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TV, ED
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ESSO
RES:
SALTO
PARA
O FU
TURO
20 ANOS
Edição Especial - 2013 Volume 1
Volume 2Volume 3Volume 4
2
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola
Diagramação e editoração
Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
Gerência de Criação e Produção de Arte
Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T911
TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20
anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;
Brasília, DF : TV Escola , 2013.
4 v., recurso digital
Formato:
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-
60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)
1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros
eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-
cação.
13-1708. CDD: 370.981
CDU: 37(81)
15.03.13 20.03.13 043546
3
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DEPROFESSORES:
SALTO PARA O FUTURO- 20 ANOS -
Organização
Rosa Helena Mendonça
Magda Frediani Martins
(Equipe de Educação da TV Escola)
Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC
Rio de Janeiro/ Brasília
2013
Volume 1 - lINGuAGeNS e SeNTIDoS
SUMÁRIO
Organização e Apresentação .................................................................................... 5
Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins
1.1 Linguagens e sentidos ........................................................................................13
Patrícia Corsino
1.2 Cinema e educação: um diálogo possível ......................................................... 29
Laura Maria Coutinho
1.3 Televisão e educação do olhar: uma urgência permanente ............................. 36
Rosa Maria Bueno Fischer
1.4 O salto para o futuro da Arte na Educação ....................................................... 46
Ana Mae Barbosa
1.5 Temas polêmicos na literatura: o mal-estar ..................................................... 56
Nilma Lacerda
1.6 Português: um nome, muitas línguas ................................................................ 66
Carlos Alberto Faraco
5
APReSeNTAÇÃo
SAlTo PARA o FuTuRo: 20 ANoS No AR
Rosa Helena Mendonça1
Magda Frediani Martins2
“Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro está entrando no ar...”
“Aqui fala Tânia, do Rio de Janeiro.” “É Maria José, do Maranhão...”
“O tema do programa hoje é...” “Nesta série, vamos falar de...” “ Participam do
programa de hoje...”
É com palavras como essas que, em 1991/923,
o programa Salto para o Futuro entra no ar,
diariamente, em séries inéditas e reprises que
confirmam as possibilidades da parceria entre
TV e educação na formação de professores.
Tendo como meta contribuir para esta for-
mação, bem como atender ao interesse dos
demais espectadores, o Salto para o Futuro
faz 20 anos, respeitando a autonomia das es-
colas e abrindo espaços para trocas ricas e
indispensáveis, refletindo sobre sua inserção
no campo das políticas públicas de formação
de professores, repensando-se permanente-
mente. É com base na proposta do programa
e considerando suas mudanças ao longo do
tempo que, preservando o enfoque filosófico
do diálogo com a diversidade, organizamos
esta publicação, com textos de autores que
foram consultores de séries do Salto e/ou que
participaram do programa como debatedo-
res, em diferentes momentos deste percur-
so. A publicação TV, educação e formação de
professores: a experiência do programa Salto
para o Futuro pretende comemorar esta tra-
jetória, destacando temas fundamentais para
o debate sobre TV, educação e formação de
professores. Esta publicação, na sua versão
digital, está organizada em quatro volumes,
expressos no seguintes eixos:
Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS
Volume 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS
Volume 3: TECENDO NARRATIVAS
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ. Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora e revisora da publicação.
3 Em 1991, vai ao ar, em caráter experimental, o Jornal da Educação: edição do professor. Em 1992, com o nome de Um Salto para o Futuro, o programa ganha dimensão nacional. A partir de 1996 o Salto para o Futuro integra a grade da TV Escola.
6
Volume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO
Para organizarmos esta publicação, solici-
tamos a consultores de séries do Salto para
o Futuro, que nos acompanham ao longo
dessa história, que elaborassem um artigo
tendo como objetivo apresentar temas de-
senvolvidos no programa, apontando per-
manências e mudanças nas abordagens, que
refletem resultados de pesquisas na área da
educação. Considerando os limites de uma
publicação deste tipo e, na impossibilidade
de contar com a participação de tantos pes-
quisadores e professores que têm nos ajuda-
do a fazer o programa, partimos mais uma
vez da ideia de que precisávamos construir
um recorte significativo da diversidade do
Salto para o Futuro. Sendo assim, elegemos
alguns temas significativos e recorremos a
autores que representassem diferentes insti-
tuições no país. Nesta perspectiva, vale des-
tacar que quase todos os convidados aderi-
ram de imediato à proposta, o que sinaliza
um possível desdobramento deste projeto. E
o que emerge de uma obra coletiva é a pos-
sibilidade de entrever de que forma o Salto
para o Futuro tem possibilitado que profes-
sores de todo o país, conectados em rede,
participam das mais diversas propostas e
projetos no campo da educação, em todas
as áreas de conhecimento.
Podemos entender a noção de rede de várias
maneiras. No caso específico do Salto para o
Futuro, como essa rede é tecida? Um aspecto
que não pode deixar de ser observado é o papel
desempenhado pela interatividade no progra-
ma, desde a sua criação, quando a internet ain-
da não era acessível, o fax apenas despontava
como novidade e a telefonia móvel sequer es-
tava acessível. A participação dos professores
e professoras tem sido uma marca especial do
Salto4, pela qual ele é muitas vezes identifica-
do. É ela que reafirma o sentido da produção
de conhecimento em rede. Tem relevância aí
a polifonia, ou seja, as múltiplas vozes e “so-
taques” que dão um formato hipertextual ao
Salto, o programa não pode ser analisado sem
a participação dos professores, seja na TV, no
site, ou ainda nos múltiplos espaços das redes
sociais. Para essa reflexão, é fundamental levar
em consideração a acelerada oferta de recur-
sos tecnológicos e as possibilidades comunica-
cionais advindas dessas tecnologias.
Essa análise nos convida a repensar o lugar
que ocupa, atualmente, o programa Salto
para o Futuro nestes novos cenários da so-
ciedade e, consequentemente, da educação.
A partir dessa perspectiva, se faz necessário
considerar a forma como o Salto vem sendo
utilizado e sobre como se dá atualmente a
interatividade. Como demonstram as mais
4 É dessa forma resumida que o programa é muitas vezes nomeado pelos professores.
5 Ver Relatórios de Avaliação do Programa Salto para o Futuro nos anos 2007, 2008 e 2009.
7
recentes avaliações5, o perfil de participa-
ção dos professores tem se revestido de um
caráter mais abrangente e variado, de acor-
do com as demandas de seu trabalho, seus
níveis de formação, sua condição socioeco-
nômica e, ainda, as possibilidades tecnoló-
gicas e técnicas à sua disposição. Afinal, é a
autonomia conquistada pelo professor, em
relação ao seu processo de formação e ao
de seus alunos, que fundamenta a busca por
formas diferenciadas e contextualizadas de
utilização do programa, no contexto mais
amplo de audiência da TV Escola, canal do
Ministério de Educação.
Acreditamos que a função de um programa
educativo, veiculado pelo canal de televisão
do Ministério da Educação – a TV Escola –, é
o de contribuir, também, para que essa utili-
zação se efetive, respeitando as diversidades
dos professores, dos alunos e das escolas.
Afinal, trata-se de uma via de mão dupla – ou
melhor, de muitas mãos – em relações en-
tremeadas por implicações diversas, sobre
as quais é preciso refletir: as formas pensa-
das para a recepção têm sido “reinventadas”
pelos chamados receptores, bem como o
público tem se diversificado. Além dos pro-
fessores nas telessalas, há uma audiência
espontânea, o que pode ser constatado pe-
los e-mails recebidos, pela participação no
site, pela solicitação de cópias em DVD por
universidades e outras instituições, pela lei-
tura da publicação eletrônica e, ainda, pelo
número de pesquisas (monografias, disser-
tações e teses) sobre o Salto para o Futuro.
Isso tudo nos impulsiona a mudar, a buscar
novos caminhos nos campos da educação
e da comunicação. Novos formatos, novas
formas de interação vão sendo delinea das.
E repensar todo este processo torna-se vital
para ampliar as perspectivas, sempre em
parceria com os professores e com os con-
sultores das séries do programa.
UMA TRAJETÓRIA DE DIÁLOGO
Ao organizarmos esta coletânea, ainda que
correndo o risco de sermos redundantes ao
apresentar nesta introdução um breve his-
tórico sobre o Salto para o Futuro, tendo
em vista que tanto autores quanto os possí-
veis leitores, todos, têm uma relação direta
e intrínseca com o programa, optamos por
fazê-lo. Afinal, contar uma história é uma
forma não só de compartilhar memórias,
mas também de estabelecer outras redes de
significados.
O ano era 1991... Na noite de 1º de agosto foi
ao ar pela TVE Brasil a primeira edição do
“Jornal da Educação - Edição do Professor”,
uma experiência piloto de educação a dis-
tância, com recepção organizada em seis es-
tados do país. Em 1992, já com abrangência
nacional, o programa passou a se chamar
Um Salto para o Futuro. Em 1995, denomi-
nando-se Salto para o Futuro, foi incorpora-
do à grade da TV Escola (canal do Ministério
da Educação).
8
O Salto desde a sua concepção inicial teve
como proposta ser mais do que um progra-
ma de televisão, conjugando recursos como
textos de apoio (boletim/publicação eletrô-
nica) e canais de comunicação direta: caixa
postal, fax, telefone e Internet, tudo isto vi-
sando tornar possível a interatividade com
os professores reunidos em espaços de re-
cepção organizada (telessalas) em que, com
a mediação de um orientador de aprendiza-
gem, os cursistas discutiam e participavam
com questões que se tornaram constitutivas
do debate com especialistas.
Por meio do Salto, propostas pedagógicas
da atualidade foram discutidas, em séries
temáticas. O objetivo dos debates sempre
foi trazer diferentes tendências no campo
da educação e, assim, contribuir para a re-
flexão da prática em sala de aula, tanto nas
áreas do conhecimento que integram o cur-
rículo quanto nas questões que expressam a
diversidade da sociedade.
O programa teve, até 2008, uma especifici-
dade: sendo diário e ao vivo, sua estrutura
foi pensada para a participação, em tempo
real, dos professores, organizados em teles-
salas, nos mais diversos pontos do país, per-
mitindo assim um diálogo permanente com
outros programas do MEC, com a própria
programação do canal – TV Escola – e com
os mais variados projetos no campo da Edu-
cação na contemporaneidade.
A característica que mais se destacou no
programa foi a de preservar a dimensão do
diálogo como espaço de interações tão ricas
quanto imprevisíveis. E foi justamente este
aspecto – a interatividade – que tornou o
Salto um programa que, a cada dia, era feito
com a participação dos professores.
O que podemos destacar de um projeto de for-
mação de professores que se constituiu como
um processo interativo? Por um lado, como
essa participação interferiu na concepção dos
programas? E, por outro lado, de que forma a
discussão que sempre teve lugar ao longo das
séries se refletiu na prática dos professores?
Esse é um processo, em permanente constru-
ção. As telessalas mostraram-se um espaço
que extrapolou a mera recepção dos progra-
mas. Foram múltiplas as trocas que se esta-
beleceram a cada dia e que se prolongaram
em outros espaços de atuação do professor: a
comunidade, a própria escola, a sala de aula...
Desde a sua criação, em 2000, a página do Sal-
to para o Futuro tem mostrado seu potencial
de se tornar um grande fórum de discussão.
Enquanto o programa de televisão destacou-
se pelo registro de experiências em escolas
e outras instituições, pelas entrevistas com
renomados educadores, pela atualidade na
abordagem de temas considerados impres-
cindíveis no cenário da educação brasileira,
em sua diversidade e riqueza, o site firmou-se
9
como mais um canal de criação de conheci-
mentos em redes.
Ao longo desse tempo, algumas mudanças
significativas aconteceram, como por exem-
plo, o tamanho das séries, a diversidade dos
temas, reafirmando a perspectiva de que
educação é mudança!
Em 2009, o programa, sem se distanciar da
sua filosofia original, investiu em um novo
conceito, incorporando as possibilidades
que as tecnologias digitais interativas apre-
sentam, assumindo um novo formato que
compreende a exibição de séries temáticas,
não mais ao vivo, diariamente. Nesta con-
cepção, são apresentadas três revistas ele-
trônicas, previamente gravadas e editadas,
contemplando uma diversidade de experiên-
cias e enfoques conceituais. Um programa
ao vivo constituído de três blocos de en-
trevistas, com entrevistados diferentes em
cada bloco, caracterizando “outros olhares”
sobre o tema em questão. E, finalmente, um
programa de debates ao vivo, com espaço
para perguntas de espectadores, cursistas ou
não, por telefone e e-mail, com a presença
de três convidados e com um amplo espaço
para a interatividade, que sempre caracte-
rizou o programa. Ao longo de toda a série,
um fórum na internet possibilita o envio de
questões que podem ser desenvolvidas ao
longo do programa de TV ou no próprio site.
Assim, o programa se alia à tendência de
atender a uma convergência de mídias, que
caracteriza a nossa sociedade, cada vez mais
imersa no ciberespaço.
Para a produção das séries televisivas, partiu-se
sempre de um texto, que ficou conhecido como
a “proposta pedagógica”. É com base nesta
proposta, elaborada por um(a) consultor(a),
que as linhas mestras de cada série são deli-
neadas. Nesta coletânea de artigos alusivos
aos 20 anos do programa, queremos ressaltar
o quanto é significativa esta produção textual
que orienta as séries televisivas, que tem uma
dupla função: além de subsidiar a produção
dos programas, constitui-se ainda no texto in-
trodutório da publicação eletrônica referente a
cada série temática, que é destinada ao estudo
do assunto pelos professores.
Como já dissemos, a proposta é divulgar pes-
quisas e estudos voltados para a reflexão de
eixos significativos que embasam as séries
temáticas do Salto para o Futuro ao longo
desses 20 anos. No primeiro volume – Lin-
guagens e sentidos – apresentamos os tex-
tos de autores que enfocam a linguagem em
suas múltiplas manifestações. O primeiro
texto é de Patrícia Corsino, que nos empres-
ta o título dessa seção inicial. A autora toma
como referência o poema Os cinco senti-
dos, de Bartolomeu Campos de Queirós, e
os estudos de Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski
e Walter Benjamin, entre outros, para refle-
tir, por meio da linguagem, sobre o mundo
em que vivemos. Destaca que os sentidos –
ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além das
10
sensações, produzem simbolizações. Dessa
forma, o desafio da escola é construir uma
proposta pedagógica que proporcione uma
interação de modo mais informado, criativo
e crítico com as imagens e mensagens que
nos rodeiam no mundo contemporâneo6.
Com muita sensibilidade e clareza, a autora
relaciona, metaforicamente, os cinco senti-
dos às manifestações da linguagem corpo-
ral, visual, musical e escrita e sugere que a
escola precisa “deixar a imaginação imagi-
nar”, abrindo espaço para as narrativas e
dando importância às vozes das crianças,
aos corpos em movimento, ao diálogo com
o acervo imagético trazido pelos alunos.
No segundo texto, Laura Maria Coutinho, a
partir de suas experiências com a linguagem
cinematográfica na universidade pública,
propõe reflexões sobre cinema e educação.
A autora destaca que “dependendo de como
nos relacionamos com essa linguagem, ci-
nema pode ser sempre educação, sobretu-
do uma educação da sensibilidade e da me-
mória”. Para ela, “a educação da memória,
de que o cinema participa, integra também
uma forma de educação da sensibilidade”,
tendo em vista que, “por meio das histó-
rias cinematográficas aprendemos a ver, ler
e perceber a importância dos detalhes em
uma narrativa”. E, com muita propriedade,
ressalta que a presença do cinema na escola
e na educação visa, primordialmente, “des-
pertar o aluno e as pessoas para que pos-
sam andar pelo mundo de olhos bem aber-
tos para a eterna maravilha da vida em suas
mais amplas e ínfimas dimensões”7.
O terceiro texto é de Rosa Maria Bueno Fischer,
que defende a proposta de incluir a TV no cur-
rículo escolar visando a “uma genuína educa-
ção de nosso olhar”. Nesse sentido, ressalta
que o programa Salto para o Futuro, em suas
duas décadas de existência, tem mostrado
“que é na TV e pela TV que os diferentes públi-
cos (como os professores e os estudantes dos
diversos níveis) têm encontrado material de
estudo e de ampliação do repertório curricular,
no sentido de atualização e de envolvimento
dos educadores com problemas de seu tem-
po”. Em seu instigante texto, a autora destaca
que integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais
ao currículo escolar significa transformar a mí-
dia num sério e fundamental objeto de estudo.
E aponta que um programa como o Salto para
o Futuro confere mais poder aos educadores e
aos estudantes, “no sentido de estudar e pen-
sar a complexidade de todas essas narrativas
audiovisuais, olhando-as e discutindo-as dos
mais diferenciados pontos de vista, a fim de
6 A série Linguagens e sentidos foi veiculada no Salto para o Futuro/TV Escola de 6/8/2001 a 10/8/2001, tendo como consultora Patricia Corsino.
7 A série Cinema e educação: um espaço em aberto foi veiculada de 11/5 a 15/5/2009, com a consultoria de Laura Maria Coutinho.
8 O Debate: televisão e educação foi veiculado de 23/6 a 27/6/2003, com a consultoria de Rosa Maria Bueno Fischer.
11
nos esclarecer e permitir que cresçamos como
cidadãos, donos de voz e posicionamento crí-
tico e, ainda, como pessoas que ampliam seus
domínios quanto a linguagens e propostas es-
téticas diferenciadas”8.
No quarto texto, Ana Mae Barbosa retoma a
sua proposta pedagógica para os cinco pro-
gramas da série Arte na escola9, lembrando
que o programa Salto para o Futuro sempre
deu à Arte a mesma importância que é dada
às outras disciplinas do currículo. A autora
comenta que, tendo como eixo a intercul-
turalidade e a interdisciplinaridade, os espe-
cialistas convidados para a série abordaram
o campo da arte-educação, discutindo, em
especial, as especificidades que caracteri-
zam o ensino da arte na escola. Também
se reporta aos temas que foram debatidos
ao longo da série, como as transformações
no ensino da arte, as propostas metodológi-
cas contemporâneas (Critical Studies, CBAE,
Arts Propel, Proposta Triangular), a Estética
do Cotidiano, a formação dos professores de
arte e o uso do computador e outras tecnolo-
gias contemporâneas no ensino da Arte.
Nilma Lacerda, autora do quinto texto, res-
salta a necessidade de que as escolas pro-
movam a leitura de livros de literatura para
crianças e jovens que abordam as questões
fundamentais da existência, como a morte,
a violência na escola, a sexualidade, temas
considerados, em geral, como ousados, pe-
rigosos e inadequados no contexto escolar10.
Na perspectiva da autora, discutir tais ques-
tões é essencial para se “alcançar a constru-
ção de respostas existenciais necessárias aos
projetos pessoais e coletivos”. A pesquisa-
dora sugere que os cursos de formação dos
professores incluam a leitura e a discussão
das obras de literatura infantil e juvenil que
tratam dos chamados temas polêmicos, ten-
do em vista que “literatura é, em primeiro
lugar, comunicação e, respeitados os limites
de suas sensibilidades, crianças e jovens pre-
cisam ter acesso a essa experiência de forma
integral, na compreensão da complexidade
da condição humana”. Nesse sentido, “os
temas vistos como polêmicos são exatamen-
te os que mais se ocupam de nossa humani-
dade e podem ofertar aos leitores infantis e
juvenis vias essenciais para a discussão do
que os inquieta”.
Concluindo o primeiro volume da coletânea,
Carlos Alberto Faraco destaca que a socieda-
de brasileira, em geral, desconhece a reali-
dade linguística do país, tendo em vista que
“há uma impressão generalizada de que o
Brasil é um país monolíngue”11. O autor res-
salta que existem centenas de outras línguas
9 A série Arte na escola foi veiculada de 10/4 a 14/4/2000, com a consultoria de Ana Mar Barbosa.
10 O Debate: Temas polêmicos na literatura foi veiculado e 25/6 a 29/6/2007, com a consultoria de Nilma Lacerda.
11 A série Português: um nome, muitas línguas foi veiculada de 26/5 a 30/5/2008 , com a consultoria de Carlos Alberto Faraco.
12
faladas por cidadãos brasileiros, ainda que o
Português seja a língua hegemônica. Além
disso, “o português que aqui se fala não é,
de modo algum, homogêneo. Há uma gran-
de diversidade regional e uma grande diver-
sidade social”. Segundo o pesquisador, “se a
diversidade regional em si não costuma ser
estigmatizada, a diversidade social do Por-
tuguês é, no Brasil, um poderoso fator de
discriminação negativa.” Nesse sentido, seu
texto desafiador aponta para a necessidade
de que o ensino da Língua Portuguesa seja
capaz de mostrar aos alunos “a cara linguís-
tica do país, expor as razões para tanta di-
ferença, mostrar que cada variedade é um
patrimônio da nossa sociedade e da nossa
cultura”. Para o autor, cabe à escola e aos
professores “combater o preconceito e a
violência simbólica que usa a língua como
pretexto de exclusão social dos falantes” e,
ao mesmo tempo, garantir um ensino de
Português voltado para o domínio das for-
mas mais monitoradas da língua, próprias
do mundo urbano e da cultura letrada.
13
Volume 1 – lINGuAGeNS e SeNTIDoS
1.1. LINGUAGEM E SENTIDOS
Patrícia Corsino13
oS cINco SeNTIDoSBartolomeu Campos de Queirós
Por meio dos sentidos suspeitamos o mundo.
Com os olhos nós olhamos a vida (...)Olhamos o mundo e sentimosSede, fome e sonho.Com os olhos olhamos nossosIrmãos e eles nos olham.Têm olhos que nos acariciamTêm olhares que nos machucamOlhar dói. (...)Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro.
Com os ouvidos nós escutamos O silêncio do mundoE dentro do silêncio moram todos os sons: canto, choro, riso, lamento (...)Escutar é também um jeito de verQuando nós escutamos,Imaginamos distâncias,Construímos histórias,Desvendamos nossas paisagensOs ouvidos têm raízes pelo corpo inteiro.
Com o nariz sentimos os cheiros Do mundoCheiros que passeiam pelos ares (...)
13 Doutora em Educação pela PUC-Rio, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ e integrante do LEDUC (Laboratório de Linguagem, leitura, escrita e educação).
Pelo olfato damos sentido ao mundoO cheiro nos leva a sonhar com o mais longe.O nariz tem raízes pelo corpo inteiro.
Com a boca sentimos o saborDas coisas: o doce, o amargo, o azedo, o suave, o forte.Mas o sabor acorda a nossa memória (...)O doce nos faz imaginar o amargoE não deixa morrer o gosto da nossaSaudade.A boca tem raízes pelo corpo inteiro.
Pela pele experimentamos as sensaçõesde calor, frio, dorPrazer (...)Quando alguém especial nos olhaNós nos sentimos tocadosSe pegamos na mão da pessoaAmada, nosso coração disparaE nosso corpo entra em festa.Há sons que fazem arrepiar o Nosso corpo.Há medos que nos fazem tremer.A pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro.
Em cada sentido moram outros sentidos.
14
INTRODUÇÃO
O poema de Bartolomeu Campos de Queirós
convoca o leitor a refletir sobre os sentidos
que atribuímos ao que nos cerca. Sentidos
que, ao serem traduzidos em palavras, se
dão a ler ao outro, evidenciando a singula-
ridade do sujeito situado. O autor, poetica-
mente, afirma “por meio dos sentidos sus-
peitamos o mundo” e reitera que não há
sentido único e sim o plausível num dado
momento. O mundo suspeitado e possível
de se traduzir em palavras é o mundo vivi-
do sem ensaios, onde cada acontecimento
é único, irrepetível, e o acabamento neces-
sário para sua legibilidade se dá na relação
com o outro (Bakhtin, 2003). O outro é quem
tem o excedente de visão necessário para a
suspeição do mundo. Linguagem e sentidos
se inter-relacionam na dupla acepção da pa-
lavra sentido evocada no poema. Os senti-
dos – ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além
das sensações, demandam do sujeito sim-
bolizações. Como seres de linguagem, nos-
sas ações são contextuais e históricas. Por
sua vez, a produção de sentido pelo sujeito
– sua resposta ao mundo, ao outro – mani-
festa-se em gestos, palavras, traços, sons:
linguagem. Sentir e produzir sentido estão
intrinsecamente relacionados. Assim, simul-
taneamente, somos constituídos na e pela
linguagem e constituímos linguagem.
A série Linguagem e sentidos teve como
proposta refletir sobre a linguagem no es-
paço escolar. O referencial teórico que lhe
deu sustentação contou com os estudos de
Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Ben-
jamin, teóricos que abordam a linguagem
como produção humana construída coletiva
e historicamente, que se manifesta de dife-
rentes formas e participa de todas as esfe-
ras da vida do homem, e que o constitui,
formando seu pensamento e sua consciên-
cia. Estes autores discutem a linguagem na
sua dimensão expressiva e histórica, trazem
os múltiplos sentidos das palavras, veem
o homem como sujeito social, ativo e pro-
dutor de sentido e possibilitam repensar o
nosso tempo e entender a potencialidade da
linguagem como caminhos para uma edu-
cação mais significativa e humana. Desta
forma, tivemos também como objetivo da
série pensar a escola como espaço coletivo
de produção e recepção de linguagem que,
devolvendo e ampliando a sua dimensão ex-
pressiva e criativa, pode escovar a história à
contrapelo (Benjamin, 1993) e assumir a sua
função emancipadora, na direção do que
Adorno (1995) e Kramer (1999) denominam
educação contra a barbárie.
Foi com essa perspectiva que elegemos o
poema de Bartolomeu Campos de Queirós
para introduzir a série Linguagem e Sentidos
e guiar os cinco programas que a compõem.
A dupla significação dada pelo poeta à pa-
lavra sentido nos permitiu metaforicamente
relacionar os cinco sentidos a uma mani-
festação de linguagem e suas inter-relações
15
com a escola. Neste texto, fazemos uma
síntese da fundamentação teórica e de três
dos cinco textos que compuseram a série.
Na primeira parte, discutimos a concepção
de linguagem que assumimos e, nas subse-
quentes, ressaltamos diferentes manifesta-
ções de linguagem: na audição, enfatizamos
a escuta na escola, as interações, a narrati-
va; no tato, a linguagem do corpo no mundo
contemporâneo e seu lugar na escola; de-
pois trazemos a visão – as artes plásticas e
a construção de um olhar crítico frente às
produções imagéticas do mundo contempo-
râneo. Concluímos trazendo considerações
e questões para se pensar a linguagem na
escola, especialmente para as crianças da
Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental.
PENSANDO A LINGUAGEM
COM MIKHAIL BAKHTIN, LEV
VIGOSTSKI E WALTER BENJAMIN
Com os olhos, olhamos a vida, imaginamos,
acordamos sentimentos, criamos imagens;
o olfato e o sabor despertam a memória, fa-
zem o pensamento ir longe entre cheiros e
sabores da história individual e coletiva; com
os ouvidos, escutamos os sons e os silêncios
dos nossos interlocutores e do mundo, nos
encantamos e inventamos novos ritmos e
melodias; a pele, envolvendo o corpo intei-
ro, estremece, se arrepia, toca e é tocada,
dança, chora, ri, registra e se deixa registrar.
Por meio dos sentidos recriamos o mundo e
o damos à compreensão do outro. Por meio
dos sentidos produzimos linguagem, indo
além da sensação imediata.
O homem estabelece relações, produz signi-
ficado, simboliza, se expressa, se comunica,
diz para si mesmo e para o outro, mostra,
revela, cria, transforma. A linguagem, seja
verbal ou não verbal, encontra-se em todas
as esferas da atividade humana. Pela sua di-
versidade de formas e manifestações e por
pertencer ao domínio individual e social,
tem um caráter multidisciplinar, sendo es-
tudada por várias ciências e sob diferentes
perspectivas.
Neste texto, como já dissemos anteriormen-
te, tomamos como referência para abordar
questões de linguagem os estudos de Mikhail
Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Benjamin. Au-
tores que apresentam em suas obras a cen-
tralidade da linguagem na vida do homem.
Benjamin chega a afirmar que não há aconte-
cimento ou coisa, seja na natureza animada,
seja na inanimada que, de certa forma, não
participe da linguagem (Konder, 1994, p.19).
No seu ensaio Sobre a linguagem geral e a lin-
guagem humana (1992 [1919]), de forte influ-
ência teológica, considera a linguagem como
um medium da comunicação. Para o autor, o
homem comunica a sua própria essência es-
piritual na sua linguagem, denominando to-
das as coisas, e afirma que a essência linguís-
tica do homem é, pois, o fato de ele designar
16
as coisas. Assim, concebe que Deus fez as
coisas reconhecíveis pelo seu nome e confiou
ao homem continuar a sua obra denominan-
do-as de acordo com o seu reconhecimento.
E é justamente desta capacidade nomeado-
ra, adâmica, que para Benjamin se inicia a
mudez da natureza que não mais fala por
si, mas passa a ser designada pelo homem,
suportando uma multiplicidade de vozes. Se-
gundo Benjamin, a linguagem não é apenas
comunicação do comunicável, mas simulta-
neamente símbolo do incomunicável. A esta
dimensão polifônica
e polissêmica da lin-
guagem o autor con-
trapõe a linguagem
burguesa instrumen-
tal, monológica e
fragmentada e sua
crítica nos instiga a
buscar caminhos de
resistência.
Ao trazer a linguagem da natureza, Benja-
min dá um sentido semântico ao mundo
físico, se aproximando de Bakhtin (1992)
quando afirma que todo objeto ou corpo
físico pode ser percebido como signo e,
sem deixar de fazer parte da realidade ma-
terial, passa a refletir e a refratar, em certa
medida, uma outra realidade (p. 31). Nesta
perspectiva de uma realidade sígnica, Ben-
jamin (1993a) analisa algumas manifesta-
ções artísticas que anunciam e denunciam
características de uma época. Como crítico
da Modernidade, cita a arquitetura do vi-
dro, que é um material tão duro e tão liso
em que nada se fixa, que não tem aura, que
é inimigo do mistério e da propriedade e
que não deixa rastros. Ambiente que se dis-
tingue bastante do lar burguês do veludo,
marcado pelos inúmeros vestígios deixados
por seus habitantes, pela tradição impressa
na solidez dos móveis e nos detalhes dos
objetos. Distingue-se, também, do plástico
contemporâneo, descartável, sem consis-
tência e densidade.
Ainda em relação às
questões de lingua-
gem, no seu ensaio
Problemas de Socio-
logia na Linguagem,
escrito em 1945, Ben-
jamim questiona as
“evidências” das teo-
rias onomatopaicas
da origem da lingua-
gem e, tomando como referência os estu-
dos de Marr, traz os movimentos das mãos,
os gestos e movimentos do corpo, como
os primeiros meios de criação linguística.
Benjamin cita os estudos de Vigotski sobre
os chimpanzés e concorda com o psicólogo
russo de que haveria uma fase pré-linguísti-
ca do pensamento, uma inteligência prática
baseada no uso de instrumentos e uma fase
pré-intelectual da linguagem (gestos e alívio
emocional) que, em algum ponto, se conver-
giriam. Este ponto de convergência é exata-
Segundo Benjamin,
a linguagem não é
apenas comunicação
do comunicável, mas
simultaneamente símbolo
do incomunicável.
17
mente o momento em que, para Vygotsky
(1991), o pensamento torna-se verbal e a lin-
guagem racional, transformando o biológi-
co do homem em sócio-histórico. Momento
este só observado na espécie humana.
Assim, para Benjamin, o gesto é anterior ao
som e o elemento fonético é baseado num
elemento mímico-gestual. Os primeiros
sons não seriam uma onomatopeia e sim
um complemento audível ao gesto mímico
visível e totalmente expressivo por si. Aos
poucos, todos os gestos teriam sido acom-
panhados de um som que, como é mais eco-
nômico, se revela menos dispendioso e exige
menos energia, passando a predominar. O
autor defende, assim, uma teoria mimética
da linguagem e reforça o seu lado expressi-
vo. A linguagem vista não como um meio,
mas como uma manifestação, uma revela-
ção da nossa essência mais íntima.
Nos estudos de Bakhtin (1992) também está
presente o lado expressivo da linguagem.
Segundo sua teoria, a palavra comporta os
ditos e os não ditos, ela se dirige e é acompa-
nhada de gestos, expressões faciais, acentos
de valor ou apreciativos, transmitidos atra-
vés da entoação expressiva. A compreensão
dos enunciados está diretamente relaciona-
da ao contexto enunciativo, ao extraverbal e
aos presumidos. Para o autor, a compreen-
são de qualquer enunciação é sempre ativa,
orienta-se pelo contexto e já contém o ger-
me de uma resposta.
Bahktin (idem) concebe a palavra como ele-
mento privilegiado da comunicação na vida
cotidiana e como material da linguagem in-
terior e da consciência. Para o autor, a pa-
lavra acompanha toda criação ideológica e
está presente em todos os atos de compre-
ensão e de interpretação. Tem sempre um
sentido ideológico ou vivencial, sendo uma
presença viva da história por conter todos
os fios ideológicos que a tecem e carregar
um conjunto de significados que socialmen-
te foram dados a ela.
Ao longo de sua obra, Bakthin discute a lin-
guagem verbal – oral e escrita – de manei-
ra plural. A palavra é polifônica – comporta
muitas vozes e lugares enunciativos, é po-
lissêmica – seus significados e sentidos va-
riam conforme o contexto –, é marcada por
diferentes origens, épocas, gerações, classes
sociais, gêneros, profissões, grupos e con-
textos sociais (heteroglossia e linguagens
sociais).
Na perspectiva psicológica de Vygotsky
(1993), a linguagem se apresenta como um
dos instrumentos básicos inventados pelo
homem, que tem duas funções fundamen-
tais: intercâmbio social e pensamento gene-
ralizante. É pela possibilidade de a lingua-
gem ordenar o real, agrupando uma mesma
classe de objetos, eventos e situações, sob
uma mesma categoria, que se constroem
os conceitos e os significados das palavras.
Segundo o autor, pensamento e fala são in-
18
dissociáveis e suas inter-relações acontecem
nos significados das palavras. O significado
é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento
e parte inalienável da palavra, pertencendo
tanto ao domínio da fala quanto do pensa-
mento. Vygotski considera a fala egocêntri-
ca infantil como um estágio transitório na
evolução da fala oral para a fala interior. A
palavra internalizada torna-se, então, ins-
trumento do pensamento – o “discurso inte-
rior” que, diferentemente do exterior, não se
distingue apenas da fala exterior pela falta
de vocalização, mas também pela função – é
uma fala para si mesmo – e sua estrutura
tem sua sintaxe pró-
pria, é mais predica-
tiva, sintética e con-
densada.
É interessante res-
saltar que, para
Vygotsky (1991), inicialmente a fala acom-
panha o gesto e as ações das crianças até
tornar-se pensamento. Nas brincadeiras
infantis, o gesto muda a função do objeto,
transformando-o simbolicamente. Assim,
por exemplo, um pano embalado aos braços
torna-se um bebê. O autor concebe, ainda,
o gesto como um signo visual que contém
a futura escrita da criança. Os gestos são a
escrita no ar e os signos escritos são gestos
que foram fixados (p. 121).
Vygotsky (1993) e Bakhtin (1992), nos seus
estudos sobre linguagem, ao trazerem as
inter-relações entre gesto e palavra, se apro-
ximam da ideia benjaminiana de linguagem
como manifestação, movimento expressivo
mimético. Esta dimensão expressiva da lin-
guagem, que inclui o verbal e o extraverbal,
nos faz perceber os gestos e expressões das
crianças pequenas como enunciados, por-
tanto, direcionados e situados social e his-
toricamente, ligando-se a enunciações an-
teriores e a enunciações posteriores. Esta
composição de verbal e não-verbal exige que
o outro preencha os espaços abertos e dê o
seu acabamento. Os gestos indicativos, as
imitações, as brincadeiras infantis, a dança,
o ritmo e expressões
sonoras, os dese-
nhos, pinturas, mo-
delagens são ações,
movimentos expres-
sivos de linguagem.
Movimentos que
nos marcam desde os primeiros anos de
vida e cujos sentidos são produzidos nas in-
terações sociais.
O uso do termo linguagem no singular (e
não linguagens) no título deste texto e da sé-
rie foi exatamente por entender a pluralida-
de intrínseca à concepção de linguagem por
nós assumida. A singularidade da linguagem
é justamente a sua pluralidade. As manifes-
tações são várias porque a criação humana
é inesgotável. A arte faz parte do discurso
da vida e se entrelaça na grande corrente da
comunicação.
A singularidade da
linguagem é justamente a
sua pluralidade.
19
AUDIÇÃO: QUANDO ESCUTAMOS,
DESVENDAMOS NOSSAS
PAISAGENS
A palavra expressa sentimentos e emoções.
Gera conhecimento, estrutura o pensamen-
to, transforma, dá visibilidade. Ao escutar os
ditos e os não ditos, produzimos e amplia-
mos os sentidos das coisas, damos a nossa
versão, que é uma réplica e não uma repeti-
ção. Não é à toa que o poema de Bartolomeu
Campos de Queirós traz a audição como um
jeito de ver o mundo. A escuta das vozes e
dos silêncios é o espaço discursivo que se
abre ao outro, seja dentro de nós mesmos ou
fora. Na resposta reside o novo que refrata,
distorce e modifica a realidade, construindo
e reconstruindo os sentidos produzidos.
Como afirma Bakthin (1992), não existe a
primeira nem a última palavra. Penetramos
num fluxo ininterrupto da corrente da co-
municação verbal. A prática pedagógica faz
parte desta corrente. Ouvir e falar são faces
do processo interlocutivo. Entretanto, este
binômio entre adultos e crianças, professo-
res e alunos não é simétrico. A assimetria
entre os interlocutores e toda luta de forças
que se trava na arena discursiva faz com que
nem todas as vozes sejam pronunciadas e/
ou ouvidas da mesma forma. Por sua vez,
o discurso educativo, ao buscar o consenso,
tende à verdade, à centralização das forças
centrípetas, dando pouco espaço para os dis-
sensos, refrações e fugas das forças centrífu-
gas. Na ânsia de transmitir conhecimentos
e informações, o professor nem sempre está
atento às possíveis réplicas dos alunos, às
trocas coletivas, às enunciações, às negocia-
ções e às revisões dos sentidos produzidos.
No discurso pedagógico é comum se falar
da importância de dar voz à criança ou ao
aluno. Entretanto, a expressão omite um
fato básico: as crianças, os alunos têm voz.
Não cabe dá-la e sim ouvi-la. Ouvir e inte-
ragir com o enunciado do outro são exercí-
cios que se fazem necessários no processo
educativo desde a creche. Mas ouvir a voz
não é simples quando se detém a palavra e
quando se pensa que existe um sentido úni-
co a ser produzido. Paulo Freire, ao longo de
toda sua obra, criticou a pedagogia do silên-
cio, da opressão do outro. Passado meio sé-
culo de sua luta, ainda é necessário falar do
silenciamento na educação. Se a assimetria
entre adultos e crianças, entre professores
e alunos, faz parte da estrutura hierárquica
da escola, a simetria ética faz parte da inte-
ração entre sujeitos e do compromisso ético
com o outro.
Aprender a ouvir e a falar deveria ser o gran-
de exercício da escola, tanto de professo-
res, quanto de alunos. Perguntamos, então:
quais têm sido os espaços abertos na escola
para as crianças manifestarem suas opini-
ões, desejos, emoções? O trabalho com as
diferentes manifestações de linguagem tem
levado em conta a interação verbal, a troca,
20
a explicitação e a apropriação dos sentidos?
As crianças têm oportunidade de deixar as
diferentes vozes invadirem os seus ouvidos?
Têm ouvido os tons e silêncios das diferen-
tes vozes que escutam?
O exercício de escuta e de fala também diz
respeito à ampliação das experiências de
vida. Bakhtin (1992b) postula que cada esfe-
ra da atividade humana produz seus gêneros
discursivos próprios que vão diferenciando-
se e ampliando-se à medida que a própria
esfera se desenvolve e fica mais complexa
(p. 279). Para o autor, a riqueza e a varie-
dade dos gêneros dos discursos estão re-
lacionadas à utilização da língua, aos seus
usos sociais. Para a escola ser um espaço de
produção e de apropriação de diferentes gê-
neros de discurso, é necessário se abrir às
diferentes práticas sociais e não se restringir
às práticas meramente escolares. Um ensi-
no de qualidade promove interações amplas
com a cultura, permite a circulação em es-
feras variadas, desperta a curiosidade pelo
novo, mostra diferenças, possibilita viagens
reais e imaginárias, traz histórias e geogra-
fias nunca antes visitadas. Como as escolas
têm ampliado a circulação das crianças nos
espaços amplos da cultura?
Ainda pensando a escuta, Walter Benjamin,
impregnado com as questões de sua época
e sensível às mudanças em curso, em sua
crítica à Modernidade denuncia o empobre-
cimento da linguagem expressiva, do inter-
câmbio de experiência, da capacidade de
narrar e de estabelecer elos de coletividade,
do predomínio da informação sobre a nar-
ração. Para ele, a narrativa, diferentemente
da informação, deixa o ouvinte livre para in-
terpretar a história como quiser. Com isso, o
episódio narrado atinge uma amplitude que
não existe na informação, que é explicativa.
Pode ser revisitado e ressignificado pelo ou-
vinte, que se vê implicado com o fato narra-
do, estreitando os laços com o narrador e os
outros ouvintes.
A audição também remete às apreciações,
experimentações e produções sonoras: a lin-
guagem musical, vivida com toda sua força
expressiva e sensível; a experiência com a
música, em seus diferentes gêneros e esti-
los; o trabalho de musicalização, percepção
de ritmo, melodia, pausas. Conhecer, per-
ceber, sentir, se sensibilizar com a música e
também poder produzir: cantar, dançar, in-
ventar, compor e criar novas possibilidades.
Muitas práticas escolares contribuem para
reforçar o empobrecimento da linguagem.
Pesquisas revelam a falta de momentos na
escola reservados para as crianças falarem
de si, contarem suas histórias e ouvirem as
dos outros, apreciarem textos literários, ou-
virem músicas e poderem dançar, cantar. O
professor, que poderia ser também um nar-
rador ou um conselheiro (o que continua a
história do outro), tem limitado suas fun-
ções, deixando predominar a informação.
21
Mas cada professor, no seu cotidiano, pode
romper com este empobrecimento da lin-
guagem e de experiências, fazendo da prá-
tica de sala de aula uma prática narrativa
(Kramer, 1993).
O TATO: A PELE É A RAIZ
COBRINDO O CORPO INTEIRO - A
LINGUAGEM DO CORPO
O corpo, que vive intensamente a pele, mos-
tra e revela o que somos. Tiriba (2001), auto-
ra do texto da série que discute o tato, afir-
ma que o jeito de ser do nosso corpo não é
apenas uma construção pessoal, mas social
e política: é algo aprendido, construído ao
longo de toda a vida. A história e a cultu-
ra significam os nossos corpos. E, ainda, o
corpo traz marcas da nossa identidade pelos
gestos, comportamentos, cuidados, vestuá-
rio, adornos. Somos educados para perceber
estas marcas e classificar os sujeitos segun-
do o que estas marcas indicam.
A autora traça um percurso histórico de
construção da forma como o corpo é hoje
concebido, no mundo pós-moderno, onde a
nossa condição animal é relegada a segun-
do plano e até mesmo negada. O projeto de
Modernidade provocou na civilização ociden-
tal cisões como ser humano e natureza, afeto e
razão, corpo e mente, numa supervalorização
da razão em detrimento de outras dimensões
humanas. Tiriba (idem) afirma que, ao in-
vés de um corpo feudal, amarrado à terra
e submisso a Deus, a Modernidade passou
a valorizar o corpo livre para trabalhar nas
indústrias e produzir riquezas: um corpo
produtor de mercadorias. Mas a lógica ne-
oliberal do capitalismo tardio cria o corpo
consumidor, valorizado não enquanto ex-
pressão, mas como vitrine e exposição, com
desejos e ritmos regulados pela mídia e seus
modismos, sexualidade e padrões preesta-
belecidos. A autora ressalta que o modo de
produção capitalista vem produzindo dese-
quilíbrios também nas ecologias pessoais.
Fazendo referência à Guattari (1990), afirma
que ao nível do corpo, campo das sensações
mentais e físicas, os estragos são tão graves
quanto os que este modelo de desenvolvi-
mento produz no campo das relações entre
os seres humanos – ecologia social – e no
campo das relações destes com a natureza –
ecologia ambiental.
A escola, instituição criada na Modernida-
de, se institui com/na lógica cartesiana,
separando corpo e mente, fragmentando o
pensar e o fazer, o trabalho e o lazer. Currí-
culos e rotinas expressam a supremacia da
razão e a disciplinarização dos corpos. Mas
Tiriba (idem) ressalta que quando o desafio
é a produção de conhecimentos e valores
que orientem a edificação não mais de uma
sociedade industrial, mas de uma sociedade
sustentável, a escola vê-se frente à necessi-
dade de questionar estas cisões, assim como
as concepções e práticas educativas que de-
22
las decorrem, que hipervalorizam o intelec-
to e fortalecem o ego.
Na perspectiva de subverter concepções e
práticas educacionais centradas meramen-
te no desenvolvimento cognitivo e cami-
nhar na contramão de uma lógica escolar
racionalista, Tiriba propõe que se abram na
escola espaços objetivos e subjetivos para
o corpo e seus movimentos, no sentido de
recuperar a liberdade de movimentos que a
vida na cidade grande e seu respectivo mo-
delo de funcionamento escolar restringiram,
impedindo as mais simples e fundamentais
manifestações como correr, pular, saltar etc.
Tiriba indica caminhos para aconchegar o
corpo na escola, que vão desde ensinar a ter
atenção às verdades do corpo (Lowen, 1991)
– consciência dos movimentos, impulsos, li-
mitações, tensões –, ao toque, à expressão
de amor, ao afeto e à aceitação. Aponta a
necessidade da interação com a natureza e
uma revisão nos planejamentos pedagógi-
cos para a superação de uma visão de edu-
cação enquanto processo intramuros, entre-
paredes.
A autora desafia a escola a contribuir para a
saúde física e emocional de crianças, jovens
e adultos. Propõe uma organização do espa-
ço escolar capaz de favorecer a expressão e
a movimentação das crianças, o livre acesso
aos materiais, a potencialização da autono-
mia, o desafio das possibilidades motoras,
a construção da imagem corporal, o jogo
simbólico, as dramatizações, as mímicas, os
ritmos e danças. Uma escola que invista na
valorização dos espaços ao ar livre, que mes-
cle atividades que exigem maior ou menor
movimentação, com as que exigem reflexão,
que tenha uma visão holística do desenvol-
vimento infantil.
A VISÃO - COM OS OLHOS,
OLHAMOS A VIDA: O DESENHO,
A PINTURA, A FOTOGRAFIA E O
CINEMA
Com os olhos olhamos a vida e o olho do
artista releva o que nem sempre vemos, per-
mitindo novos olhares sobre a realidade. A
linguagem plástica e visual é uma forma de
olhar e ver o mundo. A arte é uma produção
social. O artista dá visibilidade ao que nos
cerca através de sua obra ou da lente de sua
câmera e o apreciador, contemplador, teles-
pectador pode ressignificar o que vê pelo
que percebeu do olhar do outro. Num jogo
de espelhos, no qual o mundo se revela, é
revelado e ganha novos tons e significados.
Lopes (2001), autora do texto da série que
discute a linguagem plástica e visual, ob-
serva que o desejo do homem de se comu-
nicar por imagens esteve presente desde a
pré-história, nas inscrições de desenhos nas
cavernas. A preocupação com a produção e
o prazer estético remonta à Idade da Pedra,
23
quando o homem não se contenta em sim-
plesmente esculpir a lâmina da lança, com
finalidade utilitária, mas decora, enfeita,
procurando realizar algo que, além de útil,
fosse belo. A autora afirma que esta dimen-
são estética está presente nos diferentes pe-
ríodos da história e se expressa de diversas
formas, seja no universo reconhecido e va-
lorizado das produções artísticas e culturais,
como dentro das ações mais simples das ex-
periências cotidianas.
As crianças também, desde pequenas, arru-
mam brinquedos e coleções com arranjos
cuidados esteticamente, enfeitam objetos,
colorem, escolhem roupas e adereços, se
arrumam para o reconhecimento do outro,
apreciam músicas, dançam seguindo rit-
mos, reconhecem traços nas ilustrações,
brincam com rimas e versos, assistem a fil-
mes e desenhos animados, emitem opiniões
sobre formas, texturas, cores do que veem.
Participam ativamente da dimensão estética
das produções culturais do seu cotidiano.
Entendemos que a escola é um espaço onde
é possível propiciar o convívio e o diálogo en-
tre o acervo imagético, trazido pelos alunos
de sua experiência cotidiana, e as produções
artísticas e culturais reconhecidas universal-
mente e pertencentes a diferentes épocas e
contextos socioculturais, numa proposta de
ampliação da percepção visual do mundo e
do repertório visual e gráfico, com vistas à
construção de um olhar crítico da realidade.
Para Lopes (idem), o universo das artes visu-
ais é um campo particular de conhecimento
e o processo de fazer ou apreciar o produto
artístico propicia uma experiência subjetiva
de conhecimento do mundo. Ainda afirma
que as produções artísticas nos permitem
uma aproximação da realidade a partir de
um outro ponto de vista, que se organiza
não a partir da lógica objetiva, mas dos do-
mínios do imaginário.
Esta experiência subjetiva é o que faz uma
obra ser arte. A arte, por sua vez, como afir-
ma Bakhtin (1926), é eminentemente social:
o estético, tal como o jurídico ou o cogniti-
vo, é apenas uma variedade do social (p. 1).
O artístico é uma forma especial de inter-
relação entre criador e contemplador fixada
em uma obra de arte (p. 3). Para o autor, a
arte se torna arte na interação entre o cria-
dor e o contemplador, fora disso é um mero
artefato ou exercício linguístico, visual, rít-
mico etc.
Bakhtin sustenta a ideia de que a forma de
um enunciado artístico é a expressão direta
de avaliações sociais. Julgamentos de valor
determinam a seleção de palavras, traços,
formas, ângulos, tons do autor e a recepção
desta seleção pelo ouvinte/leitor/ apreciador/
telespectador. Para Bakhtin, cada expressão
selecionada é um ato avaliativo orientado
em duas direções – em direção do ouvinte/
apreciador e em direção do personagem/
tema representado. Ambos são participantes
24
constantes do evento criativo. Assim, embo-
ra a forma esteja fixada num material, numa
película, num computador, a significação da
forma tem relação não com o material, mas
com o conteúdo. A seleção do conteúdo e a
seleção da forma constituem um único ato
estabelecendo a posição básica do criador;
e neste ato uma e a mesma avaliação social
encontra expressão. O artista, pela media-
ção da forma artística, assume uma posição
ativa com respeito ao conteúdo. Neste sen-
tido, forma e conteúdo são indissociáveis e
marcam a posição do criador. Estética e éti-
ca encontram-se, assim, em estreita relação.
Lopes (2001), baseada nos estudos de Ben-
jamin, alerta para as transformações ocor-
ridas na arte na Modernidade, na era da
reprodutibilidade técnica. A invenção da fo-
tografia alterou radicalmente a relação do
homem com a arte e a produção de imagens
pela possibilidade de reprodução. A obra de
arte deixa de ser única e sua multiplicação
lhe confere uma “existência serial”. A auto-
ra ressalta que, após a fotografia, surgiram
muitos outros processos de fixação, produ-
ção e multiplicação da imagem. Os avanços
tecnológicos do mundo contemporâneo
contribuíram para tornar mais dinâmico
o modo de produção de imagens. Cinema,
TV, vídeo, computação gráfica, videogames
fazem parte de um novo campo de produ-
ção que foi definido e denominado como
linguagem audiovisual, e este novo contex-
to imagético requer um outro olhar sobre a
realidade para o entendimento da chamada
“civilização da imagem”. Nas palavras de
Souza, Lopes e Sander (2000), depois da fo-
tografia a experiência humana não é mais
a mesma, pois conquistamos uma consciên-
cia cultural e subjetiva do mundo que nos
transformou de forma radical.
Tendo como foco a relação ética e estética,
Lopes (2001) indaga: qual seria, então, o pa-
pel da imagem no contexto educacional da
sociedade contemporânea? É possível pen-
sar no desenvolvimento de uma cultura vi-
sual, que amplie as experiências estéticas e
sensíveis, visando à transformação da ação
criadora do homem nos diferentes contex-
tos sociais onde atua?
Tendo em vista a complexidade dos modos
de produção de imagem, o desafio seria, en-
tão, construir uma proposta pedagógica que
proporcione uma interação de modo mais
informado, criativo e crítico com as imagens
e mensagens que nos rodeiam no mundo
contemporâneo. Uma educação visual que
considere as técnicas, procedimentos, in-
formações históricas, produtores, relações
culturais, econômicas e sociais envolvidas
no processo de produção artística e cultu-
ral, que contribua para a formação de um
olhar mais crítico e criativo sobre o contexto
imagético no qual estamos inseridos. Pers-
pectiva que coloca como ponto fundamen-
tal a relação ética e estética e a necessária
mediação do professor na construção deste
25
olhar, o que, necessariamente, remete à sua
própria formação.
Bartolomeu Campos de Queirós, em entre-
vista concedida à UFRJ (2009), postula ser
mais fácil levar uma música de Mozart para
a escola do que discutir a estética/ética do
programa Big Brother. Isto porque é muito
dificil assumir o olhar crítico frente ao que
nos pertence e habita o nosso próprio tem-
po. Portanto, o professor precisaria estar em
constante educação do olhar, ultrapassando
limitações, pesquisando alternativas e dife-
rentes estratégias
para que ele e as
crianças possam
lançar diferentes
olhares às ima-
gens cotidianas e
ampliar o seu re-
pertório de forma
crítica. Conclui
Lopes (2001): aceitando o desafio, transfor-
mando o nosso olhar para recuperar o en-
canto e o espanto de ver as possibilidades
onde menos esperamos, podemos descobrir
novos ângulos e dar outros sentidos ao coti-
diano escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A linguagem, nas suas diferentes manifesta-
ções – corporal, visual, musical, escrita – per-
mite a narração quando se constitui como
uma experiência do sujeito. Quando ouvi-
mos uma música, o corpo descansa e o pen-
samento vai longe, o mesmo acontece com
uma dança e um filme que assistimos, uma
fotografia, uma pintura e uma escultura que
olhamos. A arte, nas suas diferentes mani-
festações, dá uma outra visibilidade à reali-
dade, permitindo novos olhares, novas nar-
rativas. A imaginação, presente e necessária
tanto para o artista criar sua obra, quanto
para o cientista fazer suas descobertas e
invenções, se alimenta da realidade, vivida
e sentida. Portanto, aguçar a sensibilidade,
deixar a imaginação imaginar, ouvir os ecos
do que foi sentido
e partilhar com o
grupo uma expe-
riência não deve-
ria ser adorno ou
complemento da
ação pedagógica,
mas a própria fi-
nalidade da es-
cola, que, ao longo de sua história, tem di-
fundido e sistematizado a linguagem dando
muito mais ênfase ao seu lado instrumental.
Sem dúvida, a linguagem é uma grande fer-
ramenta, exerce inúmeras funções, tem um
lado prático, funcional, utilitário, mas não
se limita a isto.
Frente às questões postas pelo mundo con-
temporâneo, de aligeiramento das relações,
do consumo exacerbado, da falta de profun-
didade, da fragmentação dos discursos, da
falta de afeto, de cuidados com o corpo, de
A arte, nas suas diferentes
manifestações, dá uma
outra visibilidade à realidade,
permitindo novos olhares,
novas narrativas.
26
tempo para a narração, apreciação e críti-
ca do próprio tempo presente, é necessário
que em alguma esfera da vida das pessoas se
devolva à linguagem a sua dimensão expres-
siva e sensível, para que se possa resgatar os
elos da coletividade e aproximar o homem
do próprio homem. E a escola talvez seja
hoje um dos poucos lugares onde um grupo
de pessoas se reúne diariamente, podendo
processar, elaborar, contar e registrar a en-
xurrada de informações que chegam pelas
inúmeras vias (televisão, internet, relações
pessoais, livros, revistas, jornais etc.). Lu-
gar que tem um potencial maior do que se
imagina e que pode aguçar os sentidos, am-
pliando a escuta e o olhar.
A narrativa é a possibilidade que temos de
intercambiar experiências, de nos conhecer
e de nos reconhecer ou nos estranhar no
outro. Ela nos faz perceber a nossa huma-
nidade sócio-histórica, concilia tempos e es-
paços distintos, organiza os fragmentos das
histórias vividas e/ou contadas. Ao reconhe-
cer a diferença no “outro”, recuperamos a
dignidade de nos reconhecermos nos nossos
limites, nas nossas faltas, na nossa incom-
pletude permanente, enfim, em tudo isso
que é essencial e verdadeiramente humano
e, ao mesmo tempo, inefável (Pereira & Sou-
za, 1998, p. 39).
São muitas as práticas que podem ser ado-
tadas rumo a um trabalho com a linguagem
capaz de 'escovar a história à contrapelo'.
A série Linguagem e Sentidos foi um convi-
te ao professor a pegar o fio da linguagem,
expressiva, múltipla e polifônica para, junto
dos alunos, encontrar o caminho de volta do
labirinto e não ser subtraído da sua dimen-
são humana.
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29
1. 2. cINemA e eDucAÇÃo: um DIáloGo PoSSíVel
Laura Maria Coutinho14
dora, para o trabalho de ensino e pesquisa
que desenvolvo com linguagem cinemato-
gráfica na universidade pública. Por meio
delas, foi possível reunir cineastas, profes-
sores, artistas, alunos, para pensar o cine-
ma e a educação irmanados. Foi possível
convidar pessoas que fazem, refletem,
ensinam, conversam sobre coisas sobre
as quais também gostamos de conversar.
Foi possível reunir, por meio de imagens,
sons, palavras, autores fundamentais para
nossa busca do entendimento da lingua-
gem do cinema, como Walter Benjamin,
Milton José de Almeida, Pier Paolo Paso-
lini, dentre outros; sem eles não haveria
a possibilidade do diálogo nem, portanto,
da discussão. Foi possível trazer, para esse
universo, autores de origem, da origem
do desejo de ver filmes, de escrever so-
bre cinema, de fazer imagens, de pensar o
cinema e a educação juntos e separados.
Penso que pesquiso sobre cinema para ter
o que conversar com esses autores e, de
certa forma, para me colocar sob a custó-
dia de cada um deles.
Inicio estas reflexões sobre cinema e educa-
ção no espaço do Salto para o Futuro – pro-
grama que há duas décadas participa do de-
bate nacional sobre educação trazendo, por
meio da televisão e da internet, os temas
mais relevantes da cultura contemporânea
para o âmbito da escola e dos educadores,
– lembrando Fredric Jameson, que dedicou
seu livro As sementes do tempo a quem fosse
capaz de olhar para elas e dizer qual grão
cresceria e qual não cresceria (1997). O Salto
para o Futuro foi uma dessas sementes que
cresceu. Cresceu assentando-se em discus-
sões que não se apresentaram como evoca-
ção de conteúdos para efeitos meramente di-
dáticos, mas que, em tensão e complexidade,
encontraram-se como presença no universo
pedagógico – em cada série de programas re-
alizada –, como parte integrante da vida cul-
tural do país. Foi assim com o cinema.
Quero ressaltar a importância das séries
sobre cinema das quais pude participar no
âmbito do Salto para o Futuro, seja como
consultora convidada, seja como debate-
14 Professora Adjunta da Faculdade de Educação – UnB.
30
Cinema – ainda que parte de um momento
da humanidade em que emerge uma busca
quase obstinada pelo concreto, pelo mate-
rial, pelo real –, participa de outro movi-
mento igualmente forte e expressivo que é
a criação de múltiplas maneiras de materia-
lizar o invisível (Carrièrre, 1995). Participa
desse momento e dessa busca sendo arte,
artifício, artificial, diversão, entretenimen-
to. Traduz, para essa linguagem feita de
imagens, sons, olhares, falas, movimentos
e ruídos amalga-
mados, coisas e si-
tuações que talvez
ainda hoje sejam,
na escola, secun-
dárias, agregadas,
postiças. Mas, ain-
da assim, podem
ser também edu-
cação. Dependen-
do de como nos
relacionamos com
essa linguagem,
cinema pode ser sempre educação, sobre-
tudo uma educação da sensibilidade e da
memória. Ver um filme é aprender sobre o
cinema e sua linguagem que se concretiza
ao associar as dimensões de espaço e tem-
po e promover seu deslocamento em 24 ou
36 quadros por segundo. Todo filme, como
linguagem, constitui-se de uma tempora-
lidade e de um local onde se desenrola a
expressão de uma vida, seja ela qual for e
em que momento estiver, tornada signos
traduzidos em imagens e sons. Constitui,
dessa forma, uma narrativa que, em esté-
tica, magia e política, integra um espaço
privilegiado de educação da memória con-
temporânea.
Em muitas situações escolares, a aparição
do filme, ou seja, os momentos de cinema
são, muitas vezes, tempos nos quais, na rela-
ção do que deve ser apreendido e lembrado,
a memória descansa. Mas não é assim que
acontece, pois ver
um filme é tam-
bém aprender sua
linguagem e sua
forma de pensar o
mundo, mas, prin-
cipalmente aden-
trar o universo
poderoso de cons-
tituição da memó-
ria artificial. Um
filme realiza uma
montagem que
tece relações espaço-temporais, compondo
uma hierarquia do que precisa ser lembra-
do, para além das prescrições. Realiza essa
função ao situar coisas diante de outras, te-
cendo relações. O cinema tem a capacida-
de, talvez como nenhuma outra linguagem,
de colocar uma coisa diante da outra, uma
pessoa diante da outra, uma cena, uma his-
tória, uma narrativa diante da outra. Tem,
assim, a capacidade de transformar espaços
em locais, locais de memória.
Todo filme, como linguagem,
constitui-se de uma
temporalidade e de um local
onde se desenrola a expressão
de uma vida, seja ela qual for
e em que momento estiver,
tornada signos traduzidos em
imagens e sons.
31
Se desejarmos nos lembrar de muitas coi-
sas e de muitos conteúdos, necessitamos
nos prover de um grande número de lugares
passíveis de serem identificados e reconhe-
cidos. Para isso, é essencial que esses luga-
res formem uma série e que sejam lembra-
dos de uma forma determinada, de modo
que se possa partir de qualquer lócus da sé-
rie e compor com ele nossa memória, sobre-
tudo a memória artificial, aquela que cons-
truímos com o intuito de podermos recorrer
rapidamente a ela, para fazê-la emergir com
lembranças, conforme assinala Frances Ya-
tes em seu livro A arte da memória (2007).
Lembramos de cenas que somente pudemos
visualizar por meio de imagens cinematográ-
ficas criadas pelo artifício da techné. O ato de
lembrar nos faz também esquecer. Muitas ce-
nas que nos acompanharão para sempre em
nossa existência humana serão povoadas de
personagens que, mesmo oriundos de uma
realidade acontecida, ganharam vida pela fic-
ção, ou seja, pelas imagens dos filmes, séries
de televisão, novelas, telejornais.
A educação da memória, de que o cinema
participa, integra também uma forma de
educação da sensibilidade. Vivemos em um
mundo povoado de informações e apelos
onde, cada vez mais, parece ser importan-
te e fundamental para a sobrevivência saber
dar um sentido para os detalhes, sobretu-
do os detalhes que nos chamam a atenção
sem que possamos perceber algum sentido
lógico imediato, imanente. Principalmente
aqueles mais fugazes. O cinema, a meu ver,
realiza esse tipo de educação. Por meio das
histórias cinematográficas, aprendemos a
ver, ler e perceber a importância dos deta-
lhes em uma narrativa. Poderíamos relatar
aqui inúmeros exemplos, em filmes, onde
todo o sentido da narrativa está contido em
um detalhe que poderia ter passado desper-
cebido se a câmera, mesmo aparentando
acaso, não os tivesse ressaltado, fazendo
com que coisas aparentemente ínfimas to-
massem o espaço inteiro da tela.
Alberto Manguel, em seu romance O amante
detalhista, realiza, com uma escrita excep-
cional, um verdadeiro elogio do detalhe e do
sentido da visão:
O amante captura num átimo aquilo que
é recortado pelo artista num pedaço de
papel sensível, e nessa armadilha, nesse
recinto cercado, nos limites impostos pela
obra de arte, o objeto do amor [e de todos
os demais sentimentos] lança as sementes
de sua própria narrativa e de seu próprio
significado (2005 p. 59-60).
A linguagem cinematográfica, ao mesmo
tempo em que incorporou o recorte em
sua sintaxe, realiza uma educação de cer-
to modo de ver, acreditando, penso, como
Manguel, que quando permanecermos ape-
nas nela “a totalidade não deixa espaço para
o desejo” (2005, p. 49) e, assim, também não
32
para a imaginação. Qualquer linguagem fica
incompreensível sem que dela participe a
imaginação do leitor, do espectador.
Talvez a importância da presença do cine-
ma na escola e na educação, mais do que
dissertar sobre coisas e situações, seja a
de despertar o aluno e as pessoas para que
possam andar pelo mundo de olhos bem
abertos para a eterna maravilha da vida em
suas mais amplas e ínfimas dimensões.
Imaginação é uma memória sem fronteiras,
limites, freios, sem a qual o cinema e os fil-
mes não seriam mais do que meras imagens
em sequência, ou seja, é com imaginação que
vamos completando os intervalos de signifi-
cação que compõem a linguagem cinemato-
gráfica. É com a imaginação – que se alimen-
ta da memória –, que vamos preenchendo os
sentidos que o filme suprime. Tudo se passa
como se o que o filme escondesse os espec-
tadores devessem revelar, imaginar. Por isso,
o cinema inteligente é uma linguagem que
mostra, não precisa explicar, portanto, ne-
cessita ter alguma certeza da inteligência do
espectador. Talvez por isso a linguagem cine-
matográfica se aproxime de um tipo de edu-
cação que transcende os conteúdos e confia
que as possibilidades de aprendizado são atri-
butos de quem aprende, a partir de diferen-
tes meios e linguagens, e sua capacidade de
atingir seus objetivos é ainda maior se essa
linguagem falar ao coração dessa pessoa, aos
seus sentimentos mais profundos.
O olhar e o pensamento cinematográficos
permitem uma visão peculiar, única e múl-
tipla das coisas, somente possível por meio
do modo de ver objetivo das lentes objeti-
vas. O olhar do cinema é tecnológico, não
vemos o mundo naturalmente assim. Para
que isso fosse possível, foi necessário uma
longa educação e aprendizado:
Essa arte e essa educação assentam-se
num dos instrumentos mais importan-
tes de fabricação de imagens: a perspec-
tiva, um processo geométrico e mate-
mático de ilusão visual desenvolvido na
Renascença e que persiste na tecnologia
das atuais câmeras fotográficas e televi-
sivas (ALMEIDA, 2003, p. 11).
É preciso pensar que, aliado à construção da
linguagem cinematográfica, foi simultanea-
mente realizado um longo processo de edu-
cação do olhar e dos modos de ver imagens
enquadradas, cindidas, justapostas e em mo-
vimento. Mas, desde Giotto, e outros grandes
mestres da arte da representação ao estilo
mais naturalista, viemos aprendendo uma no-
va forma de ver o mundo que, muitas vezes,
foi considerada como a forma verdadeira de
representação desse mesmo mundo. Podemos
ver Giotto como um dos grandes mestres ini-
ciadores da tecnologia de representação visual
– incorporada hoje pela fotografia, o cinema, a
televisão –, tão lindamente expressa na Capela
Arena, feita por solicitação de Scrovegni em Pa-
dova e, por exemplo, na Igreja dedicada a São
33
Francisco em Assis, Itália (WERTHEIM, 2001).
Mas além das imagens, o cinema também
é feito de palavras. Todo filme foi, antes de
transformar-se em imagens e sons em movi-
mento, um argumento, um roteiro e, muitas
vezes, uma história extraída da literatura.
Portanto, o cinema acontece na confluên-
cia de muitos sistemas, faz ecoar sempre
ecos dessa necessidade do diálogo entre
sistemas de linguagem, sistemas de arte,
sistemas sociais, sistemas políticos, siste-
mas de vida, que
expressam, cada
um ao seu modo
e com suas pecu-
liaridades, a expe-
riência humana
neste planeta cada
vez mais percebido
como tal, em sua
trama globalizada
de conhecimentos
e informações. O cinema é parte integrante
de tudo isso. Participa, em estesia e políti-
ca, desse universo que busca tocar, conta-
tar e conectar pessoas e situações, podendo
tornar-se assim instrumento importante de
uma educação do homem contemporâneo.
O cinema participa das narrativas que vão se
constituindo também na intrincada mitologia
do mundo moderno de que nos fala Campbel
(1990). Os atores de cinema constituem-se em
mitos ou em figuras mitologizadas quando
se tornam, para o bem e para o mal, mode-
los exemplares de comportamento. Quando
isso acontece, podemos ver que temos dian-
te de nós verdadeiros educadores para a vida,
que nos são apresentados pelo cinema e pelos
filmes. Embora possamos dizer que estamos
diante de novos mitos, todos eles têm sua ori-
gem em algum momento da experiência hu-
mana do passado. Para Mircea Eliade,
(...) o mito proclama a aparição de uma
nova situação cósmica ou de um aconte-
cimento primordial.
Portanto, é sempre
a narração de uma
criação: conta-se
como qualquer coi-
sa foi efetua da, co-
meçou a ser. É por
isso que o mito é so-
lidário da ontologia:
só fala das realida-
des, do que acon-
teceu realmente, do que se manifestou
plenamente. É evidente que se trata de
realidades sagradas, pois o sagrado é o
real por excelência. Tudo o que perten-
ce à esfera do profano não participa do
Ser, visto que o profano não foi fundado
ontologicamente pelo mito, não tem um
modelo exemplar (1992, p.85).
O que expressa Eliade nos aproxima do para-
doxo proposto por Buñel em sua autobiogra-
fia, quando sugere que toda expressão artísti-
A sedução questiona nossas
certezas e pode transformar
nossa percepção do
mundo criando maneiras
de nos fascinar, encantar,
deslumbrar, atrair.
34
ca, sobretudo o cinema, só deixa de ser plágio
quando baseada na tradição (BUÑEL, 1982).
Muitos estudiosos da arte de narrar história
são unânimes ao afirmarem que não há mui-
tos enredos possíveis ao homem. Segundo o
Mahabarata, seriam apenas quarenta, e ou-
tros, ainda, que são apenas dois: o homem
que sai de sua casa e o que volta para ela.
Muitas, talvez infinitas, seriam as tramas, as
múltiplas formas por meio das quais pode-
mos contar o mesmo enredo, a mesma histó-
ria, levando os acontecimentos para contex-
tos, situações e temporalidades diferentes.
Assim, os inúmeros filmes que são lançados
todos os anos vão ajudando a compor as nar-
rativas da humanidade, trazendo sempre no-
vos e velhos temas do desafio e da arte de
viver de pessoas, culturas, civilizações.
Com o cinema, e com as narrativas audio-
visuais que lhe deram sequência, podemos
aprender também a arte da sedução. Sedu-
ção participa sempre das histórias e da arte
de contá-las. É um conceito complexo e, tal-
vez por isso, pode ser encarado com certo
desprezo que temos quando alguma coisa
nos toca e nos incomoda, mas não sabemos
bem como lidar com ela. A sedução tran-
sita no universo de algumas virtudes, tais
como a polidez, a prudência, a coragem,
a pureza, que só podem ser ensinadas, se-
gundo Comte-Sponville, pelo exemplo. Daí a
importância da compreensão da linguagem
cinematográfica e suas inúmeras formas
de sedução, ou seja, do seu desejo de des-
pertar nas pessoas simpatia, desejo, amor,
interesse, magnetismo, fascínio. A ideia de
sedução está relacionada a certa ambiguida-
de, com coisas que oscilam entre polarida-
des nem sempre bem definidas de bem e
de mal, de certo e de errado, de claro e de
escuro, de silêncio e de som.
Toda sedução atua no universo das nossas
dúvidas mais profundas, aquelas que muitas
vezes não sabemos que são nossas. A sedução
questiona nossas certezas e pode transformar
nossa percepção do mundo criando maneiras
de nos fascinar, encantar, deslumbrar, atrair. A
linguagem audiovisual do cinema e a da tele-
visão são linguagens sedutoras, sugerem mui-
to mais do que afirmam e, por meio de sons e
silêncios, claros e escuros, cores cambiantes,
criam um universo de magia e encantamen-
to, até mesmo quando querem ser objetivas,
afirmativas, certas, como em alguns filmes
didáticos e em certos programas de televisão,
como os telejornais. Aprender a linguagem da
sedução é também uma forma de aprender a
linguagem do cinema e dos audiovisuais para,
se assim quisermos, nos livrarmos de sua di-
mensão mais perversa, qual seja a da manipu-
lação que, para além das virtudes, pode tan-
genciar os vícios, tomados aqui sem nenhum
julgamento moralista ou sectário.
Mesmo quando não nos damos conta, vive-
mos imersos em um mundo de imagens. Se
as salas de cinema estão cada vez mais redu-
35
zidas aos shoppings centers, ainda que a ten-
dência desses seja a de aumentar, a televisão
popularizou o cinema e muitos filmes deixa-
ram as grandes telas para apresentar-se nas
telas menores dos inúmeros aparelhos de
televisão que estão por toda parte. Por isso
mesmo, todas as pessoas que vivem nas ci-
dades têm sua própria experiência com a lin-
guagem audiovisual para relatar. Em algum
momento da nossa vida, a linguagem audio-
visual nos toca, nos sensibiliza, nos educa.
Realizar as próprias imagens é uma das di-
mensões mais enriquecedoras dessa educa-
ção e desse diálogo necessário do cinema
com a escola. Mais do que aprender por meio
dos produtos audiovisuais, importa ainda en-
tender o cinema para que a educação, na prá-
tica cotidiana de professores e alunos, passe
a construir um entendimento do mundo por
meio da linguagem cinematográfica. Muitas
experiências que pudemos empreender na
universidade ou em escolas do Ensino Funda-
mental, seja pessoalmente ou por relatos de
colegas, foram exitosas ao buscarem associar
a linguagem audiovisual com a educação.
Mais do que somente ver filmes, importa,
para a educação do homem contemporâneo,
experimentar a linguagem cinematográfica
para expressar e construir os próprios senti-
dos e entendimento do mundo.
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36
1.3. TeleVISÃo e eDucAÇÃo Do olhAR: umA uRGêNcIA PeRmANeNTe
Rosa Maria Bueno Fischer15
educação de nosso olhar. Se quisermos sa-
ber mais sobre nosso tempo, sobre a cultu-
ra em que vivemos, sobre os modos de vida
que produzimos e que nos produzem, é pre-
ciso lembrar que os meios de comunicação
existem não apenas para informar, divertir,
ocupar nosso tempo; não apenas para sim-
plesmente vender produtos. A TV traz, jun-
to com tudo isso, formas de comunicação,
modos de contar histórias, de usar a lin-
guagem, de descrever como são ou devem
ser crianças, jovens, adultos, pobres e ricos,
mulheres e homens, negros, brancos, gru-
pos de todas as etnias e condições sociais.
O programa Salto para o Futuro, em suas
duas décadas de existência, tem mostrado
exatamente isto: que todas as relevantes
questões educacionais (sejam elas especi-
ficamente do currículo escolar tradicional,
sejam elas referentes aos chamados temas
transversais da educação) precisam ser dis-
cutidas nos espaços da comunicação social.
Mais do que isso: o Salto tem mostrado que
A complexa rede de produção, veiculação,
consumo e apropriação de imagens, textos
e sons, através da experiência cotidiana com
os diferentes meios de comunicação, é res-
ponsável hoje por um imenso volume de tro-
cas simbólicas e materiais entre sociedades,
nações, grupos sociais, indivíduos. Podemos
dizer que em nosso tempo a mídia – e de
modo particular a televisão – tornou-se um
espaço privilegiado na construção social dos
sujeitos. Os espaços convencionais de atri-
buição e formação de identidades, como a
escola e a família, sofreram mudanças sig-
nificativas nas últimas décadas, na medida
em que se pode perceber, sem dúvidas, que a
formação dos sujeitos também ocorre com a
decisiva participação da televisão, do rádio,
das revistas, dos jornais, da Internet – onde
também aprendemos, todos os dias, modos
de ser e estar neste mundo.
Ora, incluir a TV no currículo escolar torna-
se uma exigência política e social da maior
importância, no sentido de uma genuína
15 Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Pesquisadora do CNPq; Autora, dentre outros textos, do livro Televisão & Educação – Fruir e Pensar a TV, da Autêntica Editora.
37
é na TV e pela TV que os diferentes públicos
(como os professores e os estudantes dos di-
versos níveis, por exemplo) têm encontrado
material de estudo e de ampliação do reper-
tório curricular, no sentido de atualização e
de envolvimento dos educadores com pro-
blemas de seu tempo.
Integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais
ao currículo escolar significa transformar a
mídia num sério e fundamental objeto de
estudo. Significa trazer seus produtos para
a sala de aula com o
objetivo de fazer lei-
turas cotidianas do
social, como é veicu-
lado na mídia. Signi-
fica estabelecer com
os alunos relações
entre as narrativas
da mídia sobre nós
mesmos, nosso país,
o mundo, e aquilo
que nós pensamos, sentimos e entendemos
sobre aqueles mesmos temas, aqueles per-
sonagens, aquelas vidas. Significa também
aprender formas de expressão, de lingua-
gem, como é o caso da linguagem publici-
tária, da linguagem ficcional de telenovelas,
da linguagem informativa dos telejornais, e
assim por diante.
Todo o trabalho que venho desenvolven-
do, pelo menos nos últimos quinze anos,
na Universidade (e também fora dela) está
diretamente relacionado ao desejo de que
mais e mais educadores se dediquem a essa
tarefa tão importante em nossos dias: a de
que se faça um aprendizado cotidiano de
apreensão de diferentes linguagens e modos
de comunicar, com o objetivo de reelaborar
e incorporar criticamente na escola todas
as tantas informações e imagens a que te-
mos acesso. Realizando um trabalho como
esse, vamos compreendendo que as “verda-
des” deste mundo são sempre construídas e
que as lutas pelo poder tornam-se, cada vez
mais, lutas simbó-
licas. Dominar sím-
bolos e signos das
diferentes mídias é
tarefa urgente, para
a qual estamos to-
dos convidados. Es-
pecialmente no âm-
bito da educação.
UM POUCO DE HISTÓRIA
COM A TV
Desde minhas primeiras pesquisas sobre te-
levisão e educação, nos anos 1980 (portanto,
nos últimos trinta anos, metade do tempo
de “vida” da TV brasileira), observo que esse
meio de comunicação tornou-se parte fun-
damental do cotidiano deste país. Meus es-
tudos com crianças e jovens, de diferentes
camadas sociais, mostram o quanto esses
grupos encontram nas narrativas da TV uma
Integrar a TV, o rádio,
as revistas e jornais ao
currículo escolar significa
transformar a mídia num
sério e fundamental objeto
de estudo.
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fonte que lhes parece por vezes imprescindí-
vel – de informação e de lazer –, propiciando
que se sintam efetivamente parte da vida so-
cial brasileira.
Minha primeira pesquisa sobre infância e
TV foi realizada justamente na então TVE
do Rio de Janeiro, no início dos anos 1980.
Com um grupo de técnicos da Fundação
Roquette-Pinto, que atuavam na área peda-
gógica da TVE, fomos até escolas públicas
estaduais do Rio de Janeiro, escutar crianças
e adolescentes sobre sua experiência com a
TV16. Uma das grandes descobertas iniciais
foi que aquelas crianças estavam muito bem
informadas sobre programações de todos os
canais de TV (assim como hoje grande parte
desse público também conhece diferentes
sites da Internet, sem deixar, certamente, de
saber sobre televisão). Mas o que me pare-
ceu essencial, já naquele tempo, era o fato
de que a TV tinha uma presença não só de
acesso ao lazer, especialmente para popula-
ções mais pobres; havia naquelas crianças
a expectativa de que a TV lhes oferecesse
informação, apoio, acolhida. E o que acom-
panhamos, hoje, não só nos canais a cabo,
mas também na chamada TV aberta, é a
proliferação de programas que justamente
procuram responder a questões prosaicas,
como aquelas relativas a: “como educar
meu filho”, “como me alimentar melhor”,
“como me comportar no ambiente de tra-
balho”, “como decorar minha casa”, “como
reagir diante da dor física ou do sofrimento
psíquico”, e assim por diante. Especialistas
de todos os tipos são convidados a partici-
par de programas na TV, para aconselhar as
pessoas, acompanhar suas vidas, “conver-
sar” com elas. Esse tipo de proposta atraves-
sa também os próprios programas de ficção,
como as telenovelas, que se tornaram por-
ta-vozes de “lições de cidadania”, de “bom
comportamento” ou de “dicas de como vi-
ver melhor”..
Muito recentemente (2010), visitei uma pe-
quena cidade mineira (Lavras Novas); cru-
zando ora com um burro, ora com uma va-
quinha, que tranquilamente andavam pela
rua principal da cidade, encontrei grupos de
jovens reunidos junto a uma enorme cruz
diante da igrejinha local. Eles esquentavam
o corpo ao sol, num dia frio, enquanto con-
versavam animadamente. E me disseram: “A
gente tá aqui esperando a hora da novela”.
Já haviam se divertido com o pique-esconde
e outras brincadeiras infantis (que seguem
presentes na adolescência deles), trocavam
ideias sem parar, e depois voltariam para
casa, onde a TV e suas histórias também os
esperavam.
Ora, não há dúvidas sobre a forte presença
da TV em nossas vidas brasileiras. Se anos
atrás ouvíamos que algo “realmente aconte-
16 O resultado dessa pesquisa está publicado no livro O Mito na Sala de Jantar. Discurso infanto-juvenil sobre televisão. Porto Alegre: Movimento, 1993 (3ª ed.).
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ceu”, porque “deu no jornal”, hoje dizemos
que “saiu na TV”, “eu vi na TV” (ou: “saiu no
Youtube”). Para o bem ou para o mal, é ali,
na tela da TV, que encontramos tematizadas
histórias fictícias ou fatos ditos “reais”, os
quais pautam nossas conversas e inclusive
nossas opiniões e juízos. Obviamente, isso
não é tudo. Para quem como eu já trabalhou
numa emissora educativa, do Governo Fede-
ral, é evidente que há vários problemas na
TV brasileira, a começar pela concentração e
centralização das grandes emissoras, o que
provoca uma enorme padronização de mo-
dos de vida, de consumo e de relação com
o mundo. Quando assistimos a programas
alternativos, de emissoras locais ou de tevês
educativas e culturais, podemos constatar
a real possibilidade de termos acesso a no-
vas linguagens, a abertura de espaços a vo-
zes diversas, além de outros usos do tempo,
em telejornais, documentários, reportagens
e também programas de ficção; ao mesmo
tempo, constatamos a força das grandes
emissoras e seus modos de narrar a vida
brasileira (e de outros pontos do planeta),
no sentido de também padronizar a própria
maneira de fazer televisão.
Gosto de insistir na afirmação de que esse
espaço, das mídias, e particularmente da TV,
não é algo “fora” de nós, da família, da escola
e de outros espaços institucionais. Trata-se,
na TV, de narrativas que nos mostram como
passamos a compreender de outro modo a
velocidade do tempo, das informações, da
comunicação com o outro, das próprias
relações interpessoais, dos modos de ler e
escrever, e assim por diante. E não é somen-
te o tema da velocidade que ganha outros
contornos e marca nossas vidas com a TV:
profundas alterações podem ser observadas
nas concepções que passamos a ter a respei-
to de ser criança, adolescente, jovem, adul-
to; na maneira como olhamos para o nosso
corpo e para o corpo dos outros e como os
julgamos; nas práticas de consumo, cotidia-
nas, em que quase sempre o bem que de-
sejamos ou que adquirimos existe para nós
não só como objeto de uso, mas principal-
mente como uma imagem que nos fascina e
que “faz algo” conosco. Tudo isso tem a ver
com novas formas de construir narrativas e
também subjetividades em nosso tempo.
As pesquisas que tenho feito nos últimos
anos, na Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul (UFRGS), estão focadas na força
das imagens audiovisuais, da Internet, da
TV e particularmente do cinema. Meus es-
tudos preocupam-se em falar com e dos
jovens que ingressam nos Cursos de Peda-
gogia, e que serão futuros professores. Per-
gunto: em que medida eles efetivamente
têm suas experiências com a TV e o cinema?
Que narrativas interessam a eles? Como es-
colhem o que veem? E que relação fazem
entre as imagens da TV e do cinema e seu
futuro trabalho como professores? Minha
hipótese é que as imagens e histórias do ci-
nema (e da TV) podem ampliar o repertório
40
desses estudantes, na medida em que elas
são fruídas, experimentadas esteticamente,
e também na medida em que são pensa-
das. Pensar sobre TV e cinema não significa
perder o prazer de ver e ouvir as histórias.
Pelo contrário, quanto mais sabemos sobre
o que vemos, mais podemos aproveitar as
escolhas dos roteiristas e dos diretores, dos
atores e de todos os criadores dessas nar-
rativas.
Vejo como fundamentais a abertura e a
ampliação dos repertórios dos professores,
para que não se fixem sempre nos mesmos
esquemas narrativos da TV e do cinema.
Penso que existem
modos de contar
histó rias, nos meios
de comunicação,
os quais se afastam
dos esquemas sim-
plistas desses filmes
e programas de TV,
feitos nos moldes das “narrativas fáceis”,
aquelas histórias que não nos questionam,
que não nos fazem pensar, que apenas nos
“embalam” – como é o caso de tantas co-
médias românticas ou tantos “filmes de
ação”, em geral bastante aplaudidos pelos
públicos de todas as idades e condições so-
ciais. Podem até ser bem feitos, e não há
mal algum que sejam apreciados. Mas in-
sisto na necessidade de ir além, de ver ou-
tras coisas, outras opções de linguagem,
algo que nos desafia, que nos desacomoda.
TV EDUCATIVA E CULTURAL
VERSUS TV COMERCIAL: A
DIVISÃO AINDA PERSISTE?
Costuma-se escutar que os programas das
tevês educativas são pesados ou até “cha-
tos”, em comparação aos shows de imagens
de uma grande emissora comercial. Penso
que essa afirmação, como tantas outras so-
bre a comunicação chamada “de massa”,
precisa ser reavaliada. Certamente, no auge
da TV comercial do Brasil, nos anos 1970-80,
ficava bastante difícil comparar um progra-
ma feito com todos os recursos tecnológi-
cos e financeiros, com um trabalho quase
artesanal, realizado
numa emissora pú-
blica. Vivi na carne
essa experiência,
nos anos 1980, na
TVE do Rio de Janei-
ro. Porém, também
acompanhei estudos
de recepção, como o da pesquisa acima re-
ferida, que me mostravam o quanto os pro-
gramas educativos eram também recebidos
com entusiasmo por diferentes públicos.
Basta lembrar o conhecido Canta Conto
(realizado pela TVE do Rio, em 1986), apre-
sentado pela criadora Bia Bedran, em que se
contavam histórias da literatura infantil e se
fazia música ao vivo para crianças. A qua-
lidade daqueles programas era inquestioná-
vel, e não tinha comparação com os progra-
mas de auditório então de grande sucesso
Pensar sobre TV e cinema
não significa perder o
prazer de ver e ouvir as
histórias.
41
nas redes comerciais, como os programas
de Xuxa, Angélica, Mara Maravilha e tantas
outras apresentadoras.
Já ali, naquele momento, víamos que havia
uma óbvia diferença de utilização de recur-
sos técnicos, mas que atingia profundamen-
te as crianças (e não só elas – no caso do
Canta Conto). Talvez a simplicidade da lin-
guagem, a fineza do tratamento conferido
ao público infantil, a qualidade das histórias
narradas – tudo isso estivesse tocando as
crianças, mesmo que elas, na mesma época,
encontrassem ale-
gria e diversão nos
famosos programas
de auditório comer-
ciais. Estou falando
aqui da necessidade
de relativizar a crí-
tica que separa em
dois polos opostos a
TV educativa e a TV
comercial. Da mesma forma, falo da impor-
tância fundamental de ampliar repertórios;
insisto em que a criança (e os adultos tam-
bém) seja apresentada a diferentes modos
de contar histórias pela TV.
Lembro, para exemplificar, que programas
de entrevistas, tão mais fáceis de gravar e
editar, e que eram a base das TVs educati-
vas, passaram também a ter forte presença
nas programações de TV a cabo, no decorrer
da história da televisão brasileira (e interna-
cional). A palavra não cortada dos entrevis-
tados (própria das TVs educativas) foi aos
poucos sendo considerada um valor a ser
preservado, no âmbito das outras redes de
TV. Obviamente, há diferença entre entrevis-
tados: a palavra não cortada de uma poeta
como Adélia Prado, ou de um compositor
como Chico Buarque, ou ainda de um jovem
ou uma professora (seja ela de uma cidade
como São Paulo, seja ela do interior mais
recôndito do Brasil), muitas vezes chega
mais fortemente ao público do que um belo
show, todo fragmen-
tado, apresentado
como um enlouque-
cido clipe.
Essas diferenças de
linguagem é que
precisam ser pensa-
das quando se fala
em TV e educação.
Penso o quanto é
importante multiplicar as formas de estudar
a TV, de usufruir dela, sem maniqueísmos e
sem toscas polarizações. Pode-se, por exem-
plo, fazer pesquisas com adolescentes e
crianças, sobre um programa de TV que eles
apreciam, a partir de vários pontos de vista
diferentes, sempre com as devidas adapta-
ções, conforme a faixa etária e a condição
social dos alunos: a) expor os argumentos
principais da história contada; b) selecionar
os personagens mais marcantes e relacioná-
los a questões da vida pessoal ou às memó-
Penso o quanto é
importante multiplicar
as formas de estudar a
TV, de usufruir dela, sem
maniqueísmos e sem toscas
polarizações.
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rias de cada um; c) comparar as vivências
dos personagens e as suas próprias histórias,
mostrando as diferenças e aproximações; d)
fazer uma relação dos melhores momentos
da narrativa, destacando recursos de lingua-
gem (diálogos, cenários, figurino, cortes,
ângulos da câmera, sonorização) que valo-
rizaram (ou não) aquela narrativa; e) exerci-
tar a imaginação, propondo outras soluções
para os impasses vividos pelos personagens
e justificando as escolhas feitas; f) procurar
na Internet notícias sobre aquele programa
e discutir sobre a importância daquelas in-
formações, sobre o sentido delas na comu-
nicação com o espectador.
Essa pequena mostra de questões que po-
dem ser o ponto de partida de um estudo da
TV com estudantes de Educação Básica já re-
vela o quanto há de possibilidades de traba-
lho com a TV na sala de aula. Com isso quero
reafirmar a relevância de nos abrirmos para
o uso das imagens nas práticas pedagógicas
cotidianas, para além daquilo que ficou co-
nhecido como “aplicação” da TV, como se
ela servisse apenas para ilustrar conteúdos
ou para nos passar lições moralizantes. Cer-
tamente há usos da linguagem do vídeo e
da TV, também da Internet, para esclarecer
melhor os alunos sobre um certo conteú-
do; também é correto afirmar que podemos
usar a TV para pensar valores e modos mais
democráticos e humanos de viver as nossas
vidas. Mas acrescento a relevância de tam-
bém investigar, com professores, crianças e
jovens, a especificidade da linguagem audio-
visual, os recursos usados pelos criadores, o
tempo dos diálogos, as escolhas de cenário
e de temáticas, a performance dos atores e
atrizes, a trilha sonora, e assim por diante.
Se esses elementos também forem pensa-
dos, certamente conseguiremos a formação
de públicos mais críticos, de crianças com
uma abertura a novos repertórios, e a edu-
cação dos próprios docentes para tipos de
linguagem que não se reduzem à narrativa
de uma história ou ao chamado”conteúdo”
de um filme ou de um programa de TV.
VIDAS PÚBLICAS E PRIVADAS
NA TV: UM DESAFIO AOS
EDUCADORES E AO
PENSAMENTO DEMOCRÁTICO
In the future everybody will be world-famous
for 15 minutes. A frase do artista pop norte-
americano Andy Warhol, nos anos 1960, pre-
nunciava a possibilidade de um dia simples
mortais terem seus breves minutos de fama:
num telejornal, num programa de auditó-
rio, num debate, num comercial, num talk
show17. Os quinze minutos de Warhol, a
meu ver, nos falam da enorme transforma-
ção que experimentamos no que se refere à
relação entre os espaços público e privado,
17 Discuto esse tema em vários artigos, especialmente no livro Televisão & Educação. Fruir e Pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2006 (3ª ed.).
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especialmente com a presença da TV em
nossas vidas. Hoje, todos sabemos “estar no
espaço público” muitas vezes significa estar
na mídia, é estar na tela da TV, estar nas re-
des digitais, como se assim pudéssemos per-
tencer a uma ampla “comunidade”, que nos
acolhe tal qual uma grande “mãe cultural”.
A nós, educadores, interessa não apenas
fazer essa constatação; interessa sobretu-
do indagar: de que modo estamos nós na
mídia? Talvez o excesso de imagens de nós
mesmos no “espaço público” da TV – fato
que agora ganha espaço formidável nos si-
tes de relacionamento da Internet, como
o Facebook, o Orkut, entre tantos outros –
seja mesmo um fenômeno do nosso tempo.
Temos aí a exibição do que é mais pessoal,
privado e cotidiano, como se pudéssemos
colocar sob as luzes e diante das câmeras
de TV e dos computadores do mundo todo a
verdade mais íntima do ser humano, e nos
olhar neles, insistentemente. Os tais quinze
minutos de fama chegaram de verdade, mas
é certo que têm suas regras. Uma delas é
a invasão da intimidade, o olho curioso das
câmeras em direção ao que, até pouco tem-
po, permanecia ou deveria permanecer re-
servado a muito poucos, ou somente a cada
um de nós, entre quatro paredes. O exemplo
do famoso programa Big Brother comprova
bem essa faceta da cultura em que vivemos.
Há nesse aspecto uma discussão política im-
portante a ser feita, e que não podemos per-
der de vista. Intimidade na TV e na Internet
não é um tema inocente. Há questões políti-
cas em jogo também. Quando, em 2009, fo-
ram questionadas as eleições presidenciais
no Irã, o primeiro lugar de repressão foi jus-
tamente o espaço da Internet; afinal, como
controlar a difusão de imagens, produzidas
com câmeras sofisticadas ou com modestos
aparelhos de telefone celular? Como contro-
lar a publicação de protestos via Internet?
Recentemente (fevereiro de 2011) em Porto
Alegre, o atropelamento de dezenas de ci-
clistas, numa conhecida rua da capital gaú-
cha, foi gravado com auxílio de um celular, e
“viajou” pelo mundo, denunciando o crime.
Esse também é um fato político: há inva-
são das intimidades, mas há também maior
controle, por parte da população, quanto a
inúmeros problemas e fatos da nossa época,
pela presença de tantas e novas tecnologias
de comunicação e informação.
Penso que políticos, educadores, psicólo-
gos – e tantos outros profissionais – se pre-
ocupam com a TV (e com a Internet, hoje),
justamente pelo fascínio das imagens, pela
captura que suas narrativas fazem de nós,
pessoas de todas as idades e níveis sociais.
Em vista disso, imagino a necessidade de
propostas muito concretas de como intervir
naquilo que nos é transmitido pela TV, para
além daquelas críticas que afastam ainda
mais, especialmente a escola, desse lugar
quase mítico das belas e intocáveis imagens,
ou dos textos, rostos e figuras que, em cir-
culação nas mídias, explicitamente excluem
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inúmeros grupos, milhares e milhões de
rostos, cores, diferenças brasileiras. Quan-
do insistimos em estabelecer relações entre
cultura, mídia e produção de sujeitos, na re-
alidade estamos tratando de complexas lu-
tas de poder, em nosso tempo.
Em outras palavras: cada vez mais, hoje, es-
tão em jogo na sociedade lutas simbólicas,
lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela
visibilidade de imagens, e que estão associa-
das a determinados grupos, a determinadas
causas, a determina-
das ações políticas.
O trabalho de um
programa como Sal-
to para o Futuro ca-
minha justamente
nessa direção: “em-
poderar-nos”, con-
ferir mais poder aos
educadores e aos es-
tudantes, no sentido
de estudar e pensar a complexidade de todas
essas narrativas audiovisuais, olhando-as e
discutindo-as dos mais diferenciados pontos
de vista, a fim de nos esclarecer e permitir
que cresçamos como cidadãos, donos de voz
e posicionamento crítico, e ainda como pes-
soas que ampliam seus domínios quanto a
linguagens e propostas estéticas diferencia-
das.
Vale a pena reforçar esta ideia: quando fala-
mos de TV e da relação entre TV e educação,
estamos falando sobretudo em relações de
poder e em estratégias de resistência. Por
exemplo: a mídia, especialmente a TV, tem
insistido em “educar” os adolescentes, em
dizer a eles o que fazer com seus corpos,
com sua sexualidade, com sua vida política,
e assim por diante. Há um imperativo, para
as meninas, de que seus corpos sejam belos,
de que seus cabelos sejam lisos, de que elas
sempre estejam prontas a satisfazer o dese-
jo do homem. É preciso sublinhar que não
é só a TV que produz esses discursos; eles
circulam por dife-
rentes lugares, e os
meios de comunica-
ção os transformam
a seu jeito, produ-
zindo outras enun-
ciações, nas novelas,
nos reality shows e
telejornais. Se esse
é um fato, e um fato
político, também é
verdade que não somos completamente as-
sujeitados ou dominados por esses meios e
seus produtos. Temos condições (que nos
são dadas, sobretudo, por ações educacio-
nais) de olhar para tudo isso e pensar o que
nos sucede, operar sobre essas construções
narrativas, e tomarmos posições.
Considerando tudo o que foi dito até aqui,
insisto em que é preciso não só fruir mas
pensar a TV: ir além da TV, pensar sobre o
que ela nos movimenta a ver e sentir, e se-
Vale a pena reforçar esta
ideia: quando falamos de
TV e da relação entre TV e
educação, estamos falando
sobretudo em relações de
poder e em estratégias de
resistência.
45
guir adiante. Oferecer aos mais jovens ou-
tras possibilidades de encontro com bons
materiais audiovisuais, oferecidos pela pró-
pria TV; mostrar que há uma beleza de cria-
ção ali também; observar como um tipo de
linguagem, que é do nosso tempo, fala de
coisas tão importantes como a vida e a mor-
te, os sonhos, os desejos mais profundos do
humano; e como, por outro lado, muitas ve-
zes isso não está presente nas narrativas da
mídia, concentradas no superficial, no sen-
sacionalismo, no espetáculo das vidas, mui-
tas vezes vidas cheias de violência e pobreza.
“Viver é perigoso”, já nos dizia Guimarães
Rosa. Penso que um dos perigos do nosso
tempo é este: esquecer que a TV tem força
e presença em nossas vidas, não discutir a
respeito do que ela nos mostra e cria para
nós, acreditar que a televisão está aí, sim-
plesmente, sem deixar suas marcas. Não se
trata disso, pois, em primeiro lugar, o que
querem as emissoras não é necessariamente
nem “naturalmente” o que querem os dife-
rentes grupos sociais. Há aproximações, há
encontros, mas há também divergências e
posições bem diversas18. Por essa razão, pre-
cisamos criar mecanismos, na sociedade ci-
vil, para exigir uma TV melhor, mais criativa,
mais respeitosa conosco, com as maiorias
e as minorias deste país. Exigir qualidade (e
pensar sobre o que nos é mostrado) não é
estar alinhado com o pensamento totalizan-
te e danoso, como o das práticas de censu-
ra; é, ao contrário, lutar por um direito le-
gítimo. Pensar a TV, como faz o Salto para
o Futuro, é operar em direção a uma luta
que não pode enfraquecer: a luta por uma
educação que efetivamente considere a to-
talidade da população; e essa luta tem a ver
com a necessária resistência aos atos indivi-
dualistas e narcisistas de nosso tempo, em
favor de atitudes cotidianas calcadas num
pensamento genuinamente democrático.
18 Fiz referência a essa questão no artigo “A TV como prática narrativa de nosso tempo”, publicada pelo SESC de São Paulo na revista “E” , a propósito dos 60 anos da TV brasileira. Alguns argumentos aqui apresentados coincidem com o artigo, que está disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edição_Id=389&Artigo_ID=5988&IDCategoria=6900&reftype=2 (acesso em 7 de março de 2011).
46
1.4. o SAlTo PARA o FuTuRo DA ARTe NA eDucAÇÃo
Ana Mae Barbosa19
O programa Salto para o Futuro desempe-
nhou um papel importantíssimo na pós-mo-
dernização da Educação no Brasil.
Uma das coisas que me entusiasmou desde
o início do programa Salto para o Futuro
foi a importância dada à Arte em igualdade
com as outras disciplinas .
Quando me convidaram20 para organizar
cinco programas sobre o Ensino das Artes
Visuais, já haviam sido feitos vários progra-
mas sobre o tema, em torno principalmente
dos Parâmetros Curriculares. Nunca fui en-
tusiasta de currículos nacionais, invenção
da Inglaterra de Margaret Thatcher. A an-
siedade por homogeneização da educação
só se justifica como recurso para preparar
estudantes para testes que vão garantir uma
boa classificação do país no ranking inter-
nacional. Para mim, este não é o objetivo da
educação num país democrático e multicul-
19 Mestre em Arte Educação - Southern Connecticut State College (1974); doutora em Humanistic Education - Boston University (1978). Professora Titular aposentada da ECA-USP, atuando atualmente na Pós-graduação, linha de pesquisa em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Núcleo de Cultura e Extensão em Promoção da Arte na Educação.
20 O convite foi feito por Rosa Helena Mendonça, supervisora pedagógica do Salto para o Futuro (TV Escola), e pela então gerente da educação da TVE, Marcia Stein (Feldman).
tural. Portanto, não quis submeter o dese-
nho dos programas aos PCN.
Na minha avaliação, a função dos progra-
mas era estender o campo de referências da
Arte para além dos muros das escolas e mu-
seus. Centrei na ideia de Arte como Cultura e
como campo estendido para outras áreas. O
programa que me deu as bases gerais para os
outros quatro foi aquele em que abordamos
a Interculturalidade e a Interdisciplinaridade,
para o qual convidei especialistas ideologica-
mente, metodologicamente e vivencialmente
democráticos: Ivone Richter, falando sobre a
Interculturalidade em geral; Fernando Azeve-
do, sobre a Multiculturalidade funcional, isto
é, a inclusão dos deficientes físicos e diferen-
tes mentais na escola comum, e Ana Amália
Barbosa sobre Interdisciplinaridade. Dois anos
depois, Ana Amália, que é minha filha, iria de-
pender vitalmente dos princípios de inclusão
que Fernando defendeu, pois teve um AVC de
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tronco cerebral que a deixou tetraplégica, sem
falar e sem comer, mas com a cognição e a me-
mória intactas. O Hospital Sarah, de Brasília,
a 're+incluiu' na vida e a devolveu aos estudos
universitários, dando-lhe acesso ao computa-
dor. Em 2010, Ana Amália e Fernando Azevedo
escreveram para a Licenciatura a Distância da
UFG, a convite de Leda Guimarães, um texto
sobre arte e inclusão. A parceria dos dois co-
meçou no Salto para o Futuro.
O módulo sobre Interculturalidade e Inter-
disciplinaridade foi apresentado à equipe do
programa como um protótipo e como eixo
central.
Houve uma tal identificação de nossas ideias
sobre Educação e Arte que a equipe me deu
'carta branca' para escolher os outros temas e
convidados. Foram feitas apenas algumas su-
gestões para modificação do meu texto, que
seria enviado para as/os catorze participantes
a serem entrevistadas/os nos programas. As
modificações tinham a ver, principalmente,
com algumas ênfases críticas às quais me dou
ao luxo, de vez em quando, para expressar mi-
nhas indignações sociais. Mas elas tinham ra-
zão quanto à necessidade de maior acolhimen-
to do público e incorporei as sugestões.
As perguntas que elas queriam ver respondi-
das eram estas:
1 – Arte e educação são duas grandes áreas
de conhecimento. Articulações entre essas
duas áreas configuram o campo da arte-edu-
cação. Que princípios e objetivos orientam a
‘arte-educação’ na contemporaneidade?
2 – Espera-se que a escola prepare os(as)
alunos(as) para conviver em sociedade e uti-
lizar, de maneira minimamente autônoma,
conhecimentos de disciplinas, tais como
Matemática, Geografia, Ciências e Língua
Portuguesa. Pensando no ensino de arte,
quais são estes conhecimentos e de que ma-
neira eles servem ao(à) aluno(a)?
3 – O ensino de arte na escola oferece alguns
desafios. Dentre eles, dois chamam a aten-
ção e merecem ser comentados. São eles: a)
a escola ‘ensina’ alguém a se tornar artista?
b) de que maneira os processos de aprender
e ensinar arte ‘combinam’ com as limitações
que o currículo escolar estabelece (discipli-
nas, horário, regras de comportamento)?
4 – Em relação às outras disciplinas do cur-
rículo escolar, que especificidades caracteri-
zam o ensino de arte na escola? Há alguma
exigência ou necessidade especial para de-
senvolver este ensino?
Para determinar os temas a serem discutidos,
aproveitei dois cursos para professores de
Arte que ministrei, um em Minas Gerais (PUC-
PREPES) e outro em São Paulo (NACE-NUPAE-
USP) e inquiri os professores. As perguntas
foram formuladas nas seguintes direções:
Como as mudanças no ensino/aprendizagem
48
da Arte estão sendo percebidas pelos profes-
sores, como agentes dessas mudanças? Que
mudanças são essas? Quais aspectos dessas
mudanças são mais problemáticos, pouco
entendíveis e mais difíceis de implementar?
Quais as necessidades dos professores?
As respostas coincidentes nos dois grupos
foram:
1- A mudança mais evidente era conceitu-
ar a Arte/Educação como Expressão e Cul-
tura. Estes foram o
princípio e o obje-
tivo identificados
como orientadores
da arte/educação na
contemporaneidade,
nos anos 2000.
2- Outra dificuldade
para eles era a lei-
tura de imagens, base do conhecimento da
Arte como Cultura e como exercício crítico a
ser levado a efeito também nas imagens do
cotidiano. Para eles, era este o conhecimen-
to básico a ser desenvolvido pela Arte como
disciplina no Currículo.
3- Uma das necessidades apontadas foi a
melhoria da formação de professores, o res-
peito ao contexto em que eles se formam, e
a importância de relacionar teo ria e prática.
4- Por último, apontaram unanimemente
a necessidade de aprenderem como usar o
computador no ensino da Arte.
As respostas dos professores e as perguntas
propostas pela equipe do Salto para o Fu-
turo determinaram minhas prioridades e os
temas que foram discutidos.
Temas e ementas dos programas da série
PGM 1 - TRANSFORMAÇÕES NO
ENSINO DA ARTE
Arte-Educação, Arte/
Educação, Arte Edu-
cação, Educação Ar-
tística, Educação atra-
vés da Arte, Ensino da
Arte ou Ensino/Apren-
dizagem da Arte, Arte,
Artes Plásticas, Artes
Visuais, etc.: concei-
tos associados às dife-
rentes terminologias e sua trajetória histórica.
O modernismo e a contemporaneidade ou pós-
modernismo. Arte como expressão, subjetivi-
dade e como cultura.
Participantes:
Dra. Irene Tourinho (GO) – Professora do
Departamento de Artes Visuais da Universi-
dade de Goiás; Coordenadora do mestrado
em Cultura Visual.
Dra. Lucimar Bello Frange (ES) – Artista Plás-
Como as mudanças no
ensino/aprendizagem da
Arte estão sendo percebidas
pelos professores, como
agentes dessas mudanças?
Que mudanças são essas?
49
tica; Professora aposentada da Universida-
de de Uberlândia; Autora do livro Por que se
esconde a violeta? (1995)
Dra. Miriam Celeste Martins (SP) – Profes-
sora aposentada da Universidade do Esta-
do de São Paulo (UNESP); Atualmente, pro-
fessora da Pós-Graduação na Universidade
Mackenzie.
PGM 2 - CAMINHOS METODOLÓ-GICOS: LEITURAS DA IMAGEM
As propostas metodológicas contemporâ-
neas: Critical Studies, CBAE, Arts Propel,
Proposta Triangular. A leitura da obra e do
campo de sentido da Arte. Etapas de com-
preensão da obra de arte ou como crianças
e adultos leem a obra de arte e desenvolvem
sua capacidade de entendimento. A influên-
cia do cinema, da televisão e a Estética do
Cotidiano: o rompimento de barreiras entre
o erudito e o popular, a não hierarquização
entre culturas.
Participantes:
Dra. Maria Christina de Souza Rizzi (SP) –
Professora do Departamento de Artes Plásti-
cas - USP. Trabalhou na Pinacoteca do Estado
de São Paulo, no Museu da Casa Brasileira,
no Museu de Arte Contemporânea da USP e
no MAE/USP.
Dra. Analice Dutra Pillar (RGS) – Professora
da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, onde coor-
dena a Linha de Pesquisa em Artes da Pós-
Graduação em Educação. Autora de vários
livros, entre eles: O Vídeo e a Metodologia
Triangular (1991); Desenho e construção de co-
nhecimento na criança (1996); A educação do
olhar (1999).
Dra. Ana Mae Barbosa (SP) – Professora Ti-
tular aposentada da ECA-USP, atuando atual-
mente na Pós-graduação, linha de pesquisa
em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Nú-
cleo de Cultura e Extensão em Promoção da
Arte na Educação; autora de Tópicos Utópi-
cos (1998); Arte-Educação: leitura no subsolo
(1999); A imagem no ensino da Arte (1997);
Abordagem Triangular no Ensino das Artes e
Culturas Visuais (2010) (Org. com Fernanda
P. Cunha).
PGM 3 - INTERCULTURALIDADE E
INTERDISCIPLINARIDADE
Conceitos e experiências bem sucedidas co-
locando lado a lado o código erudito, o popu-
lar e os especiais fazeres de mulheres donas
de casa, estabelecendo-se uma ponte entre a
escola e seu entorno, e associando o artista
que vive na comunidade com o artista inter-
nacional. Experiências interdisciplinares de
ensinar Inglês e Arte, ao mesmo tempo, e de
tomar as outras disciplinas como base con-
ceitual para as Artes. A multiculturalidade
como inclusão.
50
Participantes:
Dra. Ivone Richter (RGS) – Professora apo-
sentada da Universidade Federal de Santa
Maria, foi presidente da Federação de Arte
Educadores do Brasil. Autora do livro Inter-
culturalidade e estética do cotidiano no ensino
das artes visuais (2003).
Ana Amália Barbosa (SP) – artista plástica,
autora do livro O ensino de Artes e de Inglês:
uma experiência interdisciplinar (2007), atual-
mente doutoranda da USP.
Fernando Azevedo (PE) – Professor e Coor-
denador de Arte da Secretaria de Estado da
Educação de Pernambuco, mestrando, co-
autor com Fábio José Rodrigues da Costa de
Ensino da Arte: entrelaces (1999).
PGM 4 - FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE ARTE
Situação atual dos Cursos de Licenciatura;
formação continuada; como deve ser a for-
mação teórica e prática, como ensinar a en-
sinar a aprender; publicações; colaboração
de museus e de outras instituições; onde
encontrar os cursos adequados; o professor
generalista (1a a 4a séries) e o especialista
(6a a 9a séries).
Participantes:
Rejane Coutinho (PE/SP) - Professora da Uni-
versidade do Estado de São Paulo (UNESP).
Escreveu com Ana Mae Barbosa e Heloisa
Margarido Sales o livro Artes Visuais: da ex-
posição à sala de aula (2005). Organizadora
com Ana Mae Barbosa do livro Arte/Educa-
ção como mediação cultural e social (2009).
Ana Del Tabor (PA) – Professora da Univer-
sidade Federal do Pará e da Universidade da
Amazônia. Tem mestrado e coordena a Li-
cenciatura em Artes Visuais da UNAMA. Foi
presidente da FAEB.
Dra. Regina Machado (SP) - Professora apo-
sentada da Universidade de São Paulo, con-
tadora de estórias; autora do livro A formiga
Aurélia e outros jeitos de ver o mundo (1998)
e Acordais. Fundamentos teórico-poéticos da
Arte de contar história (2004).
PGM 5 - O COMPUTADOR
E OUTRAS TECNOLOGIAS
CONTEMPORÂNEAS NO ENSINO
DA ARTE
O acesso e a manipulação da imagem. A
Arte por computador, integrações percep-
tivas. Diferentes possibilidades de leituras,
desconstruções e criação. CDRom, Internet,
sites, comunicação e informação. O exercí-
cio crítico necessário para tomar decisões
sobre o que escolher e priorizar. A convivên-
cia com outros meios eletrônicos e com os
tradicionais: do lápis ao mouse.
Participantes:
Dra. Lúcia Pimentel (MG) – Professora da
51
Universidade Federal de Minas Gerais (Esco-
la de Belas Artes). Publicou na Inglaterra o
livro sobre Arte Educação e Computador, em
colaboração com os professores Pete Wor-
rall e Tom Davies: Electric Studio (2000); no
Brasil publicou, com Antônio Claret Santos,
o livro e CDRom Estudando as cores: Intro-
dução ao estudo da Teoria da Cor. Software
Didático (1996) e Limites em Expansão (1999);
Coordenadora da Coleção Arte & Ensino da
Editora C/ARTE.
Adriana Portella (RJ). Arte/Educadora com
especialização em Educação com Aplicação
da Informática pela UFRJ. Coordenadora de
projetos em Kidlink - Portuguese. Consulto-
ra da Multirio no Projeto Geração Internet.
Coordenadora do site Estudio@Web e parti-
cipante do Grupo Educar na Internet.
Dra. Tania Calegaro (SP). Desde 1993 vem
pesquisando o uso das novas tecnologias
para o ensino/aprendizagem da Arte. Pro-
fessora universitária e do Ensino Médio em
instituições públicas e privadas de São Pau-
lo. Assessora do Núcleo de Comunicação e
Educação (NCE) da ECA/USP.
Estes programas do Salto para o Futuro,
com o título “Arte na Escola”, foram ao ar
em abril de 2000. Até 2006, cópias em DVD
foram muito usadas pelos professores que
as reproduziam para seus colegas.
Mas, na época, o Salto para o Futuro não
tinha verba suficiente e os equipamentos
não eram atualizados, nem substituídos. Vi-
víamos numa fase em que o governo que-
ria que a educação no Brasil superasse os
índices do Haiti, como na canção de Caeta-
no Veloso, mas não queria gastar dinheiro.
Hoje, as universidades federais equipadas,
com número bom de professores, oferecem
cursos noturnos para os trabalhadores, ten-
do-se ainda uma verba, inimaginável naque-
le tempo, para a tão necessária educação a
distância.
Em 2000, a equipe do Salto para o Futuro tra-
balhava com muita garra e imaginação para
superar a falta de dinheiro. Sugeri vários lu-
gares de ensino de Arte para serem filmados,
como o Instituto Capibaribe, no Recife, cria-
do nos anos 1950 por Paulo Freire, Elza Freire
e Raquel Crasto, que tem sempre uma equipe
excelente de Arte/Educadores. Em 2000, ensi-
navam lá Fátima Serrano e Patrícia Barreto.
Recomendei também o Colégio Pedro II, no
Rio de Janeiro, especialmente as aulas de Elo-
ísa Saboia, e o Curso de Aperfeiçoamento de
Professores de Arte do Núcleo de Cultura e
Extensão em Promoção da Arte na Educação
da Escola de Comunicações e Artes da Uni-
versidade de São Paulo. Esse Núcleo hoje não
funciona mais, porém seus cursos foram alvo
de pesquisa para a tese de doutorado de Fa-
bio Rodrigues, na Espanha. Hoje Fábio dirige
a Faculdade de Artes Violeta Arraes da Uni-
versidade do Cariri. Aliás, é bom lembrar que
a maioria dos especialistas que participaram
52
dos programas ocupa hoje a liderança do en-
sino da Arte nas universidades brasileiras.
Por falta de verba, nada disso pôde ser fil-
mado, mas a equipe do Salto para o Futuro
supriu as lacunas com imagens do arquivo,
algumas excepcionalmente bem escolhidas,
como o foram as cenas do filme de Kurosa-
wa lendo, comemorativamente, Van Gogh.
O vídeo de Cao Hamburger sobre a exposição
“O labirinto da Moda”, de Gláucia Amaral,
também não pôde ser exibido como objeto
de análise, por não ter havido tempo hábil
para a concessão de direitos de exibição.
A reação dos professores nos telepostos foi
muito participativa. Eles nos bombardearam
de perguntas e saí da experiência querendo
escrever um livro respondendo às pergun-
tas. Mas o tempo passou e, ao reler os textos
que pedi a cada professor participante das
cinco mesas, percebi que, de um modo ou
de outro, haviam respondido à enxurrada de
perguntas que levamos para casa.
Pedi permissão à equipe do programa e com
o material escrito pelos participantes do Sal-
to do Futuro, 15 textos ao todo, publiquei o
livro Inquietações e mudanças no Ensino da
Arte, pela Editora Cortez, lançado em 2002
na Bienal de São Paulo. O livro está na séti-
ma edição.
Agora, dez anos depois dos programas que
organizei sob a orientação da supervisora
pedagógica e da então gerente de Educação
da TVE, são necessários outros programas,
pois a situação do ensino das Artes Visuais
mudou. Em todo os cursos de Pedagogia, há
pelo menos uma disciplina sobre Arte, as li-
cenciaturas em Artes Visuais estão se mul-
tiplicando no modo presencial e atingindo
números incríveis de professores no modo
EAD, as pesquisas para mestrados e douto-
rados se multiplicaram.
Há um vivo debate em todo o mundo sobre
ensino das Artes Visuais, das Culturas Visu-
ais, da Cultura Material, da Comunicação
Visual e do Design Thinking, da História da
Arte, Antropologia, Feminismo, Estudos da
Mulher, Queer Theory, Política Cultural, Es-
tudos Pós-Coloniais, Performance Studies,
Cinema, Estudos de Mídias, Arqueologia,
Arquitetura, Urbanismo, Design etc. Hoje,
tudo isto tem a ver com Arte/Educação.
No Brasil, a relação das Artes Visuais e da
Cultura Visual ou Culturas Visuais, como
prefiro chamar, estava indo muito bem
desde o fim do século XX, com pesquisas e
práticas engajadas desenvolvendo nos alu-
nos a capacidade crítica para a imagem de
qualquer categoria. Pesquisadoras, como
Mariazinha Fusari, Analice Dutra Pilar, Ma-
ria Helena Rossi, Alice Martins, Nilza de
Oliveira, Leda Guimarães, Dulcília Buitoni,
Kathia Castilho, Jociele Lampert, Maria Lu-
cia Bueno vinham desenvolvendo valiosos
53
trabalhos e publicando sobre o campo ex-
pandido da arte para a publicidade, moda,
cinema, design, TV, cultura visual do povo
etc. como reação ao sistema hierárquico
dos valores da arte hegemônica manipula-
da por museus, comunidade de críticos de
elite, mercado etc. Textos sobre Cultura Vi-
sual foram traduzidos em livros como Arte/
Educação: leituras no subsolo e Arte/Educação
Contemporânea, por mim organizados.
Na década de 2000,
multiplicaram-se
os grupos de estu-
dos sobre ensino
da Arte e Cultura
nas universidades,
para o bem e para
o mal. A maioria
destes grupos pra-
tica a democracia e
a inclusão, mas há
outros que estão
sendo usados para
consolidar o poder deste ou daquele dire-
tor ou chefe, que se intitulam sacerdotes do
tema que dizem estudar, praticam uma polí-
tica eurocêntrica, só citam uns aos outros e
seus alunos a eles. Nos livros e revistas que
publicam, os textos são sempre das mesmas
pessoas, o que aniquila minha curiosidade. É
uma situação quase medieval, semelhante à
política de cátedras do passado, com a dife-
rença de que os tais grupos de estudos ma-
nipulam o poder não só na sua universidade,
mas em muitas outras, têm muita verba, que
é distribuída para cooptação de membros
poderosos em seus lugares de trabalho. Fe-
lizmente, este fenômeno é localizável e ain-
da não assolou o país. Espero que se modifi-
quem gradativamente, sem perder a rapidez
de publicação, mas que se pluralizem. Até a
antiga política de cátedra das universidades
se modernizou! Entretanto, criaram a políti-
ca de departamentos, que também virou ins-
trumento de poder. Na USP, na gestão Gol-
denberg (1986-89),
foram criados os
Núcleos de Pesqui-
sa e de Cultura e Ex-
tensão, para ajudar
os professores pro-
dutivos a fugirem
da ditadura dos de-
partamentos, que
foram um sucesso
de democratização
até 1992. Posterior-
mente, atitudes
conservadoras de alguns gestores cercearam
a liberdade que os núcleos davam aos profes-
sores, chegando mesmo a inibir essa autono-
mia. A luta de dominação tem muitas faces,
todas monstruosas.
O Salto para o Futuro colaborou grandemen-
te para a democratização do conhecimento
em nossa sociedade, arriscando-se a con-
vidar pessoas de diferentes posições teóri-
cas e/ou políticas para debaterem temas e
A reação dos professores
nos telepostos foi muito
participativa. Eles nos
bombardearam de perguntas
e saí da experiência
querendo escrever um livro
respondendo às perguntas.
54
ideias. O debate, a discussão, o diálogo são
as melhores armas de combate contra a dis-
criminação, a ignorância e a imposição de
políticas educacionais e culturais.
BIBLIOGRAFIA
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cenciatura em Artes Visuais. Belo Horizonte:
C/ARTE, 1999.
56
1.5. TemAS PolêmIcoS NA lITeRATuRA: o mAl-eSTAR
Nilma Lacerda21
Na poética do mal-estar, identificada na pro-
dução contemporânea para crianças e jovens,
os chamados temas polêmicos, marcados pela
complexidade, tratados sem maniqueísmos
ou reduções simplistas, são exatamente os
que melhor podem ofertar aos leitores infan-
tis e juvenis vias essenciais para responder aos
enigmas da existência. Pretende-se abordar a
ressonância dessa poética na literatura de al-
guns países da América Latina.
I. AO INICIAR A TRAVESSIA
Em 1999, a travessia do Rio São Francisco,
realizada pela autora como parte de um pro-
jeto cultural, ensejou reflexões sobre a ne-
cessária relação entre ética e estética na lite-
ratura que crianças e jovens também podem
ler. As Cartas do São Francisco: conversas com
Rilke à beira do rio (2000) dão prosseguimen-
to à pesquisa iniciada algum tempo antes,
com foco na problematização do mal e na
figuração do mal-estar.
O convite para consultoria à série Temas
Polêmicos em Literatura, do Salto para o Fu-
turo, em 2007, propiciou um contato enri-
quecedor com profissionais do livro e com
professoras de todo o país para discussão
do tema, que enfrentava, em vários espaços,
uma visão restritiva quanto à sua proprie-
dade.
Questões fundamentais da existência atin-
gem crianças e jovens com intensidade se-
melhante à que atinge os adultos, mas os
temas que expressam a angústia frente a
essas questões são considerados polêmicos,
e obras que tratem do mal, da morte, da
violência na escola, da sexualidade, do ho-
moerotismo são, em geral, tidas como ousa-
das, perigosas, inadequadas pelos docentes,
e costumam passar longe da sala de aula.
21 Doutora em Letras, com pós-doutorado em História Cultural. Professora da Faculdade de Educação e do curso de Especialização em literatura infantil e juvenil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora de Manual de Tapeçaria; Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio; Estrela-de-rabo e outras histórias doidas; Pena de Ganso; Sortes de Villamor, dentre outras obras. Consultora da série Temas polêmicos na literatura, do programa Salto para o Futuro, em 2007. O item III do presente trabalho foi apresentado no 32° Congresso Internacional do IBBY, realizado em Santiago de Compostela, de 8 a 12/09/2010, sob o título “Bonecos de pau, girinos e sapos: a poética do mal-estar na ficção para jovens na América Latina”.
57
Sabe-se, contudo, que nelas reside a possibi-
lidade de reconhecer e discutir os enigmas
da existência humana e a problemática das
relações sociais e, ainda, alcançar a constru-
ção de respostas existenciais necessárias aos
projetos pessoais e coletivos.
Literatura é, em primeiro lugar, comunica-
ção, e, respeitados os limites de suas sen-
sibilidades, crianças e jovens precisam ter
acesso a essa experiência de forma integral,
na compreensão da complexidade da condi-
ção humana. Como experiência humana e
estética que propicia o reconhecimento do
que nos faz humanos, os temas vistos como
polêmicos são exatamente os que mais se
ocupam de nossa humanidade e podem
ofertar aos leitores infantis e juvenis vias es-
senciais para a discussão do que os inquieta.
II. O MAL-ESTAR, EM SUA POÉTICA
Os contos e as fábulas que estão na base de
uma literatura voltada para a criança são
construções de caráter e alcance popular,
fruto de muitas vozes anônimas, que foram
deixando seu olhar sobre o mundo em nar-
rativas que assegurassem a vitória do bem e
a derrota do mal. Em um universo no qual
os pobres careciam de toda espécie de bens
e cujo acesso aos benefícios da civilização
era muito remoto, era preciso que as narra-
tivas afirmassem o valor de quem era bom
e heroico, trabalhador e sincero, e que os
ouvintes e leitores encontrassem na inteli-
gência uma arma legítima para quem não
dispunha de poder ou de riquezas.
Nessas narrativas, aquele que é pequeno e
menosprezado é quem vai salvar o grande
e poderoso. Na célebre fábula de La Fontai-
ne, o ratinho pode roer as malhas da rede
que o leão, com toda sua fúria, não conse-
gue romper. No conto de Perrault, o rapaz
que parece prejudicado na partilha dos bens
do pai acaba se casando com a filha do rei,
por artes de um gato que lhe coubera por
herança. Bondade, solidariedade, humildade
são valores premiados; maldade, arrogân-
cia, egoísmo são castigados, como naquela
história em que a irmã boa recebe da fada
o dom de expelir flores e joias ao falar, en-
quanto, ao abrir a boca, a irmã má vai cuspir
cobras e lagartos.
Por meio das narrativas, é moldado um
mundo justo, em que bem e mal ficam se-
parados e, no caráter humano, são partes ir-
reconciliáveis e excludentes. Quem é mau, é
mau; quem é bom, é bom. A divisão confere
aos contos um caráter nitidamente pedagó-
gico, voltado ao exemplo e à correção dos
costumes.
Essa perspectiva vai se alterando, à medida
que acontecem as mudanças na sociedade,
em decorrência das conquistas sociais e
científicas. O surgimento da psicologia, no
final do século XIX, e logo em seguida o ad-
vento da psicanálise vêm mostrar que o ser
humano é uma mistura de bem e mal, par-
58
tes boas e não tão boas. No século XX, estu-
dos de várias naturezas procuram conhecer
melhor o ser humano e conceitos absolutos
de outras épocas mostram-se relativizados.
O ser humano surge como um enigma cons-
tante, mistura de partes que nem sempre
podem ser conhecidas em profundidade;
essas descobertas e estudos terão conside-
rável influência na produção de narrativas.
A literatura para crianças e jovens vê seu ca-
ráter pedagógico se modificar para investir
naquilo que caracteriza a produção literária
para adultos: as perguntas sobre nossa pró-
pria humanidade.
Para Denis Rosenfield, filósofo que formu-
la o conceito de vontade maligna, é impe-
rioso considerar o mal como uma escolha
que produz um tipo de ação na história, e
construir um conceito que “[...] interrogue o
modo mesmo do ser humano”, para ele “[...]
um esboço inacabado, talvez para sempre
incompleto” (ROSENFIELD, 1988, p.150).
A questão do mal, que já ocupara pensado-
res como Georges Bataille, tem na literatura
um dos espaços mais convidativos à discus-
são, pois, sendo comunicação, é nela que
se deve estabelecer um canal fundamental
com o leitor, através do qual se pode acom-
panhar o jogo da transgressão da lei. “A lite-
ratura é o essencial ou não é nada”, defende
Bataille (1989, p.9), na medida em que, sem
compromisso de ordem a criar, é a literatu-
ra que deve acompanhar o homem nos abis-
mos em que mergulha, nos pactos em que
se envolve na desordem do próprio ser.
O mal-estar na cultura, apontado por Sigmund
Freud no ensaio de 1930 (FREUD, 1981), tem-se
confirmado a partir de então, e de forma cada
vez mais incômoda; as casas do homem são to-
madas de assalto, na constatação do pensador
francês Félix Guattari, que propõe, em As Três
Ecologias (1989), a modificação e reinvenção
dos paradigmas da civilização, deslocando-os
da determinação científica para a instalação
no seio da ética e da estética.
Mal-estar, modificação e reinvenção dos pa-
radigmas da civilização estão presentes no
projeto que Monteiro Lobato começa a tra-
çar em 1921, com a publicação de A menina
do narizinho arrebitado, abrindo na literatu-
ra brasileira uma vertente que se empenha
em permitir à criança e ao jovem o acesso
à participação na configuração do mundo,
por meio de uma produção literária ao al-
cance de sua sensibilidade e que não despre-
za sua inteligência.
Investido de um caráter utópico e otimista, o
autor não deixa de reconhecer que apresen-
tar o mundo sem mal às crianças, ou apre-
sentá-lo na perspectiva maniqueísta, é falseá-
lo. Algumas obras na ficção para crianças de
Lobato prestam-se, de forma singular, a essa
análise, em que também se encontra presen-
te um pensamento crítico da realidade uni-
59
versal, expresso em artigos para a imprensa e
em sua correspondência particular.
A chave do tamanho (1942) abre na literatura
brasileira uma linhagem em que o mal-estar
é a tônica narrativa, visando à desestabiliza-
ção do leitor e ao questionamento da reali-
dade, o que implica novos contornos histó-
ricos e sociais.
Décadas mais tarde, ao apontar a direção
de novas vozes em
circulação no Bra-
sil para um públi-
co feito de novos
leitores e uma pla-
teia jovem, Silvia-
no Santiago (1997)
expressa a convic-
ção de que os va-
lores da educação
são determinantes
na constituição
de uma nação, e
o acesso à leitura
literária está entre esses valores. Considera
visionários aqueles que se definem como es-
critores num país como o nosso (SANTIAGO,
2004, p.72), cuja realidade de desigualdade
social e mentiras políticas demanda consci-
ência aguda para transformação.
Para tanto, vale o mal-estar presente nos rei-
nos de Ruth Rocha, nos cotidianos de Ana
Maria Machado, nas imagens de Rui de Oli-
veira, no desconforto existencial dos perso-
nagens de Lygia Bojunga.
III. BONECOS DE PAU, GIRINOS
E SAPOS: MAL-ESTAR NA
AMÉRICA LATINA
A chamada de Silviano Santiago pa ra o Brasil
contemporâneo pode ser estendida à Amé-
rica Latina, esta
parte do continen-
te que não teve a
possibilidade de
tomar as rédeas da
própria ocupação e
colonização de seu
território, como
aconteceu com a
América do Norte.
Dominados pelas
potências euro-
peias do século XV,
fomos condenados
aos vícios e des-
mandos de uma ocupação predatória, pela
qual ainda pagamos o preço.
O parágrafo inicial de uma novela, premia-
da em concurso literário sem especificação
de público leitor, dá o tom que buscamos
acompanhar, neste ensaio22:
Sobre a capa dura do álbum há uma paisa-
A chave do tamanho (1942)
abre na literatura brasileira
uma linhagem em que o mal-
estar é a tônica narrativa,
visando à desestabilização
do leitor e ao questionamento
da realidade, o que implica
novos contornos históricos
e sociais.
22 Obs.: As traduções foram feitas pela autora para este trabalho.
60
gem pintada. Uma montanha com o cume
coberto de neve, a nascente ao pé da monta-
nha, a campina com pastos verdes por onde
corre a água da fonte. Os ramos das árvores
são finos e frios. Ainda não é inverno, e já se
pressente a neve (BADRÁN, 2007, p. 7).
Pressente-se a neve, e ainda não é inverno.
Mas ele está lá, avizinham-se desconforto e
privação. A natureza se recolhe, o corpo re-
clama do sentimento de desazón, esse mal-
estar físico indefinido e sem causa aparente,
e precisa inventar estratégias para sobrevi-
ver, enquanto anseia pelas estações tempe-
radas, pelo verão.
Na América Latina, há muito foram abando-
nadas as estações do bem-estar. As mazelas
e os processos de independência deixaram
sequelas que se fazem sentir até o presente,
marcado pela corrupção, escolaridade defi-
ciente, acesso desigual a serviços públicos
de saúde, problemas estruturais na admi-
nistração pública, tendência ao Estado pa-
ternalista e demagógico, existência de for-
tes grupos oligárquicos no poder, gritantes
mentiras políticas e desigualdades sociais.
A tudo isso se dá, mais ou menos, o verniz
da democracia. Uma sensação constante de
mau pressentimento quanto à precarieda-
de do exercício dos direitos humanos e da
efetiva democracia alimenta expressões es-
téticas de alto vigor nessa parte da América
nomeada latina para atender aos interesses
da nação francesa, contrapondo-se ao impé-
rio norte-americano, de base anglo-saxã (LA-
CERDA, 2010, s/p.).
Na literatura contemporânea que crianças e
jovens também podem ler na América Lati-
na, o mal-estar apresenta-se ao lado de três
outras linhas de força: a poética da identi-
dade, voltada à exploração do eu e às raízes
culturais ou nacionais; a poética da gratui-
dade, em que a palavra é signo opaco a re-
verberar na polissemia; a poética do signo
verbal, com a perspectiva das ficções metali-
terárias e metatextuais – uma tônica na pro-
dução da pós-modernidade. Temos tomado,
em tal produção, o mal-estar como uma das
poéticas mais instigantes e que melhor pos-
sibilitam as relações entre experiência esté-
tica e ética.
El dia de la mudanza (O dia da mudança) do
colombiano Pedro Badrán, cujo fragmen-
to inicial lemos acima, pode ser lido como
retrato da Colômbia em suas falências, pro-
jeto iluminista abortado nas lutas pela in-
dependência do país. Deslizar da condição
social confortável para o limbo da sobrevi-
vência envergonhada é estar abandonado
ao próprio coração do inverno, como mos-
tra a narrativa. O autor possibilita o mergu-
lho radical naquilo que Freud anunciou em
princípios do século XX, quando o progresso
tecnológico prognosticava a felicidade to-
tal para a humanidade. O grão do mal-estar
ameaçava fazer apodrecer o cesto de maçãs.
Grão?
61
Freud nos alerta que “[….] o homem não é
uma criatura terna e necessitada de amor
[….] (e que) o próximo […] representa para ele
[…] um motivo de tentação […] para ocasio-
nar sofrimentos, para martirizá-lo e matá-lo
(FREUD, 1981, p. 3.046).
Questões fundamentais da existência como o
mal, a morte, violência na escola, sexualida-
de, homoerotismo, guerra, suicídio, corrup-
ção costumam apresentar-se como temas
considerados
polêmicos para
a literatura. E
as várias instân-
cias de controle
da leitura cos-
tumam conside-
rar as obras que
os apresentem
como perigosas
e inadequadas
para crianças e
jovens. Mas se
“De todas as palavras do tapete essa era a
de que eu mais gostava: alfanje” (BADRÁN,
2007, p.28).
Censurar esse alfanje, cortar o sabre do
texto (o texto como alfombra) é impedir
ao leitor a residência nos lugares do hu-
mano, tocando o abismo que a cada um
toca. As estações temperadas, o conforto
do verão não costumam ser gratos à lite-
ratura.
Na condição de primeiro autor brasileiro a
conceber um projeto de literatura destinada
às crianças, Monteiro Lobato evidencia ab-
soluta clarividência quanto ao que represen-
ta a literatura, em termos de comunicação
entre autor e leitor, conforme o pensamento
de Georges Bataille (1989, p.10). Na já men-
cionada A chave do tamanho, os personagens
do Sítio do Picapau Amarelo sofrem de for-
ma direta as consequências do conflito no
Velho Mundo, e Dona Benta, a terna avó de-
fensora do humanis-
mo, expressa a um só
tempo a consciência
da humanidade e a
depressão, que tam-
bém o autor confessa
nos escritos pessoais.
Sem maniqueísmos,
arriscando-se a ex-
plorar o humano na
sua complexidade,
Lobato problematiza
o mal-estar. As crian-
ças que leem Lobato e que a ele escrevem (é
um autor de alta interação com seus leito-
res) podem, então, formar-se na consciência
de que “A humanidade forma um corpo só”
(LOBATO, s/d, p.10).
As ditaduras e guerras que varreram o sécu-
lo XX fomentaram na Europa a consciência
crítica e memorialística. Na América Latina,
franquear a memória é tarefa custosa. Como
acreditar que crimes como esses foram co-
Questões fundamentais da
existência como o mal, a
morte, violência na escola,
sexualidade, homoerotismo,
guerra, suicídio, corrupção
costumam apresentar-se
como temas considerados
polêmicos para a literatura.
62
metidos impunemente e por cidadãos de
um país em relação a seus compatriotas?
[…] sequestros, centros clandestinos de
detenção, o extermínio como arma po-
lítica, a impunidade com que os repres-
sores se moviam, atitudes da Igreja, de
alguns funcionários, a forma como se
articulava a repressão em toda América
Latina, documentos, lista de detidos de-
saparecidos, crianças, grávidas e adoles-
centes torturados (BIALET, 2008, p.105-7).
Com Los sapos de la memória (Os sapos da
memória), a argentina Graciela Bialet en-
frenta o mal-estar imprescindível à recons-
trução factual para que a história não seja
um amontoado de versões fraudulentas, e
a identidade não passe de fantasia de car-
naval. Nessa empresa, muitos adultos, a
pretexto de proteger crianças e jovens de
uma realidade cruel, podem acabar borran-
do a memória, encobrindo ou minimizando
a violência social ou de Estado. Los aguje-
ros negros (Os buracos negros), de Yolanda
Reyes, relata a violência na Colômbia, com
o mérito de não simplificar a questão: “ –
[...] Tem trabalhos que não agradam a certas
pessoas. – Que pessoas? Quem era essa gen-
te má, avó? – Não sei – disse –. Não é nada
fácil. Não é como nas histórias” (REYES,
2006, p.39).
A arte não cede à tentação de apontar cul-
pados. A via do maniqueísmo, presente no
entretenimento e nos discursos didáticos, li-
vra-se de conflitos, ao atribuir aos fatos e às
pessoas posições esquemáticas. O mal-estar,
ao contrário, surge da consciência da gama
de variações de caráter e responsabilidade
inerentes a cada indivíduo, frente às varia-
das circunstâncias. O leitor experimenta as-
sim, na experiência estética, a vivência éti-
ca. “– Disseram a você que sou imortal? [...]
“Me salvei porque vomitei os girinos – […]
“Não coma girinos, se você não quer morrer
[...]” (IBAÑEZ, 2008, p.197).
A novela do colombiano Francisco Montaña
Ibañez revolve o leitor, que acompanha per-
plexo e nauseado o trajeto de fome de cin-
co crianças, abandonadas à própria sorte e
fadadas a um desfecho trágico, em face da
omissão dos adultos que as cercam. Uma úl-
tima refeição, feita de uma calda de girinos,
é a causa da morte de todos os irmãos, na
sublimada versão de David, único sobrevi-
vente de um massacre em que o assassino
e também suicida é o irmão mais velho, que
devia obedecer à ordem do pai e manter os
irmãos juntos até que ele voltasse. Mas o
pai não voltou, e a fome os leva a se alimen-
tar de larvas. David, o Imortal, empreende
o longo trajeto de volta a si mesmo ampa-
rado pelos laços de afeto de uma menina,
filha de presos políticos, recolhida à mesma
instituição que ele. Se Ibañez sacode o lei-
tor às raias da injustiça e da irresponsabili-
dade adulta para com as crianças, cumpre
igualmente com o projeto ético de apontar
63
a expectativa do vindouro, irrefreável na li-
teratura cujos receptores privilegiados são
crianças ou jovens, conforme aponto nas
Cartas do São Francisco: conversas com Rilke
à beira do rio (LACERDA, 2003, p.23).
Em tal expectativa, deve-se igualmente abri-
gar a liberdade da experiência radical que o
brasileiro Luiz Raul Machado permite a seu
protagonista em Cartão-postal. Na recusa à
instrumentalização da literatura para mo-
delagem de um
comportamento
de vitrine, o autor
acolhe o desespero
e o silêncio como
manifestações le-
gítimas também
da infância, reco-
nhece a opção do
menino de tornar-
se boneco de pau,
no reverso do tra-
jeto exemplar de
Pinóquio. Da mesma forma que Kronfly,
Machado considera que as crianças não de-
vem ser usadas como “[...] matéria futura,
na qual se julga possível garantir a expulsão
de toda incerteza [...]” (KRONFLY, 2000, p.55).
A poética do mal-estar recebe com dignida-
de as áreas delicadas da mente humana, na
clareza de que não lida com heroísmos ou
esquemas, mas com opções que se abrem
como leque em que nenhum dos extremos é
livre de impurezas. O mal atrai, toca as pes-
soas com seu abraço viscoso, como represen-
tou Lygia Bojunga em O Abraço, e seu contato
pode propiciar a experiência ética, advinda da
inquietação e da comunicação do abismo.
“Não sei por que pressinto que algum dia uma
coisa ruim vai acontecer comigo. [...] não existe
nada mais definitivo e real do que a mudança”
(BADRÁN, 2007, p.69), diz Camila, no subúrbio
bogotano, que recende aos odores de gordura
da fábrica vizinha.
Nos fios de um so-
nho, ela pode reen-
contrar a velha casa,
a condição social de
respeito e abastan-
ça, mas o cenário
e os personagens
estão inteiramen-
te corrompidos e a
casa, tomada pela
derrota e ausência
de saída, é ocupada
por manequins. A única peça a resistir à inexo-
rável decadência, devido à mudança de estado
social, é o velho tapete, sobre o qual, outrora,
o imaginário se tecia, em histórias de coragem
e libertação. Mas é sobre ele que se sentam os
manequins, signo da vida mecânica, imagens
sem subjetividade.
IV. ATUALIDADE E PROSPECÇÕES
Badrán abre sua novela com o pressenti-
O mal atrai, toca as pessoas
com seu abraço viscoso,
como representou Lygia
Bojunga em O Abraço, e seu
contato pode propiciar a
experiência ética, advinda
da inquietação e da
comunicação do abismo.
64
mento da neve, que não caiu ainda, mas que
se pode adivinhar. Ao final, Camila pode adivi-
nhar algo ruim que vai acontecer com ela, pois
é para essa direção que aponta a mudança.
Três anos separam a exibição da série Temas
Polêmicos na Literatura, no programa Salto
para o Futuro, das reflexões de agora, e não
se pode falar em mudança de perspectiva
crítica em relação à produção que estuda-
mos. No recente Congresso do International
Board on Books for Young People (IBBY), rea-
lizado em Santiago de Compostela (2010), es-
pecialistas de todo o mundo não trouxeram
senão um ou dois trabalhos sobre o tema,
sendo um deles parte do presente estudo.
Em curso para professoras regentes de Sala de
Leitura do município do Rio de Janeiro, foi pro-
posta a questão da leitura de Marginal à esquer-
da (2009), de Angela Lago, para alunos do pri-
meiro segmento do curso fundamental. A obra
traz a discussão da violência nos grandes cen-
tros e, apesar de a maioria das professoras es-
tar lotada em escolas de carência material e de
alto nível de insegurança, poucas dentre elas
se aventuraram a dizer que leriam o texto para
seus alunos, pois preferem levar a eles obras
que valorizem a fantasia, de forma a afastá-los
de um cotidiano duro e violento.
Com a instigante pergunta “Que leituras
daremos às crianças deste século?” (CAJUEI-
RO, 2007), as editoras Izabel Aleixo e Danie-
le Cajueiro recomendam a “[...] necessidade
de preparação de professoras e professores
para lidar com as inquietações da literatu-
ra e propõem a presença, em sala de aula,
de temas que abordem as representações
do mal-estar contemporâneo” (idem, p.46),
além de sugerir debates fomentados pelas
instituições públicas sobre a abordagem
de temas polêmicos na literatura infantil e
juvenil, com especial cuidado na formação
dos professores quanto a esse aspecto. Essas
atitudes dariam respaldo às editoras, contri-
buindo para “[...] a legitimação do papel so-
cial que desejam cumprir, sem prejuízo finan-
ceiro e riscos empresariais” (idem, p.49-50).
Se em alguns cursos de especialização em li-
teratura infantil e juvenil podemos constatar
essa preocupação, na maior parte dos cursos
de Letras e de Formação de Professores o as-
sunto sequer entra em pauta, mantendo-se
visões anacrônicas e preconceituosas. Quan-
to à leitura nas famílias, falsos conceitos de
cuidado em relação à criança impedem uma
atitude lúcida e corajosa no trato com a lite-
ratura que as crianças e jovens também leem.
Há muito que fazer ainda para considerar a
inclusão do mal-estar nas leituras de sala de
aula, mais ainda para que a crítica se ocupe
desse tema e as editoras o tomem como op-
ção. A travessia, no entanto, está em curso.
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65
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tora UFMG, 2004.
66
1.6. PoRTuGuêS: um Nome, muITAS líNGuAS
Carlos Alberto Faraco23
A sociedade brasileira, em geral, desconhece
a realidade linguística do País. Há uma im-
pressão generalizada de que o Brasil é um
país monolíngue. O Português é, obviamen-
te, a língua hegemônica. No entanto, isso
não faz do Brasil um país monolíngue. Cen-
tenas de outras línguas são aqui faladas cor-
riqueiramente por cidadãos brasileiros. Nes-
se sentido, a sociedade não tem informação
e consciência do complexo quadro de lín-
guas que a caracteriza e, em consequência,
não dá valor à grande diversidade linguística
do nosso país.
Calcula-se que aqui são faladas perto de 180
diferentes línguas indígenas, dezenas de lín-
guas trazidas para cá pelas comunidades
oriundas da imigração europeia, asiática e
americana, além de remanescentes das lín-
guas africanas trazidas ao tempo da escravi-
dão. Não se pode esquecer também que nas
zonas de fronteiras há populações que se
deslocam de um lado a outro, o que favorece
o contato linguístico constante e a presença
em nosso território de línguas dos países vi-
zinhos: o espanhol, o guarani, o francês, o
inglês, os crioulos da República da Guiana e
da Guiana Francesa, entre outras. Acrescen-
te-se ainda, a todo este conjunto, a língua
das comunidades surdas brasileiras (LIBRAS
- Língua Brasileira de Sinais), já reconhecida
pela Lei n. 10.436/2002.
Por outro lado, o Português que aqui se fala
não é, de modo algum, homogêneo. Há uma
grande diversidade regional e uma grande di-
versidade social. A primeira é relativamente
percebida e reconhecida pela sociedade. É, po-
rém, uma percepção bastante limitada. E essa
limitação decorre, principalmente, de um silen-
ciamento da diversidade regional nos meios de
comunicação social. Ou seja, muito raramente
a efetiva diversidade regional do Português do
Brasil é audível no rádio e na televisão.
Essa pasteurização da pronúncia foi imposta
às transmissões radiofônicas por uma deli-
berada política do Estado Novo (1937-1945).
23 Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas e doutor em Linguística pela University of Salford. Pós-doutorado em Linguística na University of California - EUA.
67
Como sabemos, havia entre os intelectuais
aliados àquele regime político uma preocu-
pação com a unidade do país. Acreditava-se
que a heterogeneidade regional somada ao
Brasil das comunidades oriundas da imigra-
ção constituía uma ameaça à integridade do
país, à unidade e à identidade nacional.
Esses intelectuais perseguiram, então, uma
série de políticas com vistas a homogenei-
zar a sociedade brasileira. Desenvolveram,
entre outras ações, uma política de silencia-
mento das línguas faladas pelas comunida-
des oriundas da imigração (tratadas como
línguas “estrangeiras” e não como línguas
da sociedade brasileira e parte, portanto, de
seu patrimônio cultural), promoveram um
currículo escolar unificado para o ensino
de Língua Portuguesa e estimularam uma
uniformização da pronúncia radiofônica, al-
cançada em especial pelas transmissões da
Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Essa Rádio, criada em 1936, foi estatizada em
1940, tornando-se a voz oficial do Governo
Federal. Foi a primeira estação a alcançar
praticamente todo o território nacional.
Desse modo, foi possível impor um padrão
de pronúncia a toda a rede radiofônica, pa-
drão este desprovido das marcas das dife-
rentes pronúncias regionais. Curiosamente,
embora com as transmissões centralizadas
no Rio de Janeiro, o padrão pasteurizado di-
fundido pela Rádio Nacional eliminou duas
das características mais marcantes da pro-
núncia carioca: o ‘r’ fricativo uvular e a si-
bilante palatalizada (que, de forma impres-
sionista, é percebida como um “chiado”) na
posição de fechamento silábico.
Posteriormente, este padrão radiofônico
passou para as transmissões da televisão.
Desse modo, a diversidade regional do país
não tem, já há setenta anos, espaço nos nos-
sos meios de comunicação social. Só muito
recentemente e com iniciativas ainda mui-
to tímidas é que se começou a quebrar essa
pasteurização histórica.
Resulta daí que boa parte das representações
sociais da diversidade regional do Português
do Brasil é constituída de estereótipos. Para
os sulistas, por exemplo, há uma só pronún-
cia nordestina. Há, nesse sentido, um profun-
do desconhecimento da grande variedade de
pronúncias da Região Nordeste. E o contrário
é também verdadeiro: as muitas distinções de
pronúncia do sul do país são igualmente perce-
bidas de modo estereotipado pelos habitantes
de outras regiões.
Embora percebida basicamente por meio
de estereótipos, a diversidade regional não
é, em geral, estigmatizada no Brasil, salvo
nas situações em que à diferença regional
se agregam outros fatores estigmatizadores.
Assim, por exemplo, as marcas linguísticas
regionais de populações migrantes pobres
costumam ser alvo de estigma, como o fo-
ram as pronúncias dos migrantes nordesti-
nos na cidade de São Paulo. Nesse caso, não
68
é propriamente a pronúncia que sustenta a
estigmatização e o preconceito, mas a pro-
núncia aliada à pobreza.
Se a diversidade regional em si não costu-
ma ser estigmatizada, a diversidade social
do Português é, no Brasil, um poderoso fa-
tor de discriminação negativa. E a sociedade
brasileira, infelizmente, não foi ainda capaz
de desenvolver uma adequada compreensão
desse seu grave problema.
Há uma linha que divide socialmente a po-
pulação brasileira com base no modo de
falar o Português.
Trata-se de uma
situação de extre-
ma complexidade
e que afeta profun-
damente as nossas
relações sociais
perpassadas que
são de gestos de exclusão e de violência sim-
bólica fundados nas diferenças sociolinguís-
ticas. Esse corte sociolinguístico tem suas
raízes na constituição, já no período colo-
nial, de uma sociedade fortemente dividida
econômica, social e culturalmente, cujos
efeitos continuam ainda muito presentes na
conhecida e rígida estratificação da socieda-
de brasileira.
Os estudos iniciais da nossa realidade so-
ciolinguística adotaram uma descrição di-
cotômica que opunha um Português dito
culto a um Português dito popular. Essa di-
cotomia se espalhou pelos discursos sociais
de tal modo que ela é hoje repetida, com
ares de certeza, tanto na mídia quanto na
escola.
Essa descrição dicotômica, no entanto, fal-
seia demais a nossa realidade linguística que
não é assim tão simples. O caminhar dos es-
tudos foi mostrando que precisávamos de
outro modelo e de outras categorias para
uma melhor descrição da nossa 'cara' socio-
linguística.
Essa cara é sufi-
cientemente com-
plexa para ser re-
duzida a cortes
dicotômicos como
Português culto/
Português popular,
ou Português for-
mal/ Português informal. Há muitas varieda-
des cultas e muitas variedades populares. É
preciso, então, tentar apreender essa grada-
ção num contínuo, evitando classificações
dicotômicas.
Também não servem identificações ainda
mais simplistas como Português coloquial =
língua falada; Português culto = língua escri-
ta. E não servem porque existem variedades
cultas faladas e variedades coloquiais escritas.
Bastaria lembrar dois exemplos paradigmáti-
cos: para a língua culta falada, as entrevistas
Há uma linha que divide
socialmente a população
brasileira com base no modo
de falar o Português.
69
do programa Roda Viva, da TV Cultura de São
Paulo; para a língua escrita coloquial, a escri-
ta que se pratica nas redes sociais na internet.
Nenhuma das dicotomias e simplificações
mencionadas chega perto da real complexi-
dade sociolinguística da Língua Portuguesa
no Brasil. A melhor solução descritiva até
agora formulada é a do contínuo de varie-
dades que combina três grandes eixos: o
rural-urbano, o eixo da cultura oral- cultura
letrada e o eixo dos graus de formalidade ou,
como preferem os sociolinguistas, o eixo do
maior ou menor monitoramento da fala e
da escrita de acordo com o tipo de evento
em que os inter-actantes estão.
Esse contínuo vai, então, das variedades que
chamamos hoje de Português afro-brasileiro
até as variedades urbanas formais escritas.
O Português afro-brasileiro é constituído
por um conjunto de variedades rurais, exclu-
sivamente faladas e típicas de comunidades
oriundas de quilombos. Recentemente foi
publicado um livro de descrição deste Por-
tuguês afro-brasileiro na forma como ele se
manifesta no interior do estado da Bahia.
Trata-se do livro O português afro-brasileiro,
organizado pelos professores Dante Lucche-
si, Alan Baxter e Ilza Ribeiro.
O outro ponto do contínuo – as variedades
urbanas formais escritas – é típico de um
estrato populacional tradicionalmente urba-
no, altamente letrado e que atinge seu maior
grau de monitoramento na escrita formal.
No meio desses dois pontos, encontramos
as variedades constitutivas do chamado
Português popular, que são originalmente
variedades rurais próprias de estratos popu-
lacionais pobres e que alcançaram o contex-
to urbano nos últimos 50 anos como resul-
tado do êxodo rural que, num curto espaço
de tempo, transformou o Brasil de um país
majoritariamente rural num dos países mais
urbanizados do mundo.
Essas variedades do Português popular pas-
saram a conviver maciçamente com as va-
riedades tradicionais urbanas e isso vem
alterando seu perfil, porque tais variedades
vêm adquirindo características do Portu-
guês brasileiro urbano e perdendo as carac-
terísticas mais típicas das falas rurais, num
processo que, claro, não se dá abruptamen-
te, mas progressivamente.
No contexto das cidades do Brasil de hoje,
encontramos, então, um leque de varieda-
des marcadas por diferentes graus de ur-
banização: há ainda estratos populacionais
que falam basicamente o Português rural
(em especial os falantes mais idosos), há es-
tratos que falam um Português rural já ra-
zoavelmente urbanizado (em geral, os mais
jovens) e há, claro, os estratos tradicional-
mente urbanos.
70
Quando estudamos a realidade sociolinguís-
tica brasileira, não podemos ignorar dois fa-
tos sociológicos fundamentais: de um lado o
processo de urbanização da população e, de
outro, o alcance dos meios de comunicação
social.
O Brasil passou (e, em certo sentido, conti-
nua passando) por um processo intenso de
urbanização de sua população. O Brasil in-
verteu, em menos de 50 anos, a distribuição
da população entre o campo e cidade, tor-
nando-se um dos países mais urbanizados do
mundo, com aproximadamente 80% de sua
população vivendo hoje no espaço urbano.
Por outro lado, houve uma enorme expan-
são dos meios de comunicação social. O
rádio está em praticamente todos os lares
brasileiros e a televisão, com produção e
transmissão fortemente centralizadas em
São Paulo e no Rio de Janeiro, chega a mais
de 90% dos lares.
Isso tudo tem um forte impacto sobre as ca-
racterísticas linguísticas do país. Podemos
dizer que as variedades que exercem, hoje, a
maior força de atração sobre as demais são
as faladas pelas populações tradicionalmente
urbanas, situadas na escala de renda de mé-
dia para alta e que, por isso, têm garantido
para si, historicamente, bons níveis de esco-
laridade (pelo menos a educação média com-
pleta) e o acesso aos bens da cultura escrita.
Adotando o modelo dos três continua (pro-
posto pela Prof.a Stella Maris Bortoni, da
Universidade de Brasília), podemos carac-
terizar estas variedades como aquelas que
se distribuem no entrecruzamento do polo
urbano (do eixo rural-urbano) com o polo da
cultura letrada (do eixo cultura oral-cultura
letrada). No eixo da monitoração estilística,
essas variedades conhecem, como todas as
demais, diferentes estilos, desde os menos
até os mais monitorados.
A maior força de atração dessas variedades
e a observação de seus efeitos levaram o
linguista Dino Preti, um dos principais es-
tudiosos da variação linguística do Brasil, a
designá-las pela expressão linguagem urba-
na comum.
Essas variedades são dominantes nos nossos
meios de comunicação social. Seus diferen-
tes estilos (i.e., suas diferentes manifesta-
ções no continuum da monitoração estilísti-
ca) estão muito bem representados no rádio
e na televisão, desde os estilos menos moni-
torados (nas novelas, programas humorísti-
cos e sitcoms, por exemplo) até os mais mo-
nitorados (em noticiários e programas de
entrevistas como o emblemático programa
Roda Viva da TV Cultura de São Paulo).
Essa dominância dá a estas variedades ampla
audibilidade e ressonância. Nenhum outro
conjunto de variedades do país tem a mesma
audibilidade e ressonância. Não é de estranhar,
71
portanto, que sejam justamente elas a ter uma
força de atração permanente e irresistível.
Trazem para mais perto de si as variedades
rurais e rururbanas faladas pelas populações
que, por força do intenso êxodo rural das úl-
timas décadas, se tornaram urbanas só mais
recentemente. Há, portanto, no Brasil uma
enorme movimentação das variedades do
Português, movimentação que responde à
força de atração das variedades urbanas.
Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana co-
mum que caracteriza boa parte das manifes-
tações orais mais monitoradas dos falantes
que poderiam ser classificados de “cultos”.
Em outros termos, a chamada norma cul-
ta brasileira falada pouco se distingue dos
estilos mais monitorados dessa linguagem
urbana comum, segundo fica demonstrado
pela análise dos dados coletados pelo proje-
to NURC (Norma Linguística Urbana Culta).
Essa constatação empírica causou surpresa
em alguns estudiosos dos dados do projeto
NURC, entre eles o Prof. Dino Preti. Imagi-
navam esses estudiosos que os falantes cul-
tos, nas situações de fala mais monitoradas,
tinham uma variedade bem distinta da lin-
guagem urbana comum, ou seja, eles acredi-
tavam que, na norma culta falada, os falan-
tes seguiam estritamente, por exemplo, os
preceitos da tradição gramatical normativa.
A realidade, porém, desconcertou o ima-
ginário: a norma culta brasileira falada se
identifica, na maioria das vezes, com a lin-
guagem urbana comum, e não propriamen-
te com as prescrições da tradição gramatical
mais conservadora.
No contexto de toda a variedade sociolin-
guística brasileira há, como mencionamos
anteriormente, variedades sociais estigmati-
zadas. Como tais estigmas têm efeitos dano-
sos nas nossas relações sociais, é fundamen-
tal apresentar e debater criticamente essa
realidade.
A língua (qualquer língua) é intrinsecamente
variável. Justamente por isso, a língua acaba
servindo como elemento de discriminação
social. Discriminação positiva (includente) e
discriminação negativa (excludente).
Quando o outro fala como eu, eu o reconhe-
ço como um de nós, como pertencente ao
mesmo grupo a que eu pertenço. Eu o iden-
tifico comigo/ eu me identifico com ele.
No entanto, se o outro fala uma varieda-
de diferente da minha e essa variedade está
associada a outros fatores negativos de dis-
criminação (fatores econômicos e culturais,
por exemplo), eu o discrimino negativamente
(“Este cara não é da minha tribo”) e isso afeta
as minhas relações com este falante, que pas-
sam a ser acompanhadas desde uma rejeição
tácita até gestos de violência simbólica.
72
Obviamente não são gestos individuais ape-
nas. O indivíduo é apenas porta-voz de valo-
res de seu grupo social e materializa estes
valores nas situações individuais.
Assim, por exemplo, o professor que afirma
que as crianças da escola pública da periferia
urbana não conseguem se alfabetizar porque
elas falam errado, está explicitando um juí-
zo que é fundamentalmente social – os que
falam diferente de nós não apenas falam di-
ferente, mas falam “errado”. E quem fala “er-
rado”, segundo esta forte e arraigada crença
social, é ignorante,
limitado, incapaz.
Não é preciso nos
alongarmos nas
consideraçõesdos
efeitos desse juízo
social de discri-
minação linguísti-
ca negativa sobre a história escolar dessas
crianças.
A diferença é socialmente transformada
em marca de inferioridade. E os psicólogos
nos lembram que essa transformação pro-
vém da necessidade que temos de manter
estáveis os parâmetros da nossa identidade
e isso envolve adesão às razões e aos valo-
res que tornam estes parâmetros desejáveis.
Daí, segundo ainda os psicólogos, nasce a
convicção de que é melhor ser como nós.
Os que são diferentes de nós são de algum
modo piores – o que, como bem sabemos,
está na origem do preconceito.
O pior preconceito dos muitos existentes
hoje é, certamente, o preconceito linguísti-
co, porque ele é ainda socialmente imper-
ceptível. Nisso ele difere, por exemplo, do
preconceito racial. Mesmo que ainda bas-
tante ativo socialmente (em especial de for-
ma tácita), a existência do preconceito ra-
cial é reconhecida e ele é discutido e existe
até legislação contra ele.
Com o preconceito
linguístico, acon-
tece o contrário.
A discriminação
negativa que toma
a forma de falar
como critério não
é reconhecida, não
é discutida e não
existe instrumento legal para coibi-la. E mais
ainda: a violência simbólica que se pratica
com base na língua no sistema escolar, nas
relações de trabalho, na mídia é considerada
natural, é aprovada, é estimulada e reforçada
institucionalmente.
É, então, por aqui que podemos e devemos
começar a debater criticamente o uso social
que se faz da variação linguística. É por aqui
que devemos elaborar e fundamentar um
discurso crítico capaz de tornar socialmente
perceptível o uso discriminador negativo da
O pior preconceito dos
muitos existentes hoje é,
certamente, o preconceito
linguístico, porque ele é ainda
socialmente imperceptível.
73
variação linguística e de combatê-lo.
De antemão, já sabemos que é uma das ba-
talhas mais árduas das tantas que nos desa-
fiam. A língua é talvez o fenômeno que mais
mexe com nossas representações, com nos-
sos valores, com nossos sentimentos, com
nossas certezas.
O senso comum tem convicções profundas
sobre o funcionamento social da língua. Tra-
ta-se, por isso, de convicções profundamen-
te resistentes a quaisquer questionamentos.
Nem mesmo os argumentos de base científi-
ca conseguem instaurar a dúvida nas certe-
zas do senso comum sobre a língua.
Ora, o fazer científico é uma importante
conquista histórica da humanidade. Ele nos
libertou da palavra de autoridade e do dog-
matismo. No fazer científico, não importa
quem diz, mas o que é dito. Não importa o
enunciador, mas o enunciado.
E nenhum enunciado vale dogmaticamen-
te – nenhum é um dito pétreo, imutável e
inquestionável. Os enunciados só param em
pé enquanto se sustentam numa argumen-
tação teórico-empírica consistente. No fazer
científico, não basta afirmar; é preciso sus-
tentar; é preciso argumentar.
Desde que a moderna ciência da linguagem
verbal se constituiu nos fins do século XVIII,
a variação linguística tem sido objeto pri-
vilegiado de estudo e análise. Primeiro, a
variação histórica (a língua como um fenô-
meno em contínua mudança); em seguida,
a variação correlacionada com o espaço ge-
ográfico (a distribuição sincrônica dos diale-
tos, as fronteiras dialetais pouco nítidas, os
contatos interdialetais e interlinguísticos e
seus respectivos efeitos e assim por diante).
Mais recentemente, na década de 1960, tor-
nou-se objeto de análise a variação correla-
cionada com características da organização
social ( o estudo do que alguns preferiram
chamar de socioletos, feito pela sociolin-
guística).
Num balanço desses dois séculos de histó-
ria da moderna ciência da linguagem ver-
bal, podemos dizer que não é mais possível
discorrer cientificamente sobre as línguas
sem reconhecer como intrínsecas a elas a
variação e a mudança. Ou seja, não temos
como escapar dos fenômenos da variação e
da mudança. Sabemos que ambas são cons-
titutivas da realidade das línguas e a relativa
sistematicidade de ambas é bastante óbvia.
Sabemos também que, do ponto de vista pu-
ramente linguístico-gramatical, não há ne-
nhum critério que dê sustento a juízos hie-
rarquizadores das variedades de uma língua.
Não há nenhum critério linguístico-gramati-
cal que possa basear juízos negativos sobre
a variação e a mudança.
Ou seja, sabemos que a variação não é um
74
mal, mas apenas é. Não há língua que não
seja variável, fundamentalmente, porque
não existe sociedade humana homogênea.
Por outro lado, sabemos que a mudança é
inexorável e não destrói, não corrompe a lín-
gua, nem a torna melhor. Nesse processo,
ocorrem apenas rearranjos contínuos (al-
guns mais rápidos, outros mais lentos) na
organização das línguas sem jamais destruir
seu caráter sistêmico e seu potencial semi-
ótico.
Apesar de tudo isso ser claro para nós, ape-
sar de esses saberes estarem consistente-
mente sustentados teórica e empiricamen-
te, nada disso faz sentido no senso comum,
ou seja, nas crenças socialmente correntes
sobre a língua e sobre as línguas. Bem ao
contrário: quando exposto a esses saberes, o
senso comum costuma reagir enraivecida e
sanguineamente.
Diante da variação, o senso comum costu-
ma folclorizar a variação geográfica (desde
que não haja, como dissemos anteriormen-
te, nenhum outro motivo estigmatizador).
No entanto, demoniza a variação social.
Diante da mudança linguística, o senso co-
mum costuma condená-la por entender que
a língua está sendo corrompida, está sendo
destruída. Chega-se a dizer que, se continu-
armos assim, logo estaremos apenas gru-
nhindo...
Essas representações do senso comum cam-
peiam nas relações sociais em geral (no juízo
que se faz das pessoas nas relações de traba-
lho, por exemplo), no sistema escolar (que
até agora não conseguiu desenvolver uma
pedagogia da língua que acomode o trato da
variação e da mudança) e campeia também
na mídia que se locupleta, há mais de cem
anos, com a condenação dos chamados “er-
ros” de Português e com o desmerecimento
dos falantes em razão das características de
sua linguagem.
Em resumo, no caso específico da variação
e da mudança linguísticas, os resultados da
ciência não conseguiram ainda se espraiar
pelo senso comum.
É curioso observar que outros resultados
do fazer científico se espraiaram pelo senso
comum. Hoje, por exemplo, as pessoas em
geral têm como fato que a Terra gira em tor-
no do Sol e não o contrário. Ninguém mais,
felizmente, é condenado à fogueira ou exco-
mungado por aceitar isso.
As pessoas em geral aceitam tranquilamen-
te que vacinar-se é indispensável. O senso
comum absorveu a vacinação como parte
dos cuidados essenciais com a saúde de si e
das crianças. Não há mais revoltas da vaci-
na como ocorreu no Rio de Janeiro há cem
anos. Ao contrário, hoje celebramos, por
exemplo, os eventos de vacinação em massa
das crianças contra a poliomielite.
75
No entanto, há certo número de pessoas
que se dá mal com a ideia da evolução das
espécies, base das ciências biológicas. Há,
em certos contextos, uma espécie de guerra
contra o pensamento evolucionista.
O mesmo se dá com a compreensão cien-
tífica da variação e da mudança linguísti-
ca. Com uma diferença, porém: no caso da
língua, os resultados do fazer científico são
muito mais extensa e fortemente rejeitados.
É uma rejeição
quase universal.
E a mídia é um
termômetro in-
teressante dessa
questão. Os veí-
culos da grande
imprensa (jornais,
revistas, televi-
sões) costumam
aceitar e divulgar
positivamente os
resultados da ciência. No caso da evolução
das espécies, esses veículos se posicionam
claramente ao lado dos evolucionistas. Par-
ticipam, portanto, da polêmica assumindo e
defendendo os resultados das ciências bio-
lógicas.
Esses mesmos veículos, porém, recusam
terminantemente os resultados da ciência
da linguagem verbal. Mais ainda: menos-
prezam, difamam e demonizam a ciência da
linguagem e seus praticantes.
Ou seja, ao mesmo tempo em que aceitam
e promovem os resultados da ciência em ge-
ral, rejeitam e condenam os resultados da
ciência da linguagem verbal que, no entan-
to, são obtidos exatamente pelos mesmos
meios que os resultados de qualquer outra
ciência.
Há, portanto, qualquer coisa na língua que
a distingue de ou-
tros fenômenos so-
ciais ou naturais;
qualquer coisa que
mexe fundo com
as pessoas e moti-
va reações de irra-
cionalismo diante
dos resultados do
fazer científico.
Há, portanto, um
enorme desafio à
nossa frente quanto à divulgação do modo
científico de pensar a linguagem verbal.
Além disso, há ainda outro enorme desafio:
tornar conhecida a nossa cara linguística à
nossa própria sociedade, despertando-a, ao
mesmo tempo, para uma valorização do pa-
trimônio linguístico nacional em sua tota-
lidade e para uma atitude crítica frente aos
preconceitos linguísticos ainda tão arraiga-
dos e operantes entre nós.
Compreender a
heterogeneidade e
complexidade linguística é
compreender a história da
nossa sociedade, ou seja,
como ela se compôs e como
ela vem se transformando ao
longo dos séculos.
76
Esse caminho passa pela capacidade de ob-
servarmos e compreendermos a heteroge-
neidade e complexidade linguística do nos-
so país. Compreender a heterogeneidade e
complexidade linguística é compreender a
história da nossa sociedade, ou seja, como
ela se compôs e como ela vem se transfor-
mando ao longo dos séculos.
Passa, portanto, pela razão. Mas passa tam-
bém e principalmente pelo coração. Ou seja,
pela nossa capacidade de valorizar e curtir a
enorme variedade linguística do nosso país
com o coração aberto, com os ouvidos aber-
tos, com a mente aberta. É preciso vencer a
alienação e os preconceitos linguísticos.
Isso tudo não significa ignorar a importân-
cia de se promover e se ensinar as variedades
standard. E aqui é preciso atenção redobra-
da porque a incompreensão desse assunto é
espantosa na nossa sociedade.
É um fato simplíssimo, mas de difícil assimi-
lação pela escola, pela mídia e pela popula-
ção em geral. Quando dizemos que é funda-
mental compreender e curtir a diversidade
linguística do país, o dizemos porque cada
variedade expressa uma face da nossa histó-
ria, da nossa cultura, da experiência de vida
da nossa população.
Não significa dizer que tudo vale em qual-
quer circunstância. A adequação da lin-
guagem ao contexto de fala ou de escrita
é indispensável e é sinal de maturidade lin-
guística do falante. Cada um de nós tem de
transitar com familiaridade e fluência pelo
vasto mundo da variação linguística, desde
as conversas de casa até as manifestações
orais e escritas no espaço social amplo.
Para isso, é preciso um ensino de Português
capaz de mostrar aos alunos a cara linguís-
tica do país, expor as razões para tanta di-
ferença, mostrar que cada variedade é um
patrimônio da nossa sociedade e da nossa
cultura, conquistar o coração dos alunos
para a beleza intrínseca da variação, com-
bater o preconceito e a violência simbólica
que usa a língua como pretexto de exclusão
social dos falantes e, claro, um ensino de
Português capaz de garantir a cada aluno o
domínio das formas mais monitoradas da
língua, próprias do mundo urbano e da cul-
tura letrada.
Mas a escola só vai avançar quando a socie-
dade avançar. Nesse processo é preciso con-
quistar também a mídia para um esforço
contínuo e constante de divulgação, seja do
modo científico de pensar a linguagem ver-
bal, seja da realidade linguística do Brasil.
A série Português: um nome, muitas línguas,
que organizamos para o programa Salto
para o Futuro/TV Escola, procurou dar uma
contribuição para este processo de divulga-
ção. Em cinco programas, buscamos rever a
história da expansão da Língua Portuguesa
no mundo, apresentar sua história no Brasil,
77
descrever as características sociolinguísticas
da sociedade brasileira e, por fim, discutir
caminhos para o ensino de Português. Acre-
ditamos que a série foi, sem dúvida, muito
importante, mas acreditamos também que
há muito ainda a ser feito no enfrentamento
das questões que nos desafiam e que procu-
ramos aqui resumir.
REFERÊNCIAS
BORTONI, Stella Maris. Um modelo para a
análise sociolinguística do português brasi-
leiro. In:__________. Nós cheguemu na es-
cola, e agora? – Sociolinguística e educação.
São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 39-52.
LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan & RIBEIRO,
Ilza (orgs.) O português afro-brasileiro. Salva-
dor: EDUFBA, 2009.
PRETTI, Dino. A propósito do conceito de
discurso urbano oral culto: a língua e as
transformações sociais. In:______ (org.) O
discurso oral culto. São Paulo: Humanitas
Publicações – FFLCH / USP, 1997. p. 17-27.