / Embora essa expressão ocorra na literatura judaica fora da Bíblia,

este é o único lugar na Bíblia em que convinha (eprepen) descreve uma ação de Deus Consagrasse pelas aflições o au tor da salvação deles encerra a primeira ocorrência de teleioõ (“tornar perfeito”) na carta. Este verbo impor­tante ocorre com freqüência em Hebreus (encontra-se em 5:9, 7:19, 28, 9:9; 10:1, 14. 1140, 12 23, alguns cognatos, ou termos de mesma raiz, temo-los em 5 1 4 .9 1 1 ,6 1 ,7 :11,12:2). Embora alguns entendam que o verbo hebraico carrega em si um significado cultual (de acordo com seu emprego na LXX), i.e., “estando pronto para chegar à presença de Deus”, esse verbo com mais frequência carrega em si o significado de “trazer à perfeição”, no sentido de cumprimento ou termino da obra encetada. M. Silva argumenta com grande persuasão que a idéia de cumprimento está por trás de várias ocorrências da palavra no idioma hebraico Veja-se“Perfection and Eschatology in Hebrews”— Perfeição e Escatologia em Hebreus — WTJ 39(1976-77), pp. 60-71. Veja- se também G Delling, TDNT, vol 8, pp 49-87.

Os que participaram da salvação que Jesus realizou são chamados aqui de filhos e. por isso, compartilham o titulo de Jesus (cf. v. 11) e o relacionamento com o Pai Ha apenas outro lugar na carta em que a palavra “filhos” é usada de modo absoluto 12:5-8 O autor compartilha o conceito com Paulo (e.g., fim 8 14, 19 G1 3 2b. 4 6s ) “Filhos” significa pessoas que usufruem da salvação e da glória, que estão no caminho da vida. Há ambigüidade no grego, quanto a se e Deus ju Jesus quem conduz os filhos àglóna, aindaque haja certa propensão no sentido de que e Deus o sujeito da oração (veja-se Hughes, pp 101 s.).

O papel central, essencial, de Jesus na consecução da salvação dá-lhe o titulo especial de archegos tes soterias, que tem sido traduzido de maneiras diferentes "capitão de nossa salvação” (KJV), “pioneiro da salvação” (RSV), “autor da salvação” (ASV, NIV), “guia da salvação” (Moffatt, Phillips, cf. N EB. JB ) A respeito de salvação (so tena ), veja-se a nota sobre 2:3 A palavra archegos tem dois sentidos relacionados entre si: (1) guia, governador ou príncipe, e (2) o quedáorigem, fundador “Abridor de caminho”, o u “desbra- vador de floresta” as vezes são os títulos sugeridos, que dramatizam o significado dessa palavra. Ela também ocorre em Hebreus 12:2, onde se refere a Jesus como o autor ou o pioneiro da fé, em associação à sua tarefa de “aperfeiçoador” (RSV). As únicas referências além destas estão em Atos 3:15, “o autor da vida” e Atos 5:31, de modo absoluto, “Príncipe” Veja-se G. Johnston. “Christ as Archêgos " — Cristo como Archêgos — NTS 27 (1981), pp. 381-85, J J Scott, 'V irc/;egojintheSalvationHistoryoftheEpistletothe Hebrews” — Archegos na História da Salvação segundo a Epístola aos Hebreus— JETS 29 (1986), pp. 47-54: H. Bietenhard, NIDN'lT, vol. 1, p. 168.

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2:11 / são santificados é expressão do grego que, de fato, com freqüência se traduz por “santificar” (hagiazõ). O termo hebraico correspondente tam­bém pode significar “tomar santo” ou “consagrar” (como em 10:14,29), mas ate mesmo nesses exemplos, os contextos falam de uma “oferta” ou de “sangue”, o que indica que talvez o que se tinha em mente fosse a purificação do pecado (cf. GNB). Em outra passagem de Hebreus essa palavra é quase sinônimo de “fazer expiação” (9:13; 10:10; 13 12) Veja-se O Procksch, TDNT, vol. l ,p 112 Vêm todos de um só é interpretação de uma frase grega indefinida, “de um” (ex henos) É igualmente possivel que se traduza a expressão grega por “uma origem” (RSV), “de uma raça” (NEB) ou “do mesmo pai” (GNB) NIV de modo apropriado optou por “da mesma familia” por causa da conexão com irmãos. Embora Jesus, segundo os evangelhos, houvesse chamado seus discípulos de “irmãos” (Mt 12 49s , 25:40, 28:10), e embora a palavra “irmãos” seja a designação mais comum para a comunidade cristã no Novo Testamento, esta é a única passagem fora dos evangelhos em que a comunidade é chamada de “ irmãos” de Jesus (exceção feita, é claro, quando se trata de irmãos de sangue” . Veja-se W Gunther, NIDNTT, vol 1. pp 254-58 Não se envergon ha é exemplo de artifício de retórica denominado litotes, mediante o qual uma declaração negativa tem forma de uma afirmativa (cf. 11.16, Rm 1:16) Quanto a esta passagem, veja-se G W. Grogan, “Christ and His People: An Exegetical and Theological Studv of Hebrews 2. 5 -18” — Cristo e Seu Povo: Estudo Exegético e Teologico de Hebreus 2 5-18 — í bxEv 6(1969), pp 54-71

2:12 / o teu nome. “Nome” tem conotação não só de quem é o Senhor, mas tambem do que ele tem feito Veja-se H Bietenhard. vol 2. pp 648-55 No meio da congregação é literalmente “no meio da ekklesia ou 'igreja” (veja- se KJV). Embora na LXX seja a “congregação” ou “assembléia” de Israel que se tem em mente, o autor e seus leitores com toda certeza teriam suas mentes voltadas para a igreja, ao deparar com esta palavra grega especial

2:13 / A prontidão com que os primitivos cristãos identificaram a palavra kyrios (“Senhor”) da LXX (para YHWH) com Jesus toma-se evidente por todo o Novo Testamento (veja-se, por exemplo, At 2:21, 34s., Rm 10:13, Fp 2:9- 11, 1 Pe3 15s.,Ap 19:16), e explica as citações do Antigo Testamento neste versículo, que o autor atribui a Jesus Veja-sel H Marshall, TheOriginsofthe New Testameni Christology — As Origens da Cristologia do Novo Testamen­to — Downers Grove: InterVarsity, 1976), pp 104-0 Não interessa ao autor de Hebreus que na citação de Salmos 22:22, no versículo anterior, kyrios é a pessoa a quem se fala, e não a que fala. (“Senhor”, a quem se fala no salmo, é chamado de Deus nos versículos de abertura ) É óbvio que o foco do autor neste ponto está na humanidade de Jesus, e não em sua divindade

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2:14 / A ênfase em da carne e do sangue, isto é, nos elementos de que Jesus participou, ao assumir nossa humanidade, ao lado dos escritos de João, coloca a carta aos Hebreus dentre os mais fortes oponentes do docetismo, de todos os escritos do Novo Testamento. O docetismo enfatizava a divindade de Cristo e argumentava que Jesus, na realidade, nunca havia sido um ser humano; ele apenas aparentava ser um homem. Segundo a argumentação de Hebreus, o docetismo é heresia total. (Cf. Jo 1:14, 1 Jo 1:1; 4:2). Veja-se G.S Hendry, 'Christology” — Cristologia — DCT, p. 56. Infelizmente NIV omite o advérbioparaplesios (“semelhantemente” ou “de modo igual”; cf. KJ V, RS V, NASB) em sua tradução Essa p a l a v T a indica não apenas um exemplo adicional de Alguem que assume a humanidade (como em “também”), mas enfatiza a igualdade da humanidade de Jesus à nossa humanidade (cf. Barclay: 'com exatamente a mesma forma”) Diabo e Satanás são as duas designações ou nomes do inimigo sobrenatural de Deus. São nomes usados mais ou menos com a mesma frequência por todo o Novo Testamento. Diabo significa caluniador”, Satanás e palavra hebraica que significa “adversário” O diabo

e o “principedestemundo” (Jo 12 31, 14:30, 16:11). A ligação existente entre o diabo e a morte era bem conhecida no judaísmo do período intertestamentário (veja-se Sab. de Sal 1 13s., 2:23s.) A morte e o “hades” foram atirados um apos o òutro no “lago de fogo”, de acordo com Ap 20 14 (cf v. 10). Esta é a unica ocorrência de tais palavras na carta aos Hebreus Veja-se H Bietenhard, S1DNTT. vol 3, pp 468-72

2:15 / A palavra grega que se traduziu pelo verbo livrasse zapallasso (que se encontra em outras passagens do Novo Testamento só em Lucas 12:58 e Atos 19 12), não temos aqui a palavra mais comum eleuiheroo Ao desenvol- ver esta discussão a respeito de como Jesus nos livra do temor da morte, é bastante notório que o autor da carta não se lembre de referir-se à ressurreição de Jesus O autor conhece a doutrina da ressurreição dos mortos (6 2), mas no estudo todo a ressurreição de Jesus so é mencionada em 13:20, no entanto, até mesmo aqui a palavra usual para ressurreição, anastasis, não é o termo empregado No que concerne a passagem que estudamos, podemos dizer que qualquer referência a morte de Jesus como a grande vitória, mediante a qual o diabo foi destruído e os crentes libertos do temor da morte, encerra em si necessariamente a doutrina da ressurreição do Senhor Ainda que a ressurrei­ção de Jesus e seu significado não tenham sido mencionados de modo explícito, temos ai fatos que de modo algum podem ser negligenciados, na presente discussão, por nenhum leitor cristão de Hebreus. Afinal, a ressurrei­ção de Jesus foi a pedra angular da fé e da pregação da igreja primitiva.

2:16 / Dificilmente poderíamos ter toda certeza a respeito do sentido do verbo que se traduziu por socorre, neste versículo. A LXX (Is 41:8s.), que

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talvez tenha sido a fonte deste versículo, usa o verbo antilambano, que em seu contexto significa “tomar” (i.e., “das extremidades da terra”). O verbo no versículo que estamos estudando é epilambanomai, que quer dizer “segurar, agarrar” . “Segurar” pode ter uma conotação de “ajudar”. Todavia, optar de imediato pela conotação longínqua em vez de pelo sentido básico, pode ser equivalente a perder algo importante que o autor de Hebreus tem em mente. “Segurar” poderia ser entendido no sentido de Jesus “tomando sobre si mesmo a natureza humana.” sendo esse, como vimos, o principal ponto de interesse do autor NEB traduz de modo adequado: “Não sào os anjos, notem bem, que Jesus toma para si mesmo, mas os filhos de Abraão” (cf JB). De modo semelhante, assim diz Phillips: “Fica bem claro, para este proposito, que Jesus não se tornou um anjo, antes, ele se fez homem, na verdade, é um descendente de Abraão” A expressão usada por RSV “está preocupado com” é fraca demais “Assume” e o verbo que encontra seu sentido mais amplo no presente contexto, a saber, “assumir a mesma natureza, tornar-se igual, a fim de prover ajuda” (cf o mesmo verbo, com a idéia implícita de ajuda, no verbo “tomei [pela mão]” em 8 9)

2:17 O titulo sumo sacerdote aplica-se a Jesus dez vezes em Hebreus O desenvolvimento desse titulo e sua aplicação a Jesus, tanto quanto podemos discernir pelo estudo de outros escritos do Novo Testamento, é obra original do autor de Hebreus E óbvio que o significado primordial desse titulo relaciona-se com o rito sacrificial da expiação, como aparece no versículo sob estudo (cf 7:26, 8 1). No entanto, o autor aproveita outras oportunidades para maiores aplicações em outras áreas, como ajuda aos que enfrentam dificulda­des (4 14s, 6:20), e as boas coisas que Cristo trouxe (3:1,9 11) Visto que o significado desse titulo constitui uma pane crucial, essencial, da discussão travada em Hebreus, não há necessidade de enfatizarmos esse aspecto nesta nota. Veja-se O Cullmann, The Christology oj lhe New Testument — A CristologiadoNovoTestamento — pp 83-107,J Baehr,NIDNTT,vol 3,pp 32-42 Veja-se A.J B Higgins, “The Priestly Messiah,” NTS 13 (1967), pp 211-39; J R. Schaefer, “The Relationship Between Priestlv and Servant Messiamsm in the Epistle to the Hebrews”, CtíQ 30 (1968), pp 59-85.

So aqui e a expressão sumo sacerdote modificada pelos adjetivos mise­ricordioso e fiel, os quais de fato são muito apropriados para tal título aplicado a Jesus, e poderiam encaixar-se admiravelmente bem nos demais contextos. Mas somente em outro exemplo usa-se um adjetivo: “grande sumo sacerdote” (4:14). Pecados é palavra de grande importância em Hebreus, e ocorre mais vezes nesta carta do que em qualquer outro livro do Novo Testamento, exceto Romanos. A razão é clara: Hebreus é um tratado de fôlego a respeito da obra realizada por Cristo, nosso sumo sacerdote, na consecução da expiação de

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nosso pecado. Tal realidade já havia sido anunciada em 1:3 e constitui a razão da encarnação e da morte de Jesus, como vimos pelo estudo deste capítulo. O autor emprega quase exclusivamente a palavrahamartia para“pecado” . Veja- se W. Gunther, NIDNTT, vol. 3, pp. 577-83.

As palavras fazer propiciação pelos pecados descrevem não tanto o efeito da obra do sumo sacerdote, mas a própria obra em si. A palavra-chave grega é hilaskesthai, que tem sido muito discutida entre os eruditos em Novo Testamento C H Dodd argumenta que o sentido dessa palavra no Novo Testamento é “expiação”, i e., reflete uma ação executada contra os pecados, no sentido de estes serem “ lavados”; L Morris, por sua vez, argumenta que a palavra significa “propiciação”, i.e , reflete uma ação dirigida a Deus para “abrandamento de sua ira” . RSV (“fazer expiação”) eNEB (“expiar”) refletem a perspectiva de Dodd KJV (“fazer a reconciliação”) e NIV refletem sensa­tamente o que se poderia chamar de posição neutra, sem especificar a maneira como se íazareconciliaçãoou expiação, retendo, todavia, a declaração da obra feita por Jesus Veja-se a discussão plena dessa questão em H. G. Link e C Brown, NIDNTT, vol. 3, pp 148-6ò

2:18 A tradução depetrazo por “teste” ou “prova” em vez de “tentação” (sendo tentado, NEB e ECA) pode ajudar um pouco as pessoas a entenderem esse versículo Mas nem sempre se consegue fazer uma distinção necessária (cf Tg 1 13-15). Veja-se a discussão em C L. Mitton, The Epistle ojJames — A Carta de Tiago — Londres: Marshall, Morgan e Scott, 1966, pp 46-50. Quanto a tentação de Jesus, veja-se Mc 3 :21 8:32, e especialmente Mt 4 1-11 O autor de Hebreus estava familiarizado com esses textos, se não através dos evangelhos escritos, pelo menos pela tradição oral

6. Cristo ÊSuperior a Moisés (Hebreus 3:1 -6 )

Tendo estabelecido a superioridade de Cristo sobre os anjos e susten­tado a doutrina do significado da encarnação, mediante longa discussão, o autor de Hebreus agora volta a atenção para a superioridade de Jesus sobre Moisés e, por implicação, a superioridade de Jesus (graça) sobre a lei. Em face do compromisso dos leitores judeus — para quem Moisés e a lei assumem importância central — essa discussão é espantosamente auda­ciosa; as conclusões a que mduz, no cap. 8, de modo algum são fáceis de aceitar, nem mesmo para os judeus que se converteram a Cnsto. De novo temos em mira o contexto específico dos leitores dessa carta, e de modo especial a forte tentação por que aparentemente estavam passando, a de voltar para a fé de seus pais.

3 : 1 / 0 autor apela a seus leitores, colocando-se ao lado deles, ao mencionar santos irmãos, designação comum para a comunidade dos fiéis, partic ipantes da vocação celestial. “Vós, leitores, firmados em vossa identidade”, parece dizer o autor, considerai a Jesus (NIV traz: fixai vossos pensamentos em Jesus”), ou seja. com toda resolução focalizai vossos pensamentos no verdadeiro significado de Cnsto. Ele é o Apóstolo. Há muitos apóstolos, mas Jesus é o supremo Apóstolo, enviado por Deus. Somente aqui, em todo o Novo Testamento. Jesus é chamado Apóstolo. Mas, na verdade, ele é o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão Em outras palavras, a verdade objetiva que professamos como cristãos foi entregue por Jesus, como nosso Apóstolo, e realizada plenamente por Jesus como nosso Sumo Sacerdote. Jesus, o enviado por Deus, de fato representa a Deus perante a humanidade; Jesus, como Sumo Sacerdote, representa a humanidade perante Deus. Portanto, Jesus é a revelação divina que possibi­lita uma reação humana a Deus. Como o autor de Hebreus vai descrevê-lo mais tarde, ainda que numa conexão diferente (8:6; 9 :15; 12:24), Jesus está bem qualificado para ser nosso “Mediador” (cf. 1 Tm 2:5).

3:2 / Jesus foi fiel ao que o constituiu (cf. 2:17), i.e., foi obediente à vontade de Deus. Isto já ficou bem demonstrado pelo autor de Hebreus. No

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que concerne à fidelidade, no entanto, Moisés faz boa parceria com Jesus: como tam bém o foi Moisés em toda a casa de Deus. Essa expressão foi tirada da LXX (Nm 12:7), de uma passagem em que Moisés foi exaltado como o único com quem Deus falava “boca a boca” e não de modo indireto. A casa de Deus, como veremos no v. 6, em que a mesma passagem é citada de novo, não deve ser entendida em sentido literal — nem mesmo no sentido de templo material. Refere-se, antes, ao propósito ou obra de Deus, que primeiro encontra expressão em Israel e, depois, na igreja.

3:3 / Acrescente-se à similaridade entre Moisés e Jesus, no entanto, que também há diferença importante entre eles, a qual foi trazida à nossa atenção mediante a analogia de um construtor e a casa que ele está edificando. Jesus é tido por digno de tanto m aior glória do que Moisés, da mesma forma que um construtor necessariamente tem maior honra do que a casa (quanto m aior, m aior honra do que a casa tem aquele que a edificou). De fato, o escritor de Hebreus associa Jesus ao construtor, enquanto Moisés permanece ligado à casa. Como vimos, Jesus desempe­nha um papel de máxima importância, segundo a possibilidade de que alguma casa, no sentido que acabamos de descrever, pudesse vir a existir. A igreja depende da obra de Jesus, o Apóstolo e Sumo Sacerdote dessa mesma igreja.

3 :4 / No entanto, Deus acabará sendo considerado o edificador de todas as coisas (cf. 1:2b; 2:10). Jesus esta sendo fiel à sua missão e, desse modo, também está sendo fiel a Deus e aos propósitos de Deus (v. 2). Compare- se Salmos 127:1: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam.”

3:5 / A verdadeira diferença entre Moisés e Jesus emerge neste versículo e no que segue. O papel desempenhado por Moisés foi o de servo: foi fiel em toda a casa de Deus. Nesta parte inicial temos de novo uma clara alusão à versão LXX, de Números 12:7. Moisés havia sido o servo de Alguém superior a si mesmo — servo dos propósitos de Deus, que só se realizariam em época vindoura — para testem unho das coisas que se haviam de anunciar no futuro. Trata-se daquelas coisas de que fala o autor, as dos “últimos dias” (1:2). Moisés, conquanto fosse importante, serviu no papel preparatório, não no de cumprimento (cf. 1 l:39s.).

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3:6 / Cristo, todavia, funciona fielmente como Filho, sobre a sua própria casa. Para os judeus, Moisés é a maior pessoa que já existiu: foi mediante Moisés que Deus livrou a Israel do Egito, constituiu a Israel como nação e outorgou-lhe a lei. Em tudo isso, o magnífico M oisés foi fiel, mas “como servo” . Na era de cumprimento, de que o autor escreve, Jesus é infinitamente superir a Moisés, assim como um filho é supenor a um servo. Na referência a Jesus como Filho (cf. 1:2, 5) e como pessoa que está sobre a sua p rópria casa. temos uma alusão à deidade de Jesus. Em Moisés, temos a promessa, no Filho temos o cumprimento, pois nele Deus cumpriu todas as suas promessas salvificas. Nas palavras essa casa somos nós o autor tem em mente a igreja, isto é, o povo de Deus. a comunidade da fé, os contemplados com a salvação que Cristo veio proporcionar.

O autor de Hebreus acrescenta uma cláusula condicional que tem motivação pastoral e que outra vez atenta para as necessidades específicas de seus leitores. Não se pode tomar como garantida, seja como for, nossa participação na casa de Deus. E necessário que conservemos firmes a confiança e a glória da esperança até o fim. Já vimos algumas alusões ao perigo que ameaça os leitores (2:1,18), e outras mais, à medida que este tema assume mais e mais importância na carta. Requer-se fidelidade não só dos servos especiais de Deus e de seu Filho, mas de todo o seu povo (cf. Cl 1:23). E com essa preocupação primordial em mente que o autor de Hebreus se volta para uma exortação que mais parece ilustração, a qual ocupará nossa atenção até o fim do cap. 4

Notas Adicionais #b3:1 / A palavra participantes (metochoi, trad lit., “os que compartilham’)

é de grande importância para o autor de Hebreus (cinco ocorrências em Hebreus, apenas uma em todo o resto do Novo Testamento: Lc 5:7, “compa­nheiros”). Cristo “compartilhou” (“participou das. ” — forma verbal oriunda da mesma raiz) nossa humanidade, 2.14 (cf. 1:9), os cristãos participam (são “participantes”) de Cristo (3:14), do Espírito Santo (6 4), e da disciplina (12:8). Quanto a uma referência adicional aos cristãos como tendo sido “chamados”, veja-se 9:15 O adjetivo usado para descrever o chamado dos cristãos como sendo “celestial” (epouranios) ocorre mais vezes em Hebreus (seis vezes), do que na famosa carta de Paulo aos Efésios (cinco vezes). O autor de Hebreus aplica essa palavra não apenas à “vocação” ou “chamado”, mas ao “dom” (6:4), ao “santuário” e aos elementos a ele relacionados (8:5, 9:23), e

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à “pátria” ou cidade escatológica, Jerusalém (11:16,12:22). Refere-se, portan­to, a uma perfeição e realidade associadas ao cumprimento dos propósitos de Deus. Jesus é o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa con fissão, isto é, a quem confessamos (homologia) Essa palavra, nesse sentido objetivo de fé, ou seja, aquilo em que se crê, é usada de modo absoluto em 4:14, e como “confissão da nossa esperança” em 10 23 Ambas as referências ocorrem em exortações. Quanto a Jesus como Apóstolo, veja-se K.H. Rengstorf, TDNT, vol. 1, pp. 423 s. Na ordem de palavras do texto grego, “Jesus” assume lugar preeminentíssimo: é a última palavra do versículo.

3:2 / constituiu aqui refletepo/eo, em vez da palavra mais comum tithemi (comoem 1.2) A tradução holo (refletida em NI'V pela palavra “toda") é verbo duvidoso textualmente, tendo sido omitido pelos manuscritos P13 (possivel­mente pelo P*), B e Còptico. Além disso, é bastante possível, senão provável, que a palavra foi acrescentada a fim de harmonizar o texto com a LXX, em Nm 12 7, que é citado no v 5 Quanto a casa no sentido de povo de Deus, veja- se J Goetzmann, NID.MT, vol 2, p 249 C f Hb 10:21.

3:3 / maior glória do que Moisés Na verdade o Filho já foi descrito como “o resplendor da sua glória” (13 , cf. 2 7,9) A glória de Cristo ultrapassa infinitamente a de Moisés Quanto a um contraste semelhante, veja-se 2 Co 3 7-11 E provável que a fonte dessa analogia no caso do primeiro exemplo seja o texto de Números 12:7 Entretanto, é possível que a idéia da construção de uma casa se baseie em Zacarias 6 .12s. (cf 1 Cr 17 11 s ) Ametaforadacasa ou do templo expressa-se muito no Novo Testamento ( veja-se e.g., Ef 2.19- 21, 1 Tm 3:15, 1 Pe 2 5).

3:4/ Este versiculo e desnecessário nestadiscussão, porisso. os parênteses de RSV justificam-se O autor afirma que Deus e o edificador de todas as coisas, sem negar o papel desempenhado por edificadores subsidiários

3:5 / A palavra traduzida por servo (therapon; esta é a única ocorrência no Novo Testamento) e tirada da LXX, Nm 12:7, Jiakonos, a palavra mais comum para servo, de modo especial nas cartas de Paulo, não aparece em Hebreus. Coisas que se haviam de anunciar e tradução de um particípio passivo futuro simples (ton laleihesomenon) A voz passiva é usada com freqüência no grego a fim de indicar a atuação de Deus; o tempo futuro descreve como vai ser o futuro segundo a perspectiva de Moisés, mas já é passado, segundo a perspectiva do autor de Hebreus e seus leitores. E possível que o que deveria ser mencionado como futuro refira-se à lei que Moisés haveria de entregar a seu povo, a quem ele deu testemunho. Todavia, é mais provável que o escritor tenha em mente o contraste entre a preparação e o cumprimento (cf. 10:1). Visto dessa perspectiva, Moisés era uma testemunha do cumprimento que de fato ocorreu (cf. Jo 5:46).

76 (Hebreus 3:1-6)

3:6 / A afirmação introdutória neste versículo também depende da passa­gem a respeito de Moisés, em Números 12:7. Assim, Cristo é “fiel” (v. 2), à semelhança de Moisés, mas a preposição sobre (epi) assume a mesma função da preposição “em”, do v. 2, “em toda a casa de Deus”, sobre a sua própria casa. Alguns manuscritos gregos incluem as palavras “firmes... até o fim” (KJ V, ECA), no final do versículo (provavelmente por influência de 3 :14, cf. 6:11). A palavra confiança (parresia) ocorre quatro vezes em Hebreus, duas vezes com referência ao culto (4:16, 10:19) e outras duas vezes quanto ao modo de enfrentar as dificuldades na vida (aqui e em 10:35). Veja-se W S Vorster, “The Meaning ofparresia m the Epistle to the Hebrews” — O Sentido de parresia na Carta aos Hebreus — Neotestameníica 5 (1971), pp 51 -59. A palavra esperança (elpis) expressa a expectativa futura do autor, em contraste com a “escatologia realizada” em Cristo (veja-se acima, p 15) Aqui, como noutras passagens do Novo Testamento, a palavra tem conotação de “expec­tativa confiante”

7. Uma Exortação Inspirada pelo Êxodo (Hebreus 3 :7 -19)

A poderosa exortação desenvolvida pelo autor de Hebreus, neste ponto, baseia-se numa ilustração tirada de Salmos 95:7-11 (cf. Nm 14:22ss.) e, de modo particular, numa analogia tirada de uma experiência de Israel, e da igreja também. Encontramos, pois, nesta passagem, um exemplo de tipologia* do êxodo que de modo eficaz dirige a atenção do leitor ao perigo sério da rejeição de Jesus. Na prolongada exegese e aplicação que se segue, após a primeira citação, o autor revela de novo uma habilidosa exegese do tipo ‘m idras’, em que a fraseologia da citação dá sentido elaborado, o qual ele revelou para seus leitores neste passo das Escrituras. O autor desenvol­ve também um conceito singular de “descanso”, algo que ele entende ser a verdadeira posição da igreja em Cristo, mediante o que Cristo fez. O autor está convencido de que seus leitores enfrentam um perigo seriíssimo, e, por isso, devem dar atenção à advertência que a experiência de Israel oferece.

3:7-11 / Assim, como diz o Espírito Santo serve de indicação adicional de que o autor de Hebreus vê as Escrituras (o Antigo Testamento) como a Palavra falada de Deus (cf. 1:6,7,13). Do Espírito Santo se diz, de modo semelhante, que é a Pessoa que nos fala, nas Escrituras, em 10:15 (cf. 9:8). Não se negam os autores humanos, mas esses não são importantes para o autor, visto que em última análise é o próprio Deus quem se responsabiliza pelo que é dito. Outra vez o autor menciona Salmos, seu livro predileto do Antigo Testamento. A citação é de Salmos 95:7-11, tomada da LXX, com que se harmoniza literalmente, com umas poucas diferenças. O salmo 95 está dividido em duas partes: a primeira consiste de louvor e adoração; a segunda é uma advertência que o autor cita integralmente. A advertência do salmista baseia-se na narrativa registrada em Êxodo 17:1-7 (cf. Nm 20:1-13), e a passagem de julgam ento de

‘Tipologia é o traçado de padrões de correspondência considerados divinos, entre ocorrências bem primitivas e outras mais recentes da história.

78 (Hebreus 3:7-19)

Números 14:20-35. O salmista apela à sua própria geração, para que não caia no terrível erro da geração que pereceu no deserto. Sabemos pouco a respeito da maneira pela qual o salmista entendia que essas sentenças eram aplicáveis à sua geração, e sabemos menos ainda sobre como o autor de Hebreus as aplicou a seus leitores. Presumimos que o salmista associou a entrada no descanso da Terra Prometida, coin a promessa da entrada em sua presença na tenda que servia de tabernáculo. Em ambos os casos exigia-se fidelidade. Portanto, podemos ter nesse salmo o início de uma associação entre o descanso prometido por Deus e o próprio lugar de descanso divino, a tenda, ou tabernáculo, e mais tarde o templo. O clímax da passagem está nas palavras e disse... e assim ju rei... (vv. 10 e 11). A promessa é: Não en tra rão no meu descanso. O autor consegue discernir aqui uma espécie de expressão com duplo sentido. Como veremos, o descanso anunciado neste salmo é aquele a que o autor se refere como o repouso eterno de que os cristãos vão desfrutar — e que nada tem que ver com a Terra Prometida literal.

Nos versículos que se seguem, o autor apresenta um comentário cristão a respeito da citação. A npologia do êxodo que sublinha esta interpretação não só se encontra em diversos locais do Novo Testamento (e.g., 1 Co 5:7; 10:1-22), mas ocorre até mesmo no Antigo Testamento, onde, por exem­plo, o retom o de Israel do exílio é deliberadamente descrito em linguagem extraída da narrativa do êxodo. O complexo de eventos associados ao êxodo é de tão grande importância, que se toma paradigma de eventos posteriores da história da redenção. De modo particular, o êxodo e o livramento realizados mediante a cruz assumem um relacionamento especial. Osjudeus foram libertos da escravidão no Egito, e Deus mediante a cruz libertou a humanidade de uma escravidão muito pior. Em ambos os casos Deus operou gloriosa e triunfalmente; o evento do Egito foi sombra profética da libertação na cruz. E existem similaridades não só nos eventos redentores, mas também nos fatos supervenientes, em conseqüência da redenção. O autor de Hebreus está em perfeito acordo com o apóstolo Paulo, que assim escreve: “Tudo isto lhes aconteceu como exemplos, e estas coisas estão escritas para aviso nosso” (1 Co 10:11; cf. Rm 15:4). O povo a quem Deus conduziu pelo deserto experimentou o grande livramen­to do êxodo e, no entanto, todos pereceram nas areias desérticas. Os que têm experimentado a redenção da cruz podem ver-se em situação seme­lhante. A base de toda tipologia chama-se analogia, isto é, a semelhança de

(Hebreus 3:7-19) 79

padrão entre o passado e o presente. Este método de advertir os leitores é muito mais poderoso do que qualquer outro que o autor tenha empregado.

3 : 1 2 / 0 autor inicia agora seu comentário, e emprega palavras-chave, derivadas da citação precedente, sob a bela forma de ‘m idras’. O ponto central da citação fica de pronto evidente nas palavras Vede, irm ãos. Deve-se evitar a todo custo o coração perverso de incredulidade. A palavra coração se repete nos vv. 8 e 10, em que é descrito como tendo sido “endurecido” e “extraviado” . Um coração assim conduz à apostasia, fazendo que a pessoa se afaste do Deus vivo. O que está em evidência nesta linguagem forte (tu apustenai, “apostatar”) é uma rebelião deliberada, proposital, contra a verdade e, portanto, contra Deus. O adjetivo vivo diz respeito ao caráter dinâmico de Deus, que de maneira alguma deixará passar despercebida tal ação da parte de seus filhos.

3:13 / Os leitores devem tomar o máximo cuidado, para que não lhes suceda o mesmo que aconteceu aos peregrinos no deserto, isto é, que nenhum de vós se endureça (que propositadamente é a palavra usada na citação, v. 8; cf. v. 15) pelo engano do pecado. Os leitores são chamados a fim de exortar-se uns aos outros todos os dias. A importância da comunhão e do apoio mútuo é mencionada explicitamente em 10:24-25. E preciso que haja incentivo todos os dias. porque o chamado para o discipulado fiel é um desafio constante. A vida cristã só pode ser vivida dia adia. pelo que cada novo dia é um novo “hoje” . E hoje que Deus nos chama, e devemos responder em obediência. Portanto, d u ran te o tempo não significa que haverá uma época nesta vida em que o hoje das Escrituras deixará de aplicar-se a nós; significa, antes, que se requer de nós toda a fidelidade, como o versículo seguinte salienta: “até o fim”.

3 :1 4 / Visto que Cristo tomou-se participante de nossa humanidade, os cristãos tomaram-se partic ipantes de Cristo; tomamos parte no cumpri­mento que ele trouxe, quando participamos do reino que ele inaugurou e tomamo-nos herdeiros da glória vindoura (2:10). Todavia, esse novo estado ou posição não deve ser presumido como “favas contadas” por causa de um início promissor, pelo que a obtivemos desde o princípio. Outra vez se evidencia a preocupação do autor da carta quanto à fé bruxuleante dos seus leitores. A confiança que demonstraram de inicio,

80 (Hebreus 3:7-19)

isto é, a certeza subjetiva que produz obediência fiel, deve ser mantida firme até o fim, até que Jesus volte, ou até que a morte leve o cristão para que esteja com o Senhor.

3:15 / Este versículo apresenta a primeira das quatro ocasiões em que na exposição continua da citação original, uma porção dela é formalmente mencionada outra vez (cf. 4:3,5,7). Aqui as duas linhas de abertura (SI 95:7-8) se repetem (cf. w . 7-8a).

3:16-17 / Aqueles que tendo-a ouvido, o provocaram (palavras derivadas da citação escriturística) eram os israelitas que haviam experi­mentado o êxodo. A expressão contra quem se indignou por quaren ta anos (cf. w . 9s.) também saíram da citação original (veja-se Notas Adicionais). Estas pessoas pecaram (cf. v. 10) e seus corpos caíram no deserto, palavras tiradas de Números 14:29 (LXX), sendo as três últimas palavras eco da citação original (v. 8). O ponto central do autor da carta é que aqueles que pecaram haviam tido o alto privilégio de experimentar o espantoso livramento feito por Deus, quando os libertou do Egito. No entanto, este maravilhoso começo não produziu bem nenhum nos israelitas, que posteriormente havenam de rebelar-se.

3:18 / Repete-se o argumento, desta vez mediante nova citação do juramento ([Deus] ju ro u ) mencionado pela primeira vez no v. 11. O texto grego traz outra vez, simplesmente: ju rou que não en tra riam no seu descanso (veja-se o comentário sobre o v. 11). Aqueles a quem estas palavras foram dirigidas foram desobedientes

3:19 / Fica bem claro que o fracasso dos israelitas (não puderam en tra r na terra e no descanso; lit.: “entrar”, ficando subentendido “na terra e no descanso”) por causa da incredulidade. A palavra incredulidade aqui não implica tanto dúvida de ordem intelectual, quanto principalmente infidelidade deliberada. Da perspectiva do autor da carta, a incredulidade e a infidelidade são inseparáveis. A incredulidade e a infidelidade de Israel não podiam ser desculpadas porque os israelitas haviam recebido abun­dantes provas da realidade e do amor de Deus (cf. 4:2).

(Hebreus 3:7-19) 81

Notas Adicionais # J3:7-11 / O Espírito Santo é continuamente considerado no Novo Testa­

mento a Pessoa que inspirou os autores do Antigo Testamento e, por isso, falou e ainda fala por meio deles. Veja-se, por exemplo, Mt 22:43; At 1:16, 28:25;2 Pe 1:20s. Veja-se P.K. Jewett em ZPEB, vol. 3, pp 194s. A única alteração digna de nota feita pelo autor de Hebreus, ao apresentar a citação, é que a antecede de por isso, por essa razão, os quarenta anos referem-se à experi­ência do povo quanto à providência de Deus, e não à terrível ira do Senhor, como a percebemos tanto no Antigo Testamento Hebraico como na LXX (cf.SI 95:10). No entanto, no v. 17 os quarenta anos referem-se à ira de Deus, pelo que se deduz que o autor da carta considera as duas declarações como verdadeiras A LXX é uma cuidadosa tradução do hebraico, a única alteração significativa é a tradução no nome de Meribá (“contenda” : como no dia da tentação) e Massá (onde vossos pais me tentaram , me provaram ). Não se deve entender que a partícula se (do v. 7) denote incerteza quanto ao fato de a voz poder ou não ser ouvida. A força do hebraico original reflete-se bem na tradução das palavras iniciais: “Hoje, se ouvirdes a sua voz” . Não endureçais os vossos corações e metáfora comum que significa “não sejais teimosos no erro” Veja-se U Becker em NIDNTT, vol. 2, pp 153-55.

A referência a quarenta anos poderia ter significado especial ao autor de Hebreus e seus leitores, caso o êxodo de Jesus, isto é, sua ascensão aos céus, houvesse ocorrido quarenta anos antes (presumindo-se, portanto, que a carta teria sido escrita antes de 70 d C ). A inserção especial da parte do autor da carta de por isso (dio), no v. 10, observando-se que ele cita os quarenta anos como uma experiência real dos israelitas, apenas intensifica a culpa destes. Esta geração (v 10) representa uma mudançado texto da LXX, tomando mais vivida a presente aplicação Estes sempre erram em seu coração aproxima- se bastante do v 8 no significado. E linguagem que reflete o ponto de vista hebreu de que o coração é o centro do conhecimento e da vontade Não conheceram os meus caminhos é tradução literal, mas não se trata de uma questão de obediência, mas de conhecimento O antropomorfismo assim jurei em minha ira (“declarei com juramento em minha ira,” como diz N1V) é fórmula comum que sublinha a solenidade grave do juramento de Deus (cf.3 18; 4:3, quanto a uma aplicação positiva, veja-se 6:13, 7:21). Veja-se H.G. Link, NIDNTT, vol 3, pp. 737-43.

3:12 / Irmãos — advertência semelhante à de 3:1 Incredulidade (iapistias), do ponto de vista do autor da carta é a raiz do problema, capaz de induzir à desobediência e eventual apostasia. No v. 19, o fracasso esta diretamente ligado à incredulidade (apistia). Temos aqui a faceta negativa da “fé” ou “crença” dos heróis catalogados no cap. 11. Podem os leitores judeus

82 (Hebreus 3:7-19)

que apostatam e voltam parao judaísmo ser descritos como povo que se afaste do Deus vivo, que é o que aparentemente pretendem fazer os leitores da carta aos hebreus? Algumas pessoas têm argumentado que esta expressão indica forçosamente que os destinatários da carta não são judeus. Contudo, para o autor da carta, para quem o cristianismo é o cumprimento das promessas, constituindo, portanto, o verdadeiro judaísmo e não outra religião, apostatar do cristianismo é abandonar o Deus vivo. Não há lugar para a idéia moderna dapresençade Deus nojudaísmo, como religião paralela do cristianismo e, por isso, dotada de legitimidade. O autor de Hebreus considera a volta ao j udaísmo por parte de seus leitores um perigo horrendo, da maior gravidade Quanto a expressão Deus vivo, veja-se a nota sobre 9:14

3:13 / Assim como o diabo é o enganador (2 Co 2:11), seu instrumento de trabalho, o pecado, é a essência do engano (Rm 7:11). Os leitores precisam desesperadamente de encorajamento, o que é enfatizado na carta. Quanto ao verbo {parakaleõ), como aqui é usado, veja-se 10:25, 13 19, 22 Quanto ao substantivo (paraklesis), veja-se 6 18, 12:5, e 13 :22 (“esta palavra de exorta­ção”). Além do sentido óbvio no presente contexto, a palavra hoje pode ter tido também conotações escatológicas para o autor (cf. 2 Co 6:2), ainda assim, o autor não as utilizou.

3:14 / Quanto a uma discussão da palavra confiança (hypostasis), veja-se o comentário sobre 11:1.

3:15 / Veja-se nota sobre o v. 73:16-17 / A estrutura dos dois versículos é a de um paralelismo Cada um

deles contém duas perguntas retóricas, em ambos os exemplos a segunda pergunta se inicia com uma partícula negativa, ou, que pressupõe uma resposta positiva (cf. GNB, NEB, que traduzem a segunda questão de cada versículo como se fora uma declaração, JB evita de vez a forma interrogativa, nesses dois versículos). A palavra provocaram ocorre na forma de substantivo na citaçãodosalmo95,etambémse'encontranasnarrativasde Êxodo 15:23,17:7 e Números 14, 20:2-5. Ainda que o vocabulário seja diferente, o mesmo pensamento e a mesma motivação para expressá-lo aparecem em 1 Coríntios 10:10: “E não murmureis, como também alguns deles murmuraram, e perece­ram pelo anjo destruidor” . As palavras se indignou por quarenta anos, diferentemente da maneira pela qual o autor apresentou a citação do v. 9s., reflete de modo correto o sentido do texto do Antigo Testamento. Tanto a rebelião como a ira — podemos dizer — caracterizaram o período de quarenta anos.

3:18/ Aqui, em vez de “meu descanso”, como aparece na citação original (cf. v. 11), o texto diz no seu descanso (cf. também 4:10). O autor apela para os juramentos ou promessas solenes de Deus para reforçar sua argumentação

(Hebreus 3:7-19) 83

na carta. Além das referências neste capítulo, veja-se também 4:3 ,6 :13;e7:21. A desobediência a que se refere este versículo é mencionada de novo em 4:6,11 com um substantivo de mesma raiz (apeitheia, “desobediência”). Quanto à raiz, no sentido de incredulidade, veja-se B AGD, apeitheo (sec. 3). A palavra paralela no final do v 19 é apislia, “ incredulidade” .

3:19 / A palavra en tra r é tirada da alusão à citação original no v. precedente. E correto presumir que a entrada naTerra Prometida é o “descan­so” que se tem em mira, nesta conjuntura. Os que pereceram no deserto deixaram de atingir o objetivo imediato: a posse de Canaã. Os que nela entraram não puderam usufruir o descanso prometido, porque a terra não ficaria li vre de povos inimigos senão durante períodos breves A posse da terra nunca foi o verdadeiro descanso que Deus tinha em mente para seu povo. Esse descanso pela sua natureza transcende todas as avaliações terrenas. Como veremos oportunamente, o autor é bastante criativo, ao usar a palavra“descan- so” nos versículos que se seguem

8. A Promessa Remanescente de Descanso (Hebreus 4:1-13)

4:1 / Israel ainda não entrou no descanso oferecido por Deus, mas o Senhor continua a oferecer a seu povo a prom essa de e n tra r no seu descanso (cf. w . 3,6, 11). Segue-se que aquela prom essa não pode ter-se referido à entrada na Terra Prometida e à sua posse, mas o descanso em questão teria sido de natureza fundamental, eterno. Essa palavra-chave, descanso, é tirada de uma citação original (3:11; cf. 3 :18), sendo o assunto da exposição que se segue (cf. w . 3-5,8,10.11). Tem amos (cf. 1 Co 10:12) talvez seja o termo adequado como tradução do grego phobeihomen , “tenhamos grande medo”, com que se inicia a advertência (cf. KJV; RSV; NEB, ECA). Suceda parecer que algum de vós tenha falhado, não atentando para a promessa do descanso feita aos leitores de modo tão direto: tendo-nos sido deixada a promessa de entrar no seu descanso.

4:2 ' Como se tom a evidente mediante o ensino da carta, o evangelho para o autor e seus leitores identifica-se com a cruz e seus efeitos. Para os que enfrentaram o deserto, foi o livramento do êxodo (cf. 3 :161 e a aliança do Sinai. Para ambos os grupos o evangelho é o amor redentor de Deus demonstrado em seus atos salvíficos. A diferença entre essa geração de Israelitas e os leitores cristãos da carta, que viram o cumprimento defini­tivo, não se faz alusão aqui como em outras passagens (e.g.. 2 :1-4). No entanto, o evangelho que os israelitas ouviram nada lhes aproveitou porque a experiência não foi acompanhada pela fé(cf. 3:19). A implicação para os leitores é clara. A fé deve acompanhar o ouvir.

4:3 O contraste está em que nós, os crentes, en tram os no descanso. Estas palavras são outra vez tiradas da citação original (3:11,18). Aqui outra vez confrontamos de modo direto a ambigüidade da escatologia do autor de Hebreus, a qual apresenta aspectos presentes (ou realizados) e aspectos futuros. O descanso em seu sentido integral permanece expec­tativa futura; há um sentido em que já estamos entrando nesse descanso agora, pelo que já nos pertence (veja-se o comentário sobre o v. 10). N a

(.Hebreus 4:1-13) 85

segunda metade desse versículo encontramos uma seção da citação origi­nal que se apresenta de novo como citação formal (cf. 3:15; 4:5, 7).O ponto central da citação não fica aparente de pronto, aqui, a despeito das palavras introdutórias tal como disse [Deus] (lit., “ele”). A explicação é dada nos versículos seguintes, e repousa em duas pressuposições importantes que o autor da carta esforça-se ao máximo para estabelecer: (1) o descanso de Deus é uma realidade (w . 3b-4), e (2) os israelitas estavam proibidos de entrar nesse descanso (citações nos w . 3 e 5). Segue-se que aquelas pessoas não entraram no descanso, mas aguardam-no os crentes da era do cumprimento (v. 6). O que os israelitas deixaram de receber torna-se disponível aos que crêem nas boas novas de Jesus Cristo (cf. w . 2 e 3). Assim o argumento negativo da citação serve finalmente de apoio ao argumento a respeito da existência do descanso, e sua disponibilidade. Tal como disse: Assim ju rei [Deus| que os israelitasjamais haveriam de entrar no descanso real, que já existe. A implicação é que o Senhor tinha outras pessoas em mente, que entrariam no descanso. Toma-se plenamente evidente a realidade do descanso de Deus mediante suas obras que foram acabadas desde a fundação do mundo.

4:4 / Outra vez o autor da carta demonstra pouco interesse pelos autores humanos das Escrituras (disse ele assim) e pela localização (em certo lugar) da citação. Esta segue de perto Gênesis 2:2, de acordo com a LXX, sendo usada aqui a fim de dar peso ao versículo precedente. Sétimo dia transforma-se em expressão que significa descanso. Isso se toma mais evidente por causa da palavra hebraica que significa “sete” , da qual deriva a palavra “sábado” (veja-se o comentário sobre o v. 9).

4:5 / Mais uma vez cita-se um verso de Salmos 95 :11, a fim de reiterar que os israelitas não conseguiram entrar no descanso de Deus (cf.v.3).

4:6 / Este versículo resume o argumento precedente e reúne os vários fios da trama da discussão. A primeira metade da sentença fala do resultado da antiga desobediência: Visto restar que alguns entrem nele (no descanso). “Entrem” faz alusão de novo à citação original. A paráfrase de Phillips apanha o sentido com perfeição: “Está claro que a intenção era que alguns experimentassem esse descanso” . Em outras palavras, Deus não existe em vão; o plano sempre foi que o Senhor fosse partilhado pelo seu

86 (Hebreus 4:1-13)

povo, e tal intenção se cumpre agora. É neste descanso que o propósito último de Deus para a criação encontra sua realização. A segunda metade da sentença repete a argumentação do v. 2b (veja-se ali o comentário sobre o sentido de boas novas). Os que caminharam pelo deserto não en tra ram (alusão à citação original), por causa da desobediência. Tal desobediên­cia permite que outros, a saber, os que crêem no evangelho de Jesus Cristo, e o recebem, possam entrar.

4:7 / Partindo da palavra inicial da citação original (em 3:7) do salmo 95 — a palavra hoje — o autor deduz que Deus (lit., “ele”) determ ina outra vez certo dia em que se poderá entrar nesse descanso. É digno de nota que, na época de Davi, m uito tempo depois, o mesmo convite para ouvir e obedecer poderia ser estendido, prefaciado por hoje. A sugestão é, portanto, que ainda temos de entrar no descanso, mas que esse convite se estende ao presente, e é no presente que encontra seu significado verdadei­ro. E que cada dia é um novo hoje, e esta palavra, “hoje”, aplica-se de modo preeminente a todos que são “participantes de Cristo” (cf. 3:13,14). Esta é a quarta vez, e a última, em que o texto da citação original (3:7-11) é apresentado em citações menores, formais (cf. 3:15; 4:3,5).

4:8 / Josué não deu descanso ao povo. Houvesse ele dado, a oferta não teria sido repetida em outro dia, posteriorm ente, “através de Davi”, nem se teria feito menção a depois disso. Visto que no grego os nomes Josué e Jesus são idênticos, os leitores não poderiam ter evitado o contraste implícito entre o antigo “Jesus” que falhou, não concedendo o descanso, e o outro “Jesus”, que trouxe o verdadeiro descanso, que havia sido prometido a seu povo. Embora não fosse mencionado, devemos presumir que a geração de Davi não entrou na Terra Prometida — ou que, se em algum sentido entrou, não o fez no sentido definitivo em que o descanso prometido no Antigo Testamento está disponível àqueles que usufruem o cum prim ento efetuado por Cristo. Assim como Davi in troduziu contemporaneidade na narrativa da rebelião no deserto, ao aplicá-la a seus leitores, assim também o autor de Hebreus, nesta passagem, fez o mesmo com relação a seus leitores. No entanto, a diferença entre o tempo de Davi e o do autor da carta tomou-se clara a partir da argumentação de toda a carta.

(Hebreus 4:1-13) 87

4:9 / Resta ainda um repouso, aquele mesmo que fora prometido para o povo de Deus, para que o desfrute. Repouso vem de uma palavra (sabbath) que ocorre somente aqui em toda a Bíblia grega. É palavra que sugere o descanso do próprio Deus após sua criação (v. 4). O dom de Deus do repouso pode assim ser considerado o dom de seu próprio repouso. Usufruir as bênçãos do ‘eschaton’ é participar do repouso (sabbath) de Deus.

4:10 / Mediante habilidosa combinação de textos retirados de duas passagens do Antigo Testamento, que já foram citados (SI 95:11 em 3:11, 18; 4:3, 5; e Gn 2:2 em 4:4), o autor da carta dá a entender que o repouso de Deus e o repouso prometido são a mesma coisa. Assim é que aquele que entrou no descanso de Deus, ele próprio descansou de suas obras. O que está em questão aqui é a experiência atual de repouso, disponível aos leitores (o tempo do verbo no grego é o aoristo), ponto que o autor deseja salientar.

Não está claro de que maneira devemos entender “obras” ; os comenta­ristas têm diferido entre si em suas interpretações desta palavra. Visto que o repouso ou a cessação das obras é algo que deve iniciar-se aqui, agora mesmo, não se deve imaginar que se trata da cessação da vida, nem daquele repouso desfrutado pelos santos que partiram para estar com Jesus, pela morte. Se buscamos algo que deve ser usufruído no presente, é improvável que devamos imaginar que tais obras sejam as da justiça, no sentido paulino, de tal forma que o repouso é o dajustifícação pela fé. Tal ponto de vista em parte alguma de Hebreus é exposto em palavras claras e, mais importante ainda, de modo algum se harmoniza com o contexto. Além disso, para o autor da carta, a fé não se sobrepõe às obras, mas na prática é intercambiável com a obediência. É possível que o autor, ao falar em “obras”, tenha em mente a atividade do ritual sacrificial e as minúcias da purificação cenmonial, tão importantes no judaísmo, a que os leitores se sentiam atraídos. No entanto, a interpretação mais plausível é que o autor tem em mente as qualidades ideais do repouso-sabbath, a saber, paz, bem-estar e segurança — aquela estrutura mental que, em virtude da confiança em Deus, possui estas qualidades, em contradição com as circunstâncias que nos rodeiam. Em suma, é possível que o autor tenha em mente aquela paz e senso de segurança último “que excede todo o entendimento” (Fp 4:7). Esta interpretação tem a vantagem adicional de fazer com que a discussão

88 (Hebreus 4:1-13)

se tom e pertinente e importante quanto às necessidades dos leitores. Esta preocupação, na verdade, jamais saiu da mente do autor de Hebreus.

4:11 \ A exortação dada agora confirma que a interpretação acima está no caminho certo. Procurem os, portanto , e n tra r naquele descanso (fica bem clara outra vez a alusão à citação original). Se os leitores entrarem agora nesse repouso, nenhum cairá (que ninguém caia) como aconteceu aos israelitas no deserto, vitimados pela desobediência. Assim é que, se os leitores entrarem no repouso, produzirão a obediência — que aqui tem o sentido de fidelidade. Portanto, os leitores não tomarão o caminho da apostasia, não deverão seguir o mesmo exemplo mau dos israelitas; ao contrário, suportarão provações duras e a perseguição que aparentemente estão sofrendo como cristãos. Deve-se notar que na discussão deste capítulo encontramos a tensão entre o modo indicativo do verbo (entramos no repouso) e a do imperativo (recebemos a ordem de procurar entrar no descanso) que com grande freqüência encontramos na argumentação de Paulo (e.g., Rm 6:7,12). Tudo isto é apenas um reflexo da tensão que existe entre a escatologia realizada e a futura. As preocupações pastorais do autor pelos seus leitores são evidentes nesta aplicação, bem como nos dois versículos seguintes.

4:12 \ O íntimo elo existente entre este parágrafo (w . 12-13) e os versículos precedentes está indicado pela forte conjunção pois. Estes dois versículos suprem, assim, a base lógica da exortação precedente, fato essencial à interpretação correta. A palavra de Deus não é referência a Jesus, tampouco é menção primária às Escrituras. Antes, refere-se ao que Deus fala; é uma idéia sugerida talvez ao autor da carta, pela repetida menção de “ouvir a voz de Deus”, nos versículos anteriores (3:7, 15, 16; 4:2, 7). A voz de Deus, a palavra de Deus, pelo seu próprio caráter exige uma resposta autêntica. Se não houver penetração dessa palavra divina, não há como fingir lealdade, e menos ainda exercer lealdade real. É por isso que a advertência do autor da carta deve ser tomada com a máxima seriedade. A palavra que Deus fala é viva e eficaz. Bastou sua palavra para que o mundo fosse criado; é palavra eficaz que jam ais voltará vazia (cf. Is 55:11) ao Senhor. Essa eficácia se expressa agora pela metáfora mais cortante do que qualquer espada de dois gumes (cf. Ap 2:12). As frases que se seguem são meros desenvolvimentos desta metáfora, não havendo

(Hebreus 4:1-13) 89

a intenção de transmitir informações que nada tenham que ver com o ponto discutido. O autor da carta não revela aqui sua opinião a respeito da natureza do ser humano (ao ponto de dividir alma e espírito , ju n tas e medulas... os pensam entos e intenções do coração). Estes pormenores todos tencionam enfatizar a plena eficácia da palavra de Deus.

4:13 / Na verdade, o ponto central dessa discussão toma-se agora claro: Não há c r ia tu ra algum a encoberta diante dele. Todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele a quem havemos de p resta r contas. A conotação clara desta linguagem é que nada é inescapável ao escrutínio de Deus, tudo lhe é vulnerável também ao julgamento. Este aspecto toma- se explícito na frase final: E a Deus que havemos de p re s ta r contas (cf. Rm 14:12). Assim, os w . 12 e 13 aplicam-se aos leitores afim de lembrá- los da seriedade tremenda de suas decisões. Vale a pena imaginar se esses leitores estariam abraçando algum tipo de comportamento que represen­tava mera cobertura de uma apostasia difarçada.

Notas Adicionais # 84:1 / Hénng nos oferece uma interpretação interessante deste versículo,

que se baseia no significado da expressão “sido deixada” (kataleipomenes), que ele toma com o sentido de “não realizada” Nesse caso temos esta questão: o fato de as pessoas não entrarem no repouso poderia ser atribuído a que a era escatológica deixou de realizar-se, pois teria falhado em todos os sentidos (cf. 2 Pe 3:4). Tal tradução seria possível, mas, se é isso que o autor de Hebreus tinha em mente, ele se expressou de forma oblíqua

A palavra descanso (katapausis), que fora introduzida na citação original (3:11) e repetida em 3 18, ocorre seis vezes no cap. 4 (duas vezes em repetições da primeira citação). A palavra ocorre numa segunda e última passagem, no Novo Testamento, em Atos 7:49 (que cita Is 66:1) Um verbo cognato ocorre em 4 4,8,10 (duas vezes pela citação de Gn 2:2). O contexto para o uso distintivo que o autor faz do conceito de katapausis provavelmente se encontra na literatura judaica apocalíptica, em vez de no gnosticismo. Veja-se G. von Rad, “There Remains Still a Rest for the People of God: An Investigation of a Biblical Conception” — Ainda Resta um Repouso para o Povo de Deus: Pesquisa sobre um Conceito Bíblico — The Problem o f the Hexateuch and Other Essays — O Problema do Hexateuco e Outros Artigos — Edimburgo & Londres: Oliver & Boyd, 1966), pp. 94-102; R. Hensel e C. Brown, NIDNTT, vol. 3, pp 254-58. Na compreensão da passagem em estudo, é

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importante que se perceba que o autor está falando de três tipos distintos de descanso, embora todos relacionados entre si: (1) descanso literal, na terra de Canaã(cf. Dt 12:9); (2) o descanso do próprio Deus (v. 4), e (3) o descanso do qual se diz ser a porção dos crentes (o qual na verdade poderia ser subdividido em descanso disponível hoje e o descanso futuro, no “fim”). Fica bem claro que o autor vê aqui um relacionamento tipológico entre o descanso na Terra Prometida, em Canaã, e o descanso que Deus planejou para todos os cristãos. As bênçãos de um descanso temporal, aqui, profetizam e representem as bênçãos de outro descanso, eterno, no céu, assim como o atual descanso que os crentes desfrutam aqui antecipa o descanso final, escatológico Veja-se H A. Lombard, "Kalapausis in the Letter to the Hebrews” — Katapausis na Carta aos Hebreus”— Neotestamenlica 5 (1971), pp. 60-71.

4:2 \ Também a nós foram anunciadas as boas novas O verbo euangelizo (na carta aos Hebreus aparece só aqui e no v. 6) foi traduzido por “anunciar as boas novas”. E palavra que, de modo especial pelo seu uso na segunda metade de Isaias, vem carregada de associações escatológicas. Fica bem evidente quão apropriada ela é para descrever o que os leitores de Hebreus ouviram, pode ser utilizada de modo anacrônico para referir-se a epoca da peregrinação pelo deserto, por causa da continuidade teologica de sua expe­riência de livramento e relacionamento de aliança com a dos leitores Existe considerável dificuldade textual concernente ao texto grego que se traduziu por a palavra que ouviram nada lhes aproveitou, visto não ser acompa­nhada pela fé, mas não existe aqui nenhuma séria alteração de sentido Veja- se Metzger, TCGNT, p. 665. NEB chega bem próximo do sentido literal da passagem: “eles não combinaram a fé com o ato de ouvir”. A linguagem do versículo e semelhante à de Paulo em Romanos 10 16 (em que se menciona Is 53:1). Quanto à necessidade de o ouvir fazer-se acompanhar da fé, veja-se também Gálatas 3:2,6. Quanto ao sentido da palavra fé, veja-se a nota sobre 11 : 1.

4:3 \ Os comentaristas dmdem-se quanto a se a frase de abertura deste versículo deve ser entendida como referindo-se a uma entrada atual no repouso, como o sugere o presente do indicativo entramos (eiserchomai). Essa é a opinião de Westcott, Spicq e Montefiore. Outros sugerem que se trata do descanso escatológico futuro (Delitzsch, Hénng, por implicacão: Bruce e Hughes). A primeira interpretação, que não precisa excluir a segunda, a da realização final no futuro, tem o apoio implícito do v. l ,e explícito do v. 10. Esta interpretação é a que dá sentido à exortação do v 11 e proporciona melhor apoio à preocupação pastoral do autor da carta Veja-se também 12:22ss. Quanto à tensão em Hebreus entre a escatologia realizada e a futura, veja-se G. Hughes, Hebrews and Hermeneutics — Hebreus e a Hermenêutica — pp 67-73.

(Hebreus 4:1-13) 91

“Fundação do mundo” é frase comum do Novo Testamento para referir-se à criação (cf Hb 9:26, Mt 25:34; Lc 11 50, Jo 17:24, Ef 1:4 ,1 Pe 1:20, Ap 13:8).

4:4 \ A palavra ergon (“obra”) é comum na carta aos Hebreus, refenndo- se muitas vezes à criação de Deus, como aqui (1:10; 4:3). Em 6:1, 10; 9 :14; e 10:24, refere-se a obrasjustas ou injustas, mas nunca é usada explicitamente numa polêmica paulina contra as obras da injustiça. Veja-se G. Bertram, TDNT, vol. 2, pp. 635-55. Diferentemente da descrição dos primeiros seis dias, o relato de Gênesis do sétimo dia não faz menção da tarde Os comenta­ristas judeus concluíram que o “sabbath-descanso” de Deus, que se iniciou após o encerramento da criação, dura indefinidamente O autor da carta apela para esta tradição quando argumenta que seus leitores podem desfrutar do ‘"sabbath-descanso” de Deus na presente era. Sabemos também que na tradição judaica existiria um sábado (descanso) escatológico, um período de mil anos, que se seguiria após os seis mil anos da história da humanidade. O autor de Hebreus, temos argumentado, conhece um sabbath-descanso atual e um sabbath-descanso futuro Veja-se A T Lincoln, “Sabbath, Rest and Eschatology in the New Testament”, — Sabado, Descanso e Escatologia no Novo Testamento — em From Sabbath to Lord 's Dav: A Bibhcal, Historical and Theologtcal Investigation — Do Sábado para o Dia do Senhor: Uma Pesquisa Bíblica, Histórica e Teológica — ed D A Carson (Grand Rapids: Zondervan. 1982).

4:5/ E outra vez, no mesmo lugar: refere-se à nova citação da última linha do salmo 95

4:6 / NIV omite epei oun, “visto, portanto”, que são as palavras iniciais deste versículo ECA omite apenas “portanto” . São necessárias para fazer j ustiça à lógica da argumentação, de modo especial ao não refletir a dependên­cia da citação do Antigo Testamento no v 5 e a força conseqüente do convite renovado a que se faz referência no v 7 Desobediência (apeitheia) é palavra- chave aqui e no v 11, sua forma verbal ocorre em 3:18 e em 11:31. Veja-se O Becker, NIDNTT, vol l,p p 588-93

4:7 / Determina (hortzo. tempo presente) faz alusão a um decreto soberano de Deus (cf At 10:42, Rm 1 :4 )0 ponto da referência a Davi não é uma preocupação com a autoria, visto que, em outra passagem, como vimos, o autor se esquece da autoria humana das Escrituras, e as considera simples­mente palavra de Deus O nome de Davi é mencionado aqui a fim de enfatizar a distância cronológica entre o tempo da peregrinação no deserto e a repetição da promessa com a palavra “hoj e” Se o autor entende seus próprios dias como sendo hoje, pronunciado no tempo de Davi, teria então entendido Salmos 95:7 como profético, é possível interpretar segundo antes fora dito como signifi­cando “como fora profetizado”

92 (Hebreus 4:1-13)

4:8 / O nome grego para Josué (le sou s), “Jesus”, ocorre nesta forma na KJV, At 7:45, em que a referência é a Josué e não a algum ato de Jesus pré- encamado. Em Josué 22:4 (cf. 21:43-45), Josué anunciou que Deus havia dado ao povo descanso (o verbo é o mesmo usado neste versículo). No entanto, este descanso, como o que Davi trouxera (2 Sm 7:1, l l ) e Salomão (1 Rs 8:56), no máximo foi uma experiência simbólica do descanso que Deus tencionou para seu povo. O repouso divino deve ser considerado numa base totalmente diferente. Todas as experiências anteriores de descanso não passam de sombras tipológicas do repouso escatológico que Deus tenciona para seu povo, que já começa a experimentá-lo.

4:9 / A palavra grega rara para repouso {sabbath no hebraico) neste versículo é sabbatism os. É usada deliberadamente pelo autor em lugar da palavra para “descanso” usada previamente em sua discussão (katapausis), a fim de enfatizar que o descanso de que tem falado é de natureza escatológica, isto é, tem a natureza do descanso do próprio Deus. Assim é que o sabbath de Deus toma-se o símbolo de nosso descanso. Quanto a uma perspectiva semelhante, em que bênçãos celestiais futuras são concebidas como realizá­veis no presente momento, veja-se 12:22-24. Veja-se A.T. Lincoln, “Sabbath, Rest and Eschatology in the New Testament” — O Sábado, Descanso e Escatologia no Novo Testamento — em From Sabbath to L o r d ’s D a y — Do Sábado para oDia do Senhor— ed. D.A. Carson. Qumto a sabbatism os, veja- se E. Lohse, vol. 7, pp. 34s.

4:10 / entrou no descanso de Deus é expressão tirada do texto da citação do Antigo Testamento. KJV, ASV eNASB de modo exato traduzem o aoristo grego com o perfeito do indicativo “descansou”. ECA também emprega o perfeito, mas para o verbo “entrar” . Outras versões (NIV, NEB, RSV) usam o presente do indicativo, presumivelmente por considerá-lo mais coerente com o contexto (veja-se o v. 3), entendendo que o aoristo “tem descansado” é resultado da influência do mesmo tempo verbal na citação da LXX (Gn 2:2) no v. 4. O repouso escatológico realizável no presente tempo se transformará em plena realidade no futuro (cf. GNB, que de fato emprega o tempo futuro aqui, o que enfraquece a aplicação atual que é da intenção do autor da carta).

Ao fazermos a exegese de “obras”, é erro enfatizar demais a analogia com o repouso de Deus, após o término de suas obras. A analogia centraliza-se na realidade do descanso, e não no trabalho de que é preciso descansar. O repouso e, portanto, a cessação do trabalho, em princípio é escatológico; no entanto, é um descanso que devemos adentrar no presente momento. O paralelismo interessante na linguagem de Apocalipse 14:13 (“descansarão dos seus trabalhos”) só em parte é pertinente aqui.

4:11 / Procurem os, portanto , en tra r é tradução de spou dazo (“ser

(Hebreus 4:1-13) 93

diligente,” ou “zeloso”), palavra comum de exortação ética no Novo Testa­mento A última metade do versículo, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência, é alusão à desobediência como causa do fracasso de Israel, como se menciona em 4:6. Veja-se H. W. Attridge, “ ‘Let us strive to enter that rest’: The Logic of Hebrews 4:1-11” — Esforcemo-nos por entrar naquele repouso: A Lógica de Hebreus 4:1-11 — HTR 73(1980),pp 279-88.

4:12 / Visto que em Filo a expressão palavra de Deus (logos lou theou) é personificada, e dela se diz que divide diferentes faculdades do ser humano, alguns têm visto influências alexandrinas no autor, nesta passagem. Embora isto seja possível, tal conclusão está longe de ser correta. A palavra de Deus é viva porque Deus “é um Deus vivo” (3 :12). Garante-se assim sua qualidade dinâmica e eficaz (cf Jr 23:29, veja-se também 1 Pe 1:23). As palavras eficazes são semelhantes a uma espada aguda, cortante (Is 49:2) e a palavra de Deus (rhema tou theou) assemelham-se a espada do Espírito (Ef 6:17). Quanto a uma espada de dois gumes, veja-se Ap 2:12. “Sabedoria” (sophià) tem qualidades que fazem paralelo com a palavra de Deus na presente passagem, de modo especial com referência aos poderes de penetração (Sab. de Sal. 7:23ss., 1 6) Quanto ao argumento que palavra de Deus refere-se a Jesus, veja-se J Swetnam, “Jesus as Logos in Hebrews 4:12-13” — Jesus como Logos em Hb 4 :12-13 — em Bíblica 62 (1981), pp. 214-24. R. Williamson também encontra uma Cristologia de Logos em Hebreus, que apela de modo especial para aocorrência de logos no v 13, que ele traduz “com quem o Logos esta presente, a nosso favor” (que NIV traduz “a quem devemos prestar contas” [/ogoi], ECA traz quase as mesmas palavras. “The Incarnation of the Logos in Hebrews” — A Encarnação de Logos em Hebreus — ExpT 95 [1983], pp 4-8)

4:13/ Em outras passagens enfatiza-se que, na época do julgamento, tudo que está escondido será revelado (e.g., 1 Co 4:5). Todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele indica a situação precária de todas as pessoas na época do julgamento. Quanto a uma conexão entre palavra e julgamento, veja-se João 12:48 Veja-se G E Trompf, “Conception o f God in Hebrews 4:12-13” — Conceito de Deus em Hebreus 4:12-13 — StudTh 25 (1971), pp. 123-32.

9. 0 Supremo Sacerdócio de Jesus (Hebreus 4 :1 4 -5 :1 0 )

Nos últimos versículos do cap. 4 o autor da carta exorta de novo seus leitores à fidelidade; desta vez, porém, com base em seu argumento a respeito do sumo sacerdócio de Jesus. Já se fez uma ponte entre o sumo sacerdócio de Jesus e sua capacidade de ajudar as pessoas (veja-se 2:17- 18); agora, todavia, a doutrina é elaborada e o autor se propõe, no início de seu discurso, argumentar a respeito da tese: Razões por que Jesus é qualificado para ser nosso Sumo Sacerdote. Primeiramente, o autor revê o papel e a vocação dcs sumos sacerdotes (5:1-4) e, a seguir, volta-se para as qualificações de Jesus como nosso Sumo Sacerdote (5:5-10).

4 :1 4 /0 fato de Jesus ser um grande sumo sacerdote capacita os leitores de Hebreus a permanecerem verdadeiros; a exortação deixa implícito que os leitores têm a tendência para a instabilidade. G rande aqui sugere a singulari­dade deste detentor particular de tão elevado ofício. De fato Jesus não é um sumo sacerdote comum. Trata-se de um homem, Jesus, mas também do singular Filho de Deus, aquele que penetrou nos céus. A última oração subordinada pode ser uma alusão à presença de Cristo no “templo celestial” ou espiritual, onde sua obra sacerdotal é realizada (cf. 6:20; 9:11-12). Ao mesmo tempo, pode haver alusão deliberada a Salmos 110:1, versículo estratégico do autor da carta, que também se relaciona à obra sacerdotal de Cristo (veja-se 8:1- 2). Linguagem semelhante encontra-se em 7:26, em que está escrito a respeito de Jesus, o sumo sacerdote, que foi exaltado, isto é, “feito mais sublime do que os céus” . Podemos comparar essa expressão com a referência de Paulo a Cristo, como sendo “o mesmo que subiu acima de todos os céus” (Ef 4:10). Assim, certo número de temas a respeito de Jesus, anteriormente introdu­zidos, são agora trazidos à discussão e associados com o título de Sumo SacerdDte. sua natureza humana, sua filiação singular, sua exaltação e, como estamos prestes a ouvir, sua conseqüente capacidade para ajudar os cristãos que se vêem sob provações. Retenhamos firmemente a nossa confissão é tradução literal, como em 3:1 (cf. 10:23).

4 : 1 5 / 0 autor enfatiza o mesmo ponto tanto de modo negativo como

(Hebreus 4:14-5:10) 95

positivo. Nosso Sumo Sacerdote não é impassível, incapaz de comparti­lhar nossas fraquezas e nossa vulnerabilidade. Ele também viveu como ser humano e, assim, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Aambigüidade do texto grego pode justificar a tradução de NEB: “alguém que, por ser semelhante a nós, foi tentado de todas as formas” . A plena humanidade de Jesus significa que ele experimentou toda gama de tenta­ções humanas (em vez de todas as manifestações específicas da tentação), ainda que em grau muitíssimo elevado de intensidade, pois, diferentemen­te de todos os seres humanos, o Senhor jam ais se entregou ao pecado. Isso quer dizer que o autor de Hebreus cré na perfeição impecável de Jesus (e.g.,2 Co 5:21; 1 Pd 2:22; 1 Jo 3:5). É verdade que Jesus pode com padecer-se das nossas fraquezas, mas não está, como os demais sumo sacerdotes, sujeito ao pecado (veja-se 5:2s.). Jesus se tomou “semelhante a seus irmãos em todas as coisas” , mas sem pecado. E por essa razão que ele pode ajudar-nos. “Porque naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados” (2:17-18).

4:16 / Se os leitores devem reter firm em ente a sua confissão (v. 14), devem tomar posse da ajuda que se encontra na presença de Deus. O autor usa imagens tiradas do culto no templo (e.g., cheguemo-nos) a fim de encorajar o povo a ter ousadia: com confiança (cf. 10:19). Não se trata de questiúncula simpies esse achegar-se ao trono da graça. No entanto, ali os leitores encontrarão m isericórdia e graça de que tanto precisam no momento oportuno. Usando a mesma linguagem cultural, o autor fala em trono da graça, que provavelmente é análogo em sua mente ao propiciatório do Santo dos Santos (cf. 9:5). Presume-se (pois não está registrado) que o sumo sacerdote capaz de ajudar é o que está assentado no trono (cf. v. 14 e 1:3, etc.).

Chegamos agora a este estágio na discussão do autor em que ele deve determinar as qualificações de Jesus como nosso Sumo Sacerdote. Esta tarefa ele a executa ao passar em revista o papel e a natureza desse ofício, de acordo com as Escrituras do Antigo Testamento e, a seguir, ao demonstrar como Jesus cumpre os mesmos critérios.

5:1 / Este versículo é, virtualmente, uma definição de dicionário, de “sumo sacerdote” . O sumo sacerdote é tomado dentre os homens... constituído a favor dos homens nas coisas concernentes a Deus, para oferecer tanto

96 (Hebreus 4:14-5:10)

dons como sacrifícios pelos pecados. Temos aqui uma linguagem deliberadamente genérica e ampla (veja-se a mesma terminologia em 8:3). O que está em questão, como veremos, é o trabalho especial do sumo sacerdote no Dia da Expiação, que será o foco de nossa atenção nos caps. 9 e 10.

5:2-3 / Visto que o sumo sacerdote é um ser humano, está rodeado de fraquezas (lit., “revestido de fraqueza” , como Barclay traduz). “A lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza” (7:28). Portanto, o sumo sacerdote pode com padecer-se devidam ente dos ignorantes e errados. E possível que se tenham em vista os pecados involuntários, inconscientes, pelos quais o sacerdote faz expiação, de acordo com Números 15:28 (cf. Lv 5:17-19). Ainda que Jesus satisfaça os critérios de natureza humana e assim esteja qualificado para ser sacerdote, não está, todavia, rodeado de fraquezas, nem “revestido” de erros como qualquer outro sumo sacerdote; tampouco precisa oferecer sacnficios por si mes­mo, fazer oferta pelos pecados (9:7; Lv 16:6), como se fora pecador (cf. 7:27). Visto que passou por provas e tentações, pode ajudar os que as sofrem, pois não teve pecado (4:15). É desse modo que Jesus se apresenta ao mesmo tempo semelhante ao sumo sacerdote comum e diferente dele. A principal similaridade, a execução da expiação pelos pecados do povo, deixaremos para ser estudada mais tarde, na exposição dos capítulos 9 e 10.

5:4 / Não se admitem livremente pessoas ao ofício de sacerdote, nem mesmo por escolha pessoal. Deus, e só Deus. é quem escolhe as pessoas para tão elevada honra. Ninguém senão o que é cham ado por Deus pode ser sacerdote, como vimos com clareza no caso de Arão (veja-se Éx 28:1) e seus descendentes (Nm 25:13).

5:5-6 / Se Cristo está qualificado para ser sumo sacerdote, em virtude de sua natureza humana, ele também se qualifica por causa de sua nomeação por Deus. C risto não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote. Já demonstramos esta impossibilidade no versículo precedente. Cristo não o julgou “usurpação” (Fp 2:6). O autor da carta menciona agora duas passagens do .Antigo Testamento em que baseia seu argumento. Ao enxergar a conexão entre as duas passagens o autor atinge um de seus mais brilhantes “insights”, aquela visão interior singular, perceptível em todo o Novo Testamento. A primeira citação, Salmos 2:7,

(Hebreus 4:14-5:10) 97

já foi utilizada no início do livro (1:5). Conquanto já se tenha salientado a singularidade da filiação divina de Jesus, nesta conjuntura da discussão deve-se enfatizar de novo a divindade do Senhor, partindo de Salmos 2:7, pela qual Jesus é o Rei messiânico por decreto de Deus. A segunda citação é Salmos 110:4, que se refere ao Sacerdote eternam ente, segundo a ordem de M elquisedeque. O autor dirige-se à mesma pessoa de Salmos 110:1, com as palavras “assenta-se à minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés” . Este versículo, embora não mencionado aqui, em outra passagem é citado como se se referisse a Jesus (1:13; e várias alusões), podendo ser entendido aqui como a ponte entre Salmos 2:7 e 110:4. Jesus é o Filho de Deus por decreto divino e, portanto, Alguém que foi elevado para estar à destra de Deus. Portanto, Cristo é Aquele que foi ungido por Deus sacerdote eternam ente, segundo a linhagem de Melquisedeque. Como o autor vai explicar mais adiante (no cap. 7), Melquisedeque era ao mesmo tempo rei e sacerdote (Gn 14:18). Jesus também é Rei e Sacerdote, pelo que corresponde a Melquisedeque. Para o autor de Hebreus, existe uma conexão vital entre a filiação singular de Jesus e seu papel de sumo sacerdote (cf. 1:2-3). Jesus só pode ser o Sumo Sacerdote ideal por causa de sua identidade de Filho de Deus (veja-se 7:28). Só como Filho pode Jesus desempenhar a obra expiatória definitiva que o autor da carta descreve nos capítulos posteriores.

5:7 / Este versículo e os três que se lhe seguem revelam com brevidade a essência da obra sacerdotal de Cristo, mediante as provações e tentações que experimentou o Filho divino, em sua humanidade. O autor faz referência à luta terrível nos dias da sua carne (trad. lit ), cheios de clam or e lágrim as, com vistas evidentemente no sofrimento do Senhor à medida que a morte se aproximava dele. É quase certo que o autor da carta tenha em mente a agonia de Jesus no jardim do Getsêmani (veja-se Mt 26:36ss.), em que Jesus orou que se possível o cálice fosse desviado (i.e., que ele fosse poupado). O rações e súplicas foram dirigidas ao que o podia liv rar da m orte, o que indica quase com toda a certeza que Cristo pediu que ficasse livre da morte. Todavia, como é possível que o autor da carta prossiga dizendo tendo sido ouvido...? Deus sempre ouve as orações daqueles que sofrem (veja-se SI 22:24, salmo q u e a igreja primitiva entendia ser profecia da paixão de Jesus). No entanto, nem sempre o Senhor nos responde da maneira que esperarímos ser atendidos. Neste exemplo — embora nos seja

98 (Hebreus 4:14-5:10)

difícil crer que se tratava de um pedido de Jesus — a resposta não foi o afastamento da morte, o livramento da (lit., “para fora da”) m orte mediante a ressurreição. Segundo o autor da carta, a oração de Jesus foi ouvida e atendida, por causa da sua piedade. Temos aqui a contrapartida da submissão de Jesus à vontade de seu Pai, no Getsêmani, ainda quando o Senhor ora pedindo livramento da morte. Por causa de sua submissão à vontade de Deus, a oração do Senhor foi ouvida de forma muito mais grandiosa do que teria sido possível.

5:8-9 / Em bora sendo Filho, i.e., ainda que fosse Filho de Deus, Jesus não esteve livre de sofrimento. Sua obediência não se efetivou em circunstâncias ideais, mas o Senhor a aprendeu “na escola do sofrimento” (que é como NEB traduz a frase, de modo apropriado; ECA: por meio daquilo que sofreu). É que Jesus sempre serve de modelo para todos nós.O fato de o Senhor ter alcançado aquele nível de fidelidade à vontade de Deus em circunstâncias adversas é um tipo de aprendizado, no sentido de Cristo ter passado voluntariamente por aquela nova experiência. O estágio final desse processo foi que tendo ele sido aperfeiçoado... isto é, o Senhor havia galgado o último degrau da obediência, ao preço do maior sofrimen­to, a morte (cf. 2:10). Como o autor da carta vai argumentar eloqüentemen­te nos últimos capítulos, é mediante sua morte que o Senhor veio a ser o A utor da eterna salvação para todos os que lhe obedecem (cf. 9 12). Assim como a obediência de Cristo custou-lhe sofrimento, assim também os leitores podem presumir que a obediência deles poderá trazer-lhes algum sofrimento.

5:10 / Sendo “o Autor da eterna salvação”, Jesus foi declarado Sumo Sacerdote por Deus. O Filho divino e, além disso, ou apesar disso, o Filho do homem, totalmente humano, possui as qualificações necessárias para ser nosso Sumo Sacerdote: Vocação divina (de modo especial por SI 110:4) e capacidade de empatia, para compreender aqueles a quem ele leva a Deus, e a quem representa diante de Deus. Assim, Cristo é membro de um sacerdócio singular — o da ordem de Melquisedeque. No entanto, neste ponto a discussão é interrompida por uma longa advertência parentética; e não é retomada senão em 7:1.

Notas Adicionais # 84:14/ Quanto a uma discussão mais profunda de grande sumo sacerdote,

veja-se a nota sobre 2:17. A única outra passagem de Hebreus em que a expressão sumo sacerdote vem modificada por um adjetivo é 2:17, “misericor­dioso e fiel sumo sacerdote” . As palavras literais que penetrou nos céus (NIV: “que traspassou os céus”) não devem ser entendidas nem como os três céus, nem os sete céus da cosmologia judaica (e.g., 2 Co 12:2), mas com toda a probabilidade, devemos tomá-las como referência genérica à ascensão e à exaltação de Cristo Quanto ao significado importante desta idéia para o autor de Hebreus, veja-se o comentário sobre o uso que ele faz de Salmos 110:1, na nota sobre 1:3 Quanto à cnstologia do Filho de Deus, do autor da carta, veja- se a nota sobre 1:5.

4:15 / O verbo grego para compadecer-se (sympatheo) das nossas fraquezas ocorre uma única outra vez, em todo o Novo Testamento, em 10:34, onde a referência é à participação dos leitores nos sofrimentos dos prisioneiros condenados por perseguição religiosa (RSV traduz: “ter compaixão”). Por trás das palavras de NIV, “assim como somos” (como nós, em ECA), está a ambígua expressão ka th ' homoioteta, que pode significar “segundo nossa semelhança em nossas tentações” (como NIV), ou “por causa de sua seme-1 hança conosco” (como traz NEB) Tentado (peirazo) em Hebreus comumente refere-se a fuga do sofrimento. Veja-se H. Seesemann, TDNT vol. 6, pp. 23- 36 Sem pecado tem sido interpretado por alguns eruditos como querendo dizer que Jesus foi tentado em todas as maneiras por que somos tentados, exceto as tentações provenientes de pecados já cometidos anteriormente. Outros eruditos insistem em que a perfeição impecável de Jesus é incompatí­vel com sua plena humanidade, conforme se expressa em 2:17-18. Ainda que a natureza humana, como a conhecemos (i e., desde a queda) seja inerente­mente pecaminosa, não significa isto que o pecado seja intrínseco ou essencial ao ser humano Veja-se J K.S Reid, “Tempted, yet without sin” -— Tentado, mas sem pecado — EQ 21 (1949), pp 161-67, R.A. Stewart, “The Sinless High Priest” — O Sumo Sacerdote Sem Pecado — NTS 14 (1967), pp. 126- 35 Quanto a um ponto de vista oposto, R. Williamson, “Hebreus 4:15 and the Sinlessness of Jesus” — Hebreus 4:15 e a Perfeição Sem Pecado de Jesus, ExpT 86 (1974), pp. 4-8

4:16 / Cheguemo-nos (proserchomai) é palavra usada de modo figurado, com referência ao culto sacrificial em outras passagens, como Hebreus 7:25; 10:1, 22, 11:6 (cf. 12:18, 22). O emprego de linguagem cultural (isto é, linguagem que tem que ver com a adoração e com o ritualismo do templo) também se encontra em Paulo: “no qual [Cristo] temos ousadia e acesso [a Deus] em confiança, pela nossa fé [em Cristo]” (Ef 3:12). Trono da graça é

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expressão singular no Novo Testamento. Graça (charis) é palavra importante em Hebreus (veja-se 2:9; 10:29; 12:15; 13:9, 25). Veja-se H.H. Esser, NIDNTT, vol. 2, pp. 115-24. Misericórdia (eleos) ocorre somente aqui, em Hebreus como também a expressão grega para “socorridos no momento oportuno” .

5:1 / Ao prover esta “definição tirada de dicionário” das qualificações e funções do sumo sacerdote, o autor depende de seu conhecimento do Antigo Testamento, e não presta atenção às perspectivas contemporâneas a respeito do sumo sacerdocio, ou de seu estado patético (Os membros do Qumran, por exemplo, haviam desistido do sumo sacerdódio em Jerusalém ) O importante verbo oferecer (prosphero) é muito mais usado em Hebreus (dezenove vezes) do que em qualquer outro livro do Novo Testamento E claro que esse verbo e tirado da linguagem do ritual sacrificial. Veja-se K. Weiss, TDNT, vol. 9, pp. 65-68 Visto que a Septuaginta usa com regularidade o singular “pecado” em vez de pecados, ao referir-se a sacrifícios, pode ser que. pelo uso do plural, o autor da cana esteja fazendo referência a um ambiente comunitário como o que ocorre no dia da Expiação

5:2 / A palavra rara compadecer-se (m etriopatheo) so ocorre aqui em toda a Bibha Grega, tendo a conotação de moderação, quando as circunstâncias poderiam provocar severidade

5:4/ A partir de Antíoco IV e a eliminação da linhagem de sumo sacerdotes oriunda de Zadoque, estes oficiais eram na verdade nomeados segundo os caprichos dos governantes humanos, os elementos determinantes dos sumos sacerdotes deixaram de ser a legitimidade de descendência e o chamado divino Isto é desprezado pelo autor da carta, que se refere à chefia da função sacerdotal em termos ideais, e continua a atribuir-lhe honra, ainda que na mente do populacho esse cargo havia muito fora conspurcado.

5:5-6 Quanto a maiores informações sobre Salmos 2:7, veja-se a nota sobre 1:5. NIV corretamente coloca a Deus como aquele que fala ao Filho (emborao original grego não o especifique, ECA diz aquele que lhe disse... como diz em outro lugar .) não simplesmente por causa do conteúdo verbal, mas tambem por causa de seu autor, entende-se de modo geral que Deus é quem fala no Antigo Testamento. O uso um tanto incomum do verbo glorificou (doxazo) que ECA traduziu não se glorificou a si mesmo foi bem interpretada por BAGD (p. 204): “Ele não se elevou a si mesmo à glória do sumo sacerdócio” .

Em Qumran, dois messias eram esperados com relação ao fim dos tempos: um messias sacerdotal, da linha de Arão, e um messias real, da linha de Davi. Da perspectiva de nosso autor, Jesus como Messias é tanto o rei como o sumo sacerdote (embora fosse sacerdote de uma ordem diferente da arônica). Os

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dois ofícios importantes haviam sido mantidos separados tradicionalmente, em Israel, até a ascensão infeliz e insatisfatória de ambos os ofícios por certos membros hasmoneanos, no segundo século a.C. Quanto à fórmula genérica da introdução como diz em outro lugar, veja-se a nota sobre 2:6.

5:7 / Na expressão tendo oferecido... orações temos outra vez o uso espiritualizado da linguagem técnica oriunda do culto sacrificial (a adoração e o ritualismo do templo). Ainda que não haja referências explícitas a grande clamor e lágrimas em nenhum dos relatos da experiência dramática do Getsêmani, em nenhum dos evangelhos sinóticos, a descricão que Mateus faz assemelha-se muito às palavras do autor de Hebreus: “Começou a entristecer- se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte. Ficai aqui e velai comigo” (Mt 26:37s ). Não é preciso que se faça distinção alguma entre orações e súplicas. Ainda que “súplicas” (hiketeria) ocorra somente aqui em todo o Novo Testamento, em geral está ligado a “orações” na literatura contemporânea.

A maior dificuldade a respeito deste versículo, i.e., porque o autor escreve tendo sido ouvido (í.e , “sua oração foi atendida”) a despeito de Jesus ter morrido na cruz, tem sido suplantada de varias maneiras Talvez o modo mais simples seja argumentar que Jesus não orou para ser livrado da morte, mas para ressurgir apos morrer Nesse caso, “ livrar da ‘posse’ da morte” (ek thanatou, e não apo thanatou, “da passagem pela morte”) o que equivaleria literalmente a livramento das garras da morte (cf 13:20). Conquanto tetihamos argumen­tado acima que esta e uma das formas por que podemos entender que Deus tenha “ouvido” a oração de Jesus, não é provável que a oração de Jesus tenha sido assim (Pelo menos temos certeza de que não é esse o conteúdo da oração de Jesus no jardim do Getsêmani.)

Outra solução para esse problema, apresentada por alguns eruditos (e.g., Hewitt), e que nojardim Jesus orou para que não morresse ali mesmo, naquele instante, sob o tremendo peso da angústia que estava sofrendo. Orou pedindo que não morresse prematuramente e, assim, não cumprisse o plano divino pelo qual deveria morrer na cruz E claro que, se esta houvesse sido sua oração, ela foi ouvida por Deus Este conceito envolve, todavia, uma interpretação difícil e insatisfatória da oração no Getsêmani. Outra solução ainda é que Jesus orou pedindo livramento não da morte, mas do medo da morte (cf. Calvino, Héring, Montefiore) E possível interpretar o texto grego básico apo tes eulabeias, que EC A traduz por causa da sua piedade (e que N1V traduz “por causa de sua submissão reverente”), por “de seu medo”, o que daria ao texto este sentido: “Deus o ouviu [e o livrou] no que concernia ao medo da morte” . Entretanto, esta tradução não só é difícil do ponto de vista da sintaxe, como envolve a atribuição de um significado menos comum a eulabeia, que normalmente

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significa “temor piedoso” ou mesmo “piedade”, com implicação de obediên­cia (a palavra para “medo” da morte em 2:15 éphobos). Finalmente, anotamos o expediente de Hamack que, sem absolutamente nenhuma evidência textual, faz uma conjectura a respeito de uma partícula negativa original (“não” ?) antes de tendo sido ouvido, que se teria perdido inadvertidamente O autor de Hebreus teria escrito na verdade que “Deus não ouviu” a oração de Jesus. A respeito desse versículo, veja-se N. Lightfoot, '‘The Saving of the Savior Hebrews5 7ff.” — A Salvação do Salvador: Hebreus 5 :7ss , RestO 16(1973), pp 166-73.

5:8-9 / Esta é a única ocorrência de aprendeu {manthano) no livro todo, e a unica passagem do Novo Testamento em que Jesus e o sujeito desse verbo especifico. No grego existe um jogo de palavras, com o emprego de emathen (“aprendeu”) e epaihen (“sofreu”). “Aprender” aqui significa chegar a um nível mais elevado de experiência na obediência por meio daquilo que sofreu (cf. Fp 2:8). Quanto à expressão tendo ele sido aperfeiçoado (leleioo), veja- se a nota sobre 2 :10 A ideia é que, ao ser obediente a vontade de Deus em seu sofrimento e morte, Jesus faz que seus propósitos sal víficos fossem cumpridos e terminados (cf 7 27s.). Tendo feito a vontade de Deus, Cristo atingiu um estado de plenitude e de cumprimento de missão, pelo que passa a ser o autor da eterna salvação (cf. 2 10) A utor (aitios) também se pode traduzir por “causa”, sendo reminiscência da palavraarcZ/egos (“pioneiro” ou “líder”) em 2:10 (cf 12:2). E terna salvação refere-se ao carater definitivo da obra redentora realizada por Cristo Outras expressões análogas a esta são "eterna redenção”, em 9:12, “herança eterna” em 9:15 e "aliança eterna” em 13 20. Quanto a um paralelismo do Antigo Testamento, veja-se Is 45 17 Quanto a salvação (soteria), veja-se a nota sobre 2 3

5:10 / chamado (prosagoreuo) ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento, e corresponde ao significado de "tomado”, de 5:1 Quanto a informações mais minuciosas sobre Melquisedeque. vejam-se as notas sobre 7:1-3

10. A Importância da Maturidade Cristã (Hebreus 5 :1 1 -6 :3 )

Antes de prosseguir em sua discussão a respeito de Melquisedeque, o autor de Hebreus faz uma pausa para redigir uma exortação à maturidade, seguida de umas observações sobre a seriedade da apostasia. Esta digres­são é importante de modo particular por causa da informação que fornece a respeito do caráter e da situação dos leitores da carta.

5:11-12 / Parece que o autor considera a questão de Jesus como sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, difícil demais para seus leitores, em sua situação atual. Deve ser por causa de algum encontro anterior, ou de algum relato a respeito deles, que o autor conclui serem eles ta rdios em ou vi r. O autor fica exasperado diante da lentidão de seus leitores no processo de desenvolvimento. O lapso de tempo, e talvez algo do contexto de seus leitores, sugerem que, embora devessem ser mestres, na verdade precisam aprender de novo os princípios elementares dos oráculos de Deus. NEB traduz de modo mais figurado e mais raso: “o á-bê-cê dos oráculos de Deus” . Refere-se provavelmente aos elementos básicos do evangelho cristão, mas com vestimenta de Antigo Testamento. Se os leitores ainda precisam de uma exegese cristã elementar do Antigo Testamento, de que modo partirão para uma exegese de nível mais adiantado? E que ainda precisam do leite; ainda não podem digerir alimento sólido.

5:13-14 / A metáfora do leite para os cristãos imaturos e do alimento sólido para os maduros é comum, e encontra-se em outras passagens do Novo Testamento, em 1 Coríntios 3:2 e, em parte, em 1 Pedro 2:2. Alimento sólido é o que o autor está apresentando em sua carta; neste contexto particular, refere-se à discussão a respeito de Melquisedeque. A preocupação do autor por causa da possibilidade de os leitores não estarem prontos sugere que está apreensivo sobre como a doutrina será recebida. O ensino a respeito da palavra da justiça (lit.) pode referir-se de modo genérico ao conteúdo do evangelho e, dessa forma, seria um paralelismo dos "princípios elementares dos oráculos de Deus” do versículo preceden-

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te. A última frase, para discernir tanto o bem como o mal, é preciso que se admita, é deliberadamente a linguagem dos eticistas dos dias do autor da carta. Ainda que a linguagem seja tirada de escritores seculares, nosso autor tem em mente, de modo primordial, a imaturidade espiritual dos leitores, cuja vida em Cristo é pouco profunda, o que poderia causar imaturidade ética maior.

6:1 / A exortação é essencialmente um apelo para que se aceite o alimento sólido que o autor oferece na carta. Perfeição para o autor é a “maturidade” ou a “plenitude” da vida em Cristo. Envolve a aceitação do ensino do autor, isto é, o reconhecimento de que Cristo é absoluto e irrefutável; que sua obra expiatória é o cumprimento verdadeiro das promessas do Antigo Testamento. Só esse reconhecimento pode impedir que os leitores caiam de vez na apostasia. Portanto, esses leitores não podem permitir-se permanecer num nível espiritual baixo, a saber, com os ensinos elem entares da doutrina de C risto O fundam ento não deve ser continuamente lançado, sem que se edifique a super-estrutura. Parece que era esse o pengo enfrentado pelos leitores. O autor prové seis exemplos de tipos de coisas que tem em mente, quando se refere a ensinos elem entares. E notável que esses seis elementos mencionados encontram paralelismos no judaísmo. Isto poderia sugerir que os leitores estavam tentando de algum modo permanecer dentro do judaísmo, ao enfatizar os elementos tidos como comuns entre o judaísmo e o cristianismo. T ahez tenham estado tentando sobreviver com um mínimo de cristianismo, com o objetivo de evitar a alienação imposta por seus amigos e parentes judeus. O arrependim ento de obras m ortas certamente e elemento basico no judaísmo. O que o autor tem em mente não é o arrependimento de "obras da lei” (no sentido que Paulo lhe atribui), mas de pecados. O segundo elemento, fé em Deus, certamente também é de grande importância no judaísmo. Assim, no início da lista, encontramos o arrependimento e a fé, dois aspectos centrais da piedade cristã — ambos tomados pelo cristianis­mo (cf. At 20:21).

6:2-3 / Ensino sobre batismos refere-se aos ritos de purificação do judaísmo, como o plural parece indicar. E possível que o batismo cristão se tenha derivado de tais abluções rituais judaicas, uma das quais — destinada à purificação dos prosélitos vmdos do paganismo — parece

(Hebreus 5:11-6:3) 105

particularmente apropriada como fonte originária do batismo de João e dos discípulos de Jesus. Assim, o batismo cristão poderia ser classificado como um dos ritos de purificação, talvez o maior, o rito culminante. Imposição de mãos também é costume judaico que a igreja cristã absorveu, com freqüência como símbolo do recebimento e compartilhamento do Espírito Santo (veja-se At 8:17; 9 :17; 19:6), e também em conexão com a cura (At 9:12;28:8), e, como ocorre no judaísmo do Antigo Testamento e no judaísmo rabínico, nas nomeações e atribuições especiais (At 6:6; cf. 1 Tm 5:22; 2 Tm 1:6). Os últimos dois elementos, a ressurreição dos mortos e o juízo eterno eram aceitos pelos fariseus, não, porém, pelos saduceus (cf. At 23:8). Isto sugere que o pano de fundo religioso judaico dos leitores não vinha dos saduceus. No entanto, o autor repreende-os pelo fato de não se apegarem à plena doutrina do cristianismo, conforme ele a expõe em sua carta, e os argumentos específicos que estão à frente desses leitores.

As palavras e isto fa remos levam adiante a exortação do v. 1, para que prossigam “para a perfeição” . O autor e os leitores prosseguirão firmes, até a compreensão e experimentação total da doutrina completa do cristianis­mo Todavia, isto só ocorrerá se Deus o perm itir. Isto significa que a chegada à maturidade (perfeição) da parte dos leitores e do autor da carta depende, na verdade, do Deus soberano, que lhes dará o poder para isso (At 18:21). Fica implícita, assim, nessa declaração, uma oração para que isto se tome realidade.

Notas Adicionais # 105:11-12 A palavra grega que se traduz pela expressão de difícil interpre­

tação (dysermawutos) ocorre só aqui em toda a Bíblia grega (LXX eNT). Nos escritos em língua grega essa palavra tem a conotação de “difícil de explicar- se” A palavra tardios (nolhros) ocorre somente aqui e em 6:12 (onde é traduzida por NIV como "preguiçoso” e por ECA como “indolente”), na Bíblia Grega. E improvável que a palavra comum usada aqui para mestres (didaskalos) deva ser tomada em algum sentido especial, como, por exemplo, que os leitores eram sacerdotes que se haviam convertido (veja-se At 6:7), ou antigos membros da seita de Qumran e, por isso, teriam a responsabilidade particular de tomar-se mestres. É provável que mestres aqui seja palavra usada para esse oficio num sentido formal (como em 1 Co 12:28), mas simplesmente se refira à designação genérica pela qual todos os cristãos são mestres Princípios elementares é tradução do grego síoicheia, palavra cujo

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sentido nas cartas de Paulo é objeto de discussão (G14:3,9; Cl 2:8,20), sendo porém muito clara no presente contexto. Tem ainda o apoio da declaração de 6:1, onde, entretanto, princípios elementares pode ser a tradução de outras palavras gregas, além de síoicheia. Veja-se H.H. Esser em NIDNTT, vol. 2, pp. 451-53. Oráculos de Deus (lit., logia tou theou) quase sempre significa lei do Antigo Testamento (cf. At 7:38, Rm 3:2). Aqui, embora se refira claramente aos fundamentos do cristianismo, pode ter o significado determi­nado pelo Antigo Testamento. A expressão grega para alimento sólido (sterea troph e) é diferente da expressão usada por Paulo, que é br oma (como em 1 Co 3:2). Sterea troph e ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testamento

5:13-14 / A palavra para criança, entendida em sentido figurado, também é usada em 1 Corintios 3:1, em que “meninos” significa os crentes carnais (“mundanos”), os quais fazem contraste com os crentes espirituais No texto que analisamos, criança contrasta com adultos, a palavra grega teleioi indica perfeição, ou plenitude, envolvendo maturidade de compreensão, como o texto mostra As palavras não está experimentado na e tradução de uma só palavra grega apeiros, “sem experiência”, a qual ocorre so aqui, em todo o Novo Testamento A linguagem quase-técnica dos eticistas no v. 14b é capturada bem (e literalmente) por Barclay “Aqueles cujas faculdades estão bem disciplinadas pela prática sabem distinguir o certo do errado” O helenismo do autor logo aparece aqui Veja-se H P Owen, “The ‘Stages of Ascent' in Hebrews j^ l 1-vi.3” — Os ‘Estágios da Ascensão’ em Hebreus 5 11-6 3”, NTS 3 (1956-57), pp 243-53

6:1-3 Os seis componentes dos ensinos elementares, isto é, da base mencionada pelo autor, com frequência têm sido vistos em três pares arrependimento e fe, ritos de purificação e imposição de mãos. ressurreição e julgamento. Os últimos quatro elementos por sua vez são governados pelas palavras ensino sobre Isto é verdade independentemente de a palavra didache (“ensino”) estar no genitivo ou no acusativo (como algumas testemu­nhas primitivas o atestam). NI V traduz adequadamente o gregò nekron ergon aqui e em 9:14, as duas únicas ocorrências da frase no Novo Testamento, como “atos que induzem à morte”, enquanto EC A traz obras mortas Quanto ao contexto judaico de batismos, veja-se G R Beasley-Vlurrav, NIDNTT, vol 1, pp 144-50 Quanto ao contexto judaico de imposição de mãos, veja-se H.G Schütz, NIDNTT, vol. 2, pp 150-52 E isto faremos dificilmente se refere ao re-lançamento do fundamento, isto é, do ensino elementar, do á-bê- cê da doutrina cristã (como em 5:12), no futuro Alguns manuscritos primiti­vos importantes têm o verbo no subjuntivo, com o significado de “vamos fazer isto”. No entanto, o tempo verbal no futuro é apropriado, aprovado e mais congruente com as palavras finais do v 3

/ / . A Seriedade da Apostasia (Hebreus 6:4-12)

O modo pelo qual esta seção vem ligada ao texto precedente, com o conectivo lógico “porque” (não traduzido em NIV, nem em ECA), sugere que, se os leitores não “prosseguirem” na direção da plenitude da doutrina cristã, correrão o grave perigo de cair e apostatar a fé, voltando ao judaísmo. Na verdade, no estado atual em que se encontram, até mesmo se poderia duvidar que estejam agarrados aos “ensinos elementares da doutrina de Cristo” (5:12). Por isso, como motivação mais forte para os leitores, para que prossigam e alcancem maturidade de entendimento da fé Cristã, o autor de Hebreus aponta para a seriedade da apostasia. É da maior importância que os leitores prestem atenção à mensagem do autor, e recebam o “alimento sólido” que ele lhes apresenta. Se os leitores não avançarem, assim prevê o autor, sofrerão o desastre.

Antes de prosseguirmos em nosso comentário versículo por versículo, na análise desta passagem tão bem conhecida e tão problemática, é bom que notemos que o autor está tratando, aqui, de uma situação específica. Ele não está redigindo um artigo com tranqüilidade, sem outros interesses, a respeito da perseverança dos santos, no qual ele mencionaria com cuidado todas as minúcias das várias possibilidades que os leitores poderiam confrontar. Ao contrário, o autor está ansioso pelo bem-estar final de seus leitores. Estes precisam conhecer a grave seriedade da apostasia, do abandono da fé cristã, e reconhecer que não existe caminho de volta da apostasia. Outra vez emerge a enérgica pastoral, cheia de cuidados.

6:4 / Esta frase grega, longa e complicada, que não termina senão no fim do v. 6, inicia-se com o adjetivo predicativo enfático adynatos, é impos­sível (cf. v. 6). Os crentes que “caíram” (v. 6) são descritos em cinco orações subordinadas consecutivas. A primeira destas afirma que já uma vez foram iluminados. Esta linguagem é apropriada de modo especial para referir-se à conversão (cf. 10:32); alguns têm visto aqui uma alusão ao rito de iniciação pelo batismo cristão. As duas cláusulas seguintes também parecem referir-se à realidade da conversão. Tais pessoas prova­

108 (Hebreus 6:4-12)

ram o dom celestial; esta frase refere-se em seu sentido genérico à salvação (a expressão “dom de Deus” também é usada de modo semelhan­te em João 4:10). Aqui, a palavra provaram (cf. v. 5) não implica uma experiência incompleta de conversão. A palavra “provar”, em outras passagens de Hebreus, pode indicar experiência completa de algo, como, por exemplo, em 2 :9, em que esse mesmo verbo é usado a respeito da morte de Jesus. E se fizeram partic ipantes do Espírito Santo de modo seme­lhante refere-se a um evento que marca a conversão, isto é, o recebimento do Espírito Santo, e não os dons especiais, carismáticos, que os cristãos recebem.

6:5 / E provaram (de novo temos a metáfora que significa “experimen­taram” neste versículo) a boa palavra de Deus provavelmente refere-se à mensagem da salvação em que haviam crido. A quinta frase descritiva diz que essas pessoas provaram ... os poderes do mundo vindouro. O autor tem em mente os aspectos já realizados (cumpridos) da nova epoca que os cristãos desfrutam hoje. Essa afirmativa harmomza-se. pois. com a pers­pectiva do autor enunciada em passagens como 1:2; 2:5; 4:3 e 12:18-24.

6:6 / e depois caíram é boa tradução do particípio “tendo caído", que neste contexto significa “tendo cometido apostasia” (como diz RSV). A impossibilidade de arrependimento é atribuída (pelo termo forte porque, de NIV e ECA, que no grego vem implícito em vez de explícito) à nova crucificação de Cristo (estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus outra vez), e expondo-o ao vitupério de novo. “ Expondo-o ao vitupério” também são palavras implícitas, e não explícitas no grego, pelo sentido do último particípio verbal.

Duas grandes questões emergem por causa das declarações destes três versículos: (1) Como devemos entender a palavTa im possível0 e (2) Os crentes autênticos, genuínos, podem realmente apostatar? As respostas adequadas são complexas em ambos os casos e dependem, de fato, de que se faça uma separação entre o que é real e o que é apenas aparente. Em certo sentido, por causa da natureza da apostasia, a palavra impossível deve ser tomada em sentido absoluto. Este pecado não se assemelha a outro pecado qualquer: trata-se do pecado imperdoável, porque elimina a própria base da salvação (cf. Mc 3:29; 1 Jo 5:16). Portanto, as pessoas culpadas de apostasia, como acentua o autor da carta, estão crucificando p a ra si

(Hebreus 6:4-12) 109

mesmos o Filho de Deus outra vez. Em outras palavras, alinham-se com os inimigos de Deus, que crucificaram Jesus e de modo figurado cometem o mesmo pecado de novo. Ao empregar o título Filho de Deus, o autor acentua a plena gravidade da ofensa; era este o único aspecto da Pessoa de Jesus que havia sido objeto de fé, e agora é rejeitado pelo apóstata. Além disso, estão submetendo o Senhor à desonra de novo (expondo-o ao vitupério), pois, quando os incrédulos contemplam a deslealdade desses apóstatas, o Senhor se tom a objeto de ridículo. Portanto, a apostasia é um dos pecados mais graves — pecado para o qual não há remédio e do qual não há possibilidade de retomo. Nenhum outro meio de salvação está à disposição do apóstata senão aquele que ele rejeitou. É impossível que os verdadeiros apóstatas experimentem a conversão de novo. Deus não os obrigará a entrar no reino.

No entanto, embora esta seja uma questão com que o autor da carta compreensivelmente não se preocupa, nem procura explicar, neste ponto de sua carta, a graça de Deus pode alcançar, e freqüentemente alcança mesmo, as pessoas que caem em aparente apostasia. Na verdade trata-se apenas de aparente apostasia, e jamais se lida com verdadeira apostasia. No entanto, o propósito do autor da carta não será atingido caso se fale em possibilidade de abandonar a apostasia e dela fugir. E preciso que os leitores sintam a seriedade daquilo que estão vendo. E preciso explicar a severidade desta declaração segundo a situação e o contexto espiritual dos leitores. Para que permaneçam fieis a Deus diante da perseguição, preci­sam entender a natureza da apostasia. Esta não é uma ocasião propícia para discutir a graça de Deus e a possibilidade de restauração. Seja como for, visto que o caminho de regresso é difícil e incerto, não se deve contar com

Quer isso dizer, então, que os crentes podem voltar arras e perderJL salvação9 Digamo-lo outra vez, a resposta deve ser sim e não. E certo que as pessoas descritas nos w . 4 e 5 são cristãs. Se elas podem abandonar a fé. a advertência nesse caso não é mera hipótese, algo vazio, mas plena realidade (cf. 10:26-3 1). Os cristãos podem apostatar (cf. 2 Pe 2:20-22). Mas o paradoxo é que, se chegarem a apostatar, isso significa que nunca foram cristãos autênticos (cf. 3:14). O autor de 1 João indica, assim, que os que se voltaram contra sua fé e abandonaram a comunidade cristã procederam dessa maneira “para que se manifestasse que nenhum deles é dos nossos' (1 Jo 2:19). A respeito tanto dos leitores de Hebreus como de

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todos os cristãos, devemos dizer que até o presente momento são cristãos. O verdadeiro teste é o da perseverança: só a perseverança pode demonstrar a realidade da fé cristã. Fica bem claro que o autor da carta não está tratando do assunto “perseverança dos santos” . No entanto, o conteúdo de seu livro testifica abundantemente dos recursos incomparáveis que seus leitores têm em Cristo, para exibir tal perseverança.

Portanto, resumindo: Q cristão autêntico se revela na perseverança. A apostasia se toma evidente quando falta o arrependimento, porque este não pnrlt" n r.n rre r A fé cristã verdadeira manifesta-se enquanto a apostasia não sobrevêm. Os verdadeiros cristãos não apostatam (i.e., não podem apostatar). Esta é a mensatzem insistente do autnr de Hebreus a seus leitores.

6:7-8 / A passagem precedente encontra ilustração na metáfora que diz respeito ao solo produtivo e ao solo estéril. O autor da carta usa uma linguagem que deve ter lembrado seus leitores a parábola de Israel como a vinha de Deus (ls 5:1-7), e aponta para o julgamento que se pode esperar ha de vir sobre o solo improdutivo. Abandonar a fé cristã equivale à pessoa passar a produzir só espinhos e abrolhos; a pessoa é rejeitada, o que induz à queima no fogo. A expressão e perto está da maldição tem o sentido de "logo será amaldiçoada”; em outras palavras, a destruição é questão de tempo.

6:9 / A despeito da seriedade da advertência, o autor da carta assegura a seus leitores, a quem se dinge chamando-os ó amados, que tem confiança de que hão de perseverar na fé. de vós... esperam os coisas melhores e pertencentes à salvação. Estas palavras constituem um modo característico de nosso autor descrever o cristianismo, em comparação com a antiga aliança.

6:10 / Deus se lembra do desempenho louvável dos leitores de Hebreus no passado, e está pronto para sustentá-los apesar da presente dificuldade que enfrentam. Mais tarde, na carta (10:32-36), o autor entra em pormeno­res a respeito das realizações do passado, e exorta seus leitores a que se lembrem delas. No passado, até hoje, Deus sempre esteve ao lado de seu povo, e o vem sustentando. As boas ações do povo de Israel no presente e no passado (pois servistes e ainda servis aos santos), representam bom presságio para o futuro. NIV omite o conectivo lógico de abertura, pois.

(Hebreus 6:4-12) 111

Aos santos é expressão técnica que significa cristãos, que é usada noutra passagem, em Hebreus 13:24.

6:11-12 / Agora o autor da carta passa a expressar sua exortação segundo seu desejo: Desejamos. Em que cada um de vós m ostre o mesmo zelo até o fim o presente do subjuntivo também poderia ser traduzido assim: “continue a mostrar o mesmo zelo” . Os leitores são desafiados a prosseguir no excelente caminho que estão trilhando. P ara completa certeza da esperança representa forte esperança, que RSV traduziu assim: “ao realizar a completa certeza da esperança até o fim” . Se os leitores forem im itadores dos que pela fé e paciência (trata-se de antecipação do discurso a respeito da fé que vai aparecer no cap. 11) herdam as prom essas, se exemplificarem a vida de fé, se forem diligentes e não preguiçosos, herdarão as promessas feitas a seus ancestrais no passado longínquo (cf. 11:9).

Notas Adicionais # / /6:4 / A passagem paralela de 10 26-32 apóia a correção da conclusão,

segundo a qual os vv. 4-5 descrevem os verdadeiros cristãos. Ali está explicitamente claro que, “depois de receber o conhecimento da verdade” (RSV), algumas pessoas apostatam. (Veja-se abaixo.) A metáfora de sair das trevas para a luz e usada com freqüência no Novo Testamento para ilustrar a conversão, vindo a adquirir tambem conotações com o batismo, na igreja primitiva (e g , Ef 5 8-14, 1 Pd 2:9) A palavra iluminados (photizo) ocorre outra vez em 10:32 (cf uso semelhante em Jo 1:9, Ef 1:18, 2 Tm 1.10). Veja- se H. Conzelmann, TDNT, vol. 9, pp. 3 10-58. Alguns têm visto nas palavras provaram o dom celestial uma referência à eucaristia, ou Ceia do Senhor. Todavia, trata-se de mera hipótese, visto que no contexto atual a palavra “provar” refere-se a “experimentar” (e não necessariamente comer), e dom celestial na melhor das hipóteses é um jeito muito oblíquo de alguém referir- se ao sacramento Quanto às palavras celestial e “participantes”, vejam-se as notas sobre 3:1. Costuma-se debater às vezes se existe porventura alguma correspondência entre os elementos mencionados neste versículo e os do v. 2 (e.g., iluminados — “ensino sobre batismos”; “se fizeram participantes do Espírito Santo” — “imposição de mãos”, mas trata-se de discussão estéril.

6:5 / O texto grego original correspondente a palavra de Deus usarhema e não logos, o que elimina a Cristologia do Logos (identificação de Cristo como o logos ou “Palavra” de Deus; cf. Jo 1:1), que nem sequer se encontra

112 (Hebreus 6:4-12)

em Hebreus. Quanto às noções de uma escatologiajá cumprida, vejam-se os comentários e as notas sobre 1:2.

6 :6 /0 verbo gregoparapiptõ, traduzido por caíram, ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento. Fora do Novo Testamento esse verbo pode significar “extraviar-se”, mas aqui devemos preferir o significado mais forte de “cair” (cf. 3:12,10:29). Sejam outra vez renovados (anakainizõ) só ocorre aqui em todo o Novo Testamento, é verbo que deve ser entendido como “restaurar” ou “renovar”. E claro que é impossível repetir a experiência da conversão e a do batismo do Espirito Santo, que a acompanha E assim que o autor se refere outra vez à gravidade da apostasia E possível renovar a experiência genérica do arrependimento, como osjudeus a conheciam, a partir de um relacionamento pactuai com Deus. O arrependimento é um pilar fixo no judaísmo No entanto, o abandono da fé faz que deixe de existir qualquer possibilidade de renovação de arrependimento. Por isso. o pecado da apostasia é diferente de qualquer outro pecado. E esse o sentido da expressão é impossível que... sejam outra vez renovados para arrependim ento A despeito da interpretação dessa passagem, feita por certos grupos da igreja primitiva, e muito improvável que o que se tem em mira aqui seja o caráter destituído de perdão de todo o pecado deliberado, após o batismo Segundo esta visão, a referência a ser “outra vez renovados para arrependimento” significa novo batismo Ainda que esta passagem fosse usada por alguns, com o objetivo de buscar apoio a esta “doutrina”, a natureza do pecado a que se refere o autor da carta é muito mais grave do que mero pecado comum, mesmo quando é deliberado, intencional Trata-se da rejeição da verdade, sobre a qual se apoia apropria salvação. A tentati va de evitar essa di ficuldade no versículo, pressupondo a existência de uma transposição de palavras e uma pontuação diferente (associando o participio “crucificando” com "ao arrependimento”), e expediente drástico que não convence Quanto a um resumo apropriado deste ponto de vista, veja-se M. Zerwick e M Grosvenor, A (irammatical Analysis o f lhe Greek New Testameni — Analise Gramatical do Novo Testamento Grego (Roma: Biblical Institute Press, 1979) vol 2, p fab4s

De novo estão crucificando é tradução de anastauroo que, no grego extrabiblico não contém a ideia de ato repetido No entanto, aqui, o prefixo ana- provavelmente deve ser entendido como “outra vez” (veja-se BAGD, P 61). Porque, embora não esteja no texto grego, é tradução correta da “tonalidade” participial de cruci ficando e expondo. Não convence a tentativa de entender tais particípios como temporais — pelo que teríamos, então, “é impossível restaurá-los ao arrependimento enquanto estão crucificando... expondo... etc.” E o porquê do que fizeram que não podem voltar ao arrependimento Expondo-o ao vitupério é tradução de paradeigmatizo,

(Hebreus 6:4-12) 113

palavra que ocorre só aqui, em todo o Novo Testamento, e que significa: “tomar algo exemplo público”, e no contexto atual, “expor à desgraça pública” . Veja-se R.P. Martin, NIDNTT, vol. 2, p. 291. P ara si mesmos é tradução literal de heaulois, que NIV traduz como se fora dativo de “desvan­tagem”. Veja-se também P.E. Hughes, “Hebrews 6:4-6 and the Peril of Apostasy” — Hebreus 6:4-6 e o Perigo de Apostasia” — WTJ 35 (1978), pp. 137-55. J C McCullough, “The Impossibility of a Second Repentance in Hebrews” A Impossibilidade de um Segundo Arrependimento em Hebreus

- B i b l í w i ) 20 (1974), pp. 1-7, V D Verbrugge,“TowardsaNewInterpretation of Hebrews 6 4-6,” — Uma Nova Interpretação de Hebreus 6:4-6” — CTJ 15 (1980). pp 61-73

6:7-8 ' Palavras como erva, lavrada, espin hos e abrolhos, e maldição são semelhantes as da narrativa da criação de Gênesis (1 11,3:17-18). Espinhos e abrolhos tornam-se metáfora comum para o tipo errado de frutificação (e.g., Mt 7 :16, 13 :7. 24-30) e, nos mesmos contextos, a destruição pelo fogo, como símbolo do julgamento escatológico, está quase sempre presente.

6:9 Lsperamos coisas melhores é a tradução de um verbo comum (perfeito passivo d epeitho), que significa “convencido” ou “tendo certeza” (cf o mesmo uso em 13:18) “Amados” ocorre somente aqui em Hebreus. Quanto a importância de “melhores” em Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4.

6:10 para com o seu nome reflete o relacionamento intimo entre pessoa enome. no pensamento hebraico. A palavra grega por trás de servistes e ainda servis aos santos é diakom o , termo técnico para “ministério” ou “serviço” . Veja-se K Hess, NIDNTT, vol 3,pp 544-49 Obra e am or ficam ligados de modo semelhante no elogio que Paulo faz à igreja tessalonicense (1 Ts 1:3).

Este versículo não deve ser tomado como implicando que a salvação se consegue mediante obras O ponto central de seu ensino não é que Deus fica obrigado as pessoas, ou que os leitores podem exigir alguma coisa dele, por causa de suas façanhas realizadas; a questão nevrálgica é que Deus os contempla com favor, e esta ansioso por sustentá-los na época de necessidade

6 :11-12 Quanto a zelo (spoude), que ocorre somente aqui em Hebreus, veja-se YV Bauder, NIDNTT, vol 3,pp 1168-70. A ênfase no original está na plena certeza (ou possivelmente na plenitude) da esperança, em vez de na experiência real das coisas que se esperam, ainda que estas estejam implícitas nas palavras até o fim. Quanto à expressão completa certeza (plerophoria), veja-seR Schippers, NIDNTT, vol l,p 735 Ênfases semelhantes encontramo- las no livro (quanto a “esperança” veja-se 3:6, quanto a “até o fim” veja-se 3:14) Indolentes é tradução da palavra grega que também significa “vagaro­so, lerdo, tardio” em 5:11. “Imitadores” (cf. a forma verbal de 13:7) e paciência ou “magnanimidade”, embora em Hebreus só ocorram aqui, são

114 (Hebreus 6:4-12)

palavras importantes na exortação ética do Novo Testamento. Quanto a “imitadores”, veja-se W. Bauder, NIDNTT, vol. 1, pp. 490-92, quanto a “paciência”, veja-se G. Falkenroth e C. Brown, NIDNTT, vol. 2, pp. 768-72. A paciência também está ligada ao recebimento daquilo que Deus prometeu em 10:36, onde, no entanto, o autor emprega uma palavra grega diferente para paciência (hypomone). Quanto a “promessa” (epangelia), veja-se a nota sobreo v. 15. Quanto a “fé”, veja-se 11:1

12. 0 Caráter Imutável do Propósito de Deus (Hebreus 6:13-20)

Como se fora novo prelúdio na retomada de uma das discussões-chave de sua carta (no cap. 7), o autor enfatiza a fidelidade integral de Deus nas promessas que fez a Abraão e, por isso, a Israel. A despeito de algumas implicações que o autor vai tirar de sua discussão a respeito da ordem sacerdotal de Melquisedeque (veja-se esp. 7:12), Deus não mudou de direção, tampouco mudou seus propósitos. Ao entregar-nos seu Sumo Sacerdote definitivo, Jesus Cristo, Deus cumpre sua promessa feita aos pais de Israel. E importantíssimo que este ponto seja evidenciado perante os judeus cristãos que sentem forte pressão nos argumentos dos judeus incrédulos.

6:13-14 / O v. 16 indica o costume que sublinha o ato de se fazer um juramento na antiga cultura hebraica. Não tendo Deus alguém, nem alguma coisa maior do que ele mesmo por quem pudesse jurar, ju ro u por si mesmo. A promessa a que se faz referência é, naturalmente, a da aliança abraàmica; nào, todavia, em sua primeira declaração (Gn 12:1-3), mas, segundo sua nova edição, feita a Abraão logo após o patriarca quase ter sacrificado seu filho Isaque, em Gênesis 22:16-17 (“por mim mesmo jurei”). A aliança agora é estabelecida com o emprego da fórmula ce rta ­mente... te abençoarei. A declaração breve que aqui se encontra represen­ta todo o conteúdo da aliança.

6 :15 / Abraão (lit., no original: “ele”) exibe o relacionamento existente entre a paciência e o recebimento das promessas a que se faz referência no v. 12. Alcançou a prom essa deve referir-se apenas aos sinais iniciais do cumprimento experimentado por Abraão (cf. Gn 24:1), visto que, da perspectiva cnstã do autor da carta, Abraão e outros heróis da fé “não alcançaram as promessas” (11:13, 39). Só quando estivessem ao lado dos santos do Novo Testamento é que chegariam plenamente ao que Deus intencionou para eles (11:39-40).

116 (Hebreus 6:13-20)

6 :1 6 /q u em lhes é superior, isto é, a Pessoa em cujo nome se fazia um juramento, com muita freqüência era o próprio Senhor (cf. Êx 22:11, “juramento perante o Senhor”). Quando alguém fazia um juram ento assim perante o Senhor, em nome do Senhor, obviamente esse voto passava a ter um caráter inamovível; daí o ju ram ento ser para eles, o fim de toda contenda (lit.: “é conclusivo em todas as contendas para confirmação”).

6:17 /A ssim que, querendo Deus m ostrar mais abundantem ente...que seus propósitos estavam determinados, sem possibilidade de altera­ções, fez o Senhor algo inusitado: se interpôs com ju ram en to (cf. w . 13- 14). O Senhor desejava acima de tudo m ostrar mais abundantem ente... a im utabilidade do seu conselho. Esta declaração forte, com sua afirma­tiva dupla, excepcional, tem o propósito de neutralizar qualquer hipótese judaica segundo a qual o cristianismo representa um desvio das promessas em que Israel baseava suas esperanças, em vez de seu cumprimento.

6 :1 8 /As duas coisas imutáveis são a palavra de Deus (i.e., a promessa em si mesma) e o juramento que ele lhe acrescentou. E claro que a palavra de Deus por si só tem validade absoluta; portanto, o juramento é supérfluo; no entanto, exatamente por causa dessa superfluidade, apresenta caráter excepcionalmente impressionante. É impossível, portanto, que Deus hou­vesse mentido; Deus está duplamente comprometido e deve ser fiel às promessas feitas a Abraão. O resultado é que podemos muito corajosamen­te apegar-nos às promessas de Deus a nós, os que nos refugiam os em lançar mão da esperança proposta. A implicação é que a esperança cristã nada mais é do que aquilo que Deus prometeu a Abraão (cf. Rm 15:8). Portanto, o cumprimento e realização de nossa esperança é certa, porque a palavra e o juramento de Deus são certos. Temos em vista a unidade existente entre o antigo e o novo. Nós nos refugiamos... na esperança proposta diz respeito metaforicamente à segurança que os crentes têm em Cristo, em contraste com a insegurança e incerteza deste mundo.

6:19-20 / Por causa da natureza da esperança cristã como expectativa cheia de confiança, essa esperança funciona como âncora da alm a e, dessa forma, como o poder que pode contra-atacar a tendência maligna para “extraviar-se” mencionada em 2:1. Nossa esperança depende inteiramente da obra de Jesus. A respeito desta esperança segura e firm e está escrito

(Hebreus 6:13-20) 117

metaforicamente que penetra até o interior do véu; com isto o autor quer dizer que tal esperança envolve nosso livre acesso à presença de Deus. A expressão interior do véu (lit., “dentro do véu”) é alusão a Levítico 16:2,12 e refere-se à entrada no Santo dos Santos. Esta é a primeira ocorrência de uma imagem vitalmente importante nos capítulos 9 e 10. Nossa entrada irrestrita na presença de Deus se toma possível somente mediante aquele que foi feito sumo sacerdote. Ele foi adiante de nós a fim de preparar-nos o caminho, e por isso se tomou sumo sacerdote para sempre. Por causa da obra desse sumo sacerdote divino, todos nós agora podemos penetrar onde era privilé­gio restrito dos sumos sacerdotes, uma vez por ano. Segundo a ordem de íVIelquisedeque é outra breve alusão a Salmos 110:4, que primeiramente fora citado em 5:6 (cf. 7:17). Ao mencionar de novo Melquisedeque e o sumo sacerdócio de Jesus, o autor da carta voltou à discussão que iniciara no cap. 5, e que ele mesmo interrompeu em 5:10.

Notas Adicionais # 126:13-14 / O autor de Hebreus utiliza o mesmo tipo de argumento acerca de

Deus, que acrescenta um j uramento à sua palavra em 7 20-22, na discussão do sacerdócio de Melquisedeque. Tais passagens, ao lado dojuramento negativo do Senhor, a que se faz referência no uso que o autor faz de Salmos 95:11, em 3:11, 18 e 4:3, dão a Hebreus mais ocorrências do verbo “jurar” ou “fazer um juramento-’ do que a qualquer outro livro do Novo Testamento, exceto Mateus. Quanto a esse verbo, veja-se H.G. Link, NIDNTT, vol. 3, pp. 737-43. A confirmação que Deus faz de uma promessa a Abraão por meio de um juramento e notada em outra passagem escriturística (At 2:30; Lc 1:73), e até nos livros apócrifos (Siraque 44:21: “Portanto, o Senhor lho garantiu mediante juramento”). No entanto, o paralelismo mais próximo a esse argumento está em Filo, A llegoncalIn lerpreía tion — Interpretação Alegórica— 3 .203,205s. Certam ente, abençoando te abençoarei... reflete a ênfase do infinito abso­luto do hebraico, frequentemente traduzido assim, com certo pleonasmo, como esta frase em negrito, sempre envolvendo a repetição da palavra-chave. Portanto, a tradução literal do v 14, que é tirado da LXX, é a seguinte: “Eu te abençoarei com bênçãos” Na verdade, o grego intensifica a promessa mais ainda, ao acrescentar duas partículas (ei m eti)

E quase certo que o autor considera a igreja cnstã o cumprimento da promessa feita a Abraão, de modo especial da parte segundo a qual Abraão e todas as famílias da terra seriam abençoadas (cf. 3 ò), embora isto não esteja declarado explicitamente

118 (Hebreus 6:13-20)

6:15 / A palavra grega para alcançou (epitynchanõ) é diferente da palavra que aparece em 11:13 (lam banõ) e 11:33 (kom izõ). E mais provável que o autor de Hebreus entenda que Abraão recebeu certo grau de cumprimento de promessas, quando ainda em vida, na terra (observe a expressão tendo Abraão esperado com paciência), não sendo provável que aqui ele só tenha recebido promessas (que é o que epitynchanõ provavelmente significa em 11:33), ainda que de alguma forma nova. Alcançou promessa (lit., “as promessas”) tomou-se uma expressão estereotipada que é sinônimo de esperaça de Israel. O substantivo “promessa” (epangelia), que ocorre tanto no singular como no plural, encontra-se em Hebreus mais vezes do que em qualquer outro livro do Novo Testamento (treze vezes). Veja-se E. Hoffmann, NIDNTT, vol. 3, pp. 68-74.

6:16 / Em os homens juram por quem lhes é superior, NIV e ECAinapropriadamente usam linguagem referente ao sexo masculino, para tradu­zir o original (anthropoi, as pessoas). Osjuramentos eram feitos em nome de alguém ou algo especialmente santo (cf. Mt 23:16,18), ou, mais comumente, pelo nome de Deus. Violar esse juramento seria tomar o nome do Senhor em vão. No entanto, jurar era um costume passível de abuso e foi condenado pelo Senhor Jesus (e.g., Mt 5:34).

6:17 / aos herdeiros da promessa é expressão comum para definir os descendentes de Abraão e, subseqüentemente, os que pertencem a Cristo (cf. G1 3:29). A palavra para “imutabilidade” aqui e “imutáveis” no versículo seguinte (ametathetos), ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento. Se interpôs com juramento (mesiteuo, lit. “garantiu”) ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento.

6:18/ A Bíblia declara expressamente que Deus não mente (cf. Nm 23:19;1 Sm 15:29; Jo 7:18; Tt 1:2). A esperança cristã por natureza é expectativa confiante porque depende do que Deus tem feito por nós, em Cnsto. Essa e a razão por que “a esperança não traz confusão” (Rm 5:5). Só aqui em todo o Novo Testamento temos a frase tenhamos forte consolação (“forte encorajamento”).

6:19-20 / O uso metafórico de âncora só se encontra aqui, na Bíblia toda, emnbora seja usada na literatura clássica. Veja-se BAGD. p. 10. Alma (p sy c h e ) aqui significa, como usualmente no Novo Testamento, não a parte imaterial de nosso ser, mas a propna “vida” As palavras segura e firme estão combinadas somente aqui, em todo o Novo Testamento, sendo deliberadamente redundantes, a fim de reforçar o ponto de vista do autor da carta. Precursor (p rodrom os) significa “o que vem correndo antes”, e palavra que ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento. Este termo tem sentido semelhante ao de archegos (veja-se 2:10 e 12:2, que RSV traduz por “pioneiro”), tendo a

(Hebreus 6:13-20) 119

idéia não só de alguém que precede, mas que prepara o caminho para a obra que desempenha, possibilitando que outros sigam (note: entrou por nós). Quanto a sumo sacerdote, veja-se a nota sobre 2:17. A idéia de que o sumo sacerdócio de Cristo prossegue para sempre será desenvolvida em 7:24s.

1 3 .0 Enigma de Melquisedeque e Sua Ordem Sacerdotal (Hebreus 7 :1 -14 )

A fim de elaborar uma argumentação bastante convincente a respeito do sumo sacerdócio de Cristo, o autor da carta começa com o estabeleci­mento da importância de Melquisedeque, que se parece com o Filho de Deus em muitos aspectos, pelo que serve de tipo de Cristo. A seguir, o autor deixa bem claro que Cristo é superior a Abraão e a Levi. Isto, por sua vez, induz à discussão do significado da sua ordem sacerdotal, que, na história recente, havia encontrado um representante novo e definitivo, no cumpri­mento da expectativa de Salmos 110:4. De novo a discussão tem caráter de ‘midras’ e utiliza em vários pontos a fraseologia da citação original de Gênesis 14:18-20.

7:1-2a / A identificação de Melquisedeque que encontramos aqui, bem como a breve descrição de seu encontro com Abraão, é tirada de Gênesis 14:18-20. (A linguagem do autor de Hebreus é tirada da versão LXX, nesta passagem.) Melquisedeque aparece na narrativa de Gênesis como pessoa extraordinária, não passando, todavia, de um rei e sacerdote humano. Salém, de que Melquisedeque era rei, provavelmente era a Jerusalém cananéia. De Melquisedeque está escrito que era sacerdote do Deus Altíssimo, isto é, El Elvon, o chefe do panteão cananeu. É o Deus que se entende ser o mesmo Deus de Israel, como se evidencia de sua descrição como “Criador dos céus e da terra”, o qual deu a vitória a Abraão (Gn 14:19-20). E extraordinario o fato de o sacerdócio de um rei cananeu, inteiramente alheio à historia da salvação, ser reconhecido como legítimo. A umca referência bíblica é Salmos 110:4, que o autor da carta utiliza de forma muito habilidosa. Melquisedeque abençoou a Abraão quando este voltou vitorioso da guerra e pagou àquele o dízimo de tudo. O significado disto é explorado em forma de ‘midras’ no parágrafo seguinte (w . 4-10).

7:2b-3 / E importante a explicação parentética sobre o significado de Melquisedeque e de Salém por causa da adequação dos títulos que descrevem Cristo, que é preeminentemente rei dajustiça e da paz. Isto dá

(Hebreus 7:1-14) 121

apoio à conclusão de que Melquisedeque foi feito semelhante ao Filho de Deus. Também é semelhante ao Filho de Deus em que surgiu sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias, nem fim de vida. A interpretação literal do v. 3 induziu alguns eruditos à conclusão de que Melquisedeque teria sido na verdade a materialização do Cristo pré- encamado. No entanto, o que o autor da carta está tentando sublinhar é o silêncio surpreendente das Escrituras a respeito da linhagem, nascimento e morte de Melquisedeque. De um ponto de vista rabínico, o silêncio é tido como verdadeiramente significativo, em vez de apenas fortuito, de modo especial em se tratando de uma Pessoa tão importante, rei e sacerdote ao mesmo tempo. Visto não haver registro da morte de Melquisedeque, nem do término de seu sacerdócio (tampouco de quem lhe teria sucedido), pode-se concluir que ele permanece sacerdote para sempre. Conside­rando-se, pois, o que as Escrituras dizem e o que silenciam a respeito de Melquisedeque, toma-se evidente que ele é semelhante ao Filho de Deus, que também jamais teve início de dias, nem fim de vida, com um sacerdócio de validade eterna (cf. v. 17, com citação do SI 110:4).

7:4-6 / A declaração inicial é mais bem compreendida se a considerar­mos uma exclamação: “Veja que grandioso ele é!” . Até o patriarca Abraão lhe deu o dízimo, tirado dos despojos. Salienta-se agora a magnitude do evento já mencionado no v. 1. Quem deu dízimos a Melquisedeque não foi outro senão o grande Abraão. A seguir, o autor da carta salienta a prática do dízimo entre os descendentes de Abraão. O sacerdócio levítico, não possuindo herança na terra, recebia, segundo a lei... o dízimo do povo, isto é, de seus irmãos. Esta prática representava o pagamento pelos serviços que os sacerdotes prestavam (Nm 18:21). Assim, o dízimo envolvia apenas estes que tenham saído dos lombos de A braão (“os descendentes de Abraão'") no que dizia respeito a receber e a dar. Todavia, Melquisedeque, cuja genealogia não é contada entre eles, os descendentes de Abraão, tinha direito ao dízimo, não por causa da lei, mas por um valor superior (cf. v. 7). Portanto, o sacerdócio de Melquisedeque possui um caráter excepcional. Temos, então, que Melquisedeque recebeu dízimos de Abraão, e o abençoou (este verbo e tirado de Gn 14:19), o mesmo Abraão que se fez recebedor das promessas e de quem proviria afinal o sacerdócio levítico (cf. v. 10). A tremenda importância deste fato é salientado nos versículos que se seguem.

122 (Hebreus 7:1-14)

7:7-8 / Assim como o que recebe o dízimo ocupa posição superior ao que dá o dízimo, assim também o m enor é abençoado pelo m aior. O grande Abraão está subordinado, assim, a Melquisedeque. Além disso o sacerdócio levítico é inferior ao de Melquisedeque porque aqui (“no caso” dos sacerdotes levíticos, NIV), os que recebem o dízimo são mortais. Mas ali, isto é, no caso de Melquisedeque recebe dízimos aquele de quem se testifica que vive. As palavras de quem se testifica referem-se à conclu­são, tirada das Escrituras. No entanto, é importante notar que esta é uma inferência baseada no que as Escrituras deixaram de relatar a respeito de Melquisedeque (i.e., seu silêncio quanto à morte desse rei-sacerdote), em vez de no que elas registram (cf. v. 3).

7:9-10 / O autor da carta vai além em sua argumentação: E, por assim dizer, por meio de A braão, até Levi, que recebe dízimos, pagou dízimos. A questão está clara. Visto que Levi foi descendente de Abraão, estava ainda nos lombos de seu pai, quando Abraão se encontrou com Melquisedeque (palavras que de novo fazem alusão a Gn 14), a quem o patriarca pagou dízimos. Portanto, pode-se dizer que Levi também pagou dízimos a Melquisedeque, através de Abraão; fica implícito que Levi e seus descendentes estão subordinados a Melquisedeque.

7:11 / As palavras se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (isto é, pudesse ser obtida assim) sugerem a incapacidade desse sistema para que cheguemos ao nosso objetivo: a salvação integral. Fosse o sistema levítico suficiente para a tarefa, que necessidade haveria, assim pergunta o autor da carta, de falarmos de outro sacerdote que se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não de Arão? Em outras palavras, se o sistema levítico fosse auto-suficiente, por que Salmos 110:4 fala de uma Pessoa à direita de Deus, que aguarda até que seus inimigos se transformem em estrado de seus pés, aquele que “é sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque”? Assim, Salmos 110:4 confirma a inadequação do sacerdócio arônico. O comentário parentético concernente ao fato de o povo ter recebido a lei mediante o sacerdócio levítico não pode ser interpretado de modo literal, visto que esse sacerdócio não veio antes da lei de Moisés. Parece que o que o autor da carta tem em mira é que o sistema sacerdotal forma a base de toda a super-estrutura da lei. Ambos estão intimamente ligados, o que se pode verificar pela discussão que se segue.

(Hebreus 7:1-14) 123

7:12 / Esta mudança no sacerdócio traz conseqüências importantes para a \€r. necessariamente (lit., “por necessidade”) se faz também mudança de lei. Assim, o autor da carta enfatiza o vinculo entre o antigo e o novo, e a natureza do cristianismo como cumprimento das promessas feitas a Israel; ele é forçado também a reconhecer a desvinculação substancial entre o antigo e o novo. Exigia grande coragem da parte do autor de Hebreus dizer algo tão problemático e tão contrário às disposições de seus leitores judeus, para não mencionarmos os críticos judaicos do cristianismo, que pelas aparências exerciam alguma influência sobre seus patrícios. No contexto imediato, a mudança da lei envolvia uma novidade: um homem da tribo de Judá — não de Levi — haveria de tomar-se o Sumo Sacerdote. No entanto, as implicações são maiores, como se verá abaixo (vejam-se os w . 18-19, e 8:7, 13). Mas, a despeito de sua insistência na mudança da lei, a perspectiva básica do autor da carta permanece: o cristianismo apresenta um elo com o passado, como cumprimento do que Deus prometeu fazer.

7:13-14 / Ficou claro que Aquele, de quem estas coisas se dizem (Jesus, o Filho de Davi) pertence a outra tribo (a de Judá) e, assim, de acordo com a própria lei, não estaria qualificado para ser sacerdote. No entanto, ele é a Pessoa a que Salmos 110:4 se refere, o sacerdócio da ordem de Melquisedeque. Não existe precedente para essa ordem de acontecimentos. O sacerdócio levítico se vê substituído de súbito e totalmente, por outro tipo de sacerdócio. E evidente que Moisés aqui se refere ao Pentateuco.

Notas Adicionais # 137:l-2a / Melquisedeque desempenhou papel importante no judaísmo do

primeiro século Visto ter sido tão notável na narrativa de Gênesis, Melquisedeque tomou-se ligado aos eventos escatológicos vindouros. Assim é que em Qumran se descobriu um rolo (etiquetado com o codigo 11Q Melquisedeque) que retrata a esse rei e sacerdote como o libertador divino de Israel e vingador que elimina os inimigos de Deus. Nesse papel, ele age de modo semelhante ao do arcanjo Miguel, relatado nos rolos. Nos escritos judaicos da Idade Média, fica explícita a identificação entre ambos. No entanto, é improvável que o autor da carta aos Hebreus via Melquisedeque como anjo, ou arcanjo, como alguns dos judeus de sua época talvez vissem.

124 (Hebreus 7:1-14)

Com toda a certeza, se essa fosse a interpretação do autor, ele a teria explicitado aqui, em vista de sua preocupação com os anjos, q u e já vimos antes. Veja-se M. de Jonge e A.S. van der Woude, “ 11Q Melchizedek and the New Testament” — 11Q Melquisedeque e o Novo Testamento — NTS 12 (1966), pp. 301-26; e J.A. Fitzmyer, “Further Light on Melchizadek from Qumran Cave 11” — Um Pouco Mais de Luz Sobre Melquisedeque da Caverna Qumran 11 — JBL 86 (1967), pp. 25-41

Outro exemplo de sacerdócio considerado legítimo, ainda que não fosse da linhagem levítica, encontramo-lo em Jetro, o sacerdote mídianita que viria a ser sogro de Moisés (Ex 2:16, 18:12). Embora este fato não entre na argumentação do autor da carta, confirma a idéia de que um sacerdócio como o de Melquisedeque poderia ser aceitável perante Deus. É interessante observar a recusa do autor em mencionar (ou utilizar) o simbolismo potencial do pão e vinho oferecidos a Melquisedeque, por Abraão, no relato de Gênesis. A alusão sacramental foi irresistível aos pais primitivos da igreja.

A oferenda de um décimo dos despojos de guerra a uma divindade, ou a vários deuses, era conhecida na cultura grega, mas não ficou estipulada em pane alguma do Antigo Testamento, para Israel. O dizimo dizia respeito unicamente aos produtos do campo O dízimo de Abraão aparentemente foi um tipo de oferta de gratidão a Deus (cf. Gn 28:22), por mediação de Melquisedeque; isto em si mesmo enfatiza a importância de seu sacerdócio.

7:2b-3 / Embora Filo, o judeu helenista de Alexandria, alegorize a narrativa de Gênesis a respeito de Melquisedeque, de modo totalmente estranho ao autor de Hebreus, ele explica os nomes de Melquisedeque e de Salém da mesma forma, relacionando Salém à palavra hebraicaía/o/w (“paz”). Veja-se Filo, A llegorica l Interpretation — Interpretação Alegórica — 3.79 Filo também descreve Sara como “não tendo mãe” (usa a mesma palavra empregada pelo autor da carta para descrever Melquisedeque), visto não se ter encontrado registros a respeito de sua mãe {On Drunkenness — A Respeito da Bebedice, 59ss).

A expectativa judaica escatológica (e.g., Qumran) girava em torno de um messias sacerdotal e real. Em Cristo o sacerdote e o rei estão unificados, temos em Melquisedeque, então, o tipo e a antecipação de Cristo Numa época não demasiado remota para o autor de Hebreus, esses dois cargos ou oficios sagrados haviam sido combinados, a saber, em Simão Macabeu e outros governantes hasmoneanosdo segundo século a. C. No entanto, o sacerdócio de Simão não provinha de linhagem legitima, tendo sido conferido por autorida­de humana (dat a natureza contraditória em Hb 5 4). Dessa forma, Melquisedeque foi feito semelhante ao Filho de Deus Como se verifica freqüentemente, o tipo se parece com o antítipo, ou aquilo que prefigurava (daí

(Hebreus 7:1-14) 125

resulta ser normativo). No entanto, o autor da carta também pode dizer que Cristo é “como Melquisedeque” (7:15). Quanto a Filho de Deus, veja-se a nota sobre 1:5. A expressão grega que sublinha para sempre (eis to dienekes) ocorre apenas aqui em Hebreus, em todo o Novo Testamento e na LXX (a mesma expressão encontra-se em 10:1, 12, 14). Quanto a estudos proveitosos sobre Melquisedeque e esta passagem em questão, veja-se F.L. Horton, Jr., The Melchizedek Tradition — A Tradição de Melquisedeque — SNTSMS 30 (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1976); M. Delcor, “Melchizedek from Genesis to the Qumran texts and the epistle to the Hebrews” — Melquisedeque, desde o Gênesis até os textos Qumran e a carta aos Hebreus” — JSJ 2 (1971), pp 115-35; B. Demarest, “Heb 7:3: A Crux Interpretation Historically Considered” — Hb 7:3: Interpretação Crucial do Ponto de Vista Histórico” — EQ 49 (1977), pp. 141-62, idem., ,4 History o f the Interpretation o f Hebrews 7,1-10 from the Reformation to the Present — História da Interpretação de Hebreus 7:1-10 desde a Reforma até o Presente (Tübingen: Mohr, 1976); veja- se também a dissertação: “The Significance of Melchizedek” — Significado de Melquisedeque — em Hughes, pp. 237-45, A. J Bandstra, uHeilsgeschichte and Melchizedek in Hebrews” — “Heilsgeschichte” e Melquisedeque em Hebreus — CTJ 3 (1968), pp. 36-41, J.W. Thompson, “The Conceptual Background and Purpose of the Midrash in Hebrews 7” — O Contexto e Proposito Conceituai de ‘Midras” de Hebreus 7 — N ovT \9 (1977), pp. 209- 23

”:4-6 / Quão grande é tradução depêlikos (essa palavra aparece só mais uma vez, em Gálatas 6:11, em que Paulo a emprega a fim de descrever suas letras grandes) A linguagem do v. 4 é tirada da LXX, de Gênesis 14:20. Josefo descreve a oferenda de Abraão como “dizimo da pilhagem” (Ant. 1.181). A permeação do princípio do dízimo se vê no fato de o dízimo recebido pelos levitas ser dizimado outra vez para os sacerdotes (Nm 18:26, cf. Ne 10:38s.). A referência ao patriarca fica no final da frase grega (v. 4), o que lhe da ênfase. A expressão grega correspondente a cuja genealogia não é contada entre eles no v. 6 (genealogoumenos) encontra-se apenas aqui, em todo o Novo Testamento.

'-8 / O conceito de “bênção” ou “abençoar” tem rico contexto no Antigo Testamento, que prossegue no judaísmo e no Novo Testamento. Aqui, um sacerdote especial confere o poder da bênção divina sobre um personagem central da historia da redenção. Veja-se H.YV Beyer, TDNT, vol. 2, pp. 754- t>5 Ü argumento do v. 8 tem caráter rabinico. pois atribui grande significado ao silêncio do texto (cf. v. 3) A referência a aquele de quem se testifica que vive, no entanto, encontra paralelismo nas referências a Cristo nos vv 11> e 24, em que a referência à vida eterna, sem fim, e absolutamente verdadeira.

126 (Hebreus 7:1-14)

7:9-10 / O uso hebraico da palavra grega para “lombos” como referência à origem física da geração encontra-se apenas na LXX e no Novo Testamento (na dependência da fonte, a LXX). Veja-se H. Seesemann, TDNT, vol. 5, pp. 496s.

7:11 / Visto que a discussão presume a importância tanto do sacerdócio levítico como da lei, parece obviamente dirigido ao sacerdócio j udaico, em vez de aos gentios. Estes talvez houvessem considerado o sacerdócio levítico meramente preparatório daquilo que viria em Cristo, todavia, até mesmo em suas expectativas escatológicas muitosjudeus aguardavam o aparecimento de um sumo sacerdote da linha de Levi. Na verdade, grupos judaizantes da igreja primitiva continuavam a enfatizar a importância da tribo de Levi, bem como de Judá, em expectativa escatológica. Tais grupos ou desconheciam a argu­mentação do autor de Hebreus, acerca da obsolescência do sacerdócio levítico, ou achavam-no inaceitável. Veja-se a discussão em Hughes, pp. 260ss.

Perfeição outra vez refere-se à integralidade, no sentido de chegar-se ao objetivo colimado. Ainda que a raiz seja preeminente, e outras formas dela ocorram em Hebreus, esta é a única ocorrência da forma substantiva teleiõsis Veja-se a nota sobre 2:10. O verbo grego traduzido por se a perfeição fosse pelo... (nomotheteo) ocorre apenas aqui e em 8:6 (onde tem sujeito diferente) em todo o Novo Testamento. Veja-se W. Gutbrod, TDNT, vol. 4, p. 1090.

Salmos 110:4, citado em 5:6, e prestes a ser citado de novo nos w . 17 e 21, obviamente forma a base da discussão deste versículo. Veja-se o comentário em 5:6.

7:12 / A tensão existente entre, o vínculo e a desvinculação entre o antigo e o novo é comum a todos os autores do Novo Testamento, até certo ponto, e só se deve esperar tal fenômeno por causa da natureza do cumprimento realizado por Cristo. No entanto, é de surpreender que o autor da carta aos Hebreus saiba expressar essa desvinculação com tanta agudeza como o faz, dada a natureza das pessoas que vão lê-lo. A palavra m udando-se (m etathesis) significa mais do que leve modificação (a mesma palavra ocorre em 11:5 e 12:27, em que tem conotação de remoção. Conforme aprendemos do v. 18 e de 8:7, 13, o que se tem em mira é essencialmente a abrogacão da lei, paradoxalmente, pelo seu cumprimento em Cristo — para quem ela apontou durante toda sua existência, enquanto vigorou. Assim, para o autor da carta aos Hebreus, como para Paulo, o significado profundo de Cristo e sua obra não pode ser apreciado em sua integralidade, sem que, ao mesmo tempo, se analise o caráter temporário da lei. Diferentemente de Paulo, o autor de Hebreus limita-se ao caráter temporário da legislação transitória do Antigo Testamen­to.

7:13-14 / Ainda que a palavra seja comum no Novo Testamento, altar

(Hebreus 7:1-14) 127

(ithysiasterion) só vai ocorrer outra vez em Hebreus, em 13:10. Aqui, serviu ao altar obviamente se refere a uma função sacerdotal. Embora Davi (e Salomão), da linhagem de Judá, sacrificassem animais ao Senhor, isto não exigia nenhuma aprovação da tribo de Judá, como se esta fosse a dos sacerdotes. A expressão nosso Senhor ocorre em Hebreus somente aqui e em 13:20, em que temos “nosso Senhor Jesus”.

Procedeu vem de um verbo grego que quer dizer literalmente “levantar” (an atellõ ), daí a correção do termo “proceder de”. E provável que tenha sido empregado deliberadamente em alusão a Números 24:17, em que o mesmo verbo refere-se á estrela de Jacó, que deverá erguer-se, pois dele “procederá” o Senhor, em cumprimento das promessas de Deus.

14. A Legitimidade e a Superioridade do Sacerdócio de Cristo (Hebreus 7 :1 5 -28 )

Alongando a argumentação da seção anterior, o autor da carta explora agora os modos por que o sacerdócio de Cristo, parecido com o de Melquisedeque, é superior ao sacerdócio levítico, conforme estabelecido na lei de Moisés.

7:15 / A possibilidade de maior clareza do assunto: ainda muito mais evidente, de acordo com o autor, é o resultado da realidade que se levanta outro sacerdote, desta ordem de Melquisedeque, à semelhança de M elquisedeque. Em outras palavras, este sacerdote veio, pelo que a partir deste fato o ponto crucial da discussão pode ser entendido melhor.

7:16-17 / Este sacerdote surgiu e é sacerdote para sem pre (esse é o sentido do verbo grego no perfeito), não com base numa regulamentação (lit.: feito segundo a lei de um m andam ento carnal) — em outras palavras, interessado e preocupado apenas com questões externas, como a decadência física — mas com base no poder da vida indissolúvel. A referência a esse poder neste contexto pode ser alusão à ressurreição. Quer seja isto verdade, quer não, o ponto crucial da argumentação repousa na identidade singular do Filho (cf. SI 110:1) — cuja vida prossegue para sempre, e em quem, portanto, a promessa de Salmos 110:4 (um “sacerdote etemo”) pode ser entendida e cumprido literalmente. Jesus tomou-se o sacerdote mencionado de Salmos 110:4, porque ele é a Pessoa descrita em Salmos 110:1. Só Aquele que se assenta à direita de Deus pode ser sumo sacerdote para sempre. O antítipo verdadeiramente não tem começo nem fim, assim como o tipo aparentemente não teve começo nem fim. A autoridade do sacerdócio de Cristo depende de sua identidade como Filho de Deus. Quanto à citação de Salmos 110:4, cf. o uso anterior deste versículo em 5:6; 6:20.

7:18 / As declarações nos vv. 18 e 19b estão ligadas no original (cf. RSV: "por outro lado” ... “por outro lado”). O mandam ento an terio r

(Hebreus 7:15-28) 129

refere-se à legislação mosaica a respeito do sacerdócio levitico, que, agora, é deixado de lado (ab-rogado). Esta nota severa de desvinculo em relação à lei de Moisés (antecipada em 7.12; cf. 8:13) se justifica pela observação de que a lei sofria de fraqueza e inutilidade. Esta descrição da lei como “fraca” e “inútil” tem paralelismo em Paulo (Rm 8:3; cf. G1 4:9). No entanto, a palavra mais forte de todas é “inútil”, que se usa na LXX, em Isaías 44:10, para descrever os ídolos (cf. RSV e ECA, “de nenhum préstimo”). Parece que o ponto crucial para o autor é que, embora a lei pudesse ter um papel adequado por desempenhar, antes do cumprimento realizado por Cristo, desde que este cumprimento se realizou, a lei se tomou obsoleta e, por isso, inútil. No entanto, deve-se notar que é a lei a respeito do sacerdócio levitico e dos rituais que está em questão de modo especial (cf. 10:9b). O autor não tira outras implicações.

7 :19/A pnm eira sentença deste versículo é parentética. Ela interrompe o contraste que se faz entre os w . 18 e 19b. A lei literalmente nunca aperfeiçoou coisa alguma. Isto significa que a lei era incapaz de trazer alguma coisa ao propósito de redenção tencionado por Deus (cf. 5:9). Mas, na nova situação, em que a maior tarefa do autor da carta é expor a redenção, entra em cena uma melhor esperança, pela qual realmente chegamos a Deus. que é exatamente o que a lei não conseguiu, e entender a grandiosidade infinita da salvação que o Senhor havia prometido. Outra vez temos a linguagem do culto do templo, ainda que agora transposta para nova chave, por causa da natureza da obra definitiva de Deus em Cristo.

7:20 / Os vv. 20-22 constituem uma frase no grego, havendo uma comparação que se inicia no v. 20 ("visto como não é sem prestar juram ento” divino) para concluir no v. 22 ("de tanto melhor aliança” Jesus foi feito fiador). Neste longo período o nome de Jesus é a última palavra no grego e. por causa desta posição privilegiada, é bastante enfática. Os w . 20b-21 representam uma inserção. O apelo ao juramento de Deus (lit., não é sem prestar juramento) faz lembrar a discussão concernente à aliança feita com Abraão em 6 :13ss. Outra vez a questão crucial é que algo já fixado se toma duplamente certo, visto que à palavTa de Deus se acrescen­tou um juramento (cf. v. 28). No caso do sacerdócio levitico, no entanto, não havia tal juramento (sem juramento). NI V acrescenta outros, e ECA, aqueles, a fim de indicar o sacerdócio levitico.

130 (Hebreus 7:15-28)

7:21-22 / No caso do sacerdócio de Jesus, no entanto, quando se diz em Salm os 110:4: Tu és sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque, esse mesmo versículo afirma que jurou o Senhor e não se arrependerá. Assim, o autor utiliza todo o conteúdo de Salmos 110:4 para reforçar sua discussão. Trata-se da confirmação da superioridade do sacerdócio de Jesus sobre o dos levitas. Em vista deste estado diferente de coisas, de tanto melhor aliança foi Jesus feito fiador. Assim é que uma promessa melhor (por ter sido confirmada com juramento) implica em melhor aliança — na verdade, aquilo que mais tarde seria identificado como “a nova aliança” (cf. 8:8; 9:15). E Jesus é o fundamento, ou a base da segurança dessa aliança (cf. 9:15 e 12:24), em que Jesus é descrito como “o mediador de uma nova aliança”).

7:23-24 / Mas, porque pela morte foram impedidos, os sacerdotes levíticos foram incapazes de permanecer perpetuamente no cargo que ocupavam. Era necessário que houvesse sacerdotes em grande número, para que seu trabalho pudesse prosseguir. Em contraste, este (o Sacerdote Eterno, Jesus), porque permanece (lit., “continua”) eternamente, tem o seu sacerdócio perpétuo. A última palavra no grego é eis ton aiõna, alusão deliberada a Salmos 110:4. O resultado é: este sacerdócio não se passa a outrem; Jesus permanece eternamente nosso sacerdote.

7:25 / Visto que a obra sacerdotal de Jesus não é prejudicada pela morte, pode também salvar perfeitamente (ou “em todas as épocas,” RSV; cf. NASB) os que por ele se chegam a Deus. Temos em mira, aqui, a qu alidade da salvação. Por sua própria natureza, o que Jesus nos oferece é “salvação eterna” (cf. 5:9; 9:12; 10:14; 13:20) e uma salvação perfeita ou “completa”, bem diferente da obra temporária e incompleta dos sacerdotes levíticos. Portanto é adição de ECA (NIV traz “por que”) por inferência da oração participial grega permanece eternamente... sacerdócio eter­no. A obra sacerdotal de Cristo depende diretamente do “poder da vida indissolúvel” (7:16), sendo esse tipo de permanência que determina o caráter da salvação experimentada pelos que a recebem. Os crentes são sustentados pela intercessão contínua que Jesus efetua por eles. Neste ponto o autor está de pleno acordo com Paulo (Rm 8:34; cf. 1 Jo 2:1).

7:26 / O verbo desta frase: convinha-nos tal sumo sacerdote é uma

(Hebreus 7:15-28) 131

interpretação do termo literal “era adequado, ou apropriado” . A inferência de que Jestis é capaz de atender às nossas necessidades é correta, mas a ênfase aqui recai sobre o caráter superior de Cristo e, daí, sobre o caráter superior de sua obra, como o demonstram os versículos que se seguem. O fato de ele ser santo por si mesmo afirma a separação de Jesus do resto da humanidade, como também o fazem as demais palavras acompanhantes inocente e imaculado. Jesus é incomparavelemente superior não só em virtude de seu caráter, mas também por causa de sua ascensão, mediante a qual ele foi separado dos pecadores e feito mais sublime do que os céus (cf. 4:14; E f 4:10). Nestas últimas palavras encontramos de novo uma alusão a Salmos 110:1 (cf. 1:3 e a nota sobre 1:3). Assim, a despeito da humanidade plena de Jesus — pois “convinha que em tudo fosse seme­lhante a seus irmãos” (2:17) — o autor reafirma com muito vigor (cf. 4:14) a ausência de pecado em Jesus.

7:27 / O resultado é claro: Jesus não precisa oferecer sacrifícios por seus próprios pecados: que não necessitasse, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiramente por seus próprios pecados, como fazem os sumos sacerdotes levíticos (cf. 5:3). Em contraste violento com a necessidade de sacrifícios repetitivos, como os dos sacer­dotes humanos, levíticos, que para o autor de Hebreus representam confissão de inadequação pessoal (cf. 10:11), Jesus fez... uma vez por todas um sacrifício pelos pecados do povo de Deus quando a si mesmo se ofereceu. Este fato chocante — que este Sumo Sacerdote ofereceu-se a s i m esm o em sacrifício vicário — o que se menciona aqui de modo direto pela primeira vez (mas cf. 2:9, 14; 5:8), torna-se um argumento central em 9:11-28. O caráter definitivo, de uma vez por todas, da obra expiatória de Cristo naturalmente constitui marco singular valiosíssimo da carta aos Hebreus.

7:28 / Este versículo serve de resumo da argumentação apresentada, que de novo faz contraste entre o que é verdadeiro de acordo com a lei, e a verdade maior que se encontra naquele Sacerdote a quem a passagem sobre Melquisedeque. em Salmos 110:4, se refere. Pois a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento... constitui (NIV e ECA acrescentam este verbo aqui; o texto original o pressupõe, presente na primeira cláusula) ao Filho (lit. “um”

132 (Hebreus 7:15-28)

Filho; cf. SI 2:7), perfeito p ara sempre. Estas últimas palavras fazem alusão a Salmos 110:4, mas a palavra “Filho” de Salmos 2:7 é substituída por “sacerdote” . Isto nos faz lembrar o uso das duas citações sucessivas em 5:5-6. A observação do autor de Hebreus de que esta palavra confirmada por juramento veio depois da lei reflete uma conclusão judaica segundo a qual a nova revelação tem m aior autoridade do que a antiga (ainda que de modo algum esta conclusão seja aceita sempre!). De novo é necessário que se entenda bem a noção contida em perfeito para sem pre, como o estado de haver Cristo cumprido totalmente os propósitos salvíficos de Deus (cf. 5:9), tendo subido à direita do Senhor. Como já vimos, a “perfeição” em Hebreus em geral tem esta conotação teleológica e, portanto, é bem adequada para expressar o sentido de cumprimento, tão preeminente nesta carta.

Notas Adicionais # 147:15 / As palavras do idioma grego utilizadas aqui, “à semelhança de

Melquisedeque”, são alusão deliberada a Salmos 110:4 . Se levanta, embora seja tradução de um verbo diferente (am stem i) pode aludir também à vinda do Messias prometido (veja-se a nota sobre o v. 14, acima). O presente do indicativo “levanta” enfatiza a realidade presente de sua existência. Outro (heteros) sugere no contexto alguém de natureza singular, unica, a despeito de sua semelhança com Melquisedeque

7:16-17 / A palavra “carnal” (sarkinos), não tão óbvia em NIV, é empre­gada com referência ao mandamento, porque é a esfera terrena (e por isso transitória) a que tal mandamento se aplica. Veja-se E. Schweizer, TDNT, vol. 7, pp 143s O poder (dynam is) da vida indissolúvel (cf At 2:24) é de tal ordem que atnbui validade a si próprio O poder de Deus é regularmente relacionado à ressurreição de Cristo, no Novo Testamento (cf. 1 Co 6:14; 2 Co 13 :4; Rm 1:4). A citação no v. 17 traz-nos de novo à memória a importância do salmo 110 para a discussão do livro Quanto ao significado de Salmos 110:4, veja-se o comentário sobre 5:6.

7:18 / A palavra utilizada para “ab-rogado” (athetesis) significa “declara­do sem valor, sem validade”, sendo empregada em documentos para designar a anulação oficial, legal (cf. a forma verbal derivada da mesma raiz em G1 3:15). A coragem do autor de dizer que a lei a respeito do sacerdócio levítico foi “invalidada” deve ser notada de modo especial, por causa da referência a Êxodo 40:15 a “sua unção lhes será por sacerdócio perpétuo nas suas gerações” (cf Jr 33:18). Só a percepção aguda do autor da carta a respeito do

(Hebreus 7:15-28) 133

cumprimento em Cristo e da novidade concomitante que o Senhor trouxe, pode explicar tal coragem. “Fraqueza” é atributo lançado duas vezes na conta dos sacerdotes levíticos em Hebreus (5:2; 7:28). A palavra grega para inutilidade é anopheles, que ocorre só aqui e em Tito 3:9, em todo o Novo Testamento. Em Tito, descreve as controvérsias fúteis.

7:19 / Enquanto no versículo anterior usa-se a palavra “mandamento” {entoíe), aqui o autor da carta emprega um termo mais amplo, lei (nom os). Outra vez o autor enfatiza a importância de atingir o obj etivo tencionado (pelo uso do verbo teleio), mas desta vez de modo negativo, ao salientar a inadequação da lei (cf. 7:11). Veja-se a nota sobre 2:10 (cf. 5:9). O emprego positivo do mesmo verbo pode ser visto abaixo, no v. 28. Uma das palavras favoritas do autor para descrever o cristianismo é o comparativo melhor. (Veja-se a nota sobre 1:4). Essa palavra aqui modifica o substantivo esperan­ça ,palavra preeminente em nossa carta(3:6; 6:11, 18; 10:23). Comoem6:18, essa palavra refere-se aqui a uma realidade presente, em vez de futura. Ou, dizendo amesma coisa de modo diferente: nossa confiança a respeito do futuro (porque repousa na obra terminada de Cristo) é de tal ordem que transforma o presente. A escatologia refere-se não só ao futuro, mas ao presente (realiza­do) também. Quanto à “esperança”, vej a-se E. Hoffmann,NIDNTT, vol. 2, pp. 238-44.

7:20 / Neste versículo encontramos outra vez a argumentação rabínica baseada no silêncio do texto (cf. 7:3). Em outras palavras, visto que não se menciona juramento nenhum em conexão com o estabelecimento do sacerdó­cio levítico, este é considerado inferior à ordem sacerdotal de Melquisedeque, que fo ra estabelecido com juramento. Ainda que tal argumento seja muito semelhante ao de 6:13-18, a palavra rara usada aqui, para juramento, e nos versículos seguintes, é horkom osia, em vez da palavra mais comum horkos.

7:21-22 / Outra vez o texto crucial na argumentação desta seção da carta, Salmos 110:4, é mencionado (cf. 5:6, 10; 7:17), agora em sua inteireza, pela primeira vez. E mais uma vez o novo faz contraste com o antigo, sendo chamado de melhor (cf. a nota sobre 1:4). Neste caso, o autor tem em vista tanto m elhor aliança— primeira ocorrência da palavra “aliança” (diatheke), que se tomará muito importante nos próximos capítulos (vejam-se 8:6, 8-10; 9:15-20; 10:16, 29; 12:24; 13:20). A palavra ocorre na verdade com muito maior freqüência em Hebreus (dezessete vezes) do que em qualquer outro livro do Novo Testamento. A semelhança de Paulo, o autor da carta pode usar a palavra diatheke em seu sentido legal de “testamento” (9:16; cf. G13:15ss.). No entanto, o sentido primordial dessa palavra é religioso, referindo-se a uma disposição pela qual o propósito salvífico de Deus se tom a realidade. Houve um antigo concerto ou aliança (no Sinai) mediante o qual Israel experimentou

134 (Hebreus 7:15-28)

a redenção. Da perspectiva do autor da carta, esse concerto cedeu I ugar à nova situação geral paraaqual na verdade sempre apontou. A “novaaliança” (como será chamada em 9:15 e 12:24) é definida em comparação com a antiga (observe de modo especial a grande dependência da passagem de Jeremias [31:31 -34] citada de início no cap. 8) e depende de modo absoluto, é claro, da obra salvífica realizada por Cristo, no cumprimento das promessas (cf. 8:6; 9:15; 10:29; 13:20). Veja-se J. Behm, TDNT, vol. 2, pp. 124-34; G. Vos, “The Epistle’s Conception of the Diathekê” — Concepção da Carta sobre Diatheke— em The Teaching o f the Epistle to the Hebrews — O Ensino da Carta aos Hebreus (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), pp. 27-45, E.A.C. Pretorius, “Diatheke in the Epistle to the Hebrews” — Diatheke na Carta aos Hebreus— Neotestamentica 5 (1971), pp. 37-50. A palavra fiador (engyos) ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento. Mediante sua obra sacerdotal, Jesus tomou-se a certeza absoluta de que os propósitos sal víficos de Deus tomaram- se realidade, totalmente suficientes tanto para o presente como para o futuro Veja-se H. Preisker, TDNT, vol. 2, p. 329.

7:23-24 / A tradução foram feitos na primeira sentença não reflete adequadamente a construção verbal perifrástica do original grego, em que o verbo está no presente. A implicação disto (que ocorre também no v 20) é que Aámw7/ojjíJcerí/o/eínomomentoemqueoautorescrevesuacarta. O conceito de “prosseguimento para sempre”, bem como a alusão a Salmos 110:4, traz à memória a declaração feita a respeito do sacerdócio de Melquisedeque, em 7:3. Mas o versículo 16 é que declara que a vida de Jesus é que está em pauta de modo primordial — e só depois o sacerdócio. A palavra grega aparabaios ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento e LXX; foi traduzida pelo verbo permanecer, no sentido de algo que é “imutável”. Veja-se J. Schneider. TDNT, vol. 5, pp 742s Josefo fomece-nos a estatística gráfica de que teriam existido oitenta e três sumos sacerdotes, desde Arão até a destruição do templo em 70 d.C. (Ant. 20.227).

7 :2 5 /0 verbo pode (dynamai) e a forma negativa“não pode” ocorrem com freqüência em Hebreus, de modo especial para explicar o contraste existente entre o novo e o antigo O novo sempre é capaz (pode) de fazer o que o antigo é incapaz (não pode) de fazer. No caso presente, o objetivo é salvar, existindo um contraste com o antigo, ainda que não explícito, mas apenas implícito. A expressão que se traduziu por perfeitamente em EC A, e “completamente” em NI V (eis to panteles) pode ser tomada com o sentido de “para sempre”, dando a entender que a situação, ou algo de que se fala, é permanente, e também se pode tomar essa expressão com o significado de totalidade. Ainda que possa ser difícil ter certeza da tonalidade precisa que o autor tinha em mente, pois o que está em jogo e a adequação integral da salvação, visto que totalidade inclui

(Hebreus 7:15-28) 135

a idéia de permanência, este conceito parece ser preferível. V eja-se G. Delling, TDNT, vcft- 8, pp 66s. A idéia de permanência fica implícita, obviamente, em que Jesus está vivendo sempre (pantote, única ocorrência em Hebreus) para interceder por eles. A realidade desta intercessão aponta de novo para a suficiência da salvação. Como observa F.F. Bruce (p. 155), Jesus vive para interceder “como Rei-Sacerdote entronizado, pedindo ao Pai o que deseja, pois o Pai sempre o ouve e lhe concede o pedido”. A respeito do verbo interceder, veja-se C. Brown, NIDNTT, vol. 2, pp. 882-86. A expressão se chegam a Deus tem tonalidades próprias de culto no templo (cf. 11:6).

7:26 / O verbo convinha-nos (prepõ) ocorre apenas em 2:10 O que é “certo” e “apropriado” chega bem perto da expressão “o que Deus quer” e pode implicar nisto, a saber, na operação de sua perfeita providência. E claro que Jesus como sumo sacerdote constitui um tema central na carta de Hebreus (cf. a nota sobre 2:7) Só aqui em Hebreus Jesus é chamado de santo (hosios, cf. At 2:27; 13:35; Ap 15:4, 16:5). As palavras inocente (akakos) e imaculado (amiantos, lit. “não conspurcado”) trazem-nos à memória a total inocência da vítima sacrificada (cf. o versículo seguinte).

7:27 / É óbvio que a linguagem deste versículo é a do culto no templo. Arão havia sido instruído de modo explícito a oferecer uma oferta pelo pecado por si mesmo, em primeiro lugar, e, a seguir, por sua casa e pelo povo (Lv 16:6ss.) A referência aqui aos sumos sacerdotes que vão oferecendo sacrifícios cada dia é inusitada, visto que o trabalho deles em geral se associa ao sacrifício anual do dia da expiação, e não aos sacrifícios diários dos sacerdotes comuns (vejam-se 9:7, 25). A discussão a respeito do caráter uma vez por todas do sacrifício de Cristo é reiteradamente enfatizada pelo autor da carta, nos próximos dois capítulos, mediante o emprego de palavras quase idênticas (ephapax aqui, 9 :12; 10:10; hapax 9:26,28). A perfeição (ou totalidade) e o caráter definitivo deste ato único entrelaçam-se indissoluvelmente com a Pessoa que sacrifica e está sendo sacrificada, adicionando-se o fato de que aqui se consuma o ato salvifico determinado por Deus. Evidencia-se de imediato o forte contraste com a futilidade repetitiva do culto levítico. Veja- se G Stàhlin, TDNT. vol. 1, pp. 381-84

7:28 / Enfatiza-se de novo a “fraqueza” dos sacerdotes levíticos, como ocorreu em 5:2. Contrastando violentamente, Jesus é capaz de “compadecer- se devidamente dos ignorantes e errados” por causa de sua humanidade integral e genuína. No entanto, o Senhor não conheceu a fraqueza derivada da imperfeição e do pecado A palavra do juramento (expressão singular em todo o Novo Testamento) refere-se obviamente à discussão que se inicia no v. 20, com base em Salmos 110:4. O verbo final, constitui ao Filho, perfeito (teleioõ), está no perfeito, no grego, sugerindo ação que se completou no

136 (Hebreus 7:15-28)

passado, com conseqüências e resultados que penetram no presente. Assim é que o Filho, tendo cumprido cabalmente esse sacrifício “de uma vez por todas”, trouxe os propósitos salvífícos de Deus, bem como sua vocação pessoal, ao cumprimento final, tudo isso produz um estado de perfeição, totalidade e permanência que contrasta vigorosamente com a lei (7:19). A lei nada poderia trazer a este estágio de perfeição, totalidade e cumprimento.

15. 0 Verdadeiro Sumo Sacerdote e Seu Ministério (Hebreus 8:1-6)

Nesta passagem, o autor de Hebreus resume sua argumentação desen­volvida até o presente momento e passa a apresentá-la em outro estágio. Ele continua a insistir no caráter definitivo da obra de Cristo, mas agora traça um contraste de modo novo, fascinante, ao usar a linguagem das sombras e das realidades.

8 : 1 / 0 ponto principal da discussão centraliza-se na realidade e na suficiência de nosso sumo sacerdote. Definitivamente ele foi capaz de cumprir tudo o que prescrevia e antecipava o sacerdócio levítico. Depois ele assumiu seu lugar justo à destra do trono da M ajestade nos céus (estas palavras são um circunlóquio para “Deus” ; cf. 1:3). De novo a redação faz alusão a Salmos 110:1. Jesus está onde está por causa de quem ele é — ao mesmo tempo Filho (cf. 4:14) e Sumo Sacerdote (cf. SI 110:4).

8:2 / Temos um sumo sacerdote que é m inistro (lit., um “servo”, ou aquele que ministra, ou serve) do santuário , isto é, no templo. Este é descrito como verdadeiro tabernáculo (lit., “tenda”), que o Senhor fundou, e não o homem (NIV mudou a voz ativa original para voz passiva). O mesmo ponto é salientado no v. 5, em que se diz dos sacerdotes levíticos que estão preocupados apenas com a cópia, ou sombra das realidades “celestiais” . Tem havido muita discussão a respeito da possível influência do dualismo grego sobre o autor, em sua argumentação aqui e nas passagens que se seguem (e.g., 9:23s.; 10:1; veja-se a nota sobre 8:2).

Acredita porventura o autor da carta na existência de um santuário real em algum lugar, "no céu”, de que o santuário terreno é simples cópia? Embora essa linguagem realmente se assemelhe à dos filósofos gregos, é bem provável que o autor tenha extraído essa idéia do Antigo Testamento, em que Moisés é instruido a respeito da edificação de um tabernáculo e seu mobiliário: foi-lhe mostrado o modelo, ou padrão. (Além de Èx 25:40, que o autor cita no v. 5, veja-se Êx 25:9; 26:30; 27:8.) A questão aqui não é a existência de um tabernáculo celestial, mas antes da fidelidade de Moisés

138 (Hebreus 8:1-6)

ao propósito estabelecido por Deus. Na passagem que estamos estudando, a questão central é que a expiação verdadeira e finalmente eficaz transcen­de o tabernáculo e seus rituais, porque agora os propósitos de Deus estão realizados. O que vinha acontecendo naqueles ritos do tabernáculo histó­rico, só através de imagens e símbolos, acabou acontecendo na realidade, na obra sacrificial de Cristo. Portanto, a obra de nosso Sumo Sacerdote não diz respeito a imagens nem a símbolos, mas à realidade última — a realidade do próprio Deus. O que preocupa o autor da carta não é algum dualismo vertical, mas a progressão histórica que partiu da promessa e atingiu seu cumprimento. O caráter final e definitivo do cumprimento vem sublinhado pelo fato que nosso sumo sacerdote está sentado à destra de Deus, e neste momento cumpre seu ministério de intercessão (7:25). As palavras “que o Senhor fundou” possivelmente são alusão à LXX, em Números 24:6, em que está escrito a respeito das tendas de Israel (cf. Nm 24:5) que foram firmadas por Deus. Trata-se de linguagem poética, figurada.

8:3-4 / As palavras iniciais, todo sumo sacerdote, são exatamente as mesmas de 5:1, em que o sacerdote é descrito como tendo sido “tomado dentre os homens... constituído a favor dos homens... para oferecer tanto dons como sacrifícios pelos pecados” . Visto já ter ficado estabelecido que Jesus é o sumo sacerdote de que fala Salmos 110:4, toma-se óbvio que era necessário que este tam bém tivesse alguma coisa que oferecer. Embora o autor da carta tenha indicado a que se refere essa “alguma coisa” (“a si mesmo” em 7:27), ele também antecipa aqui o que vai discutir nos capítulos 9 e 10. Todavia, o sacerdócio de Jesus é categoricamente superior ao dos sacerdotes terrenos: sua oferta distintiva não é feita na te rra ... nem prescrita segundo a lei. Não temos aqui a negação da morte de Cristo na história, mas antes um modo de dizer que sua obra expiatória tem sentido escatológico, isto é, final, pelo que é “celestial", em contraste com a obra “terrena” do sacerdócio levítico. Tal doutrina é ensinada com o máximo vigor nos versículos que se seguem.

8:5 / A inferioridade da obra do sacerdócio levítico é salientada agora pela observação de que não passa de figura e som bra das coisas celestiais. Este é apenas um modo de dizer que seu trabalho apenas prefigurou a obra expiatória definitiva de Jesus, a única que tem significado permanente.

(Hebreus 8:1-6) 139

Esta doutrina recebe embasamento maior pela referência às palavras dirigidas » Moisés quando este homem de Deus estava prestes a edificar o tabernáculo (fit., “a tenda”). Foi-lhe dito que seguisse em tudo conforme o modelo... mostrado no monte (Êx 25:40). Basta esta referência para sabermos que o tabernáculo e o edifício que o sucedeu, o templo, com seu ritual sacrificial (estipulado por Moisés), não era de modo algum a realidade última, mas apenas um reflexo dela. O contraste entre o terreno e temporal com o celestial e eterno ocorre de novo em 9:23 e 10:1. Paulo usa linguagem muito parecida, como em Colossenses 2:17, em que ele fala de certos aspectos da legislação mosaica, como as regras dietéticas e as do sábado, dizendo: “Estas são sombras das coisas futuras; a realidade, porém, encontra-se em Cristo” .

8:6 / NIV omite a palavra inicial nyni, “agora”, com a qual o autor da carta tenciona aguçar o contraste entre a era mosaica e as novas circuns­tâncias em Cristo. Com seu estilo típico, o autor escreve: Mas agora alcançou ele [“Jesus”] ministério tanto mais excelente (NIV acrescenta: “do que o deles”, sacerdotes levíticos). Este é o primeiro de três elementos comparativos utilizados neste versículo. O segundo ocorre na declaração de que Jesus “é mediador de superior aliança” (cf. 7:22). Aqui, e em outras ocorrências de mediador (9 :15; 12:24), o significado tencionado é que o sacrifício de Jesus é o verdadeiro meio ou agência pela qual a nova aliança (a palavra “nova” é acrescentada em 9:15 e 12:24) se toma realidade. A nova aliança é algo que Jesus realiza, pois depende de sua Pessoa e de sua obra. A terceira comparação refere-se a melhores promessas sobre as quais se fundamenta a nova aliança (está firmada em; lit.: “fundamentada legalmente”, como traz NEB). Estas promessas serão o foco de atenção na citação de Jeremias 31, que tomam o resto do cap. 8. Assim, nosso sumo sacerdote está preocupado com questões superiores à antiga aliança. A obra sacerdotal dele, em si mesma, a nova aliança dela resultante, e as promessas para que a nova aponta — em tudo isso a antiga aliança se esboroa, em comparação com a nova.

Notas Adicionais # 158 : 1 /0 ponto principal (kephalaion) pode ser entendido em referência a

um resumo, ou a um novo ponto importante. Ambos os aspectos parecem presentes nos versículos de abertura deste capítulo. Majestade (m egalosyne) ocorre no Novo Testamento apenas aqui, em 1:3 e em Judas 25. A expressão sumo sacerdotal encontra-se também em 7:26. Quanto a sumo sacerdote, veja-se a nota sobre 2:17. Nos céus, à maneira tipicamente hebraica, é literamente plural.

8:2 / Do santuário é literalmente “santos” (ton hagiõn) podendo ter três sentidos possíveis: “coisas santas”, “pessoas santas”, ou lugares santos”, i.e., santuário. Este último sentido é preferível por causa do sentido óbvio das mesmas palavras em 9:2,8,24; 10:19; 13:11. “Lugares santos” de acordo com o contexto pode indicar o “Santo dos Santos” (como em 9:12, 25; quanto à expressão integral, veja-se 9:3). A palavra “servo” ou “ministro” (leitourgos) ocorre noutra parte em Hebreus apenas em 1:7 com referência a anjos e no Novo Testamento em Romanos 13:6 (com referência a autoridades do estado), Romanos 15:16 (Paulo), e Filipenses 2:25 (Epafrodito). O verbo cognato (leitourgeo) é empregado com freqüência na LXX com referência a obra sacerdotal dos levitas. Quanto ao substantivo cognato “ministério” (leitourgia) veja-se 8:6 e 9:21.

A palavra tabernáculo ou “tenda” (skene) aqui e em 9:11 tem sido tomada como referência à humanidade de Cristo (Calvino), à igreja (Westcott) e às regiões celestiais através das quais Cristo passou a caminho do Santo dos Santos (Spicq, Héring). A despeito de João 1:14 (em que ocorre o verbo cognato [.skenoo]), e outras referências do Novo Testamento ao corpo como “tenda” (e.g., 2 Co 5:1,4), a idéia de que o que se tem em vista é a humanidade de Cristo dificilmente se toma compatível com a declaração de 9:11, segundo a qual a tenda “não faz parte da criação”. Diga-se o mesmo a respeito da perspectiva segundo a qual “tenda” refere-se ao céu. O argumento de que é a igreja que está em jogo aqui depende de que se consiga igualar “ igreja” com “tenda” (esta harmonização não se encontra em parte alguma do Novo Testamento), com base num terceiro termo, “corpo”, comum a ambos — pois trata-se de uma conexão um tanto tênue, na melhor das hipóteses. Santuário e verdadeiro tabernáculo interpretam-se melhor como referindo-se à mesma coisa, isto é, à presença real de Deus (veja-se 9:24). Quanto a uma discussão completa deste problema, veja-se a dissertação de Hughes, pp. 283-90. A palavra “tenda” (skene) é muito mais empregada em Hebreus do que em qualquer outro I í v t o do Novo Testamento Quase sempre se refere ao tabernáculo, que precedeu o templo permanente (veja-se 8:5; cap. 9; 13:10), e invariavelmente parece inferior à realidade que representa. Quanto a um

140 (Hebreus 8:1-6)

(Hebreus 8:1-6) 141

discussão do uso desta palavra em Hebreus, veja-se W. Michaelis, TDNT, vol.7, pp. 375t ,77 .

O dualismo grego com freqüência mencionado como pano de fundo desta passagem deriva da filosofia de Platão, em que todos os objetos terreais são considerados manifestações de uma “idéia”, ou “forma”, com características de arquétipo que lhe corresponde, e que só pode ser conhecida pelo intelecto. Este dualismo entre a realidade terrena e a “celestial” exerceu forte influência no mundo helenístico, de modo especial num centro como Alexandria, em que ela se faz notar em Filo, o judeu helenista (contemporâneo de Cristo). Na verdade alguns eruditos têm visto uma influência considerável de Filo sobre o autor da carta aos Hebreus, o que deu surgimento à especulação de que este livro foi escrito em Alexandria, e até mesmo que foi Apoio, que tinha uma cultura alexandrina (At 18:24), o autor da carta. Embora o debate a respeito da influência exercida por Filo sobre o autor de Hebreus não tenha terminado, R. Williamson apresentou uma argumentação forte, muito convincente, segundo aqualoautorde Hebreusjamais teria sido influenciado por Filo. Veja-seP h ilo an d the Episíle to the H ebrew s — Filo e a Carta aos Hebreus. Williamson vai além e nega a influência platônica sobre o autor de Hebreus, argumentando que a ênfase sobre a importância da história, bem como a seqüência temporal depromessaecumpnmento,étotalmentealheiaaPlatão. Veja-seR. Williamson, “Platonism and Hebrews” — Platonismo e a Carta aos Hebreus — SJT 16 (1963), pp. 415-24. O “dualismo” em Hebreus não é do tipo metafísico, mas do tipo escatológico; o contexto do autor é mais judaico do que helenistico.

8:3-4 / A expressão dons e sacrifícios (cf. L v 2 1:6), que ocorre também em 5 :1 e 9:9, é singular na carta aos Hebreus. Não ocorre em nenhum outro livro do Novo Testamento. É frase que representa uma referência genérica a uma variedade de sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes. Ao descrever esta obra dos sacerdotes, o autor utiliza o tempo presente do verbo prosph ero , que normalmente significa “oferecer”), implicando a necessária repetição (e tambem possivelmente a existência de um ritual sacrificial na época em que o autor escreve), mas ao referir-se à oferta que este deve dar, o autor usa o tempo aoristo, implicando o carater “de-uma-vez-por-todas” da obra deste Sumo Sacerdote. O argumento que, se Jesus fosse o sumo sacerdote terreno (contrastando com o outro, cuja obra fosse “celestial” ou final), nada teria para oferecer, remete-nos de volta à constatação de que Jesus não fazia parte da tribo de Levi — de que Moisés falou quando instituiu o ritual sacrificial (7 :14). Se o Senhor é o Sumo Sacerdote, seu sacrifício deve pertencer a uma ordem totalmente diferente.

8:5 / A palavra traduzida por figura (hvpodeigm a) e aque foi traduzida por sombra (sk ia ) ressoam como linguagem da filosofia helenista; mas a realida­

142 (Hebreus 8:1-6)

de última, para a qual ambas apontam, não é algo que se percebe apenas mediante o intelecto, mas algo que ocorreu no processo histórico: a cruz de Cristo. Figura ocorre com o mesmo sentido em 9:23. Veja-se H. Schlier, TDNT, vol. 2, pp. 32s. Sombra foi usada de modo semelhante em 10:1 (e em Cl 2:17). Veja-se H.C. Hahn, NIDNTT, vol. 3, pp. 553-56. Outra palavra- chave neste versículo, relacionada a estas duas, é a que ocorre na citação: modelo (typos). Conquanto seja esta a única ocorrência em Hebreus, a contrapartida “antítipo” (antitypos) encontra-se em 9:24 (veja-se a nota a respeito desta versículo), em que o santuário terreno é descrito como “figura do verdadeiro” . Quanto a typos, veja-se L. Goppelt, Typos, tradução de 1939, do original alemão (Grand Rapids: Eerdmans, 1982); L. Goppelt, TDNT, vol.8, pp. 246-59.

Coisas celestiais é tradução que aparece também em ASV e NASB. O termo grego é traduzido por “coisas que estão no céu” em 9:23 A diferença é insignificante. O ritual terreno não passa de símbolo indicativo da obra definitiva de Cristo. “Acima de tudo, a tipologia vertical, de máxima impor­tância em Filo, em Hebreus, é mera aj uda para a apresentação e caracterização do horizontal” (L. Goppelt, TDNT, vol. 8, p. 258). É por isso que Moisés divinamente foi avisado — o verbo é derivado de chrem atizo, que também ocorre em 11:7 e em 12:25, onde se refere a questões de grande importância. Após as palavras Vê que faças tudo, na citação, o grego contém uma fórmula comum, utilizada para indicar a citação das Escrituras, phesin , não traduzida por ECA: “que diz” (cf. 1 Co 6:16). Quanto a tabernáculo, i.e., “tenda” (skene), veja-se a nota sobre o v. 2. Êxodo 25:40 também aparece no discurso de Estêvão (At 7:44).

8:6 / A palavra usada para ministério (le itourgia) sacerdotal é comum na LXX; ela ocorre de novo em 9:21. Essa palavra em geral é espiritualizada no Novo Testamento, para referir-se ao ministério cristão (veja-se 2 Co 9:12; Fp 2:17,30), mas em Lucas 1 23 mantém-se o sentido original. Veja-se K. Hess, NIDNTT, vol. 3, pp. 551-53. Quanto à importância da palavra melhor (kreitton) para o autor de Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4. A palavra mediador (m esites) ocorre em primeiro lugar neste versículo, e reaparece em 9:15 e 12:24 (cf. 1 Tm 2:5). E palavra que envolve muito mais do que a idéia de alguém que funciona como “intermediário”. Dá conotação de realização da salvação e fica muito próxima do sentido de “garantia”, na frase paralela de 7:22, “de tanto melhor aliança Jesus foi feito fiador.” Veja-se A. Oepke, TDNT, vol. 4, pp. 598-624. Quanto a aliança (d ia th ekè), veja-se a nota sobre 7:22. Veja-se também J Schildenberger, “Covenant” — Aliança — em EBT, pp. 140-46. A palavra grega que se traduziu por firmada (ou “fundamentada na lei”) é nom otheteo, que ocorre também em 7:11, em que se refere à

(Hebreus 8:1-6) 143

legislação mosaica (veja-se a nota sobre 7:11). A nova aliança possui, assim, o mesmo caráter impositi vo, cheio de autoridade, baseado na vontade de Deus, segundo a antiga aliança. “Melhores promessas” não só antecipa o conteúdo da citação de Jeremias 31, que vem em seguida, mas também faz alusão às realidades escatológicas, como, por exemplo, o verdadeiro repouso sabático (4:3,9), um reino inamovível (12:28) e a Jerusalém celestial (12:22). Veja-seE. Hoffmann, NIDNTT, vol. 3, pp. 68-74.

16. A Promessa de uma Nova Aliança (Hebreus 8 :7 -13)

O autor cita agora uma passagem do Antigo Testamento de grande importância para a carta de Hebreus: Jeremias 31:31-34. A referência explícita à nova aliança neste texto faz que seja ideal para o propósito do autor. A intemalização da lei e a realidade do perdão de pecados em particular são significativas para a argumentação do autor; em 10:16-18 vemos de novo citações de partes desta mesma passagem. A citação faz que o autor possa enfatizar o desvinculo entre o cristianismo e a lei mosaica, enquanto indica, simultaneamente, um elo relevante que sublinha os propósitos de Deus. Demonstra-se que o que o autor vem descrevendo tão bem já havia sido antecipado dentro das Escrituras proféticas.

8:7-8a / A inadequação intrínseca daquela prim eira aliança fica implícita na existência atual de uma aliança nova e melhor, com suas promessas melhores, as quais têm sido o assunto da passagem precedente. Se a prim eira aliança houvesse sido suficiente, nunca se teria buscado lu g ar para a segunda. No entanto, lemos agora no profeta Jeremias precisamente a respeito da esperança de uma nova aliança. Mas o problema não está na primeira aliança (cuja natureza era apenas preparatória), porém, mais fundamentalmente, nas próprias pessoas. Assim Deus (lit., “ele”) repreendendo-os, diz... e seguem-se as palavras do profeta. Esta atribuição da culpa ao povo, em vez de à primeira aliança, de certo modo nos lembra a vindicação de Paulo a favor da lei. em Romanos 7:7-12.

8:8b-12 / Deus fala mediante o profeta a respeito de uma época futura em que uma nova aliança será estabelecida com seu povo. O profeta Jeremias escreve numa época de perturbação e desilusão; Judá e Jerusalém caíram diante dos invasores babilônios, o povo foi levado para o exílio, e tudo isto como forma de punição pela sua desobediência. A raiz do problema, e a razão por que a nova aliança será diferente da antiga (quanto à antiga, veja-se Ex 19:5), é não perm aneceram naquela minha aliança, isto é, não permaneceram fiéis. A antiga aliança era incapaz de produzir

(Hebreus 8:7-13) 145

obediência, pelo que veio o julgamento sobre o povo (e eu para eles não atentei). No entanto, a nova aliança fará o que a antiga não conseguiu realizar: produzirá a verdadeira retidão (porei as minhas leis no seu entendimento, e em seu coração as escreverei), o conhecimento pessoal do Senhor Deus e o perdão eficaz de pecados. Está bem claro que o autor de Hebreus não tenta colher estes frutos em exegese da nova aliança, mas estes são as “melhores promessas” a que ele se refere no v. 6, as quais são experimentadas pelo povo de Deus, a igreja. A partir desta perspectiva chegamos àquele novo nível de existência de que fala o profeta. O cumprimento das promessas chegou. É esse o significado de Jesus Cristo e sua obra terminada, a da expiação, visto ser ele “fiador” de “tanto melhor aliança” ; Jesus é “o mediador de uma nova aliança” (9:15).

Ainda que Jeremias seja o único escritor do Antigo Testamento a referir-se de modo explícito a uma nova aliança no futuro, parece que Ezequiel nutria uma expectativa semelhante. Ele fala de uma “aliança etema” (cf. Hb 13:20), que o Senhor há de estabelecer e que envolverá transformações, o conhecimento de Deus e o perdão de pecados (Ez 11:19- 20; 16:60-63; 36:26-29; 37:26-28, inclusive as palavras “eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus”). Outros profetas previram circunstâncias semelhantes (e.g., Is 54:13; cf. referência à “aliança de paz” em 54:10; 27:9, citada em Rm 11:27).

É claro que a idéia da “nova aliança” encontra-se noutras passagens do Novo Testamento. Nas palavras eucarísticas de Jesus, a nova aliança é mencionada em Lucas 22:20 e 1 Coríntios 11:25. Paulo se refere a ela em2 Coríntios 3:6 (cf. sua referência explícita à “antiga aliança” em 3:14). Encontra-se um contraste semelhante entre duas alianças em Gálatas 4:24- 26. Em parte nenhuma, fora de Hebreus, no entanto, encontramos a citação desta passagem ou um argumento nela baseado; só em Hebreus (cf. também 9:15; 10:16-18; 12:24). O autor de Hebreus capitaliza a referência de Jeremias à nova aliança. Está em mira uma nova situação dentro das Escrituras, a respeito da antiga aliança, situação que contempla um novo modo de vida, uma nova possibilidade espiritual e uma nova experiência do perdão definitivo de pecados. A lei é fixada no íntimo e surge nova intimidade de relacionamento entre Deus e seu povo. O conhecimento ao Senhor toma-se bem de todos, e a purificação de pecado tom a-se uma realidade num nível profundíssimo. É isso que Jeremias procurava, é a experiência que adveio aos leitores de Hebreus, em Cristo (veja-se a

146 (Hebreus 8:7-13)

aplicação da passagem aos leitores em 10:15-18). Todavia, se a última declaração for verdadeira, as implicações quanto à antiga aliança são espantosas.

8:13 / Na verdade, em virtude da realidade da nova aliança, ele (lit.; pronome em lugar de “Deus”) tornou antiquada a primeira. O mesmo Deus que trouxe a antiga aliança à existência, por antecipação da nova aliança, fez que ela fosse cumprida. Entretanto, a nova aliança é tão melhor do que a antiga, que esta precisou ceder lugar à nova. Cumprira-se o propósito da antiga aliança, pelo que perto está de desaparecer. A declaração de que a antiga aliança está perto de desaparecer implica, provavelmente, na continuidade do ritual de culto do sacerdócio levítico, à época em que o autor de Hebreus escreve. De seu ponto de vista, o ritualismo da antiga aliança está fora de lugar e hora, não tem sentido mais, e por isso não pode permanecer. Se o autor escreveu no início dos anos 60, talvez esteja pensando nas profecias de Jesus acerca da queda de Jerusalém (Mc 13:2). Por outro lado, houvesse ele escrito após a queda de Jerusalém e destruição do templo, ocorridos em 70 d.C., dificilmente teria evitado a referência explícita à confirmação histórica de sua argumentação teológi­ca. A coragem do autor ao expressar aos leitores judeus a natureza transitória da aliança mosaica é notável. Só é possível porque a desvinculação é contrabalançada pelo vínculo sublinhador da promessa e cumprimento, enfatizados pelo autor por todo o livro. O novo veio, o melhor veio, mas isto nada é senão o que foi salientado pelo antigo; na verdade, o antigo preparou o caminho para o novo.

Notas Adicionais # 168:7-8a / Ao mencionar primeira aliança o autor quer dizer a aliança do

Sinai (veja-se o v. 9), e não cronologicamente a primeira aliança da Bíblia (fosse com Noé, fosse com Abraão), assim como a palavra segunda refere-se, no contexto, àquela mencionada por Jeremias. Sem defeito e tradução da palavra grega que significa “sem falta alguma” ou “sem culpa” (am em ptos), que ocorre somente aqui em Hebreus. A discussão do v. 7 é semelhante à de 7:11, i.e., se a antiga aliança é suficiente, por que, então, menciona-se outra realidade no texto das Escrituras? O tempo perfeito do particípio grego, no v. 8a, traduzido por “repreendendo-os”, (memphom enos) implica em que não só Deus fez isso no passado, mas continua a fazê-lo. O pronome grego equiva­

(Hebreus 8:7-13) 147

lente a “os” (“a eles”), que sublinha o texto de ECA a casa de está no dativo (iauíois), em alguns manuscritos importantes, em vez de no acusati vo (autous). Isto levou alguns comentaristas (e.g., Hughes) a inserir um pronome depois de “diz”, isto é, “diz a eles”. A despeito das vantagens de tal hipótese — ela evita a complexidade de o autor ficar em falta tanto com a antiga aliança como também com o povo — o texto mais natural mesmo no caso dativo seria que o povo conserva sua culpa (cf. v. 9). Quanto a uma discussão contrária, veja- se J. L. P. Wolmarons, “The Text and Translation of Hebrews 8:8” — Texto e Tradução de Hb 8:8 — ZNW15 (1984), pp. 139-44

8:8b-12 / O autor cita a LXX com exatidão, permitindo-se apenas umas mudanças ligeiríssimas. A mais importante destas aparece na tradução de ECA: estabelecerei no v. 8, onde o verbo sy n te le õ (“cumprir” ou “realizar”) é utilizado em lugar de estabelecerei, encontrado na LXX. Isto se adapta à perspectiva teológica do autor de Hebreus. A LXX (Jr 31:3 ] -34) segue bem de perto o texto hebraico (Jr 31 31 -34), exceto quanto ao seguinte: no v. 32 as palavras “apesar de eu os haver desposado” foram omitidas pela LXX; e no v. 32, que o hebraico “com eles” transforma-se em “em suas mentes” . O autor de Hebreus cita a LXX com a máxima exatidão, pois só introduz o que aparen­temente são mudanças de estilo.

Embora a nova aliança deva ser celebrada com Israel e Judá, os contem­plados últimos são o povo de Cristo. E certo que os leitores judaicos de Hebreus eram pessoas descritas como a casa (como também no v. 10; cf. 3 :6) de Israel e de Judá No entanto, o nacionalismo judaico e as aspirações políticas não encontram lugar nessa carta. No v. 9 NIV e ECA acrescentam ela não será. . . para harmonizar-se com as palavras iniciais da citação. As palavras que se seguem os tomei pela mio, para os tirar da terra do Egito (lit.) evidentemente são referência ao êxodo, expressas em linguagem que muito antes já se havia incorporado numa espécie de credo. Esta explicação da provação enfrentada por Israel como resultado de seu fracasso em obedecer à aliança e nela viver é frequentemente encontrada entre os profetas (e.g., Is 24:5, Ez 16:59, Os 8:1, Ml 2:10). No início do v. 10 NIV e ECA omitem “porque” (hoti), palavra que indica que a nova aliança não se assemelha à antiga pelas razões que deverão ser estipuladas. A expressão depois daqueles dias (lit.) é linguagem que diz respeito a uma era escatológica (cf. as palavras de abertura de At 15:16, é citação de Am 9:11). A possibilidade de a le i v ira ser colocada no íntimo da pessoa (cf. a noção de “circuncisão do coração”, Dt 10:16; Jr 4 :4), ainda que fosse pregada e exigida no Antigo Testamento (cf. Dt 30:11-14), jamais se tomou realidade. A afirmação eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo é linguagem comum do Antigo Testamento que descreve o aspecto básico do relacionamento baseado em aliança. Esta linguagem,

148 (Hebreus 8:7-13)

embora repetidamente inserida nas Escrituras, como promessa, ainda não se tomara realidade total enquanto a nova aliança não entrou em vigor (cf. Ex 6:7; Lv 26:12, Ez 37:27; Jr 7:23). Conhecimento do Senhor é uma expectativa escatológica muito comum entre os profetas do Antigo Testamento. No v. 11 osmelhores manuscritos ttazem politên (“cidadãos companheiros”; cf.NASB), enquanto NIV prefere usar um termo de menor impacto, plesion (“vizinho”; cf. KJV) e ECA traz próximo. No v. 12, NIV diz: “perdoarei as suas iniqüidades” (cf. RSV) eECA: serei misericordioso para com suas iniqüi- dades, que é tradução literal. Esta última asserção representa um ponto culminante em Jeremias, cujos contemporânios haviam experimentado o julgamento por seus pecados; é ponto crucial parao autor da carta também, que estabelece a morte de Cristo como o verdadeiro remédio para o pecado da humanidade.

8:13 / Este versículo constitui um comentário em forma de ‘midras’ a respeito do significado da palavra nova (kainê), que ocorre no início da citação (NIVeECAacrescentamapalavraaliança). Quando Deusfaladesta maneira, mediante o profeta, na verdade o Senhor está declarando que a primeira [aliança] tomou-se transitória, obsoleta. A palavra “primeira” é usada repeti­damente na discussão que se segue, de tal modo que fica implícito que a primeira aliança tomou-se ultrapassada (cf. 9:1, 15,18,10:9). O verbo que foi traduzido por tornou antiquada e antiquado e envelhecido (palaioo) ocorre noutras passagens de Hebreus na citação de Salmos 102:26 em 1:11, onde se afirma que os céus “perecerão... como um vestido [roupa], envelhecerão” (a única outra ocorrência dessa palavra no Novo Testamento é em Lc 12:33) É digno de nota que a seitaj udaica contemporânea de Qumran refere-se de modo explícito a si mesma como o povo da nova aliança. Mas, embora entendessem que sua comunidade estivesse prestes a experimentar o cumprimento dessa profecia de Jeremias 31, aguardavam a reforma futura em vez da ab-rogação do culto do templo. Somente o evento escatológico da cruz e da exaltação de Cristo capacita o autor de Hebreus a tirar sua conclusão radical a respeito da descontinuação. Veja-se D. Peterson, “The Prophecy of the New Covenant in the Argument of Hebrews” — A Profecia da Nova Aliança na Discussão de Hebreus — RefThR 38 (1979), pp. 74-81.

17. Descrkão do Ritual do Anligo Testamento (Hebreus 9:1-10)

Iniciamos agora uma seção longa (9:1— 10:18), que muitos conside­ram o coração da argumentação da carta. Nesta seção o autor traça paralelismos e contrastes entre o ntual levítico antigo e a obra sacerdotal de Cristo com muitos pormenores. Grande parte da discussão travada até o presente momento teve exatamente isso mesmo como seu objetivo. Na verdade, a argumentação desta importante parte já foi antecipada (e.g., 7:23-27).

A primeira tarefa que o autor se propõe encetar é a descrição do ambiente físico do tabernáculo (w . 1-5), e o ritual sacrificial relacionado a ele (w . 6-10). O autor realiza esta tarefa utilizando as descrições fornecidas nos livros de Êxodo e Levítico. Só depois de prover o quadro histórico irá o autor voltar-se para a obra final de Cristo, que corresponde ao ritual do .Antigo Testamento.

9 :1 / Para que se compreenda o significado da obra de Cristo é essencial que se entenda tudo quanto no .Antigo Testamento aponta para o Senhor. A primeira (NIV e ECA corretamente acrescentam aliança) havia sido ordenada por Deus, no que concernia tanto às ordenanças como ao lugar. Primeiramente o autor volta a atenção para o lugar: um (lit., “o”) santuário terrestre.

9:2 / A viagem turística do autor de Hebreus inicia-se com a primeira p arte do tabernáculo (lit., “tenda”), tradicionalmente chamado de o Santo Lugar. Nesse parte do santuário estavam o candelabro (o ‘m enorah’ de sete ramificações) e a mesa e os pães da proposição (lit., “apresentação dos pães”), conhecidos popularmente como “os pães da Presença.” Em Êxodo 26 encontramos as instruções para a edificação do tabernáculo. Quanto à mesa e o candelabro, veja-se Êxodo 25:23-40.

9:3-5 / O autor de Hebreus da mais espaço para a descrição do Santo dos Santos (traduzido por NIV como “o Lugar Santíssimo”), à vista de sua

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importância como lugar de expiação. Ficava depois do segundo véu (Êx 26:33), uma espécie de cortina que restringia o acesso à câmara íntima, onde o sumo sacerdote só podia entrar uma vez por ano (veja-se o v. 7). Existe um pequeno problema com respeito ao primeiro item que se menciona estar presente no Santo dos Santos, o a lta r de ouro do incenso. De acordo com o registro de Êxodo 30:1-6 (cf. Êx 40:26s.) este altar estava colocado “antes” ou “em frente da” (como diz NIV) da cortina, pelo que estaria colocado dentro do “Santo Lugar,” e não no “Lugar Santíssimo,” ou “Santo dos Santos”. No entanto, a queima de incenso no Dia da Expiação era tão intensa, tão vital (cf. “para que não morra,” Lv 16:13; cf. Nm 16:40) que o autor de Hebreus automaticamente associa o altar de incenso ao Santo dos Santos. Todo o seu interesse real gira em tomo do Dia da Expiação, como verificamos pelos w . 6-10.

O segundo item no Santo dos Santos é a arca da aliança, toda coberta de ouro (veja-se Êx 25:10-16, 21). Neste recinto estavam três objetos especiais que relembravam a experiência de Israel no Sinai, no deserto: um vaso de ouro, que continha o m aná (veja-se Êx 16:13-33), a vara de A rão, que tinha brotado miraculosamente (veja-se Nm 17:8-10) e as tábuas da aliança; veja-se Dt 10:3-5; 1 Rs 8:9). Sobre a arca estavam os querubins da glória (lit., “querubins de glória”). Ao introduzir o artigo definido, e ao iniciar o substantivo “Glória” com maiúscula, NIV legitima­mente interpreta a frase como referência a Deus (cf. NEB: “glória de Deus”), em vez de simplesmente glória dos próprios querubins (cf. JB: “querubins gloriosos”). G lória aqui quase com certeza refere-se ksh ekin ah (i.e., “habitação”), a glória que repousava sobre a arca da aliança (cf. Lv 16:2; Êx 40:34s.), como símbolo da presença de Deus. Embora não possamos saber a que se assemelhavam esses querubins, é próprio que se fale de “seres” alados, ou “criaturas” dotadas de asas, não se excluindo a semelhança a seres humanos, conforme a tradição rabimca, por exemplo, dizia. Esses seres voavam por sobre o propiciatório (cob riam o propiciatório; veja-se Êx 25:18-20). Esta é a tradução que faz NIV e ECA, apropriadamente, do termo técnico hilasterion , indicativo do propiciatório, ou tampa da arca (como aparece com regularidade em LXX). Essa cobertura da arca era o lugar em que o sacerdote aspergia o sangue do boi sacrificado e depois o do cabrito, no Dia da Expiação (veja-se Lv 16:14s.). Dessa forma, a palavra veio a significar remoção de pecado (na verdade, a tradução alternativa das consoantes da palavra hebraica kpr permite esta

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conclusão, isto é, o sentido de “cobrir” e também de “purificar”), pelo que veio a ser traduzida por “assento de misericórdia” (Êx 26:34, RSV). Em Romanos 3:25, única ocorrência dessa palavra em todo o Novo Testamen­to, Jesus é descrito como sendo a “expiação” (RSV) ou a “propiciação” (KJV, NASB) pelos nossos pecados, ou como NIV diz: “um sacrifício de expiação.”

Fica aparente que o autor da carta aprendeu algo com o mobiliário do tabernáculo, a partir de uma fonte literária, com toda certeza uma tradução grega do Antigo Testamento (LXX). Isto é quase certo porque o Santo dos Santos no segundo templo dificilmente poderia ter abrigado todos os itens enumerados, os quais teriam sido destruídos ou perdidos por ocasião da destruição do templo, em 587 a.C. (Ao entrar no templo, Pompeu encon­trou o mobiliário do templo; todavia, como não se faz menção do conteúdo do Santo dos Santos, podemos presumir que estava vazio (Josefo, W ar — G uerra— \ . \5 2 s : ,Ant. - A n tig ü id a d e s— 14.7 ls). O autor contenta-se com esta breve descrição do ambiente físico do ritual levítico, pelo que aponta para sua competência nestas questões e, agora, volta-se para a questão mais importante do cumprimento da expiação nesse ambiente. É bem apropri­ado que anotemos que aqui e no texto que se segue, o autor evita o tipo de exegese alegórica irresponsável desses detalhes, a qual se encontra em certas escritores contemporâneos, ou quase contemporâneos, como Filo e Josefo (veja-se Montefiore).

9:6-7 / O ra , estando estas coisas assim p reparadas refere-se ao que foi descrito nos cinco versículos precedentes — a saber, é nesse ambiente que os sacerdotes desempenham suas funções. O autor tem em mente, em primeiro lugar, o trabalho diário dos sacerdotes comuns. Eles continua­m ente en tram (lit.; o tempo presente do indicativo é utilizado regularmen­te nestes versículos) no primeiro tabernáculo (lit., “primeira tenda”) a fim de cumprir suas funções sacerdotais (veja-se Nm 18:2-6). Tais funções envolvem a queima de incenso, de manhã e à tarde; a manutenção das lâmpadas do candelabro; a remoção dos pães velhos, e colocação de pães frescos sobre a mesa, todos os sábados. A expressão de contraste contém três principais pontos de diferença: Só o sumo sacerdote pode desempe­nhar o trabalho vital da expiação; ele o faz quando entra no segundo (lit., “na segunda tenda”), e só uma vez por ano, no Dia da Expiação (Lv 16:2- 15; Êx 30:10). O sacerdote nio pode estar sem sangue (o qual é prescrito

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pela lei), sangue que oferece por si mesmo (este contraste já foi feito em 5:3 e 7:27) e pelos pecados de ignorância do povo. A frase técnica “pecados de ignorância” é alusão ao fato de que só se podia expiar os pecados involuntários, não-intencionais (veja-se Lv 4:1, 13, 22, 27; 5:15, 17-19), e não os pecados praticados “deliberadamente” (de propósito). (Vejam-se Nm 15:30; Dt 17:12).

9:8 / Agora o autor tira daí uma lição, ou seja, do ambiente físico e da prática cultual contínua. O Espírito Santo estava dando a entender (lit., “deixa claro”), mediante as Escrituras, das quais os versículos precedentes haviam sido colhidos, com isto que o caminho do Santo dos Santos ainda não está descoberto (lit., “tomado visível”). Em outras palavras, a situação sob a antiga aliança, com sua proteção elaborada do Santo dos Santos, é de tal ordem que exclui o povo de Deus da presença divina; por isso, o cumprimento das promessas de Deus continua a ser uma expecta­tiva, algo a ser experimentado. Portanto, a existência contínua do primei ro tabernáculo que, ao lado da cortina antes do Santo dos Santos, impedia o caminho para a presença de Deus, demonstrava a futilidade da antiga aliança e, ao mesmo tempo, apontava de modo decisivo para o futuro. Esse futuro havia chegado agora, para o autor de Hebreus e seus leitores.

9:9-10 / A necessidade contínua de uma “tenda externa,” que por si só constituía um sintoma do problema da antiga aliança, serve de parábola (lit.; NIV traz “ilustração”) para o tempo presente. O autor de Hebreus quer dizer, com isso, como vai começar a mostrar, iniciando pelo v. 11, que o significado da obra de Cristo, como agora é conhecida e proclamada, é que o caminho nos foi esclarecido, de tal modo que podemos aproximarmo- nos de Deus (cf. 10:19-22). Assim como a luz é derramada sobre a obra de Cristo, pela sua antecipação na antiga aliança, assim também o conheci­mento do cumprimento trazido por Cristo ilumina o significado do tabernáculo e dos sacrifícios levíticos. Por sua própria natureza a antiga aliança aponta para o que agora pode ser visto como seu cumprimento. De acordo com a antiga situação, as “ordenanças de culto sagrado” (mencio­nadas em 9:1) exigiam vánas ofertas sacrificiais que, por sua própria natureza, incapazes de conduzir o adorador para o objetivo tencionado da salvação integral. Quanto à consciência, não podem aperfeiçoar aquele que presta o culto — devemos entender este conceito assim: “as ordenan­

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ças não conseguem trazer a pessoa verdadeira, seu ser íntimo, ao objetivo colimado da salvação completa.” A consciência perturbadora, não- convencida, do adorador, nesta circunstância é evidência do fracasso do antigo sistema. A razão da incapacidade das providências e arranjos da antiga aliança é que estes se limitavam apenas a ordenanças externas (lit., “carnais”), envolvendo com ida, bebidas e várias abluções. E por isso queF.F. Bruce escreve: “A barreira realmente efetiva que impede o livre acesso do homem a Deus é de natureza espiritual, e não material; ela existe em sua consciência” (p. 196). Finalmente, devemos enfatizai que estas ordenanças são apenas temporárias, impostas apenas até à época da reform a. Pelo que o autor da carta já escreveu, fica bem claro que ele considera a reform a como algo já em andamento. Já chegou o tempo do cumprimento, ocorrido pela obra de Cristo (veja-se o comentário sobre 1:2). Se isto for verdade, todo o sistema levítico e toda a legislação mosaica sobre a qual tal sistema repousa, chegou ao fim. De fato esta conclusão é inescapável. em face dos resultados a que se chegou em 8:13. A discussão do autor, aqui, faz-nos lembrar da perspectiva de Paulo em Colossenses 2:16-17: “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber ou por causa dos dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados. Estas são sombras das coisas futuras; a realidade, porém, encontra-se em Cristo.” As cláusu­las da antiga aliança foram abolidas quando a nova aliança, com sua nova ordem, passou a vigorar. Esta análise encontra-se nos versículos que se seguem imediatamente após a passagem que estudamos. Cristo cumpre as antecipações da antiga aliança e deixa clara a salvação que Deus objetivou desde o princípio para seu povo. Chegou, pois, uma época nova, o tempo da reforma e do cumprimento das promessas divinas.

Notas Adicionais # 179:1 / Os verbos no pretérito neste versículo, e também nos quatro seguintes,

não implicam em que a situação aqui descrita pertence ao passado, e por isso não existe mais Tais verbos indicam ações no passado, mas referem-se ao fato de retratarem a origem do tabernáculo e de seu sucessor, o templo. A confirmação disto nós a encontramos no uso dos verbos no presente nos w . 6-10 (ve|a-se de modo especial o v 9). As ordenanças (dikaiom ata ) que se tomam o centro de atenção nos w . 6-10, são mencionados como coisas “externas” (ou “carnais”) e temporárias, no v. 10. A palavra portuguesa culto (la lreia) refere-se de modo especifico ao culto no templo (cf o emprego do

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verbo cognato em 8:5 e 9:9). A palavra grega para santuário é to hagion (“o lugar santo”). O adjetivo grego que corresponde a terrestre é kosmikon, que define a ordem “criada.” (Barclay traduz este termo por “pertencente a este mundo”). Há intenção de estabelecer-se o contraste com o santuário “celestial” já mencionado (8:5; cf. 9:11, 24).

9:2 / Enquanto em Exodo 26:33 a tenda é dividida em dois compartimen­tos, o autor de Hebreus fala aparentemente de duas tendas (cf. a “primeira” aqui e nos w . 6 e 8, e a “segunda” [a interna], no v. 7); NIV e ECA seguem Exodo, e traduzem primeira parte e, nos w . 6-7, “no segundo [tabernáculo]” e “primeiro tabernáculo.” No entanto, é improvável que o autor tenha em mente que entendamos que o “primeiro” é o “terrestre” e o “segundo,” o “celestial,” como o fizeram alguns nojudaísmo helenístico, visto que para esse autor o ambiente mosaico total representa a figura terrena da realidade superior. Ele poderá querer dizer nada mais do que “externo” e “interno”, da forma como NIV entende as palavras gregas. Em outras passagens o autor se refere a toda a estrutura como sendo um “tabernáculo” singelo (8.5; 9:21). Quanto a “tabernáculo” (i.e., “tenda”), veja-se a nota sobre 8:2. A palavra grega do texto original, kataskeuazo, traduzida por foi preparado, é a mesma palavra traduzida por “edificou” em 3:3s. Quanto a Santo Lugar (hagia) e Santo dos Santos, (hagia hagion) do v. 3, o autor emprega a tradução literal das palavras hebraicas para tabernáculo, que se encontram na LXX (onde, no entanto, o artigo definido é usado). Quanto a Santo dos Santos, vejam-se também 9:12, 25, 10:19; 13:11 (com o artigo definido), e 9:24 (“em santuá­rio,” sem o artigo). Pães da proposição refere-se a doze pães frescos que eram colocados sobre a mesa, no Lugar Santo, todos os sábados (veja-se Lv 24:5- 9). Neste versículo e nos seguintes, veja-se a discussão longa de Strack- Billerbeck, vol. 3, pp. 704-41.

9:3-5 / Segundo véu: era o que separava o Santo dos Santos do Lugar Santo, o “primeiro véu” separava o Lugar Santo do pátio do tabernáculo. A palavra grega para véu (katapetasm a) ocorre somente aqui, em Hebreus, e em 6:19 e 10:20. Embora a palavra grega usada aqui para a ltar (thym iaterion) não fosse empregada para referir-se ao altar de incenso, na LXX, é usada assim pelas autoridades contemporâneas, como Filo e Josefo, os quais também observam de modo explícito (com o Talmude Babilónico) que no segundo templo o altar do incenso estava no Lugar Santo com o candelabro e a mesa. Parece que a vara de Arão assume grande importância, à face da discussão do cap. 7 A varaque floresceu demonstrou a legitimidade única de Arão eda tribo de Levi, no serviço sacerdotal do altar (cf. Nm 18:7). Todavia, essa singula­ridade foi removida, na verdade, foi cancelada de vez peio sumo sacerdote da ordem de Melquisedeque. Tecnicamente, o vasilhame contendo o maná, junto

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com a vara de Arão, ficaram ao lado e não dentro da arca (cf. 1 Rs 8:9). As tábuas da aliança têm designação apropriada, visto terem sido outorgadas no contexto da própria aliança. A fidelidade à aliança envolvia a guarda dos mandamentos. Só existe uma única ocorrência da palavra “tábuas” iplax) em outra passagem, em 2 Coríntios 3 :3 em que, como aqui, o substantivo tábuas esconde o restritivo “de pedra” (cf. Ex 32:16). Quanto a querubins veja-se E. Lohse,TDNT, vol. 9, pp.438s. Embora a expressão “propiciatório” (hilasteriori) ocorra somente aqui e em Romanos 3:25, em todo o Novo Testamento, o verbo cognato grego “expiar” (hüaskom ai) ocorre em 2:17 e em Lucas 18:13. O substantivo dele derivado, hilasmos, encontra-se em 1 João 2:2 e 4:10. Quanto a estas palavras, vejam-se H.G. Link e C. Brown, NIDNTT, vol. 3, pp. 148- 66 .

9:6-7 / O primeiro tabernáculo é o exterior, ou “primeira parte” a que se refere o v. 2. A palavra grega traduzida por serviços (latreia) é a mesma que se traduz por “culto” no v. 1, com referência em ambos os lugares ao serviço sacerdotal. O verbo cognato (latreuo) já foi utilizado em 8:5 (“servem”) e ocorre de novo nos w . 9 e 14. O “segundo” tabernáculo, isto é, o “interno” embora não tenha sido mencionado explicitamente antes, está implícito no v. 3. As palavras u ma vez são muito importantes para o autor de Hebreus em sua descrição da obra de Cristo. A obra sacerdotal descrita no Antigo Testamento também tem o seu “uma vez”, mas refere-se a uma vez no ano, bem diferente do caráter definitivo (“de uma vez vez por todas”) da obra de Cristo como sumo sacerdote (vejam-se os w . 12, 20-28).

Esta é a primeira de muitas referências ao sangue dos sacrifícios neste capítulo e nos seguintes, do livro. A santidade da vida e, por isso, a santidade do sangue, junto à necessidade de sacrifício, indicam o elevado custo da expiação (cf. 9:22, Lv 17:11). A menção de sangue no contexto da oferta pela expiação sempre pressupõe a morte da vítima sacrificial. A importância central do sangue de Cnsto surge com preeminência primeiramente nos w . 12 e 14 abaixo (e fica implícita em 2:9,14 e 17). Q u a n to ao significado de sangue na Bíblia, veja-se J. Behm, TDNT, vol. 1, pp. 172-77.

A palavra grega traduzida por o ferece (prosph erõ ) é muito freqüentemente utilizada pelo autor de Hebreus. Veja-se a nota a respeito de sua primeira ocorrência, em 5:1. A descrição do trabalho do sumo sacerdote, em que ele oferece primeiro por seus próprios pecados e depois pelos pecados do povo, segue de perto o relato de Levítico 16:11-15. As palavras gregas para pecados de ignorância do povo (agnoem ata , lit., “ ignoràncias”) aparece apenas aqui em todo o Novo Testamento. O tempo presente do verbo no v. 6 não demonstra que o culto era praticado nos dias do autor de Hebreus, ainda que fosse uma possibilidade (assim pensa, por exemplo, Hughes). No entanto, quando o que

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se tem em mira é o ritual do templo, o presente do indicativo é empregado, refletindo o caráter normativo da lei. Assim, muitos escritores que escreveram após a destruição do templo continuaram a empregar o tempo presente, ao descrever o ritual do templo (e.g., Clemente de Roma, Justino, o mártir, e a literatura rabínica).

9:8 / Em duas outras passagens o Espírito Santo é mencionado como sendo a Pessoa que fala, no texto do Antigo Testamento (3:7; 10:15). A expressão grega traduzida por Santo dos Santos é hagia hagiõn, enquanto em 9:2 temos “o Santo Lugar,” ou hagia. O contexto, com sua referência ao primeiro tabernáculo, sugere que o autor se refere à câmara localizada na parte mais interna, o Santo dos Santos. Em várias referências a serem consultadas (w. 12, 24e25; 10:19; 13:11), uma só palavra gregaéutilizadaparareferir-se ao Santo dos Santos (como é o caso freqüentemente na LXX; e.g., Lv 16). No entanto, deve-se notar que é possível fazer-se uma exegese diferente de “primeiro tabernáculo.” Assim é que alguns eruditos (e.g., Bruce) argumentam que “o primeiro tabernáculo” aqui se refere ao santuário todo da “primeira” aliança (como o dizem NIV e NEB), sendo isso o que o autor considera mais apropriadamente como “parábola,” no versículo seguinte. No entanto, a passagem faz sentido se considerarmos o uso que o autor faz de “pnmeiro tabernáculo” como coerente, e entendermos o Lugar Santo aqui como sendo o compartimento externo do santuário (como RSV, JB, NASB). “Pnmeiro tabernáculo” entendido com este sentido implica na falta de acesso ao Santo dos Santos, pelo que é representativo de todo o sistema sacrificial. Veja-se W Michaelis, TDNT, vol. 7, pp 375ss.

9:9-10 / O antecedente, ou nome a que se refere o pronome da cláusula “esta é uma parábola” (NIV: “esta é uma ilustração”) não está bem claro O entendimento mais lógico e natural é que o pronome se refere ao “primeiro tabernáculo.” E antecedente apropriado e faz sentido. No entanto, também é possível que se entenda a totalidade dos w . 6-8 como o antecedente (e explicar o gênero feminino do pronome relativo por atração do termoparabole). Para o tempo presente entende-se claramente que se trata da época do autor e de seus leitores. No entanto, isto por si mesmo não significa necessariamente (e nem mesmo implica) que o ritual sacrificial ainda estivesse em andamento à época da redação da carta. N este caso é o passado que tem uma mensagem para o presente Em que se oferecem tanto dons como sacrifícios é linguagem (no grego e em NIV e ECA) que ocorre quase literalmente em duas outras passagens: 5:1 e í.3. Descoberto (lit, “completo,” “perfeito”) é tradução de uma das palavras favoritas do autor de Hebreus (teleioõ). Veja-se a nota sobre 2:10. A palavra consciência (svneidesis) é importante para o autor da carta, pois ocorre cinco vezes (vejam-se 9:14; 10:2, 22; 13:18). Reflete a pessoa

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interior, a verdadeira pessoa, e traz julgamento sobre o bem-estar, ou falta de bem-estar da pessoa. Veja-se C. Spicq, “Conscience” — Consciência — em EBT, pp. 131-34, G.S. Selby, “The Meaning and Function of syneidesis in Hebrews9and 10,” — O Sentido e a Função de syneydêsis em Hebreus 9 e 10— R estQ 28 (1985-86), pp. 145-54. Aquele que presta o culto (“o adorador”) ou a pessoa que desenvolve este trabalho sacerdotal, com toda probabilidade inclui, além dos sacerdotes, os crentes comuns que realizam essa obra mediante os sacerdotes. Comida e bebidas referem-se a estipulações da legislação dietética (e.g., Lv 11), várias abluções refere-se a ritos purificado­res (e.g., Lv 14, 15). Ordenanças externas (ou “da carne”) faz contraste deliberado com o que está na raiz do problema, o íntimo do ser, representado pela consciência. A palavra para reforma (NIV: “nova ordem”) é dioríhosis, e ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento, não aparecendo na LXX. Quanto aestes versículos, veja-se J. Swetnam, “On the Imagery and Significance of Hebrews 9,9-10,” — Imagens e Significados de Hebreus 9:9-10 — CBQ 28 (1966), pp 155-73. Quanto ao significado do cap. 9, como um todo, veja-se N.H. Young, “The Gospel According to Hebrews 9,” — O Evangelho de Acordo com Hebreus 9 — NTS 27 ( 1981), pp. 198-210.

18. A Natureza Definitiva da Obra de Cristo (Hebreus 9:11-14)

Chegamos agora à primeira declaração detalhada da natureza definiti­va da obra de Cristo — argumento que será reestabelecido de diversas formas antes de atingirmos o final desta grande seção da carta, em 10:18. Fica demonstrado agora de modo convincente que, embora a obra de Cristo corresponda com abundância de minúcias à do sacerdócio levítico, se posta a seu lado mostra forte contraste, como sua contrapartida final. Cristo é a verdade, de que o sacerdócio levítico é mera sombra, o padrão perfeito a ser copiado. A obra de Cristo é final, absoluta, definitiva, completa e perfeita. Só estas palavras são apropriadas para descrever o que o autor expõe.

9:11 / Embora o advérbio já não se encontre no texto original grego, constitui inferência apropriada do particípio aoristo. O foco está voltado com clareza para o que se realizou mediante a obra de Cristo, na cruz. Os bens já realizados referem-se ao grau de cumprimento escatológico que se atingiu pelas pessoas que, em Cristo, se tomaram participantes da nova aliança. Esta nota de “escatologia realizada”, isto é, “cumprida”, que se encontra no início do livro (na referência a “últimos dias” de 1:2) bem como em outras seções (veja-se de modo especial 12:18-24), deve manter- se sob tensão com as afirmações de “futura escatologia” que se encontram no livro (e.g., 6:11, 18; 9:28; 10:25). A orientação do autor de Hebreus é claramente na direção da presente experiência das boas coisas que se fizeram possíveis mediante a obra de Cristo como nosso Sumo Sacerdote. A longa sentença grega que forma os w . 11-12 transforma-se em duas orações separadas em NIV; estas, em ECA, conservam-se como no original. O maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos (lit.; “não feito por mãos humanas”), isto é, não desta criação, refere-se naturalmente à verdade de que a cópia não passava de sombra (cf. 8:2-5), a saber, o “santuáno celeste,” ou lugar da presença real do próprio Deus (veja-se 9:24).

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9:12 / O tabernáculo mencionado no versículo anterior, no entanto, não é algo por que Cristo passou a fim de chegar ao Santo dos Santos (como, por exemplo, ele havia penetrado “nos céus”, 4:14). Trata-se da realidade celestial, não feita por mãos, o lugar onde está “a face de Deus” (9:24). Assim foi que Cristo entrou no Santo dos Santos, não com a aspersão do sangue de bodes e de touros, mas mediante seu próprio sangue. Mas como nota F.F. Bruce, o autor deixa de declarar que Cristo levou seu sangue ao Santo dos Santos. Isto equivaleria a levar a analogia longe demais, resultando em que a expiação passa a depender de algo subseqüente à cruz, isto é, ao aparecimento de Cristo e oferecimento de seu sangue no santuário celestial. O texto original diz simplesmente que foi mediante, ou “pelo seu próprio sangue,” que Cristo entrou de uma vez por todas no Santo dos Santos. A necessidade de uma oferta cruenta fica salientada nos w . 18 e 22. A oferta de seu próprio sangue é tão superior que produziu uma eterna redenção; com esta linguagem o autor tenciona cnar um contraste agudo com o caráter provisório daquilo que foi realizado pelo oferecimento de sangue de animais. Encontra-se nova ênfase na salvação realizada por Cristo também em 5:9 (cf. 13:20). Visto que sua obra é uma vez por todas, sua conseqüência é uma eterna redenção. A superioridade da realização de Cristo é, portanto, qualitativa (intrínseca) e temporal (transcende o próprio tempo).

9 :1 3 /O sw . 13 e 14 formam um longo período no texto original grego; o v. 13 inicia-se com um “se” condicional, e o v. 14 inicia-se com um “quanto mais” comparativo de superioridade. Os rituais do Antigo Testa­mento, envolvendo o sangue de bodes e de touros (cf. Lv 16:15-16) e a aspersão dos transgressores com as cinzas de um a novilha — misturadas à água, com o que se obtém “água purificadora... oferta pelo pecado” (Nm 19:9, 17-19) — purificava os israelitas apenas no exterior físico. NIV enfatiza esse aspecto ao dizer: “de modo que ficavam externamente limpos” e ECA: san tifica ... quanto à purificação da carne. Esta tradução tem o apoio da palavra grega que significa “imundo,” traduzida por NIV como “cerimonialmente impuro” e contam inados, por ECA. Portanto, tais cerimônias só eram eficazes para um tipo de purificação, isto é, a que livra da contaminação cenmonial.

9:14 / Mas o sangue de C risto incomparavelmente superior, traz-nos a realidade de uma purificação muitíssimo mais importante. Cristo se

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ofereceu a si mesmo imaculado (lit., “sem culpa”) a Deus, e isto foi efetuado pelo Espírito eterno — outra indicação da grande diferença entre a oferenda de Cristo e as do sacerdócio levítico. Embora a interpre­tação dessa frase seja excepcionalmente difícil, Espírito eterno provavel­mente significa o Espírito Santo. Talvez seja uma alusão à grande impor­tância do Espírito por todo o ministério de Jesus; ou talvez reflita o relacionamento existente entre o Espírito e o “Servo do Senhor” de Israel, que acaba oferecendo sua vida pelos pecados do povo (Is 42:1; 53:5-6, 10, 12). O Espírito é a agência por excelência que desenvolverá a vontade salvífica de Deus. Só devemos esperar, portanto, que nossa “eterna redenção” (v. 12) seja realizada mediante a oferta de Cristo pelo Espírito eterno. O novo tipo de purificação que se fez possível por este oferecimen­to de Cristo é descrito como a purificação das consciências. Em outras palavras, a purificação penetra nos recessos mais íntimos de nossa perso­nalidade e, assim, envolve muito mais do que a purificação da came de contaminação cerimonial.

Das obras m ortas de ECA, NIV traduziu por “de atos que induzem à morte.” E quase certo que essa expressão significa o que está escrito em 6 :1, a saber, as obras pecaminosas que nos deveriam conduzir ao arrepen­dimento. A despeito de o autor de Hebreus minimizar o ritual levítico, nunca o considera pecaminoso, e nunca o relaciona ao arrependimento. Os que experimentaram a nova purificação — a da consciência — agora estão capacitados verdadeiramente a servir ao Deus vivo. A palavra “servir” aqui (la treu o ) é intencionalmente a mesma utilizada antes para designar o trabalho sacerdotal (e.g., 8:5; 9:9). Somente mediante o cumprimento trazido pelo supremo sacrifício, “feito uma vez por todas,” tomou-se possível chegar ao alvo de servir a Deus. A linguagem do culto foi espiritualizada aqui, como o foi noutras passagens do Novo Testamento (e.g., Rm 12:1; 1 Pe 2:5).

Tão significativo é o contraste traçado nesta passagem, e tão básico para o texto que se segue (que na verdade é apenas uma elaboração do que já foi declarado), que vale a pena mostrar os seus vários elementos em duas partes comparativas:

Coisas novas Coisas antigas

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• os bens já realizados, v. 11 (9:23-24; 10:1)

• maior e mais perfeito tabernáculo, v. 11 (9:24)

• entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas,v. 12(9:25-28; 10:1-3, 10-14)

• pelo seu próprio sangue, v. 12 (10:4-10)

• havendo obtido uma eterna redenção, v. 12

• purificará a nossa consciência, v. 14 (9:15)

• figura, sombra, imagem,8:5; 10:1

• santuário terrestre (feito pelo homem), 9:1

• oferecer cada dia, 7:27; uma vez no ano, 9:7

• sangue de bodes e bezerros, 9:12(9:18-22)

• ordenanças de comida, bebidas... até à... reforma, 9:10

• santifica os contaminados,9:13

Que o conteúdo dos novos elementos correspondem às promessas feitas a Jeremias, a respeito da nova aliança, confirma-se pela declaração explícita do versículo seguinte. Observe-se também a utilização do texto de Jeremias de novo, no fmal desta parte importante da carta (10:16-18).

Notas adicionais # 189:11 / Alguns manuscritos trazem, “as boas coisas vindouras,” e dessa

forma configuram o versículo como falando de realizações do futuro em vez do presente. Com base tanto na antigüidade como na diversidade dos testemu­nhos, o texto de ECA e preferível. A construção “boas coisas vindouras” provavelmente se deve à influência das mesmas palavras encontradas em 10:1.Quanto à importância que o autor da carta atribui ao título “sumo sacerdote,” veja-se a nota sobre 2:17 A expressão “não feito por mãos,” (ch eiropoiê tos), ou “não feito pelo homem” ocorre só mais uma vez em Hebreus, e neste mesmo capitulo (v. 24), onde tem o mesmo sentido. Vánas outras ocorrências desta

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palavra no Novo Testamento fazem referência a um sentimento anti-templo, algo que provavelmente era compartilhado pelo autor de Hebreus (Mc 14:58, At 7:48; 17:24). Alguns têm considerado essas palavras um maior e mais perfeito tabernáculo, como referência à encarnação de Jesus (cf. a nota sobre 8:2). Todavia, esta opinião é bastante improvável, visto que a humanidade de Cristo deixaria de ser parte da criação, n ão desta criação (contraste-se o ponto de vista da encarnação expressa em 2:14, 17). Veja-se J. Swetnam, “The Greater and More Perfect Tent: A Contribution to the Discussion of Hebrews 9.11,” — O Maior e Mais Perfeito Tabernáculo: Uma Contribuição para a Discussão de Hebreus 9:11 — Bíblica 47 (1966), pp 91-106, que argumenta que “o maior e mais perfeito tabernáculo” refere-se ao Corpo Eucarístico de Cristo.

9:12 / Iniciando-se com o v. 11 (“por meio de um... tabernáculo”) e prosseguindo no v. 12 (“não por meio de sangue de bodes e bezerros,” mas “pelo seu próprio sangue”) temos uma série de frases governadas pela repetida preposição “por” (“por meio de,” “pelo”) que no grego é dia. Esta preposição também se pode traduzir por “em virtude de” ou “por causa de.” A expressão o sangue de bodes e bezerros também a encontramos nos w . 13, 19 e 10:4 (onde, no entanto, lemos “touros”). Quanto à importância de “sangue” neste capítulo, e nos que se lhe seguem, veja-se a nota sobre 9:7. A referência a seu próprio sangue (cf. 13:12, a segunda e última ocorrência desta expressão) pode ser posta em contraste com 9:25, em que um sumo sacerdote humano necessariamente depende de “sangue que não é de outrem, não de si mesmo ” Noutras passagens lemos que Cristo “ofereceu-se a si mesmo” (7:27) e da “oferta do corpo de Jesus Cristo” (10:10). Uma vez por todas é expressão indispensável na argumentação do autor da carta (veja-se a nota sobre 7:27). Santo dos Santos é tradução interpretativa correta de ECA da expressão grega ta hagia (lit., “os santos”). KJV, RSV e NASB retêm o sentido literal, “lugar santo.” Está claríssimo que o autor não tem em mente o Lugar Santo descrito em 9:2, mas o que mencionou em 9:3. A mesma expressão grega é usada para o Santo dos Santos em 9:8 (veja-se também 9:24, 25; 10:19; 13:11).

A palavra redenção (ly trõsis) ocorre em Hebreus apenas aqui (as outras únicas ocorrências no Novo Testamento são Lucas 1:68 e 2:38; quanto ao verbo, no entanto, veja-se 1 Pd 1:18). O sentido não é muito diferente do sentido da palavra comumente usada pelo autor da carta, quando quer referir- se a “salvação” (so te r ia , sobre a qual veja-se a nota de 2:3). Quanto a fytrosis e outras palavras relacionadas a esta, veja-se F Büschel, TDNT, vol. 4, pp 340-56. O fato de a expressão verbal havendo obtido no grego corresponder a um participio aonsto, indica que a salvação já havia sido conseguida (na cruz), pelo que qualquer idéia de uma apresentação subsequente do sangue de

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Cristo no santuário celestial fica afastada. Só depois de nossa salvação ter sido assegurada é que Cristo ascendeu ao céu. Quanto a esta pergunta e outras que se lhe relacionam, consulte-se a longa dissertação “The Blood o f Jesus and His Heavenly Priesthood,”— O Sangue de Jesus e Seu Sacerdócio Celestial— em Hughes, pp. 329-54.

9:13 / Esta é a única referência no Novo Testamento às cinzas do bezerro, usadas no ritual de purificação, de acordo com Números 19. O autor de Hebreus gosta bastante desta ilustração, porque o pecado que era removido mediante esse rito relacionava-se à contaminação cerimonial. Temos aqui algo que tipifica a eficácia limitada da prática cultual do Antigo Testamento. Contaminados é tradução da palavra grega koinoõ (lit., “tomar comum”), palavra utilizada apenas aqui em Hebreus, mas que é usada com a mesma conotação de imundicia cerimonial, em outras partes do Novo Testamento (Mc 7:15-23, At 10:15; 11:9, 15:11-20; 21:28). A contaminação específica que era eliminada pelas “abluções” cerimoniais, era a decorrente de alguém ter tocado um cadáver (Nm 31:23). Quanto a esse assunto de contaminação cerimonial, veja-se F Hauck, TDNT, vol. 3. pp. 789-809. Quanto à aspersão e purificação cerimonial, veja-se C H. Hunzinger, TDNT, vol. 6, pp. 976-84. A palavra grega traduzida por santifica (hagiazo), conquanto tenha sentido cerimonial, cultual, aqui, em outras passagens de Hebreus é usada para a purificação (“colocação à parte” num sentido moral) dos cristãos (cf. 2:11; 10:10, 14,29; 13:12). Quanto ao uso de “carne” (sarx) em Hebreus, veja-se E. Schweizer, TDNT, vol. 7, pp. 141 s.

9:14 / Muitos comentaristas (e.g., Hughes, Montefiore, Delitzsch) prefe­rem ensinar que Espírito eterno não diz respeito ao Espírito Santo (como alguns manuscritos trazem), mas ao Espírito pessoal do próprio Cristo, que é eterno em sua natureza. Portanto, a referência seria à natureza única, singular, pessoal, de Cristo, que capacita o Senhor a realizar seu sacrifício perfeito. No entanto, a referência ao Espírito (embora não haja artigo definido, trata-se do Espirito, por causa do adjetivo “eterno”) teria sido entendida pelos leitores de Hebreus como se fora o Espírito Santo. Caso o autor tivesse em mente o Espírito do próprio Senhor Jesus, tê-lo-ia indicado sem equívocos (e.g., mediante o acréscimo de “de Cristo”). Note-se que até agora não se fez nenhuma menção ao Espírito eterno, pessoal, de Jesus. Quanto à passagem toda, veja-se K. Grayston, “Salvation Proclaimed: III. Hebrews 9:11-14,” — A Salvação Proclamada: III. Hebreus9:l 1-14 — ExpT93 (1982), pp. 164-68.

Quanto à importância do verbo ofereceu (prosph ero ), veja-se anota sobre 5:1 A palavra imaculado significa literalmente “sem culpa” (am om os), constituindo alusão deliberada à exigência da lei cerimonial do Antigo Testamento que o animal sacrificial fosse “sem mancha ou defeito” (e.g., Lv

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14:10; cf. 1 Pe 1:19). O que não poderia ser realizado pelo antigo sistema sacrificial — a purificação da consciência (veja-se o v. 9) — realiza-se agora por meio de Cristo. Quanto à “consciência,” veja-se a nota a respeito de 9:9 Um número igual de manuscritos-chaves trazem “vossas consciências,” mas em razão de o autor da carta reservar a segunda pessoa para suas seções de exortação, a expressão a nossa consciência é preferível. “Atos conducentes à morte” ou obras mortas é expressão que contrasta violentamente com o culto a Deus (para servirmos ao Deus vivo). Esta é a forma usual hebraica dereferir-seaDeus(e.g., Mt 16:16,26:63,2 C o 3 :3 ,1 Tm3:15,4:10, Ap 15:7, c f Hb 3:12; 10:31, 12:22).

1 9 .0 Sacrifício de Cristo: 0 Fundamento da Hova Aliança (Hebreus 9 :15-22 )

O autor da carta volta a atenção para a relação da morte sacrificial de Cristo com o estabelecimento da nova aliança. A existência e experiência da nova aliança pelos cristãos dependem totalmente da morte de Cristo. Por isso, o derramamento de sangue é essencial tanto para a antiga como para a nova aliança.

9:15 / P o r isso — por causa de sua morte — ele (NIV altera para “Cristo”) é o m ediador de uma nova aliança. Fica bem claro que o autor tem em mente a nova aliança de que Jeremias falou (cf. a citação em 8:8- 12 e 10:16-17). O resultado da inauguração da nova aliança é: que os cham ados recebam a prom essa da herança eterna. O autor já mencio­nou um chamado especial recebido pelos cristãos mediante a pregação do evangelho em 3:1. E significativo que o autor usa conceitos tipicamente judaicos de “promessa” e “herança” aqui (cf. 6:17). Isto fortalece o tema do cumprimento das promessas do Antigo Testamento na igreja (c f 13:20). A base desta nova aliança e seu recebimento pelos cham ados fica agora estabelecida. (No texto original, a base é explicada antes do resulta­do, enquanto NIV coloca a base em último lugar, apresentando-a com as palavras “agora que.” A base da nova situação é intervindo a m orte [de Cristo] para remissão dos pecados, isto é, os crentes se libertam do jugo do pecado (cf. a referência à “eterna redenção” no v. 12). A redenção ou libertação é dos pecados (lit., “transgressões”) cometidos sob a prim eira aliança. A verdadeira solução para os pecados cometidos contra a lei de Moisés não se encontra no sacrifício de animais, mas no sacrifício de Cristo. Assim, a nova aliança encerra dentro de si a resposta para o fracasso do homem, que não consegue obedecerás exigências da antiga aliança (cf. 8:12; 10:17-18). O perdão concedido e experimentado durante os tempos do Antigo Testamento dependia, finalmente — embora este conceito dificil­mente era entendido nessa época — de um acontecimento que ocorreria no futuro. O sacrifício de Cristo é a resposta ou a solução para o pecado em todas as eras, no passado e no presente, visto que só ele é o meio de perdão.

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9:16-18 / Neste ponto, o autor da carta faz uso da vantagem do significado duplo da palavra grega d ia th e k ê . Tendo entendido tal palavra com o sentido de “aliança”, agora o autor muda para o outro sentido, de testam ento. Paulo fez o mesmo em Gálatas 3:15-17, ainda que aqui a discussão seja um pouco diferente. NIV e ECA expressam a linguagem concisa do original com clareza e eficiência. O argumento é transparente: o testamento de uma pessoa não é válido enquanto não ocorrer a morte do testador. Pois assim como é necessário que haja a morte do testador para que seu testamento entre em vigor, assim também no caso de uma “aliança” é necessário que haja morte, para que ela seja válida. Assim é que a prim eira (NIV e ECA corretamente acrescentam a palavra aliança) foi inaugurada com o sangue de uma vítima sacrificial. Os três próximos versículos demonstram este ponto com algumas minúcias.

9:19-21 / O autor da carta primeiramente mostra a íntima conexão existente entre a atribuição da lei por Moisés, e a instauração real da aliança mediante a aspersão do sangue. Parece que a cerimônia descrita pelo autor da carta é aquela mencionada em Êxodo 24:3-8, ainda que vários itens da passagem que estamos estudando não se encontrem ali, a saber, água, lã purpú rea e hissopo (NIV acrescenta ramos de). Outras diferenças entre nossa passagem e Êxodo 24 incluem a falta da menção da aspersão do próprio livro e as referências a sangue dos bezerros. Se o autor da carta estiver usando uma fonte especial que já não está mais à nossa disposição, deve estar reunindo textos de partes diferentes do Antigo Testamento (e.g., Nm 19:18-19; Êx 12:22; Lv 8:15, 19; 14:4). Um argumento que favorece esta última sugestão é a associação de Êxodo 24 com Levítico 19 na leitura bíblica na sinagoga. Em Números 19:18 também encontramos referências à aspersão do sangue na tenda e em seu mobiliário; como na passagem que estamos estudando, lemos que o sacerdote aspergiu com sangue o tabernáculo e todos os vasos do m inistério sagrado. Mas em Números 19:18, embora se use o hissopo, a aspersão é feita com água em vez de sangue.

Seja como for, o ponto central de tudo isto se tom a claro: o sacrifício de animais e a aspersão ritualística de alguns objetos especiais com sangue, eram elementos importantíssimos no estabelecimento da aliança entre Deus e Israel. Isto se fez explícito mediante a citação de Êxodo 24:8 no v. 20. O sangue da aliança (cf. Mt 26:28) na verdade serve numa função

(Hebreus 9:15-22) 167

confirmadora mediante a qual ambas as partes se obrigam a ser fiéis (o que explica o fato de NIV ter acrescentado o verbo “guardar”) às ordenanças da aliança. A parte que fosse infiel estaria sujeita ao mesmo destino do animal sacrificado. Assim, o sangue da aliança confirmava a realidade desse pacto, e enfatizava a importância da fidelidade ao Senhor que o celebrara com seu povo. Embora seja verdade que no Antigo Testamento havia a exigência de derramamento de sangue para as purificações cerimo­niais, permitiam-se algumas exceções, sendo isto, talvez, que o autor da carta tem em mente. Assim, por exemplo, as pessoas que não tinham meios pecuniários de fazer sacrifícios de animais, nem mesmo de pombas ou rolas, podiam oferecer flor de farinha (Lv 5:11-13). A importância central do sangue para o perdão de pecados, no entanto, é enfatizada em Levítico 17:11: “A vida da carne está no sangue, pelo que vo-lo tenho dado para fazer expiação pelas vossas vidas sobre o altar; é o sangue que faz expiação pela vida.” Provavelmente é esta perspectiva que permite ao autor da carta escrever que sem derram am ento de sangue não há remissão. E neces­sário sangue para a ratificação de uma aliança, em particular no caso de uma nova aliança com sua promessa de perdão definitivo de pecados (cf. 9:15, 26; 10:18).

Notas Adicionais # / 99:15 / Quanto a nova aliança, veja-se a nota sobre 8:8. A mesma

expressão, mediador de uma nova aliança, ocorre de novo em 12:24 (onde, no entanto, a palavra “nova” é neos em vez de kainos). A palavra mediador já foi utilizada em 8:6 (“mediador de superior aliança”). Em outra passagem, essa palavra é usada pela segunda (e última) vez, em 1 Timóteo 2:5, em que não se menciona a nova aliança: “Há. . um só Mediador entre Deus e os homens, Cnsto Jesus, homem.” Quanto ao significado expiador da morte de Cristo, veja-se também 2:9, 14-15. Remissão dos pecados é tradução da palavra grega apolytrosis. Esta é a única ocorrência dessa palavra com referência à “remissão” ou “redenção” da pessoa escravizada ao pecado, em Hebreus (quanto a paralelismos desse uso, veja-se Rm 3:24; E f 1:7; Cl 1:14), mas a palavra cognata ly trõsis ocorre em 9:12 (veja-se a nota ali). A palavra traduzida por pecados (parabasis) encontra-se apenas em um único outro lugar em Hebreus (2:2), onde a palavra se refere a pecados cometidos sob a dispensação de Moisés, pelos quais o pecador era punido. Só em Hebreus há referência à aliança mosaica como sendo a primeira aliança (veja-se a nota

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sobre 8:7). E de surpreender que a primeira aliança jamais é chamada de “antiga ou velha aliança,” como ocorre em 2 Coríntios 3:14, ainda que tal antigüidade ou velhice fique implícita na referência à “nova aliança” (mas cf. 8:13). O efeito retroativo da morte de Cristo, mediante a qual as pessoas da antiga dispensação também recebem a redenção, também estaria mencionado em Romanos 3:25 (veja-se RSV). Os [que são] chamados é referência a cristãos que ouviram a convocação e reagiram em fé e obediência (veja-se a nota sobre 3:1). As palavras a promessa da herança eterna fazem-nos lembrar da aplicação cristã de Paulo do conceito da herança, em Romanos 8:17 “Se nós somos filhos, logo somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo.” Quanto à importância daquilo que Deus havia prometido (a promessa da herança) em Hebreus, veja-se a nota sobre 6:12. A palavra herança (kleronomia) ocorre apenas aqui e em 11:8, em Hebreus. A palavra “herdeiro,” no entanto, e o verbo “herdar” também se encontram várias vezes (1:14; 6:17). Veja-se a nota sobre 1:14.

9:16-18/ Alguns comentaristas, de modo mais notável Westcott e Nairne, têm argumentado que a palavra diatheke deve ser entendida nesta carta como tendo o sentido de “aliança,” inclusive na presente passagem. Veja-se também J J Hughes, “Hebrews ix 15ff. and Galatians íii 15ff. A Study in Covenant Practice and Procedure,” — Hebreus 9:15ss. e Gálatas 3:15ss. Um Estudo sobre a Práticae o Procedimento Quanto à Aliança — N o v T ll ( 1979), pp. 27- 96. Esta hipótese considera a morte a que o v 16 faz referência, como sendo a morte de um animal sacrificial, em vez de morte da pessoa que faz o testamento (testador). Entende-se que este '‘morreu” apenas num sentido simbólico, sendo esta a “base” sobre a qual repousa, ou “prova” de sua existência efetiva. Em vista, porém, de o texto interpretado normalmente no v. 17 exigir a morte (aparentemente morte literal, e não simbólica), da pessoa que íezadiathéke, e em vistadediatheke significar “testamento”, a permissão de uma mudança no sentido da palavra nos w . 16-17 faz muito melhor sentido.O fato de o texto do v. 16 ser cuidadoso e exato, como linguagem legal, empregada no atestado de óbito do testador, da grande apoio a esta conclusão Assim é que a base do adjetivo verbal confirmado, é a palavra gregapherõ (lit., “ser trazido,” no sentido técnico de ser "registrado ” Veja-se K. VVeiss, TDNT, vol. 9,p. 58,eanotadeHughes,//í?/)m w,pp. 371-73), Ainda estamos, todavia, na presente passagem, envolvidos pelacircunstância inusitada segun­do a qual o testador, cuja morte dá validade ao testamento, também é o executor desse testamento — isto é, “o mediador de uma nova aliança.” A singularidade de Cristo e sua obra é de tal ordem que, sendo expressa nas categorias de al iança e de testamento, transcende as esti pulações e ordenanças comuns de ambos. A palavra diatilhemi, que NI V traduziu por “aquele que o

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fez,” (enquanto ECA prefere inserir: a morte do testador) é usada tanto no caso da elaboração de testamentos, como nos w . 16 e 17, e de alianças, como nas citações de Jeremias 31:33 em 8:10 e 10:16. Quanto a este ponto, veja-se J. Behm, TDNT, vol. 2, pp. 104-6, quanto à opinião segundo a qual não deve haver distinção entre “aliança” e “testamento” na passagem em estudo, veja- se K. M. Campbell, “Covenant or Testament? Hb. 9:16, 17 Reconsidered” — Aliança ou Testamento? Reconsideração de Hb 9:16, 17 — EQ (1972), pp. 107-11, G.D. Kilpatrick, “Diatheke in Hebrews,” ZNW (1977), pp. 263-65. A palavra grega enkainizo é verbo que só se encontra aqui e em 10:20, em todo0 Novo Testamento, e que NIV traduziu por “entrou em vigor em”; ECA traz consagrada (v. 18). Na passagem em estudo, essa palavra significa “inaugu­rar” ou “dedicar,” no sentido de consagração. Veja-se J Behm, TDNT, vol. 3, pp. 453s.

9:19-21 / Muitos manuscritos gregos incluem as palavras “e bodes,” depois de bezerros E diflci 1 dizer se estas palavras foram omitidas por algum copista, em alguma ocasião (acidentalmente ou, talvez, de propósito, afim de harmonizar o texto com Êx 24:5) ou se foram acrescentadas, talvez por imitação do v. 12. E provável que tais palavras fossem originais, mas permanece a possibilidade de o texto mais curto ter sido mais tarde expandido por algum copista. Por causa dessa incerteza, as Sociedades Bíblicas Unidas colocam essas palavras entre colchetes. Veja-se Metzger, TCGNT, pp. 668s. Água provavelmente é palavra que teria sido acrescentada ao sangue a fim de aumentar-lhe o volume e impedir a coagulação, mas esta água específica pode ser aquela a que se adicionavam as cinzas da novilha, usadas para a purifica­ção. de acordo com Números 19:17-18. A lã purpúrea aparentemente era usada afim de amarrar o hissopo a uma vara de cedro, como utensílio do rito purificador (cf. Lv 14:4-7, Nm 19:6). Na citação de Êxodo 24:8 (v. 20) o escritor afasta-se um pouco da LXX (que concorda com exatidão com o texto hebraico), substituindo este por “eis,” Deus por “o Senhor,” e empregando um verbo diferente, ordenou em vez de “fez convosco,” conforme a LXX. No Novo Testamento o sangue de Cristo derramado está explicitamente associ­ado à nova aliança (Lc 22:20; 1 Co 11:25, cf. Mt 26:28, Mc 14:24). A téontual da aspersão do sangue é mencionado com referência ao sangue de Cristo em1 Pedro 12 — mas isto, é claro, deve ser entendido de modo figurado, em vez de literalmente A semelhança do autor da carta, Josefo (Ant. [Antigüidades]3 206) refere-se à aspersão do tabernáculo e seus vasos do ministério sagrado. A expressão quase todas as coisas, segundo a lei poderia ser substituída por outra mais literal: “os vasos dos rituais sacrificiais.” Mais uma vez se emprega a palavra leitourgia (veja-se a nota sobre 8:6).

9:22 / Entre outras exceções possíveis na mente do autor da carta também

170 (Hebreus 9:15-22)

poderiam estar a purificação mediante água, o incenso e o fogo, dos quais temos exemplos no Antigo Testamento Todavia, estas exceções apenas comprovam a regra enfatizada neste versículo Estas palavras sem derrama­mento de sangue não há remissão pode ter sido um ditado popular; parece que essa era uma perspectiva doutrinária dos rabis Por trás de derram am ento de sangue está o substantivo grego haimatekchysia, que não aparece na LXX, e que se encontra só aqui, em todo o Novo Testamento E possível, mas não necessário, como muitos comentaristas afirmam, que o autor da carta tenha criado esse termo

20. Cristo e Sua Obra: a Solução Final do Pecado (Hebreus 9 :2 3 -28 )

Esta seção resume o debate das seções anteriores de forma sucinta, dando-lhe um clímax. A repetição dos principais pontos é proposital (compare-se o v. 24 com o v. 11, e os w . 25-26 com o v. 12) e indica sua tremenda importância para o autor da carta. Estamos no coração da carta aos Hebreus. A ênfase está no que Cristo já fez de uma vez por todas, em vez de no que falta fazer. No entanto, o autor pode confirmar a segunda vinda de Cristo como sendo o evento que fará culminar a salvação experimentada por todos quantos receberam o evangelho.

9:23-24 / Foi necessário que as figuras das coisas que estão no céu se purificassem com tais sacrifícios (lit., “por estas coisas”), a saber, os ritos descritos na seção anterior (vv. 19-22; cf. v. 13). Foi essa a vontade de Deus para a dispensação mosaica. E foi intenção de Deus que os sacrifícios levíticos simbolizassem o sacrifício de Cristo. Temos necessidade, de fato, das coisas que estão no céu. a realidade última em que a expiação final, completa, se executa, com sacrifícios superiores a estes. O plural, aqui, sacrifícios, decorre do contraste genérico com os sacrifícios da antiga aliança. Mas a partir da passagem em questão, bem como de muitas outras, ficamos sabendo que o autor da carta poderia ter usado o singular, “sacrifício.” Trata-se daquele sacrifício cuja natureza é “de-uma-vez-por- todas” feito por Cristo, a contrapartida da nova aliança dos sacrifícios da antiga aliança. Cristo é a realidade para a qual as figuras do Antigo Testamento apontavam. Sua obra sacrificial foi apresentada, digamo-lo assim, no mesmo céu, e ali prossegue o Senhor seu ministério sacerdotal peran te a face de Deus (cf. 6:20; 7:25; Rm 8:34). É isto que significa a expressão segundo a qual Cristo não entrou em santuário feito por mãos (lit ). O santuário humano não passava de figura [antítipo] do verdadeiro (lit., “das coisas verdadeiras”). Mas a realidade antecipada chegou em Cristo.

9:25-26 / Nem também entrou [no céu] de NIV e ECA é expressão

172 (Hebreus 9:23-28)

acrescentada ao original para maior clareza (cf. v. 24). Por sua própria natureza, a obra do sumo sacerdote envolvia o sacrifício que se repetia anualmente, e sua entrada no Santo dos Santos, para fazer expiação (NIV e ECA reconhecem esse lugar como o Santo dos Santos, e não o LugarSanto). No Dia da Expiação, o sumo sacerdote cumpria suas obrigações usando sangue alheio (lit., “de outro”). Mas no ato supremo da expiação, Jesus tomou seu próprio sangue, não o alheio, “de outro,” pelo que é impossível que ele repita o ato expiatório. Isto exigiria que ele morresse continuamente; e alguém poderia afirmar que isto seria desde a fundação do mundo, visto que a expiação é necessária desde o dia em que o pecado penetrou no mundo. Mas o cerne do cristianismo, sua principal base, é que na era escatológicajá inaugurada, na consumação dos séculos (Barclay: "na consumação da história”), Cnsto uma vez por todas se manifestou para a remoção final do pecado pelo sacrifício de si mesmo E precisamen­te aqui que o contraste entre a obra de sumo sacerdote de C nsto e a do levita se revela espantoso e revelador em grau máximo E importante que notemos a conexão íntima existente entre o carater perpetuo, eterno, do sacrifício de C nsto e o fato de a obra sacrificial de Cristo depender de seu próprio sangue (cf. 7:27; 9:12). Desde que o pecado foi definitivamente cancelado, realidade ocom da em Cnsto. a historia atingiu seu ponto de retomo (cf. 1:2, 1 Co 10:11).

9:27-28 / O autor da carta delineia aqui um paralelo entre a expenéncia dos homens (i.e.. da humanidade) e a de Cnsto. Em ambos os exemplos, a morte só pode ocorrer uma vez. mas não é o fim da históna Depois da morte os seres humanos enfrentam o julgamento; Cnsto, porém, depois de haver m om do, p a ra levar os pecados de muitos, ap arecerá segunda vez para livrar seu povo do julgamento. O julgamento é ameaça que todos enfrentamos, mas os que dependem da obra expiatória de Cnsto estão livres do tnbunal divino, resultando daí a comunhão plena, eterna, aos que o esperam para a salvação (cf. Fp 3:20; 2 Tm 4:8). Assim, em harmonia com a finalidade do sacnficio de Cristo, o propósito da segunda vinda do Senhor não se relaciona ao problema do pecado, mas à consumação da era escatologica que se iniciou com seu primeiro advento. A possibilidade da salvação escatológica depende totalmente da realidade da expiação do pecado realizada por Cristo. Por isso, Cristo, oferecendo-se uma só vez, para levar os pecados de muitos, foi sacnfícado por nós. Esta cláusula

(Hebreus 9:23-28) 173

provavelmente constitui alusão proposital a Isaias 53:12, da qual deriva a palavra muitos (veja-se a nota). Cristo foi oferecido uma vez; essa obra sacrificial expiatória foi terminada, de modo que sua obra futura envolve tão somente a salvação e vindicação de seu povo.

Notas Adicionais # 209:23-24 / A palavra grega que se traduziu por figuras (hypodeigmata)

ocorre de modo semelhante em 8 5 (veja-se a nota sobre essa passagem). No entanto, não e essa a palavra grega que se traduziu por figura, no v. 24, aqui a palavra é outra: antitypos (que ocorre no resto do Novo Testamento apenas em 1 Pd 3:21) “Antitipo” aqui se refere a algo que corresponde ao original, à semelhança de um carimbo que deixa uma impressão no papel, ou a um molde que se reproduz em cópias exatas Portanto, “antitipo” faz contraste com “coisas verdadeiras ” Em outras passagens (como 1 Pd 3:21) o oposto é o caso, a saber, o “antitipo” é a realidade para a qual aponta o “tipo.” Coisas celestiais é expressão do autor da carta, que em grego é epouranios (veja-se a nota sobre 3.1) De novo, as “coisas” mencionadas aqui não devem ser tomadas literalmente, mas como forma de o autor falar de realidades espiritu­ais (Veja-se a discussão sobre 8:2. 5) Por esta razão, “coisas celestiais” aqui é sinônimo de “coisas verdadeiras” (cf 8 2) A descrição do santuário terrestre como sendo feito por mãos faz contraste proposital com a descrição do santuário celeste, que não é “feito por mãos,” nov. 11 O verbo “purificar” ou “ lavar” (kalhanzõ) aplica-se tanto à consciência (em 9 14 e 10:2) como à cerimônia de purificação (como em 9 22 e aqui) Veja-se F Hauck, TDNT, vol 3, pp 423-31 Mas será que as figuras das coisas que estão no céu precisam ser purificadas0 Digamo-lo de novo: não há necessidade de tomar isto ao pe da letra O autor da carta está traçando um contraste entre o antigo e o novo, que envolve o uso de linguagem paralela para coisas que são semelhantes, não, porém, equivalentes A questão, na passagem que estuda­mos, é que assim como os sacrifícios eram necessários no contexto da antiga aliança (as figuras), assim tambem a realidade da nova aliança (“as próprias coisas celestiais” verdadeiras) exige um sacrifício superior — na verdade, definitivo. E foi isso mesmo que Cristo realizou por nós. O verbo grego equivalente a comparecer (emphanizo) ocorre em Hebreus somente aqui e em 1114. Quanto àquestão do contexto desta passagem e 8:5, veja-se L. D. Hurst, “How ‘Platonic’ areHebrews viii 5 e ix.23s.?” — Até Que Ponto Hebreus 8:5 e 9:23s São Platônicos9 — JTS 34 (1983), pp 156-68.

9:25-26 / Visto que é no Santo dos Santos que o sumo sacerdote entrava uma vez por ano a fim de fazer expiação pelos pecados do povo, NTV e ECA

174 (Hebreus 9:23-28)

estão corretas em especificar no Santo dos Santos, embora a palavra grega Ziag/aseja am esm ausadano versículo anterior, que NI V e ECA traduzem por santuário. KJV, ASVeRSV mantêm a tradução “o Lugar Santo.” O emprego do presente do indicativo (“entra”, NIV) em vez do pretérito entrou (ECA), poderia refletir a existência do templo e seu culto cerimonial, à época em que o autor redigiu a carta (mas veja-se a nota sobre 9:6-7) O verbo “oferecer” (pruspiicro) e reiteradamente empregado pelo autor de Hebreus. Veja-se a nota sobre 5 1 Quanto a sangue, veja-se a nota sobre 9.7. A palavra grega correspondente a “alheio” ocorre em Hebreus mais duas vezes, em 11 9, 34, onde apresenta a conotação de “estranho.” O mesmo contraste entre o caráter uma vez por todas da obra sacerdotal de Cristo e os sacrifícios repetidos (muitas vezes ... de ano em ano) do sacerdócio levitico encontra-se em10 11 s (cf 7 27) A palavra padecer (paschõ) aqui, como em 13:12, deve ser entendida no sentido de “morrer,” como o indica com clareza o contexto Cristo poderia ter padecido repetidamente, porém, jamais teria morrido varias vezes (todos morrem apenas “uma vez." v 27). Veja-se VV Michaelis, TDNT, vol 5. pp 916-19

A frase desde a fundação do mundo ocorre tambem em 4:3, sendo comum no NovoTestamento Deacordocom l Pedro 1 20, num contexto que se refere ao sangue remidor de Cristo, o Senhor “na verdade, foi conhecido ainda antes da fundação do mundo, mas manifesto nestes últimos tempos por amor de vós ” Veja-se F Hauck, TDNT, vol 3, pp 620s Quanto ao importantíssimo conceito de uma vez por todas, veja-se a nota sobre 7 27 (ct 9 Í2) Para aniquilar o pecado pode ter conotação de “anulação” ou “cancelamento” de pecado Athetesis é a mesma palavra usada em 7 18 (NIV traz "posto de lado”, ECA, “ab-rogado”) (Veja-se a nota sobre 7 18) A palavra para sacrifício (thysia) ocorre com frequência em Hebreus, para descrever o ritual sacrificial da antiga aliança, mas só aqui e em 10:12 é utilizada para o sacrifício de Cristo (cf 9:23). Veja-se J Swetnam, “Sacritice and Revelation in the Epistle to the Hebrews Observations and Surmises on Hebrews 9 ,26” — Sacrifício e Revelação na Carta aos Hebreus Observações e Conjecturas a respeito de Hebreus 9 26 — CBQ 30 (1968), pp 227-34.

9:27-28 / Quanto a está ordenado morrer, veja-se Gênesis 3:19 O substantivo “julgamento” (krisis) encontra-se apenas aqui e em 10:27, em Hebreus (o verbo encontra-se em 10:30 e 13 4;cf. 6:2), ainda que a idéia esteja frequentemente presente (e.g., 2:3,4:1,13). Veja-seW. Schneider, NIDNTT, vol 2, pp. 362-67. No entanto, encontramos as importantes palavras uma vez (hapax) e oferecendo-se (prospherõ, “em sacrifício”, NIB traz “sacnficou- se”) uma só vez. Quanto a “uma vez” veja-se o contexto imediato, w . 12,26, 27,28; 10 10; quanto a “oferecendo-se,” veja-se w . 14,25,28 (cf. 10:14). O

(Hebreus 9:23-28) 175

verbo que NIV e ECA traduzem por levar (anapherõ) também significa “carregar, suportar,” como ocorre com o verbo em Isaías 53:12. Cf. BAGD, p 63: “Ele carregou sobre si mesmo os pecados de muitos.” Noutra passagem muito parecida, 1 Pedro também faz uso da linguagem de Isaías: “Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1 Pd 2:24, cf. 3:18). M uitos explica-se pela linguagem usada em Isaías 53:12, devendo ser entendido, provavelmente, como o modo hebraico de falar em “todos.” Anteriormente nesta carta lemos que ele morreu “por todos” (2:9). Assim o “muitos” de Marcos 10 45 tambem deve ser entendido num sentido inclusivo, como referência a todos (vejam-se 2 Co 5 14s. e 1 Tm 2:6). Compare-se também o “muitos” de Romanos 5:15 e 19 com o “todos” de 5:18 Veja-se J Jeremias. TDNT, vol 6, pp 540-45 NIV traz “sem carregar pecados,” que é traduçào amplificada do grego choris hamartias, sem pecado, como diz ECA. A mesma expressão ocorre em 4:15, onde a referência é à impecabilidade de Cristo Aqui, porém, o sentido é diferente. Assim BAGD, p. 891: “sem nenhum relacionamento com o pecado, í.e., sem o propórito de fazer expiação pelo pecado ” Esperam (apekdechomai) ocorre apenas aqui em Hebreus. Quanto a salv ação (solena), veja-se a nota sobre 2:3 A idéiade aparecer pela segu n da vez, apos a realização total da expiação, na presença de Deus, faz-nos lembrar dos aparecimentos do sumo sacerdote, depois de ele haver cumprido sua tarefa no Santo dos Santos A multidão ficava bastante apreensiva, enquanto o sumo sacerdote estivesse longe das vistas do povo, mas sua alegria era grande quando ele reaparecia, isto é testemunhado com vibrante eloqüên­cia em fontes contemporâneas (e g., S iraque 50:5-10) Só mediante uma oferta aceitavel a salvação era assegurada

21. A Ineficácia da Lei (Hebreus 10:1-4)

A discussão dos dois capítulos precedentes é declarada de novo nesta seção (10:1-18), e traz o tema central da carta, a saber, a imperfeição da antiga ordem e a perfeição da nova além de uma conclusão. As únicas idéias novas nesta seção encontram-se nos w . 5-10. em que a tese do autor encontra apoio mais amplo para sua exegese do Salmos 40:6-8. O contexto imediato é nova declaração de pontos abordados anteriormente. O autor completa toda a seção central, a seguir, mediante nova citação de Jeremias 31:33-34. No entanto, em primeiro lugar, o autor da carta focaliza a natureza repetitiva dos sacrifícios levíticos, e emprega esse exemplo para reforçar sua argumentação, apontando para a inadequação intrínseca, que fica implícita na necessidade de repetições.

10:1 / Visto que a lei era apenas um estágio antecipatório dos bens futuros, não possuía em si mesma significado duradouro, ou final. Portanto, não passava de uma som bra (cf. 8:5) dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas (8:5; 9:23-24). Esta última frase NIV a troca por uma paráfrase: "das boas coisas que estão vindo — não as próprias realidades.” Visto que o autor enfatiza o cumprimento que já veio em Cnsto e antes se havia referido aos “bens já realizados” (9:11), o aspecto futuro na palavra futuros deve ser entendido a partir da perspectiva do Antigo Testamento (pelo que NEB diz: "as boas coisas que estavam por vir.” Sacrifícios que continuam ente se oferecem de ano em ano deve ser entendido como algo que se repete. De ano em ano entende-se que corresponde a "cada dia” em 7:27 (cf. 9:25). Pelos mesmos sacrifícios significa claramente o mesmo tipo de sacrifícios. O texto grego afirma com vigor a impossibilidade (lit., “é impossível”) que a lei aperfeiçoe os que se chegam a fim de oferecer sacrifícios. Os que se chegam refere-se aos crentes que participam dos ritos sacrificiais. O autor da carta já declarou que a lei nada aperfeiçoou (7:19). Aqui, como na carta toda, “perfeição” implica em atingir os propósitos salvíficos de Deus. Pela sua própria natureza, os sacrifícios da antiga aliança eram incapazes de trazer a salvação integral tencionada por Deus à humanidade. O cumprimento da

(Hebreus 10:1-4) 177

promessa de tal salvação dependia da Pessoa para quem esses sacrifícios apontavam de modo figurado.

10:2-3 / O autor da carta formula uma pergunta lógica: Não cessariam porventura os sacrifícios, se o povo fosse purificado de modo final, completo? A própria repetição dos sacrifícios não indica a inadequação deles? Uma vez “por todas” ecoa o caráter de integralidade, a natureza perfeita, completa, do sacrifício feito por Cristo, que o autor ensina reiteradamente por toda a carta. A idéia de tendo sido uma vez purifica­dos refere-se à remoção dos pecados da consciência (veja-se 9:9, 14). O que está em discussão aqui. contrastando com a purificação externa da antiga aliança, é a purificação intema. nova, que se fez possível no cumprimento realizado por Cristo. Onde isto ocorre deixa de existir a necessidade de sacrifícios (cf. 10:17-18). Na verdade, a insistência na continuidade dos sacrifícios de ano em ano (v. 1) é lembrete do problema que continua perturbando: a consciência de pecados.

10:4 / O autor da carta volta a um ponto de importância fundamental de sua argumentação, a base de suas assertivas nos dois versículos preceden­tes. As palavras porque é impossível. . são bem enfáticas: certo tipo de purificação pode ser alcançado mediante o sangue de animais (9 :13, 22), mas a purificação que significa remoção de pecados está longe do poder do sangue de animais. Só o sangue de Cristo é suficiente para realizar essa tarefa (9:14. 25-26).

Notas Adicionais#2110:1 / Quanto a sombra, veja-se a nota de 8:5 (cf Cl 2:17). Há dois

problemas textuais neste versículo O mais antigo manuscrito de Hebreus (P46) diz “e a imagem” em vez de “não a imagem real,” o que significa que está afirmando que a lei é (apenas) a “ imagem” das boas coisas que virão, ou bens futuros. Todavia, tanto a estrutura dessa sentença como o sentido da palavra “imagem” (sombra) eikon desmentem tal construção interpretativa. Eikon é manifestação da realidade (é palavra utilizada arespeito de Cristo em 2 Co 4:4 e Cl 1:15), e faz contraste com sombra, em vez de ser essencialmente seu sinônimo. Veja-se Metzger TCGNT, p. 669. A segunda variante envolve a expressão “é impossível” que alguns eruditos julgam referir-se a um elemento no plural (í.e., os sacrifícios). No entanto, do ponto de vista

178 (Hebreus 10:1-4)

gramatical a impossibilidade está na “lei,” pelo que é preferível a forma singular. A palavra grega traduzida por imagem exata das coisas é pragma. que ocorre noutras passagens de Hebreus em 6:18 e 11:1, apenas. Veja-se C. Maurer, TDNT, vol. 6, pp. 638s. Quanto a sacrifícios (thysia) e se oferecem ( li t , prosphero), veja-se a nota sobre 5 1 .0 texto grego traz eis to dienekes, que ECA traduz por continuamente, e NIV “sem fim”, quanto à tradução continuam ente veja-se B AGD, p 195 Os que se chegam (proserchonuu) de novo e expressão do jargão cerimonial Veja-se nota sobre 4 16 Quanto á importante palavra teleioõ, aperfeiçoar, veja-se a nota sobre 2:10

10 :2 -3 /A ' ‘consciência” do crente que adora a Deus esta freqüentemente na mente do autor da carta Veia-se a nota sobre 9 9 A palavra grega que se traduziu por os que prestam culto é laireuõ; tem conotação de pessoas que ministram no culto. Quanto à importância de uma vez [por todas] que aqui no grego e hapax, veja-se a nota sobre 7 27 O adjetivo purificados, no texto grego e verbo no pretento perfeito, sugerindo purificação realizada no passado, com resultados que alcançam o presente Quanto ao verbo aqui. kuihanzo. que tem um sentido cerimonial, cultual, veja-se a nota sobre 9 23 Por tras de recordação (ECA, NIV' preferiu “ lembrete ’) temos o substantivo grego anamnêsis, “lembrança”, palavra que ocorre apenas aqui em Hebreus O texto grego e um tanto ambíguo, não mencionando o que ou quem e lembrado, ou recordado, e implica em “gente” (em harmonia com a consciên­cia de pecado que se menciona no v 2)

10:4 / Nas Escrituras do Antigo Testamento já havia surdido uma tradição referente á ineficácia dos sacrifícios De fato. uma dessas passagens está prestesasermencionada(veja-seo v 6) Além deSalmos40 6. veja-se Salmos 51 16. 1 Samuel 15 22. e as passagens seguintes dos profetas Isaias 111, Oséias 6 6, Amós 5 21 -22, Miquéias 6 6-8 ( c f , também, o uso que Jesus fez dessa perspectiva em Mt 9 13, Mc 12 33) Assim, os leitores deveriam estar familiarizados com esta polémica, ainda que não com o modo de o autor da carta usá-la. Depois da queda de Jerusalem o judaísmo viu-se capaz de afirmar a realidade do perdão divino sem os sacrificios de animais, com base nesta polémica. Para o autor de Hebreus, no entanto, é o sangue de Cristo que toma obsoleto o sangue de animais, e explica a inadequação final desses sacrifícios. Quanto a frase sangue de touros e de bodes, veja-se 9 12, 13, 19

22. 0 Antigo e o Novo em Salmos 40:6-8 (Hebreus 10:5-10)

Nesta seção vamos encontrar outro brilhante exemplo de exegese do Antigo Testamento elaborada pelo autor de Hebreus. Como esse autor gosta tanto de fazer (cf. 2:6-9; 3:7— 4:10), primeiramente ele cita o texto do Antigo Testamento e, a seguir, apresenta um ‘midras’ ou comentário rápido sobre a passagem, com o qual dá apoio ao argumento que está elaborando. No caso em apreço, o argumento envolve o caráter transitório dos sacrifícios levíticos e o caráter permanente do que Cristo realizou. O autor encontrou um texto ideal para seus propósitos. Para ele, Cristo é a chave hermenêutica, ele expõe o sentido mais profundo do texto, que agora pode ser \isto de forma retrospectiva, de modo novo, pelo cumprimento que Cristo trouxe.

10:5-7 Ainda que não esteja explicitado no texto original, NIV está correta ao acrescentar C risto. Fica bem claro, a partir da citação e do que se segue, que o autor da carta entende que aqui Cnsto está falando a Deus. Ao e n tra r (lit., “vindo”) no mundo indica que da perspectiva do autor, é o pré-existente Cnsto quem fala mediante o salmista. A citação é de Salmos 40:6-8 e segue de perto a LXX. No entanto, uma diferença imponante entre a LXX e o texto hebraico do Salmos 40:6 está nas palavras da LXX corpo me p reparaste em vez de “minhas orelhas perfuraste” (lit.. “orelhas tens perfurado para mim" com o sentido de “ouvidos abriste para mim "). Aparentemente o tradutor de LXX entendeu que havia uma alusão à cnação de Adão nas palavras “ouvidos abriste para mim,” visto que ao formar um corpo usando barro é preciso esculpir as orelhas. Assim, ele traduziu a expressão do idioma hebraico para uma linguagem que poderia ser entendida mais facilmente no mundo helenístico: corpo me preparaste .

Holocaustos literalmente é “ofertas queimadas totais.” Aqui estou... para fazer, ó Deus, a tua vontade é declaração apropriada, à vista do fato de o Messias ser sempre descrito como “aquele que vem” (cf. as palavras iniciais do v. 5; Jo 6 :14; 11:27). No rolo do livro é tradução literal (cf. Ez 2:9, LXX).

180 (Hebreus 10:5-10)

O sentido da passagem de Salmos em seu próprio contexto histórico parece claro. Um israelita piedoso, talvez Davi ou um rei davidico, enfatiza que a Deus interessa a obediência, e não sacrifícios. Deus nos dá ouvidos para ouvir, e obedecer. Por isso, o salmista prossegue, dizendo: Aqui estou (no rolo do livro está escrito de mim), para fazer, ó Deus, a tua vontade (cf. Jr 31:33). De sua perspectiva cristocêntrica o autor entende que Cristo é a Pessoa que fala tais palavras. Além do conteúdo dessa passagem, o autor de Hebreus poderia ter considerado que esse salmo é messiânico, por causa das associações davídicas, e também por causa de certas frases, como por exemplo: “um novo cântico na minha boca" (v. 3), e "a tua fidelidade e a tua salvação” (v. 10; cf. v. 16). Na exegese que o autor da carta faz dessa passagem, nos versículos seguintes, toma-se claro que ela pode ser aplicada a Cristo e sua obra. Para o autor da carta. Cristo é o objetivo maximo das Escnturas do Antigo Testamento; o cumprimento que o Senhor traz é a justificação da interpretação cnstologica do Antigo Testamento.

10:8 / O comentário em formato de 'm idras' desse salmo inicia-se com nova citação das sentenças de abertura ( Depois de dizer, como acima; l i t . 'antes"), resumindo-as num período só e omitindo a frase referente ao corpo me p reparaste . O autor da carta acrescenta um lembrete: estes sacrifícios foram ordenados por Deus. Tais sacrifícios se oferecem segun­do a lei. No entanto, não é isso que Deus realmente exige. O próprio Antigo Testamento reconhece, assim, a impropriedade dos sacrifícios levíticos, ainda que não no sentido proposto pelo autor de Hebreus, a despeito do fato de ali estar a legislação mosaica, que requer tais sacrifícios.

10:9-10 / Contrastando com os sacrifícios de animais encontramos a obediência de Cristo. O autor cita de novo o texto mencionado antes: Então acrescentou: Aqui estou, para fazer, ó Deus, a tua vontade. Que a obediência de Cristo à vontade de Deus (cf. Mt 26:39,42; Jo 6:38) implica em seu próprio sacrifício já foi estabelecido pelo autor da carta (a declaração mais recente está em 9:28). Afirma-se de novo no v. 10, e apenas ficou implícito no v. 9. T ira o prim eiro p ara estabelecer o segundo: esta referência à abolição do primeiro a fim de estabelecer o segundo nos faz lembrar de 7:12, 18-19,e8:7, 13, onde está escrito que os antigos mandamentos e a antiga aliança devem ceder lugar para a nova

(Hebreus 10:5-10) 181

dispensação. Aqui, os sacrifícios de animais devem dar lugar ao sacrifício de Cristo, em obediência à vontade de Deus. A vontade de Deus mencio­nada na citação original (e também em sua repetição no v. 9) identifica-se no início do v. 10 como sendo aquela pela qual temos sido santificados.

Na expressão nessa vontade, a última palavra é a primeira das três alusões deliberadas (no v. 10) em forma de ‘midras’ ao salmo 40, citado nos vv. 5-7. A segunda palavra tirada da citação original é sacrifício. O sacrifício aceitável a Deus, pelo fato de cumprir sua vontade, é do corpo de Jesus Cristo. E na palavra corpo que temos a terceira alusão à citação original. Esta referência ao corpo de .Jesus C risto faz-nos lembrar a ênfase no cap 2 a “carne e sangue,” que o Senhor compartilhou, para que “pudesse provar a morte por todos” e que “pela morte pudesse destruir... o diabo” (2:9, 14). De acordo com o autor da carta, a humanidade de Jesus teve o propósito da morte expiatória, o sacrifício de seu corpo. Foi isso que aconteceu uma vez por todas. Esse sacrifício é a contrapartida do catálogo rejeitados por Salmos 40:6-7, dos sacrifícios de animais, cujo objetivo C nsto cumpriu cabalmente. Foi Jesus que veio a fim de fazer a vontade de Deus. e isto em harmonia com o ensino das Escrituras: “no rolo do livro está escrito de mim." O Antigo Testamento todo de um modo ou de outro aponta (e prepara) para o cumprimento dos propósitos salvíficos de Deus, efetuados em Cnsto.

Notas Adicionais # T l10:5-7, O conteúdo do salmo citado, e devidamente elucidado pelo autor

da carta, mostra como se pode considerá-lo apropriado para referir-se “àquele que vem ao mundo” para fazer a vontade de Deus. A respeito de “aquele que vem” como título messiânico, a que talvez a presente passagem esteja aludindo, veja-se J Schneider, TDNT, vol 2, p 670 Alguns eruditos têm sugerido que a palavra corpo (soma) na LXX ter-se-ia originado de um erro de leitura do escriba, que leu mal a palavra “orelhas,” no grego. (Além da queda do sigma inicial, talvez por causa da palavra anterior, que termina com essa mesma letra, teria havido confusão com as letras TI, tomadas por M, o que daria oíia em vez de soma) Respeitada esta conjectura interessante, no entanto, é mais provável que corpo me preparaste seja nova expressão deliberada do original hebraico. Visto que surgiram uns poucos documentos posteriores do texto da LXX, contendo a palavra correspondente a “orelhas,”

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em vez de corpo (como aparece na maioria dos documentos), a explicação provável seria uma tentativa de harmonizar esse texto com o hebraico. (Em tudo o mais a LXX segue com fidelidade o texto hebraico) A citação que o autor da cana faz da LXX, tambem e exata. Ele substitui “tu não tens pedido” (aneõ) por nem neles te deleitaste (eudokeo, cf SI 51 16), o que aguça mais ainda o contraste com a alegria de fazer a vontade de Deus Ele omite também o verbo que aparece na LXX “eu me deleito” em fazer a tua vontade

O salmista usa quatro palavras ou frases diferentes para referir-se a sacrifícios Parece que elas objetivam mostrar de modo abrangente os varios tipos de sacrifícios leviticos Assim, a palavra thvsia, sacrifícios, conquanto descreva sacrifícios de modo geral (como ocorre em 5 1, 7:27, 8:3; 9 9, etc ), aqui e provavelmente em todo o Antigo Testamento significa oferta pacífica Veja-se C Brown, NIDNTT, vol 3,pp 416-38 Prosphora, ofertas, palavra que também pode ter sentido generico, no sistema levitico significa de modo especifico “oferta de cereal, ou de al imento.” Esta palavra e usada em Hebreus apenas neste capitulo (vv 8,10,14,18) Veja-se K. Weiss, TDNT, vol 9, pp 65-o8 A terceira palavra significa explicitamente “holocaustos, ou ofertas queimadas integrais” (holokauioma) Em Hebreus essa palavra ocorre de novo apenas na nova citação das palavras do salmo no v 8 (noutra passagem do Novo Testamento, apenas em Mc 12 33) Oblações pelo pecado (pen hamariias, l i t , “[aqueles] concernentes aos pecados,” é expressão usual em LXX A mesma frase ocorre em Hebreus 5 3. vv 8, 18 e 26 no presente capitulo, e em 13.11 (veja-se, também, Rm 8 3) Assim como o salmista tentou, mediante seu vocabulário, contrastar a importância da obediência com a ordem inteira de sacrifícios leviticos. assim também o autor da carta deve ter- se sentido feliz em usar esta passagem para pôr em contraste todo o catalogo desses sacrifícios (observe a repetição no v 8) com a obediência de Cristo e seu sacrifício final, definitivo, perfeito Quanto a terminologia do sacrifício, veja-se C Brown, NIDNTT. vol 3, pp 418-38

10:8 / Quanto às categorias de sacrifícios, veja-se a nota anterior A expressão os quais se oferecem segundo a lei ( l i t , “de acordo com a lei”) ocorre em Hebreus tambem em 7 5, 16, 8 4; 9:19, 22. Na maior parte desses exemplos, como aqui, existe a consciência de que o que a lei estipulava tinha apenas um caráter temporário Agora que Cristo trouxe o cumprimento dessas promessas, a lei deixa de vigorar, pois perdeu a força. Isto é declarado enérgica e explicitamente no v. 9

10:9-10 / O verbo que se traduziu por tira é forte (anaireo), tendo o significado de “abolir” ou “destruir” (em Hebreus esse verbo ocorre apenas aqui) Veja-se BAGD, pág 54. Essa linguagem forte harmoniza-se com a perspectiva do autor a respeito da lei mosaica, dada a inauguração da nova

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aliança em Cristo O ponto central da presente passagem e de outras que são semelhantes a ela é que o próprio Antigo Testamento havia falado que o sacrifício de animais não era assunto de maior importância. Deus tinha em mente algo muito mais importante do que o sacrifício de animais, e exigia esse algo mais, a saber, o sacrifício obediente de Cristo. Assim, ao mesmo tempo em que o Senhor ab-roga um sacrifício, “estabelece” (histêmi) o outro (termo usado com este sentido só aqui em Hebreus). Veja-se BAGD, p. 382. A palavra “vontade” (thelema) tirada da citação original ocorre apenas na presente passagem com referência a obediência de Cristo. Encontra-se, contudo, em 10 36 e 13:21, em que os cristãos são chamados para obedecer à vontade de Deus Temos sido santificados é tradução do verbo hagiazo, lit. “santificar” Veja-se a nota sobre 2:11 O fato de virmos a ser purificados do pecado demonstra-se de novo estar na dependência do sacrifício de Cristo, i e., pela oferta do corpo de Jesus Cristo. A palavra corpo (soma) só e utilizada na presente passagem em conexão com o sacrifício de Cristo (mas c f 1 Pd 2:24 e a implicação de 13:1 ls ). A oferta de seu corpo é apenas outra forma de referirmo-nos ao sacrifício Cf Ef 5 2 "Como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por vós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave.” Quanto a “corpo,” veja-se S. Wibbing, NIDNTT, vol. 1, pp 232-38 Uma questão final a ser salientada nesta passagem em estudo, é a colocação da palavra grega ephapax, que significa uma vez por todas, no final da sentença. Isto acrescenta mais força ao fato de o sacrifício de Cristo ser final, conclusivo Quanto a ephapax, veja-se a nota sobre 7 27

23. 4 Oferto Perfeita e o Cumprimento de Jeremias 31:31-34 (Hebreus 10 :11 -18 )

Chegamos, agora, à seção final, onde há um clímax, na discussão central da carta. No entanto, uma vez mais o autor da carta afirma o caráter definitivo do sacrifício de Cnsto e. daí, o fato de esse sacrifício ser final. Nos estágios primários da discussão central, Jeremias 31:31 -34 foi citado (em 8:8-12). Agora o debate chega à conclusão e o autor da carta volta a essa passagem, citando de novo certas palavras dos versículos 33 e34. Usa, além disso, um texto que lhe é favorito. Salmos 110:1, nesta passagem. Na última sentença fica salientado que se a promessa de Jeremias foi cumpri­da. o sistema sacrificial necessariamente chegou ao fim.

10:11 Salienta-se de novo o caráter repetitivo dos deveres sacerdotais dos levitas (cf. 7;27; 9:25; 10.1,3). Todo sacerdote se apresenta dia após dia (cf. Ex 29:38), m inistrando e oferecendo m uitas vezes os mesmos sacrifícios. Estas palavras sublinham o caráter interminável da tarefa executada pelos sacerdotes, de modo especial o versículo que salienta que Cristo, ao terminar w/a tarefa expiatória, "assentou-se” a direita de Deus. A ironia desta situação dos sacerdotes levíticos é que esses sacrifícios repetidos, pela sua própria natureza, nunca podem tira r pecados (cf. v.1 e 9:9). Tais sacrifícios, portanto, estão condenados em si mesmos.

1 0 :1 2 -1 3 /0 autor estabelece, agora, o esperado contraste que envolve o sacrifício único e suficiente de Cnsto (cf. 7:27; 9 :12, 26, 28; 10:10). Um único sacrifício pelos pecados oferecido por este sacerdote é descrito pela expressão p ara sempre. Salmos 110:1. um dos principais textos do Antigo Testamento usados neste livro, é citado de novo (cf. 1:3, 13; 8:1; 12:2). Nesta ocasião, o autor da carta divide a citação a fim de indicar com maior eficácia o que já foi realizado e o que falta realizar. E verdade indubitável que Cnsto, tendo cumpndo sua missão sacerdotal na terra, reina como verdadeiro Rei, à destra do Pai (cf. 1 Co 15:25). A segunda parte da citação (v. 13) inicia-se com daí por diante. Resta a vindicação final de Cnsto, quando seus inimigos ficarão por fim sujeitos a ele (cf. 9:28). Esta doutrina

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básica se tomará um dos fundamentos da exortação que aparece nas seções seguintes da carta (cf. w . 25, 27, 35, 39; 12:28s.). No entanto, o ponto central aqui é que a obra expiatória de Cristo se completou, o que os versículos seguintes enfatizarão.

10:14/ A eficácia do sacrifício singular de Cristo é de tal ordem, que ele com uma só oferta aperfeiçoou para sem pre os que estão sendo santificados. Como acontece por toda a carta, a palavra aperfe içoar não deve ser entendida como dar perfeição moral, mas prover o cumprimento do propósito salvífico de Deus. Chegar até essa oferta única (um a só oferta, cf. v. 12) e experimentar seus benefícios equivale a atingir o objetivo antecipado desde o inicio da atividade graciosa de Deus no meio de seu povo. Visto que este sacrifício possui um caráter teleológico, os que estão sendo santificados por esse sacrifício conseguiram chegar (cf. a purificação da consciência em 9:14) à integralidade da salvação, o telos prometido e simbolizado milênios antes por tudo quanto o precedeu na antiga aliança. E por esta razão que os resultados deste sacrifício perma­necem para sem pre (cf. 7:25; 9:12, "eterna redenção”), em contraste com os efeitos temporários dos sacrifícios levíticos.

10:15-17 / Voltando, agora, a um dos textos chaves (Jr 31:33-34), o autor assevera que o que ele vem discutindo e defendendo está de acordo exatamente com a profecia de Jeremias a respeito da nova aliança. O Espírito Santo e considerado a última inspiração das palavras do profeta Jeremias; assim e que o Espirito dá testemunho mediante aquilo que ele escreveu (cf. 3:” ; 9:8; 8:8). A citação é feita em duas partes: a primeira prediz a realidade da nova aliança de forma positiva, enquanto a segunda (v 17) refere-se à eliminação de pecados (com palavras negativas fortíssimas; lit.. “jamais me lembrarei dos seus pecados e das suas miqüidades”). O efeito é que, por um lado, sublinha-se a promessa da nova aliança com suas dimensões internas e, por outro lado, aponta-se a íntima conexão existente entre esta promessa e a experiência do novo nível de perdão. É isto que surgiu mediante o sacrifício de Cristo.

10:18 / O ra (NIV prefere “e”), se tais promessas chegam a tomar-se realidade, só se admite uma única conclusão possível a respeito do velho sistema de sacrifícios. É por isso que o autor da carta assevera como ponto

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crucial que não há mais oferta pelo pecado, isto é, os sacrifícios expiatórios deixam de ser necessários. Chegou o cumprimento da promes­sa de Jeremias. O sacnfício de Cristo é a resposta final, definitiva e completa para o problema universal do pecado humano.

Notas Adicionais # 2310:11 / Alguns documentos importantes trazem “sumo sacerdote,” em vez

de sacerdote, provavelmente por causada influenciado versículo semelhante de 7 27 A expressão dia após dia (kath'hemeran) encontra-se em 7 27 (cf8 13). Sublinhando a frase “ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios” temos o verbo leitourgeo, que se encontra apenas aqui em Hebreus (embora se encontrem substantivos, seus cognatos, em 8:2,6 e9 2 1) Veja-se a nota sobre 8 6 0 pretérito perfeito de “apresentar-se” e o panicípto presente “ministrando e oferecendo” podem apontar ainda para a existência do templo e seu rito sacrificial, à época em que a carta aos Hebreus foi escrita Quanto ao emprego contrastante de muitas vezes (pollakis), veja-se 9 25s Quanto a mesmos sacrificios (thysia) e ofertas (prosphero, implícito na forma verbal “oferecendo"), veja-seanotasobre5 I Overbotraduzidoportirar(/;c'r/a//-ew) ocorre apenas aqui em Hebreus (em outra passagem do Novo Testamento encontra-se apenas em 2 Co 3 16)

10:12-13 / O emprego do participio aoristo (“havendo oferecido” ) e signi­ficativo, porque indica uma ação que fora realizada antes de outra ação a que se relere o verbo principal assentou-se à destra de Deus. A ênfase é clara a obra sacrificial de Cnsto, seu único sacrifício pelos pecados, foi suficiente e completo Que o Senhor terminou de vez sua obra é fato enfatizado pela menção de haver ele assentado adestra de Deus A referência ao único sacrifício {thysia, veja-se a nota sobre 7 27) tem paralelo em uma só oferta (lit ) no v 14 No texto grego a frase traduzida por para sempre (eis lo dienekes) pode ser entendida como referência a oferta de Cnsto ou ao fato de ele assentar-se à destra de Deus A interpretação de NIV provavelmente está correta, visto harmonizar-se mais com o ponto de vista defendido pelo autor da carta noutra passagem (cf a mesma frase para sempre no v 14, com referência aos resultados do sacrifício de Cnsto). Quanto ao papel de Salmos 110:1 em Hebreus, veja-se a nota sobre 1:3. Espera que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés e um bom exemplo do “passivo divino” hebraico — um verbo na voz passiva em que Deus é o sujeito da ação (“Deus fará que seus inimigos sejam estrado dos seus pes”). Presume-se a realidade de uma vitória final integralmente cumprida, porque Deus é o agente que fará acontecer essas coisas.

10:14 / Quanto a oferta (prosphora), que NIV traduz por “sacrifício”, veja

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a nota sobre 10:5 Quanto ao verbo importante aperfeiçoou (te le io õ ), veja-se anotasobre2:10 Quanto asendo santificados (/lagrázõ), veja-se a nota sobre 2:11

10:15-17 / Quanto ao Espirito Santo como quem fala nas Escrituras do Antigo Testamento, veja-se a nota sobre 3:7. A primeira parte da citação é introduzida com primeiro diz (lit., “depois de dizer”), mas a segunda não apresenta nenhuma introdução, a não ser o conectivo e (kai) do v. 17, que teria essa função (NIV adiciona “em seguida ele acrescenta”). O autor da carta introduz pequenas mudanças no original que cita, neste texto de 8:10-11 Ele substitui com eles por “com a casa de Israel”, transpõe as cláusulas a respeito de entendimento e corações, e movimenta-se dai diretamente à promessa de perdão, utilizando duas palavras, pecados e iniqiiidades (esta última palavra, anomia, provavelmente foi grafada pelo autor da carta a respeito da analogia da palavra traduzida por pecados, adikia, em 8 12).

10:18 / Perdão de pecados no sentido profetizado por Jeremias significa que a oferta ou o sacrifício pelo pecado deixaram de ser necessários Quanto a oferta (prosphero), que NIV traduz “sacrifício,” veja-se a nota sobre 10:5 A palavra para “perdão” (aphesis) ocorre em Hebreus apenas aqui e em 9:22. Veja-se R Bultmann, TDNT, vol 1, pp 509-12

24. 0 Fundamento da Fidelidade (Hebreus 10:19-25)

Encerrada esta discussão teológica central, o autor da carta volta-se para algumas aplicações práticas das questões que debateu com tanta eficácia. Assim, como é verdade por toda a carta, o autor jamais se contenta com apresentar a teologia sem demonstrar sua importância prática aos leitores. De fato, ele manteve seus leitores judeus em mente durante toda a argumentação da seção precedente. Agora ele se dirige de novo à situação imediata dessas pessoas. Nesta seção, o autor reenfatiza algumas bases importantes de vanos capítulos precedentes, a respeito das quais lança uma exortação comovente a seus leitores — para que sejam fiéis. Seremos lembrados de novo nos w . 26-36 de que eles correm o perigo de abandonar a verdade do cristianismo. A firme convicção do autor é que se consegui­rem enxergar o verdadeiro significado e importância de Cristo e sua obra, se puderem aproveitar bem todos os recursos que ele lhes possibilitou, e assim souberem tirar vantagem de tudo quanto lhes foi oferecido, haverão de perseverar e receber a recompensa que Deus reservou para todos os seus filhos fiéis. Esta exortação tem uma extraordinaria semelhança com a de 4:14-16

10:19-21 / Nestes trés versículos temos o primeiro dos três principais verbos de exortação desta seção: cheguemo-nos (v. 22: cf. vv. 23, 24). Segundo a analise sintatica do texto grego, temos uma longa cláusula subordinada à oração principal, com que se inicia o v. 22. O autor da carta inicia sua exortação dingindo-se a seus leitores e chamando-os de irm ãos— (portanto , irmãos), como o fez em 3:1, 12 e o fará em 13:22. Partindo do conectivo lógico portanto , toma-se evidente que a base da exortação que se segue depende da totalidade da discussão precedente. Este debate demonstrou que o caminho para o Santo dos Santos foi aberto por um precursor (6:20), isto é, pelo sangue de Jesus (cf. 9:12, 14). Isto concede ousadia (ou “confiança”). Aquilo que havia sido um privilégio especial do sumo sacerdote, algo capaz de inspirar imenso temor respeitoso, um dia em cada ano — a entrada na presença real de Deus — agora é pnvilégio anunciado de cada membro da comunidade da fé (cf. Ef 2:18; 3:12). A linguagem literal original agora é espiritualizada e entendida como expe-

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riência cristã à disposição de todos, universalmente (cf. 1 Pd 2:5). A antiga situação do sacerdócio e dos sacrifícios levíticos indicava pela sua própria natureza que “o caminho do Santo dos Santos ainda não está descoberto” (9:8). Agora, porém, toma-se evidente um novo e vivo cam inho que ele nos consagrou, isto é, que Cristo abriu para nós (cf. Jo 14:6).

Obviamente tal caminho é novo, tanto em sua essência como nos seus efeitos. O adjetivo vivo provavelmente significa algo “verdadeiramente eficaz” ou “permanente,” contrastando com os ritos ineficazes, agora monos, do passado. Este novo caminho atravessa o véu (pelo véu) que dividia o Santo dos Santos do resto do Lugar Santo, ou santuário. Agora o autor encontra um simbolismo rico nessa referência ao véu, ao identificá- lo co m acarn ed eC ris to (lit.. N IV diz“corpo”). E provávelqueoau to rfaz alusão aqui à tradição sobre o rasgamento do véu em duas partes, no dia da crucificação de Jesus — tradição que se enraizou nos três evangelhos sinoticos. (Mc 15:38 e Vlt 27:51 especificam que o véu se rasgou de ponta a ponta, ou seja, foi um ato de Deus. não dos homens; cf. Lc 23:45). O véu rasgado simboliza a abertura do acesso direto à presença de Deus, acesso que se obteve pela morte sacrificial de Cristo na cruz. Assim, para o autor da carta, ainda que ele não o diga explicitamente, o rasgamento da "carne” de Cristo (talvez seja essa a razão por que o autor usa a palavra grega para came. em vez de a palavra para corpo) na crucificação, pode ter sido algo parecido com o rasgamento do véu do templo. Mediante sua morte, Cristo abriu o caminho para a presença de Deus. Pode-se dizer que temos um grande sacerdote (cf. 4:14). aquele que realizou o que nenhum outro sumo sacerdote (grande sacerdote é o sentido de “sumo sacerdote”) poderia realizar: preparar um caminho que todos pudessem trilhar. E todos quantos tomam esse caminho — todo o povo de Deus — são descritos como casa de Deus (veja-se 3:6). Os propósitos salvíficos de Deus acabaram sendo cumpridos em Cristo, o qual agora reina como rei e sacerdote sobre aqueles a quem redimiu.

1 0 :2 2 /0 autor da carta resumiu o que se fez mediante a obra de Cristo. Agora ele exorta seus leitores a tirar vantagem dessa obra. Sua primeira exortação é cheguemo-nos (NIV acrescenta “a Deus”). Trata-se da linguagem espiritualizada das cerimônias do templo, com o sentido agora de aproximar-se de Deus mediante a adoração e a oração. Isto se deve fazer com verdadeiro coração, em plena certeza de fé. E somos lembrados de

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que nossa aceitação (nós o sabemos pelos capítulos precedentes) depende inteiramente da obra sacerdotal de Cristo. Fomos purificados internamente (tendo o coração purificado [NIV diz: “espargido” ; cf. Ez 36:25, no contexto de referência à nova aliança), de tal maneira que deixamos de ter má consciência (cf. 9:9, 14) de que o ritual sacrificial antigo não pôde libertar-nos. Outra vez a linguagem da cerimônia é usada de modo deliberado a fim de mostrar como ela encontra seu cumprimento verdadei­ro na purificação intema trazida por Cristo O corpo lavado com agua limpa é referência as abluções judaicas (lavagens cerimoniais com vistas à purificação [e.g.. 6:2]), mas quase com certeza representa o batismo cristão, sinal externo da purificação verdadeira, interna, a que o autor acaba de refenr-se (cf. 1 Pd 3:21; Ef 5:26). Esse novo estado de purificação desfrutado pelos cnstãos. e o caminho aberto à presença de Deus, são o resultado do sacrifício de Cristo.

10:23 / A segunda exortação conclama os leitores para a fidelidade, pelo que o autor volta a uma de suas maiores preocupações, nessa carta: o pengo de seus leitores se afastarem da verdade (cf. 2 :1 -3 :3 :12-14:4:1;6:4- 6; 10:26-31). O autor. pois. apropriadamente os encoraja: guardem os firme (Iit.. “sem titubear"’) a confissão da nossa esperança (lit.). Esta ultima cláusula refere-se ao corpo de doutrinas em que crêem os judeus cnstãos (cf. 4:14) e à confiante expectativa do futuro que está embutida nesse credo. Essa é a fé que deveria ter sido anunciada por esses cnstãos por ocasião de seu batismo. O que justifica nossos esforços para sermos fiéis é a fidelidade de Deus: fiel é aquele que fez a prom essa (c f 11:11). Aquilo em que os cnstãos crêem, e a esperança que faz pane dessa crença, merece a confiança integral dos crentes e deve ser mantido com máxima firmeza porque o caráter fiel de Deus está acima de quaisquer questionamentos.

10:24-25 / A terceira exonação desta seção orienta os leitores no sentido de se preocuparem com o bem-estar do próximo, na comunidade da fé. Há necessidade de nos estim ularm os mutuamente na conduta cristã do am or (cf. 13:1) e boas obras. E digno de nota que encontramos as três grandes virtudes: a fé (v. 22), a esperança (v. 23) e amor (v. 24), em três versículos consecunvos (cf. 1 Co 13:13). O encorajamento mútuo que o autor da carta tem em mente pode ocorrer, naturalmente, apenas na

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comunhão cristã dos crentes. Todavia, alguns, até mesmo nesta comuni­dade, haviam negligenciado as reuniões, a comunhão fraterna. Os judeus cristãos estariam evitando as reuniões públicas talvez por causa do desejo compreensível de escapar das perseguições, tanto da parte dos romanos como dos judeus inimigos do cristianismo. Talvez devido a experiências do passado (vejam-se os w . 32-34), bem como ameaças quanto ao futuro imediato (12:4), considerava-se prudente evitar chamar a atenção. A despeito de vánas ocorrências de verbos no imperativo (“cheguem o-nos,” “guardemos,” “consideremo-nos”), os verbos do v. 25 encerram também uma exortação não nova; na verdade, os conselhos impositivos deste versículo apóiam o que lemos no v. 24. Eis o modo por que os leitores podem manifestar sua preocupação e interesse mútuos, e pelo próximo necessitado: mediante participação ativa na comunhão fraterna, por um lado, e pelo encorajamento mútuo, por outro lado. Os crentes precisam uns dos outros, de modo especial nas situações difíceis, nas provações. Esta questão assume urgência especial, à medida que se aproxima o “eschaton,” tanto mais quanto vedes que se vai aproxim ando aquele dia (cf. a citação de Hc 2:3, no v. 37).

Moías Adicionais # 2410:19-21 / A palavra ousadia (jxtrresia) implica em audácia ou coragem

para efetuar algo considerado sumamente perigoso, como aqui e em 4:16. Esta coragem audaciosa sempre se baseia na suficiência da obra de Cnsto E palavra utilizada em outra passagem do Novo Testamento em conexão com o chegar- se a presença de Deus(veja-seEf3:12,cf 2 Co 3:12, 1 Jo2:28). Note 12:29: “o nosso Deuse fogo consumidor ” Veja-se H. Schlier, TDNT, vol. 5, pp. 871-86. En tra r e verbo que traduz o grego eisodos (“entrada”), que ocorre somente aqui, em Hebreus, em todo o Novo Testamento, com o sentido de entrar na presença de Deus. Santo dos Santos literalmente é “lugar santo,” como em 9:8 e 25, mas em todas essas passagens, refere-se ao Santo dos Santos. Quanto a “sangue de Jesus,” veja-se 9:12-14, 10:29, 13 12, 20 Quanto à importância do “sangue,” veja-se a nota sobre 9:7. O verbo grego para consagrou (NIV diz “abriu”) é enkairuzo, e foi traduzido assim em 9:18, onde o autor tem em mira a nova aliança. Ao descrever a base da nova aliança, poder-se-ia traduzir também pelo verbo “inaugurar.” A palavra grega que se traduziu por novo éprosphatos, que ocorre somente aqui, em todo o Novo Testamento. O adjetivo vivo é utilizado noutra passagem pelo autor a fim de descrever nosso Deus, como ocorre com

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freqüência no Novo Testamento (3:12; 9:14, 10:31, 12:22). A palavra cami­nho (hodos) é utilizada com exatamente o mesmo sentido em 9:8 (embora em nenhuma outra passagem do Novo Testamento ela se refira a chegar-se à presença de Deus).

A palavra para véu (katapetasma) ocorre antes em Hebreus em 6.19 e 9:3 (“segundo véu”), e em nenhuma outra passagem, exceto nas citações do evangelho mencionadas acima E exegeticamente possível, e preferido por alguns comentaristas (e.g., Westcott, Vlontefiore, cf. NEB) entender-se que as palavras sua carne referem-se a vivo caminho em vez Je ao véu Segundo esta perspectiva a morte de Jesus, tornada possível pela "carne", é o caminho pelo qual temos acesso a Deus Embora haja harmonia com o ensino da carta, esta perspectiva e mais estranha no que concerne à ordem das palavras, nesta passagem, e despreza a provável alusão à tradição sinotica a respeito do veu rasgado Não ha necessidade de pressionar a função do \eu, que e ocultar ou bloquear a presença de Deus A opinião segundo a qual o véu e a carne não nega que o vivo caminho depende da “carne” de Jesus A diferença não esta tanto na finalidade do veu Assim como o sacerdote precisava atravessar o \eu a fim de alcançar o Santo dos Santos, assim tambem Jesus o fez em sua"carne" (Cl I 22), através de seu sacrifício na cruz ele se tornou o mediador Je uma nova aliança (9 1 5), o meio pelo qual todos podem chegar-se a presença de Deus Veja-se N A Dahl, “A New and Living Wav The Approach to God according to Heb 10 19-25" — L'm Novo Caminho Vivo Como Aproximar- se de Deus de acordo com Hb 10 1^-25 — Inierp 5 (1^51). pp 401 -12: N H Young "Tout' eslin tes sarkos aulou (Heb 10 20): Apposition, Dependent or Explicative9” — Aposição, Dependente ou Explicativo ’ — NTS 20 ( 1973). pp 100-104, G VV MacRae. “Heavenly Templeand EschatoloiiV m the Letter to the Hebrews” — Templo Celestial e Escatologia na Carta aos Hebreus Semeia 12 (1978), pp 179-99 Grande sacerdote usa-se com frequência no sentido de “sumo sacerdote” na LXX (cf. Nm 35:25, 28, Zc 3 1,611)

10:22 / A expressão verdadeiro coração (NIV traduz "sincero coração") ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento (3 12 descreve o tipo oposto de coração) A palavra para plena certeza (plernphoria) ocorre numa segunda passagem em Hebreus, unicamente em 6 11, onde modifica o substantivo “esperança.” O verbo traduzido por lavado é rhantizo, tendo sido usado três vezes antes, no capítulo anterior, com sentido cerimonial ou ritual (9 13, 19, 21) Aqui, onde temos o último uso dessa palavra em Hebreus, ela tem uma conotação simbólica. Quanto a uma aplicação espiritual semelhante do cognato, “purificação”, veja-se 1 Pedro 1:2 Esta é a segunda e ultima ocorrência no Novo Testamento dessa palavra, que tem uma conotação simbólica. Quanto a uma aplicação espiritual semelhante do substantivo

(Hebreus 10:19-25) 193

cognato “aspersão,” veja-se 1 Ped 1:2. Esta é a única referência do Novo Testamento a má consciência (NIV diz “consciência culpada”). Essa purifi­cação interna, descrita em jargão cerimonial, tem paralelo na purificação externa que representa a interna. Esta é a unica passagem do Novo Testamento em que à palavra literal para lavado (louõ) dá-se um sentido sacramental. Esta palavra, além disso, embora faça alusão ao batismo cristão, é derivada da purificação cerimonial dos ritos leviticos (cf. Lv 16:4). Se esta linguagem for reminiscente da cerimòmade ordenação dos sacerdotes leviticos (cf. Lv 8:30, Ex 29 4), pode apontar, nesse caso, para as qualificações do cristão, que agora pode desempenhar deveres “sacerdotais” da nova aliança como, por exemplo, as descritas na presente passagem As palavras gregas traduzidas por purifi­cado e lavado são particípios perfeitos dos respectivos verbos; descrevem o estado resultante de quem passou pela experiência inicial dessas realidades.

10:23 / “Confissão ’ em Hebreus sempre tem o sentido objetivo das doutrinas em que se crê Veja-se a nota sobre 3:1. Aqui, a descrição adicional de "‘esperança" orienta-nos quanto aos aspectos futuros de nossa fe, assunto que \ ira a tona mais tarde, neste mesmo capitulo (w. 35-39). A palavra grega traduzida por firme (aklínes, que NIV traduz por “que não se desvia” ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testamento A fidelidade de Deus é tema comum em todo o Novo Testamento (veja-se 1 Co 1 9, 10 13, 2 Co 1:18, 1 Ts 5.24,2 Tm 2 :13) Em 11:11 veremos Abraão representando o crente modelo, em sua fidelidade a Deus.

10:24-25 / A palavra estimularmos (paroxysmos) é palavra forte, que contem a ideia de "excitar" (cf. RSV) Sua segunda e última ocorrência no Novo Testamento tem sentido negamo. o de um desacordo violento (At15 39). Com "boas obras,” veja-se o contraste com as “obras inúteis" de 6 .1,9 14 A pala\ ra grega para conjjregar-nos (cptsynagoçe) ocorre em mais uma passagem do Novo Testamento: 2 Ts 2 1 Alguns eruditos têm argumentado que o prefixo desta palavra incomum e indicação de algum sentido em que as reuniões, sob referência aqui, eram diferentes das reuniões na sinagoga, eram reuniões extras No entanto, como salienta Hughes, isto é ler o que não está escrito no texto A palavra não diz nada disso Veja-se a nota desse autor sobre a palavra em evidência, em Hebrews Hebreus — pp 417-18 0 autor da carta e forte defensor da exortação ou encorajamento (o verbo grego para “encorajar” (para nos estimularmos ao amor) é parakaleo Em 3:13 ele diz a seus leitores judeus cristãos que encoragem uns aos outros, que exortem uns aos outros, todos os dias. Ele próprio exorta seus leitores por toda a carta e, no fim, refere-se ao que escreveu como “palavra de exortação” (13:22). A urgência de seu pedido tem origem na aproximação de aquele dia. Quanto ao uso absoluto de “dia” para indicar a aproximação da consumação futura de

194 (Hebreus 10:19-25)

todas as coisas, veja-se 1 Co 3:13 (cf. 1 Ts 5:4). Quanto a “dia,” veja-se G Braumann e C. Brown, NIDNTT, vol. 2, pp. 887-95. A demora no retomo de Jesus tomou-se um problema cada vez mais difícil, porque os cristãos continuaram a sofrer perseguições (cf. w 36-39). Como sugere F F. Bruce, a declaração a respeito de contemplar-se a aproximação daquele dia (vedes que se vai aproximando aquele dia) pode refletir talvez o conhecimento da situação dia a dia mais difícil na Judéia e em Jerusalém Tendo a profecia de Cristo em mente, a queda de Jerusalém teria sido vista talvez como mera questão de tempo (cf 8 13), da perspectivado autor e, na verdade, de todos os cristãos daquela época, a destruição de Jerusalém teria sido considerada o sinal da chegada do ‘eschaton’ (cf Mt 24 3).

2 5 .0 Pecado da Apostasia e a Realidade do Julgamento (Hebreus 10 :26 -31 )

A referência a “aquele dia” no fim da seção precedente conduz de modo natural ao assunto do julgamento futuro, sendo usado como incentivo adicional à fidelidade e eliminação da apostasia. A preocupação desta passagem é semelhante à de 6:4-8 (cf. 3:12).

10:26-27, As palavras se voluntariamente continuarmos no pecado não se referem a pecados comuns, mas ao pecado mais grave, o pecado final: apostasia. (NIV e ECA dizem continuarmos como aditivo interpretativo, cuja intenção é refletir o particípio presente grego; aqui, no entanto, é possível que o termo direto empregado por KJV e RSV, “se nós pecarmos” seja uma tradução mais apropriada). Este é o pecado que, pela sua natureza, coloca o ofensor fora do alcance do perdão de Deus e, portanto, é pecado do qual não se encontra retomo. O v. 29 enfatiza a natureza e a seriedade do pecado que estamos discutindo. Que esse pecado envolve o abandono total da fé sabemo-lo pelas palavras depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade. A passagem paralela em 6:4 é clara: “os que já uma vez foram iluminados... e provaram a boa palavra de Deus, e os poderes do mundo vindouro, e depois caíram... Para todos quantos voltaram as costas para o sacrifício de Cristo — o sacrifício supremo para o qual todos os demais sacrifícios apontaram, e do qual todos dependiam para que tivessem eficácia pelo menos tem porária— para estes já não resta mais sacrifício pelos pecados. A pessoa que rejeita o sacnfício de Cristo (v. 29) não encontrará outra solução para o problema do pecado. Tendo esgotados os recursos legítimos, essa pessoa deverá enfrentar a perspectiva da ira de Deus contra o pecado (cf. 2 Pd 2:21). Para tal pessoa a única perspectiva no que diz respeito ao julgamento final divino é certa expectação horrível de juízo e ardor de fogo (i.e., de destruição) que há de devorar os adversários. As últimas palavras acerca desse fogo consumidor dos adversários parecem basear-se nas palavras de Isaías 26:11, como as encontramos na LXX.

196 (Hebreus 10:26-31)

10:28-29 / A fim de dramatizar com grande força este ponto, o autor da carta apela agora para uma argumentação que já havia usado em 2:1-3 (e que voltará a empregar em 12:25), em que algo que se provou ser verdade na era da lei mosaica fica demonstrado continuar a ser verdade na era do cumprimento realizado por Cristo. Assim, a desobediência à lei de Moisés era uma questão de tão grande seriedade que o ofensor era sentenciado à morte: m orria sem m isericórdia, só pela palavra de duas ou três testem unhas (cf. Nm 15:30). No entanto, a transgressão da lei de Moisés, ainda que fosse sumamente grave, não era tão séria como a rejeição da obra de Cristo, a partir do momento em que o crente a recebeu como a verdade. A linguagem do v. 29 é muito forte, mas declara as conseqüências exatas da apostasia. A apostasia quer dizer que o Filho de Deus — Jesus, o mediador da nova aliança — é considerado indigno e tratado com máximo desdém. T iver por profano literalmente é “considerar comum” . Apostasia quer dizer que o sangue da aliança é considerado comum, ou não santo, a despeito do fato de esse sangue haver santificado o apóstata (com o qual foi santificado, que é tradução literal do grego). O apóstata é alguém que desprezou o Senhor, foi capaz de u ltra ja r o Espírito da graça. A apostasia equivale ao pecado imperdoável, a blasfêmia contra o Espírito Santo (e.g., Mt 12:31 s.). Fica, pois, evidente, que a apostasia envolve a rejeição de Cristo e, por isso, a zombaria do Filho de Deus, do sangue da aliança, do Espírito da graça. Obviamente de quanto m aior castigo cuidais vós será julgado m erecedor aquele que pisar o Filho de Deus0 Com maior severidade que o transgressor sob a lei de Moisés.

10:30-31 / A realidade do julgamento sobre os que zombam da salvação oferecida por Deus fica agora enfatizada pela citação de duas declarações de Deuteronômio 32:35-36. A primeira declaração é apresentada com estas palavras: conhecemos aquele que disse. A identidade de quem falou se toma explícita pelo autor da carta nas palavras finais: o Deus vivo. Que Deus vai vingar-se de seus inimigos é, certamente, tema comum do Antigo Testamento, bastante popular entre os judeus. Assim, a segunda declara­ção temo-la palavra por palavra não só em Deuteronômio 32:36 como também em Salmos 135:14. A primeira citação, que não concorda com exatidão verbal com Deuteronômio 32:35 de LXX é, no entanto, citada da mesma forma por Paulo em Romanos 12:19. O fato do julgamento vindo do Deus vivo é algo que enche o coração de temor (cf. v. 27; 12:29; Mt 10:28). Todavia, esse é o destino certo dos que repudiam sua fé cristã.

(Hebreus 10:26-31) 197

Notas Adicionais # 2510:26-27/ A palavra grega equivalente a voluntariamente (hekousiõs) ou

“de sua própria vontade livre” ocorre apenas aqui e em 1 Pedro 5:2 em todo o Novo Testamento O autor se refere claramente ao abandono consciente, voluntário, da fé cristã. O verbo grego que equivale a continuarmos no pecado (hamartanõ) aparece em apenas mais uma passagem de Hebreus, em 3:17 Aqui também se refere a uma rebelião voluntária contra Deus. Alguns cristãos da igreja primitiva argumentavam que o que estava em jogo em hamartanõ eram pecados menos graves do que a apostasia, isto é, algum pecado cometido conscientemente e, por isso, em desafio a vontade de Deus (isto faria contraste com os pecados “dos ignorantes e errados” que pecam e se desviam inconscientemente, 5:2, cf. Nm 15:29-31). A fim de evitar esses pecados assim chamados pós-batismais, a pessoa protelava seu batismo até o fim da vida No entanto, fica óbvio pelo contexto, que o pecado na mente do autor da carta envolvia a rejeição das verdades centrais da fé cristã. A graça e a misericórdia permanecem disponíveis ao crente que peca (4:16; 7:25). O fato de não existir mais sacrifícios pelos pecados aponta assim, não para a inexistência de misericórdia para o cristão que pecou, mas para o fato de o apóstata haver cortado por si e paras: mesmo toda possibilidade de perdão. Só o sacrifício de Cristo constitui meio de perdão Quanto a “sacrifício pelos pecados.” veja-se a nota sobre 10:5

Pleno conhecimento da verdade (epignosis tes alelheias. em que a palavra “conhecimento” está na forma intensiva) e expressão que se encontra tambem nas cartas pastorais (1 Tm 2 4; 2 Tm 2:25, 3:7, Tt 1:1). A posição das palavras expectação horrível (phoberos) tomam-nas enfáticas. E expressão grega que se encontra também no v 31 e em 12:21 (onde Moisés treme de medo na presença de Deus) Hebreus refere-se a j u ízo (knsis) só aqui e em 9.27 (a forma verbal ocorre no v 30eem 13 4). A presente passagem, inclusive os vv 30-31, refletem o ponto de vistaj udeu, largamente disseminado, concernente à inescapável realidade do julgamento apocalíptico Todavia, no caso em apreço, as pessoas que hão de experimentar a fúria desse julgamento não são os inimigos de Deus e de Israel em geral (como se depreende da linguagem derivada de Is 26:11), mas todos quantos rejeitaram o Filho de Deus e a salvação que advém da obra do Senhor.

10:28-29 / A palavra grega equivalente a quebrava a lei (NIV diz “ rejeitava alei”) tem fortes implicações, em paralelismo à apostasia potencial que se mantém sob o foco da atenção nesta passagem: atheteo (lit., “por de lado,” “anular”). É verbo que ocorre em Hebreus apenas neste versículo (embora o substantivo cognato seja encontrado em 7:18, onde se refere ao ato de deixar de lado a lei mosaica, no que diz respeito ao sacerdócio; e em 9 26,

198 (Hebreus 10:26-31)

onde se refere à remoção de pecado pelo sacrifício de Cristo). A referência a duas ou três testemunhas deliberadamente nos traz à memória a prática do Antigo Testamento registrada em Deuteronômio 17:6, 19 15 (cf. Mt 18:16, 2 Co 13.1, e 1 Tm 5 19, quanto à aplicação desse princípio na igreja primitiva). A palavra equivalente a castigo (nmõria) no v. 29 ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento. O verbo que se traduziu por pisar encontra-se em Mateus com referência ao sal que perdeu o sabor e é lançado fora como lixo, para ser “pisado pelos homens” (Mt 5:13), e também com referência a pérolas atiradas aos porcos que, a seguir, pisam-nas (“para que não as pisem com os pes”, Mt 7:6).

O sangue da aliança de inicio se referia ao selo da aliança celebrada com Israel, como por exemplo, em Êxodo 24 8, citado pelo autor da carta aos Hebreus em 9 20. No entanto, na argumentação de Hebreus, fica bem claro que o sangue da aliança refere-se agora ao sangue de Cristo e á inauguração da nova aliança. Veja-se 7:22, 9 15-18, 10 12-18, e a referência em 13 20 ao “sangue Ja aliança eterna.” A palavra traduzida por profano (komos), que ocorre só aqui em Hebreus (mas cf a forma participial de 9:13), e palavra cerimonial com o sentido de “imundo” ou “não santo” (cf Mc 7 2, At 10:14, 11.8, Ap 21 27). Veja-se F Hauck, TDNT, vol 3, pp 789-97 Quanto ao verbo foi santificado (liagiazo), veja-se a nota sobre 2 11 Por Espírito da graça o autor quer dizer o Espírito Santo gracioso, veículo da graça divina, mediante o qual nos tomamos participantes dos atos salvificosde Deus Por isso, insultar o Espirito de Deus e cortar o unico meio de experimentar o favor de Deus A palavra ião forte traduzida por ultrajar (enhybrizo) so ocorre aqui, em toda a Bíblia grega Veja-se G Bertram, TDNT, vol 8, pp 305-6

10:30-31 / A primeira sentença mencionada não se harmoniza com exatidão com a LXX, em Deuteronômio 32:35, que diz: “A mim pertencem a vingança e a recompensa.” Mas em Romanos 12 19 a citação se harmoniza com perfeição com estas palavras. E citação que aparece tambem de modo semelhante em trechos dos Targuns ( traduções parafraseadas de passagens do Antigo Testamento do hebraico para o aramaico, o autor se refere aqui a Onkelos, Pseudo-Jônatas e Palestino) Eram bem conhecidos por toda parte na torma que descrevemos, na verdade, é provável que se tivessem tomado ditados proverbiais, ao redor do primeiro século. Estas citações expressam a expectativa comum registrada nas Escrituras do Antigo Testamento e no judaísmo do primeiro século. Portanto, é questão que não precisamos debater, apenas mencionar (cf pois conhecemos aquele que disse) A “mão” ou as “mãos” de Deus é antropomorfismo que se usa a fim de descrever a atividade de Deus (cf. 1:10, 2:7). Quanto a horrenda coisa ( l i t , “que inspira medo”), veja-se a nota sobre o v. 27. O autor refere-se ao Deus vivo em 3 12, 9 :14,

(Hebreus 10:26-31) 199

12:22 Trata-se de forma hebraica comum de referir-se a Deus e seu poder infinito, como a encontramos com muita freqüência no Novo Testamento. Veja-se a nota sobre 9:14

26. Exortação à Perseverança e à Fidelidade (Hebreus Í0 :3 2 -3 9 )

O autor de Hebreus volta-se de novo às exortações. Todavia, agora ele baseia seu encorajamento nos sucessos extraordinários do passado dos leitores, que as obtiveram em circunstâncias horrendas. Nesta descrição da historia desses heróis, obtemos as informações mais explícitas de Hebreus, a respeito dos destinatários, leitores da carta. Ficamos sabendo que eles suportaram perseguições no passado e venceram. Parece que agora voltam a enfrentar tempos difíceis, outra vez, ao ponto de serem tentados (como notamos anteriormente) a abandonar a fé cristã (cf. 2:1-3; 3:12-14; 4 :1; 6:4-6; 12:3-11; 13:13). Em sua exortação, o autor lembra seus leitores da fidelidade que demonstraram no passado. Não devem, portanto, jogar fora aquelas vitórias antigas; não devem ceder às pressões do presente. Se persistiram no passado, podem persistir hoje, e no futuro, seja o que forque se lhes apresentar. A experiência do passado deve ser excelente motivação para a fidelidade no presente. O mesmo Deus fiel suprirá os recursos necessários — agora, como antes.

10:32-33 / Os leitores são lembrados dos dias passados. As memórias dos sofrimentos que serão mencionados agora devem ser vívidas, ainda que não tenhamos meios de saber com precisão quando aqueles eventos aconteceram. A perseguição sob referência provavelmente foi a que sofreram sob Cláudio, em 49 d.C., e não a que os judeus cristãos sofreram entre a comunidade romana, sob o tacão de Nero enlouquecido, em 64 d.C. Se estivermos certos em nossa opinião de que a carta aos Hebreus teria sido escrita no começo dos anos 60, os acontecimentos relembrados teriam ocorrido mais de dez anos antes. Teria sido com certeza um pouco depois de os leitores judeus terem-se tomado crentes em Cristo, isto é, depois de serdes iluminados (lit.); cf. a mesma expressão em 6:4. A vitória dos leitores fica realçada no resto do versículo: suportastes grande combate de aflições (lit : “suportastes grande combate com sofrimentos”). O que se descreve em geral como “grande combate” recebe alguns pormenores nos versículos seguintes. Os crentes se transformaram em espetáculo público,

(Hebreus 10:32-39) 201

sofreram abusos verbais e punições físicas. No entanto, parece que a perseguição não culminou em martírio, pelo que não deve referir-se ao sofrimento que sofreram sob a tirania de Nero, em 64 d.C., quando muitos membros da igreja de Roma morreram martirizados. (A declaração de 12:4, embora se refira à presente situação dos leitores, presumivelmente é verdadeira quanto ao passado também.) Houve ocasiões em que os leitores de Hebreus não sofreram diretamente: às vezes vos to rnastes co-partici- pantes com os que desse modo foram tratados, isto é, experimentaram sofrimentos semelhantes. Não está claro de que modo eles se tomaram “co- participantes” (é o que o texto grego diz literalmente); parece, todavia, que deram todo apoio aos que sofreram, a um custo pessoal consideravelmente elevado, sacrificial, como o depreendemos do versículo seguinte.

10:34 / Não somente vos compadecestes dos que estavam nas prisões (lit., “vós sofrestes com os prisioneiros” ) — esta frase parece indicar que os prisioneiros não eram os próprios leitores da carta aos Hebreus, mas estes sofriam por causa da pnsào de seus irmãos. A exortação de 13:3 lembra os leitores desta sua responsabilidade: “Lembrai- vos dos presos, como se estivésseis presos com eles.” Um aspecto da perseguição envolvia o espólio dos vossos bens (o confisco das proprie­dades). Os cristãos sofriam este mal com gozo... porque tinham em mente que tendes possessão superio r e perm anente ( l i t ). Esta referência a superioridade do que não se via, isto é, da realidade eterna, tomar-se-ia motivação deveras importante no capítulo 11 (cf. 11:10, 16, -10). Os leitores, em meio a circunstâncias terríveis, sumamente difíceis, eram capazes, assim, de fazer da realidade invisível sua maior prioridade e, a luz dessa certeza inabalável, suportar grandes provações e perdas pessoais. E provável que tenha sido o compartilhamento dos sofrimentos do irmão, mencionados nesses versículos, que estavam na mente do autor da carta quando redigiu 6 :10: “Deus não é injusto; ele não se esquecerá da vossa obra, e do amor que para com o seu nome mostrastes, pois servistes e ainda servis aos santos.” Em 13:3o autor da carta exorta seus leitores a continuar a identificar-se com os que sofrem.

10:35-36 / É precisamente disto que os leitores devem lembrar-se e guardá-lo no coração. O autor da carta os exorta: não lanceis fora a vossa confiança (ou “coragem,” “ousadia”). Essa “confiança ousada” exercida

202 (Hebreus 10:32-39)

na situação enfrentada agora, capacitaria os leitores a perseverar, como fizeram no passado, porque os aguarda uma grande recompensa. Acima de tudo, os leitores precisam de perseverança (lit., “suportar”). O substan­tivo é formado da mesma raiz do verbo “perseverar,” ou “suportar,” que aparece no v. 32. Os leitores perseveraram no passado, em épocas de provações; devem perseverar agora também. A perseverança é a vontade de Deus, sendo necessária para que alcanceis a promessa. Esta promessa não é especificada, aqui, mas deve tratar-se da promessa escatológica da obra fmal oriunda dos propósitos salvíficos de Deus. E o que foi descrito no v. 34 como sendo a “possessão superior e permanente” que será descrita nos capitulos 11 e 12 com várias metáforas diferentes.

10:37-38 / É citação de Habacuque 2:3-4, que o autor nos apresenta sem uma introdução, a não ser a preposição pois. Fica evidente a propriedade dessa citação. O tempo de sofrimento é limitado, e a volta do Senhor está próxima. O autor da carta parece entender as palavras de Habacuque de forma literal, quando se refere à iminência do retomo do Senhor, de modo especial pelo fato do aumento de perseguições. Segundo a promessa profética, no fim dos tempos haveria grande aumento de perseguições contra os justos (cf. Mt 24:9-14). Mas tendo a volta de Cristo em mente, é preciso dar consideração especial à fidelidade. O autor cita Habacuque 2:4 aqui; não, porém, com o mesmo sentido de quando Paulo cita essa passagem em Romanos 1:17 e Gálatos 3:11 (cf. a tradução excelente que RSV faz de Hc 2:4 nestes versículos). Nesta passagem a ênfase está em como a pessoa se toma justa: é pela fé. No entanto, aqui, a ênfase está na fidelidade do justo: o meu justo viverá da fé. Em outras palavras, as pessoas justas viverão com fidelidade, viverão de acordo com a fé. Estas duas ênfases complementam-se mutuamente, em vez de serem contraditó­rias. A possibilidade de vivermos pela nossa fé (pela qual nós somos considerados justos) e nossa fidelidade (pela qual vivemos de acordo com a vontade de Deus), baseiam-se ambas na fidelidade de Deus ao agir a nosso favor. Fica claro a partir do contexto e do capítulo seguinte que a ênfase do autor de Hebreus nesta passagem está na fidelidade. E para a fidelidade que ele chama seus leitores, para que não venham a cair, derrotados pela tribulação. Se o justo retrocede na fé (se ele recuar...), pouco importando a tribulação, o Senhor não tem prazer nele. O ponto simples é que Deus requer fidelidade ou perseverança de seu povo. Esta é

(Hebreus 10:32-39) 203

a mensagem que os leitores de Hebreus precisam ouvir — e precisam desesperadamente. Depois de ouvi-la, devem a ela obedecer. O desagrado de Deus traz sua ira, a que já aludimos nos w . 27-31

10:39 / O autor da carta dá-nos agora um comentário breve, de uma sentença, sobre o significado da passagem, em forma de ‘m idras’, medi­ante o emprego de duas palavras-chaves da citação. O autor aqui, como em 6:9, encoraja seus leitores a crerno melhor, e não no pior, a respeito do que os aguarda. Além disso, ele fala de si mesmo, ao lado dos leitores, no plural, com um nós enfático, seguido da conjunção adversativa porém, ao iniciar o versículo. Nós, porém, não somos, diz o autor de Hebreus de modo conciso e direto, daqueles que retrocedem para a perdição [aludindo à palavra em Habacuque], mas daquele que crêem [usando a mesma palavra de Habacuque] para a conservação da alma (NIV: “e são salvos” ). E assim que o autor da carta encoraja seus leitores a que pensem de modo positivo. Se forem fiéis à sua identidade em Cnsto, e tomarem vantagem dos recursos que Deus lhes providenciou, motivados pela realidade e iminência de sua esperança, encontrarão forças para perseverar na cnse atual, sem apostatar, sem abandonar a verdade A conexão entre a perseverança e a "conservação” da alma da pessoa está no contexto da perseguição de Lucas 21:19, onde Jesus diz: “Na vossa perseverança ganhareis as vossas almas.”

Notas Adicionais # 2610:32 -3 3 / Quanto a serdes iluminados (phulizu), veja-se a nota sobre 6:4.

A palavra grega para combate (athlesis) ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testamento, sendo usada em sentido figurado com referência à adversidade que as pessoas devem enfrentar O verbo suportastes (hypomenõ) ocorre de novo em 12:2, 3 e 7 (o substantivo cognato ocorre em 10.36 e 12:1). Esta palavra e muito importante para a mensagem que o autor da carta quer enviar a seus leitores. Veja-se F Hauck, TDNT, vol. 4, pp. 581-88. O substantivo aflições (pathema) é usado em outra passagem, em Hebreus apenas, referindo- se a morte de Cristo (2:9, 10) O termo grego que se traduziu por opóbrios (ECA) é o substantivo oneidismos, que o autor da carta utiliza de novo em 11:26 e 13:13, onde significa de modo explícito que o crente carrega o desprezo e a vergonha sofridos por Cristo. T ribulações (íhltpsis), que embora seja palavra comum no Novo Testamento, ocorre em Hebreus apenas aqui. As

204 (Hebreus 10:32-39)

palavras como em espetáculo equivalem a “publicamente,” (como em NIV), o termo principal deriva de theatnzo, verbo que ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento, com o sentido de “fazer um espetáculo público” (NEB). Cf. o substantivo cognato “espetáculo” (theatron) em 1 Coríntios 4:9, ao descrever o apóstolo as experiência de seus companheiros. Vos tornastes co- participantes com os... é tradução do substantivo “compartilhadores” (koinonos), palavra que ocorre apenas aqui, em Hebreus. Quanto a um conceito paralelo, “sois participantes,” veja-se 2 Coríntios 1:7, onde a doutrina de Paulo deriva da participação do corpo de Cristo (1 Co 12:4-5, 26)

10:34 / Este versículo contem duas incertezas textuais Quanto à primeira, alguns manuscritos trazem “dos que estavam em grilhões,” (desmos) em vez de dos que estavam em prisões (ECA, ao traduzir desmios), às vezes aparece "meus grilhões,” as vezes “grilhões deles ” Metzger atribui a perda da letra grega “iota,” que redunda em “grilhões,” a um erro de transcrição Por isso, deve-se preferir a forma dos que estavam em prisões (cf. 13 3) Veja-se Metzger, TCGNT. p 670 A segunda questão envolve o caso do pronome reflexivo da segunda pessoa plural, "vos mesmos” que não aparece em ECA Provavelmente e do caso acusativo (heautous), que MV traduziu: “vos mesmos unheis possessões,” que ECA traduziu tendes possessão Enten­dem alguns que o caso e dativo (heautois), o que redundaria em “possuis para vos mesmos,” ou "em vos mesmos ” Veja-se Metzger, TCGNT, p 670 O verbo grego traduzido por vos compadecestes dos (sympalheo, lit . “sofrer com”) ocorre aqui e em 4 15, apenas, em todo o Novo Testamento Quanto ao conceito, veja-se a nota anterior A idéia de “alegria” (chara) diante do sofrimento pessoal e reminiscência de Tiago 1 2 e de 1 Pedro 4 13s (cf. Mt5 11) Essa mesma palavra ocorre de novo em 12:2, 1 1, e 13 17 veja-se H Conzelmann, TDNT, vol 9, pp 359-72. Quanto à importância da palavra "melhor” (ECA preferiu superior, aqui, (kreisson) em Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4 Ainda que a linguagem referente a uma “possessão superior” seja algo singular, umco, trata-se de um conceito que se liga muito a Mateus 6:20, quanto aos tesouros no ceu, “onde nem a traça nem a ferrugem destroem e onde os ladrões nào arrombam nem roubam ” O adjetivo perm anente e empregado em ECA com o mesmo sentido de 13:14 “Pois não temos aqui cidade permanente” (cf 12:27, “permaneçam”)

10:35-36 / Quanto a confiança ou “ousadia”, veja-se a nota sobre 3:6. A palavra correspondente a grande recompensa (mislhapodosiá) ocorre apenas em Hebreus, em todo o Novo Testamento: em 11 26 tem sentido positivo, como aqui (cf. 11:6 praticamente a mesma palavra), em 2:2 aparece com o significado negativo de “retribuição ” A respeito da importância de “perseve­rança” (hypomone), veja-se a nota sobre a forma verbal da mesma palavra no

(Hebreus 10:32-39) 205

v. 32. Há nova referência ao fato de os leitores estarem fazendo a vontade de Deus, na bênção de 13 20-21 A expressão alcanceis a promessa ocorre em 11:13 e 39, onde o autor nega que os patriarcas já a tenham recebido. Quanto a promessa (epangelia) em Hebreus, veja-se a nota sobre 6:15.

10:37-38/ A linha de abertura na citação, pois ainda em pouco tempo não foi tirada de Habacuque, mas provavelmente saiu de Isaias 26:20, a menos que seja mera expressão comum, estereotipada. (Is 26:11 pode ser a passagem a que o autor da carta alude no v. 27. Veja-se acima.) O autor toma certas liberdades ao citar Habacuque 2:3-4, que segue a LXX, em vez do texto hebraico Ele acrescentou um artigo definido de modo que transformou um participio em substantivo, ECA traduziu assim: aquele que há de vir “Aquele que vem” O “que havia de vir” era um dos títulos do Messias, Jesus, na igreja primitiva (cf. Mt 3 1 1 ,1 1 :3 )0 autor da carta transpõe as cláusulas de Habacuque 2:4 (que em LXX se inicia com as palavras, “mas se um deles voltar atrás”), de modo que e o justo que deve confrontar de modo direto a possibilidade de apostatar e experimentar a ira do Senhor. Assim é que o autor da cana aceita a interpretação messiânica dessa passagem (como em LXX), mas aplica Habacuque 2:4 ao crente cristão (a despeito do singular, o meu justo) Esta passagem era utilizada comumente na literatura judaica para fortalecer a crença na realização das promessas feitas a Israel. A palavra grega “fé” (pi.slis) tambem pode ser traduzida por “fidelidade.” Alguns manuscritos da carta aos Hebreus têm o pronome “meu” em outro lugar, redundando num texto diferente “o justo viverá pela minha fidelidade,” como o verificamos num importante manuscrito da LXX (B). Alguns manuscritos de Hebreus (e.g.. PI 3) omitem de vez o adjetivo “meu” (como faz Paulo ao citar Hc 2:4). Os melhores manuscritos de Hebreus, no entanto, favorecem a colocação de “meu" antes de 'justo” (e.g , P46, Sinaiticus, A). Veja-se Metzger, TCGNT, pp 670s O verbo grego que se traduziu por recuar (hypostello, cf. v. 39) pode ter a conotação de agir assim “de modo oculto” (cf a ênfase em 4:12-13). Veja- seK.H Renystorf,TDNT, vol. 7 ,pp 597-99;T.W Lewis,“ '. eseelerecuar’ (Heb x 38b),” NTS 22 (1975), pp 88-94.

10:39/ Retrocedem para a perdição deriva deapoleia, palavra comum do Novo Testamento que significa “destruição,” que na carta aos Hebreus ocorre apenas aqui. Essa idéia nos faz lembrar da discussão nos w . 27-29. Para a conservação da alma é tradução literal: “preservação” (peripoiesis) da alma [psyche) Esta palavra é empregada de modo semelhante em 12:3 e 13:17 (contraste com 4:12, 6:19). E óbvio que o autor tem em mente o contrário de “destruição” ou perdição Por isso, é possível que a frase subentenda a vinda da nova vida no “eschaton.” Veja-se E. Schweizer, TDNT, vol. 9, pp 637-56, ou “vida etema para a alma.”

27. A Natureza e a Importância da Fé (Hebreus 11 :1 -3 )

A menção da importância da fé nos últimos dois versículos do capítulo anterior nos conduz de modo natural a este famoso capítulo a respeito da fé. E impossível saber se o autor da carta está utilizando uma fonte textual, de que agora se assenhoreia em parte ou no todo, ou se está compondo um novo catálogo de heróis, com base nos modelos existentes tanto no Antigo como no Novo Testamento. Haviam sido compilados longos registros da história de Israel com o objetivo de estabelecer-se uma advertência, ou forte encorajamento, alguns dos quais senam do conhecimento do autor. Como exemplo, podemos citar o salmo 78; e Atos 7.

O propósito do autor da carta nesta magnífica seção do texto é encorajar seus leitores a emular aqueles heróis e heroínas da fé. Estes, baseados no que sabiam a respeito de Deus e suas promessas, tiveram a coragem de partir para o desconhecido, tendo firmado seus corações, e estando suas vidas sob o controle de uma grandiosa realidade invisível. A aplicação dos capítulos alcança plena expressão no capítulo seguinte. Esta lista de heróis tem o objetivo de prover os leitores de força e coragem para enfrentar suas próprias circunstâncias tão difíceis. Segundo o autor da carta, existe uma chave que escancara os portões da existência cristã efetiva; ela se encontra na realidade do poder da fé, e em seu poder de motivação.

1 1 :1 / Em sua declaração inicial, o autor da carta deixa bem claro que a fé orienta-se para coisas não presentes, coisas ainda invisíveis. A fé abrange as coisas que se esperam , ou as coisas que não se vêem Qual é, então, a natureza da fé no que conceme a estas coisas9 A resposta prende- se ao significado de duas palavras-chave deste versículo. Ambas podem ser interpretadas de modo subjetivo, ou de modo objetivo. NIV opta pela subjetividade em ambos os casos, pois põe o foco da certeza íntima na fé, com respeito a coisas esperadas e ainda invisíveis. No entanto, em parte alguma do capítulo menciona-se alguma ênfase a respeito da fé como confiança subjetiva, que seria o atributo das pessoas mencionadas; mas ao contrário, o autor ressalta as foimas segundo as quais aqueles crentes agiram, quando demonstraram simplesmente sua fé.

(Hebreus 11:1-3) 207

O argumento do autor da carta é que a fé resulta numa conduta que aponta, sem sombra de erro, para a realidade de coisas que ainda não se vêem. A primeira dessas duas palavras, que NIV traduz por “tendo certeza,” e EC A por é a certeza, é um substantivo que pode ser interpretado (como fazem NI V e ECA) num sentido subjetivo. Muitas versões preferem esta interpretação (RSV e NASB: “segurança” ; GNB: “para ter certeza”). No entanto, é igualmente possível, e além disso natural, tomar-se a palavra num sentido objetivo, como se expressasse a base ou fundamento das coisas esperadas. Alguns tradutores seguem esta interpretação (KJV: “substância” ; N EB: “dá substância” ; JB: “garantia” ; cf. Bíblia de Genebra: “Fé é aquilo que faz que apareçam as coisas esperadas”).

A segunda palavra-chave, que NIV traduz por “certo,” é um substan­tivo que significa prova, ou “meio de comprovar-se.” Muitos comentaris­tas têm interpretado esta palavra como se se referisse à certeza objetiva, à “convicção” da fé (cf. 10:22). Todavia, também aqui se deve preferir o sentido objetivo, em paralelismo com a primeira declaração (que assim se interpreta). A ação produzida pela fé é manifestação ou prova da realidade das coisas que ainda não se vêem.

A interpretação objetiva destas duas palavras harmoniza-se com uma das maiores ênfases mostradas no capítulo todo, a saber, a fé está ativa na obediência. No entanto, quando a fé se manifesta desta maneira, o invisível e o esperado tornam-se realidades. A fé que se expressa desta forma pode ser descrita como fé que realiza aquilo em que se crê. Isto, por sua vez, fortalece a própria fé (razão por que a fé e a obediência devem andar juntas).

A compreensão objetiva deste versículo, naturalmente, pressupõe a realidade da certeza subjetiva (sendo que esta depende de a pessoa ter experimentado a bondade de Deus), como sendo a mola propulsora dos atos de fé. Todavia, é a expressão da fé, em vez da convicção da fé que constitui o ponto central do autor da carta, neste capítulo. A reação obediente da fé dá substância ao que foi prometido. A fé efetiva, ainda que dirigida a realidades futuras, em certo sentido também faz que o futuro se tom e presente. A fé autêntica reconhece a realidade do invisível e permite a si mesma govemar-se por essa realidade. De modo semelhante, Paulo escreve: “Portanto, nós não atentamos nas coisas que se vêem, mas nas que não se vêem. Pois as que se vêem são temporais, e as que não se vêem são eternas” (2 Co 4:18). E acrescenta ainda: “andamos por fé, e não por vista”

208 (Hebreus 11:1-3)

(2 Co 5:7). O que o autor de Hebreus nos dá aqui não é tanto uma definição técnica de fé, mas antes uma descrição do que a fé autêntica faz, e como Deus provê evidências, na prática da fé de que tudo quanto ele promete no fim se cumprirá. As realidades futuras, e invisíveis, podem ser vividas realmente pelos cristãos mediante a fé. Podemos parafrasear este versículo com as seguintes palavras: A fé mediante seu caráter ativo dá substância às coisas esperadas, isto é, expressa a realidade de tais coisas, e demonstra a verdade das que ainda não estamos vendo.

11:2/ Foi por ela que os antigos ( lit., "os anciãos” ; é um termo judaico comum que admite uma variedade de empregos; aqui ele assume o sentido tirado de uma lista de pessoas cujos nomes vêm a seguir) alcançaram bom testem unho (lit., “dão testemuho de,” ou “atestaram”). Essa mesma palavra ocorre numa declaração semelhante, no v. 39, que arremata a lista dos heróis e heroinas da fé. Esses homens e mulheres do passado devem ser colocados na vanguarda, bem à frente, como ilustrações especificas que se iniciam no v. 4, de tal modo que o atual versículo pode servir quase como titulo do resto do capítulo.

11:3 / Todavia, o autor da carta inicia seu grande catálogo fazendo alusão à origem da ordem cnada; é que aqui ele encontra uma ilustração do princípio real sobre a fé, que envolve uma realidade invisível que culmina em expressão concreta. Os mundos (lit., “as eras") foram criados pela palavra de Deus (lit.; NI V traduz interpretativãmente: “por ordem de Deus” , cf. Gn 1; SI 33:6, 9), com o resultado óbvio que o que sabemos e vemos não foram feitos pelo que se vê (o visível não foi feito do que se vê (lit.: “não de coisas que têm aparência”). Desse modo, a própria criação envolve um modelo parecido com a fé. A criação se parece com a fé em que sempre existiu a realidade de importância excepcional que, na verdade, foi quem gerou o mundo visível. Nossa compreensão da criação do universo mediante a palavra de Deus é, em si mesma, algo que ocorre pela fé. Em outras palavras, aqui nós também reconhecemos a verdade de uma reali­dade invisível, a despeito do registro da criação que encontramos nas Escrituras. Pesquisando a cnação podemos de fato conhecer o poder de Deus (Rm 1:20), não, porém, o modo de criação, isto é, que ela surgiu mediante a palavra de Deus.

Notas Adicionais # 2711:1 / A palavra fé (pistis) é usada em Hebreus com mais freqüência do que

em qualquer outro livro do Novo Testamento, e só neste capitulo aparece vinte e quatro vezes. Fé em Hebreus envolve a obediência ativa, em vez de uma crença passiva na verdade de Deus. (Cf. o relacionamento íntimo existente entre a descrença e a desobediência em 3:18s.) É óbvio que esta obediência também envolve a confiança. Assim, a palavra fé em Hebreus se aproxima da palavra “ fidelidade” (cf. 10:36-39). Veja-se R. Bultmann, TDNT, vol. 6, pp 205-8 A palavra grega que se traduziu poréa certeza de (hyposlasis) aparece em outras duas passagens de Hebreus. Na primeira delas (1:3), essa palavra grega tem um sentido objetivo, sendo traduzida por “ser”, em NI V : “aexpressa imagem de seu ser” (enquanto ECA traz: “de sua pessoa.” Na segunda ocorrência dessa palavra (3:14), ela deve ter um sentido subjetivo, sendo traduzida por “confiança,” em NIV: “a confiança que desde o princípio tivemos ” Todavia, até mesmo nesta passagem a palavra pode ter um sentido objetivo (como argumenta Koester) Provavelmente nesta passagem devemos favorecer o sentido objetivo, porque se harmoniza mais com o significado normal da palavra, e com o ímpeto principal do capitulo todo. Sugeriu-se uma terceira opção, que se assemelha ao sentido objetivo da palavra, com base no seu emprego em documentos seculares contemporâneos, em que tem o sentido de "titulo de propriedade” ou “garantia” (segundo J.H. Moulton e G Milligan, The Vocabular, o f lhe Greek Testament, vol I, pp. 710-14 e H Koester, TDNT. vol 8. pp 585-88 A segunda palavra chave (elenchos), que é traduzida por certeza em ECA (“certas” em NIV), aparece apenas aqui, em todo o Novo Testamento Quanto à opinião de não se pode dar a essa palavra o sentido de persuasão subjetiva, veja-se F Büchsel, TDNT, vol. 2, p 476. Na tradução de NIV "que esperamos” (ECA: que se esperam), entrevê-se a forte palavra do jargão cristão, elpizomenon, “esperança,” que nada tem que ver com "pensamento positivo,” pois é expectativa confiante (cf. 6 :11, 10:23, Rm 8:24s) A razão para a confiança nesta esperança — e na verdade para a própria fé — e a fidelidade de Deus (cf. 10 22s ). A fé está explicitamente relacionada ao que não vemos, tambem nos escritos de Filo (On Dreams — A Respeito de Sonhos — 1 b8). A ideia do autor da carta sobre o que significa “ invisível” se torna clara à medida que o capítulo vai-se desenvolvendo.

11:2 / O verbo grego traduzido por alcançaram (martyreo) é usado três vezes com referência às Escrituras (7:8, 17, 10:15). No capítulo que estamos estudando ele ocorre com o sentido de as Escrituras poderem “testificar,” e também, talvez, a tradição (w . 4, 5, 39). A palavra “anciãos” aparece apenas aqui, em Hebreus. Falta-lhe o sentido técnico que possui em outras passagens do Novo Testamento, aqui tem o sentido de “ancestrais.” As listagens de

(Hebreus 11:1-3) 209

210 (Hebreus 11:1-3)

exemplos do passado, que ilustram alguma virtude ou ideal, encontram-se apenas na literatura judaica (veja-se a introdução à presente seção), mas também na literatura helenística e, de modo particular, estóica.

11:3 / No texto grego, temos aqui a primeira de dezoito sentenças em que a palavra inicial é pistei (pela fé). E que esta palavra recebe ênfase especial, até pela posição que ocupa em cada sentença, a própria repetição tem a tenção de exercer um impacto cumulativo sobre o leitor. Das vinte e quatro ocorrên­cias dessa palavra (fé) neste capítulo, esta é a única fez em que o autor a aplica a si próprio e a seus leitores, de modo direto O verbo que se traduziu por entendemos (noeo) só se encontra aqui, no livro de Hebreus, mas e a mesma palavra utilizada por Paulo, em Romanos 1 20, num contexto semelhante “Os mundos” (aiori) é a mesma expressão usada em 1 2, mas a palavra correspon­dente a “criar,” aqui, (katartizõ) é diferente daquela que se usou em 1 2 (ela ocorre em Hebreus também, e de modo singular, em 10:5 e 13 21) Ainda que, por causa de 1 2, ficamos sabendo que o autor da carta vè o Filhocomooagente de Deus na criação, não temos esta cristologia refletida na referência à criação mediante a palavra Em vez de logos como termo grego para “palavra’’ (como aCristologiado logos de João, Jo 1 1 -3), aqui o termo grego e rhema. O autor da carta não mostra nenhum sinal de conhecer uma Cristologia do logos. Quanto ao significado deste versículo para a doutrina da criação t'.r mhilo , veja-se a exposição de Hughes, Hebrews — Hebreus — pp 443-52 A nova criação que surgiu, mediante a pregação do evangelho, e em resposta ao evangelho, nos a descrevemos com uma linguagem parecida à que faz vir o m undoaexistênciaapartirdonada(cf 1 Co 1 28) O Deus da criação e o Deus da nova criação que no evangelho executa um novo milagre criativo

28. A Fé Demonstrada por Abel' Enoque e Hoé (Hebreus 11:4-7)

O catálogo de heróis e heroínas da fé, feito pelo autor de Hebreus, inicia-se com três exemplos tirados dos primeiros capítulos de Gênesis, da época anterior ao dilúvio. Tais exemplos, bem como os demais que se lhes seguem, tém o objetivo de inspirar os leitores para que venham a exibir o mesmo tipo de fé (cf. 6:12). O fato de esses indivíduos terem sido motivados pela realidade invisível de Deus, e seus propósitos, é o fator comum a todos. Sua fé expressou-se na fidelidade obediente.

11:4/ Ainda que as minúcias do registro de Gênesis (Gn 4:2-16) sejam obscuras, e estejam longe de um esclarecimento, a oferta de Abel por alguma razão justa foi aceitável a Deus, enquanto a de Caim foi inteiramen­te inaceitável. No entanto, nós não precisamos conhecer os pormenores, antes de aceitar os argumentos do autor da carta aos Hebreus, segundo os quais a fé — a saber, a entrega sem reservas à realidade de Deus e ao caráter absoluto das vindicações de Deus sobre nós — fez uma diferença decisiva. De certa forma Caim retraiu-se em relação a Deus. quer na própna oferta, quer em seu coração; Abel nada reteve, mas agiu de maneira coerente com sua convicção intima. Foi esta atitude que tomou mais excelente o sacrifício de Abel. em relação ao de Caim, seu irmão. Essa expressão, "mais excelente.” é termo genérico de comparação que significa “mais adequado.” “mais aceitável” ). ECA prefere empregar o pronome relativo pelo qual. que faz referir-se ao sacrifício (pelo qual alcançou testemu­nho). Mas NIV traz em lugar desse pronome as palavras “pela fé alcançou testemunho.” No mesmo versículo. ECA diz: e por meio dela [da fé], depois de morto .. enquanto NIV diz “pela fé depois de morto... Alcancou testemunho, à semelhança do v. 2, quer dizer, literalmente: “ficou bem comprovado,” ou “atestado,” com referência ao relato de Gênesis, como fica bem claro na alusão deliberada às palavras da LXX, de Gênesis 4 4, dando Deus testemunho das suas ofertas. Pela sua fé, e pelas ações dela decorrentes, Abel foi considerado justo (alcançou testemunho de que sra justo; cf. v. 7). O primeiro assassinato produziu o primeiro mártir, e o

212 (Hebreus 11:4-7)

sangue inocente de Abel não foi esquecido (12:24; Mt 23,35; cf. G n 4 :10). Tendo morrido por causa de sua fidelidade, Abel continua a proclamar sua mensagem de fé.

11:5 \ Se em Abel fala a fé através de um homem morto, em Enoque ela fala mediante alguem que nunca morreu. \ I V e ECA registram três vezes a p a l a v r a “trasladar,” que significa levar de um lugar para outro Génesis tem pouca coisa que dizer a respeito de Enoque. Duas vezes no texto hebraico esta registrado que “ele andou com Deus" (Gn 5:22 e 24), que na LXX está traduzido por “ele agradara a Deus.” Esta expressão a b a d a ra a Deus e utilizada pelo autor da carta aqui e no versículo seguinte. As p a l a \ T a s não foi achado, porque Deus o trasladara , são citação da LXX. Génesis 5:24. Esta referência à trasladação de Enoque diretamente deste para o outro mundo, fez dele. bem como de Elias, personagens especiais da escatologia judaica; eles deverão reaparecer de novo como enviados especiais de Deus. O fato mais importante para nosso autor não é a trasladação de Enoque, mas antes, a declaração acerca de Enoque ter agradado a Deus (contraste-se cotn 10:38: ‘‘a minha alma não tem prazer nele"). E isto que significa andar pela fé (como afirma o versículo seguintei. Assim, sem prover informações mais detalhadas, o autor de Hebreus agarra a idéia de "agradar ao Senhor" como indicio da realidade da fé. Se nada mais pudermos dizer a respeito de Enoque, podemos asseverar que sua vida havia sido controlada pela realidade invisível de Deus. A aplicação geral se faz no versículo seguinte.

11:6 / O autor de Hebreus esta-se dirigindo agora a seus leitores e ao mesmo tempo comenta o significado de Enoque. Enoque podia viver uma \ida que agradava a Deus só enquanto aceitava a realidade de Deus (creia que ele existe; lit.: "que ele e"; cf. Ex 3 :14) e a convicção de que Deus o recompensaria (lit., “que Deus é galardoador”). Entretanto, esta orientação envolve a fé, visto envolver coisas que não estão aparentes de modo direto aos sentidos (cf. v. 27, “viu aquele que é invisível” ). O apelo aos leitores fica implícito, mas é real. A fé neste sentido é fundamental para todas as experiências religiosas (cf. Rm 10:14).

11:7 / Neste terceiro exemplo de fé, Noé (Gn 6:9-22) age de acordo com as advertências divinas a ele reveladas, a respeito das coisas que ainda

(Hebreus 11:4-7) 213

não se viam. Assim, o autor da carta retom a de modo explícito para a orientação da fé, voltada para as coisas invisíveis, e para o futuro (cf. v. 1). Este é um tema dominante no capitulo (veja-se a nota). Neste exemplo específico, fazendo contraste com todos os demais exemplos deste capítu­lo, o invisível e o futuro envolvem a ameaça do julgamento iminente, em vez das bênçãos escatológicas. A expressão de ECA sendo tem ente a Deus (que NIV traduz por “em temor santo”) literalmente é: “tendo preocupação reverente pelas [advertências e ordens reveladas divinamen­te].” Noé preparou, então, a arca, em obediência a Deus, a despeito de ser bastante ridicularizado pelas pessoas ao seu redor, pois, o objetivo era (lit.) “a salvação de sua casa.” Pela fé Noé (lit.: “através da qual” )... A fé demonstrada pelo patriarca Noé serviu para salientar a descrença do mundo e assim, demonstrar a adequação e justiça da condenação dos ímpios. Noé tornou-se por isso herdeiro da justiça que é segundo a fé. Esta linguagem à primeira vista parece linguagem de Paulo (cf. Rm 3:22, 24; 4:13) Mas no contexto ela não pode ser entendida como Paulo a ensinaria A fé de Noé expressou-se em ação (cf. Gn 6:9, 22; 7:1). O autor da carta não está discutindo a doutrina da salvação, investindo contra o legalismo dos judaizantes, mas esta descrevendo como a justiça é funda­mentalmente uma questão de fé no invisível, que conduz à ação apropri­ada. A chave não está na “crença.” por si mesma, como a vemos em Paulo, mas na fé que produz a conduta apropriada. Para o autor da carta, esta é a tradição de justiça que caracterizou a Noé (cf. 10:38).

Notas Adicionais # 2811:4 / Devemos notar duas variantes textuais neste versículo. Primeira,

P13 e Clemente da Alexandria omitem as palavras lo theo (na primeira referência a Deus neste versículo) Ainda que razões de estilo determinem sua omissão, as evidências textuais que favorecem tais palavras são poderosas demais, pelo que precisam permanecer A segunda variante representa uma harmonização em que temos o caso dativo da palavra antes mencionada, isto resulta em que a segunda sentença de ECA encerra as seguintes palavras: dando Deus testemunho das suas ofertas (que NIV prefere dizer de outra forma: “o que ficou testemunhado pelas suas ofertas a Deus.” Contudo, isto deixaria o particípio grego gramaticalmente sem explicação e, apesar de algum apoio textual de peso, a tradução de NIV deve ser rejeitada. Quanto a estas duas variantes, veja-se Metzger, TCGNT, pp. 671 s. A maior aceitação

214 (Hebreus 11:4-7)

da oferta apresentada por Abel deveu-se, provavelmente, mais à sua disponi­bilidade e obediência internas, do que à oferta propriamente dita. É provável que seja errado enfatizar o aspecto quantitativo (como o faz Westcott) da palavra grega traduzida por “melhor” (polys), em NIV, seria preferível a expressão mais excelente, de ECA. Não era o tamanho da oferta que importava. De modo semelhante, provavelmente é incorreto salientar que a oferta de Abel foi de animais, enquanto a de Caim foi de frutos da terra, se crermos nisto, atribuiremos maior significado à oferta de Abel, como se ali houvera um sacrifício pelo pecado, ou a semente da doutrina da expiação, mediante o sangue Não há o menor indicio de tal doutrina no texto Provavel­mente nem a LXX merece ser seguida quando se desvia do texto hebraico, e atribui a rejeição da oferta de Caim a um erro ritualistico, cerimonial: “não a manejando bem” (Gn 4:7, LXX) Quanto ao verbo “alcançar testemunho” (martyreo), veja-se a nota sobre o v 2, acima. A palavra greua equivalente a [homem justo] (dikaios) é amesma empregada em 10 38 Ela ocorre de novo em Hebreus apenas em 12.23

11:5 O verbo “trasladar" (metatithemi), que aparece duas vezes neste versículo, derivada citação de Gênesis 5 24, segundo a LXX Aparece apenas mais uma vez em Hebreus, em 7 12, com o sentido de “mudar" (com referência ao sacerdócio). O substantivo cognato “traladaçào” (metathesis), que ocorre neste versículo ( lit , “antes da transladação”) também aparece em 7 12 (“mudando-se”) e em 12 27 O verbo agradara (euaresleo), aqui e no versículo seguinte, é tirado da mesma citação da LXX Aparece apenas mais uma vez em Hebreus (13 16) Quanto a referências intertestamentárias a Enoque, as quais receberam um titulo literário, veja-se Sabedoria de Salomão 4 10, Siraque 44 16, 49 14, Jubileu 10 17 e 1 Enoque 71 14 (todos estes são escritos originários do periodo intertestamentario. e de epocas posteriores, conhecidos coletivamente como livros apócrifos e pseudepigráilcos)

11:6 O conceito de “agradar” a Deus foi tirado da LXX e aplicado de modo generico aos justos da igreja cristã. O autor da carta usa essa linguagem de forma semelhante (veja-se 12 28, 13 :16, 21, cf Rm 12:1 s, 14 18, Fp 4:18, Cl 3:20). Que se aproxima (proserchomai) de Deus não e verbo empregado de maneira técnica, como acontece em outra passagem do Novo Testamento (veja-se a nota sobre 4:16). Embora o substantivo fé (pistis) neste capitulo tenha grande importância, o verbo cognato “ter fé” (pisteuo) ocorre apenas uma vez neste capitulo. A segunda e ultima ocorrência em Hebreus está em 4:3 O substantivo “galardoador” (misthapodotes) ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testam ento. Mas o substantivo cognato “galardão” (misthapodosia) encontra-se em 2:2, 10:35, e 11 26 (mas só em Hebreus).

11:7 / A palavra grega traduzida por avisado (chrematizo) é termo técnico

(Hebreus 11:4-7) 215

para recepção de oráculos divinos. Aparece na carta aos Hebreus também em 8:5e 12:25. Entre os termos gregos equivalentes a sendo temente a Deus está o verbo euiabeomai, que ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento. Um dos sentidos dessa palavra é “sentir medo” ou “estar preocupado,” mas aqui pode bem ter o sentido de “ter reverente consideração p o r” Veja-se BAGD, p 322 A expressão herdeiro da justiça (que não aparece em nenhuma outra passagem do Novo Testamento) faz-nos lembrar de “herdeiros da promessa” (6 17) A palavra herdeiro (kleronomos) encontra-se outra vez em 1:2. Quando Paulo se refere a justiça que é segundo a fé, emprega as palavras ek pisteos (e g , Rm 9 30: 10:6) e nunca katapistm , como em nosso texto.

A realidade do invisível e um tema controlador neste capítulo, como podemos verificar pela lista seguinte:

v 1 — coisas esperadas, porém não vistas ainda3 — criação a partir do que não pode ser visto6 — que Deus existe e dá galardões7 — eventos ainda invisíveis8 — um pais invisível10 — a cidade cujos alicerces são permanentes (cf. 13:14)13 — de longe enxergam (as coisas que Deus havia prometido)14 — procurando um pais16 — o pais celestial26 — mantendo os olhos no galardão futuro27 — como se enxergasse o Deus invisivel

Ate mesmo alem destas referências explicitas, presume-se que os campeões da fé. a que este capitulo de Hebreus faz menção, agem da maneira como agem por causa de sua firme convicção a respeito da realidade de Deus e de suas promessas O resultado e que da perspecti va do mundo, a conduta deles parece temeraria e injustificável

2 9 .4 Fé Demonstrada por Abraão e Sara (Hebreus 11:8-12)

No Antigo Testamento, Abraão é o homem de te por excèlencia. De acordo com Génesis 15:6, “creu Abraão no Senhor, e isso lhe foi imputado parajustiça." Paulo descreve a Abraão como "o pai de todos os que crêem” (Rm 4:11; cf. G1 3:9). O autor da carta compreensivelmente lhe dá mais espaço do que a qualquer outro herói dentre os que menciona. Destacam- se trés grandes episódios da vida de Abraào: a partida para a Terra Santa; o cumprimento posterior da promessa de descendentes: e. nos vv. 17-19. o sacrifício de Isaque. Em todos esses eventos, patenteia-se maravilhosa­mente a te de Abraão. Foi a fé que permitiu a Abraão vencer certos obstáculos que. da perspectiva humana, eram intransponíveis. A fórmula do autor da cana. “pela fé.” aplica-se a Abraão quatro vezes: nos vv 8, 9.11 (talvez se refira a Sara) e 17

11:8/ Neste pnm eiro exemplo (tirado de Gn 12 1. 4) a essência da te expressa-se de fonna simples, mas bela. Abraão é chamado por Deus para que fosse para um lugar que havia de receber por herança Abraào obedeceu, e paniu. ainda que sem saber para onde ia Abraào deixa para tras o conhecido, o familiar, para ser conduzido para onde quer que Deus quisesse leva-lo. Age apenas com base nas promessas de Deus, e nada mais. partindo para o desconhecido, para lugares nunca antes vistos (cf. a definição de fé. no v I ). Assim vemos que Abraão é controlado por Deus. e pela promessa divina. E exatamente isto que fé significa, e o que o autor da cana deseja que seus leitores imitem (cf. 13:13).

11:9 A despeito do fato de Abraão ter chegado à te rra da promessa, não se estabeleceu ali como se aquele fosse seu objetivo final. Na verdade, continuou a viver como peregnno neste mundo, como em te rra alheia (Gn 23 :4), ate mesmo na terra da promessa, como morador em tendas (e.g., Gn 12:8; 13:3; 18:1), em vez de estruturas mais permanentes. Nisto ele foi seguido pelo seu filho e neto (o que será mencionado de novo nos w . 20-

(Hebreus 11:8-12) 217

21), a saber, Isaque e Jacó, que seriam literalmente herdeiros com ele (ou co-herdeiros) da mesma promessa (cf. 6:17).

11:10 / A razão dessa atitude de Abraão, tão estranha segundo os padrões do mundo, toma-se clara, agora. Ele sabia que a vontade de Deus para seu povo transcendia a segurança e a prosperidade, numa propriedade agrícola na praia oriental do Mediterrâneo. Agora o autor de Hebreus emprega a metáfora de uma cidade — sem dúvida tem em mente a imagem escatologica da Jerusalém celestial (cf. v. 16; 12:22; 13:14; Ap 21:2). Mas ele também fala de um país celestial, equivalente simbólico da cidade (v. 16). A cidade que Abraão procurava é descrita como tendo fundamentos -- isto e, trata-se de cidade estável e permanente — cidade da qual Deus

é o arquiteto e construtor Nosso objetivo final, nossa esperança escatologica, não e uma realização da tecnologia humana, mas pura criação de Deus. A realidade desta bênção, embora ainda esteja no futuro e, portanto, seja invisivel. é de tal ordem que consegue motivar nossa conduta aqui, no presente Este ponto será mais bem elaborado nos w . 13-16.

11:11-12 O segundo exemplo da fé de Abraão (tirado de Gn 17:15-21; 18:9-15: e 21 :1 -7) envolve o cumprimento das promessas de Deus quanto a seus futuros descendentes. Abraão colocou sua confiança na fidelidade de Deus Porque teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa: esta confiança permitiu a Abraão e Sara que realizassem algo humanamente impossível, em que nem se podia pensar (cf. a reação de Abraão, Gn 17:18; e a de Sara. em 18:12 e 21:7). Assim foi que a despeito da avançada idade de Abraão, da velhice e esterilidade de Sara, ambos se tornaram pais. Sara recebeu poder de conceber um filho (trad, lit ), mesmo fora da idade. O resultado da fé, neste exemplo, foi que também de um, e esse já amorte­cido. isto é. “desgastado,” "impotente,” (“amortecido” ; o particípio pode ser equivalente a “tido como morto”) descenderam tantos, em multidão. Essa abundância de descendentes, que agora se vê em pleno cumprimento, é deliberadamente descrita na linguagem das promessas de aliança feitas a Abraão, registradas em Gênesis (veja-se Gn 15:5; 22; 17; 32:12). Deus foi fiel em sua promessa, e foi mediante a fé demonstrada por Abraão e Sara que o casal experimentou a fidelidade de Deus. A argumentação do autor aqui é muito semelhante à de Paulo, em Romanos 4:16ss. Ali, Paulo se refere a Deus como aquele “que vivifica os mortos, e chama à existência

218 (Hebreus 11:8-12)

as coisas que não são como se já fossem” (Rm 4:17). Ele também descreve a atitude de Abraão com estas palavras: “estando certíssimo de que o que ele tinha prometido também era poderoso para cumprir” (4:21).

Notas Adicionais # 2911:8/ Abraão é freqüentemente festejado como herói da fé, na literatura

judaica. Por isso, em geral pode-se encontrar textos paralelos a esta passagem, e g , em Siraque 44:19-21, Sabedoria de Salomão 10:5, e Filo, On Abraham (A Respeito de Abraão), e The Migration o f Abraham (A Migração de Abraão). O autor da carta une a fé à obediência de maneira semelhante a Tiago2 14-26 Abraão não só tem fé, como age coerentemente, segundo a te ele obedece a Deus A palavra grega para “ir” (para onde ia, exerchomai) é a mesma empregada em Gênesis 12:1, segundo a LXX A palavra herança aparece aparece só aqui e em 9 15, em Hebreus Segundo seu uso aqui, herança (kleronomia) refere-se a terra prometida a Abraão (de que Isaque e Jacó são “herdeiros com ele”, v. 9) Na verdade este é o uso comum da palavra, mas o autor da carta a emprega em um sentido mais amplo, como em 9:15 \ eja-se W Foerster, TDNT, vol 3, pp 776-85

11:9 \ No discurso de Estêvão, em Atos 7, o mesmo ponto e levantado Quando Abraão saiu, em demandada terra prometida. Deus "não lhe deu nela herança, nem ainda o espaço de um pe” (At 7 5) O verbo grego equivalente a peregrinou na terra da promessa, como em terra alheia (paroikeo, "peregrinar”) é muito empregado com referência a Abraão, na LXX, e .g , Gênesis 12,10, 17:8, 19 9; 20 1, 26:3 (cf o substantivo cognato “peregrino,” paroikos, em Gn 23:4) No entanto, Abraão em nenhum lugar e descrito na LXX com a palavra “estrangeiro” (alio/rios), com que o autor da carta o descreve aqui Duas palavras semelhantes são empregadas no v 13, “estran­geiros e peregrinos na terra.” A narrativa de Gênesis diz varias vezes que Abraão habitou numa tenda (e.g , 12:8, 13 3; 18: lss )

11:10 \ A metáfora de uma "cidade” (polis) que haveria de vir tem antecedentes judaicos, e deriva da importância de Jerusalém Filo emprega essa metáfora para descrever a promessa feita a Abraão (Allegoncal Interpretatwn — Interpretação Alegórica — 3 .83). Paulo utiliza essa tradição quando se refere à “Jerusalém que é de cima” em Gàlatas 4:26, e encontra-se no Apocalipse a referência á “grande cidade, a santa Jerusalém, que descia do ceu, da parte de Deus” (Ap 21 10) O primitivo escritor cristão Hermas usa a imagem da cidade de maneira semelhante à do autor de Hebreus, e talvez dependa deste autor (Shepherd— Pastor — Similitude 1.1). Essa metáfora é empregada de novo pelo autor da carta no v. 16eem 12:22(cf. 13:14). Trata-

(Hebreus 11:8-12) 219

se da realidade escatologica que espera o povo de Deus. Tal realidade controlava a Abraão (embora, logicamente, Abraão não estivesse consciente desta metáfora). Veja-se H. Strathmann, TDNT, vol. 6, pp. 529-33. A referência aos fundamentos da cidade pode ter derivado de Salmos 87:1 (cf. RSV) Veja-se também Apocalipse 21:1 4 ,19s. NIV e ECA trazem arquiteto e construtor, duas palavras raras no Novo Testamento. A primeira delas no grego é techmtes (“técnico,” “perito,” “projetista”), encontra-se em outras passagens do Novo Testamento apenas em Atos 17:29, 18:3, e Apocalipse 18 22, a segunda, demiourgos (“o que faz,” “criador”) ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento Filo utiliza ambas as palavras (ou seus cognatos) ao descrever Deus (e.g., Quem E o Herdeiro? 133) Em Epistle lo Diognetus — Carta a Diogneto — as mesmas duas palavras são usadas a fim de descrever a Jesus como o agente divino na criação (7:2); no entanto, isto poderia ser influência de Hebreus O argumento segundo o qual o povo de Deus encontra seu verdadeiro lar em qualquer lugar, exceto no mundo atual (cf. w . 13-16), encontra-se em vários outros lugares do Novo Testamento (e.g., Fp 3:20): “Mas a nossa pátria esta nos céus, de onde esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo”, c f 1 Pd 1 1, 17, 2 11) Um argumento semelhante ao da passagem que estudamos encontra-se em Hebreus 3 7-4 1 1, onde a entrada na terra de Canaà não garante o descanso que Deus prometera.

11:11-12 / Existe um problema textual sério, no inicio do v. 11, que gira ao redor do sujeito do primeiro verbo do versiculo: Refere-se a Abraão ou a Sara0 Para NIV (igual a GNB, discorda de RSV, NEB, ECA e NASB) a conclusão foi, talvez corretamente, que o sujeito é Abraão A razão mais forte que favorece esta opinião e que a linguagem do v 11, “recebeu poder para gerar” e regularmente utilizado para os homens, nunca para as mulheres. Neste caso a questão se torna como redigir o texto: “A própria Sara estéril,” ou como alguns manuscritos trazem “A própria Sara.” Não é necessário tomar tais palavras como uma glosa que se adicionou ao texto. As palavras podem ser interpretadas como estando no caso dativo (que nos manuscritos mais antigos seria indistinguível do caso nominativo) e entendidas como referindo-se ao acompanhamento, í.e., ‘"com a própria (estéril) Sara” , assim crêem, entre outros, Michel e Bruce No entanto, tais palavras tambem podem ser entendi­das como estando no caso nominativo, e consideradas cláusula adverbial circunstancial, no hebraico: “ainda que Sara fosse estéril” (assim crêem Metzger [TCGNT] e a comissão UBS). Estas possibilidades naturais, ao lado do significado normal do verbo, fazem que se tome necessário que se interprete que Sara é o sujeito Há outras vantagens derivadas de entender-se que o sujeito do verbo é Abraão: Toma-se desnecessário aceitar uma mudança repentina (e não esperada) de assunto (o pensamento precisa voltar-se de novo

220 (Hebreus 11:8-12)

para Abraáo) no v. 12, e evita-se o problema do registro de Gênesis, segundo o qual Sara não tem fé (veja-se de modo especial Gn 18:12-15).

E interessante a sugestão de Hughes: Entender que Sara é o sujeito do verbo, e que este deve ser entendido como “estabelecedor de uma posterida­de,” parece interpretação torcida, e menos satisfatória do que as soluções propostas acima. Veja-se Metzger, TCGNT, pp 672s. Quanto ao termo técnico “gerar” (lit., “ lançar semente”), veja-se BAGD, p. 409. O que foi reconhecido como verdadeiro por Abraão — que aquele que prometeu era fiel— é expresso pelo autor da carta com as mesmas palavras, exatamente, em sua exortação aos leitores, em 10:23. (Veja-se a nota sobre a passagem.) O participio que rege a tradução proposta por NIV “como se estivesse morto” {nekroò) ocorre com esse sentido preciso em Romanos 4:19 (a segunda e última ocorrência desse verbo em todo o Novo Testamento é Colossenses 3:5; aqui, todavia, o verbo tem um sentido diferente). As frases do Antigo Testamento a respeito da abundância de estrelas do céu e areia inumerável que está na praia do m ar tinham-se tomado metáforas familiares, muito populares, a respeito de como Deus sempre foi fiel ao abençoar Abraão, pelo fato de serem lidas em Gênesis.

30. A Natureza Transcendental da Esperança (Hebreus 11:13-16)

O autor da carta aos Hebreus interrompe seu inventário de heróis da fé, com seus triunfos específicos, a fim de elaborar o texto dos w . 8-10. A perspectiva que ele estabelece aqui, a de que nós vivemos neste mundo como peregrinos, ou estrangeiros, pertence à essência da fé, que ele próprio descreveu de início, no v. 1. As coisas esperadas, embora não vistas, controlam a vida da pessoa que tem fé. Os santos do Antigo Testamento buscavam a realidade que Deus lhes prometera. Tratava-se de uma realidade escatologica, “um país celestial,” “uma cidade” preparada por Deus. As implicações para os leitores judeus, destinatário da carta, em sua atual situação, estão bem claras. Na verdade, o que o autor deseja para seus leitores é exatamente esse tipo de fé, a que vê esta vida como peregrinação.

11:13-14 / Os heróis da fé discutidos até agora, a semelhança dos outros prestes a serem mencionados (cf. v. 39), morreram sem ter recebido as prom essas de Deus no Antigo Testamento: (Não a lcançaram as prom es­sas). Os heróis da fé m orreram na fé depois de ter vivido pela fé. Em outras palavras, morreram depois de viver controlados por um a realidade distante, não experimentada. E enfrentaram a morte com essa mesma atitude. A reação desses heróis que creram no Senhor, diante do que os aguardava no futuro, é descrita pelo autor da carta em linguagem pitoresca: Viram-nas de longe, e as saudaram (Jo 8:56). Foi a orientação desses crentes em relação às promessas que os capacitou a considerar a situação atual como temporária, e a descrever-se a si próprios como estrangeiros e peregrinos na terra (Gn 23:4; 47:9; 1 Cr 29:15; SI 39:12). Sua verdadeira pátria estava noutro lugar, pelo que essas pessoas procuravam para si mesmas uma pátria celestial. Embora o autor da carta não use aqui a linguagem de sombra (figura) e de realidade (como em 8:2 e 9:23s.), poderia facilmente tê-lo feito. As promessas e a experiência das bênçãos temporais, terrenas, paia essas pessoas não passavam de sombras, ou figuras, ou protótipos da realidade escatologica vindoura.

222 (Hebreus 11:13-16)

11:15-16 / Abraão e sua família poderiam, é claro, ter regressado à Mesopotâmia, caso houvessem continuado a considerar esta região sua verdadeira pátria. Não era isso, contudo, que ocupava seus pensamentos, nem o que governava seu modo de viver. Tais idéias não deveriam jamais entrar nas mentes dos leitores de Hebreus (veja-se 10:39). Não foi o fato de estarem longe da Mesopotâmia que fez que Abraão e sua família se referissem a si próprios como estrangeiros no exílio. O que eles buscavam era um a p á tr ia m elhor, isto é, a celestial (na verdade, a palavra “pátna” não existe no original hebraico; NIV e ECA a tomaram do v. 14). De novoo autor da carta se refere a uma cidade que o próprio Deus lhes preparou (cf. v. 10). Esta é uma expectativa escatologica, etema, que nada tem de temporária, transitória. O ponto central expresso pelas palavras: tam bém Deus não se envergonha deles, de ser cham ado o seu Deus (cf. Èx 3:6) sigmfíca simplesmente que Deus é fiel às suas promessas. Podemos, portanto, referir-nos às suas expectativas como sendo realidade atual. Na verdade, essa realidade já está sendo experimentada pela igreja (12:22), e ao mesmo tempo continua a ser algo que ainda está por vir em sua plenitude (Ap 21:2).

Notas Adicionais # 3011:13-14 / A palavra inicial aqui no grego não é pistei, “pela fé,” como

ocorre com regularidade neste capítulo, mas kata pisíin, lit., “de acordo com a fé.” Esta mudança textual não implica em diferença importante; esta se deve, talvez, ao verbo que se segue, “morreram.” Não é “pela fé” porque a fé não explica o fato de terem momdo Antes, “morreram” estando firmes “na fé,” ou “de acordo com a fé,” a saber, morreram tendo o coração firmado no objetivo que Deus lhes prometera O texto ampliado e interpretativo de NIV “ainda vivendo pela fé” como tradução do termo simples kata pistm tem o efeito de esclarecer esta questão.

Fica bem claro por causa deste versículo (13) que Abraão não experimen­tou as promessas de Deus em seu sentido mais profundo Antes, em 6 15, o autor da carta disse que ALraão recebera uma espécie de cumprimento parcial das promessas. Todav - - .; cumprimento parcial ficou longe da verdadeira intenção que envolvia promessas. Ao ídetraficar a expectativa de Abraão comi>daigrtna{d *%. 3SMO/Mordaear^ sublinha de novo a unidade da hisiona da salvaçia O verbo grego traduzido por alcançaram (Jcomizo) ocorre em outras pnsagers de Hebretn (10:36 e 11:39) ao lado de um

(Hebreus 11:13-16) 223

substantivo, “promessa” (cf. também 11:19). O termo grego para de longe é p o rrõ th e n , e ocorre apenas aqui e em Lucas 17:12, em todo o Novo Testamen­to. Saudaram (a sp azo m a i), que também se pode traduzir por “deram boas vindas,” ocorre de novo com seu sentido normal (saudar) duas vezes em 13:24. Confessaram vem de h o m olog eo , verbo que ocorre de novo em 13:15 (“confessar”). A palavra estrangeiros (p arep id êm o s) é utilizada de maneira semelhante em 1 Pedro (1:1; 2:11) para descrever a vida do cristão neste mundo. A primeira carta de Pedro 2:11 liga esta palavra com o seu sinônimo p a ro ik o i, em vez de xenot (NIV traduz ambas pela palavra “estrangeiros”). (O autor de Hebreus usa o verbo cognato p a ro ik e o ,“ v iveu como estrangeiro,” no v 9 ) Buscando uma pátria reflete o verbo forte ep izeteo , “procurar,” que ocorre com esse mesmo sentido na exortação de 13; 14. As palavras “uma pátria” (NIV acrescenta: “deles mesmos”) ocorrem apenas aqui em Hebreus (cf. Lc 4:24).

11:15-16 / Os patriarcas foram fiéis, em sua expectativa. Não desejaram regressar a Mesopotâmia (não aconteceu que se lembrassem daquela de onde haviam saído) Este fato contrasta com a geração que peregrinou pelo deserto e não pôde entrar no repouso de Deus (4:6); ao contrário, este povo desejou regressar ao Egito. Desejam uma pátria melhor: o verbo é tradução de oregomai, uma palavra rara no Novo Testamento (ocorre em outra passagem do Novo Testamento somente em 1 Timóteo 3:1, 6:10). Melhor é palavra-chave em Hebreus, usada principalmente para contrastar a antiga aliança com a aliança nova, superior (veja-se a nota sobre 1:4). Quanto a celestial (epouramos). veja-se a nota sobre 3 1 .0 que o autor da carta tem em vista é a realidade transcendental e perfeita que aguarda os santos de Deus (cf.1 Co 2:9; Rm 8:18). Quando Jesus cita Êxodo 3 :6, “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó” (Mt 2:32), ele acrescenta que “Deus não é Deus de monos, mas de vivos.” Isto sugere, de modo semelhante ao da presente passagem, que os patn arcas, pelaressurreição, herdarão as promessas transcendentais de que Deus lhes falou. O propósito de Deus eraque “eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados” (v. 40), ou seja, “só conosco é que seriam aperfeiçoados. ” A cidade que Deus preparoujá foi mencionada no v. 10. Veja- se a nota sobre esse versículo.

31. Abraão Oferece Isaque; a Fé em Isaque, lacó e José (Hebreus 11 :17 -22 )

O terceiro exemplo prático da fé existente em Abraão, talvez o fato mais notável da vida do patriarca, surge agora diante de nós: Abraão oferece a seu filho Isaque. Acrescentam-se aqui algumas breves referencias a Isaque, Jacó e José. Estes homens demonstram sua fé na orientação confiante em face do futuro, daquilo que não se vê (cf. v. 1).

11:17-18 \ A história do teste de Abraão, quanto à fé, relatada aqui, foi tirada de Gênesis 22:1-14, e veio a tomar-se muito importante na tradição judaica, sob o titulo: "Amarrando Isaque" (que também se conhece por 'Aqedah’). Embora Abraão houvesse amarrado a Isaque e, em obediência a Deus, estivesse prestes a matá-lo em sacrifício, Deus interveio no último instante. O verbo ofereceu deve ser entendido dessa forma. Ao ser provado é tradução ampliada da expressão mais simples do que a de NIV: '‘Quando Deus o provou.” Como salienta o autor da carta, a prova assumiu significado incomum, desde que Abraão era aquele que havia recebido as promessas. Isto fica salientado pela citação no v. 18 que de modo explícito dá o nome de Isaque como o filho mediante quem se cumpriria a promessa de descendentes. A citação vem de Génesis 21:12, podendo ser traduzida literalmente assim: “Em Isaque será chamada a tua semente.” Abraão passou pela mais severa forma de teste, mas depois de suportá-lo, demons­trou sua fé, a saber, sua confiança absoluta, inamovivel, na fidelidade de Deus e suas promessas.

11:19 / Do ponto de vista de Abraão, o poder de Deus era tal que, se fosse necessário sacrificar Isaque, este ressurgiria. Deus o ressuscitaria “de entre os mortos” (Deus era poderoso para até dentre os mortos o ressuscitar). A cláusula seguinte é difícil de ser interpretada com exati­dão: dat também em figura o recobrou é tradução dè ECA do texto original que diz, literalmente: “de onde o recebeu numa parábola.” Estas palavras oodem significar nada mais, nada menos, do que isto: Desde que Isaque já era considerado morto, pois seria sacrificado, condnuar em vida

(Hebreus 11:17-22) 225

foi como se houvesse ressurgido dentre os mortos. No entanto, pode haver aqui uma alusão deliberada a Isaque como antecipação parabólica da ressuneição de Cristo. É que Deus, à semelhança de Abraão, sacrificou seu único Filho, a quem o Senhor recebeu de novo mediante a ressurreição. Por isso, o fato de Isaque ter sido amarrado, prediz não só o sacrifício de Cristo, mas sua ressurreição também.

11:20 / Pela fé Isaque abençoou a Jacó e Esaú, no tocante às coisas futuras (lit., ‘concernente às coisas vindouras”). Isaque, que recebeu a mesma aliança recebida por seu pai Abraão, falou com toda confiança a respeito do futuro (Gn 27:28s., 39s.), porque confiava nas promessas de Deus. Portanto, Isaque fica ao lado de seu pai na linhagem dos que têm fé.

11:21 / De modo semelhante, o moribundo Jacó abençoou os filhos de Jose. A referência a bênção dos dois filhos de José, em vez de seus próprios doze filhos (Gn 49), provavelmente resulta da referência anterior a bênção que Isaque impetrou sobre Jacó e Esaú. No entanto, Jacó, diferentemente de Isaque, com muita deliberação quis abençoar o mais jovem dos dois irmãos, Efraim (Gn 48:15ss.). A última oração deste versículo foi tomada pratica­mente ao pe da letra da LXX (Gn 47:31). Fica difícil dizer por que o autor a incluiu. Talvez ele tenha entendido que a atitude de adoração de Jacó foi particularmente apropriada para a realidade da fé exibida pelo patriarca.

11:22 / Como ocorre nos dois exemplos precedentes, estamos de novo diante de uma visão de relance de um herói prestes a falecer: próximo da morte (lit., ‘morrendo”). Por isso, estes exemplos ilustram vividamente a declaração no v. 13 acerca de morrer “na fé.” A vista de sua fé na fidelidade de Deus. José recebera conhecimento do futuro, e foi capacitado a falar (lit.) do “êxodo dos filhos de Israel” e dar instruções (lit.) “concernentes a seus ossos” (veja-se Gn 50:24s); estes, bem como os de Jacó, devenam ser trasladados para a terra da promessa.

Notas Adiàonais # 3 ]11:17-18 \ A linguagem do autor no v. 17 fica bem próxima da de Génesis

22. “Isaque sendo amarrado” é referência que se faz em certas liturgias judaicas por ocasião do Ano Novo Quanto a alusões a esta história, veja-se também Siraque 44:20; Sabedona de Salomão 10:5; 4 Macabeus 16:20 (cf

226 (Hebreus 11:17-22)

13:12). A referência a seu unigénito pode refletir a influência indireta da Cnstologia da igreja primitiva, onde naturalmente esse título era de suma importância. E possível que Paulo em Romanos 8:32 tenha usado Gênesis 22 como base, alguns eruditos acham que Jo 8:56 seria reflexo desta história (cf. Jo 3:16). As palavras o seu unigénito (monogenes) não ocorrem na narrativa de Gênesis, segundo a LXX. Nesta versão (Gn 22:2), de Isaque se diz que foi “o filho... a quem amas” (ou “amado,” agapêtos), termo intimamente relaci­onado a uma palavra que é tradução talvez alternativa da expressão hebraica O emprego de “unigénito” para referir-se a Cristo ocorre só aqui, na literatura joanina do Novo Testamento (Quanto a “filho amado,” veja-se Mc 111,9:7, 12:6, e textos paralelos.) E claro que Isaque não foi o unico filho de Abraão— mas foi o único filho de Sara e o único segundo a linhagem da promessa, como o versículo seguinte salienta sem possibilidade de engano Portanto, Isaque era o filho unigénito Tiago 2:21 s. também se refere ao oferecimento que Abraão fez de Isaque como exemplo de uma pessoa por cujas “obras a fé foi aperfeiçoada.” Quanto a Isaque como tipo de Cristo na literatura cristã primitiva (e.g., Bamabé 7:3), vejam-se referências em Hughes, pp. 485s. O verbo gregoprosphero foi traduzido em ECA por ofereceu, pode-se dizerque constitui uma forma incipiente de pretérito imperfeito do verbo, com o sentido de “começou a oferecer,” sem ter terminado a ação As promessas — esta expressão de novo traz conotação não simplesmente das promessas de natureza temporal, transitória, mas de modo particular das expectativas transcendentais de que são meras predições Veja-se a nota sobre 4:1 Quanto a importância da presente passagem para a perspectiva do autor da carta, veja- se J. Swetnam, Jesus and lsaac: A Study o f the Epistle to the Hebrews m the Light ofthe Aqedah — Jesus e Isaque: Estudo da Epístola aos Hebreus à Luz de ‘Aqedah’ — Roma: Biblical Institute Press, 1981).

11:19 / Julgou (lo g o zo m a i) significa “considerar verdadeiro.” É palavra usada em Hebreus somente aqui. Mas é empregada freqüentemente em conexão com Abraão em Romanos 4. Ressurreição não é uma idéia importante em Hebreus (aressurreição de Cnsto é mencionada explicitamente apenas em 13:20). A ascenção de Cnsto, que certamente pressupõe sua ressurreição, assume a parte mais significativa (vejam-se a nota sobre 1:13 e a importância do SI 110:1 nacarta). A palavra“parábola” (perraòo/e) fora utilizada antes pelo autor da carta em 9:9 (onde NTV traduz: “Isto é uma ilustração,” e ECA: “Esta é uma parábola”). É possível que quando o autor da carta escreve “e dai também em figira o [o morto] recobrou,” estivesse pensando na geração de Isaque, alguém que estava “praticamente morto” (v. 12; assim pensa Westcott)

positivei interpretar a fé em Abraão como significando que Deus tena o poder de suscitar outro filho semelhante a Isaque, tendo a Sara como sua mãe.

(Hebreus 11:17-22) 227

No entanto, nesta narrativa de Genesis, parece que Abraão crè que Isaque será poupado, de alguma forma (Gn 22:5,8). Por isso, é mais provável que Abraão cresse no poder de Deus para ressuscitar Isaque dentre os mortos, se isto fosse necessário E assim, de modo simbólico (daí também em figura), Abraão recebeu a Isaque dentre os mortos, pelo que Isaque é tipo da ressurreição de Cristo. As palavras de Paulo a respeito do poder de Deus, em quem Abraão cria, são pertinentes: “Deus, que vivifica os mortos, e chama à existência as coisas que não são como se já fossem” (Rm 4 :17).

11:20 / O verbo grego traduzido por “no tocante às coisas futuras” (mello) e usado freqüentemente em Hebreus para indicar a esperança escatologica dos fiéis (veja-se 1:14; 2:5, 6:5; 10:1, 13 14). “Abençoou” (eulogeõ) neste contexto refere-se ao costume hebraico de passar a promessa, e a posição privilegiada que a acompanha (cf. 6 :14), de uma geração para outra. Assim, um pai próximo a morte abençoaria seu filho ou neto (como Abraão abençoou a Isaque, Gn 25:11, Isaque abençoou a Jacó, Gn 27:27ss , e Jacó abençoou a José, Gn 48:15, Efraim e Manassés, Gn 48:20). Veja-se H. Beyer, vol. 2, pp. 754-65.

11:21 \ Quanto a palavra abençoou, veja-se a nota precedente. Embora a LXX nos mostre Jacó apoiado em seu bordão, o hebraico de Gênesis 47:31 diz que “ele se inclinou na cabeceira da cama” (RSV). As palavras para “cama” e “bordão” escrevem-se com as mesmas três consoantes (mth), com vocalizações diferentes. Os massoretas do inicio da Idade Média escolheram as vogais de “cama,” e assim a palavra chegou até nós, naBiblia Hebraica de que dispomos.O objeto físico sobre o qual Jacó se inclinou é de ínfima importância; o que importa e a atitude e disposição de adoração, que salientam a fé em Jacó.

11:22 / A fé em Jacó pode ser ilustrada com abundância de episódios ocorridos em sua vida E bastante compreensível que Jacó se tenha tomado celebre, por causa das características de sua biografia (e.g., Filo, OnJoseph; Testamento/Joseph — , A Respeito de José: O Testamento de José — Josefo, Am.; SI 105:17ss., Sab. de Salomão 10:13s.; 1 Macabeus2:53, At7:9s.). A fé demonstrada por José não só lhe deu confiança em que finalmente o povo de Israel sena liberto, como também o levou a dar instruções a respeito de seus restos mortais. Tais instruções foram cumpndas fielmente, de acordo com Êxodo 13:19eJosias 24:32. Quanto ao emprego da palavra grega íncomum m n e m o n e u õ (fez menção ou “mencionou”), veja-se BAGD, p S2S.

32. 4 Fé Demonstrada por Moisés e pelos Israelitas (Hebreus 11:23-29)

Moisés é um herói da fé de significado central no judaísmo, pelo que assume lugar de preeminência no catálogo do autor de Hebreus. O autor seleciona alguns dos eventos mais importantes da vida de Moisés, inician­do com sua sobrevivência quando crianca, por causa da fé exibida pelos seus pais, e conc Iumdo com uma referência geral ao êxodo e à participação do povo na mesma fé que Moisés demonstrara. De novo a ênfase se aplica no que não se pode ver e na fidelidade de Deus no cumprimento de suas promessas.

11:23 / A própria vida de Moisés dependeu de sua fé desde o começo. Quando bebê, ele se salvou por causa da fé de seus pais. Foi com grande risco pessoal que seus pais desobedeceram às ordens do Faraó, segundo a qual todos os filhos de pais hebreus deveriam ser mortos (Êx 1:22), e não tem eram o decreto do rei. Confiaram em Deus e em sua fidelidade, e mantiveram seu filho escondido duran te três meses (Êx 2:lss.). A referência à criança: o menino era formoso (lit.) é tirada de LXX (Êx 2:2; cf. At 7:20). O autor de Hebreus poderia prosseguir enfatizando a fé dos pais de Moisés, quando colocaram o menino num cesto e o puseram a flutuar no rio Nilo, e a maravilhosa recompensa dessa fé quando sua mãe foi chamada para ser sua babá.

11:24-26 / O fruto da fé tem sido mostrado de várias maneiras, até o presente: por exemplo, a confiança a respeito do desconhecido e do futuro; a obediência à difícil e inesperada ordem de Deus; coragem em face do medo. Agora o autor da carta ilustra como a fé possibilita a auto-negação pessoal em face do sofrimento, escolhendo as provações em vez do prazer. Moisés recusou o que teria sido o sonho grandioso de muitos: ser chamado filho da filha de Faraó. Em vez disso, preferiu (escolhendo antes) identificar-se com o sofrimento de seu povo (Êx 2:1 ls.; cf. At 7:23ss.). Permanecer na corte de Faraó significaria gozar dos prazeres da came, isto é, a gratificação dos sentidos, mas só por algum tempo. Se houvesse prefendo ficar na corte

(Hebreus 11:23-29) 229

de Faraó, teria voltado as costas às necessidades de seu povo, o que teria sido pecado. A chave para o comportamento de Moisés, tão estranho, segundo os padrões do mundo, está no v. 26. Ele fora motivado pela recompensa. É a mesma palavra usada em 10:35, também num contexto de sofrimento. Tendo em vista a recompensa última, ou transcendental, Moisés conside­rou ser verdade que sofrer o opróbrio de Cristo (NIV diz: “por amor de Cristo”) induziria a uma riqueza maior do que os tesouros do Egito. As palavras o opróbrio de C risto certamente constituem anacronismo, pois refletem categorias de pensamento posteriores ao tempo de Moisés. Dada, todavia, a continuidade dos propósitos salvíficos de Deus, quando Moisés sofreu o opróbrio pela sua lealdade ao povo de Deus, em princípio se poderia dizer dele que sofreu por causa de sua lealdade a Cristo (cf. 13:13).

11:27-28 / A semelhança de seus pais (v. 23), Moisés não teve medo do poderoso Faraó. Esta passagem não se refere à fuga de Moisés do Egito, depois de haver matado o egípcio, mas como o contexto sugere, ao fato de ele conduzir o povo de Israel para fora do Egito.

Aludindo ao versículo de abertura deste capítulo, o autor da carta descreve as realizações de Moisés pela fé com estas palavras: ficou firme porque viu aquele que é invisível. A menção da perseverança pode ser entendida como sendo a seqüência toda de eventos que culminaram no proprio êxodo. Moisés havia sido motivado pela sua convicção sobre a realidade do que não se pode ver. Em harmonia com o enfoque geral do capítulo todo, é provável que o que ele tem em vista seja a esperança transcendental que. disto podemos ter certeza, em última análise depende da existência de Deus (v. 6) e de sua ação. O v. 28 movimenta-se do geral para o específico, o meio pelo qual o livramento dos israelitas foi realizado. A fé tomou a Páscoa (Êx 12:12s., 21-30) uma possibilidade. O destrui­dor. por causa da aspersão do sangue não poderia tocar os primogênitos de Israel. Portanto, foi pela fé que Moisés obedeceu a Deus. Ele agiu confiantemente, certo da fidelidade do Senhor. O resultado foi o livramen­to dos israelitas e a punição dos egípcios.

11:29 / Os israelitas (lit, “eles”) demonstraram o nu mo po de fé de Moisés. Tinham confianca em que Deus os livraria e »muq demonstraria ser fiel às suas promessas. Foi essa fé que lhes penmtiu atravessar o mar Vermelho sob a liderança de Moisés, pelo milagre da separação das águas

230 (Hebreus 11:23-29)

(Êx 14:21-29). Mas os perseguidores egípcios não tinham tal fée, por isso, pereceram, ao tentar perseguir os israelitas. Assim foi que os eventos do êxodo — o livramento do povo de Deus no Antigo Testamento — se realizaram unicamente pela fé.

Notas Adicionais # 3211:23 \ O texto hebraico de Êxodo 2 refere-se apenas à mãe de Moisés, não

a seus pais (lit. o hebraico fala de “pais” masculinos), como ocorre na LXX. Parte da linguagem deste versículo reflete a linguagem da narrativa da LXX. A palavraasteios (ECA traz formoso, NIV traz ‘incomum”, mas lit., formo­so) ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento, etambémem Atos7:20, onde o texto dependente da LXX descreve a formosura de Moisés quando bebé. Nesta última passagem, lê-se a respeito de Moisés que era “formoso diante de Deus” (no hebraico), sugerindo que asteios neste versículo significa algo mais que mera beleza física. Portanto, em nossa passagem, “formoso” deveria ser entendido como “aceitável” ou “agradável” a Deus, neste caso, os pais de Moisés teriam entendido de alguma forma que Deus tinha um propósito especial paraseu filho. Veja-se BAGD.p 117 A palavra grega para decreto (diatagma) ocorre apenas aquinoNovoT estamento C f. este versí cu lo com Atos 7:17-22.

11:24-26 / Sendo já homem reflete tambem a linguagem de Êxodo 2:11 (At 7 :23 menciona a idade de 40 anos). É claro que Moisés é uma personagem celebre, muito festejada na literaturajudaica (veja-se, e.g., Filo, Life ofM oses— Vida de Moisés, Josefo, Ant. 2.230ss„ Siraque, 45: lss ). O verbo grego especial que se traduziu por ser maltratado com (synkakoucheom ai) ocorre só aqui em todo o Novo Testamento. A palavra grega para gozo (apolausis) encontra-se no Novo Testamento, além desta passagem, só em 1 Timóteo 6 :1 7 .0 autor da carta aos Hebreus salienta uma questão importante, ao dizer por algum tempo (proskairos), e Paulo tambem o acompanha ao usar a mesma palavra grega em 2 Coríntios 4:18: “As [coisas] que se vêem são temporais, e as que não se vêem são eternas.” Proskairos é usada de modo semelhante em 4 Macabeus 15:2,8 O caráter enganoso do pecado é menci­onado em 3:13 (cf. 12:1). Para Moisés tena sido grave pecado (ham a riia<) permanecer em sua posição p. nlegiada no Egito, visto que Deus tinha uma tarefa especial para ele. (Iate coosfetu forte contraste com José, que fora chamado p c cupar elevada pot̂ çf i no Egito, a fim de ajudar a seus irmãos; cf. Gn 43-50.) Os teso«roa do c’«ito eram famosos pelas sua riqueza incomensurável. Mas na perspectiva de Moisés, tais nquezas eram menos que

(Hebreus 11:23-29) 231

insignificantes. Portanto, Moisés deliberadamente escolheu sofrer o opróbrio (oneidismos) de Cristo (christos). A zombaria ou a rejeição que o povo de Deus recebe da parte de seus inimigos sempre foi um fato comum tanto no Antigo como no Novo Testamento. A mesma palavra é usada em passagens como Salmos 69:9 e 89:50s. (esta última passagem até faz conexão entre a rejeição e “teu ungido,” chnstos). A sugestão de alguns comentaristas segun­do a qual o próprio Moisés é o “ungido,” contra quem se dirigia a rejeição, não convence. Antes, quando Moisés sofre a rejeição da corte do Faraó, ele sofre a rejeição do povo de Deus e, dessa forma, do Messias, que forma uma unidade indissolúvel com seu povo Fica bem claro que o emprego da palavra Cristo (i.e., “Messias”) aqui, é um estratagema deliberado do autor da carta aos Hebreus, cujos leitores ele conserva em mente De fato eles são chamados para sofrer o opróbrio de Cristo (13 13), cuja vinda já é um evento do passado. Qualquer abuso que venham a sofrer de modo algum se compara com a maravilha que Deus preparou para eles. Este argumento é o mesmo de 2 Co- ríntios 4:17: “A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação” (cf. Mt 5: l i s ) . A palavra grega equivalente a recompensa (misthapodosia) ocorre só em Hebreus. Encontra­mos a mesma raiz no v. 6, em que Deus é descnto como “galardoador” Veja- se a nota sobre 10:35.

11:27-28 / A principal razão porque esta passagem provavelmente não se refira a fuga micial de Moisés do Egito é que, de acordo com Êxodo 2:14, e contrariamente à nossa passagem. Moisesficou com medo de Faraó e, por isso, fugiu. Ainda não havia chegado a epoca do livramento do povo de Deus (cf. At 7:25). E possível (sem ser necessário) que as palavras porque viu aquele que é invisível sejam uma alusão à visão da sarça ardente (Ex 3:2-6). Essas palavras podem também ser entendidas como simples repetição da importân­cia da orientação da fé na direção do que não se vê (que, na verdade, inclui a realidade de Deus; cf. 1 Tm 6:16). Quanto à importância do que é invisível, vejam -seosw 1,3,7.0 verbo grego para ficou firme (kartereõ ) ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento Quanto ao sentido controvertido dessa palavra, veja-se BAGD, p. 405. Veja-se também W Grundmann, TDNT, vol. 3, p. 617 A perseverança ou energica insistência que se tem em vista aqui é a que se nota na luta de Moisés contra o Faraó, no que diz respeito ao livramento do povo de Israel. Celebro« é a forma de ECA traduzir o pretérito perfeito de p o ie õ (“fazer”), com o qual o autor da carta provavelmente tem cm mente nao só o evento original, mas a própria instituição da páscoa (Ele não toma as implicações crístológicas da pascoa, como o faz Paulo, por exemplo, em 1 Co 5:7). Quanto à páscoa (pascha ), veja-se J. Jeremias, TDNT, vol. 5, pp 896-904 A aspersão (prosehvsis, que ocorre apenas aqui em todo o Novo

232 (Hebreus 11:23-29)

Testamento) do sangue é freqüentemente mencionado em Hebreus, mas em conexão com o Dia da Expiação, em vez de com a páscoa, mediante o uso de uma palavra diferente (rh a n tizo ). Destruidor (o le th re u õ ) é tirado da LXX e encontra-se só aqui em todo o Novo Testamento (mas cf. o termo cognato em1 Co 10:10). Na história do Êxodo, o “mensageiro da destruição,” como o termo hebraico pode ser traduzido, destruiu os primogênitos tanto dos seres humanos como dos animais. Veja-se J Schneider, TDNT, vol. 5, pp 167-71.

11:29 / O m ar Vermelho é o “mar dos juncos,” de acordo com o texto hebraico de Exodo 13; 18. O livramento e celebrado no “Cântico de Moisés ’ (Êx 15).

33. A Fé Exibida por Raabe e Inúmeros Outros Crentes (Hebreus 11:30-40)

O autor prossegue seu catálogo de exemplos de heróis da fé fazendo referência a queda de Jericó e à fé de Raabe. No entanto, neste ponto ele percebe que será incapaz de continuar a exibir a mesma plenitude de exemplos, e por isso passa a mencionar alguns nomes específicos, falando de modo geral sobre as maneiras pelas quais a verdadeira fé se manifesta. Muitas pessoas de grande fé experimentaram grandes vitórias mediante sua habilidade para suportar o sofrimento e o martírio. Mas mediante a fé todos somos vitoriosos de uma forma ou de outra. O autor termina seu longo artigo a respeito da fé salientando o fato de que todos esses heróis da fé foram mcapazes de atingir seu objetivo final de bênçãos e cumprimento final das promessas, sem crer em Cristo, que é o que fazem os leitores de Hebreus no presente. A família da fé, como se pode ver agora, forma uma unidade. A aplicação aos leitores segue-se no capítulo 12.

11:30 \ O segundo exemplo de fé dos israelitas como povo (cf. v. 29) encontra-se na conquista de Jericó. Pela fé eles marcharam ao redor (muros... rodeados; lit., “rodearam”) dos muros da cidade (Js 6:12-21). Confiaram em Deus, que ele haveria de fazer o que prometera, mediante práticas e atitudes aparentemente insensatos. Mas por meio da fé e da obediência do povo, Deus executou seus propósitos.

11:31 \ Provavelmente causa-nos surpresa encontrar o nome de Raabe, a meretriz, uma mulher não-israelita, relacionado entre os grandes names de israelitas fiéis (cf. Tg 2:25). Todavia, ela também, e de forma extraor­dinária, teve grande fé no Deus de Israel (Js 2:11). Ela agiu pela fé quando acolheu (tendo acolhido) em paz os espias (lit., “recebeu em paaf) Ao fazer isso, ela colocou a própna em grande nsco de morte, mas o resuteuk) finai foi que ela e soa família escaparam dl dt traição que sobrcv« t cidade e seus habitantes desobedientes (Js 2; 6:17,23). A despeito dr '»a profissão indecente, praticada até esse momento, Raabe manifestou a fé que sobrepuja a realidade do que não se vê.

234 (Hebreus 11:50-40)

ll:32-35a Percebendo que apenas começou a mencionar exemplos do Antigo Testamento, o autor lamenta que não possa continuar. Então ele relaciona outros seis nomes e refere-se aos profetas como exemplos que ele poderia discutir, caso houvesse tempo disponível. Não sabemos por que esses nomes são mencionados especificamente. Parece que se trata de uma lista arbitrária, em que os nomes não aparecem em ordem cronológica exata. Os primeiros quatro nomes são do livro de Juizes: Gideão (6:11-8:32); Baraque (4:6-5:31); Sansão (13:2-16:31); e Jefté (11:1-12:7). Embora não tenham a mesma importância, todos estes homens demonstraram fé em Deus; está registrado que o Espírito do Senhor veio sobre cada um deles (exceto Baraque). Davi e Samuel certamente são bem conhecidos (por causa do livros de Samuel), e os profetas também, entre os quais devem ser incluídos não apenas aqueles cujos nomes estão associados aos livros canônicos, mas também Elias e Eli seu.

As façanhas mencionadas a seguir não estão numa ordem determinada, não havendo nenhum paralelismo entre os nomes mencionados, isto é, não obedecem a uma estrutura preconcebida. Em vez disso, o autor passa a descrever em linguagem genérica os vários tipos de vitórias obtidas mediante a fé. Estes heróis, à semelhança de outros que permanecem anônimos, venceram reinos; trata-se, provavelmente, de alusão às vitóri­as registradas nos livros de Josué e Juizes, mas podem incluir as vitórias de Davi. P ra tica ram a justiça (trad. lit.) — pode ser expressão simples da obediência dessas pessoas tão fiéis. NIV traz: “administraram justiça,” o que pode ser admissível como referência ao estabelecimento da justiça por meio desses líderes.

A lcançaram promessas (lit. “receberam promessas”) pode referir-se à extensão, ou grau, de cumprimento de promessas divinas que experimen­taram em suas vidas, ou ao recebimento de outras promessas concernentes ao futuro. A referência a fecharam a boca de leões pode ser referência a Sansão (Js 14 :6 ),aD av i(l Sm 17:34s.), ou mais conspicuamente, a Daniel (Dn 6:22). Apagaram a força do fogo sugere Sadraque, M esaque e Abednego (Dn 3:1-30). Escaparam ao fio (lit., ‘‘boca”) da espada pode referir-se a vários dos profetass como por exemplo Elias (1 Rs 19:2-8), ou Jeremias (Jr 36:19, 26). As referências a fraqueza que se transforma em forças e a denota de exércitos inimigos (cf. v. 33), são tão genéricas que sc podem aplicar a muitas personalidades do Antigo Testamento. As mulheres que receberam pda ressurreição os seus mortos são clara­

(Hebreus 11:30-40) 235

mente a viúva não-israelita de Sarepta(l Rs 17:17-24) e a mulher sunamita (2 Rs 4:25-37), cujos filhos morreram e ressurgiram dentre os mortos (por Elias e Eliseu, respectivamente). No caso da viúva de Sarepta, foi a fé de Elias que possibilitou a ressurreição.

11:35b-38 / O pronome outros aqui não faz contraste com os nomes (e “os profetas”) do v. 32, mas contrasta com todos os que experimentaram vitórias como as que foram descritas nos versículos precedentes. Alguns experimentaram pela fé vitónas de outros tipos. Sofreram todas as formas de males e até o martírio. Foram derrotas apenas na aparência. De fato foram vitónas, verdadeiros triunfos da fé expressos em compromisso de total fidelidade. E de suma importância para os leitores, e para todos os cristãos, entender que a vida de fé nem sempre envolve o sucesso pelos padrões do mundo. Nem sempre o crente fiel experimenta a libertação; a fé e o sofrimento não são incompatíveis. No entanto, a fé santifica o sofrimento, e no meio da aparente derrota sobrevêm a promessa do futuro. O autor de Hebreus não oferece a seus leitores a garantia de um cristianis­mo fácil. Se em sua luta “contra o pecado” eles “ainda não” resistiram “até o sangue" (i.e., “não foram mortos”), como o autor fala em 12:4, não pode haver certeza de que isso ainda não esteja prestes a acontecer. O resultado imediato, temporal (pois afinal só pode ser temporal) não é o fato mais importante. O que importa realmente é a fé.

O autor fala outra vez nesta passagem de modo genérico, deixando ao leitor uma oportunidade para pensar nos nomes adequados que possam vir à mente. Houve os que foram to rtu rados, não aceitando o seu livram en­to porque tinham uma ressurreição futura em mente; esta redação parece apontar naturalmente para os mártires macabeus, embora seja impossível restringir a eles a referência. O livro apócrifo 2 Macabeus em particular faz referências a muitos exemplos deste tipo de fé, pela qual os crentes aceitavam a morte, em vez de as leis de Antíoco Epifanes IV, o inimigo dos judeus, que tentou destiuí-los (167-164 a.C.; e.g., Eleazar; veja-se 2 Macabeus 6:18-7:42). Para alcancar superior ressurreição (i.e., a vida eterna, no mundo novo) é express o que contrasta viokntae deliberadamente com a “ressuireiçáo” (qu< faz a pessoa reentrar na velha forma de <da,,a que se refere a primeira metade do versículo. A diferença está na ressur­reição para continuar aqui, e a ressurreição escatológica, que nos introduz numa forma inteiramente nova de vida.

236 (Hebreus I I : 30-40)

Os justos freqüentemente recebem como seu quinhão a zombaria e a punição, e comumente apnsão. Os leitores da carta estavam cientes disto por experiência própria, de primeira mão (cf. 10:33). Dentre os profetas, Zacarias vem imediatamente à nossa memória, como exemplo desse tipo de sofrimento (Jr 20:2, 7ss.; 37:15; cf. 1 Rs 22:26s.). Alguns foram apedreja­dos (e.g., Zacarias, 2 Cr 24:21; cf. Mt 23:37; alguns foram m ortos ao fio da espada (cf. 1 Rs 19:10, em contraste com os que “escaparam ao fio da espada”, v. 34) A referência incomum a crentes que foram serrados pelo meio pode derivar de uma tradição a respeito do martírio de Isaías por este método (veja-se o escrito intertestamental conhecido como The A scem ion o flsa ia h — Ascensão de Isaias — 5 :11-14). Os que andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, obngados a viver no deserto pelas covas e cavernas da te rra provavelmente não são profetas, como Elias (2 Rs 1:8), embora ele seja protótipo deles, mas teríamos aqui nova referência aos israelitas perseguidos por Antioco, durante a era dos macabeus. Tais palavras enquadram-se bem na descrição que deles se faz como sendo necessitados, aflitos e m altratados. Fugiram para o deserto, de acordo com1 Macabeus 2:29-38, por causa dos males que Antioco trouxe sobre eles. Salienta o autor da carta que tudo isto aconteceu a pessoas das quais o mundo não era digno. A ironia subjacente está na incongruência de os fiéis servos de Deus estarem vivendo como se fossem animais irracionais.

11:39-40 / As palavras iniciais fazem eco do versiculo 2. Todos estes, tanto os que são mencionados pelos nomes como os anônimos, em bora tendo recebido bom testem unho pela fé, contudo não alcançaram a prom essa, isto é, não a receberam. Temos aqui um paradoxo. O fiel povo de Deus, pessoas do passado remoto e passado recente, viveram suas vidas de acordo com a promessa de uma grande realidade invisível, perceptível no futuro. Ainda que alguns crentes experimentaram certo grau de cumpri­mento dessas promessas na história, ninguém atingiu o objetivo último, “a promessa.” O cumprimento final, escatológico demorou até a presente era. E dada agora a razão para isto. O povo de Deus de todas as eras constitui uma unidade e todos juntos devem alcançar a perfeição do telos. Deus havia provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, n2o fossem aperfeiçoados. Esta última parte do versículo é tradução literal.

É claro que um aspecto básico da demora é a novíssima obra que Deus realizou mediante Cristo. Visto que para o autor de Hebreus tudo que

(Hebreus 11:30-40) 237

precedeu a Cristo, se relaciona a Cristo como promessa e, por isso, relaciona-se ao cumprimento, não foi concebível, até o presente momento, a realização do telos. Deus havia provido (lit., também poderia ser “previsto”) coisa superior a nosso respeito. Esta coisa superior é a nova aliança com todas as suas bênçãos, que são “para nós” (ou a nosso respeito), diferentemente daquelas do passado, só porque somos pessoas privilegiadas, e as recebemos mediante um processo histórico. Todavia, num sentido mais fundamentai, pertence a todos os fiéis de todas as eras. Já começamos a provar seus frutos agora, no presente — neste “últimos dias” (cf. 1:2) da era vindoura, que já se faz presente — mas nós, juntamente com os crentes fiéis do passado, iremos experimentar a consumação dos propósitos de Deus, o que pode, estando agora tudo preparado, ocorrer a qualquer momento. A realização da “perfeição,” isto é, a chegada ao telos, ou aos propósitos de Deus, será a porção de todos quantos, mediante a fé, contam com a realidade daquilo que esperam, e que é invisível; trata-se de crentes que expressam suas convicções mediante seu modo de viver diário. A fé é a dinâmica da vida que agrada a Deus.

Notas Adicionais # 3311 :3 0 /0 autor poderia muito bem ter mencionado Josué como um homem

de fé, nesta altura. Pressupõe-se o nome dele, tanto quanto o de Moisés, no versículo antecedente Trata-se da única referência no Novo Testamento à captura de Jencó.

11:31 / A história de Raabe tomou-se popular na tradição judaica Ela se tomou figura amada como a primeira pessoa a tomar-se prosélita da fé j udaica. Seu nome escontra-se na genealogia de Cristo, em Mateus 1:5, como sendo mãe de Boaz (que se casou com outra famosa não-israelita, Rute). A casa de Raabe era um escondenjo ideal para os dois espias, visto ter sido edificada sobre o muro da cidade, e ser fácil de abrir à noite.

ll:32-35a / As palavras a respeito da falta de tempo para comentar de modo mais completo as vidas dos grandes heróis da fé pode fortalecer a hipótese de que Hebreus, em sua maior parte, senão no todo, é uma homilia (é o que sugere 13:22 e as repetidas exortações do livro). Entretanto, este tipo dc expressão não é incomum em obras puramente literárias da época (e.g., Filo, O n the S pecia l Laws — Quanto a Leis Especiais — 4.238; On D n a m s — Sobre Sonhos — 2.63; The Life o fM o ses — A Vida de Moisés — 1.213). O participio grego que resultou na tradução deNIV, para falar de ((S eg o u m en o n )

238 (Hebreus 11:30-40)

é masculino, o que toma mais difícil de aceitar-se a hipótese de Priscila ter sido a autora da carta aos Hebreus. No entanto, o particípio masculino pode ser simplesmente formal; caso Priscila houvesse deixado a carta sem assinatura, poderia também ter sido suficientemente sábia para mudar o gênero do particípio que normalmente teria utilizado, para que não se revelasse a origem feminina da carta. O nome de Samuel pode ser colocado depois do de Davi por causa da associação natural de Samuel com os profetas (cf. At 3 :24). Esta é a única menção, no Novo Testamento, dos nomes de Gideão, Baraque, Sansão e Jefté A frase praticaram a justiça (ou “exerceram justiça,” eirgasanto dikaiosynen) ocorre em outra passagem do Novo Testamento, unicamente em Atos 10:35 e Tiago 1:20; em ambos esses casos a frase significa fazer o que éjusto, praticar atos dejustiça. Alcançaram é tradução de epitynchanó, como em 6:15 Veja-se a nota sobre 6:15, e cf. palavras semelhantes para “receber” nos w . 13 e 17 acima. O tema “da fraqueza tiraram forças” encontra-se com frequência no Novo Testamento (e.g., Rm 4 :19s ; 8:26; 1 Co 1:27-29; 2 Co 12:9-10, Ef 6:10, Fp 4:13). A “ressurreição” pela qual essas mulheres receberam de volta seus filhos contrasta com a “superior ressurreição,” no v. 35b. As duas referências a “ressurreição” (an asíasis) neste versículo são as únicas ocorrências dessa palavra em Hebreus, exceto em 6:2.

11:35b-38 / A perspectiva desta passagem é semelhante à ênfase principal do livro de Apocalipse, a saber, a confiança na realidade de Deus e sua fidelidade às promessas que ele próprio fez, a despeito do intenso sofrimento que parece contradizer tudo em que se acredita. O que acontece no presente tambem aconteceu no passado: é a fé que sustenta o povo de Deus em suas tribulações. O verbo grego que significa foram torturados (tympartizo) refere-se à prática do prisioneiro no tronco ser espancado até morrer. E palavra que ocorre só aqui, emtodooNovoTestamento. Oseu livramento (apolytrosis) é a mesma palavra que se traduziu pelo termo-chave “libertou”, ou “redimiu,” em algumas versões em inglês, e que ECA traduziu por “remissão,” em 9 :15 (veja-se a nota); neste caso esse termo não é empregado de modo técnico. Quanto ao significado da palavrasuperior (“superior ressurreição”), no grego kreitton , em Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4. A expectativa da ressurreição para os que sofrem martírio expressa-se mais poderosamente na tradição j udaica no documento conhecido como 4 Macabeus (datada provavelmente do primeiro século d.C., que descreve a perseguição sob Antioco).

A zombaria e o açoite aqui nos fazem lembrar a linguagem que descreve o tratamento dado a Cristo, segundo as narrativas da paixão (ocorrem certos verbos cognatos: e.g., em p a iiõ, "zombar”— Mt27:29ss. diz “escarnecer,” em ECA, como em Mc 15:20ss. eLc23:ll,36;/nastfgoo, “flagelar”— “açoitar” em Jo 16:1; cf. Mt 20:19 e Mc 10:34; Lc 18:33 diz [ECA] “baterão”). Isto

(Hebreus 11:30-40) 239

poderia ter estado na mente do autor de Hebreus quando ele redigiu 12:3. No v 37, um grande número de manuscritos traz a expressaão adicional “foram tentados” (epeirasthésan ) depois da expressão serrados ao meio, embora outros manuscritos a tragam antes (de acordo com ECA). No entanto, esta expressão não faz muito sentido no contexto imediato de martírio explícito. Se seguirmos o importante P46 e outros manuscritos testemunhais, é provável que estejamos mais seguros atendo-nos ao texto mais curto. Veja-se Metzger, TCGNT, pp 674s. A tradição segundo a qual Isaias teria sido serrado ao meio (dizem alguns que foi usada uma serra feita de madeira) também recebe confirmação do Talmude Babilónico ( Yebamoth 49b, Sanhedrin 103b) e em certos autores cristãos (e.g., Justino, o mártir, D ialogue with Trypho — Diálogo com Tnfo, 120; Tertuliano, On Patience — A Respeito da Paciência, 14). Quanto à imagem do v. 38, ainda que num contexto diferente, veja-se Apocalipse 6:15. A geografia da Palestina mostra covas e cavernas em abundância, nas quais os crentes perseguidos se ocultavam.

11:39-40/Quanto a tendo recebido bom testemunho pela fé(m artyreõ), veja-se a nota sobre o v. 2. A palavra para tendo recebido aqui é kom izo, que tambem ocorre em 10:36, com a expressão traduzida diferentemente em ECA “alcanceis a promessa.” No v. 13 temos uma declaração paralela a esta: “Não alcançaram (kom izo) a promessa” (lit., “as promessas,” no plural). Assim, o singular e o plural da palavra promessa (epangelia) são intercambiáveis, pois referem-se à mesma realidade. A respeito de “promessa,” veja-se a nota sobre 6:15 A expressão de NIV, “havia planejado” é tradução do verbo grego pro b lep o , que ocorre somente aqui, em todo o Novo Testamento), e foi traduzida por ECA como havia provido, existe aqui a idéiade“prever,” e por causa da soberania de Deus, praticamente se tomou “havia selecionado” ou “havia providenciado ” Esse havia sido o propósito de Deus desde o início. Veja-se BAGD, p. 703. Quanto à grande importância de superior (kreitton , que muitas versões traduzem por “melhor”), da forma como essa palavra é usada em Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4. Fossem aperfeiçoados (te leioõ) em Hebreus possui forte orientação teleológica. Refere-se ao processo de atingir o objetivo conforme os propósitos salvificos estabelecidos por Deus. Veja-se a nota sobre 2:10.

34. Olhando para Jesus, o Padrão Perfeito (Hebreus 12:1-3)

Tendo em mente a história gloriosa dos fiéis, o autor de Hebreus volta sua atenção para seus leitores. O padrão de fé havia sido estabelecido pelo registro do povo fiel de Deus, no passado, povo que se movera na direção do desconhecido com confiança, suportando provações sem desistir de sua expectativa, da esperança do cumprimento das promessas divmas no futuro antecipado. Mas o autor de Hebreus chega agora ao exemplo supremo deste tipo de fé em Jesus — o nome que constitui o ponto mais elevado de qualquer lista de heróis da fé. O próprio Jesus sofreu grandes provações, sem perder de vista, contudo, a glória vindoura. Os leitores, ao lado dos cristãos de todas as eras, foram convocados para caminhar na trilha da fé que caracterizou os santos do passado, e aquele que agora é Senhor. Só essa atitude de fé pode sustentá-los ao longo das adversidades que foram desafiados a enfrentar.

12:1 / A primeira palavra do texto original, e por isso mesmo, a mais enfática, é a partícula mferencial portanto. A exortação que agora se dará baseia-se na realidade exposta no cap. 11. A comunidade da fé é tão grande que, de modo figurado, rodeia-nos como se fora g rande nuvem de testemunhas. Testemunhas aqui não significa observadores da conduta atual dos cristãos, mas antes, aqueles que testificam ou dão evidências da vida de fé vitoriosa. Demonstram que é possível ao crente viver pela fé. Motivados pelo catálogo acima exposto de exemplos de fé, os leitores devem viver agora segundo sua fé. A exortação assume a linguagem figurada: Corramos com perseverança a carreira que nos está propos­ta. No entanto, se devemos participar dessa carreira (cf. a mesma imagem em 2 Tm 4:7), é preciso que nos livremos de todo embaraço que nos rodeia (lit, “todo peso” ou “impedimento”). O autor de Hebreus não especifica os impedimentos ou embaraços; entende-se que qualquer coisa que pertur­be a vida de fé, conforme retratado no capítulo anterior, deve ser abando­nada. Um impedimento óbvio da vida de fé é o pecado que tio de perto nos rodeia (NIV: “que nos embaraça”). A relação íntima existente entre o pecado e a incredulidade já foi objeto da atenção do autor da carta (cf

(Hebreus 12:1-3) 241

3:12, 18s.). A susceptibilidade dos crentes para o pecado (cf. Rm 7:21) não deve perturbá-los e impedi-los de perseguir o objetivo (cf. 11:25). Ao tomar coragem nos exemplos do passado, os leitores são exortados a completar o curso que escolheram por si mesmos.

12:2 / O exemplo mais importante de vida de fé é o que se encontra em Jesus, que agora é descrito como o autor (ou “pioneiro”) e consumador da nossa fé. A palavra grega para autor (ou “pioneiro”) é a mesma que se usou em 2:10 (“o autor” ou “originador” da salvação; cf. At 3:15). Existiria um sentido em que Jesus poderia ser descrito como o “originador ’ de nossa fé? A semelhança de Paulo (G1 3:23-26; cf. Jo 1:17), o autor de Hebreus acredita que o povo de Deus podena na verdade ter vivido pela fé em gerações passadas; todavia, num sentido fundamental a possibilidade — ou pelo menos a validade — da fé em qualquer área dependia e ainda depende da obra de Cristo. Em outras palavras, visto que Cristo ocupa posição tão central, tanto na promessa como no cumprimento, pois é quem dá existência ao telos tão esperado (e por isso mesmo é o consumador da fé), ele também é o “originador” ou “ fundador” da fé. Sendo o consumador da nossa fé. o Senhor a leva até o objetivo delineado. Assim é que se uma pessoa fala a respeito da fé como sendo mera possibilidade, ou como uma experiência real, refere-se a algo que depende de Jesus. E por essa razão que os cristãos devem manter-se isentos das paixões deste mundo, olhando só para Jesus. O Senhor não é apenas a base, o meio e o cumprimento da fé, mas em sua vida ele também exemplificou o mesmo principio da fé que vimos nos heróis do cap. 11. Então, pela fé, o Senhor Jesus confiou na realidade do gozo futuro e, ao avaliar as circunstâncias atuais à luz do futuro glorioso, ele suportou a cruz, desprezando a ignomínia que esta lhe trouxe. Jesus morreu como se fora um reles criminoso desprezível (cf. Fp 2:8). Mas aquele gozo futuro já lhe pertence, de certa forma preliminar, visto que está assentado à destra do trono de Deus. Esta descrição de Cristo na linguagem de Salmos 110:1 faz alusão, por toda a carta, à plenitude e perfeição de sua obra (cf. 10:1 ls.).

12:3 / Os leitores são estimulados a considerar Jesus como aquele que sofreu, que suportou tal oposição (lit., “hostilidade”) dos pecadores. Neste sentido, Jesus é o modelo de todo sofrimento que recai sobre os justos, às mios dos inimigos de Deus. Pensar e aceitar o que Jesus suportou

242 (Hebreus 12:1-3)

impede que os leitores fiquem cansados e desanimados. Ao seguir a Jesus como seu modelo, podem suportar as circunstâncias mais atrozes.

Notas Adicionais # 3412:1 / A palavra inicial grega, toigaroun pode ser traduzida“por exatamen­

te essa razão” (veja-se BAGD, p. 821), e pode referir-se de modo particular à declaração que vem imediatamente antes (11:40): “eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados.” Os santos de Deus, tanto os do passado quanto os do presente, devem atingir o objetivo juntos, pelo que cabe aos leitores da carta emular a fé de seus antepassados. Só assim pode o povo de Deus, como unidade indivisível, experimentar a consumação escatológica dos propósitos de Deus. A palavra grega para n uvem é nephos, que é utilizada comumente na 1 iteratura grega para indicar uma “hoste” ou um “grupo. ” Temos aqui a única ocorrência da palavra “testemunhas” (m artys) em Hebreus, exceto na citação de Deuteronômio 17:6 em 10:28. A palavra grega ainda não havia adquirido o significado de “mártir,” a pessoa que entrega a própria vida por aquilo em que acredita; este sentido passou a existir a partir do segundo ou terceiro século d.C. Veja-se H. Strathmann, TDNT, vol. 4, pp. 504-12. A palavra grega para “embaraço” (impedimento) éonkos, que só ocorre aqui em toda a Bíblia grega. Veja-se H. Strathmann, TDNT, vol. 5, p. 41. Uma variante textual da palavra grega que se traduziu, em NTV, por “que tão facilmente embaraça” (eu penstatos, que tão de perto nos rodeia, em ECA), encontra-se no importante documento chamado P46, dos mais primitivos, que traz euperispastos, que significa “que facilmente distrai.” E paralismo que pode ter ocorrido, por causa de alguma incerteza acerca do significado da primeira palavra (que não se encontra em parte alguma do Novo Testamento, da LXX e dos autores gregos antes do surgimento do Novo Testamento). F.F. Bruce (H ebrew s — Hebreus, p. 350) cita E.K. Simpson, que define a palavra como tendo o sentido de “ião disposto a em baraçar, a pôr impecilhos.” Não é significado apropriado no contexto presente. Veja-se Metzger, TCGNT, p. 675. Imagens tiradas do atletismo eram usadas com freqüência, no Novo Testamento, a fim de descrever o tipo de disciplina e dedicação necessárias a fim de a pessoa poder vivenciar a fé cristã (veja-se de modo especial 1 Co 9:24-27). A mesma imagem da luta atlética é empregada a fim de descrever os sfrimentos e martírios da era dos Macabeus, em 4 Macabeus 17:9ss. Quanto à linguagem metafónca de “parti­cipar de uma corrida’* (corramos». a carrein que nos está proposta), veja- se também Gálatas 2:2; 5:7; Filipenses 2:16. Perseverança ou “persistência” (ihypom onê) 6 importante necessidade dos leitores (cf. 10:36). Se existe uma carreira cheia de exigências, que nos está proposta [p ro k e im a i, lit., “quejaz

(Hebreus 12:1-3) 243

diante de nós”), existe também uma grande esperança à nossa frente (6:18, que usa o mesmo verbo; cf. o mesmo verbo que descreve o gozo que lhe estava proposto, isto é, colocado diante de Jesus, no v. 2).

12:2 \ A exortação olhando firmemente para Jesus prossegue a metáfora da corrida; o atleta deve evitar toda distração, de todo tipo (cf. “olhando para Deus,” 4 Macabeus 17:10; cf. At 7:55). Neste caso especial, o apelo é dirigido a Jesus não meramente como a outro exemplo de fé, mas como a uma Pessoa cuja existência toda gira ao redor da fé. NIVeECA dizem nossa fé, mas o texto original seria traduzido mais literalmente se tivéssemos “a fé” ou “fé”, num sentido mais generico. Ele e o pioneiro e o aperfeiçoador não simplesmente da fé dos cristãos (autor econsumador da nossa fé), mas da fé reinante em todas as épocas. Quanto a “autor” (archegos), veja-se a nota sobre 2:10. A palavra grega para “consumador” (teleiotes) encontra-se somente aqui na Bíblia grega, e não ocorre na literatura grega antes do Novo Testamento. No entanto, o autor da carta emprega vários cognatos dessa palavra (vejam-se as notas sobre 2:10:6:1, 7:11). Veja-seG. Delling, TDNT, vol. 8, pp. 86-87 O Senhor Jesus é mencionado em Apocalipse 1:5 (cf. Ap 3:14), como “a fiel testemu­nha” (ho martys ho pistos). Quanto a “fé,” veja-se a nota sobre 11:1. Quanto a uma analise estrutural, veja-se D.A. Black, “A Note on the Structure of Hebrews 12,1-2,” — Observação Sobre Hebreus 12:1-2— B íblica 68(1987), pp. 543-51.

Julgam alguns que quando se diz que Jesus suportou a cruz por causa do gozo que lhe estava proposto significa que estamos baseando a morte obediente de Jesus numa motivação indigna. Tais eruditos preferem, por isso, interpretar a preposição anti como se significasse, como de fato pode signifi­car, “em vez de,” e não pelo (ECA; cf. a nota marginal de NEB: “em lugar do gozo que se lhe apresentou”). No entanto, esta objeção deixa de levar em consideração que a ênfase na esperança futura do cristão é exatamente o ponto central na mente do autor da carta, ao dirigir-se a seus leitores, por todo o capitulo anterior, sendo esse o ponto que ele deseja sublinhar Mais ainda, dizer que Jesus havia sido motivado pelo gozo que lhe pertenceria depois, de maneira alguma exclui os motivos da obediência ao Pai, e da busca da salvação para o mundo. Na verdade, o gozo que Jesus estava prestes a experimentar é inseparavel da realização dos propósitos salvíficos de Deus, pelo que assim, num senddo fundamental, trata-se de um gozo compartilhado (cf. Jo 17:13). O autor dacartajá salientou que o propósito da encarnação foi a morte do Filho de Deus e, dai, o livramento do mundo do pecado e morte (cf. 2:10,14s., 17).

A morte por crucificação era uma das mais desprezíveis formas de pena capitai do mundo romano. Os cidadãos romanos estavam automaticamente protegidos contra esse tipo de punição, considerada adequada apenas para os

244 (Hebreus 12:1-3)

estrangeiros. Jesus não se deixou impressionar nem um pouco pela vergonha relacionada à cruz. Veja-se E. Brandenburger, NIDNTT, vol. 1, pp. 391-403. Dentre as vánas alusões ao SI 110:1, esta é a única vez em que o verbo estar assentado ocorre no pretérito perfeito, no grego (nas demais citações ele aparece no aoristo). A ênfase é colocada no atual reinado de Cristo, como o cumprimento correspondente do gozo que lhe estava proposto. Quanto à importância do SI 110 nesta carta, veja-se a nota sobre 1:3.

12:3 / A palavra grega que se usou aqui com o sentido de considerai (analogizomai) ocorre somente aqui em todo o Novo Testamento O objeto direto desse verbo, como no v. 2, é a pessoa que sofreu, e não os seus sofrimentos. O pretérito perfeito do particípio grego, que se traduziu por suportou (hypomenõ), sugere os resultados integrais daquilo que Jesus suportou na cruz. A palavra “hostilidade” (antilogia) em conexão com a cruz pode ser alusão àzom bana dos inimigos de Jesus (e.g., Mt 27:39; cf. S122:7s.). Um texto paralelo apresenta o pronome reflexivo numa forma plural, em vez de singular, como resultante da hostilidade dos pecadores que se dirige contra “eles propnos.” No entanto, esta idéia não faz muito sentido, pelo que com toda probabilidade deve ser rejeitada, a despeito da documentação textual superior. Veja-se Metzger, TCGNT, p. 675. A linguagem deste versículo apresenta alguma semelhança com a de Números 17: 2s., segundo a LXX (ou 16:38 nas versões inglesas do Antigo Testamento). A avaliação daquilo que Jesus suportou deve ajudar os leitores a não “ficarem cansados” (não vos canseis, kamno), nem “desfalecidos” (desfalecendo em vossas almas é a tradução literal que ASV e ECA nos apresentam). Sabemos, por outras passagens anteriores desta carta, que seu autor tem preocupação com seus leitores, aeste respeito (cf. 3:12; 4:1; 6:4ss., 10:26ss., 35).

35. 0 Propósito da Disciplina Punitiva (Hebreus 12:4-11)

Como já vimos, o principal objetivo do autor ao longo de sua carta é convocar seus leitores a que sejam fiéis em meio a circunstâncias adversas. Perto do final de sua carta ele os exorta: “Saiamos, pois, a ele [Jesus], fora do arraial, levando o seu opróbrio” (13:13). Ainda que nenhum membro daquela comunidade tenha sofrido o martírio, até agora, pode ser que no futuro isso venha a ocorrer. Toda e qualquer perspectiva semelhante a esta, que afirma ser o sofrimento um dos deveres dos fiéis, deve fázer-se acompanhar de uma teologia do sofrimento em que este seja entendido sob uma luz positiva. Esse é, exatamente, o objetivo desta seção. O sofrimento, longe de ser uma contradição da situação do cristão, como o mundo se inclina a julgar, na verdade é o distintivo de sua verdadeira condição de crente. Ser filho de Deus envolve necessariamente o sofrimento, não constituindo contradição do amor de Deus.

12:4 / Combatendo contra o pecado aqui significa, como indica o contexto, não a batalha do crente que evita o pecado (cf. o v. 1), mas a luta para vencer a apostasia. Pode referir-se também ao pecado dos inimigos de Deus que perseguem o povo do Senhor, tanto quanto pode relacionar-se ao pecado potencial da apostasia que aflige os leitores. E contra a apostasia que estes devem lutar. Na verdade já houve ocasiões difíceis, no passado (cf. 10:32-34), e talvez ainda hajano presente, mas a resistência dos crentes ainda não atingiu o ponto do deiramamento do sangue (ainda não resististes até o sangue (isto é, ainda não fostes martirizados) combaten­do contra o pecado. A esse respeito, ainda não atingiram o sofrimento do paradigma da fé que, como enfatizam os versículos anteriores, foi à cruz e pagou o preço total, final.

12:5-6 / É possível que se entenda a sentença inicial, quer como declaração simples (cano em N IV e ECA: já vos esquecestesX que/ como uma pergunta (cf. RSV, GNB, JB). Está bem claro aue os 1 itores estão «tn tanto desanimados. As dificuldades que enfrentam são de tal ordem, que o autor da carta quer lembrá-los do lugar que o sofrimento ocupi n» ida

246 (Hebreus 12:4-11)

de fé. É preciso que voltem a lembrar-se de novo da exortação que vos admoesta (ou “encorajamento”) nas Escrituras, as quais falam da vanta­gem que levam os filhos. A citação é de Provérbios 3:1 ls. O que se tem em vista no atual contexto é um tipo positivo de correção que ensina o crente a ser obediente. E desta maneira que os crentes devem entender a adver­sidade que estão suportando: por um lado, é a marca do amor de Deus (cf. Ap 3:19), e por outro lado, é sinal de que são filhos. Por isso, não devem desanimar: não desmaies (cf. v. 3).

12:7-8 / Tendo apresentado a citação do Antigo Testamento, o autor da carta apresenta agora outro comentário tipo ‘m idras,’ em que ele usa as palavras textuais da citação a fim de apresentar seu argumento (quanto a exemplos anteriores deste modo de agir, vejam-se 2:6-9; 3:7-4:10; 10:5- 11). Isto se pode verificar no emprego triforme das palavras “correção” e “filhos” (ou “filho”) nestes versículos. A raiz da palavra “disciplina” é paid-, que também ocorre uma vez em cada um dos três versículos seguintes. Os leitores são exortados de início a “suportar” (suportais) o sofrimento como disciplina, e como sinal de que Deus os trata como a filhos. Prossegue o autor da carta, fazendo uma pergunta retórica que aponta para a universalidade da disciplina dos filhos, efetuada pelos seus pais. Na verdade, acrescenta o autor, sem a experiência deste tipo de disciplina (disciplina, da qual todos são feitos partic ipantes), a pessoa não pode considerar-se filho legítimo do Pai celeste. Em suma, a disciplina faz parte da filiação autêntica, legítima (e jamais a contradição desse fato), pelo que devemos experimentar a disciplina de Deus, que é nosso Pai. Podemos relembrar o que se diz de Cristo em 5:8: “Embora sendo Filho, aprendeu a obediência por meio daquilo que sofreu.”

12:9-10 / Nestes versículos, o autor da carta estende sua analogia mais adiante, ao usar uma forma de argumentação “a fortiori” (do menor para o maior). No que diz respeito a nossos pais segundo a carne (lit., “pais de nossa carne”), eles nos disciplinavam e apesar disso os respeitávamos. Parece que o autor está dizendo que aceitávamos a disciplina sem questi­onar a autoridade de nossos pais terrenos, nem nossa situação de filhos legítimos. Quanto mais, entáo, devemos submeter-nos ao Pai dos espíri­tos (trad. lit.) e assim viveremos? O “Pai dos espíritos” é nosso Criador, a quem devemos nossa existência, em última análise. Se formos submissos

(Hebreus 12:4-11) 247

à disciplina do Senhor, começaremos a viver no “eschaton” (cf. 1 Co 11:32). O contraste do v. 10 enfatiza um ponto semelhante. Devemos ser mais receptivos ainda à disciplina de Deus do que à de nossos pais humanos. Estes nos disciplinaram na verdade, por um pouco de tempo (lit., “um poucos dias”)» isto é, durante nossa infância, e usaram como padrão apenas o que subjetivamente julgaram o melhor (como bem lhes parecia). A implicação é que Deus nos disciplina ao longo de toda anossa vida, e de acordo com o conhecimento que o Senhor tem, para nosso proveito, tendo em vista o objetivo final: para sermos participantes da sua santidade. De fato nosso caráter está sendo formado pela experiência do sofrimento. Estamos sendo purificados e participamos da santidade de Deus, especialmente segundo a revelação de seu Filho (cf. Rm 8:29). Ao ligar o sofnmento à santidade, o autor de Hebreus santifica o sofrimento, como algo que tem um propósito muito especial na vida do cristão.

1 2 :1 1 /0 autor de Hebreus admite prontamente que quando a disciplina do sofrimento está sendo ministrada, essa correção dolorosa não parece produzir alegria, mas tristeza. No entanto, com a perspectiva dada pelo tempo, o verdadeiro propósito do sofrimento se tom ará claríssimo, visto que todos quantos sofrem receberão um fruto pacífico de justiça (expres­são literal do grego em ECA, RSV eNASB). Portanto, a justiça é a porção devida aos que aceitam a disciplina corretiva do sofrimento, vinda das mãos do Pai. O ponto central deste versículo é o mesmo de 2 Coríntios 4:17, em que Paulo escreve: “Pois a nossa leve e monentànea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação” (cf. a ênfase íntima com 1 Pd l:6s.; 4:12-14).

Notas Adicionais # 3512:4 / “Ainda não resististes até o sangue” é tema comum na literatura

judaica, que descreve o compromisso e a perseverança absolutos, na luta contra o adversário. O autor de Hebreus foi abençoado, ao usar a palavra “sangue” em vez de “morte,” mas sabemos que ele quer dizer martírio, e não simplesmente uns ferimentos superficiais. A palavra especifica que ele usou com o sentido de combatendo, aqui, é a n tik a th u ie m i. que só ocorre nesta passagem, em todo o 1 jvc TmtmratfT Oig>m n nrnmrrr n rrprifr dovt rbo que se traduziu por resististes, em ECA: a n ta g o n izo m a t Quanto ao emprego da palavra pecado (h c a n a rtia \ com referenda à apostasia, veja-se de modo

248 (Hebreus 12:4-11)

especial I0:26s. Veja-se W Günther, NIDNTT, vol. 3, pp. 577-83.12:5-6/A citação continua seguindo a LXX, P v 3 :11 s., quase literalmente

(o autor da carta acrescenta meu depois de filho). A LXX acompanha o hebraico bem de perto, exceto em alguns desvios de menor monta, na última linha. Ali, a LXX acrescentou um verbo (fores repreendido) e traduz o verbo hebraico “se delicia” pelo verbo grego correspondente a recebe (NIV diz “aceita”). O verbo acrescentado fortalece o paralelismo óbvio com a primeira linha de Provérbios 3:12 (Hb 12:6). E interessante notar que Filo menciona a mesma passagem numa discussão muito semelhante a do autor da carta, na qual o sofrimento é visto como benefício que recai sobre o recipiente, sendo considerado bênção (On the PreliminaryStudies — Sobre Estudos Prelimina­res, 175).

12:7-8 / A palavra correspondente a disciplina é derivada da mesma raiz de paideuõ (verbo); paideia e paideutes (substantivos). Palavras derivadas dessa raiz encontram-se duas vezes na citação original, e não menos de seis vezes na exposição em forma de ‘mídras’ que o autor faz da passagem (três vezes nos w . 7-8). Quanto ao significado positivo de paideia aqui, como “educação para a eternidade,” veja-se G. Bertram, TDNT, vol. 5, pp. 621-24. O imperativo (no original grego) do verbo “suportar” (hypomenõ) é o do mesmo verbo empregado nos w . 2 e 3 que descrevem o fato de Jesus ter suportado a cruz. Portanto, os leitores são convocados a suportar o sofrimento como Cristo o suportou (cf. 10:36). No v. 8, a palavra todos (pantes) provavelmente foi sugerida também ao autor da carta pela ocorrência na citação original (v. 6). A questão central não é meramente que todos os filhos de Deus são disciplinados, mas que todos os filhos são universalmente disciplinados por seus pais. Os verdadeiros filhos foram disciplinados por seus pais a fim de tomar-se herdeiros dignos; os filhos bastardos, ilegítimos (inothos, que ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testamento), não podiam herdar, e por isso mesmo era desperdício de tempo tentar treiná-los. Por isso, os que estão sob disciplina têm estabelecido não só sua filiação legítima, como também sua condição de herdeiros.

12:9-10 / A forma de argumentação “a fortion” é empregada com freqüên­cia em Hebreus (cf. 2:2ss., 9:14; 10:29; 12:25). A analogia entre pai terreno e “Pai celeste)) encontra-se várias vezes nos ensinos de Jesus(e.g., Mt 7:9-11; 21:28-31; Lc 13:11-32). A expressão “pais da nossa came” (pais segundo a carae) contrasta agudamente com o Pai dos espíritos. A primeira refere-se com toda clareza a nossos pais literais, humanos; a segunda refere-se ao Cnadr* ao Pai, no sentido absoluto e, para o cri stão, ao Pai de quem se fez filho mediante a nova aliança A frase “Pai dos espíritos” (p a tê r l i tpneum atõn) é semelhante a frase “Deus dos espíritos de todos os viventes,” de Números

(Hebreus 12:4-11) 249

16:22 e27:16(cf. “O Senhor dos espíritos” em Similitudes ofE n och— Símiles de Enoque, 1 Enoque 37ss.; cf. 2 Macabeus 3:24). O autor da carta não está ensinando nenhuma forma de dualismo antropológico (em que Deus é o Criador só de nossos espíritos). Veja-se E. Schweizer, TDNT, vol. 7,pp. 141 s. No v. 9 os pais terrenos são descritos como aqueles que “nos corrigiam” (paideutes), palavra que ocorre pela segunda e última vez, no Novo Testamen­to, em Romanos 2:20 O verbo viver no futuro (viveremos) orienta o leitor para a expectativa escatológica, da mesma maneira como o faz a participação na sua santidade (de Deus, v. 10), bem como acolheita de um fruto pacífico de justiça (v. 11). Esta declaração é afim da que está em Atos 14:22, segundo a qual devemos “permanecer firmes na fé, dizendo que por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus.” A afirmativa de que nossos pais terrenos nos disciplinaram apenas por um pouco de tempo sugere que há menor importância na disciplina de nossos pais terrenos, em comparação com a de Deus, nosso Pai. A vantagem de o Pai disciplinar-nos é que passamos a participar de sua santidade (h agio íes), uma palavra grega comum que se encontra em só mais uma passagem do Novo Testamento: 2 Coríntios 1:12.

12:11 / O caráter final benéfico do sofrimento, a despeito das dores do presente momento, é tema familiar na Bíblia (cf. SI 119:67, 71, quanto a benefícios para a vida atual; 2 Ts 1:5-8 e Mt 5:10-12, quanto a benefícios para a vida futura). Usando a palavra exercitados (gymnazo), o autor retoma ao uso de imagens tiradas de jogos atléticos. Assim é que ele encerra a passagem com linguagem saída da mesma fonte do v. 1 .0 fruto daj ustiça é chamado pacífico (eirenikos), porque é a resolução de uma luta feroz (v. 4), originadas nos sofrimentos que nos afligem aqui Estes recebem resposta verdadeira na consumação final de todas as coisas, realidade que não pode enfraquecer a ênfase do autor na experiência da escatologia realizada, a que voltará em 12:18ss.

36. 0 Desafio à Santidade e à Fidelidade (Hebreus 12:12 -17 )

À luz da visão positiva do sofrimento, que o autor estabeleceu na seção anterior, ele agora dá uma exortação pastoral a seus leitores. Estes devem prosseguir vivendo a vida cristã, resistindo à tentação de voltar a seus andgos caminhos, ainda que tal posição possa parecer menos problemáti­ca. Esaú constitui um exemplo negativo, e serve de admoestação adicional aos leitores. Esta exortação tem muita coisa em comum com as anteriores (e.g., 2:1-3; 4:1-2; 6:1-6; 10:32-36), mas se difere em algo, é que carrega maior carga de persuasão, em função das palavras especiais que já pesquisamos no cap. 11, e da discussão de 12:1-11.

12:12-13\A linguagem figurada mcomum do v. 12 é tirada da LXX, Isaías 35:3, cujo contexto se refere a cumprimento escatológico; a sentença seguinte diz: “Dizei aos turbados de coração: Esforçai-vos. não temais; o vosso Deus virá com vingança; com recompensa divina virá, e vos salvará.” A exortação deste versículo, como o indica o contexto de Isaías, é muito pertinente às condições dos leitores desta carta. O peso da exortação levantai as mãos cansadas, e os joelhos vacilantes está em que os leitores devem reanimar-se, receber o poder a fim de enfrentar suas circunstâncias difíceis. As palavras iniciais do v: 13 foram tiradas da LXX, Provérbios 4:26: fazei veredas direitas para os vossos pés. cuja linha paralela é “todos os teus caminhos sejam bem ordenados.” A referência ao manco provavelmente veio ao autor por influência de Isaías 35:3, menci­onado no v. 12. Onde há fraqueza e pemas vacilantes pode haver também paralisia (veja-se também Is 35:6). Se associarmos a necessidade de evitar- se a paralisia, a fazei veredas direitas, a expressão vossos pés (como em ECA e NIV) pode relacionar-se com Provérbios 4:26, e ir junto com mãos cansadas e joelhos vacilantes. A expressão não se desvie é literalmente “não se vire para o lado”, provavelmente no sentido de “deslocar-se” (cf. RSV: “que se desconjuntou”). Se os leitores endireitarem suas veredas, vivendo de modo que agrada a Deus, o manco e o que sofre dores serão curados, em vez de sofrerem agravos. Pode-se presumir que a linguagem

(Hebreus 12:12-17) 251

metafórica destes versículos, a partir do que sabemos a respeito da carta aos Hebreus, pode constituir um retrato gráfico das condições dos leitores.

12:14 / A exortação deste versículo parece ser mais genérica, mais em harmonia com a que encontramos em outras cartas do Novo Testamento. Os leitores são convocados para “perseguir” (verbo que NIV traduz por “fazei o máximo esforço para”) seguir a paz com todos, e a santificação(ECA). A expressão segui a paz é tirada de Salmos 34:14 e encontra-se também em Romanos 14:19 e 1 Pedro 3:11 (cf. Hb 12:18; 2 Co 13:11; 2 Tm 2:22; 1 Ts 5:13). É claro que a exortação à santidade é muito comum em todo o Novo Testamento. A santidade já foi estabelecida como o objetivo do cristão no v. 10. Se nós nos lembrarmos de que o sofrimento e a santidade vêm coligados, um produzindo o outro, poderemos ver a presente exortação como sendo especificamente pertinente aos leitores desta carta. Ninguém verá o Senhor é expressão que se relaciona ao fim dos tempos. “Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhan­tes a ele, porque assim como é, o veremos” (1 Jo 3 :2). É bom notar que em duas bem-aventuranças seguidas Jesus se refere aos “puros de coração” que “verão a Deus,” e os “pacificadores serão chamados de “filhos de Deus” (Mt 5:8-9).

12:15 / A exortação neste versículo é dirigida a algo que, aparentemente, constitui o principal interesse do autor da carta. Vimos essa preocupação dele emergir vezes e vezes sem conta (e.g., 2 :lss; 3:12ss.; 4 :lss.; 6:4ss.; 10:23, 26ss., 35). Aqui ele apela à responsabilidade da comunidade toda para com cada membro. E por isso que precisam v igiar Tende cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus. Os membros da comunidade devem responsabilizar-se uns pelos outros (talvez seja essa a ênfase de 10:25). E exortação decalcada na linguagem de Deuteronômio 29:18, a respeito de uma raiz de amargura que pode crescer e “perturbar” as pessoas ao redor. A adequação da alusão fica bem clara quando se lê Deuteronômio 29:19: “Ninguém que, ouvindo as palavras desta maldição, invoque uma bênção solve si mesmo, e pense: Terei paz, ainda que persista em segun- o meu próprio caminho, para acrescentai à sede a bebedice.” (Cf. GNB: “Isso destruiria todos vocês, tanto o&boos como oamsa&^O lapsodeummembto (ou de outros mais) da comunidade produzirá sei eieilo inevitável solve os demais membros, pelo que deve ser impedido tanto quanto posatveL

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12:16-17 / A referência na exortação precedente ao perigo de “perder a graça de Deus” é reforçada agora pelo exemplo do infeliz Esaú. A comunidade deve tentar impedir que alguém se tome como Esaú. Esse homem é descrito como profano (lit., “irreligioso”), porque vendeu o seu direito de prim ogenitu ra (lit., “direito de nascimento”) trocando-o por uma refeição, isto é, um bocado de pão e um prato de lentilhas (Gn 25:33s.). Neste sentido, Esaú é o oposto, ou antítese dos heróis da fé do cap. 11. Trocou o invisível, a realidade do futuro, pela gratificação imediata do presente (cf. 11:25s.). Assim foi que ele rejeitou a herança que lhe pertencia por direito de nascença, como filho primogênito. Mais tarde, Esaú lamentou amargamente sua própria decisão, pois, querendo ele ainda h e rd a r a bênção, foi rejeitado. Não havia como desfazer o mal que havia cometido; não achou lugar de arrependim ento (trad. lit.). O arrependimento não lhe foi possível, conquanto o buscasse com lágrim as (Gn 27:30-40). Esta advertência a respeito do destino tnste de Esaú traz- nos à memória a advertência do autor da carta a seus leitores, em 6:4ss. (cf. 10:26s.) acerca da impossibilidade de arrependimento para os que abando­nam a fé. Esaú não conseguiu descobrir o caminho de volta que desfizesse a decisão infeliz; os leitores devem aprender desse incidente como a apostasia é séria, não devem esperar que haja um retomo fácil para o cristianismo, mais tarde, em época mais conveniente.

Notas Adicionais # 3612:12-13 / A linguagem figurada empregada em Isaias 35:3 parece ter

exercido forte influência sobre outros autores, além do que está escrito em Hebreus. Siraque, por exemplo, também se refere a “mãos cansadas e joelhos vacilantes” (25:23, cf. 2:12; Sf 3:16). O adjetivo que qualifica joelhos é para lyo (“cansados”), o qual e usado para descrever o homem paralítico curado por Jesus em Lucas 5:18-26. A palavra que se traduziu por levan tai é anorthoo , que ocorre noutras passagens do Novo Testamento, mas apenas em Lucas 13:13 e Atos 15:16. A palavra rara que significa veredas é trochia , tirada de Provérbios 4:26; ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento M anco (ch õlos) é o termo empregado usualmente no Novo Testamento, e que ocorre apenas aqui, em Hebreus. N io se desvie — o verbo é tradução de e k trtp õ (traduzido por ‘Virar-se para um lado” em NIV) ocorre noutras passagens do Novo Testamento apenas nas cartas pastorais, onde normalmen­te significa “desviar-se,” ou “extraviar-se.” Talvez à luz do v. 15 se possa

(Hebreus 12:12-17) 253

distinguir um eco desse sentido, aqui (observe-se, também, veredas direitas. O verbo comum seja curado (iaomai) ocorre apenas aqui em Hebreus.

12:14 / Na grande bem-aventurança de 13:20s., o autor se refere a Deus como “o Deus de paz.” A palavra grega traduzida por santidade neste versículo é hagiasmos, usualmente traduzida por “santificação” no Novo Testamento (e.g., aRSV em Rm 6 :19, 22,1 Co 1:30; 1 Ts4:3). É palavra que ocorre apenas aqui, em Hebreus. No entanto, seu sentido não é diferente do sentido da palavra relacionada que se usa no v. 10. A santificação caracteriza o crente que foi separado por Deus, e para Deus, cuja vida é marcada pela obediência ao evangelho de Cristo. Os leitores de Hebreus deverão perseverar na santificação. Deus exige santidade na vida do cnstão, como se vê em 1 Pedro 1:15: “Como é santo aquele que vos chamou, sede vós tambem santos em todo o vosso procedimento.” Tais palavras são acompanhadas de uma citação de Levítico l l :44s., 19:2). Veja-se também Mateus 5 48. Quanto à visão escatológica de Deus, veja-se Apocalipse 22:4.

12:15 / A tradução que NIV apresenta do termo grego episkopeo, “vede que,” e que ECA traduziu por tende cuidado de que, tem o sentido de “supervisionar” ou ‘‘tomar cuidado de.” Esta palavra (cf. seus cognatos) que nesta passagem aparentemente se refere à responsabilidade da comunidade toda, logo se tomaria termo designativo de cargo de liderança na igreja. E verbo que ocorre mais uma vez so, no Novo Testamento, em 1 Pedro 5:2. O termo grego que cuja tradução originou o verbo "‘perder” (“que ninguém perca a”, NIV) e em ECA foi traduzido por que ninguém se prive da, é o verbo grego hystereo (lit., “ficar aquém do esperado.” “desapontar”) é o mesmo verbo usado com o mesmo sentido em 4:1. A expressão graça de Deus ocorrera antes em 2:9, onde se refere à morte expiatória de Jesus. O termo empregado pelo autor da carta, vos perturbe (tradução de enochleo) prova­velmente representa uma corrupção de menor importância do texto da LXX (que traz en chole. isto é, “em fel”, cf. a adição feita por GNB das palavras “com seu veneno”). Visto que “perturbação” e “fel” têm sentido semelhante, a ligeira alteração do texto da LXX não é seria. O resultado da raiz de amargura na comunidade é literalmente que por ela muitos se contaminem. A palavra grega para contaminem (m ia in õ ) é empregada aqui com o sentido de imundícia cerimonial (Jo 18:28; 1 Macabeus 1:63) e também moral (Tt 1:15). No presente contexto a ímundiciarefere-seatendênciasparaaapostasia

12:16-17 / Como acontece em relação aos exemplos do cap. II, a adequação do caso de Esaú para o ponto central estabelecido pelo autor da carta é de tão grande notoriedade, que se toma fãcil imaginar a diligência com que ele pesquisou o Antigo Testamento, atrás de um texto ilustrativo apropri­ado Édiscutivel se a expressão devasso (sexualmente) e pro fano (irreligioso j

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dizem respeito a Esaú. Que o autor da carta está preocupado com a i moralidade sexual entre seus leitores, parece-nos claro, por causa de 13:4 Temos certeza de que Esaú é retratado pela tradição judaica como sendo culpado de imoralidade sexual (veja-se Strack-Billerbeck, quanto a exemplos). No con­texto atual é óbvio que a segunda palavra é apropriada. Esaú era profano (bebêlos) porque não tinha a mínima consideração pela sua 1 inhagem sangüínea, nem pelas promessas da aliança relacionadas a essa linhagem. Isto contrasta obviamente com o retrato de Jacó, traçado em 11:21 Quando o autor da carta afirma que Esaú, querendo... ainda herdar a bênção, certamente está querendo dizer que Esaú tentou restaurar seu direito de pnmogenitura. Mas foi rejeitado (apodokim azo , talvez fosse traduzido mais bem por “foi declarado desqualificado” [cf. BAGD, p. 90]). A palavraque significa “arrependimento” (m etanoia) ocorre em conexão semelhante em 6:6. E difícil saber se o termo antecedente (auteri) no final do v. 17 é “arrependimento” ou “a bênção” (acréscimo de NIV, ECA emprega um pronome do caso oblíquo, o tivesse buscado. No entanto, a diferença é mínima, visto que, afinal, o “arrependi­mento” tinha o objetivo de dar-lhe nova posse da bênção A futilidade no trato de um elemento significava futilidade no trato de outro. Por isso, um ou outro erro poderia ter sido a fonte da perturbação de Esaú.

37. A Glória da Posição Atual do Cristão (Hebreus 12:18-24)

Numa das passagens mais importantes de toda a carta aos Hebreus, seu autor nos apresenta um contraste vivido entre o monte Sinai e o monte Sião, entre o caráter essencial da antiga aliança e a da nova. Ao fazè-lo, o autor nos dá um retrato espantoso da possessão dos leitores — em Cristo e mediante Cnsto. Seria difícil encontrar uma expressão mais impressionan­te e comovente de escatologia realizada, em todo o Novo Testamento. O propósito do autor é alargar os horizontes dos leitores e capacitá-los a entender a verdadeira glória daquilo de que participaram como crentes verdadeiramente cristãos. No presente momento estão sendo tentados a voltar para o judaísmo, a que pertenciam antes, um sistema que esmaece violentamente, em comparação com o Cristianismo (cf. 2 Co 3:4-18). Os que estiveram no monte Sião jam ais poderão considerar a volta ao monte Sinai.

12:18 / O vocabulário deste versículo, bem como do próximo, em grande parte foi retirado da LXX. que registra a ocorrência de Moisés no monte Sinai (esp. D t4 :11; 5:22-25; Êx 19:12-19). A alusão não poderia ter- se perdido entre os leitores originais. As manifestações da presença de Deus no monte Sinai eram tangíveis, isto é, poderiam ter sido experimen­tadas pelos sentidos. O elemento ardente, e... a escuridão, e... as trevas, e ... a tempestade causaram vivida impressão sobre os israelitas.

12:19-20 / Eles também ouviram um sonido de trombeta e som de palavras. De acordo com a narrativa de Êxodo (20; 19), as pessoas falaram a Moisés a respeito do medo que sentiam da voz de Deus. “Faia tu conosco, e ouviremos. Mas não fale Deus conosco, para que não morramos.” Esse mesmo temor està registrado em Deuteronômio (5:25): “Morreremos se continuarmos a ouvir a voz do Senhor nosso Deus.” Não e m aperras a voz audível de Deus que aterrorizava os israelitas, m u também as ordens severas que ele pronunciava. O autor dá-nos um exemplo de proibição contra tocar a montanha sagrada. N Io era possível que alguém se apnad-

256 (Hebreus 12:18-24)

masse de Deus, dada a espantosa e absoluta santidade de sua presença. Até mesmo um animal deveria ser apedrejado caso tocasse a montanha (a citação é de Ex 19:13). O resultado do pavor dos israelitas foi que quantos o ouviram rogaram que não se lhes falasse mais.

12:21 / Segundo o autor de Hebreus, até mesmo Moisés estava cheio de terror, diante do espetáculo da teofania no Sinai. As palavras que lhe são atribuídas não se encontram no Antigo Testamento. Os termos que mais se lhe parecem encontramo-los em Deuteronômio 9:19; nesta passagem, após a rebelião dos israelitas no deserto, assim diz M oisés: “Temi por causa da ira e do furor com que o Senhor tanto estava irado contra vós, para vos destruir.” Portanto, o quadro traçado pelo autor da carta, da entrega da lei no monte Sinai, é representativo da predominância do medo que o povo sentia de Deus, e da severidade de suas leis. Este quadro contrasta violentamente com a mudança de situação trazida pela nova aliança, e que o autor agora apresenta a seus leitores.

12:22 / A abertura deste versículo coincide em parte com a abertura do v. 18. O tempo do verbo, em forma composta, tendes chegado, indica chegada em algum tempo no passado com gozo connnuado, pelos resultados que abrangem também o presente. Ao usar esse tempo verbal, o autor quer, com toda clareza, enfatizar que o que ele está prestes a descrever de certo modo já está sendo usufruído pelos seus leitores. Eles chegaram ao monte Sião, monte cujo significado é ainda maior do que o do monte mencionado nos versículos precedentes. Monte Sião é sinônimo de Jerusalém, no Antigo Testamento (e.g., 2 Sm 5:6s.; 2 Rs 19:21; SI 2:6; 9:11). Aqui. este monte é descrito também como a Jerusalém celestial, a expectativa escatológica a que Apocalipse 21:2 se refere (cf. G14:26; 2 Bar. 4:2ss.) e cidade do Deus vivo, cidade já mencionada como sendo o objetivo verdadeiro de Abraão (11:10; cf. 11:16). Em 13:14 está escrito: “Não temos aqui cidade permanen­te, mas buscamos a vindoura.” Assim é que os leitores já usufruem no presente tempo a cidade escatológica do futuro (cf. Ef. 2:6). Encontramos aqui de novo a tensão entre a escatologia realizada e a futura (e.g., 1:2; 4:3; 6:5; 9:11; 10:1). Os cristãos têm experimentado o cumprimento, mas a esse cumprimento falta a consumação. A respeito dos leitores está escrito que encontraram-se com muitos milhares de anjos (lit., “miríades” ou “deze­nas de milhares”)- Em Deuteronômio 33:2, “miriades de santos” relaciona-

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se ao aparecimento do Senhor no monte Sinai; em Daniel 7:10, “milhares de milhares o serviam, e milhões de milhões estavam diante dele,” isto é, diante do trono do Senhor. Estas hostes também estão presentes na cidade, na Jerusalém celestial (cf. a ceia das bodas do cordeiro, Ap 19:6).

12:23 / Os leitores também chegaram à igreja, a congregação do povo de Deus, ou dos primogênitos, cujos nomes foram escritos nos céus (cf. Lc 10:20). Com toda probabilidade, isto se refere aos crentes da era danova aliança. Esta comunidade de crentes em Cristo é constituída dos primogênitos, que se tomaram os herdeiros da promessa (cf. Rm 8:17). A Bíblia de Jerusalém capta bem o sentido dessa passagem: “com a igreja toda, na qual todos são 'primogênitos’ e cidadãos do céu.” Em suma, os leitores, chegaram (tendes chegado, NIV e ECA usam de novo o mesmo verbo) à presença real de Deus, o ju iz de todos. A despeito da horrenda realidade de Deus como Juiz (cf. v. 29), os leitores não precisam ter medo, como os israelitas que sentiram medo diante do monte Sinai, até da voz de Deus, visto que mediante Cristo estão livres agora para aproximar-se de Deus, inclusive como Juiz. Tendo essa liberdade, podemos avaliar a ousadia dos cristãos, ao usarem o livre acesso à presença de Deus, mediante a obra sacrificial de Cristo (e.g., 4:16; 6:19; 7:25; 10:19ss.). Os espíritos dos justos aperfeiçoados provavelmente é referência ao povo de Deus do Antigo Testamento. São citados como espíritos porque aguardam a ressurreição. De modo mais particular são descritos como tendo sido aperfeiçoados em que, ao lado dos leitores e todos os cristãos, alcançaram o objetivo, a cidade de Deus, o propósito final de Deus, que primeiramente lhes foi apresentado, ainda que sob a forma de símbolos e figuras. Tudo isto se harmoniza com o que o autor escreveu acerca dos santos do Antigo Testamento, em 11:40.

11:24 / Finalmente, os leitores chegam a Jesus, o Mediador de uma nova aliança. Este fato de elevada importância forma a própria base de tudo quanto tem sido descrito, desde o v. 22. A referência a uma nova aliança aqui redirige os leitores a um dos argumentos mais importantes para o autor da carta (7:22; 8:6-13; 9:15). O sangue da aspersio de Jesus refere-se a sua obra sacrificial expiatória. Esta figura de linguagem já bawia sido utilizada antes, na descrição das práticas sacerdotais levitkas (9; 13b., 19, 21), e também na descrição da obra de Cristo (10:22; cf. 1 Pd 12). O

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sangue de Jesus fala melhor do que o de Abel. Em 11:4o autor de Hebreus anotou o caso de Abel, escrevendo que “por meio dela [fé], depois de morto, ainda fala.” No entanto, aqui, parece que a referência se faz a Gênesis 4:10, em que “a voz do sangue do teu irmão Abel clama a mim desde a terra. ” Essa era a mensagem do sangue de Abel. Todavia, o sangue de Cristo fala de coisas melhores — mais conspicuamente fala do perdão de pecados a partir da inauguração da nova aliança (8:12; 10:17s.). O sangue expiador de Cristo fala do fim da antiga aliança e do estabelecimen­to da nova aliança. Foi esse sangue que trouxe aos leitores os benefícios da nova aliança, e os levou à gloriosa situação atual, em que começam a experimentar o cumprimento dos objetivos, dos propósitos salvíficos de Deus, o usufruto da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial.

Notas Adicionais # 3712:18/ Alguns manuscritos (que NIV acompanha) acrescentam à palavra

palpável a palavra monte (oros), resultando assim em monte palpável (EC A, mas NIV diz: “que pode ser tocado”). No entanto, os melhores manuscritos omitem a palavra “monte”, sua presença em alguns desses documentos provavelmente se deve à influência do v. 22 (cf. v. 20). O verbo tendes chegado implica em “ter chegado a certo lugar e ali permanecido”). Esse verbo é mais significativo ainda na declaração positiva que se inicia no v. 22, onde ele se repete Só as palavras que significam palpável (pselaphaõ) e escuridão (zoph os) não foram tiradas dos textos descritivos da LXX, sobre a teofania do Sinai.

12:19-20 / A referência a sonido de trombeta e ao som de palavras também é tirada da LXX, Êxodo 19:16. De acordo com a LXX, Êxodo 19:13, o ser humano ou o animal que tocasse a montanha deveria ser apedrejado ou atravessado por um dardo. Em ambas as formas de pena capital o condenado ficava a distância Trata-se do cuidado de evitar o perigo potencial de “contaminação” pela santidade de Deus (cf. 2 Sm 6.7), ainda que por segunda mão. Veja-se E. Pax, EBT, pp. 372-75. Pode-se perceber uma dose de ironia no fato de o Sinai (e os fenômenos relacionados a eie) ser descnto como “palpável,” mas nem um ser humano ou animal ter permissão para tocá-lo.

12:21 / A palavra grega para visio (phantazã), ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento. Na literatura helenistica essa palavra era usada para descrever o “espetáculo” da teofania Veja-se BAGD, p. 8S3. É possível que a referência ao medo e tremor de Moisés seja tirada de tradições judaicas relacionadas à outorga da lei no Sinai (cf. At 7:32, mas trata-se de medo e

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tremor perante a sarça ardente).12:22 / O monte Sião e a Jerusalém literais, em face de sua grande

importância, eventualmente vieram a ser entendidos como arquétipos da realidade superior escatológica que há de vir. Quanto a Sião e a nova Jerusalém , veja-se E. Lohse, TDNT, vol. 7, pp. 319-38. Quanto à cidade do Deus vivo, veja-se a nota sobre 11:10. F.F. Bruce salienta que o principal verbo vós tendes chegado a implica em conversão (a raiz que se encontra aqui, prose lêlyíhate, deu origem à palavra portuguesa “prosélito”). Há ainda um problema difícil de interpretação, quanto a se a palavra grega panegyris (“reunião festiva”) deve ser combinada com o que a precede, “muitos milhares de anjos” (NIV, ASV, NEB e GNB), ou se ela deve ser entendida de modo independente, separado. E quase certo que ela não deve ser interpretada isoladamente, visto que todas as outras entidades discretas a que se refere o autor, na lista, estão ligadas entre si pela preposição “e” (kai), mas não existe conetivo nenhum antes de panegyris aqui. No entanto, a presença do conetivo kai logo a seguir faz que seja muito natural associar a palavra panegyris aos anjos, portanto, teríamos, segundo NIV: “milhares de milhares de anjos numa assembleia alegre ” ECA prefere: tendes chegado... aos muitos milhares de anjos, à universal assembléia. Veja-se a observação minuciosa de Hughes, Hebrews— Hebreus — vol. 5, pp. 722. Quanto à presença de anjos no recinto celestial, num ambiente escatológico, cf. Apocalipse, onde se encontra o maior número de referências a anjo, em comparação com todos os livros do Novo Testamento. Veja-se H. Bietenhard,NIDNTT, vol. l,pp . 101-3,eanota sobre 1:4, acima.

12:23 \ O sentido real de igreja dos primogênitos tem sido objeto de muito debate. Estas são apenas algumas das diferentes possibilidades que têm sido sugeridas: anjos, santos do Antigo Testamento, os pnmeiros cnstãos, cristãos falecidos, e mártires cnstãos. A referência aos primogênitos inscritos nos céus faz que seja improvável que o autor esteja falando de anjos, pois, esta expressão sempre se refere aos crentes (e.g., Fp 4:3; Ap 3:5; 13:8; 20:15). Primogênitos é termo que se poderia interpretar como os santos do Antigo Testamento, são primogênitos no sentido de terem precedido os cnstãos. Entretanto, em face das convicções do autor a respeito da nova aliança, é improvável que ele restringisse esse titulo às pessoas que estavam sob a aliança antenor (cf. Tg 1:18, que se refere a cnstãos como sendo “um tipo de primícias”). Quanto a primogênitos (p rõ to to k o s \ que se refere a cnstãos apenas aqui, em todo o Novo Testamento, veja-se W. Michaelia, TDNT, vol 6, p. 881; Hughes, H ebrwm — Hebreus, pp 552-55; e»nota sobre l:6 ,r aak. Além do mais, o uso deliberado que o autor da carta faz da palavra ekklêsia (igreja), pode ser indicação da igreja (cf. KJV, ASV, NASB e JB) A palavra

260 (Hebreus 12:18-24)

ekkíêsia por si mesma, é claro, não significa necessariamente que se trata da igreja, ela ocorre em outra passagem de Hebreus (2:12), onde significa apenas “congregação” ou “assembléia,” podendo ser esse seu significado geral. Por isso, a palavra grega é traduzida aqui por “assembléia” (RSV, NEB) e “reunião” (GNB). Veja-se K.L. Schmidt, TDNT, vol. 3, pp. 501-36.

Anteriormente, o autor da carta havia descrito a comunidade dos crentes, de que os seus leitores faziam parte, como “casa de Deus” (3:6). Aqui se diz deles que formam a cidade de Deus. Este é o único lugar em toda a carta aos Hebreus, em que Deus é chamado de juiz (kntes), embora essa idéia ocorra várias vezes (e.g., 2:3; 4:1; 6:8; 9:27,10:27,30s., 12:29). A palavra “espíritos” não deve sertomadacomo termo técnico de antropologia bíblica(distingüindo- se da palavra alma), mas simplesmente em referência a parte espiritual ou imaterial dos seres humanos. Veja-se E. Schweizer, TDNT, vol. 6, pp 445s. A palavra grega para justos (dikaios) fora utilizada anteriormente em 10:38 (na citação de Hc 2:4) e em 11:4, em que Abel é descrito como “um homem justo.” Portanto, essa é uma palavra ideal para descrever os heróis exemplares da fé do cap. 11. No entanto, é possível, como alguns eruditos têm argumen­tado (e.g., Delitzsch, Westcott, Hughes), que esta cláusula se refira de modo universal a pessoas cheias de fé, de todas as eras. antigas e atuais. Veja-se W J Dumbrell, “ ‘The Spirits of Just Men Made Perfect,’” EO 48 (1976), pp 154- 59. Quanto ao verbo grego (que em ECA resultou em adejtivo) aperfeiçoados (teleioõ), que tanta importância tem para o autor da carta, veja-se a nota sobre 2 : 10 .

12:24 / A palavra grega para M ediador (mesites) tambem é utilizada para referir-se a Jesus em 8:6 e 9:15 Veja-se a nota sobre 8:6. A palavra para “nova,” na expressão nova aliança é neos, em vez de kame, como acontece nas demais referências à nova aliança, nesta carta (8:8, citando J r3 1:31; 9:15); entretanto, o uso deste sinônimo não implica em diferença de sentido. Quanto a “aliança,” veja-se a nota sobre 7:22. Quanto à “aspersão” do sangue (o substantivo rhantismos ocorre apenas aqui em Hebreus), vejam-se as notas sobre 9:7 e 9:13 Esta é a última ocorrência da palavra melhor (kreitton) na carta. Quanto à tremenda importância desta palavra para o autor de Hebreus, veja-se a nota sobre 1:4.

38. Uma Advertência Final a Respeito da Rejeição (Hebreus 12:25-29)

O autor de Hebreus dedica-se outra vez à advertência de seus leitores, para que não descaiam de sua fé cristã, e do compromisso que fizeram com Cristo. No entanto, esta exortação vem contrabalançada de modo maravi­lhoso por uma ênfase na segurança final de todos quantos permanecerem firmes. Assim é, pois, que algumas opções são finalmente colocadas diante dos leitores com máxima clareza. Se rejeitarem a verdade do evangelho, não poderão escapar do julgamento. Todavia, se perseverarem na fé em Cnsto. ficarão sabendo que se tomaram destinatários de um reino que jam ais terá fim. Esta passagem, que arremata de modo tão maravilhoso a discussão iniciada em 2:1, com uma passagem tão notavelmente seme­lhante à precedente, em sua essência é a conclusão do principal argumento e apelo do autor. Como veremos, o cap. 13 funciona mais como um apêndice de tudo quanto o precede, mais do que como extensão necessária da discussão.

12:25 / Este versículo e o próximo exploram o contraste traçado entre o monte Sinai e o monte Sião, na passagem precedente. O autor já apresentou virtualmente o mesmo argumento várias vezes (2:1 ls.; 4:1 ls.; 10:28s.). Argumentando do menor para o maior (“a fortiori”) ele aponta para a realidade óbvia e dolorosa do julgamento experimentado pelos israelitas, quando desobedeceram à aliança do monte Sinai e, depois, para o julgamento infinitamente mais sério, merecido por todos quantos se desviam da revelação maior encerrada na nova aliança. No presente exemplo, os israelitas literalmente se recusaram a ouvir a voz de Deus (cf. v. 19s ), e também no sentido que eles não obedeciam às suas ordens (cf. 3:17s.). Os israelitas recusaram-se a ouvir a voz de Deus, quando o Senhor lhes falou na terra, mediante seu servo Moisés (veja-se Dt 5:4&. Recusas­se a ouvir à voz de Deus é rejeitar o próprio Deus. É por isso que a advertência inicial aos leitores é para que não rejeitem ao que fida (veda que não rejeites ao que fala). A referência a uma pessoa, àquela qae sobre a terra os advertia nos eventos do monte Sinai que anahamoa de

262 (Hebreus 12:25-29)

descrever (w . 18-21), provavelmente não deveria ser Moisés, mas o próprio Deus que falava mediante Moisés. Portanto, se os leitores abando­narem a fé, eles se desviarão (se nos desviarmos daquele que nos adverte lá dos céus?) Em outras palavras, rejeitam a palavra de Deus vinda dos céus, o evangelho e tudo quanto está relacionado ao cumprimento que o evangelho proporciona. O autor de Hebreus escreveu, no início de sua carta, que “a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho” (1:2). Esta é a palavra vinda do céu que os leitores estão sendo tentados a rejeitar. Todavia, quanto maior a luz, mais senaé sua rejeição. Portanto, os leitores deverão estar atentos: Vede que não rejeiteis a verdade que receberam.

12:26 / Então aqui significa “nessa época,” isto é, na época em que a lei foi outorgada no monte Sinai. Havia sido a voz de Deus que na época abalou a te r ra (cf. v. 19; Ex 19:18; SI 68:8). Agora refere-se não à entrega da promessa, feita no passado, mas á presente expectativa de seu cumpri­mento iminente. Deus prom eteu uma forte sacudidela na terra, e agora que estamos nos últimos dias, esse evento pode ser esperado em futuro próximo. A citação é de Ageu 2:6 (cf. 2:21). O que se tem em vista, a partir dessas palavras de Ageu, é o julgamento que ocorrerá com relação à vinda do ‘eschaton’. A sacudidela futura dos céus já foi mencionada pelo autor da carta, ao citar Salmos 102:25-27 e em 1:10-12 (cf. Mt 24:29).

12:27 / O escritor oferece de novo um breve comentário sob a forma de ‘m idras’, a seus leitores. As palavras ainda uma vez, extraídas da citação, explicam-se como referência ao julgamento escatológico (diferentemente do “abalamento” ou “sacudidela” anterior); este abalar envolve purifica­ção das coisas criadas (lit., ‘‘como de coisas feitas”) para que (ou “a fim de que”) só as (coisas) inabaláveis permaneçam, e mais nada. Mas as coisas que são abaláveis de fato serão abaladas; e isto é o que faz que a perspectiva do julgamento escatológico seja uma coisa terrível, (cf. v. 29).

12:29-29 / No entanto, os leitores têm boas razões para serem agrade­cidos (retenhamos a graçaX porque receberam um reino que não pode ser abalado. Reino aqui se refere a algo que pode ser descrito como o fruto da nova aliança. Assim, à semelhança da realidade do reino de Deus, mencionado com tanta freqüência no Novo Testamento, trata-se da experi­ência do reino de Deus que se tomou possível mediante a graça

(Hebreus 12:25-29) 263

reconciliadora de Deus, em Cristo. Portanto, é a nova qualidade de vida, a nova existência, que se fez possível mediante o cumprimento das promessas de uma nova aliança. Visto ser este o resultado da obra de Deus, esse reino permanece seguro ainda que haja tremores e terremotos no mundo todo. Mediante esta firmeza de espírito e a reação de fidelidade que a acompanha, poderemos servir a Deus (sirvamos a Deus agradavelmen­te; NIV diz “aceitavelmente”), ou seja, de modo tal que produza reverên­cia e santo temor. Reverência e santo temor são termos apropriados para a adoração e o culto do cristão, visto ser Deus “o ju iz de todos” (cf. v. 23); no julgamento escatológico, o Senhor é fogo consumidor (c f 10:30s.). Esta descrição de Deus é citação de Deuteronômio 4:24 (cf. Dt 9:9), em que Moisés exorta o povo à fidelidade à aliança. Deus permanece o mesmo, a despeito das novas circunstâncias da nova aliança. A luz de tudo isto, os leitores devem ser gratos a Deus, pelo que lhes foi concedido em Cristo; e devem eliminar da mente todos os pensamentos tendentes a abandonar o cristianismo, voltando ao antigo modo de viver.

Notas Adicionais # 3812:25\ A forma de argumentação “a fortion” fica mais óbviaquando lemos

o original, que diz: “quanto mais óbvio ainda ficaque não poderemos escapar.” O mesmo verbo vede (b lep o) havia sido usado antes, em 3:12, num contexto semelhante O fato de o verbo traduzido por rejeitaram (p a ra ite o m a i) é o mesmo que fora usado no v. 19 (NIV e ECA trazem “rogaram”), dá algum apoio àconclusão de que se trata da voz de Deus (ou de Cristo?), como sugerem algumas traduções (e.g., NASB, NEB, JB; cf. Moffatt: “Se aqueles que se recusaram a ouvir seus instrutores na terra não conseguiram escapar, nós então de modo algum o conseguiremos, se dispensarmos aquele que nos fala do céu”). ECA diz: aqueles que rejeitaram o que sobre a terra os advertia fica corretamente sob ambigüidade, visto que pode ser igualmente certo que Deus estivesse falando mediante Moisés.

O verbo na terceira pessoa singular, fala, visto ser o mesmo do versículo anterior, pode ser de pronto relacionado ao que é melhor, ali mencionado. No texto grego os pronomes eles e nós são enfáticos. O verbo escapar (ekpheugo) é o mesmo usado numa passagem paralela em 2:3. Os advertia i tradução oo mesmo verbo (c t ln m a tà õ ) empregado en»8:3el 1:7? ambos se referem iüPfmit que fala a Moisés e aNoé, respectivamente Se nos desviarmos é tradução de apostrephõ. que praticamente i sinônimo de “apostatar” (cf Tt 1:14).

264 (Hebreus 12:25-29)

12:26 / O pretérito perfeito do verbo grego traduzido por ele prometeu indica a validade contínua da promessa. A citação segue a LXX, Ageu 2:6, bem de perto. O autor da carta acrescenta as palavras não só e mas também, e inverte a ordem de céu e terra, o que resulta em ênfase no abalo que o céu sofrerá. Quanto à expectativa geral de um abalo escatológico do céu e da terra, vejam-se passagens como Isaías 2:19, 21, 13 :13 (cf. 2 Pd 3:10; Ap 16:18ss., 21:1). Veja-se G. Bomkamm, TDNT, vol. 7, pp. 196-200, e G. Bertram, TDNT, vol. 7,pp. 65-70 Aatualexperiênciadosbeneficiosdaeraescatológica (veja-se a nota sobre 1:2) induz-nos de modo natural a uma expectativa de iminência da escatologia propriamente dita.

12:27 / Podemos ver tratamentos mais extensivos, tipo ‘midras’, de citações do Antigo Testamento em 2:8s ; 3 :12-4:10; 8:13; 10:8-10; e 12:7-11. O argumento é que as palavras ainda uma vez indicam algo que ainda está por vir. Segundo a perspectiva do autor da carta aos Hebreus, deve referir-se ao julgamento escatológico da criação Este julgamento tem como seu objetivo a revelação das coisas inabaláveis, aquilo quejá faz parte permanente da nova criação (cf. 13:20, “a aliança etema”). A remoção é tradução de meíathesis, palavra que ocorre duas vezes anteriormente em Hebreus (7:12, onde se refere a “mudança da lei,” e 11:5, onde se refere ao arrebatamento de Enoque).

12:28-29 / O único outro lugar em Hebreus, em que reino é palavra utilizada de modo positivo, no sentido de “reino de Deus,” é a citação de Salmos 45:6 em 1:8 O autor da carta, se não se apoiou na tradição do evangelho, pode ter extraído esse termo de alguma passagem como Daniel 7:27. O particípio presente de NIV (“recebendo”) assemelha-se no sentido ao pretérito composto que ECA preferiu, tendo recebido, ambos sugerem um equilíbrio cuidadoso entre a escatologia presente e a futura. Estamos em pleno processo, agora, de receber o reino; e nós o receberemos finalmente, no futuro. O verbo grego traduzido por sirvamos é latreno, o qual é empregado anteriormente para descrever o serviço dos sacerdotes levíticos (e.g., 8:5; 9:9; 10:2, 13:10; cf. o substantivo cognato em 9:1 e 6), mas aqui, como em 9:14, e empregado para descrever a vida espiritual do cristão. Veja-se H. Strathmann, TDNT, vol. 4, pp. 58-65 O advérbio que traduz euarestõs em ECA e agradavelmente; ocorre apenas aqui em todo o Novo Testamento (mas o adjetivo cognato ocorre em 13:21). Reverência (eulabeiá) ocorre aqui e em 5:7, no Novo Testamento. Veja-se a nota a respeito de 5:7. A palavra correspondente a santo temor (deos) aparece só aqui, na Bíblia Grega Deus é descrito várias vezes em seu pape) de juiz, no Antigo Testamento, sob a figura de um fogo consumidor (e.g., Is 26:11; 33:14; Sf 1:18; 3 :8). O autor de Hebreus utilizou essa figura de linguagem em 10:27.

39. 0 Chamado para uma Vida Ética (Hebreus 13:1 -4 )

O autor concluiu a principal parte de sua carta, tendo discutido seus pontos centrais com muita força e convicção; agora, ele se volta para várias questões que deseja esclarecer, antes de concluir. O capítulo 13, portanto, é semelhante a um apêndice. Isto não quer dizer, contudo, que o texto deste capítulo nenhuma relação apresenta com a parte principal da carta. Na verdade, algumas das principais preocupações são abordadas de novo aqui, ainda que de modo um tanto diferente, superficial, a fim de fazer aflorar o significado prático das questões já discutidas. Ao mesmo tempo, grande parte do texto é semelhante às exortações de cunho ético que se encontram nas seções finais das demais cartas do Novo Testamento. A despeito da forma inusitada com que a carta aos Hebreus se inicia, estas exortações específicas e conclusivas dão à obra o caráter de carta. Os versículos iniciais deste capítulo têm esse caráter, de forma específica, ainda que alguns itens possam aplicar-se de modo especial aos leitores.

13:1 / Este versículo, tão pequenino, diz literalmente: “Que prossiga o amor fraternal.” E claro que o amor é a base da ética cristã. Jesus resume a lei no mandamento duplo: que amemos a Deus e ao próximo como a nós mesmos (Mt 22:37-40; Mc 12:29-31; cf. Rm 13:9s.). O amor é de suma importância para o cristão, maior ainda do que a fé e a esperança (1 Co 13). A importância do amor é tema constante do Novo Testamento. A ênfase especial aqui, sobre o amor entre irmãos cristãos também aparece, por exemplo, em João 13:34; Romanos 12:10; 1 Tessalonicenses4:9;e 1 Pedro 1:22. O autor já havia emitido uma exortação no sentido de que nos amemos uns aos outros: “Consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras” (10:24). O amor sempre é demonstrado mediante atos concretos — atos como os que o autor menciona.

13:2 / A hospitalidade para com os estranhos era virtude importante na igreja primitiva, de modo especial numa época em que quase não havia comodidade para os viajantes, e as hospedarias nem sempre tinham boa

266 (Hebreus 13:1-4)

reputação. É por isso que exortações como esta encontram-se em vánas passagens do Novo Testamento (e.g.,R m 12:13; 1 Pd4:9; 1 Tm 3:2;5:10; Tt 1:8). E provável que o autor da carta tenha em mente principalmente os obreiros cristãos que viajavam (veja-se de modo especial 3 Jo 5-8). Não vos esqueçais da hospitalidade no original grego é literalmente “mostrai hospitalidade.” A referência a algumas pessoas (alguns) que, no passado, sem o saber hospedaram anjos, é alusão à famosa história da hospitalidade de Abraão em Gênesis 18:1-8 (cf. 19: lss ), mas possivelmente também a Gedeão (Jz 6:11-22), Manoá e a mãe de Sansão (Jz 13:3-21), e Tobias (Tobias 5:4-9). Portanto, esse é um tema familiar na tradição judaica.

13:3/0 cuidado dos presos e em patiapara com os que sofrem já haviam sido demonstrados de modo admirável pelos leitores da carta, no passado (10:33s.; cf. 6:10). Agora são convocados a voltar a exibir essas virtudes cristãs (cf. Mt 25:36), à medida que as circunstâncias o exigirem. NIV diz: “como se vós mesmos estivésseis sofrendo,” enquanto ECA prefere uma tradução mais literal: como sendo-o vós mesmos tam bém no corpo. A paráfrase de Barclay salienta esse ponto com clareza: “porque vocês ainda não deixaram esta vida. pelo que a mesma sorte lhes pode sobrevir.” A identificação com os que sofrem é também um tema comum do Novo Testamento (e.g., 1 Co 12:26; Rm 12:15).

13:4 / Visto que o autor da carta declara que o m atrim ônio deve ser tratado com honra, podemos inferir daí que ele está contra-atacando a influência do ascetismo, que proibia o casamento, como se o celibato fosse um tipo supenor de santidade. Todavia, tanto no judaísm o como no crisnamsmo o mundo material, criado por Deus, é bom, e o ascetismo extremo é totalmente desnecessário. A sexualidade humana em si mesma é boa. No entanto, a promiscuidade sexual é questão fechada e mtransigivel: seja... o leito sem mácula, pois aos devassos e adúlteros Deus os julgará. O autor de Hebreus enfatiza, em harmonia com os ensinos de Paulo (cf. 1 Co 6:9; E f 5:5; Cl 3:5), que os imorais e os lascivos serão punidos por Deus.

Notas Adicionais # 3 913:11 Toda a extensão coberta pelos temas-chaves do cap. 13 reflete as

preocupações do corpo pnncipal da carta, as quais ficaram demonstradas de

(Hebreus 13:1-4) 267

modo eficaz por F V. Filson, “ Yesterday ": A Study ofHebrews in the Light o f Chapter 13 — “Ontem”: Um Estudo de Hebreus à Luz do Capítulo 13, SBT (2) 4 (Londres: SCM, 1967). Quanto ao caráter diversificado do texto, no entanto, Filson observa que o cap. 13 contém vinte imperativos, sobre quinze tópicos diferentes. Além da atual passagem, a palavra equivalente a amor fraternal (philadelphia) aparece só em Romanos 12:10; 1 Tessalonicenses 4:9; 1 Pedro 1:22, e 2 Pedro 1:7 (duas vezes) em todo o Novo Testamento. N a literatura helenística, essa palavra em geral se refere ao amor entre irmãos de mesmo sangue, na literatura cristã, diz respeito de modo particular ao amor entre os que partilham a fé cristã. Veja-se BAGD, p. 858

13:2 / A palavra grega traduzida por hospitalidade (que NIV amplia corretamente para “hospitalidade para com os estranhos” (philoxenià) aparece outra vez no Novo Testamento somente em Romanos 12:13; o adjetivo cognato “hospitaleiro” (philoxenos), no entanto, aparece entre as qualifica­ções dos presbíteros, as quais estão relacionadas em 1 Timóteo 3:2 eTito 1:8, como tambem em 1 Pedro 4:9 A hospitalidade para com os estranhos tinha grande apreciação entre os gregos, e na tradição judaica. Considerava-se Zeus o protetor do estrangeiro oprimido, desse deus e de outros se dizia que visitavam o mundo disfarçados de estrangeiros ou de estranhos. Jesus também advogou a hospitalidade para com os estranhos; na verdade, o Senhor a coloca lado a lado com a alimentação dada aos pobres, o vestuário dado aos nus, e a visitação aos presos (Mt 25:35, 38, 44). Clemente de Roma, ao refletir seu conhecimento da carta aos Hebreus, louva a Raabe não só pela sua fé, como também por sua hospitalidade (philoxenià). Veja-se 1 Clemente. 12:1 (cf. 10:7 e 11:1, quanto a Abraão e Lo, respectivamente). O Didaquê (capítulos 11 e 12) encorajam ahospitalidade aos evangelistas cristãos (estes devem ser recebidos como o Senhor e recebido), mas recomenda também certas medidas contra o abuso da hospitalidade. Quanto a um estudo profundo desse assunto, veja-se G. Stáhlin, TDNT, vol. 5, pp. 1-36.

13:3 / A visitação dos presos também era uma virtude apreciada em certos círculos helenísticos (esp. entre os estóicos). No mundo antigo, os cristãos haviam estabelecido uma excelente reputação para si mesmos, pelo fato de exercerem a caridade aos presos, e aos sofredores. A motivação cristã a este respeito deriva diretamente do ensino de Jesus (cf. Mt 25:31-46). Cf. F.F. Bruce, Hebrews, Hebreus, pp. 391.

13:4 / E possível que o ascetismo, que é combatido nesta passagem, tenha denvado de uma onentação gnóstica que teria, como ponto de partida, a idéia de que a matéria é má e, portanto, o corpo humano é mau. Por isso, o casamento deve ser evitado pelas pessoas que querem cultivar a vida do espínto. Combate-se esse tipo de ascetismo noutras passagens do Novo Testamento

268 (Hebreus 13:1-4)

(e.g., 1 Tm4:3). Temos aqui certo apoio paraatese proposta porT. W. Manson, segundo a qual Hebreus fora escrito para uma comunidade influenciada pelo gnosticismo, a mesma do Vale do Lico, a que Colossenses foi dirigida. R. Jewett adotou esse ponto de vista em seu comentário. Os essênios, como os que formavam a comunidade de Qumran, haviam adotado um tipo de ascetismo parecido com esse, tendo, porém, pressuposições diferentes. Hughes utiliza este fato como apoio à sua teoria de que os leitores de Hebreus haviam sido influenciados pela perspectiva essênica. Sem mácula (amiantos) é a mesma palavra empregada em 7:26, a fim de descrever a santidade de Cristo, o nosso sumo sacerdote (cf. 1 Pd 1:4, em que se descreve a herança do cristão). Quanto ao termo devassos (NIV diz “sexualmente imorais”) a palavra grega épom os, cf. 12:16e 1 Corintios6:9, em que esta palavra se liga, como aqui, aadúlteros (moichos).

40. A Segurança do Crente (Hebreus 13:5-6)

Outra admoestação contra o amor do dinheiro induz o autor a uma declaração mais genérica acerca da segurança do crente. Tal declaração deve ter tido significado especial aos leitores da carta, por causa do que enfrentavam ou estavam prestes a enfrentar.

13:5 / A avareza (NIV diz “amor do dinheiro”) é um perigo a ser evitado por todos os que querem viver pela fé. A avareza traz outros males consigo (1 Tm 6:9s.), e reflete um apego impróprio a este mundo transitó­rio. No passado, os leitores haviam demonstrado uma atitude adequada, ao suportar com alegria a perda de propriedades, porque sabiam "‘que tendes possessão superior e permanente” (10:34). Portanto, os leitores deverão estar contentes (contentando-vos) com o que têm. Este tema também é muito popular no Novo Testamento (cf. 1 Tm 6:6ss., onde os cristãos são exortados a permanecer satisfeitos com o atendimento de suas necessida­des básicas da vida). Esta ênfase também deriva dos ensinos de Jesus (cf. Mt 6:24-34; Lc 12:15), como acontece em relação a tantos ensinos éticos do Mestre. No entanto, os leitores deverão ir além de simplesmente estarem satisfeitos com o que têm. Devem depositar fé total na segurança que Deus provê. A citação que se inicia com as palavras pois ele mesmo disse foi tirada de Deuteronômio 31:6 (e de novo no v. 8). O autor de Hebreus, no entanto, alterou a terceira pessoa do original (“ele não te deixará,” preferindo a primeira pessoa, mais vivida (“não te deixarei, nem te desampararei”). Essa mesma promessa, grafada com palavras ligeira­mente diferentes, encontra-se na primeira pessoa em Josué 1:5 (cf. também Gn 28:15; 1 Cr 28:20). Ainda que as possessões materiais, pela sua própria natureza, estejam sujeitas a perdas e são, por isso mesmo, indignas de nossa fidelidade última, Deus e seu propósito salvifico são imutáveis.

13:6 / A citação foi tirada literalmente da LXX, Salmos 118:6.0 nitor afirma a fidelidade do Senhor em todas as circunstâncias e, desse modo, argumenta que não existe lugar para o medo quanto ao que o homem possj fazer contra o cristão. Está bem clara a adequação deste lembrete para os

270 (Hebreus 13:5-6)

leitores. Se estes forem convocados não só para sofrer perdas pessoais, como no passado, mas até mesmo a perda da própria vida (cf. 12:4), recebem a certeza de que Deus está com eles, e de que participam de um reino que não pode ser abalado (12:28). Tendo o Senhor como seu auxílio os leitores podem enfrentar qualquer eventualidade que possa ameaçá-los.

Notas Adicionais # 4013:5/ A palavra grega que se traduziu pela palavra avareza (aphilargyros)

só ocorre outra vez no Novo Testamento em 1 Timóteo 3:3, na lista de qualificações do presbítero. O verbo traduzido por contentando-se (arkeo) ocorre em 1 Timóteo 6:8, onde Paulo enfatiza o mesmo ponto. A ênfase na alegria da pessoa com aquilo que possui no momento encontra paralelismo no ensino estóico sobre a auto-suficiência. Paulo também exemplificou essa atitude em sua própria vida (veja-se Fp 4:11 s.). O mesmo verbo que se traduziu por deixarei (enkaíaleipo) ocorre também em 2 Coríntios 4:9, onde Paulo se refere a crentes que estão sendo “perseguidos, mas não desamparados.” A citação do Antigo Testamento deste versículo concorda com exatidão com a citação que se encontra em Filo, On the Confiision ofTongues — Sobre a Confusão de Línguas, 166. Isto provavelmente reflete uma forma comum da citação da pregação helenísticajudaica, em vez de ser indicação de dependên­cia direta do autor de Hebreus, de Filo

13:6 / Com confiança é tradução de um verbo grego (tharreo, cf. iharseõ), é termo que também pode indicar “coragem.” Ela ocorre em apenas mais uma passagem do Novo Testamento, em 2 Coríntios (5:6, 8, 7:16, 10:1, 2). Veja- se W. Grundmann, TDNT, vol. 3, pp. 25-27. A citação de Salmos 118:6 segue a LXX literalmente, que por sua vez segue de perto o original hebraico. (A declaração de Paulo em Romanos 8:31 pode ser alusão à mesma passagem.)

4 1 . 0 Chamado para a Fidelidade e uma Advertência Contra os Falsos Ensinos (Hebreus 13:7-9)

Acima de tudo os leitores de Hebreus são convocados para a fé. Isto induz o autor a referir-se à Pessoa a quem antes ele descrevera como “o autor e consumador da nossa fé” (12:2). A constância de Jesus Cristo é a força motriz dos leitores, para que exerçam a fé, e evitem os falsos ensinos.

13:7/ Os guias a que este versículo se refere são os do passado (os guias atuais da comunidade são mencionados nos w . 17 e 24), que proclamaram a palavra de Deus aos leitores. O autor exorta seus leitores a que considerem o êxito daqueles guias (atentando p a ra o êxito da sua carre ira). A semelhança dos heróis do cap. 11, eram homens de fé. Em outras palavras, permaneceram fiéis às suas convicções ao longo de todas as dificuldades e más circunstâncias (talvez se incluam os eventos descri­tos em 10:32-34). A tentando p ara o êxito da sua c a rre ira não significa martino (cf. 12:4). mas simplesmente manifestação de fidelidade. Ao colocar esses exemplos diante deles, o autor desafia seus leitores: im itai- lhes a fé (cf. 6:12).

13:8 / Este versículo notável não tenciona representar Jesus em categorias abstratas, fora do tempo, segundo o pensamento platônico. Não se propõe ser uma descrição da natureza transcendental e eterna de Jesus Cristo. A ênfase maior desse versículo é que Jesus Cristo, por causa de sua obra do passado e do presente, é infinitamente capaz de satisfazer todas as necessidades de todos os cristãos. Isto se tom a aparente não só a partir do contexto, mas também pela estrutura do próprio versículo que diz, literal­mente: “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e até as eras.” Sua obra de ontem, a obra sacrificial e expiatória como sumo sacerdote, foi exposta pelo autor de Hebreus com profundidade. É a própria base do cristianismo. Hoje a obra de Cristo prossegue, na intercessão que ele faz pear nós, àmlo direita do Pai (7:25; cf. 4:14-16). É verdade igualmente, como se istofora um adendo, que o futuro dos leitores está em total segurança. A fidelidade de Cristo no passado e no presente encontra contrapartida no fatura,

272 (Hebreus J 3:7-9)

quando o Senhor voltar a fim de consumar os propósitos salvificos de Deus (9:28). A fidelidade de Jesus Cristo é imutável (cf. 7:24); os leitores podem, portanto, confiar no Senhor, quanto a poderem viver a vida de fé.

13:9 / A constância de Jesus Cristo por si só pona os leitores em estado de alerta contra as doutrinas várias e estranhas pelas quais poderiam extraviar-se (não vos deixeis envolver por elas). A seguir, o autor da carta especifica o que ele tem em mente. Ele quer que seus leitores rejeitem certos ensinos a respeito de alimentos (NIV acrescenta a palavra interpretativa “cerimoniais”), considerando que há alegações de que tais alimentos têm algo que ver com o bem-estar espiritual dos cristãos. O poder do cristão não advém do fato de esse cristão participar ou deixar de participar de certos alimentos, mas da graça. O autor de Hebreus já advogou o caráter transitório das leis dietéticas do judaísmo (9:10). O argumento é semelhante aqui. Visto, porém, que as doutrinas são descritas neste versículo como sendo estranhas, parece improvável que o que o autor tem em vista sejam as restrições e leis dietéticas do judaísmo no atual contexto. E mais provável que aqui, como no versículo 4, o autor esteja condenando certos ensinos derivados da influência do primitivo gnosticismo judaico, ou do sincretismo religioso genérico da época (talvez algo que envolvesse a participação em sacrifícios; cf. v. 10). Compare-se com Colossenses 2:16; 1 Timóteo 4:3ss.

Os que obedecem a tais regras de alimentos, isto e. aos que com eles se preocuparam, de modo que “comeram tais alimentos,” (lit., “os que estão caminhando neles”), nenhum proveito tiraram (NIV volta a expres­sar tal idéia com as palavras alimentos que não trouxeram proveito). As leis dietéticas nenhum significado têm, seja qual for sua natureza. Paulo assume uma atitude semelhante a esta a respeito de ensinos sobre conudas (cf. Rm 14:17; 1 Co 8:8). Por isso, os leitores não devem deixar-se extraviar por tais ensinos. Basta-lhes a graça, nada mais, para terem o poder para fazer a vontade de Deus, e viver segundo o evangelho.

Notas Adkmais # 4113:7 / Há um substanUvo participial traduzido por guias, aqui e no v 17

e 24 (hêgoumenoi, derivado de hêgeom ai), o qual ocorre também em passa­gens como Lucas 22:26 e Atos 15:22. Veja-se F Büchsel, TDNT, vol. 2, pp

(Hebreus 13:7-9) 273

907-9 E possível q ue gu ias fosse referência aos fundadores desta comunidade de crentes descrita em 2:3: “confirmada pelos que aouviram.” O tempo aoristo do verbo traduzido por falaram (laleo) aponta com clareza para uma ação completa no passado. A expressão “a palavra de Deus” (ho logos tou theou) também ocorre em 4:12, mas num sentido diferente. Aqui é equivalente ao evangelho. Lembrai-vos (segundo NIV e ECA) é tradução do verbo anatheõreõ, que pode significar “observar” num sentido literal (como em At 17:23, a segunda e última ocorrência dessa palavra no Novo Testamento), mas é empregada aqui em sentido figurado, com o significado de “considerai.” A palavra grega traduzida por “êxito” (ekbasis), pode significar “o fim de” no sentido de morte, mas aqui significa “ótimos resultados.” Há outra ocorrência, e e a ultima, no Novo Testamento, em 1 Coríntios 10:13, onde significa “escape.” Veja-se BAGD, pp. 237s. “Modo de vida” ou sua carreira é tradução de anastrophe, palavra comum do Novo Testamento que significa “conduta” ou “comportamento ” A referência à fé (pistis) chama a atenção dos leitores de volta para o cap. 11. Os antigos guias de sua comunidade exibiram o mesmo tipo de compromisso para com a realidade do invisível. Veja-se acima, 11:1.

13:8 / É discutível se ontem se refira à obra do Cristo encarnado, ou se se refira simplesmente à provisão de Cristo, trazida pelos antigos “guias” mencionados no versículo anterior. Certamente os leitores devem interpretar esse termo assim: por causa da constância de Cristo, ele proverá a todos os leitores de tudo que lhes for necessário, como o Senhor fez quanto aos guias antigos Todavia, a estrutura deste versículo, que ressoa muito como uma declaração doutrinária de credo formal de peso, faz que provavelmente signifique muito mais do que isso. A palavra ontem (echthes) pode ser usada com o sentido de “o passado como um todo,” BAGD, p. 331. A frase grega traduzida pelo advérbio eternamente (eis tous aionas, lit., “para as eras”), ocorre freqüentemente em Hebreus (cf. 5:6, 6:20; 7:17, 21, 24, 28). O versículo atual pressupõe o caráter etemo de Jesus como Filho de Deus, algo queja se expressou na citação do SI 102eem 1:12: “Tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” (cf. Ap 1: 17s.).

13:9 / A preocupação a respeito dos perigos dos falsos ensinos tem grande preeminência nas epístolas pastorais do Novo Testamento (cf. 1 Tm 4:16; 6:3s.,Tt 1:9). Quanto a graça (charis\ veja-se a nota sobre 4:16. Quantoaum uso paralelo do verbo grego que significa “fortalecer” (bebaioo), veja-se 1 Coríntios 1:8; 2 Coríntios 1:21. (Em Hb 2:3 o mesmo verbo é empregado num sentido diferente.) Quanto ao coração como o centro da vida religiosa, /eja- se J. Behm, TDNT, vol. 3, p. 608-14. Quanto a alimentos (brõma), veja-se J Behm, TDNT, vol. l,pp. 642-45 A noção de “se preocuparam” [p tr ip a te o )

274 (Hebreus 13:7-9)

vê-se com freqüência em textos hebraicos como linguagem figurada, no sentido de “conduta”, de modo especial quando se fala de atender as estipu­lações da lei.

42. 0 Sacrifício de Cristo e os Sacrifícios Espirituais dos Cristãos (Hebreus 13:10-16)

A obra sacrificial de Cristo colocou o cristão em nova posição privile­giada; ele se livrou da lei de Moisés, e de todas as regras dietéticas. Agora, o cnstão depende apenas da graça. Este sacrifício definitivo deve produzir uma reação apropriada: No primeiro caso, prontidão para sofrer abusos da mesma forma que Cristo os sofreu, mas no segundo plano, prontidão para servir aos outros. Nesta notabilissima passagem o autor recapitula outros argumentos e enfatiza os resultados práticos dessas verdades na vida de seus leitores.

13:10-11/0 autor da carta volta a um tema familiar: o relacionamento tipológico entre o ritual sacrificial do sacerdócio levítico, e o sacrifício definitivo de Cristo. Seu primeiro ponto aqui é que os que prosseguem na prática do sistema sacrificial obsoleto não podem participar do sacrifício verdadeiro e final. Este ponto é confirmado tipologicamente em que os corpos daqueles anim ais cujo sangue é trazido para dentro do santo lugar pelo sumo sacerdote como oferta pelo pecado, são queim ados fora do a rra ia l (veja-se Lv 4:21: 16:27). Assim como os sacerdotes não podiam comer a carne desses animais sacrificiais, da mesma forma não podiam participar do sacrifício que realizavam como profecia: Não têm o direito de com er do tabernáculo (lit. “tenda”). O verbo com er aqui com toda certeza deve ser interpretado em sentido figurado, com o sentido de participar dos benefícios do sacrifício de Cristo. Em outras palavras, dentro da estrutura do antigo sistema, os sacerdotes não podiam participar do cumprimento trazido pelo sacrifício de Cristo. Isto é verdade a respeito dos sacerdotes e do sumo sacerdote, mas por implicação é verdade a respeito de todos quantos participam da obra que realizam. Por isso, para os leitores, o retomo ao judaísmo significaria a anulação de todos os benefícios da obra de Cristo. À semelhança dos sacerdotes, os leitores ficariam excluídos da participação do altar, isto é, da obra de Cristo. Este argumento, no v. 13, induzirá ao apelo a que o judaísmo seja deixado paia trás.

276 (Hebreus 13:10-16)

13:12-13 / A referência aos “corpos” dos animais sacrificiais, que seriam “queimados” longe, “fora do arraial,” leva-nos a outro paralelo tipológico interessante. Jesus padeceu fora da porta. A crucificação — o cumprimento dos sacrifícios do Antigo Testamento pelo qual o Senhor santificou o povo pelo seu próprio sangue — ocorreu fora dos portões da cidade (Jo 19:20; cf. M t 21:39). Esta analogia recebe uma aplicação dirigida aos leitores, na exortação do autor para que saiamos, pois, a ele [a Jesus] fora do a rra ia l. Em outras palavras, os leitores são convocados a que resistam à perseguição que lhes sobrevirá, pelo fato de permanece­rem fumes na fé cnstã. Esta exortação é, pois, uma repetição da declaração sobre o interesse do autor da carta pelos seus leitores, expresso ao longo de toda a obra (e.g., 2:1; 3:12; 4:11; 6:4ss.; 10:35; 12:3).

13:14 \ Outra forma de o autor expressar esse tipo de compromisso que deseja seja feito pelos seus leitores, é mediante a ênfase no caráter transitório de todas as cidades terrenas: Pois não temos aqui cidade permanente. À semelhança de Abraão, e de todos os cristãos, os leitores procuram uma cidade duradoura, “a cidade que tem fundamentos” (11:10; cf. 11:16). É certo, no entanto, que mediante o cumprimento trazido pela obra completa de Cristo, em certo sentido já chegaram a essa cidade, a Jerusalém celestial (12:22). Todavia, ainda que a “escatologia realizada” (veja-se o comentá­rio sobre 9:11) seja uma realidade do presente momento, aeraescatológica em seu sentido mais estrito permanece expectativa do futuro. Assim, de modo semelhante ao dos heróis da fé, os leitores devem ser controlados pelo invisível, pela realidade futura (cf. 11:1), a cidade perm anente. Por implicação, a importância da Jerusalém literal, simbólica do templo e dos sacrifícios levíticos, deve ceder lugar à importância da Jerusalém celestial. No entanto, os leitores não participarão da Jerusalém celestial, caso permaneçam no judaísm o da Jerusalém literal (cf. v. 10).

13:15-16 / Há certas formas de sacrifícios — os de ordem espiritual, não os literais — que ainda agradam a Deus. O autor da carta desperta seus leitores para estas formas espirituais. O primeiro sacrifício espiritual que ele menciona, usando linguagem do Antigo Testamento, é o sacrifício de louvor. Trata-se de um a expressão que é usada algumas vezes no Antigo Testamento a fim de indicar uma categoria particular de sacnfício literal (e.g., 2 C r 29:31), que também se torna figura de linguagem que significa

(Hebreus 13:10-16) 277

coração cheio de gratidão (e.g., SI 50:14,23). Este sacrifício contínuo deve ser feito por meio dele (Jesus; o original traz literalmente o pronome), sendo depois definido como o fruto de lábios que confessam o seu nome. A tradução de Barclay é apropriada: “os quais afirmam de público que têm fé nele.” Neste exemplo, o sacrifício de louvor que vem em primeiro lugar é a fidelidade dos leitores à sua confissão cristã. Só dessa maneira poderão demonstrar gratidão a Deus pelo que o Senhor tem feito. Há, no entanto, outros sacrifícios de que Deus se agrada, que constituem contrapartidas espirituais dos sacrifícios toscos realizados sob a antiga aliança. Dentre estes estão certas atividades como fazer o bem e... repartir com outros. Os leitores não deveriam esquecer-se jamais dessas virtudes cristãs co­muns. A fidelidade a Deus deve manifestar-se desta maneira, e não mediante o sacrifício de animais (cf. 9:8s.).

Notas Adicionais # 4213:10-11 / E possível, mas dificilmente provável, que o v. 10 faça alusão

a Eucaristia, ou Ceia do Senhor, de que, e claro, os não-cnstãos não podiam participar. No entanto, o autor da carta jamais faz menção clara à Eucaristia (poderia tè-lo feito, por exemplo, ao referir-se à história de Melquisedeque, no cap. 7;cf. Gn 14:18); e a linguagem do altar (fica implícito o sacrifício), pelo menos nesta epoca primeva, soaria estranha, numa alusão à Eucaristia. Veja- se R. Williamson. “The Eucharist and the Epistle to the Hebrews” — A Eucaristia e a Carta aos Hebreus— NTS 21 (1975), pp. 300-312. É muito mais provável que a referência a “alimentos” no versículo anterior trouxesse à memória do autor o fato de os sacerdotes, embora tivessem permissão para comer da maior parte dos animais sacrificados (cf. 1 Cr 9:13; 10:18), não tinham permissão para comer da oferta pelo pecado no Dia da Expiação (Ex 29:14; Lv 4:1 ls., 21, 16:27). Mas era precisamente a oferta pelo pecado (cf. v. 12) que era proibida aos sacerdotes, representantes da antiga aliança, pois, estavam preocupados com os preparativos, e não com o cumprimento.

Este texto fez com que alguns comentaristas pensassem que os leitores fossem sacerdotes convertidos ao cristianismo (cf. At 6:7); todavia, trata-se de especulação que deve permanecer assim, altamente especulativa, visto que a discussão ter-se-ia tomado incompreensível para os convertidos judeus co­muns. Altar (th ysiastirion ) é palavra usada de modo figurado, aqui, yndo termo comum do Novo Testamento, empregada com referência ao altar literal do templo, em 7:13. A expressão “tabernáculo,” ou “tenda” foi erapregad? anteriormente, esp. em 8:4s. Vejam-se os comentários sobre 9:14 quanto ao

278 (Hebreus 13:10-16)

verbo “servir” (latreuõ) e as notas sobre 8:2 quanto a “tenda” ou tabernáculo no deserto. Veja-se A. Snell, “We Have an Altar,” — Temos um Altar, ReJThR 23 (1964), pp. 16-23. Direito é tradução de exousia (“autoridade”), palavra muito comum do Novo Testamento que se encontra só aqui, em Hebreus. Grande parte do palavreado do v. 11 foi tirado da LXX, Levítico 16:27. Os verbos no tempo presente podem dar indício da existência do templo e seu ritual à época em que o autor escreve. Santo lugar é tradução de ECA de ta hagia (lit., “os santos”, NIV prefere “Lugar Santíssimo”). Quanto ao emprego desta expressão para referir-se ao Santo dos Santos, vejam-se as notas sobre 9:8, 12, 25 Só o sumo sacerdote podia trazer o sangue sacrificial ao santo lugar, e num único dia do ano (veja-se 9:7). Quanto à importância de sangue, veja-se a nota sobre 9:7. O arraial (paremboíê) refere-se ao acampamento de Israel nômade. Fora do arraial é referência a qualquer lugar não consagrado e santificado. Veja-se H. Koester, “Outside the Camp: Hebrews 13:9-14” — Fora do Arraial: Hebreus 13:9-14 — HTR 55 (1962), pp. 299-315 e J.N. Thompson, “Outside the Camp: A Study of Hebrews 13:9-14” — Fora do Arraial: Um Estudo de Hebreus 13:9-14 — CBO 40 (1978), pp. 53-63.

13:12-13 / A palavra traduzida por padeceu (paschõ) também e usada no Novo Testamento para referir-se à morte de Jesus (cf. 9:26; 1 Pd 3:18). Veja- se a nota sobre 9:26 Fora da porta é equivalente a fora do arraial E claro que fora da porta significava do lado de fora do muro. Assim, o verdadeiro sacrifício pelo pecado, para o qual o sacrifício do dia da expiação apontava, não era executado em solo sagrado, no recinto do templo, mas fora da cidade santa. Este fato por si sugere a separação existente entre o cristianismo e o judaísmo, bem como a irrelevância dos sacrifícios realizados no templo. Veja- se J. Jeremias, TDNT, vol. 6, pp. 921 s. Santificar é tradução do verbo grego hagtazo, que ocorre com certa freqüencia em Hebreus, usualmente com o sentido de purificar do pecado, ou fazer expiação. Veja-se a nota sobre 2:11. O povo (laos) é referência ao povo da nova aliança (cf. 8:10; 10:30). As palavras fora do arraial, como no v. 11, foram tiradas de Levítico 16:27. Esta convocação para “sair” na direção de Jesus crucificado, fora do arraial, pode significar deixar a proteção do judaísmo como religião legal no Impéno Romano. A afirmação do cristianismo significava total exposição à persegui­ção Por isso, para os leitores da carta, permanecer leal à profissão de fé no cristianismo significava “levar o seu opróbrio” (oneidismos). Praticamente a mesma expressão ocorre em 11 26 (veja-se a nota) na descrição da fé evidenciada em Moisés. Quanto a uma referência na carta ao abuso físico e moral inflingido em Cristo, veja-se 12:2.

13:14 / Quanto à importância e ao contexto da palavra cidade (polisX veja- se a nota sobre 11:10. Esta referência a uma cidade permanente pode ter a

(Hebreus 13:10-16) 279

intenção de lembrar os leitores do argumento apresentado em 12:27s. Overbo buscamos (epizeleó) ocorre em apenas meus uma passagem de Hebreus, onde ele descreve os heróis e heroínas do Antigo Testamento: “claramente mostram que estão buscando uma pátria [celestial]” (11:14).

13:15-16/Alguns manuscritos importantes (e.g.,P46,Sinaiticus, primeira mão), omitem portanto (oun), talvez por acidente. Veja-se Metzger, TCGNT, p. 676. A aplicação espiritual dessa linguagem do culto sacrificial, que encontramos com tanta freqüência em Hebreus, é comum no Novo Testamen­to. Um exemplo temo-lo em 1 Pedro 2:5: “Vós também, como pedras vivas, sois edificados como casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo.” A expressão o fruto de lábios, à semelhança da linguagem do versículo anterior, é tirada do Antigo Testamento (cf. Os 14:2; Is 57:19). Houve emprego contemporâneo desta frase, o que é atestado em Qumran (veja-se 1QH 1.28, cf. 1QS 9 .4s). Após a palavra confessam, o autor da carta escreve o seu nome no caso dativo. Isto se assemelha a passagens nos evangelhos em que o que se confessa vem precedido da preposição en (“em”) no dativo (e.g., Mt 10:32 e Lc 12:8) Veja-se O. Michel, TDNT, vol. 5, pp. 207-12. O substantivo grego traduzido por fazer o bem (eupoiia) ocorre apenas aqui na Bíblia grega. Repartir com outros é tradução de um substantivo comum no Novo Testa­mento que significa “comunhão fraternal” ou “compartilhamento” (koinonia), que em Hebreus só se encontra aqui. A idéia de algo ser agradável a Deus (Deus se agrada, euaresteo) encontra-se várias vezes nesta carta (11:5s; 12:28; 13:21). Paulo emprega uma linguagem semelhante àd e Hebreus em Filipenses 4:18 em que ele se refere a uma oferta trazida por Epafrodito, e assim escreve: “Recebi de Epafrodito o que da vossa parte me foi enviado, como cheiro suave, como sacrifício agradável e aprazível a Deus” (cf. Mt 9:13). Quanto a este emprego em sentido figurado da palavra “sacrifício,” veja-se J. Behm, TDNT, vol. 3, pp. 180-90.

43. A Obediência aas Cuias da Igreja e um Pedido de Oracão (Hebreus 13:17-19)

Nesta exortação final, os leitores são convocados para obedecer a seus líderes — tema bastante comum no Novo Testamento, que tem um significado especial para aqueles leitores em particular, em face da inclinação que demonstram para abandonar a fé cristã e voltar ao judaísmo A obediência a seus líderes lhes assegurará uma chegada segura ao destino, o cumprimento do objetivo que Deus estabeleceu para eles. Segue-se, então, a primeira informação pessoal a respeito do autor da carta, que se dá mediante um pedido específico de oração. O pedido e a referência ao relacionamento do autor para com os leitores dão a este impressionante documento teológico o caráter de carta.

1 3 :1 7 /0 autor da carta exorta seus leitores, agora, a que obedeçam: obedecei a vossos guias e submetei-vos a eles. Devem reconhecer a responsabilidade que foi colocada sobre seus ombros, como líderes, no cumprimento de seus deveres. Eles velam por vossas almas, como quem há de p re sta r contas. O ponto central aqui é que os leitores deverão ser obedientes e submissos diante da autoridade de seus guias, de tal modo que o façam com alegria e não gemendo (lit.). Mas a obediência aos guias espirituais não tem meramente o objetivo de tom ar o trabalho deles mais fácil. A insubmissão perante os líderes jam ais beneficiará os leitores da carta. Na verdade, a implicação desta declaração um tanto esmaecida é que a desobediência e a insubordinação significam pengo para os leitores.

1 3 :1 8 -1 9 /0 autor agora solicita orações para si mesmo (o plural no v. 18 provavelmente é retórico em vez de literal; cf. v. 19). Visto que este pedido chega sem transição alguma, entendemos que o autor tem estado diretamente relacionado com os leitores, como se fora um de seus líderes. A declaração a respeito de uma boa consciência implica em critica do autor da carta nesta ou naquela área da vida — critica de que os leitores tomaram conhecimento, em questões que talvez estejam tendo efeitos negativos sobre os leitores. O autor cuida do assunto com muita seriedade.

(Hebreus 13:17-19) 281

como podemos perceber pela sua linguagem: Estamos persuadidos, ou “convencidos.” Esta declaração vem precedida de “visto que,” no original grego. Parece que a crítica aqui envolve a conduta, em vez de a doutrina (ainda que ambas estejam sempre inter-relacionadas). Assim, o autor dá segurança a seus leitores, quanto à sua própria motivação.

Quanto o autor expressa seu desejo, desejando em todas as coisas portar-nos corretamente, é pena que só possamos especular a respeito das circunstâncias que estão em mira. Estaria esta declaração relacionada, por exemplo, ao pedido específico do versículo 19? Isto poderia ter sido sugerido pela redação dessa passagem. “Rogo-vos, com instância, que assim façais para que eu mais depressa vos seja restituído.” Por alguma razão parece que o autor da carta tem sido impedido de voltar à comunidade dos seus leitores. Fica bem claro que ele enfrenta uma dificuldade qual­quer. A luz do v. 23, provavelmente não se trata de prisão, a menos que tenha toda confiança quanto a ser liberto de imediato. Fica aparente o relacionamento especial do autor da carta com seus leitores, em seu fervoroso pedido de oração para que venha a ser restituído à companhia deles. Seu grande anseio é estar logo entre seus irmãos.

Notas Adicionais # 4313: l"7 Esta referência à obediência aos guias atuais (hegoumenou) traz à

lembrança o desafio de “imitar a fé” dos antigos líderes (13:7; veja-se a nota ali). O verbo que se traduziu por submetei-vos (hypeikõ) ocorre apenas aqui, em todo o Novo Testamento. O verbo agrypneo, eles velam por, sugere constante vigilância, que as pessoas estejam alertas (cf. Ef 6 :18; Lc 21:36; cf.o substantivo cognato que se refere literalmente a “noites insones” em 2 Corintios 11:27,6:5). A perspectiva aqui, na verdade, é muito semelhanteàde Paulo em 2 Conntios 11:28 “Há o que diariamente pesa sobre mim, o cuidado de todas as igrejas” (cf. 1 Ts 2:19s.) A tradução de NIV, “eles velam por vós” não é melhor do que a de ECA Eles velam por vossas almas (psychê), que ressalta apropriadamente o sentido mais amplo da pessoa integral, assim como essa palavra e utilizada em 6:19 e 10:39 (veja-se a nota sobre esta última passagem). A responsabilidade da mordomia colocada sobre os líderes é tema familiar naBíblia(cf. Ez3:17-21, Lc 16:2). Esta é a única ocorrência do verbo “gemer” (stenazo) em Hebreus. A tradução de NIV, “não sena vantajoso” é menos precisa que ECA: isso nào vos seria útil, que é a tradução do termo clássico alysiteles (“sem proveito algum”), que na Bíblia grega ocorre só nesta

282 (Hebreus I S : 17-19)

passagem. Quanto a passagens paralelas que envolvem um chamado à obediência aos líderes da igreja em geral, veja-se 1 Coríntios 16:16 e 1 Tessalonicenses 5:12s. E claro que é possível que esta exortação implique em ter havido alguma insubordinação em particular, que teria chegado ao conhe­cimento do autor da carta (seria 10:25 relevante?) F.F. Bruce especula que os líderes pertenciam a uma comunidade cristã maior, que os leitores teriam sido tentados a abandonar.

13:18-19 / Aqui, o autor da carta escreve de modo bem semelhante ao de Paulo, em certa passagem. O pedido de orações a respeito de necessidades pessoais naturalmente é usual nas cartas paulinas (cf. Rm 15:30,2 Co 1:11 s., E f 6:19; Cl 4:3). A expressão, “uma boa consciência” encontra-se várias vezes no Novo Testamento, mas com osadjetivosaga//7e, “boa”, ou kathara, “pura,” em vez dekale, como aqui (e.g., At 23:1; 1 Tm 1:19; 3:9; 2 Tm 1:3, 1 Pd 3:16, 21). Uma passagem muito semelhante a esta encontra-se em 2 Co 1:12, em que Paulo, depois de um pedido de oração, fala de sua consciência tranqüila. Quanto a palavra consciência, veja-se a nota sobre 9:9. NIV traz “de todas as maneiras” enquanto ECA prefere em todas as coisas, como tradução de en pasm, que também se pode traduzir por “em todas as épocas” (cf. GNB, NEB; mas KJV, NASB e JB concordam com NIV). O verbo rogo-vos (parakaleo) ocorre com esse mesmo sentido no v. 22 (cf 3:13 e 10:25, quanto à palavra usada com sentido diferente). O verbo traduzido por vos seja restituído (apokathistemi) ocorre apenas aqui, em Hebreus.

44. Uma Oração Final (Hebreus 13:20-21)

A carta encerra-se com uma linda oração, na qual o autor menciona um a série de temas-chaves discutidos no texto. É oração notável pela sua beleza e pelo seu escopo abrangente. Apresenta um impacto poderoso que deixa marca em todos quanto lêem a carta, e notam os profundos interesses pastorais do coração do autor.

13:20-21 / A oração é dirigida ao Deus da paz; eis uma fórmula comum nas cartas paulinas (e.g., Rm 15:33, 16:20; 2 Co 13:11; Fp 4:9; 1 Ts 5:23;2 Ts 3:16). O autor dirige-se a Deus também como aquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, ainda que no original grego a frase a nosso Senhor Jesus não ocorra senão no fim do período (i.e., as últimas palavras do v. 20), um pouco antes da primeira petição, numa posição enfática. Esta referência de passagem, no meio de um chamado a Deus em oração, constuitui surpreendentemente a única menção explícita da ressurreição de Jesus em toda a carta (embora, naturalmente, a ressurreição seja pressuposta nas referências à ascenção, tão importantes para o autor da carta). As palavras que formam o objeto imediato de tornou a tra z e r den tre os m ortos são o g rande pastor das ovelhas, linguagem que encontra paralelo no Novo Testamento na referência ao “Sumo Pastor” em1 Pedro 5:4 (cf. “pastor de ovelhas” de LXX, Is 63 :11), e as palavras de Jesus em João 10:11 (cf. Mc 14:27).

Pelo sangue da aliança eterna é frase lapidar que num relance faz alusão à descrição detalhada, feita anteriormente, do sentido sacrificial da morte de Cristo (caps. 7 ,9-10) e do argumento poderoso que a acompanha, acerca da inauguração de uma nova aliança (7:22-8:13). O autor escolheu o adjetivo e terna deliberadamente. É que se a antiga aliança cedeu lugar à nova, precisa-se de certeza de que a nova aliança é definitiva, e não m era realidade transitória. Isto não significa que negaremos a linguagem do Antigo Testamento que se utiliza aqui. Para nosso autor, a nova afiança estabelecida por Cristo não é outra senão a “aliança eterna” de que os profetas falam em Isaías 55:3, Jeremias 32:40 e Ezcquias 37:26. frato se da “aliança superior” (“melhor”) de que Cristo se tom ou m ediador (c£

284 (Hebreus 13:20-21)

7:22; 8:6s.); e com o conceito de uma aliança e terna podemos relembrar a “redenção eterna” mencionada em 9:12.

A petição na realidade é que o grandioso Deus, que já operou tanto, venha agora atender às necessidades de seu povo, dando-lhe tudo: que vos aperfeiçoe em toda a boa obra, p a ra fazerdes a sua vontade (NTV diz: “tudo que for bom para fazerdes sua vontade”). É espantoso que ao mesmo tempo o Senhor esteja operando (lit., “fazendo”) em vós o que perante ele é agradável. A mudança para a primeira pessoa do plural, no original grego (não aparece em ECA) parece indicar que o autor se identifica, com grande sensibilidade, com seus leitores. No que os leitores são convocados para fazer a vontade de Deus, e Deus opera sua vontade em nós, a passagem nos faz lembrar de Filipenses 2:12s. Observe-se que o agente dessa atividade de Deus em nós está bem expressa: por meio de Jesus Cristo. Isto fica em total harmonia com a perspectiva de Cristo e sua obra, pela carta toda (cf. 7:22). A maior parte das doxologias do Novo Testamento dingem-se a Deus (e.g., Rm 11:36; 16:27; G1 1:5; E f 3:21; Fp 4:20; 1 Tm 1:17; Jd 25), e só algumas, como a que temos diante de nós, são dirigidas a Cristo (e.g., possivelmente 1 Pd 4:11; 2 Pd 3:18; Ap 1:6). Esta doxologia funciona como um final apoteótico, o clímax que corresponde à exaltada Cristologia estabelecida no capítulo de abertura da carta, que é, na verdade, a Cristologia que serve de fundamento para a exposição do evangelho nos capítulos seguintes. A luz do tratado, a que o autor agora acrescenta uns toques finais, esta doxologia dirigida aCristo é ao mesmo tempo comovente. Ainda que o amém seja próprio de fórmula, na verdade é a única resposta adequada a petições tão maravilhosas.

Notas Adicionais # 4413:20-21 \ Esta oração e doxologia finais têm alguma semelhança com a

doxologia no final de Romanos (16:25-27), a qual também se baseia, aié certo ponto, em temas expostos nessa carta. F.F. Bruce observa que a estrutura desta doxologia tem todos os elementos de uma oração: expressa-se na terceira pessoa, contém uma invocação, uma cláusula adjetiva apontando a base sobre a qual repousa a petição, uma petição principal e outras subsidiárias, um apelo aos mentos da obra de Cristo, e louvor, finalizando com amém. Há algumas vanantes textuais de menor importância, nesses versículos. A maioria dos manuscritos posteriores acrescentam a palavra “obra” ás palavras toda a boa; encontra-se um pronome da terceira pessoa, ininteligível, antes de fazerdes,

(Hebreus 13:20-21)- 285

em alguns manuscritos, talvez como resultado de ditografia (i.e., repetição errônea, acidental, da parte do escriba), de modo que o texto mais curto deve ser preferível, alguns manuscritos harmonizam o pronome oblíquo da primei­ra pessoa nos, de modo que concorde com os pronomes anteriores, na segunda pessoa, e alguns manuscritos omitem a palavra “eternamente,” depois de para todo o sempre, no final dadoxologia, provavelmente a versão mais curta deve ser a preferível. Quanto a estas variações textuais, veja-se Metzger, TCGNT, p. 676s. O verbo traduzido por tornou a trazer (ou “ressuscitou”) não é palavra usual do Novo Testamento grego (egeiró ou anistemi), mas anago (que é empregada a respeito de Cristo em Rm 10:7), talvez por sugestão da LXX, Isaías 63 :11, em que Moisés, descrito como o pastor das ovelhas, que “os fez subir do mar ” Esta e a única ocorrência das palavras pastor (poimen) e ovelhas (probaton) em Hebreus.

A frase pelo sangue da aliança eterna provavelmente modifica tornou a trazer dentre os mortos conforme o temos em NIV e ECA. Mas no texto grego aquela frase tambem pode ser tomada como modificadora das palavras anteriores, no texto grego, o grande pastor das ovelhas, que em NIV e ECA são posteriores. (GNB, por exemplo, diz: “que é o Grande Pastor das ovelhas, como resultado de sua morte sacrificial”, cf. JB).

Quanto à expressão “sangue da aliança,” veja-se Zacarias 9:11. Quanto a aliança (diatheke), veja-se a nota sobre 7:22. Boa (agathon) também é empregada de modo absoluto em 9:11 e 10:1 (no grego), onde se refere a “bens” da ordem escatológica inaugurada pela obra perfeita de Cristo. Os leitores são convocados para fazer a vontade (thelema) de Deus em 10:36; aqui há uma oração para que os leitores sejam equipados de modo apropriado para cumprirem essa vontade divina O que perante ele é agradável reflete uma expressão semítica, cujo sentido (sinônimo) seria: “os sacrifícios que agradam a Deus,” no v. 16.

Os comentaristas diferem entre si sobre se esta doxologia se dirige a Deus ou a Cristo, visto que o texto permite certa ambigüidade. Considerando que as doxologias em geral são dirigidas a Deus, nos escritos do Novo Testamento, que Deus é a Pessoa que age, nestes versículos, e é o objeto do louvor, no v.15, e mais ainda, que os leitores são judeus cristãos, poderíamos concluir que é a Deus que se dirige esta doxologia Há, todavia, outras realidades mais convincentes, como o fato de no grego, como em ECA e NIV, o antecedente mais próximo do pronome ao qual é Jesus Cristo, pelo que Jesus assume importância extraordinária, como o grande pastor que derramou seu sangue; tomando possível a aliança e seus dons aos crentes. Além disso, o autor da cartapresumeadeidadedeCnstonocap. 1. Por isso, atraduçãodeNIVeECA parecem justificáveis (bem como as de GNB, NEB e JB).

45. Posfácio e Bênção Final (Hebreus 13:22 -25 )

Embora a carta tenha terminado com uma oração final, como quase sempre acontece nas cartas do Novo Testamento, o autor tem ainda mais algumas palavras a seus leitores. Outra vez obtemos alguns fragmentos de informações que nos deixam perplexos, seguidos de uma saudação e bênção final.

13:22 / Primeiramente o autor acrescenta uma nota a seus leitores, a quem ele de novo chama de irm ãos (cf. 3:1, 12; 10:19), e exorta-os a suportar (que suporteis, ou “que ouçais atentamente”) as coisas que ele escreveu. A seguir ele descreve sua carta como sendo esta palavra de exortação, frase aceita de modo geral como boa caracterização da obra como um todo. Como vimos, Hebreus é, em essência, uma série de exortações, uma espécie de sermão escrito. É certo que estas exortações se baseiam em argumentos teológicos sólidos, envoltos, porém, em preocu­pações ou aplicações práticas. O autor da carta fez nessa obra algo que ele exorta seus leitores a fazerem: “admoestemo-nos uns aos outros” (10:25). Ele observa mais ainda, que escreveu resum idam ente (NIV diz “apenas uma breve carta”), ficando a implicação que ele poderia ter elaborado estas questões em longas dissertações, e o faria quando a ocasião se apresentasse (cf. a restrição em 9:5b e 11:32). No entretempo. apela para a atenção dos leitores: que examinem o documento importante que lhes está enviando, ainda que lhes pareça longo e difícil.

13:23 / Os leitores são informados agora (sabei) de que o irmão Timóteo já está solto. E provável (não se tem certeza) que esse Timóteo seja o discípulo de Paulo, a quem conhecemos pelos demais escritos do Novo Testamento. Parece que este Timóteo é bem conhecido e estimado entre os leitores. Também é provável, sem que haja certeza absoluta, que a mensagem a respeito de Timóteo é que ele já está solto, isto é, foi liberto “da prisão.” Solto poderia significar um tipo diferente de libertação espiritual. Onde Timóteo poderia ter estado preso, não o sabemos. Em nenhuma parte do Novo Testamento existe registro da pnsão de Timóteo,

(Hebreus 13:22-25) 287

discípulo de Paulo), embora Roma ou Éfeso sejam cidades prováveis. O autor expressa sua esperança de que Timóteo possa encontrar-se com ele logo, e o acompanhe numa visita à igreja, o que já foi planejado, pelo que parece.

13:24 / O autor agora exorta: Saudai a todos os vossos guias. Areferência a todos pode sugerir as pessoas pertencentes a uma comunidade eclesiástica mais ampla, além dos leitores, mas não se pode ter nenhuma certeza quanto a isto. Estas saudações alinham-se com o encorajamento que o autor dá aos leitores, no sentido de respeitarem seus guias e a eles se submeterem (v. 17). No entanto, suas saudações estendem-se a todos os santos. O autor apresenta uma saudação especial aos leitores da parte dos da Itália, isto é, dos santos daquele país. Infelizmente estas últimas palavras não são claras; as saudações poderiam ter sido enviadas de italianos, na Itália, aos cnstãos em outra parte, ou poderiam ter sido enviadas de italianos que morassem noutro país, a seus irmãos em casa. Esta última alternativa é a mais natural, embora não se possa descartar a outra. Caso soubéssemos, sem sombra de dúvida, a cidade onde estão os leitores, destinatários da carta, é lógico que esta dúvida deixaria de existir. Todavia, tendo como base apenas este versículo, não podemos determinar as coisas com certeza.

13:25 / As últimas palavras de uma carta em geral constituem uma bênção breve, como esta. Aparentemente esta bênção concorda palavra a palavra com a de Tito 3:15, sendo muito parecida com a de 2 Timóteo 4:22. A palavra determinante é graça (chans), palavra que representa a quintes­sência do evangelho cristão, e de toda mensagem dada à igreja pelos seus pregadores e porta-vozes — inclusive esta carta de exortação, escrita por uma pessoa anônima, a judeus cristãos que chegaram à nova aliança mediante a graça de Jesus Cristo.

Notas Adicionas # 4 513:22 / É possivel que, neste posfácio, o propno autor tenha apanhado t.

pena para escrever, caso houvesse ditado a carta a um escriba ou secretário. Este costume é muitas vezes evidente nas cartas de Paulo (cf. 1 Co 16:21; 01 6:11; Cl 4:18; 2 Ts 3:17). Rogo-vos (parakaleõ) ou “peço com máximo ardot” é o mesmo verbo empregado no v. 19 0 verbo traduzido por suporteis

288 (Hebreus 13:22-25)

(anechõ) ocorre apenas aqui, em Hebreus A frase esta palavra de exortação (logos tes parakíeseox) ocorre também em Atos 13:15, onde se transcreve o sermão de Paulo na Antioquia da Pisídia — um sermão baseado na interpre­tação de certos textos do Antigo Testamento, cujo objetivo era extrair seu significado para a época atual. Visto ser isto mesmo o que o autor da carta está fazendo para seus leitores, é possível que devamos considerar esta frase como tendo essa conotação especial. Quando 1 Pedro é descrita como uma “breve carta” (5:12), tais palavras podem ser tomadas de forma mais literal do que aqui. O autor de Hebreus tentou controlar o comprimento de sua carta, a despeito da importância do que estava escrevendo e, a esse respeito, pede a seus leitores toda indulgência.

13:23 / Visto que o autor da carta demonstra ter tido contato com a teologia de Paulo, provavelmente faz parte do grande circulo paulino; por isso, é bem provável que esse Timóteo seja o discípulo do apóstolo. O verbo grego equivalente a está solto (apolyo) ocorre apenas aqui, em Hebreus. Está na voz passiva, aqui, e por isso pode simplesmente significar que Timóteo “foi mandado embora,” “partiu,” ou “despediu-se,” talvez por ter acabado uma tarefaque lhe fora confiada. Veja-seBAGD, p. 96 Seacartativersidodirigida a uma comunidade de crentes em Roma, como presumimos, a prisão de Timóteo, ou seja qual for o problema, teria ocorrido em outro lugar. Parece que existiria certa distância a ser percorrida para que houvesse um encontro entre Timóteo e o autor da carta.

13:24 / A palavra que se traduz por gu ias (hegoumenoi) também ocorre nos w . 7 e 17. O termo técnico “santos” (hagioi), para descrever as pessoas que foram separadas pela graça salvadora de Deus, também é usada pelo autor da carta em 6:10 (cf. 3:1, onde o adjetivo “santo,” hagios, combina-se com “irmãos”). Veja-seO. Procksch, TDNT, vol. 1, pp. 100-110. A palavra saudai (aspazomai) é termo de intimidade nessa cultura, e implica em abraço. Veja- se H. Windisch, TDNT, vol. 1, pp. 496-502.

13:25 / Este versículo possui outras variações textuais de menor importân­cia Muitos manuscritos acrescentam — e isto é bem compreensível — um amém à bênção. Quanto a uma discussão das variações, e das interessantes formas de finalização da carta, muitas das quais incluem “aos Hebreus, escrita da Itália mediante Timoteo,” veja-se Metzger, TCGNT, p. 677s.

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Donald A. Hagner é catedrático de Novo Testamento no Fuller Theological Seminun e autor de inúmeros artigos e livros, entre os quais The Jewish reclamation of Jesus (A reivindicação judaica de Jesus).

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ISSN 85-73B7-076-2

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