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O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA - TABOSA, Leila
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 1-12
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O ANJO CIGANO: EMBLEMÁTICA DE UM POEMA
TABOSA, Leila
UERN/UNAM – MÉXICO
RESUMO
O presente ensaio propõe uma abordagem analítica do poema O Anjo Cigano, do livro ARAME
FALADO, de Marcus Fabiano Gonçalves, a partir das influências da emblemática desenvolvida a
partir da obra de Andreae Alciati (1492-1550).
Palavras-chave: Poesia visual. Emblemática. Cultura cigana.
ABSTRACT
This paper proposes an analytical approach to the poem O ANJO CIGANO, in Marcus Fabiano
Gonçalves' book ARAME FALADO, using the influences of the emblematic developed after
Andreae Alciati's (1492-1550) works.
Key words: Visual poetry. Emblematic. Gypsy Culture.
“O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não
sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.” - essas palavras do Padre
Vieira no Sermão da Sexagésima servirão aqui de guia para minha análise do poema O
ANJO CIGANO, de Marcus Fabiano Gonçalves, que está presente no seu livro ARAME
FALADO. Impossibilitada de empreender uma crítica abrangente de todo a obra, elegi este
poema paradigmático pela relação que vislumbro entre sua tessitura expositiva e a
emblemática barroca dos séculos XVI e XVII que venho pesquisando. Durante o exame,
mencionarei outros poemas da obra que me atraíram por seus versos espirituosos e não
raras vezes difíceis, características que, sem muito esforço, apresentam-se como
predominantes do ARAME FALADO. O poema em questão se encontra no capítulo O
Alfanje e a Foice do livro, dedicado a criações ligadas aos orientes arabo-muçulmano e
sino-asiático. Assim, o primeiro a dizer a seu respeito é que tal ambientação capitular de
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plano suscita uma indagação sobre o lugar que os ciganos ocupariam para além desses dois
polos de alteridade à cultura ocidental.
À diferença de outros poemas também longos do ARAME FALADO, acredito que
em O ANJO CIGANO o autor sirva-se de modo mais livre e fecundo do dispositivo
retórico dos emblemas de Andreae Alciati (1492-1550). Desenvolvida no século XVI como
uma fórmula estilística constituída pela escolha de um tema imagético acompanhado de um
lema, a emblemática compunha-se de uma glosa poética na forma de um adágio ou de um
epigrama. Jurista e pensador humanista de enorme prestígio, Alciati desenvolveu os seus
emblemas essencialmente como uma coleção de alegorias morais e diversões eruditas. O
seu Livro de Emblemas alcançou tamanha difusão por toda a Europa que chegou a contar
centenas de edições desde o seu surgimento (1549, Lyon; 1621, Pádua) até o século XVIII.
Essa tríade imagem-lema-glosa pode ser deparada de modo bastante frequente em
diversos passagens do ARAME FALADO, sobretudo nos poemas que adotam dicções mais
sentenciosas e declarativas. Originalmente, o emblema cultiva uma representação alegórica
apresentada com fins que ultrapassam o do mero símbolo, servindo-se tanto de uma
elucidação reveladora (diretamente voltada à decifração de algum hermetismo) como do
estabelecimento de novos nexos ocultos (estes já mais dispostos a afrontar os cânones
religiosos). Definido por Andreae Alciati (1492-1550) como um passatempo didático e
humanista, os emblemas empregaram epigramas latinos, redondilhas, hieróglifos, sextinas,
silvas e comentários, disseminando-se por todo o Ocidente como fonte de máximas,
conceitos e, sobretudo, de um novo estilo, muito mais conciso e incisivo, que recusava a
pompa e a prolixidez. Ademais, os emblemas chegaram também a ser utilizados como
espejos de príncipes, verdadeiros manuais de aconselhamento e etiqueta virtuosa
consultados pela nobreza.
Mas não haveria de ser a emblemática sempre acompanhada de figuras ou de
ilustrações? Na verdade, não. Até mesmo os emblemas de Alciati só foram ilustrados por
uma mera contingência editorial. Necessário é apenas que os emblemas tenham a
disposição para erigir uma imago realmente concentrada e consistente. Assim, apesar de o
livro de Marcus Fabiano ter cada abertura de capítulo belamente ilustrada pelo artista
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plástico gaúcho Antonio Augusto Bueno, O ANJO CIGANO não vem acompanhado de
nenhuma imago em particular, ficando a sua imaginação completamente a cargo do leitor,
assim como acontecia em outros livros de emblemas, sobretudo os espanhóis.
Considerando o amplo emprego pelo poeta dos registros visuais da língua e suas referências
à pintura e à fotografia dispersas pelo livro (atividade esta à qual ele também se dedica),
resta então compreender o seu poema a partir dos dois elementos restantes do esquema
emblemista, isto é, a partir do lema (a máxima de sua inscriptio) e da glosa (o
desenvolvimento analítico-expositivo da subscriptio).
O próprio título e a epígrafe de Lorca que o precede, funcionam como a inscriptio a
dispensar a figuração pictórica da imagem. Mas ao se referir a serafines y gitanos que
tocaban acordeones, quase nada permite que se conclua algo mais complexo a respeito
dessa figura misteriosa e surpreendente que é O ANJO CIGANO, devendo-se passar à sua
glosa, que é o próprio corpo desse poema que mescla uma notável erudição (mediada por
diversas ciências sociais), uma tomada de posição política (imbuída de uma postura crítica
a respeito da situação étnica dos ciganos) e até mesmo uma orientação metafísica (os
indícios teológicos apurados em fatura derrisória).
O ANJO CIGANO aborda a errância que envolve a história do povo gitano: seja no
sentido da sua falta de um lugar determinado pela fixidez sedentária, seja no sentido
daquele lugar mínimo garantido pela aceitação social. Em uma troca de mensagens com o
autor, ele me revelou a sua investigação que deu suporte ao poema. Disse-me que,
atualmente, pesquisas em genética das populações somaram-se a outras, em
sociolinguística, para resolver o velho enigma da origem do povo cigano. Exames de DNA
mitocondrial teriam comprovado, segundo o poeta, que os ciganos descendem de duas
castas originárias do subcontinente indiano que se tornaram nômades por volta do século X,
talvez por conta de uma rejeição social pelos brâmanes, talvez porque passaram a migrar
para a Pérsia em busca de ocupações provavelmente ligadas ao entretenimento daquela
corte. Após permanecerem por um longo período na Anatólia, os ciganos se dispersaram
pela Europa forçados a tanto pelas invasões mongóis do século XIII.
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Marcus Fabiano parte então do postulado de que essa prova segura de uma
hereditariedade genética comum corroborou uma antiga suspeita dos etnolinguistas, nascida
do fato de a palavra trusula, que originalmente significa tridente em sânscrito ser a mesma
empregada para designar a cruz em romani, a língua das comunidades ciganas pertencente
ao tronco indo-ariano. Chamo a atenção também para o fato de que o tridente é
precisamente o instrumento portado pelo deus Shiva, que, juntamente com Vishnu e
Brahma, são mencionados de modo nada acidental no poema. A imensa distância cultural
que existe entre Cristo e Shiva é a mesma que se estabelece entre o tridente e a cruz, algo
só compreensível uma vez considerado à luz de uma ampla miscigenação, étnica e cultural,
ensejada pela longa dispersão por territórios distantes.
A palavra cigano provém do grego Ἀθίγγανοι (athinganoi) que significa intocável.
Essa palavra, com um longo histórico de emprego no mundo cristão, alcançou o Império
Bizantino e aos poucos foi mudando para atsigan e tsigane, de onde se formou o francês
tzigane e o nosso português cigano. Enquanto isso, na Espanha, o cigano ficou conhecido
pelo nome de gitano, corruptela do gentílico egiptano, um equívoco alimentado pelo
próprio povo romi que, ao se aproximar de diversos povos, alegava uma ascendência ligada
à nobreza egípcia, com a qual compartilhava, em realidade, nada mais do que a tez
trigueira.
Tecido como uma grande glosa explicitadora do seu emblema, o poema dispõe
engenhosamente desses elementos dos imaginários eruditos e populares a respeito de
ciganos presentes nos submundos marginalizados de diversas sociedades e culturas.
Entretanto, o que o torna tão bem realizado é a atribuição dessa carga conflitiva, que pesa
sobre o povo cigano, aos anjos, essas entidades que lhe são praticamente antitéticas, signo
maior de uma pureza quase divina. Eis o verso que precisamente estabelece esse nexo
atributivo: “Um anjo cigano que lia mãos e falava fumando”. Tal verso opera aí como um
enunciado que apresenta o personagem central do poema, deixando evidente que tanto a
existência como as características dos anjos ultrapassam, e de longe, a teologia católica
para alcançar sendas de variados universos míticos e místicos, haja vista que tais entidades
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celestiais estão igualmente presentes no judaísmo, no islamismo, no espiritismo, no
budismo, no hinduísmo e até mesmo na umbanda.
O poema ainda recolhe da identidade gitana a prática da quiromancia, os lenços, o
fumo, as flores, os perfumes, as danças e os instrumentos musicais habitualmente presentes
em suas celebrações. Também as caravanas são lembradas no texto, pois foi em virtude da
alta mobilidade desse tipo de nomadismo organizado que os ciganos se dispersaram de
Bizâncio em direção à Andaluzia e ao Cáucaso. Depois do apagamento dos seus rastros e
de uma fixação massiva fixação na Romênia, não é nada surpreendente que se tenha
acreditado que o povo cigano fosse mesmo originário da Europa Oriental, crença essa
também discutida no poema pela referência a moldávios e transilvanos.
Pesquisador da Hermenêutica e da Antropologia, Marcus Fabiano parece sentir-se
muito à vontade com o pensamento de Santo Agostinho para colecionar e combinar, com
vigorosa precisão, diversos elementos da angelologia dos três monoteísmos abraamicos.
Identifiquei em O ANJO CIGANO elementos presentes no Gênesis, no Apocalipse, no
Corão e na Cabala. Entretanto, quando o poeta se refere aos serafins de seis asas e aos
querubins de quatro caras (leão, boi, homem e águia), demonstra estar seguindo
estritamente a classificação das hierarquias angelicais presente em Pseudo-Dionísio, o
Areopagita, na obra De Coelesti Hierarchia (séc. V) e em São Tomás de Aquino, na Suma
Teológica (séc. XIII). Por esse caminho, uma farta iconografia do mundo cristão é invocada
na composição do emblema desse anjo cigano, incluindo-se nela, subrepticiamente, até
mesmo o anjo caído, que, embora não seja explicitamente nomeado como Lúcifer, faz-se
presente quando o autor alude a certos anjos que “envergonhavam-se desse ofício e assim
sucumbiam”.
A palavra anjo provém do latim angelus que, por seu turno, origina-se do grego
aggelos (ἄγγελος), com significado de anunciador ou mensageiro, uma característica
reiterada no poema por dois epítetos atribuídos a tais entidades: o de postino (carteiro, em
italiano) e de o oficial de justiça [do altíssimo], isto é, o funcionário de um juízo incumbido
da entrega de mandados, citações e intimações. Ao se referir a um anjo fumante vale ainda
observar, para além da evidente ironia, que o poeta pode estar recordando a intervenção
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divina feita através de um sopro, o pneuma, muito embora esse sopro esteja aí nitidamente
marcado por características mundanas, tais como a do prazer físico e mesmo do vício. O
que temos então é o desenho de uma entidade essencialmente híbrida, integrada por cargas
axiológicas colidentes e por um acumulado de diversas camadas culturais que se
distribuíram entre duas naturezas ontológicas polares, a divina e a humana, a celeste e a
terrena.
No seu início, o poema situa o leitor em um ambiente desértico, em uma atmosfera
caracteristicamente bíblica, mas que é logo desvirtuada por elementos fantásticos, na qual
anjos e najas eclodem de ovos, em uma perspicaz alusão tanto ao ovo da serpente como ao
ovo de anjo. Tais anjos, contudo, ainda têm a sua invisibilidade muito bem resguardada
contra a “impudica facúndia” do olho nu curioso e perscrutante. O texto é constituído de
versos em prosa encadeados por belas e às vezes raras sequências de rimas toantes e
aliterações. Entretanto, o domínio ecfrástico do autor, ao entrelaçar traços descritivos e
narradores em uma dicção cortante e lapidar, reclama uma alta agilidade de leitura ao
percorrer entre figuras e conceitos, imagens e doutrinas, referências explícitas e alusões.
Todo esse movimento seguramente requer um nível elevado de atenção interpretativa, pois
esse poema, para ser fruído em toda sua densidade, ainda exige que se detectem algumas
menções a ilustres representantes da cultura cigana, tais como a do guitarrista de jazz
Django Reinhardt e da Santa Sara Kali, a mítica virgem negra que teria sido a parteira ou a
escrava de Maria.
Com efeito, essa opulenta evocação cultural e histórica só se volve palatável graças
àquele elemento satírico que quase sempre Marcus Fabiano introduz em suas criações, o tal
grano salis muito bem identificado pelo crítico e tradutor norte-americano Richard Zenith
na sua apresentação do ARAME FALADO. A imensa carga mítica que poderia recair sobre
um poema acerca de anjos e de ciganos passa então a ser aliviada por um tom sofisticado e
bufo que inclusive aceita prosseguir rumo a um ambiente de verdades incômodas e
delicadas. A aversão de grande parte da Europa pelos ciganos torna fácil encontrar na
literatura, no jornalismo e no cinema de diversos países o uso, sem pejos nem cerimônias,
do termo cigano como um verdadeiro insulto. Será que isso se deve à tolerância da ética
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romi aos pequenos furtos? Se isso o poeta não nos responde, tampouco deixa de registrar. A
respeito de seu anjo cigano ele diz: “por seus hábitos esquivos, diziam tê-lo visto
roubando”.
Acossado pela perseguição racial, esse anjo cigano torna-se a presa de uma
desconfiança generalizada por onde quer que passe. Não é demais recordar o leito histórico
dessa circunstância. Recentemente, os ciganos também foram alvo do genocídio nazista ao
serem deportados aos milhões para campos de prisão e extermínio. Mas como um ente
quase humano, cuja casta alastrou-se pelo mundo, ele logrou sobreviver e acabou indo
parar na umbanda brasileira e até na Grécia Antiga, lá aprendendo com o clinâmen, o
desvio das partículas em queda imaginado pela doutrina atomista de Epicuro. Nessa altura,
ao aproximar-se do seu fim, o poema realiza um enlace transtemporal ao unir negros e
gregos e ao associar a discriminação dos primeiros com a ideia de um desvio físico (um
drible? uma ginga?) elevado à condição de estratégia de sobrevivência das minorias
oprimidas e dos itinerantes tratados como indesejáveis em diversos lugares e momentos. O
poema logo encerra-se dizendo que, o anjo cigano, “com os párias aprendeu a viver
desviando-se.” Outra vez aqui é preciso retirar a palavra pária, empregada pelo poeta, da
sua acepção mais genérica de homem excluído. Acredito que o autor esteja arrematando o
poema com a mesma concepção da ancestralidade indiana dos ciganos que desenvolveu
desde o início, pois, no sistema de castas do hinduísmo, rigidamente hierárquico em sua
interpretação da Lei de Manu e dos Vedas, os párias são justamente aqueles indivíduos
intocáveis e impuros (dalits) por serem desprovidos de quaisquer direitos na sociedade
bramânica (DUMONT, 1992).
Em meio a outras, essa tomada de posição, todavia, não é excepcional no ARAME
FALADO. O espelho literário dos poemas de Marcus Fabiano depende intimamente do seu
engajamento estético e político, impossível de ser aqui apreciado em sua extensão. Apenas
a título de exemplo, recordo, no mesmo capítulo de O ANJO CIGANO, os contundentes
versos dedicados à memória do poeta palestino Mahmoud Derwich em SHUKRAN. Na
correspondência que ensejou a elaboração do presente ensaio, o poeta certa vez empregou a
o termo pseudoanagógico para caracterizar os seus poemas que tratam de alegorias,
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conceitos e sentimentos associados à experiência do divino. Mas se o poeta, ao usar o
prefixo pseudo, declara que finge, não sei se devo confiar plenamente nessa sua
autodefinição – ela pode muito bem envolver o fingimento de um fingimento e, assim, estar
ocultando algum real sentimento místico, tido talvez por inconfessável. Corroborariam essa
minha dúvida os poemas OS DADOS DE DEUS e CARTA À POETA QUE EXAMINA
SEUS MEDOS – OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO
ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES
QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA.
O presente ensaio critico nasceu de uma proposta de entrevista que seria
posteriormente abandonada pelo autor. Ainda em Natal, na UFRN, onde foi Professor por
um breve período, o poeta exprimia o seu desconsolo com o esgotamento da poesia visual
brasileira. Referia-se não apenas ao concretismo, como também às suas fontes e aos seus
epígonos. Era ainda a época de elaboração do Arame Falado e ele contava sobre a sua
descoberta decisiva da emblemática ibérica em um congresso sobre Teoria da Metáfora em
Portugal, no ano de 2006 e das pesquisas teóricas e iconográficas que empreendeu nas
bibliotecas de Paris, onde residia. De fato, as vanguardas modernas que reclamaram a
inovação das poéticas da visualidade, sobretudo a partir de Mallarmé, ignoraram
solenemente o imenso patrimônio da emblemática (LÓPES, 1987; LEAL, 2010). E mesmo
que o Brasil tenha conhecido uma escassa circulação de livros durante o Siglo de Oro, o
expediente associativo do discurso emblemático foi aqui amplamente responsável pela
nutrição do imaginário assim chamado barroco. Além do milenarismo dos sermões de
Vieira, os emblemas plasticamente preservaram-se entre nós em painéis, azulejos, púlpitos,
entalhes, altares, telas, painéis, retábulos e outros suportes que fazem da arte sacra e do
humanismo ibero-americano um tesouro cultural e intelectual de difícil decifração
(TRINDADE, 2001). Não trato aqui, portanto, de identificar Marcus Fabiano como um
poeta emblemista exótico e extemporâneo. Procuro, isso sim, reconhecer nele alguém que
soube aliar a investigação à criação poética para revitalizar e habilmente incorporar uma
tradição decisiva na construção da identidade cultural luso-brasileira (AMARAL JR., 2008a
e b). Uma leitura de sua obra poética, mesmo célere, já de plano revela uma abundância de
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fontes, teorias, interesses e estilos que jamais poderiam ser enfeixados na perspectiva única
dos emblemas. No entanto, ignorar a excepcionalidade dessa influência no terreno
disputadíssimo da visualidade seria tratar como irrelevante algo que merece ser destacado
como inovador pelos resultados que produziu no campo da poesia brasileira.
Em um universo literário saturado pela platitude quotidiana e pelo lirismo
romântico, a presença dos poemas de Marcus Fabiano distingue-se por sua agudeza.
Enfrentar a metafísica sem incidir no vulgarmente supersticioso demanda uma segura
compreensão filosófica do sentido existencial da experiência mística. Ao mesmo tempo,
isso ainda reclama uma paradoxal distância crítica, como essa do autor, que não aparenta
abordar o seu tema sob o influxo de arroubos ou arrebatamentos. Como diz em seu poema
A MÁQUINA DO FUNDO, Marcus Fabiano preocupa-se com a soldagem entre forma e
substância em um dispositivo de ecos que se propõem a instaurar uma cadência específica
em versos irregulares que revezam assonâncias, aliterações e rimas toantes cautelosamente
escolhidas para evitarem os OO, reiterando assim que o anjo cigano “recusava a auréola e
a trombeta” - forma anelar da primeira, silhueta do grafema que exprime o som da
segunda. A tônica acústica dominante do poema é o som do A (Á/Â/Ã). Na resposta ao e-
mail no qual lhe propus um longo questionário sobre O ANJO CIGANO, o poeta disse-me
que procurou com insistência “algo do som timpânico, daquela frequência grave e surda
do ruído provocado pela percussão auscultatória dos pulmões, capaz de expressar tanto o
fluido do pneuma armazenado na caixa torácica quanto a oca carnalidade das vísceras.”
(e-mail de 07/04/2014). Esse som timpânico do Ã/Â faz-se presente desde a aliteração que
dá título ao poema até a sua parte final, alternando-se em duas séries de AA tônicos que
reverberam os termos Anjo e cigAno: a primeira, formada pelo grupo de palavras fumAndo,
humAno, brAnco, bAnjos, DjAngo; e a segunda, integrada por caravAnas, roubAndo,
cÂnones, transilvAnos, BrAhma, umbAnda, clinÂmen e desviAndo-se.
Ao arquitetar esse minucioso emblema das relações entre o divino e humano,
Marcus Fabiano incita-nos, com seus chistes e fraturas, seu sarcasmo e sua acuidade, sua
profusão sonora e sua precisão conceitual, a inquirirmos mais sobre o anjo e o cigano.
Tendo a reflexão sobre a própria linguagem como matéria primordial de grande parte de
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seus textos, o autor combina a ironia com a profundidade analítica em uma obra que, graças
ao seu rigor, já mereceu elogios de críticos da dimensão de Richard Zenith, Carlos Felipe
Moisés e Alcir Pécora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fachadas de cal ponían
cuadrada y blanca la noche.
Serafines y gitanos
tocaban acordeones.
Federico García Lorca
O ANJO CIGANO
o bem e o mal ainda na mesma barra. no berçário congeminavam ninhadas de anjos e najas.
fora dos ovos, na jacente areia desértica, as serpentes feneciam como vermes, enquanto os
anjos afluíam ao firmamento eterno. azuis e sobre as nuvens, eram infensos ao olho nu e
sua impudica facúndia, translúcidos pois do mesmo tom de seu fundo. no alto treinavam
flanquear beiras protegendo suas plumas. tornavam-se perscrutantes como o periscópio das
corujas. havia serafins de seis asas e querubins de quatro caras (leão e touro, homem e
águia). logo abaixo, os arcanjos eram reputados devotos postinos, oficiais de justiça do
altíssimo, mensageiros de seus urgentes desígnios. os mais briosos envergonhavam-se
desse ofício e assim sucumbiam. outros cuidavam de glorificar seus estilos. dentre estes,
destacava-se um anjo cigano que lia mãos e falava fumando. ria alto, era quase humano.
lenço no lugar dos cachos, pardo em vez de branco. tornara-se exímio com violinos e
banjos. soprava acordes à guitarra de Django e só fazia seus anúncios dançando. recusava a
auréola e a trombeta. era mais de perfumes e rosas vermelhas. assistiu Sara Kali como
parteira e correu o mundo em incontáveis caravanas. por seus hábitos esquivos, diziam tê-lo
visto roubando. aos poucos misturou-se a outras quinas e cânones. entre moldávios e
transilvanos falava de Shiva, Vishnu e Brahma. pretos e gregos o iniciaram nos couros da
umbanda e no apedrejamento do clinâmen. com os párias aprendeu a viver desviando-se.