21
28 Grupo de Trabalho: Teorias O CAPITAL-EDUCAÇÃO: QUANDO O PROFESSOR SE TORNA REDUNDANTE Sergio Antunes de Almeida Simone Wolff Marcos Dantas Resumo: Na medida em que transforma a educação em mais uma frente de investimento e acumulação, o capital vem tentando introduzir, no processo de ensino-aprendizagem, métodos de gestão do trabalho que mesclam o discurso toyotista da administração participativa com práticas tayloristas de organização do trabalho. Apoiando-se nas tecnologias de informação e comunicação (TICs), o capital buscaria reduzir as qualidades intrínsecas do trabalho concreto do professor, a trabalho morto replicável e apropriável. Este texto se baseia numa pesquisa feita em instituição privada de ensino superior que fornece educação à distância (EAD) com uso intensivo de TICs, e mostra como a relação capital-trabalho, nessa instituição, ao reificar o trabalho do professor, contribui para reduzir a educação a mera mercantilização do diploma. A metodologia adotada sugere outras pesquisas em todas as atividades onde o capital necessita, para se valorizar, empregar trabalho de natureza artística ou criativa, como é o caso do trabalho docente, ajudando assim a avançar o conhecimento sobre a natureza do capital-informação. Palavras-chaves: educação à distância, tecnologias da informação e comunicação, trabalho docente redundante, taylorismo, toyotismo, capital-informação.

O capital educaçãoulepic

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Capital Educação: quando o professor se torna redundante. Artigo sobre a simbologia do diploma .

Citation preview

Page 1: O capital educaçãoulepic

28

Grupo de Trabalho: Teorias

O CAPITAL-EDUCAÇÃO: QUANDO O PROFESSOR SE TORNA REDUNDANTE

Sergio Antunes de Almeida Simone Wolff Marcos Dantas

Resumo:

Na medida em que transforma a educação em mais uma frente de investimento e

acumulação, o capital vem tentando introduzir, no processo de ensino-aprendizagem, métodos

de gestão do trabalho que mesclam o discurso toyotista da administração participativa com

práticas tayloristas de organização do trabalho. Apoiando-se nas tecnologias de informação e

comunicação (TICs), o capital buscaria reduzir as qualidades intrínsecas do trabalho concreto

do professor, a trabalho morto replicável e apropriável. Este texto se baseia numa pesquisa feita

em instituição privada de ensino superior que fornece educação à distância (EAD) com uso

intensivo de TICs, e mostra como a relação capital-trabalho, nessa instituição, ao reificar o

trabalho do professor, contribui para reduzir a educação a mera mercantilização do diploma. A

metodologia adotada sugere outras pesquisas em todas as atividades onde o capital necessita,

para se valorizar, empregar trabalho de natureza artística ou criativa, como é o caso do trabalho

docente, ajudando assim a avançar o conhecimento sobre a natureza do capital-informação.

Palavras-chaves: educação à distância, tecnologias da informação e comunicação,

trabalho docente redundante, taylorismo, toyotismo, capital-informação.

Page 2: O capital educaçãoulepic

29

A crise do chamado “regime fordista de acumulação”, e a emergência de um novo

padrão que fez da informação o seu vetor de acumulação (Schiller, 1986; Harvey, 1996;

Lojkine, 1995; Dantas, 2003), transformou a educação, a saúde e outros setores até então

organizados e geridos predominantemente enquanto setores públicos, em alvos de crescente

investimento privado. Naturalmente, uma vez “privatizados”, esses setores passam a ser geridos

conforme a lógica do capital, voltada para a acumulação e o lucro. O principal objeto dessa

gestão é o trabalho, fonte do valor. No entanto, o trabalho, aqui, não produz mercadoria, se por

tal entendemos “um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas propriedades satisfaz

necessidades humanas de qualquer espécie” (Marx, 1984, v. 1, t. 1, p. 45). O trabalho aqui

produz algo a ser comunicado, cujo valor não se encontra no suporte material usado nessa

comunicação (trabalho morto), mas na atividade mesma do processamento e comunicação da

informação (trabalho vivo), em função das aleatoriedades e redundâncias do processo (Dantas,

2006). A utilidade da informação (valor de uso) está na orientação que fornece à ação,

instrumental ou emocional. Implica dizer que o valor da informação, se é produto do trabalho de

alguém, é também produção de trabalho vivo já que produz a ação de outrem. No capital-

informação, como diria Moulier Boutang, “a exploração [...] se concentra essencialmente na

produção de trabalho vivo como uma atividade, ela mesma, viva” (Boutang, 2001, p. 142).

Era o que já acontecia nas indústrias culturais, conforme percebido pelos primeiros

estudiosos da Economia Política da Comunicação, confrontados com as vicissitudes da teoria do

valor sob tais condições de produção. O trabalho artístico é de difícil redução a trabalho

abstrato; seu valor reside nas próprias qualidades concretas do artista (desempenho, empatia,

interação com o público etc.), embora tais qualidades possam e tenham que ser replicadas sobre

algum suporte material para que o capital nele investido possa se reproduzir e acumular. Nessas

condições, a “mercadoria” aí produzida não seria a película cinematográfica ou alguma imagem

no receptor de televisão, mas a audiência que um determinado produto cultural pudesse

capturar, sendo essa audiência o real valor de uso que publicitários, anunciantes, fabricantes de

equipamentos de recepção ou reprodução estariam dispostos a remunerar, assim permitindo a

realização do capital (cultural) aí investido (Bolaño, 2000).

Page 3: O capital educaçãoulepic

30

No entanto, o público que constitui essa audiência é, também, claro, um público vivo.

As emoções transmitidas pelo artista só se conectam com a audiência se, de alguma forma, se

identificam com as emoções sentidas pelo público. O público também trabalha e, nesta

comunicação, realiza-se o capital mediado pela audiência comercializada.

O modelo da indústria cultural, com as necessárias adaptações, poderá ser replicado em

qualquer outra indústria informacional – vale dizer, em qualquer indústria de ponta do

capitalismo contemporâneo. Uma delas é a educação. Aqui, também, o capital emprega trabalho

vivo dos professores para produzir atividade viva dos alunos. Nos últimos anos, paralelo ao

processo de privatização do ensino, cresceu o emprego de tecnologias da informação e

comunicação (TICs) nas atividades de ensino-aprendizagem, introduzindo importantes

mudanças na prática docente, agora submetida ao processo capitalista de valorização. Entre as

frentes de expansão, encontra-se o ensino a distância (EAD): empresas de ensino, apoiadas nas

TICs, que fornecem cursos de nível superior a milhares de alunos espalhados por todo o país, a

partir de algum lugar físico específico, graças a redes de computadores, à internet, a satélites, à

televisão. Para isto, no entanto, impõem aos professores novas formas de trabalho que parecem

tornar essa atividade tão reprodutível, no sentido de Benjamin (1982), quanto qualquer outra

obra de arte industrializada.

Uma dessas instituições, situada numa cidade do norte do Paraná, oferece, desde 2002,

cursos universitários à distância a mais de 100 mil estudantes, conectados a 900 pólos (salas de

aula apropriadas), espalhados em 200 municípios de 24 estados brasileiros, detendo, com isto,

35% do mercado de ensino à distância no Brasil. Vamos identificá-la por Universidade Y. Este

texto se baseia numa pesquisa sobre as mudanças nas condições do trabalho docente nesta

instituição, adaptando-o ao que seriam necessidades da tecnologia (Almeida, 2008), mas que, na

realidade, vão se demonstrar como exigências do processo de acumulação em um capitalismo

informacional que se expande ainda sem freios.

1. O processo de trabalho

Esquematicamente, a cadeia produtiva do processo de educação à distância, na

Page 4: O capital educaçãoulepic

31

Instituição Y, contém três elos básicos: professor especialista (PE) – tutor eletrônico (TE) –

aluno. O PE elabora as aulas, conforme o faz qualquer professor, mas as ministra em uma sala

aparelhada como se fosse um estúdio de televisão. A imagem é transmitida, via satélite, para os

pólos a distância (“salas de aula”), onde os alunos assistem às aulas em tempo real, através de

um receptor de TV (telão) e de microcomputadores conectados à intranet da instituição,

fiscalizados e orientados pelo TE que, inclusive, media a interação professor-alunos. Cada tele-

aula dura 90 minutos ininterruptos, durante as quais o professor, além da fala, pode usar filmes,

slides, textos e quaisquer outros recursos de apoio necessários. O PE ainda coordena a “aula-

atividade”, um bate-papo via rede (chat) com duração de 60 minutos, quando, junto com o TE,

responde a questões ou dialoga com os alunos. Aos TEs compete receber, via rede de

computadores, os trabalhos e provas dos alunos, inclusive os trabalhos de conclusão de curso

(TCCs), corrigi-los e dar as notas, além de fornecer outras orientações, durante as tele-aulas ou,

pela rede, a qualquer outra hora dentro da sua jornada de trabalho. As aulas são gravadas e

ficam registradas nos servidores da Universidade, permitindo aos alunos recuperarem-nas e as

reverem quantas vezes desejarem, desde que dentro de um calendário escolar estabelecido pela

instituição.

Todo esse processo pode ser acompanhado instante a instante por diretores e

coordenadores (gerentes), através da própria rede. Como veremos, na medida em que a

instituição, isto é, o capital, acumulou experiência nessa nova modalidade de ensino, começou a

impor, através dos seus “funcionários”, métodos que pretendem tornar as aulas cada vez mais

rotineiras e repetitivas, controlando, dentre outros aspectos, os tempos de veiculação de cada

item em cada aula, a quantidade de slides a serem exibidos e até mesmo o conteúdo.

Para investigar esse processo, a pesquisa realizou-se em duas fases (Almeida, 2008).

Primeiramente, procedeu-se ao mapeamento e descrição das mudanças no processo de trabalho

docente viabilizadas pela aplicação das TICs e da chamada administração participativa na

instituição pesquisada. Nesta fase, foram levantados dados relativos à sua atual estrutura-

organizacional, ao histórico do seu processo de reestruturação e às modificações mais

significativas que este operou comparativamente ao seu antigo padrão de produção. Para tanto,

foram utilizados documentos e informativos internos da empresa, bem como entrevistas com

Page 5: O capital educaçãoulepic

32

funcionários das áreas Administrativa (Depto. Pessoal, secretárias de cursos, Depto. de

Vestibular) e Pedagógica (coordenadores de curso, professores, tutores eletrônicos e tutores de

sala), tendo como critério de seleção aqueles que participaram desse processo desde o seu

começo. Os dados levantados subsidiaram um recorte mais preciso das funções de TE e PE, o

qual permitiu avançar para uma segunda fase em que foram realizadas novas entrevistas com

esses docentes visando compreender o funcionamento dos seus respectivos processos de

trabalho, e a sua percepção sobre tais inovações.

Ao todo foram realizadas 67 entrevistas com tutores eletrônicos, 33,5% do número de

profissionais efetivos na época, através de formulários. Quanto aos professores especialistas,

foram realizadas 10 entrevistas que foram gravadas e transcritas. Em ambos os casos, foi

preservado o anonimato dos entrevistados.

Notou-se que durante a primeira fase de implementação do EAD na Universidade Y, os

professores especialistas eram bastante demandados a elaborar os conteúdos. Somente depois

que esses conteúdos estavam selecionados e definidos como parâmetros para os programas e

material didáticos, a demanda por especialistas diminuiu significativamente, reduzindo-se assim

o cabedal de habilidades docentes requeridas.

Após a construção e estabilização do sistema, que levou cerca de dois anos, três professores

que colaboraram com o processo, na condição de coordenadores, foram demitidos. Não houve nova

contratação para preenchimento destes postos, outros docentes foram remanejados para cumprir suas

funções sem a equiparação de cargo e salário.

Segundo um dos coordenadores demitidos isso ocorreu por que todo o processo já tinha

sido montado e, agora, bastaria administrar o fluxo de informações vindo das unidades (pólos):

“Agora ficou mais fácil, pois os computadores armazenaram a rotina de trabalho”.

Estar-se-ia percebendo aqui, o “fenômeno da inversão da requalificação” que Freyssenet

aponta como próprio da introdução do automatismo na produção especificamente capitalista

(Freyssenet, 1989, p. 109). Ou seja, se num primeiro momento, novas qualificações passam a

ser exigidas para lidar com a nova tecnologia, em um segundo momento o trabalho vivo volta a

ser simplificado, ainda que em novas bases.

Na Universidade Y, tal fenômeno é percebido quando o professor é levado a buscar

Page 6: O capital educaçãoulepic

33

novas aptidões, exigidas pelo novo aparato tecnológico, em detrimento de outros aspectos

próprios à sua formação. O trabalho docente parece redefinido quanto à qualificação e

polivalência conforme o “ritmo” e o manejo das TICs. Estaria se passando, aqui, algo similar à

redução, na produção fabril, do trabalho artesão a trabalho operário, na medida em que uma

certa dimensão artesanal contida no processo de pesquisa e reflexão, próprio à elaboração de

aulas, se perderia, objetivada nas TICs.

Para a instituição, sobretudo nessa modalidade de ensino, o principal objetivo é ampliar

a quantidade de alunos matriculados em seus cursos, vistos como “clientes” ou “consumidores”.

Poderíamos dizer: esta é a sua “audiência”. Nisto, tal padronização e simplificação das

atividades docentes parece proporcionar uma estratégia eficaz para ampliar o número de

estudantes por professor, ou seja, a produtividade. Conforme relata uma tutora:

Nós padronizamos um modelo de correção de trabalho dos alunos. Assim um novo tutor eletrônico que chega pode aprender rapidamente a corrigir os textos. Se não for assim, a gente não consegue vencer, porque são muitos alunos para cada tutor. Já tive uns 600 sob minha responsabilidade, num semestre.

Sob tais condições, para os docentes que aceitam se inserir nesse processo, a questão da

qualidade do ensino vai pouco a pouco perdendo maior significado e, junto com ela, dimensões

fundamentais da própria formação e especialização do professor. É isto que se depreende da fala

de um PE recém-contratado:

A coordenadora pediu que eu assistisse à aula gravada da professora (demitida), e ver o conteúdo da aula dela. Vou verificar a postura, a comunicação e o conteúdo porque tenho que assumir estas aulas e este assunto [que] não é minha especialidade.

De professor, ele se torna... locutor!

É essa simplificação, com aparência de mecanização, do processo de trabalho docente

que permite dispensar o trabalhador mais qualificado ou experiente, trocando-o por

profissionais que aceitem receber salários inferiores. Para os TEs, candidatos naturais a essas

Page 7: O capital educaçãoulepic

34

vagas por receberem um salário menor do que os PEs, isso é apresentado como um “incentivo”

por um coordenador da Universidade Y, logo instrumento de aliciamento e, mesmo, de

subsunção real do trabalho:

Estamos dando oportunidades a tutores eletrônicos para substituírem alguns professores especialistas nos cursos de Administração e Pedagogia. Isso vai incentivá-los a buscarem mais qualificação, pois terão um ganho a mais e ao mesmo tempo aproveitamos as “pratas da casa”, que já conhecem o sistema.

Não se trata apenas do conhecimento formal do professor que vem a ser objetivado num

filme e que se supõe reprodutível por qualquer outro trabalhador. O filme registra gestos,

entonações de voz, posturas de corpo, formas de discurso, táticas retóricas, todo um conjunto de

saberes não formalizados que constituem o conhecimento tácito de um específico profissional,

no seu esforço para captar a atenção e passar conhecimento, didaticamente, aos alunos. A

instituição espera que o professor menos qualificado ou menos experiente seja capaz, tão-

somente, de reproduzir esses saberes, nas tele-aulas “ao vivo”. Faz dele um ator, não somente

repetindo um texto, mas mimetizando aquele outro profissional que serviria de “referência”.

O depoimento de um professor confirma:

Observando as colocações dos colegas, arrisco fazer um paralelo. O professor pode ser comparado ao ator que, outrora, atuava num palco de teatro, tendo que improvisar em função da falta de recursos à sua disposição. Agora, ele é “convidado” a atuar num ambiente televisivo, onde os recursos são abundantes.

Essa incorporação dos conhecimentos tácitos dos trabalhadores aos filmes e softwares

didáticos da instituição, aumenta a produtividade do trabalho docente, pois permite elevar a

relação alunos por professor a uma escala sem precedentes: como se um mesmo professor, ao

invés de ministrar aulas para 30 a 50 estudantes em uma sala, estivesse se dirigindo a um

auditório de 200, 400, 900 alunos e alunas os quais, no entanto, sequer visualiza diretamente.

Para isso, a habilidade mais requerida do professor especialista, na modalidade EAD, passa a

Page 8: O capital educaçãoulepic

35

ser a sua capacidade de comunicação frente às câmeras. Prevalece o “animador” sobre o

docente. Como relata um dos PEs entrevistados:

Grande parte do trabalho é a tarefa de se adaptar ao mecanismo tecnológico, atuar diante das câmeras e observar rigorosamente o tempo de cada assunto abordado. A margem do que pode ser alterado no processo de trabalho também é restrita.

E outro: Estou assistindo a aula da professora para aprender a maneira como ela leciona.

Quanto ao TE, um dos requisitos fundamentais para a sua contratação é demonstrar

habilidade no uso das TICs, como meio de comunicação com os alunos, principalmente

sanando-lhes as dúvidas, além de contribuir para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das

rotinas de trabalho objetivadas no sistema.

Ao longo de todo o processo, a instituição, através de seus gerentes e coordenadores, se

esforça para mobilizar professores, tutores e, também, os alunos, na busca por permanente

aperfeiçoamento do sistema que, sob a lógica do capital, implica em constante esforço para

elevar a produtividade do trabalho. Tutores e alunos, mediados pela gerência, são estimulados a

incorporar os seus conhecimentos no sistema. Fóruns de discussão abertos para esse fim

discutem e pesquisam formas mais eficientes de realização de determinadas tarefas. Com base

nisso, estabelecem-se metas de produtividade, distribuindo-se número de alunos por cada TE,

velocidade para a realização de trabalhos, prazos (quanto mais apertados, melhor) para

cumprimento das tarefas etc.

A reprodutibilidade técnica permite à empresa gravar as aulas e pô-las à disposição dos

alunos a qualquer tempo. Ao contrário, porém, de músicos ou escritores, os professores não

ganham qualquer royalty adicional por cada vez que sua aula for “exibida”. Além de perceber

salários, como qualquer trabalhador, os docentes são forçados a assinar um contrato que

estipula, em troca de uma indenização verdadeiramente irrisória, total renúncia ao direito

autoral sobre as suas aulas. O processo em curso, parece nos lembrar a fábrica taylor-fordista

Page 9: O capital educaçãoulepic

36

descrita por Braverman (1987). As tarefas seriam pensadas por um “gerente” (coordenação),

sendo os docentes aos poucos reduzidos a meros executores.

O planejamento e a “concepção” tentam descer a detalhes, conforme revela esse

depoimento de um professor de Filosofia:

O setor de planejamento determina o número de slides para exposição em cada aula, o que delimita o tempo de abordagem de cada tema, exercendo um condicionamento do professor ao sistema. Nosso trabalho se tornou mecânico, não transmito aquilo que aprendi, faço o que o sistema burocrático impõe que, por sua vez, é dependente do sistema tecnológico. E isso na disciplina de Filosofia é catastrófico!

Estaria em curso uma autêntica “industrialização” do trabalho docente. O processo

pedagógico em educação à distância, reestruturado via TICs, faz emergirem as seguintes

características: organização, formalização, padronização e adoção de métodos racionais, tanto

dos cursos, quanto do próprio trabalho preparatório das aulas. Na medida em que se apropria do

saber formal e tácito do professor, objetivando-o nas TICs, o capital aperta os laços de controle

e de dependência do trabalho docente, ao mesmo tempo em que promove profunda mudança de

função e de especialização desses trabalhadores.

2. Os limites do controle

Naturalmente, tal processo não poderia deixar de gerar suas dissonâncias cognitivas ou

simbólicas, isto é, conflitos entre o crescente rigor dessas prescrições de cunho fabril, e as

expectativas concretas dos indivíduos. Aos poucos, na medida em que melhor conhecem as

funcionalidades do novo sistema, os docentes começam a encontrar meios para burlar a

excessiva fiscalização dos seus trabalhos por parte da gerência. É um tipo de controle já

estranho à docência tradicional e que, numa primeira abordagem, pareceria ainda menos viável

na EAD, considerando a maior distância entre o professor e o seu objeto concreto de trabalho, o

aluno. Relata um dos professores especialistas entrevistados:

Page 10: O capital educaçãoulepic

37

Com relação à aula-atividade, a coordenação determina que a gente permaneça o tempo todo no chat, respondendo às questões dos alunos. A atividade pode ser mediada pelo tutor de sala, então não é necessário que eu perca meu tempo na frente do computador sem fazer nada, ou respondendo uma ou outra questão que pode ser respondida pelo tutor de sala.

Na Universidade Y, para além da subordinação do modus operandi de seu processo de

trabalho, as TICs igualmente servem como meio de controle do tempo do docente: afinal, para o

capital, este é um tempo pago. É o que se depreende da fala de uma coordenadora:

Estamos sabendo de um professor que não estava presente na instituição na hora da aula-atividade. Não é permitido participar da aula-atividade em casa. Sabemos disso porque o sistema rastreou o computador desse professor e da próxima vez, quem fizer isso, levará uma advertência por escrito.

O depoimento de uma tutora eletrônica sobre a tentativa de controle de suas atividades

em seu domicílio remete ao estranhamento ante a alienação do “produto” do trabalho

assalariado descrita por Marx (1983), aqui percebida pela resistência em se adequar às

características (e injunções) desta nova modalidade de ensino no seu processo de trabalho:

Sei que o sistema pode fiscalizar se o meu computador esteve conectado durante o meu período de trabalho. Eu entro no sistema, coloco minha senha e entro no portfólio. Abro algum trabalho enviado por alunos e deixo aberto. Aí eu vou fazer as minhas coisas, limpar minha casa, cuidar do meu filho, isso quando estou trabalhando em casa.

O controle do tempo se mostra ainda mais difícil na relação docente-aluno, com reflexos

diretos na produtividade exigida pela instituição. Naturalmente, há prazos para os TEs

entregarem os resultados das correções dos trabalhos e o cumprimento desses prazos depende,

por sua vez, de os alunos cumprirem os deles. Sendo enorme a quantidade de estudantes por TE

e dada a dificuldade de discipliná-los quanto aos prazos, a conseqüência é o aumento da carga

de atividades, com correspondente perda de qualidade, do trabalho dos tutores.

Page 11: O capital educaçãoulepic

38

Explica uma TE:

Tenho um número específico de alunos sob minha responsabilidade que gira em torno de 200 a 300, dependendo da turma e do semestre. A correção dos trabalhos tem um prazo para ser entregue. Acontece que os alunos efetuam a postagem em cima do prazo e então tenho de três a quatro dias, às vezes, para corrigir um volume enorme de trabalho. A Coordenadora tem acesso ao portfólio e controla o que estou fazendo. Se não cumpro, sou chamada para dar explicações.

São vários os depoimentos semelhantes, responsabilizando o pouco compromisso dos

alunos com os prazos e as exigências da instituição por correções mal feitas dos trabalhos. “Não

tem jeito de fazer o trabalho direito e como o aluno não pode ser prejudicado e nós não

queremos perder o emprego, a gente faz tudo às pressas”, diz uma TE. “Temos que efetuar

leitura dinâmica para a correção dos trabalhos, se não é impossível dar conta dessa quantidade

de trabalhos”, diz outro. “Para ler atentamente cada texto, vou perder tempo e não consigo

produzir a quantidade que me foi estipulada”, acrescenta uma terceira.

Percebe-se que parece emergir um limite para o controle do tempo. Não estamos mais

falando de peças mortas que podem chegar diante do posto de trabalho, para sofrerem algum

tipo de ação de ajuste ou montagem, em um tempo rigorosamente cronometrado. Na produção

de atividade viva, como o é a educação, o tempo conterá sempre algum grau, maior ou menor,

de incerteza. Se esta incerteza entra em contradição com a lógica capitalista de acumulação,

“sobra” para o trabalhador...

3. Um modelo “toyotista”?

Numa primeira aproximação à análise, estaríamos diante de um processo no qual a

Universidade Y, para a gestão do trabalho, tenta pôr em prática as novas regras de “qualidade

total” ou do “toyotismo”, conforme disseminadas pelas consultorias do ramo e já estudadas na

literatura pertinente (Wolff, 2005). Estaríamos diante de um típico processo de introdução da

automação em substituição ao trabalho vivo, conforme a análise de Freyssenet (1989): a

Page 12: O capital educaçãoulepic

39

padronização das normas de produção nas tarefas produtivas se dá mediante a incorporação, e

conseqüente substituição, das atividades complexas na e pela maquinaria. Com efeito, as TICs

levaram ao limite esta faceta ao agregar uma dimensão organizacional em seu maquinário,

estendendo esses efeitos para as atividades de gerência e coordenação (Wolff, 2004)

No processo de Ensino à Distância, as TICs permitem reproduzir, por meio de gravações

do conteúdo (aulas), as funções docentes que, assim, passam a ser subordinadas ao manuseio do

aparato tecnológico na preparação de aulas. Além do enxugamento do corpo profissional, a

conseqüência deste tipo de automação é a simplificação e desvalorização do trabalho vivo, no

caso o trabalho docente. Estar-se-ia diante daquele processo de expropriação do saber-fazer do

trabalhador, próprio do taylorismo, nos termos propostos por Coriat (1976). Porém, em novas

bases: não mais a partir da relação mente-corpo nas atividades de transformação material –

padronização dos tempos e movimentos, tal como se deu nas origens do taylorismo – mas da

relação mente-corpo em atividades de natureza sígnica, nas quais a matéria será apenas um

meio para registro e comunicação das capacidades cognitivas, de idealização, de imaginação, do

trabalhador, e não um objeto direto de transformação. Como naquele caso fabril, neste também,

esta redução do saber aos seus elementos simples mina aquilo que conferia, ao trabalho docente,

autonomia sobre os seus procedimentos, com graves conseqüências à sua criatividade, à própria

qualidade do ensino e ao seu poder de barganha frente à Instituição.

Parece que o capital estaria encontrando uma fórmula para reduzir a trabalho abstrato

também esse trabalho que até Marx percebia como de difícil redução, pois seria inseparável do

corpo do trabalhador. Numa passagem indicando, primeiramente, que o professor ou o artista

não seriam trabalhadores produtivos, pois não trariam lucro para o capital, Marx reconhece em

seguida que, se assalariados por algum empresário que de seus trabalhos retirará lucros, eles

poderão, sim, tornarem-se produtivos, embora, na relação com o público, continuem sendo

artistas:

Nos estabelecimentos de ensino, por exemplo, os professores, para o empresário do estabelecimento podem ser meros assalariados; há grande número de tais fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa

Page 13: O capital educaçãoulepic

40

qualidade perante o empresário. Este permuta seu capital pela força de trabalho deles e se enriquece por meio desse processo. O mesmo se aplica às empresas de teatro, estabelecimentos de diversão etc. O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo. Todas essas manifestações da produção capitalista nesse domínio, comparadas com o conjunto dessa produção, são tão insignificantes que podem ficar de todo despercebidas. (Marx, 2007, parte 3, item h, letra 2)

O que desejaria dizer Marx, ao nos lembrar que esses trabalhadores, na relação com o

público, continuam sendo artistas? No seu tempo, como ele mesmo anotou, esta seria uma

questão insignificante. Hoje, nas condições do capital-informação, esclarecer este ponto deve

ser a nossa principal tarefa. Dificilmente o faremos, se nos mantivermos atados a conceitos ou

explicações que melhor caberiam no estudo do trabalho fabril de transformação material, mas

pouco servem ao estudo justamente desse trabalho artístico, cujo objeto, como dito antes, é

produzir atividade viva através de trabalho vivo.

Seria porque essa atividade viva só pode ser produzida em ambiente de comunicação e

cooperação, que o capital introduziu novos modelos de gestão, inclusive nas fábricas, baseados

nos discursos de “qualidade total”, “colaboração”, “círculos de qualidade” etc. O processo de

expropriação do saber-fazer desse trabalho intelectual nunca se esgota completamente: a cada

avanço gera novos elementos ou parâmetros a se retroalimentarem continuamente, sempre

escapando às delimitações intentadas pelo estamento de “idealizadores” e planejadores do

trabalho.

Dejours (1993) e Burawoy (1979) já demonstraram como tais situações podem emergir

mesmo em ambientes fabris. Por mais rigorosas que sejam as rotinas e sabendo-se quão estreitas

são as margens de incerteza do movimento da máquina (algo imprevisto é imediatamente

detectado como “erro”), mesmo assim o corpo do trabalhador, dotado de “inteligência prática”,

pode reagir de um modo um tanto quanto inconsciente às prescrições. Estas reações, no entanto,

sob certas circunstâncias, se mostrariam também produtivas para as próprias exigências

normativas do capital, na medida em que permitam antecipar problemas (pelas reservas de saber

tácito) ou até aprimorar a produtividade (por vontade agora consciente do próprio trabalhador

que busca “fugir” à rotina e inovar no seu trabalho). Na medida em que, mais e mais, graças à

Page 14: O capital educaçãoulepic

41

extensão da automação informatizada, esse saber, inclusive tácito, é objetivado, mais e mais, por

outro lado, expande-se o espaço de trabalho dedicado à comunicação pessoa-a-pessoa ou

pessoa-máquina, isto é, à observação e controle colaborativo do processo produtivo por parte

de um trabalho combinado (Marx, s/d) que só pode funcionar como trabalho combinado por

meio de interação e comunicação (Dantas, 2001; Dantas, 2007). Mas se, antes de mais nada, em

primeiro lugar, neste espaço, o trabalho não se apresentar colaborativo com o próprio capital,

muito dificilmente cumprirá a sua parte no processo.

Portanto, sustenta Wolff:

Sob o arrimo dos dois pilares mestres de tal reestruturação, a informatização da produção e as novas formas de organização do trabalho, ambas amplamente baseadas nos preceitos da Qualidade Total, os trabalhadores são constrangidos a pensar para o capital. Logo, segundo a lógica daqueles que os exploram (Wolff, 2005, p. 78).

Esse recém-iniciado processo de avanço do capital sobre a educação estaria buscando

trazer para a gestão do trabalho docente, o mesmo discurso e métodos introduzidos pela atual

reestruturação produtiva tanto no processo fabril como no de serviços, supondo, pois, um

modelo de professor flexível, polivalente e “qualificado” para o manejo das TICs. A

administração participativa contempla uma qualificação de selo generalista com vistas a

estimular os trabalhadores à “colaboração” com a gerência através de atitudes comportamentais

tais como: trabalho em equipe, capacidade de enfrentar mudanças permanentes, rapidez de

respostas e criatividade diante de situações de pressão e imprevistas, além de comunicação

clara, interpretação, análise, síntese e uso de diferentes formas de linguagem. Assim, menos do

que o efetivo conhecimento dos conteúdos a serem ministrados, além de qualidades didático-

pedagógicas, demandam-se habilidades adaptativas e comportamentais conforme os padrões

mais flexíveis (toyotistas) de organização do trabalho.

4. No entanto, o produto é a marca

Quando a Toyota, num exemplo conspícuo, introduz os métodos de “qualidade total”, o

Page 15: O capital educaçãoulepic

42

resultado é um produto – automóvel – que apresenta, independentemente de outras

considerações, inegável qualidade. Quando a Universidade Y adota os mesmos métodos, o seu

produto – supostamente, educação e ensino – apresentará a mesma qualidade? Esta é uma

pergunta para a qual o estudo que dá origem a este texto, no seu escopo e limites, não propôs-se

a apresentar uma resposta objetiva. No entanto, considerando os dados levantados, alguns dos

quais aqui apresentados, cabe ao menos, num primeiro momento, pôr em dúvida essa qualidade.

Segundo 47 dos tutores entrevistados para a pesquisa (70,1% do total entrevistado), são

poucos os alunos que entendem a importância do auto-estudo, um dos pilares do conceito de

EAD e vetor essencial para o sucesso, em termos de real aprendizagem, do estudante nesta

modalidade. Segundo 23 tutores (34,3%), a maioria dos alunos está apenas interessada na busca

de um diploma de curso superior. Se isto for verdade (o que apenas pesquisas mais detalhadas

poderiam confirmar), esses alunos estariam, ao que parece, comprando esse diploma em

prestações mensais, por quatro a cinco anos, durante os quais fingem cumprir tarefas escolares

que seus professores, como vimos, fingem corrigir...

Ou seja, os dados colhidos sugerem que a Universidade Y somente poderia experimentar

os métodos que experimenta de gestão do trabalho, porque o seu produto não é educação e

ensino, contrariamente ao redigido logo acima: o seu produto é o diploma, um pedaço de papel

reconhecido pelo MEC que confere ao seu portador a ilusão de ter-se dotado das condições

necessárias para o exercício de atividades para as quais se exige qualificação universitária.

São muitos os indicadores sobre a discrepância entre a formação universitária no Brasil

e o mercado real de trabalho. Segundo uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, “um em

quatro brasileiros que se formaram no ensino superior de 1992 a 2002 não está empregado” e

parcela significativa dos diplomados trabalha em atividades abaixo de sua qualificação,

empregando-se como açougueiros, operários, floristas, peixeiros, sorveteiros, atendentes etc.

(Góis, 2004).

Poder-se-ia afirmar que tal se deve a não existir elevada demanda para profissionais de

formação universitária, no Brasil. Neste caso, não se justificaria o investimento, tanto público,

quanto privado, que o país estaria fazendo no ensino superior. Outro motivo seria a inadequação

entre a oferta de cursos e a demanda do mercado: são muitos os cursos de Administração,

Page 16: O capital educaçãoulepic

43

Direito, Pedagogia, Comunicação e similares, como, aliás, os oferecidos pela EAD da

Universidade Y, e são poucos os de Engenharia e outras disciplinas técnicas, gerando uma oferta

de diplomados para a qual não há demanda pelo mercado, enquanto faltariam profissionais em

outras áreas. Um terceiro motivo poderia ser, pura e simplesmente, a má qualidade intelectual e

profissional dessa multidão de diplomados que, uma vez posta no mercado de trabalho, seria

liminarmente recusada pelos potenciais empregadores: neste caso, além do currículo escolar, o

potencial empregador verificaria também um “currículo social” que lhe indicaria, pelas origens

familiares ou de renda, além da instituição cursada (aspectos que geralmente se associam), a

real qualificação para o emprego do candidato diplomado (Athaide e Lobo, 2005; Salomon,

2007; Ribeiro et alii, 2007a; Ribeiro et alii, 2007b, Rosa, 2006).

Como diz um editorial da Folha de S. Paulo:

Há algo esdrúxulo e preocupante no ensino superior brasileiro [...] Existem, por exemplo, dez vezes mais estudantes matriculados em cursos para a formação de professores de literatura do que para ensino de física e química, áreas didáticas de importância equivalente. São 175 mil os que cursam jornalismo, cifra cinco vezes maior do que a de jornalistas que hoje trabalham com carteira assinada em todo o país (35 mil). Não há tampouco critério racional que explique o motivo de os estudantes de medicina (74 mil) serem pouco mais numerosos do que os de turismo (66 mil), carreira necessária, embora inflada de forma artificial por um modismo. Igualmente grave é haver 589 mil matriculados em direito, número que supera os 571 mil advogados da ativa registrados pela OAB [...] Não pode e não deve ser dado como normal que estudantes encarem os cursos em áreas específicas como se fossem polivalentes. Um exemplo: poucos dos 680 mil matriculados em administração previsivelmente seguirão a carreira. Mas o curso lhes dará alguma forma de segurança ou ascensão no plano de seus projetos pessoais” (Folha de S. Paulo, 20/01/2008).

Por um lado, milhões de jovens acreditariam que podem melhorar suas condições sociais

e de renda ao obterem um diploma de curso superior. Por outro lado, o mercado real de trabalho

pode estar se recusando a incorporar boa parte ou a maior parte deles, ainda que se ressentindo

da carência de “capital humano”. A Universidade Y, entretanto, estimula aquela crença (e, nisto,

não é a única) através de agressivas campanhas publicitárias, cujo mote é “Você é o que você

Page 17: O capital educaçãoulepic

44

faz!” – ao lado de uma foto do campeão de taekwondo Diogo da Silva, cujo peito estufado

ostenta, não suas medalhas, mas a logomarca da instituição. Difícil relacionar esta imagem de

“êxito” com o estudo, a biblioteca, o laboratório, o esforço intelectual (não raro penoso), com a

qualidade do ensino, em suma. Talvez a universidade seja apenas o ringue no qual “você”, se

for competitivo, tiver energia e souber se preparar, conquistará a celebridade... E nisto, os

professores, criadores do conhecimento concreto, acabam reduzidos a mero elo dessa cadeia

produtora da... ilusão do diploma. Se não todos, alguns professores demonstram consciência do

tipo de trabalho que fazem:

Aqui somos meros detalhes no processo de ensino, completamente descartáveis. As aulas já estão gravadas e qualquer pessoa pode copiar e dar a aula, fazer a encenação, fazendo de conta que ensina. A prioridade já foi alcançada: fazer nome no mercado.

Não seria o ensino, mas o símbolo da titulação que esta instituição, como tantas outras,

vende no mercado. Se esta hipótese estiver correta, então se explica que, neste caso, o “artista”,

ou o professor, possa efetuar quase que um “trabalho sem mais nem mais”, relembrando uma

das definições de Marx para trabalho abstrato (Marx, 1973, v. 1, p. 265). A Universidade Y teria

encontrado a sua “audiência” numa juventude que vem sendo estimulada a buscar diplomas

universitários, mas não, realmente, a estudar e se preparar para as exigências de uma carreira.

Esta não exigência de qualidade por parte do “cliente” explicaria o conseqüente rebaixamento

da qualidade dos cursos, logo a incorporação, neles, de métodos próprios à produção material

fabril que lhe permitem incrementar a produtividade do trabalho do professor, ampliando os

ganhos e lucros que aufere de tal “audiência”.

Assim como também a televisão pode produzir (e, daí, vender) audiência, em que pese a

condição descartável de boa parte de seus artistas, as universidades privadas, ou uma parcela

delas, estariam, em condições similares, produzindo estudantes, enquanto uma forma particular

de audiência para os seus cursos e diplomas. Não poderiam fazê-lo se esses estudantes não

integrassem uma sociedade comandada pelo “espetáculo” (Debord, 2000) ou, dito em outras

palavras, por uma “indústria criadora de imagens” (Harvey, 1996: 261 passim). A “volatilidade”

Page 18: O capital educaçãoulepic

45

e “efemeridade” das condições sócio-econômicas desta sociedade tornam volátil e efêmera,

também, a educação e o seu professor – para não falar do próprio estudante.

A Universidade Y captura sua audiência estudantil na medida em que consegue fazê-los

aderir à sua marca que expressa os sentimentos, as expectativas, os desejos, os sonhos da

parcela da sociedade à qual se dirige:

O que se quer não é tanto muitos consumidores, mas uma tribo de fiéis que seguirão sua empresa, sua marca, como se seguissem a banda de rock predileta ou seu herói esportivo (Klein, 2005, p. 175).

Nesse modelo de capitalismo, como disse um executivo ouvido por Klein, “fabricar não

é o que fazemos. Você sabe que somos uma empresa de design e de marketing. Fabricar não é

nosso talento básico, outras pessoas fazem isso melhor” (idem, p. 182). É sabido que

corporações como a Nike, Benetton, Mcdonald e tantas outras concentram suas atividades de

trabalho no processo realmente criativo, delegando o trabalho fabril e a realização de outras

atividades auxiliares, ainda que necessárias, a empresas especializadas subcontratadas. Harvey

identifica aí o “padrão de acumulação flexível” que dividiria as hierarquias de trabalho entre um

centro e seus vários graus de periferias (Harvey, 1996, p. 143 passim). Dantas sugere que o

processo todo constitui uma cadeia de trabalho combinado que articula trabalho aleatório e

redundante, aquele de natureza mais formuladora ou criativa, este de natureza mais

observadora, controladora ou, no limite, simplesmente, repetitiva (Dantas, 2006; Dantas, 2007).

Se, como a Nike ou o Mcdonald, essas universidades estão vendendo marcas, ou estilos

de vida, ou sonhos, então, também, tenderão a atribuir maior valor ao trabalho aleatório de

marketing e publicidade, reduzindo o trabalho do professor a um processo redundante, no qual

uma primeira aula qualquer pode ser objetivada em um registro material, disponível em

computador para ser repetido ad nauseam como mero suporte da marca da instituição; assim

como um par de tênis, na lógica do capital-informação, serve apenas para comunicar um

logotipo. Cada vez que o estudante rever a aula, estará em conexão emocional com a marca

institucional que a forneceu e com o que ela lhe promete – desde que, claro, como vimos, ele,

estudante, o faça. Você é o que você faz! Just do it!

Page 19: O capital educaçãoulepic

46

Poder-se-ia perguntar: a Universidade Y se sustentaria se a sociedade exigisse e as

autoridades impusessem regras pelas quais, por exemplo, um tutor não poderia atender a mais

do que 30 ou 60 alunos, e os professores teriam direito a royalties por cada aula reproduzida?

Não nos esqueçamos que já houve uma época quando limitar a jornada de trabalho a 8

horas diárias era considerado um completo despropósito... Nas condições nascentes do

capitalismo informacional que ora testemunhamos, a educação privada pode estar tão somente

herdando formas do passado enquanto tateia os seus próprios caminhos – não excluída a

hipótese, aliás, já em curso, de construção de corporações-redes globais de ensino. Porém, se

uma sociedade como a brasileira estiver realmente necessitando de quadros qualificados terá

que tomar conhecimento e intervir nas condições de produção dessas fábricas de ensino. Ou terá

que assumir as conseqüências sociais, que emergirão mais cedo ou mais tarde, das inevitáveis

frustrações resultantes da disseminação generalizada desse fetiche do diploma...

Referencias Bibliográficas

ALMEIDA, Sergio A. Novas tecnologias e o trabalho docente na modalidade ensino a

distância, Dissertação de Mestrado, Londrina: UEL, 2008.

ATHAYDE, P. e LOBO, F. “Os campeões do diploma”, Carta Capital, 30/11/2005, pp. 12-18.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, In COSTA

LIMA, Luis, Teoria da Cultura de Massa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 [1936]

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista: a degradação do trabalho no Século

XX. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1987 [1974].

BOLAÑO, Cesar. Indústria cultural, informação e capitalismo, São Paulo: Hucitec/Polis, 2000.

BOUTANG, Yann Moulier. “La troisième transition du capitalisme: exode du travail productif

et externalités », In AZAÏS, C., CORSANI, A., DIEUAIDE, P., Vers un capitalisme

cognitif, Paris : L´Harmattan, 2001.

BURAWOY, Michael. Manufacturing consent: changes in the labour process under the

monopoly capitalism, Chicago: The University of Chicago Press, 1982.

CORIAT, Benjamin. “O Taylorismo e a expropriação do saber operário”. In PIMENTEL,

Page 20: O capital educaçãoulepic

47

Duarte et alii (Orgs.). Sociologia do Trabalho – Organização do Trabalho Industrial:

Antologia. Lisboa: A Regra do Jogo Edições, s/d.

DANTAS, Marcos. Os significados do trabalho: uma investigação semiótica no processo de

produção. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: COPPE-UFRJ, 2001

_______. “Informação e Trabalho no Capitalismo Contemporâneo”, Lua Nova, nº 60, São

Paulo: CEDEC, 2003, pp. 5-44.

______. “Informação como trabalho e como valor”, Revista da Sociedade Brasileira de

Economia Política, Rio de Janeiro: SEP, nº 19, dez. 2006, pp. 44-72.

_______. “Os significados do trabalho: produção de valores como produção semiótica no

capitalismo informacional”, Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro: Fiocruz, v. 5,

n. 1, março 2007, pp. 9-50.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 2000 [1967]

DEJOURS, Christophe. “Inteligência operária e organização do trabalho: a propósito do modelo

japonês de produção”, In HIRATA, Helena (Org.), Sobre o “modelo” japonês, São

Paulo, Edusp, 1993.

FREYSSENET, Michel. “A divisão capitalista do trabalho”. Tempo Social, São Paulo:

Sociologia da USP, 1989, 1(2), p. 74-82.

_______. “Canudo de Papel”, Folha de S. Paulo, 0/01/2008, p. A2

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1996 [1989]

KLEIN, Naomi. “Marcas globais e poder corporativo”. In de MORAES (Org.), Por uma outra

comunicação”, Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 173-186.

LOJKINE, Jean. A revolução informacional, São Paulo: Cortez, 1995

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 4 vols., 1984

[1867].

________. Capítulo VI inédito de O Capital, São Paulo: Moraes, s/d.

________. Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo, 2004

________. Manuscritos econômicos de Marx de 1861 a 1863, disponível em

http://www.dominiopublico.gov.br, acessado em setembro de 2007.

________. Elementos fundamentales para la critica de la economía política (borrador), Buenos

Page 21: O capital educaçãoulepic

48

Aires: Siglo Veintiuno, 3 vols., 1973 [1953]

ROSA, Bruno. “Educação não garante emprego”, O Globo, 12/11/2006, p. 31

RIBEIRO, Fabiana et alii, “Onde a escassez preocupa”, O Globo, 29/10/2007, p. 19

_______. “Empresa que vira escola”, O Globo, 30/10/2007, p. 21.

SALOMON, Marta. “Oferta de trabalhadores está desequilibrada”, Folha de S. Paulo,

8/11/2007, p. B1.

SCHILLER, Herbert I. Information and the crisis economy, Nova York/Oxford: Oxford

University Press, 1986

WOLFF, Simone. Informatização do Trabalho e reificação: uma análise à luz dos programas de

qualidade total. Campinas/Londrina: Editora da Unicamp/Eduel, 2005.

________. “O espectro da reificação em uma empresa de telecomunicações: o processo de trabalho sob os novos parâmetros gerenciais e tecnológicos”. Tese (Doutorado), Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH / UNICAMP, 2004.