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Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 27, 2015/1 482 O antirrealismo cervantino em Machado De Assis The Cervantine Antirealism in Machado de Assis Vitor Bourguignon Vogas * Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes Wilberth Claython Ferreira Salgueiro * Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes RESUMO: Historicamente, a obra de Machado de Assis, a partir de 1881, tem sido equivocadamente classificada como realista por parte de uma parcela da crítica literária, equívoco reproduzido em alguns livros didáticos. Neste artigo, apoiando-nos em Fuentes, Vargas Llosa, Bernardo e outros autores, buscamos demonstrar o quanto, na realidade, a produção machadiana se distancia dessa concepção, na medida em que privilegia precisamente características antirrealistas: a autocelebração como ficção, o jogo com as formas narrativas, as digressões temporais, a experimentação com a linguagem e a desconstrução da autoridade e da credibilidade atribuídas ao narrador. Nesse sentido, perfila- se ao que Fuentes definiu como ―tradição de La Mancha‖, cujas raízes se encontram no romance Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Miguel de Cervantes. Tradição de La Mancha. Realismo. Ficcionalidade ABSTRACT: Historically, the novels and short stories written by Machado de Assis after 1881 have been erroneously classified as realistic by part of the literary critic. Such a mistake has even been reproduced on some school books. Based on Fuentes, Vargas Llosa, Bernardo and other authors, the goal of this article is to demonstrate that, in fact, the Brazilian novelist‘s * Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. * Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O antirrealismo cervantino em Machado De Assis The

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O antirrealismo cervantino

em Machado De Assis

The Cervantine Antirealism in Machado de Assis

Vitor Bourguignon Vogas* Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes

Wilberth Claython Ferreira Salgueiro*

Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes

RESUMO: Historicamente, a obra de Machado de Assis, a partir de 1881, tem sido equivocadamente classificada como realista por parte de uma parcela da crítica literária, equívoco reproduzido em alguns livros didáticos. Neste artigo, apoiando-nos em Fuentes, Vargas Llosa, Bernardo e outros autores, buscamos demonstrar o quanto, na realidade, a produção machadiana se distancia dessa concepção, na medida em que privilegia precisamente características antirrealistas: a autocelebração como ficção, o jogo com as formas narrativas, as digressões temporais, a experimentação com a linguagem e a desconstrução da autoridade e da credibilidade atribuídas ao narrador. Nesse sentido, perfila-se ao que Fuentes definiu como ―tradição de La Mancha‖, cujas raízes se encontram no romance Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis. Miguel de Cervantes. Tradição de La Mancha. Realismo. Ficcionalidade ABSTRACT: Historically, the novels and short stories written by Machado de Assis after 1881 have been erroneously classified as realistic by part of the literary critic. Such a mistake has even been reproduced on some school books. Based on Fuentes, Vargas Llosa, Bernardo and other authors, the goal of this article is to demonstrate that, in fact, the Brazilian novelist‘s

* Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.

* Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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work does not confirm such a conception, since it emphasizes precisely some anti-realistic characteristics: the self-celebration as fiction, the way he persistently plays with the narrative forms and time digressions, the experimentation involving the language and the deconstruction of the authority and reliability supposedly revealed by the narrator. Therefore, Assis would be better placed as one of the representatives of the so-called ―La Mancha tradition‖, inaugurated by Miguel de Cervantes through Don Quijote. KEYWORDS: Machado de Assis. Miguel de Cervantes. La Mancha Tradition. Realism. Fiction

Querer a verdade é confessar-se incapaz de a criar.

Friedrich Nietzsche

Ao discorrer sobre a literatura que a América Ibérica deu à luz ao longo do

século XIX, o escritor mexicano Carlos Fuentes, um admirador declarado de

Machado de Assis, classifica-o como nada menos que um milagre em território

ibero-americano e o define como o único herdeiro direto da tradição de

Cervantes (ou ―tradição de la Mancha‖, como prefere Fuentes), entre todos os

autores publicados nas Américas naquele século. A essa tradição literária,

cuja nascente seria o romance Don Quijote de la Mancha (1605), do espanhol

Miguel de Cervantes, Fuentes contrapõe uma outra, a qual denomina

―tradição de Waterloo‖. Enquanto esta corresponde à literatura que se

pretende reflexo da realidade, ou se afirma como a própria realidade, a

―tradição de la Mancha‖, inaugurada por Cervantes, abarca certa concepção

de literatura que segue precisamente pela mão oposta: trata-se de uma

literatura que se sabe não realidade e que não se envergonha disso em

absoluto; ao contrário, assume-se como ficção e celebra-se como tal. Na

perspectiva cervantina, da ―tradição de La Mancha‖, a realidade existe dentro

do próprio texto ficcional.

Fuentes se refere a Machado como ―un escritor americano de lengua

portuguesa y raza mestiza que, solitario en el mundo como una estatua

barroca de Minas Gerais del realismo decimonónico, redescubre y reanima la

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tradición de La Mancha contra la tradición de Waterloo‖ (FUENTES, 1998, p.

4). Nesse ínterim, impõe-se uma diferenciação entre essas duas categorias

propostas pelo escritor mexicano, o que ele mesmo se encarrega de fazer.

Segundo Fuentes, historicamente, a tradição de La Mancha é inaugurada por

Cervantes como um contraponto à modernidade triunfante, por meio de Don

Quijote, um romance que teria fundado outra realidade mediante a

imaginação e a linguagem, a burla e a mistura de gêneros. Essa linhagem,

prossegue Fuentes, teve como primeiros sucessores autores como Sterne, com

seu Tristram Shandy, e Diderot1, em cujas obras se podiam verificar

características como a poética da digressão, a ênfase no jogo temporal e um

leque de alternativas para a narração. No entanto, La Mancha acabou sendo

interrompida pela tradição de Waterloo, ou seja, ―por la respuesta realista a

la saga de la Revolución Francesa y el imperio de Bonaparte‖ (FUENTES, 1998,

p. 5).

La tradición de Waterloo se afirma como realidad. La tradición de La Mancha se sabe ficción y, aun más, se celebra como ficción. Waterloo ofrece rebanadas de vida. La Mancha no tiene más vida que la de su texto, haciéndose en la medida en que es escrito y es leído. Waterloo surge del contexto social. La Mancha desciende de otros libros. Waterloo lee al mundo. La Mancha es leída por el mundo. Waterloo es serio. La Mancha es ridícula. Waterloo se basa en la experiencia: nos dice lo que sabemos. La Mancha se basa en la inexperiencia: nos dice lo que ignoramos. Los actores de Waterloo son personajes reales. Los de La Mancha, son lectores ideales. Y si la historia de Waterloo es activa, la de La Mancha es reflexiva

(FUENTES, 1998, p. 5-6).

Percebe-se, assim, que a tradição de Warterloo, amplamente ressoada pelos

expoentes do Realismo e do Naturalismo no século XIX, sustentava uma

concepção de literatura que era, em boa medida, utilitária, funcional,

instrumental. Segundo o crítico Massaud Moisés (2001), trilhando nas pegadas

da medicina experimental de Claude Bernard, preconizavam Taine e Zola e

1 Chame-se a atenção para o fato de que, no prólogo (Ao leitor) de seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), que desencadeia todo o jogo metaficcional da narrativa, o defunto-autor que dá nome ao livro faz alusão direta a Sterne. ―Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo‖ (ASSIS, 2009, p. 13).

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outros a transposição do modelo científico, de laboratório, para o exame da

realidade contemporânea por meio da ficção.

E o resultado é sobejamente conhecido: para os naturalistas, seguidores de Zola, a sociedade contemporânea, de estrutura burguesa, enfermava de males crônicos, necessitados de urgente correção. E achavam que a denúncia literária que faziam, estribada na ação determinante da herança, do meio e das circunstâncias, poderia contribuir para o saneamento social. [...] Em suma, a teoria científica concretizava-se em teses, e estas eram empregadas nos textos ficcionais como dogmas indiscutíveis. A consequência foi que a patologia social que exibiam nos romances e contos não era constituída de exceções, mas de uma regra: para que a tese se sustentasse, era preciso mostrar que a sociedade toda estava condenada à falência; ou por outra, defendiam que o organismo social ostentava males físicos e morais sem cura, salvo com a mudança do sistema político, religioso, moral e social que lhes servia de base (MOISÉS, 2001, p. 139, grifos nossos)

No livro A ascensão do romance (1990), Ian Watt, citado por Ginzburg (2013),

formula uma concepção de Realismo segundo a qual essa corrente se baseia

na busca pela objetividade e na aproximação entre realidade e ficção.

Trata-se de uma concepção formal pautada pelo cartesianismo, por uma caracterização do conhecimento que tem a expectativa de objetividade. Entre a realidade representada e a matéria ficcional, existiriam semelhanças suficientes para permitir um reconhecimento (GINZBURG, 2013, p. 33).

Essa pressuposição do vínculo direto entre literatura e realidade é alvo de

críticas por parte de Ginzburg, no livro Literatura, violência e melancolia:

A ideia de que o texto literário seja um registro imediato da realidade – aqui sendo cabíveis palavras como documento, reflexo, fotografia – supõe que a realidade possa ser captada sem mediação, como se o escritor não elaborasse suas reflexões, como se o leitor não estivesse desenvolvendo desde o primeiro contato com o texto suas articulações próprias. Mais do que tudo, como se a relação entre linguagem e referente fosse alheia à passagem do tempo e pautada na transparência. Se de fato a modalidade estética adotada pelo escritor tende a uma escolha interessada em que o leitor assuma a expectativa de que o que está lendo é a realidade, trata-se de uma expectativa de um efeito de verdade, construído retoricamente e linguisticamente.

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Diversos escritores destacam-se por usarem procedimentos voltados para esse fim, optando por estratégias como a narrativa linear, a configuração e um narrador estável com aparência de objetividade, um tempo organizado em continuidade e uma seleção de vocabulário próxima da confiabilidade atribuída, em seus contextos de recepção específicos, a profissionais como jornalistas ou historiadores (GINZBURG, 2013, p. 34, grifo nosso).

Diante dessas definições, forçoso é reconhecer que a peremptória

classificação de Machado de Assis como representante do Realismo literário no

Brasil – ou, conforme alguns insistem, como o ―fundador‖ ou até mesmo como

―o máximo expoente‖ dessa corrente no país – é, para dizer o mínimo,

precipitada. Trata-se de uma classificação que não encontra amparo nos fatos

e nos próprios escritos machadianos, caindo por terra ao se chocar com a

literatura que o autor escreveu e, ainda, com o que escreveu sobre a

literatura. A análise mais detida da obra machadiana conduz a indícios muito

claros de que o Bruxo do Cosme Velho – sem exclusão, naturalmente, de

outras visíveis influências – bebeu, sim, e sem parcimônia, da fonte

cervantina, inspiradora de escritores como ele, alinhados à tradição de La

Mancha2, mas renegada e interrompida por escritores que habitavam Waterloo

– entre os quais os realistas que de fato merecem ser assim chamados. ―En

medio de ambas tradiciones, Machado de Assis, nacido en 1839 y muerto en

1908, revalida la tradición interrumpida de La Mancha y nos permite

contrastarla, de manera muy general, con la tradición triunfante de

Waterloo‖ (FUENTES, 1998, p. 5).

Primeiramente, como negar que a obra de Machado – mormente, a da fase

pós-1881 – seja não só assumida como orgulhosamente fictícia? Prova-o,

irrefutavelmente, já em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) – marco

2 Em Machado de Assis e Arthur Schopenhauer: literatura e filosofia em Quincas Borba, Xavier nos recorda que, ―pensando as influências que Machado sofreu, Sá Rego liga-o a uma linhagem de autores que não se fixam na realidade: Luciano, Erasmo, Cervantes, Sterne. Esse é o berço machadiano. Seu texto é ficcional, a sua preocupação maior é o fazer poético (―poiesis‖ é criação). Para tanto, as tradições são rejeitadas e desautorizadas pela imaginação‖ (XAVIER, 2008, p. 29).

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inaugural da segunda fase da produção machadiana3 –, a criação de um

personagem-autor que estabelece com o leitor um jogo metaficcional (uma

ficção dentro da outra, ao modo de caixas chinesas); autor que tem

consciência de que está a escrever o livro e, não satisfeito, comenta a todo

instante com o leitor o processo mesmo de construção da narrativa. Ora, o

que se acaba de dizer já seria, por si, argumento forte o bastante para afastar

Machado de vez do rótulo de ―realista‖, mas o escritor vai muito além e

surpreende os leitores com nada menos que um autor-defunto, ou melhor, um

defunto-autor, que desenovela as suas memórias ―com a pena da galhofa e a

tinta da melancolia‖ desde o além-túmulo, inovação literária que não só

representa um ponto de ruptura estética dentro da obra do próprio Machado,

como transcende tudo o que se poderia chamar à época de ―literatura

realista‖, aliás, tudo o que se fazia em matéria de literatura nas Américas,

conforme Fuentes nos aponta.

Más específicamente manchego es que una novela se sepa a sí misma ficción, sea consciente de su naturaleza fictiva. [...] Don Quijote es el primer personaje de la novela moderna que se sabe escritor impreso y leído, como Tristram Shandy se sabe escrito por sí mismo y como Blás Cubas sabe que también está siendo escrito por sí mismo, pero no por un Blás Cubas cualquiera, sino por un Blás Cubas muerto, que redacta sus memorias desde la tumba (FUENTES, 1998, p. 6).

Essa visão é vivamente corroborada por Anderson da Costa Xavier, em

Machado de Assis e Arthur Schopenhauer: literatura e filosofia em Quincas

Borba. Para o autor:

A partir de Brás Cubas, [Machado] rompeu com certas estruturas ficcionais cristalizadas, fugindo dos lugares-comuns e dos estereótipos, recusando o trivial e a conveniência. Criticou a escola realista em ensaios e romances, a começar pela história do defunto-autor. O narrador, que está ―do outro lado do mistério‖, é uma afronta aos paradigmas do Realismo formal (XAVIER, 2008, p. 14).

3 Note-se que o próprio Machado de Assis não refutava a divisão de sua obra em duas fases bem demarcadas, embora jamais tenha admitido classificar a primeira como romântica e a segunda como realista (BERNARDO, 2008).

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Deliberadamente ou não, o brasileiro colhe a lição plantada pelo mestre

Cervantes em seu Don Quijote: apropria-se – ao seu próprio estilo, é claro –

dos recursos narrativos que Cervantes lançou e que se encontram em profusão

nos contos e romances que publicou desde Memórias póstumas de Brás Cubas

(1881), recursos que flertam a todo instante com a metalinguagem e que, nas

entrelinhas, realçam precisamente o caráter ficcional do texto4: a maneira

como lida/joga com o tempo da narrativa, definida pelo próprio Brás Cubas

como ―ébria‖ e que, haja vista as constantes digressões, poderíamos também

chamar de sinuosa, oscilante, ziguezagueante; a escolha do foco narrativo,

com destaque para o narrador intruso, volúvel (Schwarz), que estabelece com

o leitor um diálogo permanente – não raro em tom sarcástico, zombeteiro,

debochado, mesmo ofensivo5 – e que não se mostra inteiramente confiável

quanto ao domínio e à memória dos fatos a serem narrados, o que põe em

xeque a sua autoridade e reforça outro ponto quixotesco fulcral no texto

machadiano: a problematização da autoria do texto.

Ao estabelecer um corte entre o autor ficcional e o autor empírico – casos

clássicos, o do Conselheiro Aires e, sobretudo, o do defunto-autor Brás Cubas –

, dividindo a narrativa em camadas – a exemplo do que se vê no Quijote –,

Machado atualiza a proposta cervantina de des-autorizar a narrativa – ou seja,

destituir o autor de autoridade sobre o texto, ou, ainda, destituir o texto de

um autor com absoluta e incontestável autoridade sobre aquilo que está

escrito. Ter-se-ia, portanto, um autor sem autoridade, des-autorizado. E essa

des-autorização teria por resultado a dessacralização da figura do autor,

intocável dentro de uma perspectiva fiel à tradição de Waterloo, como a que

sustinham os autênticos realistas, para os quais o autor não seria senão um

observador atento da realidade social, cuja missão seria a de transferir para o

4 Nas próprias Memórias póstumas de Brás Cubas, é marcante, entre muitas outras passagens, a dedicatória do autor presumível: ―Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas‖ (ASSIS, 2009, p. 12).

5 Lê-se, por exemplo, ao fim do prólogo de Memórias póstumas de Brás Cubas: ―A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus‖ (ASSIS, 2009, p. 12).

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papel o resultado dessa observação, do modo mais objetivo possível – a

literatura tida como um canal, e não como fim em si mesmo.

Ora, tal concepção, principalmente no que tange à perseguição obsessiva da

referida ―objetividade‖, não poderia ser mais oposta ao texto machadiano, no

qual a dúvida, o questionamento, a suspeita e a insegurança ocupam papel

central – para ficar em um exemplo, tome-se o clássico Dom Casmurro (1899)

–, a começar, insista-se, pela própria caracterização do narrador, que

frequentemente se revela bem pouco ou nada confiável.

Por fim, entre as características que aproximam Machado definitivamente da

tradição de La Mancha – distanciando-o, na mesma medida, de Waterloo e do

Realismo –, ressalte-se o recurso constante à burla, à sátira, ao humor, que,

nas pegadas de Cervantes, o autor brasileiro emprega com fartura, a fim de

contestar, ironizar e pôr em xeque ideias, valores e instituições fortemente

em voga na sua época – destaque, de um lado, para a Fé, a Metafísica e o

Romantismo, e, por outro, para a Ciência, a Razão, o Positivismo e, por

extensão, o próprio Realismo, como se verá na sequência deste ensaio.

Tanto em Memórias póstumas de Brás Cubas como em Quincas Borba, os

personagens-título exprimem ideias que, sob o disfarce de teorias muito bem

fundamentadas, na verdade desvelam o que essa pretensa racionalidade pode

conter de hipocrisia e até mesmo de insanidade. No primeiro caso, fiquemos

com a ―lei da equivalência das janelas‖, registrada em Brás Cubas. No

segundo, atenhamo-nos à ―teoria das batatas‖, expressa pelo ―filósofo‖

Quincas Borba na obra homônima.

O primeiro episódio revela uma das pedras fundamentais da narrativa

machadiana: a constituição complexa, ambígua e antimaniqueísta dos

caracteres humanos, aqui representada pela falsa moral do protagonista. Ao

encontrar fortuitamente moeda de valor irrisório, ele a restitui à polícia e

proclama: ―o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de

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que a moral possa arejar continuamente a consciência‖ (ASSIS, 2009, p. 83).

Note-se contudo que, na sequência da narrativa, ao deparar com quantia

vultosa, Brás Cubas não só se abstém de repetir o procedimento como forja

outra justificativa para conferir um verniz de coerência à incoerência da

mudança de atitude: ―um lance da Providência‖ (ASSIS, 2009, p. 84).

Já o segundo exemplo nos traz uma das muitas alegorias usadas por Quincas

Borba em seu (vão) esforço de explicar sua obscura filosofia: o Humanitismo,

máxima expressão da crítica altamente satírica que Machado dedicava às

correntes de pensamento então hegemônicas. Embora revestida de filosofia

muito austera, trata-se, isto sim, de clássica paródia machadiana à

racionalidade exacerbada da época. ―Ao vencedor, as batatas‖ (ASSIS, 2009,

p. 22), sentencia o alienado filósofo, para conferir à guerra e à barbárie uma

justificativa pretensamente lógica, moral e racional, o que, como sabemos, é

absolutamente questionável.

Em ambos os casos, vemos como Machado satiriza e expõe o ridículo do

cientificismo então em voga, como afirma Anderson da Costa Xavier:

O narrador machadiano rejeita ideologias e, por vezes, as ridiculariza. [...] O Realismo formal concebe o mundo como realizado. A ficção de ordem irônica observa o mundo em construção, uma obra aberta. Não há qualquer posição absoluta ou inquestionável. Ironicamente, o mundo é um eterno fazer-se e desfazer-se. Machado mostra que o real é potencialmente um devir, que precisa ser isto de modo fragmentário. Por meio da fragmentação, é possível desvelar o todo (XAVIER, 2008, p. 35).

Conclui-se, assim, que a obra de Machado de Assis, particularmente a partir

de 1881, não apresenta aquelas características enumeradas por Ginzburg

como marcas realistas – a narrativa linear, a configuração e um narrador

estável com aparência de objetividade, um tempo organizado em

continuidade e uma seleção de vocabulário próxima da confiabilidade

atribuída, em seus contextos de recepção específicos, a profissionais como

jornalistas ou historiadores –, mas, antes, opõe-se a estas. No texto

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machadiano, verificam-se, ao contrário, as características listadas por Vargas

Llosa (2004) como herança direta de Cervantes a todos aqueles que, como

Machado, lhe devem tributo:

Cervantes, para contar la gesta quijotesca, revolucionó las formas narrativas de su tiempo y sentó las bases sobre las que nacería la novela moderna. Aunque no lo sepan, los novelistas contemporáneos que juegan con la forma, distorsionan el tiempo, barajan y enredan los puntos de vista y experimentan con el lenguaje, son todos deudores de Cervantes (VARGAS LLOSA, 2004, p. 23, grifo nosso).

Machado sobre o Realismo

A precipitação em classificar Machado de Assis como realista é

necessariamente reducionista. Para fins didáticos, professores do ensino

fundamental e médio adotam essa classificação e a retransmitem a seus

alunos, assim perpetuando o equívoco. A classificação de Machado como autor

realista partiria de um critério inteiramente simplista: o do período em que

sua obra foi publicada. Além disso, exaltar a narrativa machadiana como

expoente do Realismo no Brasil teria contribuído para canonizar a sua obra,

porém, em contrapartida, teria produzido o efeito negativo de ocultar o

equívoco contido nessa classificação.

No artigo ―Machado de La Mancha contra o Gigante do Realismo‖ (2008),

Gustavo Bernardo defende que, em verdade, mais do que um equívoco,

classificar Machado de Assis como realista é uma enorme contradição. O autor

salienta que uma das principais características da estética realista é a

pretensão de ―expressar fielmente a realidade‖. Assim, por princípio estético,

as obras eminentemente realistas-naturalistas não transcendem a realidade

cotidiana. Sob influência do Positivismo e de outras correntes científico-

filosóficas amplamente difundidas na segunda metade do século XIX, os

realistas acreditavam-se movidos pela razão e nutriam a pretensão de

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reproduzir fidedignamente a realidade em suas obras, da maneira mais

objetiva e menos ficcional possível.

A título de exemplo, Bernardo recorda que um dos ícones do Naturalismo no

Brasil, Aluísio de Azevedo, na epígrafe de O cortiço (1890), sua obra mais

relevante e conhecida, usa o lema do direito criminal: ―toda a verdade, nada

mais do que a verdade, somente a verdade‖. Décadas mais tarde, no auge do

Realismo Socialista no Brasil, Jorge Amado afirma na epígrafe de Cacau (1933)

que tentou contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da

Bahia ―com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade‖.

―Como se a literatura fosse desonesta‖, pondera Bernardo. ―A ilusão da

superioridade realista é tão forte que o escritor se desculpa por fazer ficção‖

(2008).

Por sua vez, o que Machado fazia era precisamente dessacralizar a razão,

retirá-la do pedestal ao qual a haviam elevado os seus contemporâneos. Se a

razão busca sempre uma lógica classificatória, Machado, por seu turno, fazia

questão de se opor a qualquer classificação simplista, como demonstra a

caracterização das suas personagens, de ordinário antimaniqueístas, assaz

complexas e ambíguas. Ademais, como assinala Gustavo Bernardo (2008), a

ficção literária não se opõe à realidade, mas parte dela mesma para tornar a

ela reinterpretando-a – especificamente no caso de Machado, deixando

sempre um espaço arejado à possibilidade do erro e da dúvida:

Machado chama a atenção do seu leitor, através de intervenções metaficcionais constantes, de que ele mostra apenas um efeito de real e não o real mesmo, exatamente porque ele não quer mostrar ―a‖ realidade, mas sim diversas perspectivas sobre a realidade, deixando-as ao mesmo tempo, e todas elas, sob suspeita (BERNARDO, 2008, p. 8-9),

Nesse sentido, segundo Xavier, pensar a realidade no texto machadiano é

sempre um desafio, porque, ―embora seja permeado de elementos

verossímeis, o real é sempre criado, não imitado‖ (XAVIER, 2008, p. 28).

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Retomando Schwarz, o autor ressalta que Machado se negou a compor

imagens fotográficas, dando preferência à recriação, pois o ―valor artístico e

a verdade da obra não residem na semelhança do retrato, mas nas

perspectivas e nas reconfigurações que a busca da semelhança ocasionou‖

(SCHWARZ, apud XAVIER, 2008, p. 28).

Não bastassem os argumentos acima para demover de Machado de Assis a

etiqueta de escritor realista, vejam-se algumas das afirmações que o próprio

autor, na condição de crítico literário, deixou registradas acerca do Realismo.

―A realidade é boa, o Realismo é que não presta para nada‖, escreveu ele em

ensaio intitulado ―A Nova Geração‖ (1879). Emblemática, a frase é assim

interpretada por Gustavo Bernardo:

Ao dizer ‗a realidade é boa‘, Machado recusa o niilismo de que o acusaram tantos. Já o Realismo ―não presta para nada‖ porque, pretendendo dobrar a vida à sua perspectiva, termina por recusá-la e não por afirmá-la; pretendendo descrever a tal da vida como ela é, faz apenas uma ―reprodução fotográfica e servil das cousas mínimas e ignóbeis‖ (BERNARDO, 2008, p. 9-10).

Já na célebre crítica ao romance O primo Basílio, de Eça de Queiroz (1878),

Machado pede literalmente a exclusão do Realismo por considerá-lo ―uma

doutrina caduca, embora no verdor dos anos‖: ―Voltemos os olhos para a

realidade, mas excluamos o Realismo; assim não sacrificaremos a verdade

estética‖. De acordo com Gustavo Bernardo (2008), sob o prisma machadiano,

essa ―verdade estética‖ seria não a verdade em si, não a ―realidade real‖,

mas a verdade ficcional, a verdade do escritor que não esconde do seu leitor

que faz ficção. A verdade, portanto, contida dentro dos limites do texto.

Para além da crítica literária, cabe ressaltar que Machado de Assis tratou de

espalhar em sua própria obra inúmeros sinais que indicam a sua opinião crítica

em relação ao Realismo – no qual, paradoxalmente, alguns preferem situá-lo.

Alguns desses sinais são bastante explícitos; outros, como é peculiar em sua

obra, devem ser escavados dentre as linhas do texto; em comum, trazem a

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marca do sarcasmo. Machado não apenas rechaçava as ideias realistas, como

fazia troça desse estilo literário; ao longo de sua obra, dispensou-lhe toda a

sua ironia, por meio de personagens que encarnavam representações caricatas

dessa corrente de pensamento movida por uma suposta racionalidade

científica (Simão Bacamarte) e filosófica (Quincas Borba, Brás Cubas).

Desse modo, quando se chama Machado de Assis de escritor realista,

desconsidera-se, por exemplo, em inexplicável omissão, a caricatura do

positivista/realista representada por personagens basilares em sua obra, que

se equilibravam na corda bamba entre a loucura e a razão; personagens como

um Quincas Borba, que, com ares de um duvidoso sábio, professava a sua

filosofia assentada em bases igualmente duvidosas, o Humanitismo

(Positivismo exposto ao ridículo)6; ou, ainda, como um Simão Bacamarte,

personificação hiperbólica da Razão, da fé irredutível na Ciência, aquele que

estava sempre certo, mesmo quando se percebia totalmente equivocado;

representação caricata da autoridade, da autoconfiança e da infalibilidade

científica, o alienista do conto homônimo não hesita em inverter por

completo os critérios de classificação da sua pesquisa conforme lhe convém

(note-se, porém: sem nunca sequer cogitar falar em erro); transforma o

microcosmo da pequena vila de Itaguaí em um laboratório de experimentos

onde os moradores são reféns de seus arbítrios; a pretexto de cumprir uma

empresa de caráter exclusivamente científico – estabelecer de vez as

fronteiras entre a loucura e a Razão e classificar claramente o rol de

patologias cerebrais –, acaba pondo em marcha uma espécie de absolutismo

científico, despotismo revestido de Ciência; numa palavra, despositivismo.

6 Em nota dos editores, na edição de Quincas Borba da Saraiva (2009), lê-se, acerca do Humanitismo formulado por Quincas Borba: ―Provavelmente, há aqui uma crítica subliminar de Machado de Assis à doutrina de Augusto Comte (1798-1857), criador do Positivismo, teoria filosófica baseada na famosa lei dos três estados, de acordo com a qual a história humana cumpriria três fases; uma teológica, marcada pela crença nos deuses e mitos, uma metafísica, concentrada na crença em Deus, e, por fim, uma positiva, cujo centro seria a crença na ciência. Essas três etapas representam, segundo Comte, uma evolução da humanidade. Por isso, o Positivismo sugeriu a assimilação das organizações anteriores da sociedade à nova ótica da ciência. [...] É uma filosofia que, de certo modo, prega um otimismo evolucionista, contrária, portanto, às ideias de Machado. A sua ironia certamente se valeu dessas e de outras ideias desse tipo, em voga no século XIX‖ (ASSIS, 2009, p. 18).

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Recordemos, ainda, a metáfora do corcel exaurido do cavaleiro medieval,

com a qual Machado nos brinda no capítulo XIV das suas Memórias Póstumas

de Brás Cubas, intitulado O primeiro beijo. Nessa passagem, a um só tempo, o

Bruxo do Cosme Velho mofa tanto do Romantismo quanto do Realismo,

destilando a sua fina ironia contra essas correntes literárias.

Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o Romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto que foi preciso deitá-lo à margem, onde o Realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros (ASSIS, 2009, p. 38).

Por fim, reverberamos a conclusão a que chega Xavier sobre este tópico:

Com seu ceticismo, o autor de Várias histórias dissecou o interior humano. [...] Não se limitou ao Romantismo, da mesma forma que não se submeteu aos exageros da observação realista/naturalista da sociedade. Em vez de enveredar no legado da qualquer tendência estética, refletiu e nos leva a refletir sobre o teatro do mundo, sem esquecer de fazer literatura (XAVIER, 2008, p. 13).

A celebração da ficção

Como sabemos, na obra homônima, o personagem Don Quijote ganha vida

quando o fidalgo Alonso Quijana, levando uma vida pacata e ociosa em sua

propriedade rural encravada na região de La Mancha, passa a se dedicar

sofregamente à leitura de novelas de cavalaria, então muito populares na

Europa. Possivelmente, as novelas que Alonso lia compulsivamente têm o

efeito de catalisar, como diria Machado, o ―grãozinho de sandice‖ que nele já

residia. Fato é que a tal ponto o fidalgo se vicia em tais leituras que ―seu

cérebro acaba por se secar‖. Tomado pela loucura, Alonso adota para si uma

nova identidade, passando a incorporar um dos heróis de cavalaria tão

próprios das histórias fantásticas em cuja leitura se lançara avidamente. Sai,

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então, mundo afora, escudado pelo fiel Sancho Panza, em busca de aventuras

nas quais possa ―endireitar o torto‖, à maneira dos heróis cavalheirescos

extraídos das novelas de sua predileção.

Sempre que enxerga uma oportunidade (e em geral só ele mesmo a enxerga),

o ―Cavaleiro da Triste Figura‖ busca aplicar à realidade empírica com que

depara o código de valores (justiça, honra etc.) próprio daquele universo

ficcional – o qual ele, no entanto, toma por realidade. O Quijote, assim, faz

valer, na dimensão do real, princípios e ideais que só são reais no plano da

ficção; movido por uma cega obstinação, empenha-se em corrigir esse mundo

real que lhe serve de cenário às ilusórias aventuras. Fá-lo, porém, com base

em um ideário que em verdade é ficcional, mas que ele já não é capaz de

reconhecer como tal. É o que defende o Nobel de Literatura Mario Vargas

Llosa, no artigo ―Una novela para el siglo XXI‖ (2004):

Este ideal es imposible de alcanzar porque todo en la realidad en la que vive El Quijote lo desmiente: ya no hay caballeros andantes, ya nadie profesa las ideas ni respeta los valores que movían a aquellos, ni la guerra es ya un asunto de desafíos individuales en los que, ceñidos a un puntilloso ritual, dos caballeros dirimen fuerza (VARGAS LLOSA, 2004, p. 13).

Para o mesmo autor, o desatinado cavaleiro manchego faz com que a

realidade se dobre à ficção de tal sorte que ela, paulatinamente, se

―desrealiza‖, na mesma proporção em que vai se ficcionalizando.

El sueño que convierte a Alonso Quijano en don Quijote de la Mancha no consiste en reactualizar el pasado, sino en algo todavía mucho más ambicioso: realizar el mito, transformar la ficción en historia de vida. Este empeño […] va […], poco a poco, en el transcurso de la novela, infiltrándose en la realidad, se diría que debido a la fanática convicción con la que el Caballero de la Triste Figura lo impone a su alrededor. [...] aunque el Quijote no cambia, encarcelado como está en su rígida visión caballeresca del mundo, lo que sí va cambiando es su entorno, las personas que lo circundan y la propia realidad que, como contagiada de su poderosa locura, se va desrealizando poco a poco hasta – como en un cuento borgiano – convertirse en ficción.

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Éste es uno de los aspectos más sutiles y también más modernos de la gran novela cervantina (VARGAS LLOSA, 2004, p. 14-15, grifo nosso).

Aqui, talvez seja possível traçar uma analogia entre a concepção de realidade

nutrida pelo Quijote (subordinando esta à ficção) e a concepção de literatura

mantida pelos realistas no século XIX (subordinando-a, por sua vez, à

realidade): assim como, dois séculos mais tarde, os escritores realistas

pretendiam que a literatura imitasse a realidade social como se fosse um

negativo desta, Alonso Quijano, como péssimo leitor que era, passou a

acreditar que a ficção era, em verdade, reprodução da realidade de seu

tempo, e que, portanto, a realidade empírica para além dos limites de sua

propriedade deveria se moldar à dos romances de cavalaria que ele tanto

consumia e apreciava – os quais tratavam, contudo, de um mundo fantástico e

obsoleto.

Ou seja, enquanto os autores realistas, herdeiros em linha reta da tradição de

Waterloo, se esmeravam em transpor a realidade diretamente para a

literatura, qual uma cópia fidedigna, o Quijote, em seu desvario, cria que era

a própria literatura que deveria ser transposta à realidade, curvando-se esta à

ficção. Os realistas se propunham adaptar a ficção à realidade; o Quijote, a

realidade à ficção. Aqueles defendiam a sobreposição da realidade à ficção,

ao passo que este sobrepunha a ficção à própria realidade, de tal modo que a

realidade acabava gradualmente sucumbindo perante a ficção, modelando-se

por ela, transformando-se nela. Conforme afirma Vargas Llosa (2004), ―el gran

tema de Don Quijote de la Mancha es la ficción, su razón de ser, y la manera

como ella, al infiltrarse en la vida, la va modelando, transformando‖7. Ainda

segundo o autor:

7 O escritor peruano propõe, ainda, um paralelo com a obra do argentino Jorge Luis Borges, outro notório representante da ―tradición de La Mancha‖: ―Así, lo que parece a muchos lectores modernos el tema ―borgiano‖ por antonomasia […] es, en verdad, un tema cervantino que, siglos después, Borges resucitó, imprimiéndole un sello personal‖ (VARGAS LLOSA, 2004, p. 15).

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La ficción es un asunto central de la novela, porque el hidalgo manchego que es su protagonista ha sido ―desquiciado‖ […] por las fantasías de los libros de caballerías, y, creyendo que el mundo es como lo describen las novelas de Amadises y Palmerines, se lanza a él en busca de unas aventuras que vivirá de manera paródica, provocando y padeciendo pequeñas catástrofes. Él no saca de esas malas experiencias una lección de realismo. Con la inconmovible fe de los fanáticos, atribuye a malvados encantadores que sus hazañas tornen siempre a desnaturalizarse y convertirse en farsas. Al final, termina por salirse con la suya. La ficción va contaminando lo vivido y la realidad se va gradualmente plegando a las excentricidades y fantasías de don Quijote (VARGAS LLOSA, 2004, p. 15, grifo nosso).

Ora, assim como Cervantes, por meio das peripécias de seu insano

protagonista, ironiza as novelas de cavalaria e o tipo de literatura

predominantemente praticada em sua época, Machado de Assis, quase três

séculos depois, como seguidor da tradição de La Mancha, viria a primar pela

sátira à concepção realista de literatura, semeando a sua obra,

destacadamente a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), com

sutis ironias a essa crença na reprodução ou transposição direta da realidade

social para as páginas literárias. Antes de tudo, fundamentalmente, Machado

rejeitava a ideia, tão cara a boa parte de seus contemporâneos, de que a

literatura devesse servir de instrumento ao que quer que fosse, no que se

distanciava bastante da escola realista então em voga e se revelava muito

mais perfilado com a tradição de La Mancha, tal como advoga Fuentes.

Em ―‗O Alienista‘: paródia do Dom Quixote?‖, Massaud Moisés assinala que,

―como já fizera na análise demolidora a O Primo Basílio, publicada em 1878,

pouco antes da redação de ‗O Alienista‘, Machado zombava do determinismo

científico e mecanicista em voga no seu tempo e dos escritores que o

aceitaram como a extrema e definitiva verdade‖ (MOISÉS, 2001, p. 139).

Em Notas sobre a loucura quixotesca em Quincas Borba, María de la

Concepción Piñero Valverde também identifica ―a intenção satírica

perceptível nesta obra de Machado de Assis‖ e põe em relevo ―uma

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circunstância que, desde a concepção, parece aproximar [o romance Quincas

Borba] da obra de Cervantes. Refiro-me à sátira de algumas modas livrescas,

sátira que em Cervantes atinge os romances de cavalaria e, em Machado de

Assis, os manuais de doutrinação positivista‖ (PIÑERO VALVERDE, 2000,

[s.p.]).

Já no artigo Machado de La Mancha contra o Gigante do Realismo, Gustavo

Bernardo afirma que Cervantes faz na ficção o que Erasmo de Roterdã (1509)

havia feito na filosofia um século antes: o elogio crônico da loucura. Para o

autor, através do seu ―Cavaleiro da Triste Figura‖, Cervantes celebra a vitória

da imaginação sobre a realidade; borra a fronteira entre a realidade e a

ficção; obriga a duvidar de todo dogma. ―A loucura de Alonso Quijada

evidencia a loucura oculta da própria razão ocidental‖, sintetiza Bernardo,

para quem ―a razão pode ser ligeiramente louca‖. Pela mesma trilha, devedor

de Miguel de Cervantes, seguiria o nosso Machado de Assis, que

[...] segue a tradição cervantina para combater o gigante da racionalidade ocidental travestido de moinho a classificar e espremer todos os eventos; o escritor torna-se ele mesmo um herói quixotesco, o ―Machado de La Mancha contra o gigante do Realismo‖ (BERNARDO, 2008, p. 4).

Assim, a obra de Machado de Assis atualiza a tradição de Cervantes; a

exemplo do espanhol – e como seu legítimo herdeiro literário nas Américas –,

o autor de Dom Casmurro lança sua pena contra todo e qualquer dogma,

inclusive contra os próprios conceitos de realidade e de racionalidade então

vigentes, assim como Dom Quixote erguia sua espada contra os moinhos de

vento. Noutras palavras, Machado também levanta a sua pena para questionar

as próprias bases em que o Realismo se escorava. Como pode semelhante

autor ser definido como realista por nossos manuais didáticos e por parte da

crítica literária?

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Ceticismo e antidogmatismo na obra de Machado

Enquanto o Realismo é marcado pelo dogmatismo, a obra de Machado é regida

pelo ceticismo8, conceito pouquíssimo estimado pelos realistas. ―Um realista

é via de regra pessimista, mas nunca cético. A suspensão cética do juízo não

combina com as certezas de quem se considera habilitado para descrever a

realidade como pensa que ela é‖ (BERNARDO, 2008, p. 11). O autor de

Quincas Borba refuta e tende a direcionar sua ironia a todo dogma. É na

dúvida que se funda o melhor da sua narrativa.

O terreno do cético é o terreno da dúvida, suspeitando-se de qualquer afirmação sobre a realidade. Ora, o terreno da dúvida suspensiva é o terreno de Machado de Assis, que constrói sua obra em volta do ceticismo suspensivo (BERNARDO, 2008, p. 15).

Para Machado, o realista é um dogmático; por isso, classificá-lo como realista

é uma contradição. A sua obra não nos oferece certezas; ao contrário, rejeita

e ironiza todas elas, apresenta os paradoxos resultantes das distintas maneiras

de se conceber a realidade.

Daí vem a crítica radical de Machado ao realismo: a tautologia que alimenta o conceito de realismo esconde a sua vocação dogmática. Se só um realista pode ver a realidade como ela é, então apenas a sua perspectiva é correta, as demais estão erradas. Ora, a filosofia que subjaz à ficção de Machado de Assis é a filosofia cética, a qual se dedica desde Pirro a combater toda manifestação dogmática (BERNARDO, 2008, p. 9).

Como defende Massaud Moisés, no artigo ―‗O Alienista‘: Paródia do Dom

Quixote?‖9, em nenhuma outra obra de Machado de Assis os ecos de Cervantes

8 Reproduzimos a maneira como o mesmo Gustavo Bernardo caracteriza o cético, distinguindo-o do dogmático e do niilista: ―Enquanto os dogmáticos têm certeza de que só eles sabem alguma coisa e os niilistas têm certeza de que não se pode ter certeza de nada, os céticos duvidam de que se possa ter certeza de alguma coisa; enquanto os dogmáticos já acharam a resposta e os niilistas já pararam de procurar, a dúvida dos céticos os leva a continuar procurando a verdade. (...) Ao desconfiar de dogmas, verdades definitivas ou afirmações peremptórias, os céticos se mantêm em constante estado de incerteza e investigação intelectual‖ (BERNARDO, 2008, p. 12).

9 Como sugere o título do artigo, Moisés se propõe a estabelecer alguns possíveis paralelos entre a obra máxima de Cervantes e ―O Alienista‖, de Machado de Assis. Faça-se, contudo,

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se fizeram sentir de modo tão premente. Para ele, o conto seria uma espécie

de condensação das características mais marcantes, que perpassam a

produção machadiana na fase da ―maturidade criativa‖ (de 1881 em diante):

humor à inglesa, ironia, ambiguidades, polissemia. ―Creio não exagerar se

disser que o episódio de Itaguaí, pelas sutilezas caleidoscópicas das suas

camadas semânticas, leva o refinamento delas a um nível sem par‖ (MOISÉS,

1998, p. 127). Acrescente-se que, em nenhuma outra obra, essa vocação

dogmática camuflada pelo conceito de Realismo, à qual alude Bernardo

(2004), foi tão francamente satirizada pelo escritor carioca. Na visão de

Moisés, ―O Alienista‖ pode ser interpretado como uma grande sátira às

pretensões absolutistas da Ciência. ―Machado satiriza, pois, o amor cego à

Ciência comum ao seu tempo, na esteira do Positivismo, mas também o amor

cego à Ciência que fizera Simão Bacamarte rejeitar os benefícios do rei para

se asilar em Itaguaí, sem saber que ali encontraria o seu purgatório‖ (MOISÉS,

2001, p. 139).

Na qualidade de cético contumaz, Machado duvida a todo instante, coloca em

xeque ideias vigentes em seu tempo, tidas como verdades acabadas,

absolutas, incontestáveis. No conto, publicado inicialmente em folhetins

entre 1881 e 1882 e depois incluído na coletânea Papéis avulsos (1882), o

fundador da Academia Brasileira de Letras questiona a autonomia e a

objetividade atribuídas à Ciência, sobremaneira na época em que o texto foi

escrito e publicado, quando o mundo ocidental era invadido pelo furor das

ideias positivistas. O ambiente era cientificista e catalogador ao extremo.

Assim também o protagonista, o ilustre Simão Bacamarte, movido por sua

desenfreada sanha taxonômica e pela crença cega, praticamente religiosa, de

que a Ciência seria infalível e tudo poderia explicar.

uma ressalva: embora tenha sido um pioneiro na análise dos ecos do Quixote no Alienista, o autor não se aprofunda tanto na escavação e na exposição desses possíveis paralelos.

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Tal como Alonso Quijana, Simão Bacamarte seria um visionário obstinado,

cuja ação seria impulsionada por uma ideia fixa10: se a obsessão do Quijote

era de natureza idealista (sintetizada por sua amada Dulcinea), a de

Bacamarte era classificatória, condensada em sua Casa Verde: ―o maior dos

médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas‖ pretendia formular uma teoria

que estabelecesse definitivamente as fronteiras entre a Razão e o

desequilíbrio mental e que desse conta de catalogar todas as patologias

cerebrais que pudessem afligir o ser humano.

Machado faz troça do mecanicismo então vigente, desequilibra o equilíbrio da

Ciência, desmistifica-a do modo que lhe é peculiar – com riqueza de humor,

deboche e ironia fina; desconstrói o mito da infalibilidade e da objetividade

da Ciência, a partir das reviravoltas da trama, das contradições de

Bacamarte, das paradoxais mudanças na posição adotada pelo alienista no

decorrer da sua megalomaníaca empresa de relacionar com precisão todas as

patologias que podem afetar a mente humana. Não por acaso, o conto é

ambientado no fim do século XVIII, período que testemunhou o advento da

hegemonia da Razão, com todas as suas promessas de progresso e benesses à

humanidade, no bojo do Iluminismo.

Moisés enfatiza a polivalência semântica encerrada em ―O Alienista‖. Critica,

entretanto, as visões reducionistas, que não extraem do conto nada além de

um reflexo mecânico de seu tempo e lhe conferem uma interpretação cortada

por um viés estrita e estreitamente político-ideológico, como se fosse apenas

paródia da Revolução Francesa (1789), da Inconfidência Mineira (1789) ou

mesmo dos movimentos emancipatórios que se multiplicaram pela América

Latina ao longo do século XIX. Resta evidente que esta é uma interpretação

possibilitada pelo próprio texto – sublinhem-se, por exemplo, os títulos

10 Registre-se, ainda, um possível paralelo onomástico, já que o sobrenome de ambos os personagens remeteria ao campo semântico bélico: ―quijote‖ seria uma peça da armadura metálica dos cavaleiros medievais, ao passo que ―bacamarte‖ é definido pelo Dicionário Priberam como uma ―arma de fogo, portátil, de cano curto e largo‖.

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emprestados a alguns capítulos, como o V (―O terror‖) e o X (―A

restauração‖), episódios como a Revolta dos Canjicas, a alternância no poder

entre revoltosos que são adversários, além de referências espalhadas pelo

texto, como ―o despotismo científico‖ de que Bacamarte a certa altura é

acusado pelos rebelados e a ―Bastilha da razão humana‖, expressão cunhada

por um poeta local e repetida com ênfase pelo líder da revolta, o barbeiro

Porfírio, no auge da manifestação. Ao relatar essa passagem, o narrador chega

mesmo a dizer:

A ação podia ser restrita – visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde – dada a diferença de Paris a Itaguaí – podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha (ASSIS, 2014, p. 33).

Repita-se: é uma visão possível; de modo algum, a única. Longe de esgotar o

conto, tal interpretação é vista por Moisés como limitada. ―Enxergam algumas

árvores sem descortinar a floresta‖ (1998, p. 128). A ―floresta‖, no caso, seria

exatamente a sátira ao cientificismo, o qual, por meio da caricata figura do

alienista, é, no entendimento de Moisés, comparável no conto a uma

instituição dogmática, sendo-lhe desnudadas suas feições de crença religiosa.

Com efeito, a Ciência é colocada sob suspeição e tratada no conto como

teologia, à qual Bacamarte dedicaria um culto fanático. Machado satiriza o

que a ―racionalidade científica‖ pode dissimular de fanatismo científico. Seu

protagonista assume a atitude de um líder espiritual, portador de verdades

absolutas e inabaláveis. Faz profissão de fé nessas supostas ―verdades

científicas‖, à maneira de um profeta, de um ser especial, iluminado, dotado

de clarividência divina (MOISÉS, 2008, p. 132); mantém, enfim, uma postura

dogmática e trata a Ciência como se fosse uma religião.

A analogia ganha contornos mais nítidos a partir de uma série de frases

lançadas por Bacamarte e atitudes atribuídas a ele no decorrer da narrativa e

que traem certa ―inclinação espiritual‖. ―A saúde da alma [...] é a ocupação

mais digna do médico‖, brada em um raro arroubo logo após seu retorno a

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Itaguaí, tendo por interlocutor Crispim Soares, ―boticário da vila, e um dos

seus amigos e comensais‖. Em outra passagem, quando relata ao padre Lopes,

autoridade espiritual reconhecida de Itaguaí, os avanços na organização do

manicômio, diz-lhe Bacamarte que ―a Casa Verde é agora uma espécie de

mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual‖ (ASSIS, 2014, p.

13).

Como observa Moisés, ―a sua concepção da ‗patologia cerebral‘, sendo a que

se ocupa da ‗saúde da alma‘ e, de resto, a que vigorava então, avizinha-se

estreitamente com áreas não científicas. Meio bruxo, meio vidente, o

alienista escorava-se nos textos árabes, pois era ‗arabista‘‖ (MOISÉS, 1998, p.

129). Entre eles, o próprio Corão, de onde extraiu a citação maometana que

usou como epigrama na fachada da Casa Verde – ―achou no Corão que Maomé

declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo

para que não pequem‖. Todavia, ―como tinha medo ao vigário e por tabela ao

bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII‖ (ASSIS, 2014, p. 9-10), o que

leva Moisés a questionar: ―Que Ciência é essa baseada em textos religiosos e

temente da Igreja? Como conciliar a idolatria da Ciência com esses

fundamentos e com esse temor?‖ (1998, p. 130).

A esse propósito, note-se ainda que Bacamarte não só respeitava a Igreja

como demonstrava-se iniciado nas escrituras bíblicas, chegando a citar com

desenvoltura um trecho de Paulo aos Coríntios, para justificar ao boticário a

motivação altruísta que explicava, embora só em parte, o seu

empreendimento.

A caridade, senhor Soares, decerto entra no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de são Paulo aos Coríntios: ―Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada‖, segreda ao confidente, ao lhe revelar o ―mistério do seu coração‖ (ASSIS, 2014, p. 11).

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Na mesma direção, saliente-se que, nos embates intelectuais que costumava

travar com o vigário de Itaguaí – espécie de síntese da dicotomia entre a

Ciência e a Igreja –, o contato entre as duas partes, longe de choque de

extremos, era antes bastante cordial e respeitoso. Num deles, quando da

primeira visita do padre Lopes à recém-inaugurada Casa Verde, este teoriza

sobre as razões que levaram um dos internos à sandice e especula possível

relação com a história da Torre de Babel. Incrivelmente, o doutor não chega a

refutar de pronto a hipótese; ao contrário, ainda que por diplomacia, acolhe-

a parcialmente e admite que essa ―pode ser, com efeito, a explicação divina

do fenômeno‖, à qual acrescentaria uma possível ―razão humana, e

puramente científica‖. ―E disso trato‖, arremata (ASSIS, 2014, p. 11-12).

Assim como qualquer religião, a Ciência bacamartiana estava alicerçada em

dogmas, que não concediam nenhuma brecha a contestações. Esse caráter

dogmático do médico é reforçado quando o próprio, ao relatar ao contumaz

confidente, Crispim Soares, a sua nova teoria e a expansão de seu projeto,

sai-se com este aforismo: ―A razão é o perfeito equilíbrio de todas as

faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia‖ (ASSIS, 2014, p. 19).

Da mesma forma, assim como seguidamente se observa no caso de uma

religião, a Ciência de Simão Bacamarte, em grande medida, não era de modo

algum contestada em decorrência da ignorância geral das pessoas que

povoavam a modesta vila fluminense.

Era o único alienista daqui e d‘além-mar, para o bem ou para o mal. Como duvidar dos seus diagnósticos, se os pacientes e o povo em geral não conheciam parâmetros que pudessem conter garantias de opinião? Afinal, se no entender dele ―a saúde da alma [...] é a ocupação mais digna do médico‖, quem poderia, em sã consciência, oferecer-lhe resistência? (MOISÉS, 1998, p. 129).

Essa mesma ignorância chega a atingir até os parlamentares que integravam a

Câmara – em teoria, mais letrados do que a média dos habitantes. É o que

sugere um deles, Sebastião Freitas. Curiosamente, o vereador dissidente

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durante a revolta dos Canjicas de certo modo antecipa, na metade do conto,

uma das conclusões que se avoluma conforme este se encaminha para o fim:

―Nada tenho a ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos

juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o

alienista?‖ (ASSIS, 2014, p. 32).

Por fim, lembremos que essa ―espiritualização‖ da Ciência ou de correntes

filosóficas, como forma de ironizá-las, também se faz sentir em outras obras

de Machado, como em Memórias póstumas de Brás Cubas. É o que se percebe,

por exemplo, na passagem em que um já moribundo Quincas Borba explica ao

personagem-título que o seu humanitismo, doutrina filosófica elaborada por

ele, poderia ser compreendido como uma religião. No capítulo CLVII, o

―filósofo‖ afirma a Cubas: ―– Vai, se queres [...], mas temporariamente. Eu

trato de anexar à minha filosofia uma parte dogmática e litúrgica. O

humanitismo há de ser também uma religião, a do futuro, a única verdadeira‖

(ASSIS, 2009, p. 180).

Conclusão

Como se buscou demonstrar neste ensaio, pelo ceticismo e antidogmatismo

fortemente difundidos em sua obra; pelos recursos narrativos,

metalinguísticos e metaficcionais, que reavivam o legado de Cervantes; pela

burla que está no cerne de seu estilo; pela autoafirmação e autocelebração

do seu texto como ficcional; pela ironia apontada para a própria escola

realista e para o arcabouço científico-filosófico que lhe deu sustentação,

Machado de Assis, esse ―milagre literário‖ (FUENTES, 1998, p. 1) que as letras

brasileiras deram ao mundo no século XIX, avizinha-se muito mais da tradição

inaugurada por Cervantes (chamada por Fuentes de ―La Mancha‖) do que da

outra (a de ―Waterloo‖, no binômio cunhado pelo escritor mexicano), a qual,

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prezando uma pretensa objetividade, desembocaria no Realismo do século

XIX.

Assim sendo, Machado não pode ser tachado como autor realista. Aliás, o

enquadramento do brasileiro em qualquer categoria é tarefa necessariamente

reducionista, não dá conta da sua originalidade, sua profundidade e sua

singularidade. Autor ímpar, único, inclassificável, foi ponto fora da curva na

literatura brasileira – e, conforme Fuentes, ibero-americana – ao longo do

século XIX, podendo ser classificado ―apenas‖ como machadiano (BERNARDO,

2011).

Referências

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Recebido em: 31 de julho de 2014.

Aprovado em: 10 de dezembro de 2014.