Upload
lambao
View
229
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de
vida e identidade negra
Reinaldo da Silva Soares
Tese apresentada Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas, para obteno do
Ttulo de Doutor, pelo curso de Ps-
Graduao em Antropologia Social.
So Paulo
2004
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de
vida e identidade negra
Reinaldo da Silva Soares
Tese apresentada Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas, para obteno do
Ttulo de Doutor, pelo curso de Ps-
Graduao em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Joo Baptista
Borges Pereira
So Paulo
2004
Data da Defesa:____/_____/________
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________
Julgamento:__________________________Assinatura:_________________
Prof. Dr. _______________________________________________________
Julgamento:__________________________Assinatura:_________________
Prof. Dr. _______________________________________________________
Julgamento:__________________________Assinatura:_________________
Prof. Dr. _______________________________________________________
Julgamento:__________________________Assinatura:_________________
Prof. Dr. _______________________________________________________
Julgamento:__________________________Assinatura:_________________
minha famlia Ao Professor Milton Santos (em memria)
A Itamar Assumpo (em memria)
Agradecimentos
De modo especial, ao Professor Emrito Joo Baptista Borges Pereira,
pela orientao competente, apoio e confiana depositados em mim desde
meu ingresso na ps-graduao. As sesses de orientao, que com o passar
do tempo tornaram-se cada vez mais prolongadas, possibilitaram instigantes
dilogos intelectuais que, pelo fato de irem alm da temtica das relaes
raciais, abordando outros aspectos da vida social, foram de grande valia para
minha formao acadmica.
dona Dirce e a seu Armando que partiu cedo demais por
terem me colocado em contato com o universo dos negros de classe mdia
paulistana.
Aos integrantes da Afrobras e do Aristocrata, que compartilharam
comigo alguns momentos das suas vidas, disponibilizando-se a explicar como
funcionavam as associaes, alm de no se eximirem de abordar, com
franqueza, temas, por vezes, dolorosos. No esquecerei as palavras de apoio
e de incentivo daqueles que sabem das dificuldades encontradas pelos
negros para concluir seus estudos. A todos, minha gratido e meu respeito.
CAPES, pelo financiamento parcial desta pesquisa.
Aos professores doutores, Antonio Srgio Guimares e Renato da Silva
Queiroz, pelas crticas e sugestes realizadas durante meu exame de
qualificao, que procurei incorporar pesquisa.
Aos professores doutores, Fernanda Peixoto, Kabengele Munanga e
Vagner Gonalves da Silva, por terem me aceito como monitor em seus
cursos, possibilitando que eu tivesse a dimenso do desafio de lecionar.
s colegas de monitoria: Carla, Fernanda e Rachel, pela fora,
amizade e solidariedade.
Aos amigos: Batista, Mrcio (Kibe), Rubens e Vanilza, pelo apoio
cotidiano, pelas dicas e sugestes e pelos momentos divertidos que
compartilhamos durante todos esses anos.
Ivanete e Rose, funcionrias da secretaria do departamento de ps-
graduao, pelo auxlio na resoluo dos problemas causados pelas
complicadas questes burocrticas.
Ivana e Mrcia, pelo incentivo, solidariedade e amizade sincera,
desde a poca do mestrado.
Ao Jos Luiz, por resolver os infindveis problemas com hardware e
software.
minha famlia: Geralda e Rubens, meus pais, Cilene, minha irm,
Mauricy, meu cunhado, e Eric, meu sobrinho, pelo apoio irrestrito, suporte
material e psicolgico, carinho, alegria e confiana. Enfim, por possibilitar
que meu sonho se materializasse.
minha terna companheira Bernadete, pela parceria diuturna, pelo
amor, pela dedicao, pela compreenso, pela torcida e pela leitura
carinhosa da verso original deste trabalho. minha filhota, Bia, pelas
interrupes constantes, brincadeiras, beleza, curiosidade, carinho e pelos
falatrios interminveis. Agora posso responder aquela sua pergunta,
repetida diversas vezes: Pai: essa tese no termina nunca?
E, finalmente, a todos que colaboraram, de alguma forma, para a
realizao deste trabalho e que apesar de no serem citados aqui estaro
sempre vivos na minha lembrana.
SUMRIO
Resumo
Abstract
Apresentao......................................................................................... 1
Introduo............................................................................................ 8
1- Os campos empricos: Aristocrata Clube e Afrobras.............................. 32
2- Identidade de classe......................................................................... 70
3- Estilo de vida.................................................................................. 111
4- Identidade racial.............................................................................. 157
5- Ethos e viso de mundo: valores e representaes sociais dos negros de
classe mdia.........................................................................................199
Consideraes Finais............................................................................ 249
Bibliografia.......................................................................................... 255
RESUMO
Negros de classe mdia em So Paulo: estilo de vida e identidade negra
Este estudo versa sobre os negros das camadas mdias paulistanas.
Analisa a identidade de classe a partir da autoclassificao e do modo como
o conceito de classes sociais construdo pelos interlocutores. A inteno
instituir uma analogia com as categorias elaboradas pelos cientistas sociais.
Examina o estilo de vida, utilizando como referncia o consumo material e
simblico. Desta forma, busca a especificidade do grupo em relao a gostos
e preferncias. Problematiza a questo da identidade racial a comear pela
auto-identificao quanto raa e classe, alm de analisar quais so os
fatores utilizados como referncia para a construo da idia de
pertencimento tnico. Investiga as representaes sociais dos negros de
classe mdia, isto , busca compreender como estes percebem a sociedade,
a imagem que fazem de si mesmos e como julgam ser avaliados pela
sociedade global.
Palavras-Chave:
Negro - Classe Mdia - Estilo de Vida - Identidade de Classe - Identidade
Racial
ABSTRACT
Lifestyle and black identity in the city of So Paulo: the black
middle class
This study is about So Paulos black middle class population. It seeks to
analyse class identity from the subjects point of view: focusing, in the one
hand, on the way in which the subjects classify themselves and, on the
other, on how the class concept is formulated by them, drawing an analogy
between this concept and those conceived by social scientists. In order to
realise this aim, this study examines the blacks lifestyle, using their material
and symbolic consumption as a reference. Along with this analysis, the study
also questions the racial identity, as experimented by the subjects,
considering both the subjects racial and social self classification and the
factors used as a reference to the idea of being part of an ethnic group. This
study investigates the black middle class social representation, that is to say,
it seeks to understand how this population perceive their society, what is the
image the blacks have of themselves and, according to their opinion, which is
the opinion the encompassing society have upon them.
Key-words: Blacks - Middle class - Lifestyle - Class identity - Racial identity
Apresentao
Este estudo trata dos negros de classe mdia na cidade de So Paulo.
O intuito analisar as representaes e o estilo de vida dos negros
paulistanos que, nas ltimas dcadas, passaram por um processo de
mobilidade social ascendente, destacando-se da grande maioria negra, a
qual sobrevive em condies materiais precrias.
Nosso interesse pelo tema foi suscitado durante a elaborao da
dissertao de mestrado1 cujo objetivo era examinar o processo de
produo do ciclo carnavalesco do Grmio Recreativo e Cultural Escola de
Samba Vai-Vai, agremiao formada, em sua maior parte por negros, com
sede no bairro do Bexiga. Na oportunidade constatamos que a agremiao
passou por uma sensvel mudana na sua composio socioeconmica.
O Vai-Vai, a poca de sua fundao (1930), era formado por negros
da classe trabalhadora com baixa qualificao e baixa remunerao.
Atualmente, a agremiao, principalmente nos quadros de direo,
composta, em sua maioria, por negros de classe mdia: pequenos
empresrios ou profissionais de nvel universitrio (engenheiro,
fisioterapeuta, advogado, contador, administrador de empresas...). Tal fato
1 Reinaldo da Silva SOARES, O cotidiano de uma escola de samba paulistana: o caso do
Vai-Vai, 1999, dissertao de mestrado, FFLCH-USP, So Paulo.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
2
alertou-nos para a necessidade de refletir sobre a importncia destes
segmentos negros que vivenciam uma situao de mobilidade social
ascendente, quando comparados s geraes antecedentes.2
O objetivo central deste trabalho analisar a relao entre mobilidade
social intergeracional e identidade negra, ou seja, a questo fundamental
verificar se h ou no, um processo de embranquecimento social dos negros
de classe mdia, ou falando de uma outra forma, investigar se a mxima: o
dinheiro embranquece aplica-se ao grupo estudado.
A seguir, relacionamos os objetivos especficos do trabalho:
1 Verificar como os pesquisados se autoclassificam em relao raa/cor,
de que modo constroem sua identidade racial e como percebem as relaes
raciais na cidade de So Paulo;
2 Investigar de que forma se autodefinem em termos de classe social;
quais critrios que utilizam para tal definio (nvel de consumo, prestgio
social etc) e de que modo se relacionam com integrantes de outras classes
sociais.
3 - Constatar se o Aristocrata Clube constitui, ou no, um mundo paralelo
para uma determinada parcela dos negros paulistanos. Adotamos, aqui, a
noo de mundo institucional paralelo, definido por Borges Pereira, como
espaos fabricados pelos negros, em contextos urbanos, em resposta ao
preconceito e discriminao, onde puderam cultivar sua sociabilidade e
seus valores culturais.3
4 Analisar a especificidade do estilo de vida da classe mdia negra, ou seja,
inquirir sobre como utilizam seu tempo livre; qual seu gosto musical; tipo
2 Ao longo do trabalho utilizaremos o conceito de mobilidade social intergeracional, ou seja,
o deslocamento de um indivduo do grupo social dos seus pais, para outro grupo. 3 Joo Baptista BORGES PEREIRA, Negro e cultura negra no Brasil, Revista de
Antropologia, So Paulo, 1983.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
3
de vestimenta; opo religiosa; consumo de produtos fabricados
exclusivamente para negros; emissoras de rdio e TV prediletas; opes
estticas; enfim, quais os gostos e preferncias que diferenciam o grupo.
H poucos trabalhos sobre negros em ascenso social no Brasil. Como
afirma Figueiredo4, este segmento parece ser considerado pelos
pesquisadores como um objeto de estudo pouco simptico. A figura do
negro em ascenso social, via de regra, aparece como categoria acusatria:
o traidor que, conseguindo superar os obstculos, melhorou de vida e
afastou-se dos outros negros; ou o metido a branco que, para ascender,
incorporou os valores e estilo de vida dos brancos de classe mdia, na
tentativa de embranquecer socialmente.
Um dos primeiros trabalhos sobre mobilidade social dos negros, no
Brasil, foi publicado em 1955, por Thales de Azevedo.5 Em As elites de cor,
o autor apresenta os resultados da pesquisa realizada na Bahia, cujo objetivo
central era analisar a dinmica da ascenso social dos negros.6
Azevedo constatou que, na Bahia, havia um alto grau de mestiagem
e que o preconceito racial se manifestava de forma muito amena. No sistema
hierrquico, o status era mais relevante do que a cor. O autor concluiu que a
Bahia representava uma sociedade multirracial de classes, sem a ocorrncia
de castas: todos tinham a possibilidade de ascender socialmente dependendo
apenas dos seus prprios mritos. Portanto, os obstculos que os negros
encontravam eram resultado de um preconceito de classe, em razo dos
mesmos serem provenientes das classes baixas. A ascenso dos negros
4 Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.
5 O primeiro a abordar essa temtica foi Pierson, em 1937, que analisou a mobilidade social
ascendente dos negros na Bahia. Ver: Donald PIERSON, Brancos e pretos na Bahia, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942. 6 Thales de AZEVEDO, As elites de cr, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1955.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
4
passava necessariamente pelo seu embranquecimento social, isto , pela
incorporao de comportamentos e valores aceitos pelos brancos.
Em relao ao caso especfico de So Paulo, Fernandes ao fazer a
anlise do processo de incorporao do negro sociedade de classes
exps os mecanismos que propiciaram a formao da elite negra, nas
dcadas de 1920 e 1930.7
Na dcada de 1960, Borges Pereira investiga a insero do negro na
empresa radiofnica paulistana. O rdio constitui-se em um novo e promissor
mercado de trabalho para o negro, justamente pelas mudanas de valores
estticos ligados ao estilo de vida urbano, que proporcionaram a
popularizao da msica negra. O rdio (assim como o futebol)
proporcionou aos negros ingressar em ocupaes incomuns, espaos que
ainda eram reconhecidos como privilgios exclusivos de brancos.8
Apesar de no termos conhecimento de trabalhos sobre os negros de
classe mdia na cidade de So Paulo, os negros em ascenso tm obtido um
certo destaque nas pesquisas acadmicas, nas duas ltimas dcadas.
No inicio da dcada de 1980, Barbosa analisou o padro de
sociabilidade das famlias negras de classe mdia, na cidade de Campinas. O
propsito era constatar se existiam mecanismos especiais, na socializao
das crianas, no que diz respeito questo racial.9
Na mesma poca, no Rio de Janeiro, Souza analisou a emocionalidade
do negro em ascenso social, discutindo as dificuldades de identidade desse
segmento em uma sociedade branca. A proposta do trabalho era revelar
7 Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, So Paulo,
Dominus, 1965. 8 Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,
1967. 9 Irene Maria F. BARBOSA, Socializao e relaes raciais, So Paulo, FFLCH/USP, 1983.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
5
como o negro construa um discurso sobre si mesmo, em relao aos seus
aspectos emocionais.10
Barcellos, em meados da dcada de 1990, em Porto Alegre, examina a
influncia da famlia no projeto de ascenso dos negros de camadas mdias.
A autora analisa como os integrantes deste segmento, construram seu
espao social, suas expectativas profissionais, os laos sociais e emocionais
que estabeleciam entre si e como se relacionavam com os brancos. Enfim, a
autora procurou detectar como a identidade do grupo estruturada.11
A educao um dos principais instrumentos utilizados pelos negros,
em se tratando de mobilidade social ascendente. Partindo deste pressuposto,
em 1988, Teixeira estuda a trajetria escolar de alunos e professores negros
da Universidade Federal Fluminense, com o escopo de averiguar a relao
entre a escolha da carreira e a identidade racial.12
O trabalho mais recente sobre o tema foi publicado em 2002.
Figueiredo pesquisou a relao entre ascenso social e identidade tnica,
dentre os profissionais liberais negros de Salvador. A proposta era relativizar
as teorias sobre o negro em ascenso, as quais enfatizam a importncia do
branqueamento como estratgia de mobilidade social, ou enquanto uma
imposio da sociedade global.13
Como os negros de classe mdia no esto concentrados em
determinados espaos da cidade, decidimos escolher como objeto de estudo
associaes representativas deste segmento, em So Paulo. Desta forma,
10
Neusa Santos SOUZA, Tornar-se negro, Rio de Janeiro, Graal, 1983. 11
Daisy Macedo de BARCELLOS, Famlia e ascenso social de negros em Porto Alegre,
1996, Tese de doutorado, UFRJ, Rio de Janeiro. 12
Moema de Poli TEIXEIRA, Negros em ascenso social, 1998, tese de doutorado, UFRJ
Rio de Janeiro. 13
Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
6
elegemos dois campos empricos: O Aristocrata Clube e a Afrobras. O
Aristocrata, fundado na dcada de 1960, funcionou como cone dos negros
em ascenso social na cidade, representando um estilo de vida diferenciado
de um segmento que se distinguia pela situao econmica e pertencimento
racial. A Afrobras, constituda no final do sculo passado, uma organizao
que luta por uma poltica de aes afirmativas e a sua atuao marcada
pela busca de visibilidade do negro nos mais diversos setores da sociedade.
No que concerne metodologia, a pesquisa de campo foi realizada
entre maro de 2001 e maio de 2003. Participamos de festas, reunies,
almoos e outros eventos promovidos pelas duas associaes.
Elaboramos um roteiro inicial de entrevistas, com questes abertas.
Quatro tpicos foram abordados: dados pessoais, identidade negra,
identidade de classe e estilo de vida. Aplicamos um pr-teste e reelaboramos
o roteiro, acrescentando algumas questes e reformulando outras.
Realizamos 24 entrevistas (11 homens e 13 mulheres) com 17
associados do Aristocrata e 7 integrantes da Afrobras14
. A escolha dos
entrevistados deu-se da seguinte forma: procuramos entrevistar,
primeiramente, o presidente de cada organizao que nos indicava outros
associados. Depois desse contato inicial, selecionamos, para entrevista, as
pessoas que compareciam com maior freqncia aos eventos e cuja atuao
era mais efetiva. A maior parte das entrevistas foi realizada na sede de cada
organizao, excetuando quatro interlocutores que optaram por conversar
em suas residncias ou em seus locais de trabalho. A fim de evitar possveis
constrangimentos, os nomes dos entrevistados foram omitidos.
14
Todas as entrevistas foram gravadas em fita cassete.
_______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
___________________________________________
_________________________________________________________________________ Apresentao
7
Em relao reviso bibliografia, os principais temas contemplados
foram: a histria do negro na cidade de So Paulo, identidade tnica, classes
sociais, estilo de vida e ascenso social dos negros.
O trabalho foi estruturado da seguinte forma: no captulo introdutrio,
realizamos um breve histrico sobre o negro na cidade de So Paulo,
enfatizando a formao da elite negra nas primeiras dcadas do sculo
passado. O primeiro captulo dedicado anlise do Aristocrata Clube e da
Afrobras. No segundo captulo, apresentamos uma caracterizao
socioeconmica dos entrevistados e analisamos como elaboram seu conceito
de classe social e como se autodefinem em termos de posio de classe. No
terceiro captulo, realizamos uma discusso sobre estilo de vida, examinando
as predilees de consumo dos pesquisados. No quarto captulo,
examinamos como construda a identidade racial dos negros de classe
mdia. No ltimo captulo, analisamos as representaes sociais dos
entrevistados, ou seja, como pensam a sociedade, de que modo percebem a
si mesmos e como acham que so avaliados pela sociedade global.
Introduo
Os primeiros negros chegaram a So Paulo, provavelmente, por volta
de 1526. Em meados do sculo XVI, ocorreria o trfico mais regular com os
escravos trazidos do Reino.1
No final do sculo XVI, o trfico de escravos acontecia diretamente
com Angola, apesar disso, a quantidade de negros no sistema escravocrata
no era significativa, uma vez que os indgenas representavam a maior parte
dos cativos.
No sculo XVII, com a descoberta, em So Paulo, das minas de ouro,
aumenta o fluxo de escravos negros. A partir de 1693, com a descoberta de
ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e Gois ocorre uma grande procura por
escravos negros. Nesse momento, tem incio, em So Paulo, o trfico de
escravos diretamente com Angola e Cabo Verde. A descoberta das minas de
ouro causou a decadncia das bandeiras, ocasionando o declnio do trabalho
1 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1971.
9 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
indgena que seria substitudo, paulatinamente, pela importao de
escravos.2
No trajeto percorrido entre os fins do sculo XVII e o terceiro quartel do sculo XVIII, o negro no s adquiria uma posio no sistema econmico de So Paulo. Ele se tornar a prpria fonte regular e exclusiva do trabalho escravo e da
produo.3
Com a decadncia da minerao, os negros migraram em maior
nmero para So Paulo com o propsito de trabalhar na "grande lavoura".4 A
produo agrcola, no sculo XIX, s pde se desenvolver em razo do papel
fundamental exercido pelo trabalho escravo.5
A partir da crise na produo aucareira da economia nordestina,
houve a redistribuio da populao negra para as provncias de So Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais.
O desenvolvimento da grande lavoura proporcionou o crescimento
do comrcio. A produo, que era escoada pelo porto de Santos,
transformava So Paulo em relevante centro comercial, um ponto de
exportao e importao. Esse novo contexto criou alternativas de
aproveitamento do trabalho escravo no artesanato urbano, nos servios
domsticos e no aluguel de negros.
A partir do sculo XIX, o caf tornar-se-ia o carro-chefe da economia
paulista. Com a escassez de mo-de-obra, houve a necessidade de
2 Samuel LOWRIE, O elemento negro na populao de So Paulo, Revista do Arquivo
Municipal, So Paulo, 1938. 3 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1971. 4
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,
1967. 5 Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, op. cit.
10 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
mobilizao de grandes contingentes negros6; mas, com a proibio do
trfico, em 1850, alm da dificuldade na obteno de escravos, os mesmos
tornavam-se demasiadamente onerosos aos senhores.
Nos anos de 1880, a regio da provncia de So Paulo vivia uma
profunda agitao social. Os escravos no obedeciam mais s ordens dos
feitores e exigiam liberdade; uma sucesso de rebelies, crimes sangrentos
e denncias de feitiaria estampavam os jornais. Em razo da gravidade da
situao, os senhores acionaram a polcia que, justamente por no ter uma
estrutura material adequada, no conseguia atender a todos os chamados.7
Os negros uniram-se aos abolicionistas e promoveram manifestaes
populares, tumultos e desordens. Munidos de paus e armas de fogo
invadiram delegacias e quartis para libertar escravos apreendidos. Existia
entre os fazendeiros, um pnico generalizado de que a onda negra
promovesse uma mudana estrutural na sociedade. A seqncia de
sublevaes fazia com que escravos fugitivos ficassem na periferia das
cidades, sem trabalho e alimentao, aumentando o clima de violncia
processo que ocasionava uma crise nas fazendas por falta de mo-de-obra,
o que inviabilizava a estrutura do sistema escravocrata.8
Alm das fugas e rebelies, os negros utilizaram outras estratgias
para resistir escravido: trabalhar menos para obter uma melhoria na
6 Samuel LOWRIE, O elemento negro na populao de So Paulo, Revista do Arquivo
Municipal, So Paulo, 1938. 7 Maria Helena MACHADO, O plano e o pnico, So Paulo, EDUSP, 1994. Segundo
Schwarcz, as tenses entre senhores e escravos existiram desde o incio do processo de colonizao, mas eram protestos isolados dirigidos ao senhor ou ao capataz. A partir de 1870, com a decadncia do regime escravocrata, tais protestos ganham um novo significado. Articuladas com a atuao dos abolicionistas, a contestao e as fugas de cativos ganham uma nova importncia, visto que vrios proprietrios de terras do oeste paulista libertaram seus escravos, garantindo a estabilidade da mo-de-obra por intermdio de contratos de trabalho. Llia Moritz SCHWARCZ, Retrato em branco e negro, So Paulo, Companhia das Letras, 1987. 8 Maria Helena MACHADO, O plano e o pnico, So Paulo, EDUSP, 1994. Sobre o pavor
provocado pelos levantes negros nas elites do sculo XIX, ver tambm: Clia Maria Marinho de AZEVEDO, Onda negra, medo branco, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
11 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
expectativa de vida; trabalhar muito e ganhar a simpatia do senhor para
obter algum tipo de privilgio; comprar a liberdade, trabalhando no tempo
livre; conquistar a boa vontade do fazendeiro; cometer suicdio ou matar o
senhor.9
Em fevereiro de 1888, a escravido foi extinta em So Paulo. Apesar
dos fazendeiros tentarem reivindicar para si os mritos da abolio, a
participao dos escravos foi decisiva para o desfecho do regime
escravocrata:
No fugissem os escravos em massa das fazendas, rebellando-se contra os senhores No fossem eles, em nmero superior a vinte mil, para o famoso quilombo de Jabaquara (fora da cidade porturia de Santos, um centro de agitao abolicionista), e talvez ainda hoje seriam escravos... A escravizao acabou-se porque o escravo no quiz mais ser escravo, porque o escravo rebelou-se contra seu senhor e contra a lei que o escravizara... A lei de 13 de maio no di mais do que a sano legal para que a autoridade pblica no fosse desacreditada de um acto que j estava consummado pela revolta em massa
dos escravos ...(p. 74)10
O declnio da escravido implicaria em um srio problema aos
fazendeiros paulistas: como resolver a questo da mo-de-obra? A soluo
adotada foi a importao de mo-de-obra europia. O trabalho livre
substituiu o trabalho escravo, utilizando trabalhadores brancos.11
9 George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru,SP,
EDUSC, 1998. Chaloub, analisando o significado social da liberdade para os cativos da corte, nas ultimas dcadas da escravido, constatou que os escravos utilizaram as vrias alternativas possveis dentro do prprio regime para arrefecer os efeitos do cativeiro. Alforria por indenizao, autorizao para viver sobre si, negar-se a cumprir as ordens do senhor e cometer delitos para cumprir pena na priso, foram alguns dos artifcios utilizados pelos cativos. Sidney CHALHOUB, Vises de liberdade, So Paulo, Companhia das Letras, 1990. 10
Rebate (3 de junho de 1898), p. 1, apud George Reid ANDREWS, Negros e brancos em
So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP, EDUSC, 1998. 11
Roger BASTIDE e Florestan FERNANDES, Brancos e negros em So Paulo, So Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1971.
12 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
Com a abolio do trabalho escravo, em 1888, a situao do negro no
Brasil tornar-se-ia ainda mais grave, com restritas possibilidades de competir
no mercado de trabalho, em funo da predileo dos fazendeiros pelos
imigrantes. Muitas vezes, a alternativa era somar-se aos grupos de
desocupados.12
No houve nenhuma poltica de readaptao, assimilao e
integrao do ex-escravo ao novo sistema. Com o surgimento do trabalho
assalariado, o negro, que at ento encontrava-se no centro do sistema de
produo deslocado para a periferia, posio marginal que foi decorrncia
da competio desigual com o imigrante europeu.13
Em 1884, o governo da provncia de So Paulo comea a subsidiar a
imigrao europia, desta forma, o Estado alm de resolver o problema do
suprimento de mo-de-obra, criando um grande contingente de
trabalhadores procurando por emprego, optava por uma soluo que, em
longo prazo, implicaria no branqueamento da populao e o conseqente
desaparecimento da raa negra, atravs da mestiagem.14
Apesar do negro no ter sido legalmente discriminado, foi natural e
informalmente segregado, permanecendo em uma posio subalterna e com
restritas possibilidades de mobilidade social, sendo preterido na competio
com o branco.15
A proximidade da abolio e o aumento do nmero de fuga
de escravos ocasionaram um aumento significativo do nmero de imigrantes
12
Mesmo antes da Abolio, os negros j constituam uma parte relevante do contingente
dos sem ocupao, como apontam os dados populacionais, das cinco principais provncias do pas, em 1882: 1.433.170 eram trabalhadores livres, os escravos totalizavam 656.540, enquanto os desocupados correspondiam a 2.822.583. Clvis MOURA, O Negro, de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro, Conquista, 1977. 13
Ibidem. 14
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo,(1988-1998), Bauru, SP,
EDUSC, 1998. 15
Emilia Viotti da COSTA, Da monarquia repblica: momentos decisivos, So Paulo,
Brasiliense, 1985.
13 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
na cidade. Alm disso, o iderio republicano, centrado no ideal do cultivo e
expanso do processo urbano civilizatrio, colidia com a representao
simblica do negro e seu estilo de vida.
No final do sculo XIX, a cidade de So Paulo era composta, em sua
maioria, por estrangeiros. Os negros eram discriminados no mercado de
trabalho, os imigrantes ocupavam as melhores posies, aos negros
restavam s funes nas quais era necessria uma maior fora bruta.
...No que concerne a estrutura operacional da cidade, parece claro que a competio econmica com o estrangeiro engendrou, prematuramente, um processo bem definido de pura sucesso ecolgica. O negro e o mulato foram eliminados das posies que ocupavam no artesanato urbano pr-capitalista ou no comrcio de miudezas e servios, fortalecendo-se de modo severo a tendncia
a confin-lo a tarefas ou ocupaes brutas, mal retribudas e degradantes ...16
Para Fernandes, a impossibilidade de o negro concorrer com o
imigrante no mercado de trabalho resultava da falta de um esprito do
capitalismo, domnio de tcnicas de trabalho e adaptao a um estilo de vida
citadino.17
Proposio refutada por Andrews, pois os imigrantes, raramente,
traziam, na virada do sculo XIX, alguma experincia anterior na indstria ou
no estilo de vida urbano, os trabalhadores fabris adquiriam suas habilidades
no prprio emprego.18
Logo, a opo pelos imigrantes, mais do que uma
alternativa tcnica para a questo da mo-de-obra, seria uma escolha
poltica para atravs de um processo eugnico da mestiagem viabilizar
o embranquecimento do pas.
Os estrangeiros foram protegidos por uma poltica integrativa,
enquanto o negro era excludo dos setores mais dinmicos da economia.
16
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, 1965, p. 10. 17
Ibidem. 18
George Reid ANDREWS, Negros e Brancos em So Paulo (1988-1998), Bauru, SP,
EDUSC, 1998.
14 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
Fato que no se restringiu indstria. Na agricultura, em seu setor mais
expressivo, (lavoura cafeeira) houve um processo de fixao do imigrante,
enquanto o negro foi transformado em excedente de mo-de-obra.19
No interior do Estado de So Paulo havia um padro histrico de
distribuio ecolgico da populao, estruturado a partir dos ciclos
econmicos. Sendo assim, os negros concentraram-se nas reas de
povoamento antigo, Vale do Paraba (Nordeste do Estado), regio das
fazendas de caf, na qual os salrios eram mais baixos. Na regio centro-
oeste, que prosperou aps o perodo da abolio, a mo-de-obra era
predominantemente formada por imigrantes italianos, e por sua vez, pagava
melhores salrios. Com a chegada dos imigrantes, os ex-escravos e caipiras
foram relegados a uma posio marginal na economia regional, visto que os
primeiros eram contratados como colonos e dispunham de melhores
condies de trabalho.
Nas reas urbanas, o mercado de trabalho estava estruturado da
mesma forma: no comrcio, nas fbricas, no setor de transportes e no
artesanato, a presena do estrangeiro era majoritria. Aos negros restaram
as oportunidades no servio domstico, sem maiores possibilidades de
acesso ao trabalho formal. Eles, por sua vez, inventaram novos servios:
carregador, limpador de quintal, carpidor de rua, lavador de automveis e
engraxate. Mas, a excluso do negro no era absoluta, alguns conseguiam
furar o bloqueio racial. Para aqueles empregados no servio domestico, as
condies de trabalho lembravam a escravido: uma excessiva carga de
trabalho, sem descanso semanal.
Essa situao gerou uma grande insatisfao na populao negra,
resultando, no incio do sculo passado, em movimentos sociais que
pretendiam a integrao do negro a sociedade de classes. Movimentos que
19
Clvis MOURA, O Negro, de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro, Conquista,
1977.
15 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
incentivaram a luta dos negros por justia social, iniciando uma verdadeira
"transformao cultural" no meio negro.
Nesse contexto, em 191520
, surge a imprensa negra, que teve um
papel relevante para a mobilizao e elaborao de uma ideologia que visava
a estimular o negro na busca pela mobilidade social ascendente.21
Inicialmente, os jornais tinham um carter mais associativo mas, a
partir de 1923, transformaram-se em instrumentos de luta contra o
preconceito. Abordavam, preferencialmente, os assuntos relativos s
questes raciais e sociais, sem dar prioridade aos temas nacionais ou
internacionais. Noticiavam o protesto negro, que no conseguia espao na
imprensa, superestimando os valores negros e divulgando as reivindicaes
do grupo.
Os jornais exerciam a funo de controle social, pois pretendiam
reeducar o negro para que este obtivesse os atributos necessrios para sua
integrao sociedade. Desta forma, alguns artigos condenavam o vcio, a
vadiagem e a prostituio, desconsiderando as condies sociais das quais
resultavam.22
Em 1931, surgiu a mais representativa organizao do meio negro: a
FNB (Frente Negra Brasileira) que almejava a unio e integrao do negro:
20
Segundo Bastide, O Menelick foi o primeiro jornal da imprensa negra paulistana. Mas, h
divergncias entre aqueles que pesquisaram a imprensa negra, quanto aos ttulos dos peridicos e datas das primeiras publicaes. Por exemplo, Pinto analisou uma edio do peridico intitulado Propugnador, publicada em 1907. A autora destaca que no foi possvel saber a data provvel da primeira edio. Tais divergncias talvez sejam conseqncia da impossibilidade de ter acesso a tais jornais e pelo fato de ter que recorrer a memria dos informantes. Roger BASTIDE, A imprensa negra no Estado de So Paulo, Boletim da FFLCH-USP, So Paulo, n. 2, p. 50-78, 1951, apud Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986 e Regina Paim PINTO, O movimento negro em So Paulo: luta e identidade, 1993, Tese de doutorado, FFLCH-USP, So Paulo. 21
Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986. 22
Ibidem.
16 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
... A Frente Negra Brasileira tinha objetivos e metas a serem atingidos; seu objetivo primordial era a ascenso social do negro e para tanto as metas seriam: estmulo para estudar, trabalhar, ter casa prpria, e progredir. Com este intuito, sempre presente, eram feitas as domingueiras reunies doutrinrias, tendo por finalidade educar e conscientizar os negros. Nesta ocasio, eram ministradas aulas de higiene e puericultura, aulas de religio e catecismo, conferncias sobre filatelia; as poesias de Luiz Gama eram comentadas, bem como as datas nacionais. Tambm, foram feitas campanhas para que os negros depositassem seus salrios na Caixa Econmica a fim de possibilitar a aquisio da casa
prpria...23
A Frente Negra Brasileira teve um clere crescimento, conseguindo
ampliar surpreendentemente seu quadro de associados, expandindo-se pelo
interior do estado de So Paulo, alm de outros estados, como Minas Gerais
e Esprito Santo. Influenciada pelo clima nacionalista vigente na poca, a FNB
acabou incorporando alguns aspectos da ideologia do movimento
integralista. Ou seja, pouco apreo pela democracia liberal e simpatia
explcita pelo fascismo. A organizao interna da Frente j denunciava seu
carter autoritrio. O quadro dirigente era escolhido por eleio, mas por
alguns funcionrios que tinham essa incumbncia.24
Por mais restries que
se possa fazer a adoo dos ideais fascistas, e ao seu carter desptico, a
Frente exerceu um importante papel na denncia do preconceito e no
estimulo a uma reao no meio negro. A seu modo, e com as armas que
dispunha, a FNB lutou para mudar a situao do negro na sociedade,
tentando resgatar sua dignidade e auto-estima.
As associaes estimularam o negro a buscar a ascenso social
(muitos comearam a comprar terrenos, na periferia da cidade, para
23
Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986.
p. 67. 24
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,
EDUSC, 1998 e Teresa MALATIAN, Os cruzados do imprio, So Paulo, Contexto,1988.
17 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
construir suas casas) auxiliando concomitantemente na formao de
profissionais de nvel universitrio.25
Como os movimentos sociais no meio negro objetivavam a sua
integrao sociedade de classes, trabalharam no sentido de conseguir uma
transformao nos valores e normas, ou seja, uma mudana na forma de
pensar e atuar: o negro passa a exigir um tratamento igualitrio e a
denunciar o preconceito racial.26
Os negros comeam a se organizar para
lutar por seus interesses, denunciando o racismo e propondo transformaes
nas relaes raciais.27
Por outro lado, crescia a insatisfao dos fazendeiros com os
imigrantes que cada vez mais impunham resistncia s condies de trabalho
a que estavam submetidos: seja voltando para seu pas de origem; mudando
de fazenda em busca de melhores condies de trabalho; promovendo
greves ou juntando economias para comprar sua prpria terra. Em 1927, o
governo paulista encerrou os subsdios imigrao, fato que iria
proporcionar novas oportunidades de trabalho aos negros. Portanto, os
negros ficaram praticamente excludos do mercado de trabalho formal
durante um longo perodo (1889 a 1920), resultando em vigorosos bices
para sua integrao sociedade de classes, alm de reforar o imaginrio
branco sobre o esteretipo da vadiagem negra.28
25
Miriam Nicolau FERRARA, A imprensa negra paulista, So Paulo, FFLCH-USP, 1986. 26
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, 1965. 27
Regina Paim PINTO, O movimento negro em So Paulo: luta e identidade, 1993, Tese de
doutorado, FFLCH-USP, So Paulo. 28
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,
EDUSC, 1998.
18 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
A gnese dos negros de classe mdia
Os negros de classe mdia aparecem pela primeira vez, na literatura
sociolgica, em A Integrao do negro na sociedade de classes, de Florestan
Fernandes. O autor se refere a esse grupo como negros de elite ou classe
mdia de cor. A dcada de 1920, marca o advento desse estrato, formado
por aqueles que conseguiram empregos estveis, muitas vezes, atravs de
apadrinhamento, que apesar de modestos (moos de recado, contnuos,
porteiros)29
, representavam bons salrios e prestgio, quando comparados
grande massa negra.30
O servio pblico era a alternativa mais vivel para o negro que
buscava ascenso social, o que garantia uma distncia do estigma do
trabalho braal e suscitava a possibilidade dele ocupar postos
administrativos. Apesar dos cargos ocupados pelos negros no serem de
grande prestgio na sociedade global (escriturrios, professores de escola
pblica, contnuos, bedis), ter um emprego fixo representava um
29
Florestan FERNANDES, A Integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, 1965. Algo similar ocorreu com os negros norte-americanos. Nas primeiras dcadas do sculo passado, havia grupos, que mesmo sem ter uma eminncia econmica, possuam um estilo de vida baseado na cor da pele, tradio familiar e padres morais que lhes davam a condio de elite negra, apesar de suas ocupaes modestas: porteiros, barbeiros e metre. Cf. Bart LANDRY, The new black middle class, California, University of California Press, 1987. 30
A formao da classe mdia negra norte-americana ocorreu de uma forma bem diversa:
aps a emancipao, os negros foram preteridos pelos imigrantes, nas indstrias do norte. Somente depois do final da Primeira Guerra Mundial e com as restries a imigrao em 1924, os negros tiveram oportunidades de colocao nas empresas. A constituio da classe mdia negra ocorre dentro de um regime segregado; como os brancos se negavam a prestar servios aos negros, dentro da prpria comunidade, foram surgindo profissionais para atender demanda (professores, mdicos, dentistas, pequenos empresrios). Os negros ganharam dinheiro e formaram associaes assistenciais (para auxiliar os doentes, pagar funerais...). A base de sustentao da classe mdia negra era as empresas negras
(black business), que apesar de serem negcios de pequeno vulto pequenos bancos,
jornais, lojas varejistas, restaurantes, que serviam comunidade negra representavam um diferencial no meio negro, proporcionando um status diferenciado aos empreendedores. Bart LANDRY, The new black middle class, California, University of California Press, 1987 e Franklin FRAZIER, Black bourgeoisie, New York, Free Press Paperbacks, 1997.
19 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
diferencial, em relao precariedade em que vivia a maior parte dos
negros.31
Para Fernandes, os negros em ascenso tomados por sentimentos
exclusivistas e egosticos, acabavam por afastar-se do meio negro
segregando-se em espaos de convivncia fechados elite negra. Tal
comportamento resultava em conseqncias sociopticas no meio negro. A
mobilidade social de alguns no resultava em benefcio para a maioria, j
que no proporcionava uma solidariedade entre os negros.32
Tal falta de
solidariedade funcionava como um empecilho para o projeto de melhorar de
vida. O negro que se esforava procura de ascenso social sofria o
preconceito dos seus parentes e amigos pela crena de que assim que
aquele negro conseguisse subir na vida deixaria de se-lo, ou seja, seria
rotulado como um metido a branco. Aquele que visava a uma melhora em
sua posio social no recebia apoio moral ou material para concluir seu
projeto.
O surgimento das elites de cor no fez com que houvesse mudanas
no imaginrio branco, uma vez que o negro em ascenso achava-se sob
constante viglia: caso fizesse algo notvel, isso no beneficiaria o grupo,
mas, se incorresse em algum desvio, seria a prova irrefutvel da sua
inferioridade. Portanto, a ascenso social do negro no implicou em uma
redefinio do seu status social nas relaes cotidianas com o branco. O
negro que sobe era considerado uma exceo que confirmava a regra.
As anlises das relaes entre negros e brancos no Brasil,
invariavelmente, contemplam o binmio raa/classe, explcita ou
implicitamente. No cotidiano, a situao do negro ambgua, pois o
31
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo, (1988-1998), Bauru, SP,
EDUSC, 1998. 32
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus.
20 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
problema dele ora percebido como uma questo de raa, ora
compreendido como uma questo de classe. O mito da democracia racial faz
com que a ambigidade entre raa e classe passe a justificar o modelo racial
brasileiro, de convivncia democrtica, j que a pobreza no exclusividade
do negro, pois afeta a maioria de populao. Tal ambivalncia resulta no
seguinte crculo vicioso: o negro no ascende socialmente porque no tem
formao (tcnica ou acadmica) para atender as exigncias do mercado e
no consegue melhorar sua formao, justamente por ser pobre.33
No Brasil, raa e classe no se excluem mutuamente, so categorias
complementares utilizadas para estabelecer o lugar do indivduo na
hierarquia social:
...Na verdade, o negro e o mulato so expostos, normalmente, a uma perda real de prestgio social, como se os nveis de classificao da sociedade global no tivessem eficcia para eles. A cor aparece, a um tempo, como marca racial e como smbolo de status. Por isso, ela serve, inextricavelmente, para identificar o negro e o mulato como categoria racial (como preto) e como categoria social (como classe mais baixa). (...) Todavia, como os diferentes nveis sociais no esto saturados nas mesmas propores por negros e mulatos, o branco pode ignorar o fato e agir segundo prticas convencionais, que lhe facultam uma arbitrariedade elstica no tratamento do preto. Ele tanto pode deixar de tratar como preto um indivduo de cor pertencente a uma categoria social inferior sua, quanto pode tratar como preto um indivduo de cor do mesmo nvel social ou de nvel
social superior ao seu...34
O negro de elite isolou-se para defender o status que ocupava
participando de organizaes exclusivistas da classe mdia de cor e
rejeitando o estilo de vida do negro massa. Portanto, a ascenso social no
meio negro acaba sendo compreendida como uma forma de traio que
33
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Raa e classe social no Brasil, In: D INCAO, M. A..
(org), O saber militante, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 34
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, p. 230.
21 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
compromete a coeso do grupo, em funo do processo de afastamento e
embranquecimento social, conforme j destacado.
A associao direta entre raa negra e pobreza restringia as
possibilidades dos negros em ascenso de usufruir os direitos e garantias
sociais das elites brancas. Tais direitos, na prtica, funcionavam como
privilgio dos brancos. Portanto, quando o negro atingia a mesma situao
econmica do branco e continuava a ser discriminado, ocorria o
desmascaramento do mito da democracia racial. Para Fernandes, um dos
fatores que impedia que a contra-ideologia racial dos movimentos sociais, no
meio negro, fosse mais eficaz, seria a tendncia da classe mdia de cor em
obter afirmao social atravs de smbolos de riqueza e de prestgio social
prprios, isolando-se da grande massa negra. 35
No imaginrio da classe mdia negra de cor havia uma imagem
ambivalente do negro pobre: em razo de no corresponder s expectativas
dos brancos, era visto como o nico culpado pela precariedade de sua
situao, alm disso, era extremamente revoltado ou lamentava-se demais.
Simultaneamente, os negros de elite admitiam que a cor funcionava como
uma barreira na luta para melhorar de vida.
Outro fator que caracterizava a classe mdia negra de cor era seu
carter precrio, como no dispunha de uma situao real de classe mdia,
nem sempre possua os recursos necessrios para transmitir o status
adquirido para seus descendentes. Portanto, um pai que exercesse uma
ocupao no manual, teria uma grande possibilidade de ver seu filho
exercendo um trabalho braal.
35
Fernandes enfatiza que a classe mdia de cor no composta apenas por indivduos
em situao de classe mdia, mas, por pessoas que se destacavam da populao negra, por estarem em processo de ascenso social, ou seja, eram aquelas que possuam maior possibilidade de integrao ordem social. Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So Paulo, Dominus, 1965, p. 92, nota 127.
22 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
Com o crescimento econmico, a partir de 1939, aumentam as
oportunidades para negros e brancos no mercado de trabalho. O avano
industrial gerava novos postos de trabalho, as empresas comeavam a
incorporar o negro, ainda que em funes pouco qualificadas.36
Alm disso,
o fim da imigrao estrangeira e a reserva de mercado para o trabalhador
brasileiro, implicaram no aproveitamento de um grande contingente negro e
mestio, proveniente do interior de So Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e
Nordeste.37
Segundo Fernandes, esse novo estrato social no se distinguia, no
meio negro, apenas por ter um emprego estvel, mas pela sua estrutura
familiar. As famlias negras, nas primeiras dcadas do sculo passado, em
sua grande parte, eram incompletas, constitudas pela me solteira ou
alguma substituta eventual, normalmente a av.
Nas elites negras era possvel encontrar famlias completas,
integradas, preocupadas em manter as aparncias de um bom nvel de
vida, inquietadas com a manuteno de padres morais, controlando as
relaes sexuais dos jovens e condenando a promiscuidade dos cortios.
Comportamentos que viabilizavam, em certo nvel, a oportunidade de
integrao ao contexto urbano da nova ordem social constituda.
Ainda de acordo com Fernandes, a desestrutura familiar seria um dos
principais fatores impeditivos da integrao do negro nova ordem
competitiva. Mas, acreditamos que essa desestrutura ou incompletude
familiar aparentava ser mais uma das conseqncias da precariedade das
condies materiais de existncia, do que uma caracterstica exclusiva dos
negros. Se as crianas negras perambulavam pelas ruas quando deveriam
36
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, 1965. 37
Antonio Srgio Alfredo GUIMARAES, A questo racial na poltica brasileira (os ltimos
quinze anos), So Paulo, Mimeo, 2001.
23 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
estar na escola, porque a me precisava trabalhar como domstica, para
garantir a sobrevivncia da famlia, no podendo acompanhar, com maior
proximidade, o processo de socializao dos filhos. Muitas vezes, para ajudar
no sustento da casa, os adolescentes necessitavam trabalhar, o que os
impeliam a abandonar os estudos. Sendo assim, podemos inferir que a
desestruturao familiar era resultante da pobreza, da posio marginal que
o negro ocupava na sociedade. Os jornais operrios denunciavam a
promiscuidade dos imigrantes, que habitavam os cortios, nos quais muitos
viviam como porcos. Tais peridicos retratavam a preocupao com a falta
de homens provedores e a quantidade de filhos ilegtimos naqueles locais.38
Portanto, o padro de famlia desejvel no se relacionava apenas a valores
morais de determinada raa, mas em boa parte, s condies materiais de
existncia.
A classe mdia de cor possua uma atitude diferenciada e no
admitia a subservincia do negro perante o branco. Do ponto de vista
sociolgico, rompia-se relao direta entre raa e pobreza, resultando na
reao discriminatria dos brancos contra a tentativa do negro em
considerar-se, socialmente, em p de igualdade.
A principal tcnica de ascenso social adotada pelos negros foi a
valorizao da instruo. A educao seria um instrumento privilegiado que
abriria as portas da sociedade, pois a precariedade material e moral no meio
negro resultaria de um baixo nvel de instruo. Desta forma, as famlias
negras em ascenso no mediam esforos, fazendo, muitas vezes, com que
a famlia inteira se sacrificasse para que um determinado filho pudesse
estudar. Estratgia, alis, que no era exclusividade dos negros. Tal recurso
foi utilizado por muitas famlias de baixa renda para tentar melhorar de
vida. Em pesquisa realizada em uma escola secundria localizada na
38
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,
EDUSC, 1998.
24 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
periferia de So Paulo (Vila Diva Zona Leste), no final dos anos 1950,
Borges Pereira constatou o processo de seleo existente no interior das
famlias no sentido de que todos os membros conjugassem esforos para
que, pelo menos um deles, conseguisse cursar o ginsio. Em razo dos
limitados recursos econmicos das famlias, o que impossibilitava que todos
estudassem, havia uma mobilizao conjunta para que, ao menos um
conseguisse obter diploma de nvel secundrio. Como pode ser verificado no
enunciado do pai de um aluno: Um pelo menos tem que salvar a famlia,
para mostrar que pobre tambm tem inteligncia e no precisa andar sujo
como operrio.39
O estilo de vida puritano seria outra estratgia para romper com os
atributos negativos impostos ao negro pela sociedade: desordeiro,
malandro, vagabundo, bbado, desonesto, ladro etc. Segundo
Fernandes, o puritanismo funcionava como uma estratgia de autodefesa e
auto-afirmao sociais e tinha o papel de impor um controle sobre o modo
de vestir, falar e conversar, na correo dos hbitos e aes. O puritanismo
refletia a nsia do negro em se igualar, ou superar o branco, estabelecendo
parmetros de comportamento, normas e valores da sociedade global que
foram fundamentais na efetivao do projeto de ascenso social.
Como foi dito anteriormente, at a dcada de 1930 as elites negras
eram compostas por membros da classe baixa que exerciam funes
estveis, destacando-se da massa negra. Uma das caractersticas desses
grupos era sua composio heterognea abrangendo desde a cozinheira, o
39
Dentre as motivaes que levariam as famlias a tal mobilizao, o autor destaca a
obteno de status pelo simples fato de um dos membros estar no ensino secundrio. Outra motivao seria o fato das famlias pensarem a educao como um investimento econmico. Ou seja, havia a expectativa de que o membro da famlia que conseguisse formar-se auxiliaria a melhorar as condies de vida do grupo familiar. Muitas vezes, tal esforo resultava em um investimento a fundo perdido, pois quando os alunos foram questionados sobre o que esperavam do estudo, apenas 1% das respostas associava o anseio de estudar a ajuda famlia. Joo Baptista BORGES PEREIRA, A escola secundria numa sociedade em mudana, So Paulo, Pioneira, 1969, p. 71 e 72.
25 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
mecnico, at o desenhista, o contador, o mdico e o advogado, passando
pelo chofer, pelo escriturrio, pelo corretor, pelo pequeno comerciante e,
eventualmente, o pequeno industrial.40
Com o desenvolvimento industrial, nas dcadas de 1950 e 1960, a
elite negra foi alterando-se, quantitativa e qualitativamente. Estes negros
passaram a ter um estilo de vida diferenciado e criaram novos espaos de
sociabilidade que funcionavam como alternativas discriminao, j que os
clubes de lazer, principalmente os de imigrantes europeus e da alta
burguesia, exerciam uma poltica segregacionista que impedia o acesso aos
negros.41
O primeiro estudo especfico sobre ascenso social dos negros, em
So Paulo, foi realizado por Borges Pereira no incio da dcada de 1960.42
O
autor analisou a integrao do negro no rdio, possibilitada pelo novo padro
esttico musical, relacionado a um estilo de vida urbano que refletia os
traos negros da cultura nacional: o samba. Na poca, o rdio e o futebol
constituam os meios privilegiados para a mobilidade social dos negros. Na
estrutura radiofnica, os negros concentravam-se, em maior nmero, nos
setores e posies de menor status, logo, o rdio reproduzia a hierarquia da
sociedade global que aproveitava os negros nas atividades situadas na base
da pirmide ocupacional. Apesar disso, o rdio representava, para o negro, a
possibilidade de um emprego estvel que lhe conferia reconhecimento social
e oferta de oportunidades inditas de trabalho, tanto no meio radiofnico
quanto no meio artstico mais amplo. Os ganhos econmicos permitiram aos
negros radialistas optar por um novo estilo de vida, comprando automveis,
40
Florestan FERNANDES, A integrao do negro na sociedade de classes, vol. II, So
Paulo, Dominus, 1965, p. 266. 41
Maria Aparecida PINTO SILVA, Visibilidade e respeitabilidade, 1997, Dissertao de
mestrado, PUC/SP, So Paulo. 42
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,
1967.
26 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
roupas sofisticadas, mudando para uma casa melhor, investindo na instruo
dos filhos e aproveitando seu tempo livre em viagens tursticas. Apesar da
aquisio de prestgio social, as relaes do radialista negro com seus
colegas brancos, restringiam-se ao ambiente de trabalho, raramente, sendo
convidado para eventos familiares.43
No perodo que compreende os anos de 1968 e 1974, o pas
atravessou uma fase de grande crescimento econmico, conhecida como o
milagre brasileiro. Nessa poca a classe mdia foi beneficiada. Apesar de ter
havido uma relativa melhora no padro de vida da classe trabalhadora, os
seus salrios no acompanharam os ndices de inflao. Apesar dos negros
de classe mdia no terem obtido os mesmos benefcios dos brancos, houve
algumas possibilidades de ingresso em cargos de nvel universitrio.44
Em meados de 1970, os negros de classe mdia tinham, cada vez
mais, noo das barreiras impostas a sua mobilidade social. Crescia a
conscincia de que o Brasil estava longe de ser uma democracia racial ou
poltica, logo, a alternativa seria uma nova mobilizao.
A morte de um trabalhador negro, em uma ao policial, e a expulso
de quatro negros da ala social do Clube de Regatas Tiet resultaram em uma
expressiva manifestao dos negros contra a discriminao e a violncia.
Tais fatos, aliados progressiva insatisfao com a situao social, na qual
estavam imersos fizeram com que os negros em ascenso fundassem, em
1978, o MNU (Movimento Negro Unificado). Organizao que objetivava
43
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Cr, profisso e mobilidade, So Paulo, Pioneira,
1967. 44
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,
EDUSC, 1998.
27 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
combater o racismo e as desigualdades sociais, lutando por uma autntica
democracia racial.45
Em termos de posicionamento poltico, o MNU adotou uma
classificao racial bipolar, onde os mestios foram includos na categoria
negro. Desta forma, os negros representariam a maioria da populao. A
proposta ideolgica era fundamentada na linha terica do marxismo. Sendo
assim, o problema do negro resultava das formaes sociais capitalistas,
logo, a resoluo estaria nas transformaes das estruturas socioeconmicas,
mas, concomitantemente, havia um reconhecimento de que a questo racial
no podia ser camuflada pela explorao capitalista.46
O MNU no conseguiu ascendncia sobre a maioria da populao
negra que, apesar de ter conscincia da discriminao racial, talvez estivesse
preocupada com questes mais prementes, como a garantia de emprego,
moradia e alimentao. Apesar disso, a atuao do MNU contribuiu para que
a questo racial fosse includa na pauta da grande imprensa e nos programas
dos partidos polticos.47
Portanto, nas dcadas de 1970 e 1980, o movimento
negro concorreu para que a sociedade repensasse sua atuao pblica e
privada sobre as relaes raciais.48
Nas duas dcadas passadas, houve um aumento, quantitativo e
qualitativo, dos negros de classe mdia. Em 1997, a agncia publicitria
45
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros Ideolgicos de projeto poltico de negros
em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982 e George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP, EDUSC, 1998. 46
Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros ideolgicos do projeto poltico de negros
em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982. 47
Joo Batista de Jesus FLIX, Pequeno histrico do movimento negro contemporneo, in:
Lilia M. SCHWARCZ e Letcia V. S. REIS (orgs), Negras imagens, So Paulo, EDUSP, 1996. 48
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em So Paulo (1988 1988), Bauru, SP,
EDUSC, 1998.
28 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
Grottera realiza pesquisa intitulada: Qual o pente que te penteia?. O
trabalho revelou que havia, no Brasil, cinco milhes de negros com renda
familiar acima de vinte salrios mnimos,49
e que, pelos padres nacionais de
consumo, poderiam ser classificados como classe mdia.50
A descoberta do potencial de consumo deste segmento da
populao negra, pelo mercado, fez com que o negro comeasse a ganhar
uma visibilidade relativa nos meios de comunicao. Em 1995, o jornal Folha
de So Paulo, em razo do tricentenrio da morte de Zumbi dos Palmares,
organiza a maior pesquisa sobre a questo racial realizada no pas, um
investimento de aproximadamente setenta e sete mil dlares. Segundo
Conceio, um dos principais motivos para tal empreitada seria justamente o
crescimento da classe mdia negra. Apesar do referido jornal no ter
obtido um grande retorno financeiro com a publicao dos resultados, obteve
dividendos em termos de prestgio, principalmente junto aos negros, por sua
postura de vanguarda em relao ao tema.51
O diretor de redao, Otavio
Frias Filho, relata os motivos que levaram o jornal a investir em tal projeto:
...A gente no pode ter iluses com relao base social do leitorado dos jornais. Do ponto de vista social um grupo relativamente, um leitorado urbano, basicamente de classe mdia. O que nos motivou a fazer um investimento sistemtico, consistente nessas problemticas ao longo de 95 foi simplesmente o gancho da efemride dos 300 anos de Zumbi, toda a importncia histrica, historiogrfica que o tricentenrio de Zumbi teve, e continua tendo, e
49
Segundo a pesquisa da Grottera, a classe mdia branca seria composta por sete milhes
e meio de indivduos. Em trabalho recente, Figueiredo revela, a partir de dados da Pesquisa nacional por Amostragem de Domiclios (PNAD), que a classe mdia brasileira composta de 30,3% de negros em termos absolutos, 6.697.440 de indivduos e 68,6% de brancos, o que corresponde a 15.146.649 indivduos na populao ocupada nas atividades no-agrcola. Angela FIGUEIREDO, A classe mdia negra no vai ao paraso, 2003, Tese de doutorado, IUPERJ, Rio de Janeiro, p. 74. 50
Iara Soubihe de PINHO, A mulher negra brasileira na busca de seus espaos scio-
culturais e a sua imagem na revista Raa, 2002, Dissertao de mestrado, Faculdade de Comunicao Social Casper Lbero, So Paulo. 51
Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de
doutorado, ECA-USP, So Paulo.
29 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
secundariamente, do ponto de vista prtico essa talvez seja a razo principal
-, a gente tem esse diagnstico de que no processo de evoluo da sociedade brasileira, do capitalismo no Brasil, uma quantidade crescente de pessoas negras est sendo incorporada ao que se chama classe mdia. E a Folha tem essa preocupao de estar se antecipando s tendncias e a gente decidiu em 95, a gente procuraria fixar a imagem da Folha no conjunto da imprensa brasileira como aquele veculo mais preocupado com essa questo tnica. Em resumo, a
motivao foi esta...52
Em 1996, lanada, pela Smbolo Editorial, a revista Raa Brasil, com
uma tiragem inicial de 300.000 exemplares53
. A Raa tinha como pblico alvo
os negros de classe mdia com poder aquisitivo para consumir produtos
considerados suprfluos.54
Inicialmente, a revista foi direcionada para a
famlia negra; nos ltimos anos, houve uma mudana de foco, atualmente
dirigida mulher negra. A revista enfoca "comportamento, moda, beleza,
culinria e atualidade. Em termos publicitrios, h um nmero significativo
de anncios de cosmticos produzidos especificamente para negros. Mas,
alm da moda, a revista procura divulgar os negros que conseguiram obter
sucesso na vida profissional (artistas, jogadores de futebol e empresrios)
oferecendo uma viso alternativa quela, comumente, veiculada pela
imprensa sobre os negros.
Outro exemplo de sinal de visibilidade na mdia, foi a publicao, em
1999, de uma edio da Revista Veja que trazia como matria de capa, a
classe mdia negra. A matria composta por oito pginas, destacava o
crescimento deste segmento nas capitais brasileiras e que seria formado,
atualmente, por oito milhes de pessoas, representando um tero da classe
52
Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de
doutorado, ECA-USP, So Paulo, 76. 53
Iara Soubihe de PINHO, A mulher negra brasileira na busca de seus espaos scio-
culturais e a sua imagem na revista Raa, 2002, Dissertao de mestrado, Faculdade de Comunicao Social Casper Lbero, So Paulo. 54
Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de
doutorado, ECA-USP, So Paulo.
30 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
mdia brasileira. A reportagem trazia o depoimento de alguns negros bem
sucedidos (empresrios, executivos etc) que narravam situaes
constrangedoras, vivenciadas em funo do preconceito. Mas, tambm,
apresentava dados que refletiam as desigualdades raciais no pas.55
Na histria da telenovela brasileira, o negro, majoritariamente,
apareceu como subserviente, estereotipado nas fguras de empregadas,
capangas, malandros, escravos dceis, mulata sensual etc. Somente em
1985, surgiria a primeira famlia de negros de classe mdia, na telenovela
Corpo a Corpo, exibida pela TV Globo, na qual a personagem da atriz Zez
Motta era discriminada pelo pai de seu namorado branco, pelo fato de ser
negra. Pela primeira vez, o racismo foi colocado como o principal drama dos
protagonistas. Mas, a famlia de negros de classe mdia que adquiriu maior
visibilidade, viria em 1995, em A Prxima Vtima. Os Noronha formavam
uma famlia de camada mdia conservadora, que almejava a ascenso social,
mas mantinham a preocupao de no romper com os princpios ticos.56
Apesar da maior visibilidade dos negros em papis no
estereotipados, nas novelas, (exercendo funes de mdicos, advogados,
modelos), e de uma presena maior nas propagandas, este segmento ainda
no est quantitativamente, representado na mdia e, na maioria das vezes,
sua imagem ainda est vinculada subalternidade.57
Nesse histrico sumrio do negro em So Paulo, preciso ressaltar
que desde seu processo de proletarizao, no incio do sculo passado
55
Revista Veja, n 33, ano 32, Agosto, 1999. 56
Joelzito Almeida de ARAJO, A negao do Brasil, 1999, Tese de doutorado, ECA-USP,
So Paulo. 57
O esteretipo do negro na televiso brasileira foi analisado por Solange M. COUCEIRO,
O negro na televiso de So Paulo, So Paulo, FFLCH-USP, 1983. Sobre a representao do negro nas telenovelas, ver: Joelzito, op. cit. A respeito da imagem do negro na mdia impressa, ver: Fernando CONCEIO, Mdia e etnicidades no Brasil e Estados Unidos, 2001, Tese de doutorado, Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, So Paulo.
31 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________ Introduo
(1920) at os dias atuais, o racismo brasileira proporcionou a ascenso
social a alguns negros que conseguiram ultrapassar as barreiras de cor,
portanto, no tivemos a ascenso social de grupos de negros. A mobilidade
sempre teve um carter individual, a maior parte da populao negra ainda
est confinada nos estratos mais baixos da estrutura social.58
Conseqentemente, a mobilidade individual dificulta a consolidao de uma
classe mdia negra, pois alm da situao de classe no ser instvel (como
foi exposto anteriormente), no h aes coletivas dos negros que ocupam a
mesma posio de classe, visando a defesa dos interesses do grupo, com
fundamento na identidade negra. O termo negros de classe mdia talvez
seja mais adequado para tratar desses indivduos que conseguiram uma
mobilidade social ascendente, sem que haja, necessariamente, uma ligao
orgnica entre eles.59
Apesar de representar uma pequena frao da populao negra na
cidade, os negros em ascenso social lutaram para conseguir espaos de
convvio social atravs de seus clubes e associaes, inaugurando uma nova
ideologia e um estilo de vida especfico.
Os dois campos empricos, objetos desta pesquisa, enquadram-se
nesse contexto: o Aristocrata Clube, fundado em 1961 e a Afrobras, criada
em 1988, pois em ambos h um projeto de valorizao da ascenso social.
No prximo captulo realizaremos uma anlise destas duas organizaes.
58
Maria Isaura PEREIRA DE QUEIROZ, A ascenso econmica dos negros no Brasil e em
So Paulo, Cincia e Cultura (SBPC), So Paulo, 1977. 59
Angela FIGUEIREDO, Novas elites de cor, So Paulo, Annablume, 2002.
Captulo 1
Os campos empricos: Aristocrata Clube e Afrobras
1.1 - O Aristocrata Clube
Segundo Moura, o negro sempre foi um organizador. Desde o
perodo colonial atravs dos quilombos e irmandades religiosas,
posteriormente, com os grupos religiosos (candombl), escolas de samba,
organizaes polticas (Frente Negra Brasileira) e clubes de lazer o negro
construiu espaos de sociabilidade que funcionavam como instrumentos de
autodefesa em relao sociedade global. Tais associaes exerceram um
importante papel na histria do negro brasileiro, seja na luta pela abolio da
escravido, ou na integrao do negro na sociedade de classes,
proporcionando espaos de entretenimento ou denunciando a discriminao
33 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Campos Empricos
racial.1 Organizar-se parece ter sido uma das poucas alternativas para a
sobrevivncia do negro, enquanto grupo, em sua especificidade.2
Na dcada de 1960, os clubes de lazer adquiriram um carter
muito peculiar. Nesse perodo, houve uma grande agitao no meio negro.
Despontaram associaes como o Clube Coimbra e o Clube 220. O Coimbra,
freqentado por trabalhadores empregadas domsticas, em sua maior
parte , tornou-se conhecido por promover jogos de futebol e basquete.
1 Clvis MOURA, Organizaes negras, o povo em movimento, So Paulo,
Vozes/CEBRAP, 2002. Analisando a decadncia do patriarcado rural (sculo XVIII e incio do XIX), Freyre adverte que o patriarcalismo estimulou o individualismo dos proprietrios e privatismo das famlias. Afora a confraria catlica, foi no escravo negro que mais ostensivamente desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o da famlia sob a forma de sentimento de raa e, ao mesmo tempo, de classe: a capacidade de associao sobre base francamente cooperativista e com um sentido fraternalmente tnico e militantemente defensivo dos direitos do trabalhador. Para no falar na forma quase socialista de vida e de trabalho que tomou a organizao dos negros concentrados nos mucambos de Palmares. () Os negros reunidos nos Palmares sob uma ditadura parassocialista, que, segundo os cronistas, fazia recolher ao celeiro comum as colheitas, o produto do trabalho nas roas, nos currais, nos moinhos, para realizar-se ento, em plena rua, na praa, a distribuio de vveres entre os vrios moradores dos mucambos, puderam resistir durante meio sculo de ataques do patriarcalismo dos senhores de engenhos, aliados aos capites-mores. O sistema socialista de vida, organizado pelos ex-escravos em Palmares, pde resistir economia patriarcal e escravocrtica, ento em toda a sua glria. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1981, p. 41 e 42. 2 Mas essa mobilizao dos negros nem sempre ocorreu de forma coerente e linear. Borges
Pereira, em estudo sobre a atuao e os discursos dos polticos e militantes negros, em So Paulo, na dcada de 1980, destacou a falta de unio e o desacordo perceptveis nas reunies dos movimentos negros, expressos por troca de palavras rspidas entre os participantes. Para o autor, o principal desafio para as associaes negras era criar um nexo de lealdade que unisse os negros de diferentes matizes em torno de um mesmo projeto poltico. A conscincia dos negros de que sua desunio inviabilizava os planos polticos era manifestada de diversas formas: ... no nvel da nominao institucional, quando historicamente escolas de samba ou grupos de folia vm incorporando, quase que obrigatoriamente, em seus nomes as palavras unidos, unio etc., ou, quando, hoje, o movimento poltico mais expressivo e ambicioso, formado em So Paulo, se intitula Movimento Negro Unificado. Encontram-se nas assemblias e reunies, quando a palavra-de-ordem a unio, ou, quando, em acaloradas discusses, repudiam-se sistematicamente
quaisquer aluses a pluraridade de um e de apenas um movimento negro que
admite-se possa expressar-se de vrias maneiras e em diversas correntes, sem contudo quebrar sua unidade.... Joo Baptista BORGES PEREIRA, Parmetros ideolgicos do projeto poltico de negros em So Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, So Paulo, vol. 24, p. 53-62, 1982, p. 57.
34 _______________________________________________________________________________
Negros de classe mdia em So Paulo:
estilo de vida e identidade negra Reinaldo da Silva Soares
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Campos Empricos
Alm disso, realizava cursos de