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O Alcorão e a fé muçulmana Matéria publicada na revista Superinteressante . O mercador Muhammad ibn Abdallah dormia tranquilo numa caverna próxima à cidade de Meca, atual Arábia Saudita, quando de repente foi arrancado do sono por uma devastadora sensação da presença divina. Ele tinha 40 anos e aquela era sua primeira experiência sobrenatural. Um anjo apareceu e ordenou: “Recita!”. Muhammad tentou argumentar que não era digno de pronunciar palavras divinas, mas o anjo abraçou-o com força, fazendo-o soltar todo o ar do pulmão. “Recita!”, insistiu. O mercador obedeceu. Recitou aquela vez e continuou recitando a cada vez que o anjo falava com ele. Isso durou 23 anos, até sua morte, em 632 d.C. As palavras divinas proferidas por Muhammad – ou Maomé, como o chamamos em português – foram reunidas versículo por versículo no Alcorão (em árabe, “recitação”), livro sagrado seguido até hoje por um quarto da população mundial – 1,3 bilhão de pessoas. Pouco compreendido pelo Ocidente, o Alcorão sempre foi uma espécie de caixa-preta do Islã, envolto num clima tão misterioso quanto o corpo das mulheres afegãs sob a burqa (cujo uso obrigatório, por sinal, não está no Alcorão, que

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O Alcoro e a f muulmana

Matria publicada na revistaSuperinteressante.

O mercador Muhammad ibn Abdallah dormia tranquilo numa caverna prxima cidade de Meca, atual Arbia Saudita, quando de repente foi arrancado do sono por uma devastadora sensao da presena divina. Ele tinha 40 anos e aquela era sua primeira experincia sobrenatural. Um anjo apareceu e ordenou: Recita!. Muhammad tentou argumentar que no era digno de pronunciar palavras divinas, mas o anjo abraou-o com fora, fazendo-o soltar todo o ar do pulmo. Recita!, insistiu. O mercador obedeceu. Recitou aquela vez e continuou recitando a cada vez que o anjo falava com ele. Isso durou 23 anos, atsua morte, em 632 d.C. As palavras divinas proferidas por Muhammad ou Maom, como o chamamos em portugus foram reunidas versculo por versculo no Alcoro (em rabe, recitao), livro sagrado seguido athoje por um quarto da populao mundial 1,3 bilho de pessoas.

Pouco compreendido pelo Ocidente, o Alcoro sempre foi uma espcie de caixa-preta do Isl, envolto num clima to misterioso quanto o corpo das mulheres afegs sob a burqa (cujo uso obrigatrio, por sinal, no est no Alcoro, que apenas recomenda a elas que se vistam com pudor). Os 114 captulos do Alcoro, chamados de suras, esto ordenados de uma maneira bem diferente da organizao encontrada na Bblia, por exemplo. Para comear, no comeam pelo comeo, como na histria da criao do Gnesis. As suras so organizadas por temas, diz o libans Samir El Hayek, tradutor da primeira edio, no Brasil, do Alcoro em portugus. Ou melhor, tradutor do significado do Alcoro, j que os muulmanos s chamam de Alcoro a verso original, em rabe, com as palavras exatas de Al (para o Isl, no houve alterao nenhuma no texto desde que ele foi escrito).

Essa outra diferena do Alcoro quando comparado com o Novo Testamento. O livro sagrado dos muulmanos a prpria revelao, a manifestao de Deus (Al, em rabe). Embora o texto possa soar repetitivo e enfadonho em portugus, em rabe as palavras ganham musicalidade. Seu estilo entre a prosa e a poesia inigualvel, diz Safa Jubran, professora de rabe da Universidade de So Paulo (USP). O livro no importante apenas pelo contedo do que est escrito l as prprias palavras so sagradas, independentemente de compreendermos seu significado. Por isso, devem ser lidas em voz alta, para que envolvam o ouvinte e ele sinta a transcendncia e a presena de Al muulmanos contam que vrias pessoas converteram-se ao Islamismo s de ouvirem o Alcoro, mesmo sem entender nada.

Mas h muitas semelhanas entre os livros sagrados dos judeus, dos cristos e dos muulmanos. O anjo que ditou as palavras para MaomGabriel, o mesmo que avisou Maria da sua gravidez. Alm disso, o Alcoro admite que Abrao, Moiss e Jesus receberam, de fato, mensagens divinas. S que Jesus, para o Isl, no o filho de Deus, mas um dos grandes profetas, assim como Moiss e o patriarca Abrao, ambos da linhagem dos judeus da o Isl compor, junto com o Cristianismo e o Judasmo, o grupo das religies abramicas. Reconhecemos o Antigo e o Novo Testamento como parte da mensagem divina, diz o xeique Ali Abdune, do Centro Islmico de So Bernardo, em So Paulo.Ou seja: assim como os cristos acreditam que o Evangelho veio completar o Antigo Testamento, os muulmanos crem que o Alcoro a verso definitiva da palavra divina. Depois dele, no haver novas mensagens. Por isso, a riqueza de detalhes.

Entre os seus 6.326 versculos, h desde instrues para o casamento atregras sobre como o governante deve agir na cobrana de impostos. O Alcoro um sistema econmico, jurdico e poltico, diz o xeique Jihad Hassan Hammadeh, um dos lderes da religio islmica no Brasil.Para aquele povo disperso no deserto, o livro caiu como uma luva. Os rabes no tinham propriamente uma religio que os unisse e que desse sentido a suas vidas. Tinham deuses e cultuavam dolos como a pedra preta athoje mantida ao lado da Caaba, o prdio sagrado em Meca na direo do qual os muulmanos do mundo rezam. Sua lei tambm era muito simples. No havia pena nem para casos de homicdio: a tribo do assassinado tinha direito de matar qualquer um da tribo do assassino. A vida valia pouco. Com regras desse naipe, logo no sobraria rabe para contar a histria. A lei do Alcoro trouxe uma boa dose de ordem e sossego. Por exemplo, probe o assassinato entre os muulmanos e faz deles irmos.

Quando Deus estabelece regras sobre negcios e lei penal, fica difcil para um soberano revog-las. Por isso, no mundo islmico, os lderes polticos sempre tiveram que se submeter aos preceitos do Alcoro, pelo menos ato sculo 19. No toa que, alm de profeta, Maomfoi um lder poltico, que ergueu um poderoso Estado. Ele resolvia conflitos, estabelecia regras e guiava seus sditos-fiis. No Antigo Testamento, essa interseco entre religio e Estado tambm existia, mas o Evangelho afrouxou-a. Jesus disse: Dai a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus, diz o historiador holands Peter Demant, especialista em relaes internacionais e Oriente Mdio, que d aulas na USP.

Muito sangue foi derramado ao longo da expanso do Islamismo, inclusive durante a vida de Maom. O profeta usou a espada para se defender das tribos rabes politestas que o acusavam de heresia por pregar a existncia de um Deus nico. Vrias passagens do Alcoro justificam essa ao pela fora. As instrues de Al para lidar com os politestas, por exemplo, teriam sido recebidas pelo profeta num desses momentos de guerra. Primeiro, diz o texto, deve-se tentar convert-los. Caso eles no aceitem a proposta, podem manter sua f, desde que paguem tributos. Se os infiis, ainda assim, no toparem, acabou-se a diplomacia: Matai os idlatras, onde quer que os achei; capturai-os, acossai-os e espreitai-os. O resgate das passagens belicosas do Alcoro por lderes e governantes em tempos de guerra foi uma constante em seus 14 sculos de histria.

O Alcoro um hino de guerra? Longe disso, dizem tanto adeptos da fmuulmana quanto cientistas das religies. Pelo Alcoro, a nica guerra justa a de autodefesa, escreve a teloga inglesa Karen Armstrong, ex-freira catlica e profunda conhecedora das trs religies abramicas, em seu livro Uma Histria de Deus. Deus disse que quem mata um inocente mata toda a humanidade, afirma o xeique Jihad. Alm disso, a presena de mensagens violentas no exclusividade do Islamismo. Tanto a Bblia quanto o Alcoro tm trechos de violncia, diz Eliane Moura da Silva, professora de histria das religies da Unicamp. Maomera um guerreiro e um estadista em defesa da sua f, mas no h como negar que personagens do Antigo Testamento, como Josu, lder dos judeus na conquista da Terra Prometida, tambm eram.

O entendimento do Islamismo, no entanto, vai alm do Alcoro. Quando morreu, em 632, Maomdeixou a seus seguidores, alm do livro sagrado, seu exemplo de vida, que deve ser imitado. Essa tradio, que, em rabe, diz-se suna, composta pelos atos e dizeres de Maom, chamados de hadiths. Para os muulmanos, os hadiths so leis, inferiores apenas ao livro sagrado, e vigoram athoje, regendo boa parte da vida cotidiana, diz o xeique Jihad. um hadith, por exemplo, que probe aos artistas a reproduo fiel de animais, baseado no preceito de que s Deus pode dar a vida. Representar seres humanos, ento, nem pensar.Apesar de inquestionveis, os hadiths passaram por muitas transformaes atchegarem forma atual. Muitos foram transmitidos oralmente por mais de 100 anos atserem escritos e houve muitas alteraes, devido precariedade da tradio oral e incorporao de tradies dos vrios povos do mundo rabe.

Para organizar essa baguna, criou-se, j no sculo 7, uma cincia para estudar os hadiths e checar sua credibilidade. Essa tarefa herclea e s vezes impossvel de compilao dos atos e palavras de Maominclua visitas s cidades onde viveram as testemunhas e comparao de dados, como datas e lugares, com o que dizia a lei. Desse processo emergiram, no sculo 9, seis grandes colees de tradies que, juntas, contm milhares de hadiths. Mas isso no quer dizer que a lei islmica tenha sido engessada naquela poca. O Alcoro ganha valor medida que interpretado em cada comunidade, de acordo com seus interesses, diz a historiadora Eliane, da Unicamp.As dvidas que sobrevivem ao exame do Alcoro e da suna devem ser submetidas a uma terceira instncia: o ijma, ou o consenso da comunidade. Maomteria dito: Na minha comunidade no tem erro. Se h consenso, aquilo verdade, diz Peter Demant, da USP. Um ijma encerra a questo e se transforma em uma lei. Tratava-se de um processo democrtico, de toda a comunidade. Aos poucos, porm, a opinio dos estudiosos das leis foi valorizada e os ulems, uma espcie de clero muulmano, ganharam status de legisladores, muitos deles trabalhando dentro do governo.

Quando Maommorreu, surgiu um problema: a escolha do seu sucessor. Nem o Alcoro nem os hadiths versavam sobre o assunto. No demorou muito e as disputas comearam. O terceiro sucessor do profeta (khalifa, em rabe) foi assassinado por opositores. Seu substituto, Ali ibn Abi Talib, primo de Maome marido de sua filha, teve que defender sua legitimidade fora e, aps um perodo de guerras, props um consenso com seus opositores. Tudo isso seriam apenas intrigas de poder no fosse a sobreposio, no Islamismo, das lideranas poltica e religiosa. Para quem acreditava que a sucesso do profeta era ditada por Deus, a tentativa de resolver a questo pelo entendimento pareceu uma blasfmia. A ponderao, assim, enfraqueceu Ali, que acabou assassinado. Seus partidrios deram origem a uma faco islmica para a qual Ali, como sucessor legtimo do profeta, iluminado e infalvel.So os xiitas (de shia, que significa partido, em rabe), um ramo minoritrio no Islamismo, mas prevalente athoje no Ir. A grande maioria dos muulmanos, porm, cerca de 90%, s crem na tradio do profeta, a suna. So os sunitas.

As divises no evitaram que, num piscar de olhos, a mensagem do Alcoro se espalhasse pelo mundo. Em apenas 200 anos, a palavra de Al e os exrcitos rabes j tinham conquistado toda a pennsula arbica, o norte da frica e a sia Central. Em seguida, foram anexados Espanha, Portugal e grande parte da ndia. O mpeto expansionista rabe chegou ata China. Como que uma mensagem revelada numa caverna do deserto de repente conquistou os espritos de meio mundo civilizado?Bem, h vrias respostas. Uma delas a j citada semelhana entre o Islamismo e as outras duas religies monotestas. Para um judeu ou um cristo, a nova fparecia familiar, embora o uso de nomes conhecidos e sagrados em situaes inusitadas pudesse parecer heresia. O Alcoro diz, por exemplo, que Jesus no foi crucificado, mas abduzido por Al e elevado aos cus. Quem acabou na cruz foi Judas, transformado, como punio, em ssia de Cristo.

O Alcoro no obriga converso e, ao menos nos primeiros sculos da nova f, a tolerncia religiosa era a regra muito mais do que em terras crists. Tanto verdade que, nas regies que administravam, os muulmanos eram absoluta minoria ato sculo 11. Essa tolerncia est expressa no texto sagrado: No disputeis com os adeptos do Livro seno da mais pacifca maneira. Os adeptos do Livro so os cristos e os judeus. Nosso Deus e o vosso so Um e a Ele nos submeteremos, prossegue o Alcoro, deixando claro que respeita e aceita as outras duas crenas que adoram o mesmo Deus.Mas havia formas sutis de incentivar o ingresso de novos fiis. Para comear, viver em um Estado com leis regidas por uma falheia no era muito confortvel, por mais que houvesse respeito. Alm disso, os muulmanos tinham privilgios: eram isentos de certos impostos e tinham muito mais chances de subir na vida e trabalhar no governo. Para completar, a converso era moleza bastava reconhecer em voz alta, perante testemunhas, e em rabe, que s existe um Deus e que seu profeta Maom. Pronto. Um muulmano a mais.

Nos primeiros sculos, o imprio era administrado por um homem s um califa sediado primeiro em Medina (na Arbia Saudita), depois em Damasco (na Sria) e depois em Bagd (no Iraque). Mais tarde, o poder se fragmentou, com vrios califas simultneos. Mas no importava quantos eram os governantes, nem as diferenas entre suas decises, seguindo uma ou outra escola de interpretao do livro sagrado. Viajantes que cruzaram o imprio de ponta a ponta relataram uma sensao de que o mundo muulmano era um s. Em toda parte valiam os cinco pilares da religio: aceitar que h s um Deus e que seu profeta Maom; rezar cinco vezes por dia voltado para a Meca; ajudar os pobres; jejuar no ms sagrado do Ramadan; e peregrinar ata Meca uma vez na vida. Mais que isso: um livro guiava todos, o Alcoro.

Maomhavia dito que aquele que sai de casa em busca do conhecimento est trilhando o caminho de Deus. O profeta afirmou tambm que isso vale para homens e mulheres (em clara discordncia com o regime de pases como o Ir e o Afeganisto de hoje, que negam s mulheres o acesso ao estudo). Dentro desse esprito, nascia, no sculo10, a Universidade Azhar, do Cairo, a primeira do mundo, que atraa muulmanos de toda parte. O conhecimento prosperava. Os muulmanos formavam a vanguarda na matemtica, na astronomia, na medicina e na qumica.Filsofos gregos, inteiramente esquecidos pela Europa medieval, eram traduzidos para o rabe o racionalismo de Aristteles, em especial, gozava de muita popularidade. Inspirado por ele, o filsofo persa Avicena defendia a ideia espantosamente moderna de que a razo humana podia levar a uma verdade demonstrvel e tentou analisar o Alcoro luz da lgica. Para ele, a iluminao do profeta no era divina, mas intelectual (sculos depois, ainda queimava-se gente por muito menos no mundo cristo).

No havia cidade na Europa que se comparasse aos centros islmicos. S o Cairo abrigava populao correspondente das trs maiores cidades crists, juntas: Paris, Veneza e Florena. O imprio islmico vivia seu auge. O mundo era deles.Nesse momento, os rabes sofreram uma agresso inesperada bem pertinho do seu corao. Em 1095, o papa Urbano II ordenou, de Roma, um ataque para tomar Jerusalm. Comeavam as Cruzadas, que duraram 200 anos. A cristandade no tem muito do que se orgulhar desse episdio propiciou cenas pavorosas, inclusive massacres de civis e acabou perdendo a guerra e a Terra Santa. Mas, embora ningum suspeitasse disso naquela poca, comeava ali a decadncia do Isl. O efeito psicolgico foi muito forte. A luta estimulou o fechamento mental religioso, afirma Demand.

As invases geraram um fenmeno que jamais tinha existido antes: uma sensao de confronto entre a cristandade e o Isl. Os cristos passaram a demonizar Maome sua f. Karen Armstrong conta, em seu livro Muhammad (sem verso em portugus), que as ofensas ao profeta viraram regra na Europa do sculo 11. A propaganda antiislmica inclua chamar Maomde pervertido sexual, charlato e insinuar que ele fosse o diabo em pessoa.Na mesma poca, muitos muulmanos adquiriram um profundo ressentimento pelo Ocidente, atribuindo a ele toda a culpa pelo fim dos tempos gloriosos do Imprio rabe um sentimento que chegou atos nossos dias. Algo mudara no mundo islmico. Ele tornou-se friorento, defensivo, intolerante, estril, afirma o historiador libans Amin Maalouf, no livro As Cruzadas Vistas pelos rabes. O Alcoro continuou o mesmo, mas passou a ser interpretado com mais rigidez.

J era esse o clima quando a dinastia fundada pelo sulto Osman tomou a cidade crist de Constantinopla, antiga capital do Imprio Bizantino, e a rebatizou de Istambul. Nascia ali, em 1453, o Imprio Otomano (referncia ao prprio Osman), que, em algumas dcadas, tomou quase todas as terras do antigo Imprio rabe. Osman era de etnia turca, um povo com fama de mau que se converteu ao Islamismo no sculo 8. Os turcos entraram no mundo rabe como soldados e galgaram o comando do exrcito. Agora viravam sultes (em turco, detentores do poder, j queOsman no ousou tomar para si o ttulo de califa, reservado a descendentes do profeta). A partir da, cabia a eles zelar pelo povo que seguia o Alcoro.

No entanto, o mundo havia mudado. Militarmente, o Isl continuava sendo uma potncia. Mas a vanguarda do planeta no estava mais ali. O centro estava mudando para oeste a Europa. L, uma srie de guerras religiosas detonou revolues ideolgicas que soltaram as rdeas do pensamento e rebocaram a sociedade para uma poca de desenvolvimento: o Renascimento e o Iluminismo. Impulsionados pela filosofia e pela cincia, inclusive aquelas trazidas das terras rabes, os europeus decidiram limitar o poder religioso sobre os assuntos terrenos. O primeiro passo foi cortar alguns poderes do rei, considerado antes uma figura divina. Ato contnuo, cortaram tambm a cabea de alguns monarcas. Liberalismo poltico e econmico logo transformaram os pases do Ocidente em potncias laicas.

No Islamismo, ao contrrio, as luzes jamais voltaram a brilhar como antes do recrudescimento religioso decorrente das Cruzadas. Religio e poltica no se divorciaram. O historiador Alberto Ventura, do Instituto Universitrio Oriental, de Npoles, na Itlia, sugere, em um artigo, que esse pensamento de laicizao do Estado e da cincia no prosperou no Oriente justamente porque a fislmica procurou conciliar o raciocnio. Os textos sagrados do Islamismo nunca entraram em incurvel conflito com a observao racional das coisas. Para Ventura, os muulmanos interpretam o Alcoro de um modo intermedirio: nem o levam ao p-da-letra nem o transformam em uma alegoria. O esforo por harmonizar os dois lados no permitiu uma separao clara entre as esferas da religio e do conhecimento. Na cultura crist, elas entraram em antagonismo e cristalizaram suas identidades. Cada uma no seu terreno.

O progresso europeu engoliu o Imprio Otomano. Primeiro, economicamente; depois, militarmente. A partir da metade do sculo 19, quase todos os pases islmicos foram dominados e ocupados pelas potncias europeias a Itlia ocupou a Lbia, a Inglaterra ficou com o Egito, a Frana levou a Arglia, etc. A modernidade ocidental caiu como uma bomba sobre o Isl. A nova ordem enfraqueceu as alianas tradicionais, a educao islmica j no garantia emprego no governo, os diplomados no controlavam mais o sistema judicial, as foras policiais sufocavam qualquer tentativa de revolta.Pouco a pouco, a absoro dos valores ocidentais tornou-se uma condio de sobrevivncia no mundo islmico. Entre os intelectuais islmicos, ficou clara a ideia de que o caminho do progresso era a reforma do Estado, com tudo o que isso implica: fazer eleies e criar leis que abrissem as portas do mundo moderno. Mas essas mudanas seriam um abandono das regras teocrticas do Alcoro e sem elas no havia Estado, porque a religio que dava identidade populao. A ideia de nao ainda era aliengena naquela parte do mundo. A maioria do povo no se sentia tunisiana, egpcia ou lbia, mas muulmana. Sem esse elo, sobravam alguns vnculos tribais e culturais. S.

Comearam a surgir tentativas, em vrios pases, de criar governos democrticos baseados nos princpios do Alcoro. Todas fracassaram, muitas vezes por causa da enorme ingerncia das potncias europeias. No Egito, entre 1922 e 1948, houve 17 eleies, todas vencidas pelo partido populista, mas s cinco conseguiram governar, porque a Inglaterra intervinha sempre que o resultado no era o desejado, afirmou a teloga Karen Armstrong. Os governos ditos democrticos tinham regras rgidas tambm para regular o dia-a-dia dos cidados. Na Turquia, o governo fechou as escolas religiosas e proibiu as mulheres de sair com vus. Muitas deixaram de sair de casa por vergonha, diz Eliane. No Ir, o x Reza Pahlevi deu ordens sua guarda para atirar em manifestantes que protestavam contra o uso obrigatrio de roupa ocidental. Muito propagandeados pelos governos da poca, alguns valores ocidentais, como a democracia, ganharam uma pssima fama entre os muulmanos.

A gota dgua no sentimento de fracasso dos muulmanos diante do Ocidente ocorreu com a humilhante derrota para Israel, em 1967. Depois do florescimento, a derrota causa uma sensao de que se tomou o caminho errado, diz o egpcio Mohamed Habib, coordenador de Relaes Institucionais e Internacionais da Unicamp.Adivinha onde os muulmanos foram procurar as respostas para essas seguidas derrotas? L mesmo, no Alcoro. a que surgem os movimentos de resgate das razes, dos fundamentos da religio, diz Demant. So os fundamentalistas.A situao era propcia a interpretaes literais. Primeiro, porque no h sacerdotes no Islamismo: cada um ora diretamente a Deus, sem intermedirios. A herana de sculos de interpretaes harmoniosas e tolerantes do Isl transmitida populao pelos ulems, os estudiosos da doutrina. S que, a partir da ocupao dos pases islmicos, no sculo 19, os ulems se distanciaram do povo. Quando os inconformados foram buscar conforto no livro sagrado, o fizeram sem orientao ou, pior, sob a tutela de outros fundamentalistas como o Taleban, que mantm escolas para difundir sua leitura do Alcoro aos desvalidos.

A interpretao peculiar desses fundamentalistas ignora os comandos explcitos de respeitar as outras religies do Livro (americanos e israelenses so associados aos idlatras inimigos de Maomdo sculo 7), passam por cima da proibio de matar inocentes (com a desculpa de que todo ocidental inimigo e, portanto, no h inocentes entre eles) e pina no texto apenas os trechos mais sanguinolentos. Seu discurso est cheio de ressentimento h quem chame Israel de um Estado cruzado, numa extempornea referncia a uma guerra terminada h 7sculos, mas que no acabou de ser digerida. Os fundamentalistas so nfima minoria no Isl, mas, com aes de grande repercusso, acertam em cheio os coraes de milhares de muulmanos com baixa auto-estima a causa antiocidental resgata a to machucada identidade islmica.Mas h tambm fundamentalistas islmicos pacifistas e eles so a maioria, segundo Karen Armstrong. Esses grupos, diz ela, buscam nas palavras de Maomo esprito de paz e justia social aquele mesmo que ajudou um povo miservel e disperso do deserto a erguer um dos mais iluminados imprios da histria. Est tudo no livro.