O Chamado de Cthulhu 2

8/14/2019 O Chamado de Cthulhu 2

1/36

O chamado de Cthulhu 1

De to grandes poderes ou seres perfeitamente possvel que haja umareminiscncia... uma reminiscncia2 de um perodo remoto, quando... a

conscincia estava manifesta, talvez, em formas e contornos apagados desdeantes da mar de avano da humanidade... formas das quais a poesia e a lenda,sozinhas, tenham captado uma memria esparsa e as denominado de deuses,

monstros, seres mticos de todos os tipos e espcies...- ALGERNON BLACKWOOD3

1 O termoCthulhu provavelmente uma inveno do prprio H. P. Lovecraft. , juntamente com o livroimaginrio Necronomicon, uma de suas mais famosas criaes; tanto, que deu origem expresso Mitos deCthulhu, que abrange toda a literatura lovecraftiana e o universo desenvolvido por outros autores com baseem suas descries metafsicas.Questiona-se se a origem do termo seria a raiz rabeKhadhulu: aquele que abandona; em outras acepes,inclusive no prprio Alcoro, sat. H outra linha de estudos que atribui o nome mitologia sumria. Certo que Cutha remete a uma antiga cidade da Babilnia, cujo nome foi dado a uma tbua que apresenta umrelato da criao. EKhado (tib.), que aparece na origem deKhadhulu, uma designao comum ademnios-fmeas maus, segundo a crena popular. Na filosofia esotrica, so as foras ocultas e malignas daNatureza. Outra possibilidade seriaKutila (snsc.): curvo, encurvado, torcido, sinuoso; astuto, arteiro,enganoso.De acordo com Denlson Carareto, as pronncias mais aceitas para o termo so kuh-thoo-loo, natransliterao fontica do ingls (ou ka-tu-lu, em portugus) e cloo-loo, esta ltima defendida porestudiosos que se detm sobre a obra de H. P. Lovecraft. (V. origem do termo Cthulhu emSite Lovecraft . OsMitos de Cthulhu. Brasil, 2004. Disponvel em: . Aceso em 23 jan2006; e Reading/Writing Science Fiction/General. Lovecraft. EEUU, s.d. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2004. V. ainda referncias sobrerazes e termos estrangeiros emBLAVATSKY. Glossrio Teosfico. 3 ed. Trad. de Silvia Sarzana. So Paulo:Ground, 1995.) [N.T.]2 No original, survival (ingl.) que significasobrevivncia. A opo por reminiscncia tenta traduzir oesprito de legacia. Esta verso, contudo, se alterna no decorrer do texto, aparecendo, tambm, em seusignificado literal. [N.T.]3 Agernon Henry Blackwood (1869-1951) nasceu em Shooters Hill, Inglaterra. De origens nobres a meera a duquesa de Manchester, e [o] pai Sir Stevenson Arthur Blackwood, Algernon j foi considerado umdos maiores autores de terror do comeo do sculo XX. Admirado por H. P. Lovecraft, que dizia que o contoThe Willows, de 1907, era o melhor dos contos do sobrenatural de todos os tempos. Das suas investigaesacerca do sobrenatural resultam-se tambm cuidadosas investigaes acerca da psicologia humana. (V.biografia de Blackwood noSite Lovecraft . Mestres. Brasil, 2004. Disponvel em:. Aceso em 23 jan 2006.) [N.T.]


2/36

I. O HORROR EM BARRO

A coisa mais misericordiosa no mundo, eu acho, a inabilidade da mente humana emcorrelacionar todos seus contedos. Ns vivemos em uma plcida ilha de ignorncia nomeio de um oceano negro infinito, e no era para que pudssemos navegar para longe. Ascincias, cada uma esticando a corda em sua prpria direo, tm nos causado pouco malat agora; mas algum dia esse mosaico de conhecimento dissociado nos legar um terrvelparonama da realidade e de nossa amedrontadora posio neste lugar, to terrvel, que oubem ns ficaremos loucos diante da revelao ou fugiremos covardemente da luz mortal

para a paz e a segurana de uma nova Idade Negra.Os tesofos predisseram a impressionante grandeza do ciclo csmico em que nossomundo e a raa humana so apenas incidentes passageiros. Eles apontaram algo quecongelaria nosso sangue se no estivesse mascarado por um suave otimismo. Mas no deles que advm o nico vislumbre de eternidades proibidas que me causa calafrios s depensar, e me enlouquece quando eu sonho. O vislumbre de que falo, como o fazem todos osvislumbres terrveis da verdade, arrebatou-me em um quebra-cabeas montadoacidentalmente - cujas peas principais eram um artigo de jornal velho e as notas de um

professor j falecido. Toro para que ningum mais seja capaz de montar este quebra-cabea; eu mesmo, se viver, certamente nunca mais alimentarei um vnculo assim em tonefasta cadeia. Eu penso que o professor, tambm, pretendeu manter silncio sobre oquanto ele soube, e que ele teria destrudo suas notas se uma morte sbita no o houvessedetido.

Meu conhecimento da coisa comeou pelo inverno de 1926-7 com a morte de meutio-av, George Gammell Angell, Professor Emrito de Idiomas Semticos na Brown

University Providence, em Rhode Island. Professor Angell era amplamente conhecidocomo uma autoridade em antigas inscries, e a ele recorrera freqentemente os diretoresde proeminentes museus, de forma que o transcurso dele idade de noventa e dois anospode ser reconstitudo por muitos. Em mbito local, o interesse foi intensificado pelaobscuridade da causa de sua morte. O professor foi ferido ainda voltando do barcoNewport; caindo repentinamente, como afirmaram as testemunhas, depois de ter sidoempurrado por um negro em trajes nuticos que teria surgido de um beco sombrio e


3/36

esquisito na ladeira ngreme que ligava em uma pequena trilha a zona porturia casa do

defunto na Rua Williams. Os mdicos no puderam encontrar qualquer desordem visvel,

mas concluram depois de um perplexo debate que alguma leso obscura do corao,induzida pela subida enrgica de uma ladeira ngreme como aquela por um senhor j deidade, era responsvel pelo fim. poca eu no vi razo alguma para divergir da sentena,mas recentemente estou inclinado a supor - e mais que supor.

Como o herdeiro e testamenteiro de meu tio-av, uma vez que ele morreu vivo e semfilhos, eu devia me inteirar acerca de seus documentos com um pouco de eficcia; e, comeste propsito, movesse todos os seus arquivos e as suas caixas para minha residncia em

Boston. Grande parte do material que eu pesquisei ser mais tarde publicado pelaSociedade Arqueolgica Norte-Americana, mas no meio de tudo havia uma caixa que euachei profundamente intrigante, e a qual eu me senti bastante contrafeito em expor a outrosolhos. Tinha sido fechada, e eu no pude achar a chave; at que me ocorreu examinar o anelpessoal que o professor levava em seu bolso. Ento, consegui abri-la de fato, mas, quando ofiz, parecia apenas estar diante de um obstculo maior e mais bem guardado. Qual seria osignificado do estranho detalhe de barro em baixo-relevo, e dos mnimos encaixes e talhosincoerentes que eu achei? Havia meu tio, em seus ltimos anos de vida, se tornado crdulo

dos mais superficiais embustes? Resolvi procurar o escultor excntrico responsvel por estaaparente perturbao na paz de esprito de um velho homem.

O baixo-relevo era um retngulo spero com menos que uma polegada de espessura eaproximadamente cinco por seis polegadas de rea; obviamente de origem moderna. Seudesenho, no entanto, estava longe de ser moderno em atmosfera e sugesto; de modo queembora os caprichos do cubismo e do futurismo sejam muitos e selvagens, eles raramentereproduzem aquela regularidade crptica que est espreita na escrita pr-histrica. E a

algum tipo de escrita a grandeza daqueles desenhos parecia pertencer; ainda que minhamemria, apesar de muita familiaridade com os documentos e colees de meu tio, tenhafalhado nas diversas tentativas de identificar esta espcie particular ou mesmo apontar suasassociaes mais remotas.

Sobre estes aparentes hieroglfos estava uma figura de evidente propsito pictrico,conquanto sua execuo impressionista proibisse uma idia muito clara de sua natureza.Parecia ser um tipo de monstro, ou smbolo representando um monstro, com uma forma


4/36

que somente uma imaginao doentia poderia conceber. Se eu disser que minha

extravagante fantasia trouxe os quadros simultneos de um polvo, um drago, e uma

caricatura humana, eu no estaria sendo infiel ao esprito da coisa. Uma cabea polpuda echeia de tentculos sobrepujou um corpo grotesco e escamoso com asas rudimentares; masera o esboo geral do todo que fez a imagem to chocantemente amedrontadora. Atrs dafigura havia uma vaga sugesto de um fundo arquitetnico ciclpico.

A escritura que acompanhava esta esquisitice estava, com exceo de uma pilha derecortes de jornal, manuscrita na caligrafia mais recente do Professor Angell; e no tinha amenor pretenso de estilo literrio. O que parecia ser o documento principal intitulava-se

CULTO A CTHULHU em caracteres esmeradamente impressos para evitar a leituraerrnea de uma palavra to inusitada. Este manuscrito era dividido em duas sees: aprimeira das quais intitulada 1925 - Sonho e Trabalho dos Sonhos4 de H. A. Wilcox, RuaThomas n 7, Providence, R. I., e a segunda; Narrao do Inspetor John R. Legrasse, RuaBienville n 121, Nova Orleans, La., s 1908 A. A, S. Mtg. - Notas do Mesmo, & Rel. doProf. Webb. Os outros documentos manuscritos eram apenas notas breves, algumas delascitaes de livros teosficos e revistas (notavelmente de Atlantis e a Lemria Perdida, deW. Scott-Elliott), e o resto comentava sobre a longa sobrevivncia de sociedades secretas e

cultos ocultos, com referncias a passagens em livros de mitologia e antropologia como ORamo Dourado5, de Frazer, e O Culto Bruxa na Europa Ocidental6, da SenhoritaMurray. Os trechos aludiam repetidamente a umaatroz7 enfermidade mental e erupes deloucura coletiva ou mania pela primavera de 1925.

A primeira metade do manuscrito principal contava uma histria muito peculiar.Parece que em 1 de maro de 1925, um jovem magro, sombrio, de aspecto neurtico eexaltado tinha procurado pelo Professor Angell portando o singular detalhe de barro em

baixo-relevo, o qual estava ento extremamente mido e fresco. Seu carto indicava onome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o reconheceu como sendo o filho mais jovemde uma boa famlia de que tinha ligeiramente ouvido falar, e que nos ltimos anos esteve

4 No original, Dream and Dream Work. [N.T.]5 De acordo com Celso M. Paciornik, o livro foi publicado no Brasil pela editora Guanabara Koogan, em1982. (V.LOVECRAFT.O horror em Red Hook . Trad. de Celso M. Paciornik. Illuminuras, 2000.) [N.T.]6 De acordo com Celso M. Paciornik, o livro foi publicado em 1921, defende a tese de que o culto bruxas,tanto na Europa como na Amrica, tem origem numa raa pr-ariana que foi impelida para um mundosubterrneo, mas continua espreita em cantos escondidos da Terra. (V.LOVECRAFT. Id, Ibid.) [N.T.]7 No original, outr (fr.): atroz, ultrajante. [N.T.]


5/36

estudando escultura na Rhode Island School of Design e vivia sozinho no Edifcio Fleur-

de-Lys prximo instituio8. Wilcox era um talento precoce de gnio reconhecido mas

bastante excntrico, e desde a infncia chamava ateno pelas estranhas histrias eesquisitos sonhos que costumava relatar. Ele se autoproclamava psiquicamentehipersensvel, mas o povo rspido da antiga cidade comercial o rejeitava como uma meraaberrao. Nunca tendo se entrosado muito com um tipo como aquele, o rapazdesapareceu gradativamente das vistas da sociedade, e acabou se relacionando apenas comum pequeno grupo de estetas de outras cidades. At mesmo o Clube de Arte de Providence,preocupado em preservar seu conservadorismo, no o achava muito promissor.

Na ocasio da visita, de acordo com o que discorria o manuscrito do professor, oescultor pediu abruptamente algumas informaes sobre o hierglifo em baixo-relevoaproveitando-se do conhecimento arqueolgico de seu anfitrio. Ele falou de uma maneirato fantasiosa e afetada que meu tio foi acometido por um certo deslumbre e uma simpatiaimpensada, e mostrou-lhe um pouco de sua aguada prtica respondendo que o vsivel vioda tabuleta indicava que o objeto poderia ter um parentesco com qualquer rea de estudo,menos a arqueologia. A rplica do jovem Wilcox, que impressionou meu tio o suficientepara faz-lo recordar o caso e registr-lo textualmente9, tinha uma disposio

fantasticamente potica que deve ter caracterizado todo o dilogo, e que ao meu ver pareceser uma de suas grandes particularidades. Ele disse, novo, na verdade. Eu o fiz ontem noite a partir de um sonho com umas cidades estranhas; e sonhos so mais velhos que oactico reino de Tyro ou a pensativa Esfinge, ou a Babilnia cercada em jardins.

Foi ento que ele comeou aquela divagao que de repente mexeu com umamemria latente e ganhou o fervoroso interesse de meu tio. Houve um leve tremor deterremoto na noite anterior, o mais consideravelmente percebido na Nova Inglaterra desde

alguns anos; e as crendices de Wilcox foram intensamente afetadas. Em seu retraimento,tivera um sonho sem precedentes com grandes cidades ciclpicas de blocos titnicos emonolitos arremessados do cu, todos gotejando um limo verde e de horror sinistro edissimulado. Hierglifos haviam coberto as paredes e as colunas, e de algum ponto abaixo

8 O prdio indicado trata-se de um estdio criado por Sydney Richmond Burleigh, artista de Rhode Island. (V.LOVECRAFT. O horror em Red Hook . Trad. de Celso M. Paciornik. Illuminuras, 2000. V. tambm nota 29.)[N.T.]9 No original, verbatim (lat.): textualmente, literalmente. [N.T.]


6/36

indeterminado veio uma voz que no era uma voz; uma sensao catica que somente a

imaginao poderia ter transmudado em som, mas que ele se empenhou em interpretar

como uma confuso quase impronuncivel de letras: Cthulhu fhtagn.Esta confuso verbal era a chave para a recordao que exaltou e perturbou o

Professor Angell. Ele interrogou o escultor com exatido cientfica; e estudou com umaintensidade quase frentica o baixo-relevo no qual o jovem se achou trabalhando, vestido eagasalhado apenas com sua roupa de dormir, quando a viglia acabou lhe falando mais alto.Meu tio amaldioou sua a velha idade, Wilcox disse posteriormente, por sua lentido emreconhecer ambos os desenhos, o hieroglfico e o pictrico. Muitas das perguntas dele

pareciam claramente despropositadas para o visitante, especialmente aquelas que tentavamconectar a representao com cultos ou sociedades estranhas; e Wilcox no pde entenderas repetidas promessas de silncio em troca das quais lhe era oferecida admisso comomembro em algum corpo religioso mstico ou pago. Quando o Professor Angell seconvenceu de que o escultor de fato ignorava qualquer tipo de culto ou sistema desabedoria secreto, ele assediou o visitante com demandas de relatrios de futuros sonhos. Ainsistncia regular deu frutos, de maneira que depois da primeira entrevista o manuscritopassa a registrar visitas dirias do jovem, durante as quais ele relatou surpreendentes

fragmentos de devaneios noturnos cujo fardo era sempre algum terrvel panorama ciclpicode uma rocha sombria e gotejante, com uma inteligncia ou voz subterrnea gritandomonotonamente e economizando as palavras em vibraes intraduzveis. Os dois sons maisfreqentemente repetidos so os que se conformam nas letras Cthulhu e Rlyeh.

Em 23 de maro, continuou o manuscrito, Wilcox no apareceu; e investigaes emseus aposentos revelaram que ele havia sido ferido por um tipo obscuro de febre e foilevado para a casa de sua famlia na Rua Waterman. Ele havia berrado durante a noite,

despertando vrios outros artistas no edifcio, e apresentou desde ento apenas alternaesentre inconscincia e delrio. Meu tio, certa feita, telefonou famlia, e daquela vez emdiante manteve o caso sob olhar atento; indo regularmente ao escritrio do Dr. Tobey - oqual ele descobriu estar encarregado de cuidar da situao - na Rua Thayer. A mente febrildo jovem, aparentemente, ocupava-se coisas estranhas; e o doutor vez em quandoestremecia s de ouvi-lo falar delas. Elas no s incluam uma repetio do que ele havia


7/36

sonhado anteriormente, mas tambm falavam absurdamente de uma coisa gigantesca que

perambulava ou se amontoava milhas acima.

Ele, em momento algum, descreveu completamente o objeto, mas algumas ocasionaispalavras delirantes, como repetiu o Dr. Tobey, convenceram o professor de que deveria seridntico monstruosidade sem nome que ele buscou descrever em sua escultura-onrica. Ameno a este objeto, o doutor disse ainda, era invariavelmente um preldio aquietaodo rapaz em letargia. A temperatura dele, muitssimo esquisita, no era muito acima donormal; mas sua condio, ao contrrio, sugeria que o caso era muito mais uma simplesfebre que uma confuso mental.

No dia 2 de abril, aproximadamente s 3 da tarde, todo os sintomas da enfermidade deWilcox cessaram repentinamente. Ele sentou-se reto na cama, surpreso por se achar emcasa e ignorando completamente o que havia acontecido fosse sonho ou realidade desde anoite de 22 de maro. Como bem declarou seu mdico, ele retornou aos seus aposentos trsdias mais tarde; mas para o Professor Angell ele tinha mais tanta serventia. Todos os traosdos estranhos sonhos tinham desaparecido com sua recuperao, e meu tio no manteveregistro algum dos pensamentos-noturnos10 dele depois de uma semana de despropositadose irrelevantes relatos de vises absolutamente comuns.

Aqui terminava a primeira parte do manuscrito, mas certas referncias a algumasnotas dispersas me deram mais material para pesquisar - na verdade, tanto, que s oceticismo inveterado que ento era minha filosofia de vida podia responder por minhadesconfiana continuada no tal artista. As notas em questo eram aquelas descries dossonhos de vrias pessoas, cobrindo o mesmo perodo no qual o jovem Wilcox tivera as suasestranhas visitaes. Meu tio, ao que parece, deu rapidamente incio a um prodigioso bancode informaes construdo a partir dos relatrios noturnos dos sonhos de praticamente todos

os amigos a quem ele poderia questionar sem impertinncia, e as datas de quaisquer visesque j tivessem tido. A recepo ao pedido parece ter sido diversa; mas ele deve, ao menos,ter recebido mais respostas do que qualquer homem comum poderia ter acolhido sem umsecretrio. Os originais desta correspondncia no foram preservados, mas as suasanotaes formam um meticuloso e significante compndio. Em mdia, as pessoas dosnegcios e da sociedade - o tradicional sal da terra da Nova Inglaterra - apresentaram um

10 No original, night-thoughts (ingl.). A traduo optou pela permanncia do substantivo composto. [N.T.]


8/36

resultado quase que completamente negativo, apesar de casos de impresses

desconfortveis mas grosseiras terem surgido pontuadamente aqui e acol, sempre entre 23

de maro e 2 de abril - o perodo do delrio do jovem Wilcox. Homens de Cincia eram umpouco mais afetados, embora quatro casos de vaga descrio sugerissem relancespassageiros por estranhas paisagens, e em um nico caso fosse mencionado um medo dealgo abnormal.

Foi dos artistas e poetas que as respostas mais pertinentes vieram, e eu sei que opnicoteria disseminado caso eles pudessem tivessem tido acesso s notas. Do modo como o fiz,

desprovido das cartas originais, eu meio que suspeitei que o compilador pudesse terorganizado em tpicos principais as perguntas, ou editado a correspondncia corroborandoo que ele inconscientemente estava determinado a enxergar. Essa a razo por que eucontinuei sentindo que Wilcox, de alguma maneira ciente dos antigos dados que meu tiopossua, tirou proveito do veterano cientista. Estas respostas de estetas revelavam umahistria perturbadora. De 28 de fevereiro a 2 de abril, eles sonharam, em larga escala, comcoisas bizarras, a intensidade dos sonhos se tornava incomensuravelmente mais fortedurante o perodo do delrio do escultor. Mais de um quarto desses que relataram alguma

coisa, relataram cenas e meio-sons no muito diferentes dos que Wilcox havia descrito; ealguns dos sonhadores confessaram medo agudo da gigantesca coisa sem nome gigantescavisvel segundo este. Em um dos casos que a anotao descreve com nfase, a pessoaestava muito triste. O sujeito, um arquiteto de renome com inclinaes teosofia e aoocultismo, ficou violentamente insano na data em que o jovem Wilcox tivera o seu ataqueapopltico, e, passados vrios meses, em meio a incessantes gritos para que fosse salvo dealgum monstro foragido do inferno. Tivesse meu tio se referido a estes casos atravs do

nome em vez do nmero de registro, eu teria partido para alguma confirmao einvestigao pessoal; mas como estava, eu s tive sucesso em localizar de fato alguns.Todos, porm, testemunharam em favor do que diziam as anotaes. Eu desejeiardentemente saber se todos os alvos das perguntas do professor teriam se sentido toconfusos quanto esta pequena frao. certo que nenhuma explicao jamais chegar ateles.


9/36

Os recortes de jornais, como eu sugeri, mencionavam casos de pnico, mania, e

excentricidade durante o dado perodo. Professor Angell deve ter contratado um escritrio

para assessor-lo11, uma vez que o nmero de extratos era tremendo, e as fontes dispersasao redor do globo. Havia um suicdio noturno em Londres, onde um solitrio sonmbulotinha saltado de uma janela depois de um grito chocante. Havia igualmente uma cartadigressiva para o editor de um jornal na Amrica do Sul, em que um fantico deduz umfuturo medonho de vises que ele teria visto. Um comunicado da Califrnia descreve umacolnia de tesofos vestindo brancas paramentas en masse para alguma gloriosarealizao que nunca acontece, enquanto artigos da ndia falam cautelosamente de uma

sria inquietao dos nativos diante da passagem de 22 para 23 de maro. O oeste daIrlanda, tambm, est repleto de rumores selvagens e lendas, e um fantstico pintor denome Ardois-Bonnot exibe uma blasfemante Paisagem de Sonho no salo de primavera deParis de 1926. E to numerosas so as dificuldades registradas em manicmios, que s ummilagre pode ter impedido a fraternidade mdica de traar paralelos e tecer conclusesmsticas a respeito. Uma srie misteriosa de acontecimentos, diziam todos; e eu, a estaaltura, mal posso encarar o racionalismo insensvel com que eu os pus de lado. Mas euestava, ento, convencido de que o jovem Wilcox tinha conhecimento dos antigos assuntos

mencionados pelo professor.

II. A HISTRIA DO INSPETOR LEGRASSE.

Os assuntos antigos que haviam tornado o sonho do escultor e o detalhe em baixo-relevo to significante para meu tio eram o objeto da segunda metade de seu longo

manuscrito. Certa vez, ao que parece, Professor Angell vira os esboos infernais damonstruosidade sem nome, ficara transtornado com os hieroglifos desconhecidos, e ouviraas agourentas slabas que podem ser traduzidas como Cthulhu; e tudo isso foi se ligando

11 No original, a expresso a cutting bureau refere-se a uma agncia que presta servios de clipagem, i.e.prepara e elabora clippings, espcies de dossis feitos com recortes de jornais ( press cuttings) sobredeterminados temas ou assuntos. O servio geralmente prestado por firmas especializadas em assessoria deimprensa, da a opo pela traduo aproximada. [N.T.]


10/36

to horrvel e assustadoramente com ele que no surpresa nenhuma que tenha ido atrs do

jovem Wilcox com mais questes e demandando dados.

Esta experincia anterior viera em 1908, dezessete anos antes, quando a SociedadeArqueolgica Norte-Americana celebrou sua conferncia anual em St. Louis. ProfessorAngell, como admitiu uma de suas destacadas autoridades, tivera um papel proeminente emtodas as deliberaes; e era o mais abordado pelo pblico interessado, que aproveitava aassemblia para propor perguntas e problemas a serem corretamente respondidossolucionados pelos especialistas.

O homem que tomou frente do pblico interessado, e poucos minutos o foco de

interesse de toda a conferncia, era um homem comum de meia-idade que tinha viajadohoras de Nova Orleans at l na esperana de obter uma certa informao especial de difcilsobre a qual no havia meios de pesquisar em fontes locais. O nome dele era JohnRaymond Legrasse, e sua profisso era Inspetor de Polcia. Com ele, estava o tema de suavisita, uma grotesca, repulsiva, e aparentemente muito antiga estatueta de pedra, cujaorigem que ele no sabia precisar. No se deve supor que o Inspetor Legrasse tivesse omenor interesse em arqueologia. Pelo contrrio, seu desejo de obter esclarecimentos foiinstigado por consideraes puramente profissionais. A estatueta, dolo, fetiche, ou o que

quer que fosse, havia sido apreendido alguns meses antes nos bosques pantanosos do sul deNova Orleans durante uma batida policial em uma suposta reunio de feiticeiros12; e tosingulares e hediondos eram os ritos ligados a ele, que a polcia no pde seno deduzir quehaviam topado com um culto misterioso totalmente desconhecido, e infinitamente maisdiablico que o mais negro crculo feitiaria africana13. De sua origem, exceto pelashistrias inacreditveis e contraditrias dos membros capturados da seita, absolutamentenada foi descoberto; da a aflio dos policiais em obter qualquer instruo sobre peas de

antiqurio que pudesse ajud-los a determinar a procedncia do smbolo assustador, e dessemodo seguir a pista do culto at que localizassem a sua nascente.

O Inspetor Legrasse no estava de todo preparado para a sensao que foi a suaproposta. Um pequeno vislumbre da coisa foi o bastante para lanar os homens de Cinciareunidos ali em um estado de tensa euforia, e, sem perder tempo, eles foram se

12 No original, a expresso voodoo meeting se refere a uma reunio de praticantes de magiavodu. A opopor termos relacionados a feitiaria, mais abrangentes, apenas estilstica. (V. nota anterior.) [N.T.]13 No original, the blackest of the African vood oo circles. [N.T.]


11/36

aglomerando ao redor dele para contemplar a figura diminuta cuja estranheza absoluta e ar

de antigidade genuinamente inexplicvel os levou to potentemente a vises arcaicas e

cerradas. Nenhuma escola reconhecida de escultura havia dado vida quele terrvel objeto,contudo centenas e mesmo milhares de anos pareciam registrados em sua superfcie depedra escura, esverdeada e enigmtica.

A figura que, afinal, foi passada lentamente de homem a homem a fim de que sepudesse estud-la cuidadosamente de mais perto, tinha entre sete e oito polegadas de altura,e um requintado trabalho artstico artesanal. Ela representava um monstro com formas quelembravam vagamente as de um antropide, mas com a cabea semelhante a um polvo e de

cuja face pendia uma massa de tentculos, um corpo escamoso, como fosse de borracha,garras prodigiosas nas patas traseiras e dianteiras, e asas longas e compridas na parteposterior. Esta coisa, que o instinto dizia ser algo temvel e maligno, era de umacorpulncia meio que inchada, e ficava acocorada em um bloco retangular ou uma espciede pedestal coberto com caracteres indecifrveis. As pontas das asas tocavam a partetraseira do bloco, o assento ocupava o centro, enquanto as garras longas, encurvadas parabaixo, apoiadas sobre as patas posteriores, agarravam a extremidade anterior e estendiam-serusticamente por um quarto da altura do pedestal. A cabea cefalpode inclinava-se para

frente, de forma que as pontas dos barbilhes faciais tocavam as enormes patas dianteiras,que, por sua vez, prendiam os joelhos erguidos do animal agachado. O aspecto da figura eraanormalmente natural e o mais sutilmente amedrontador devido sua origemcompletamente desconhecida. Sua vasta, impressionante e incalculvel idade erainequvoca; no obstante no aparentasse nenhuma conexo com qualquer tipo de arteconcernente aurora da civilizao - ou mesmo a qualquer outra era. Por outro lado, oprprio material que a constitua era um mistrio; para a pedra preto-esverdeada besuntada

com seus dourados e iridescentes salpicos e estrias no se parecia com nada familiar noscampos da geologia ou da minerologia. Os caracteres ao longo da base eram igualmentedesconcertantes; e nenhum scio presente, com exceo de uma representao de metadedos peritos e especialistas do mundo neste campo, tinha a mnima noo de seu maisremoto parentesco lingstico. Eles, da mesma forma que o tema e o material, pertenciam aalgo horrivelmente distante e diferente do gnero humano como o conhecemos. Algo


12/36

ameaadoramente sugestivo, de antigos e profanos ciclos de vida nos quais o nosso mundo

e as nossas concepes no tm vez.

E ento, como os membros respectivamente meneassem a cabea e se dessem porvencidos em relao ao tal problema do inspetor, houve um homem na assemblia quesuspeitou um toque de bizarra familiaridade na forma e na escrita monstruosa do artefato, eque, no mesmo instante, contou no sem algum acanhamento o pequeno boato que eleconhecia. Esta pessoa era o falecido William Channing Webb, Professor de Antropologiana Princeton University, e um explorador de mo cheia. O Professor Webb fizera parte,quarenta-oito anos antes, de uma excurso Groenlndia e Islndia em busca de algumas

inscries rnicas que ele no foi capaz de encontrar; e enquanto l prximo costa daGroenlndia Ocidental tinham encontrado uma tribo singular ou um culto degenerado deesquims, cuja religio, uma curiosa forma de adorao ao demnio, gelou sua alma comsua deliberada sede de sangue e sua repulsividade. Era uma crena de que os outrosesquims pouco tinham conhecimento, e que mencionavam-na com certa aflio, dizendoque aquilo tinha sido herdado de eternidades horrivelmente arcaicas, antes mesmo de omundo ter sido feito. Alm de ritos sem nome e sacrifcios humanos havia estranhascerimnias hereditrias voltadas a um supremo ancio demonaco outornasuk ; e, disto,

Professor Webb tirou uma cpia fontica cuidadosa de um antiqssimoangekok ouclrigo, expressando os sons em letras romanas o melhor que podia. Nesse ponto, eraimportantssimo o fetiche que esta seita tinha adorado, e ao redor do qual os idlatrasdanavam quando a aurora saltava alto acima dos penhascos de gelo. Era, declarou oprofessor, um detalhe de pedra em baixo-relevo, bastante cru, incluindo uma imagemmedonha e algumas escrituras codificadas. E tanto quanto ele pde contar, havia um speroparalelo, em seus aspectos essenciais, entre aquilo e a coisa bestial que agora estava diantes

dele na reunio.Esse dado, recebido com suspense e surpresa pelos membros reunidos, provou ser o

caso duplamente excitante ao Inspetor Legrasse; e ele comeou imediatamente a questionarseu informante com mais afinco. Tendo anotado e copiado um ritual oral entre os fiis daseita do pntano que seus homens tinham prendido, ele suplicou ao professor que selembrasse o melhor possvel quais as slabas tiradas dos esquims satanistas. Ento o que seseguiu foi uma exaustiva comparao de detalhes, e um momento de verdadeiro silncio


13/36

taciturno quando tanto o detetive quanto o cientista concordaram a respeito da identidade

virtual da frase comum a dois rituais infernais separados por muitos mundos de distncia.

Que, em substncia, os feiticeiros esquims como os sacerdotes do pntano da Louisianatinham recitado aos seus dolos afins algo como: tendo as divises em palavras sidoconjeturadas a partir das pausas tradicionais na frase conforme ela foi recitada em voz alta:

Phnglui mglwnafh Cthulhu Rlyeh wgahnagl fhtagn.

Legrasse tinha uma vantagem em relao ao Professor Webb, como teria estado por

muito tempo entre seus prisioneiros mestios, eles haviam repetido para ele o que osantigos celebrantes lhes disseram que as palavras significavam. Este texto, de acordo com oque foi dado, discorria mais ou menos assim:

Na casa dele em Rlyeh repousa em sonhos o Cthulhu adormecido.

E agora, em resposta a uma demanda geral e urgente, o Inspetor Legrasse relatou, tocompletamente quanto possvel, sua experincia com os adoradores do pntano; contando

uma histria para a qual, eu pude perceber, meu tio atribuiu profunda significao. Elatinha o aroma dos sonhos mais selvagens de construtores de mitos e tesofos; e revelavaum grau surpreendente de imaginao csmica entre miscigenados14 e prias como aquelesmuito maior do que se poderia esperar.

Em 1 de novembro de 1907, um chamado nervoso levou a polcia de Nova Orleans regio ao sul do pntano e da laguna. Os grileiros que l havia, a maioria primitivos masdescendentes diretos dos homens de Lafitte15, estavam sob domnio do mais puro terror em

14 No original, half-castes. A traduo optou pelo termo miscigenado para diferenar de mestio, cujooriginal apresentado como mongrel (ingl.). [N.T.]15 A meno provavelmente a Jean Lafitte (1780-1826), corsrio e contrabandista da Louisiana que ajudouos exrcitos americanos na Batalha de Nova Orleans no fim da Guerra de 1812. Por volta de 1810, ele e seushomens se estabeleceram na Baa de Barataria, prxima a Nova Orleans, e saquearam navios espanhis noGolfo do Mxico. Em 1814, os britnicos tentaram comprar o apoio de Lafitte. Ao invs disso, ele passouseus planos para os americanos e ajudou Andrew Jackson a defender a cidade em janeiro de 1815. Mais tarde,voltou atividade como corsrio. (V. biografia de Lafitte no site History of New Orleans and surroundingarea. The pirate Jean Lafitte. EEUU, 2002. Disponvel em:. Aceso em 23 jan 2006.) Outras fontes indicam ainda ameno ao Marqus de La Fayette (1757-1834), lder militar poltico francs, [que] lutou no bando dos


14/36

vista de uma coisa desconhecida que havia se aproximado furtivamente deles noite. Era

um vodu, aparentemente, mas o tipo de vodu mais terrvel de que algum j teve notcia; e

algumas das suas mulheres e crianas haviam desaparecido, desde que o malvolo tantcomeara seu batuque incessante bem longe, dentro da floresta mal-assombrada ondenenhum homem jamais se aventurou. Havia berros insanos e gritos horripilantes, cantos quedavam calafrios e danas diablicas luz das chamas; e, o mensageiro assustadocompletou, as pessoas no podiam aguentar mais aquilo.

Ento, um corpo de vinte policiais, lotando duas carruagens e um automvel, partiuno fim da tarde com o grileiro assustado como guia. Ao trmino da estrada pavimentada

eles desceram, e por milhas chafurdaram no silncio entre os terrveis bosques de ciprestesonde o dia jamais alcanou. Feias razes e retorcidos malignos de musgo espanhol16 osatacaram, e, de vez em quando, uma pilha de pedras midas ou um fragmento de umaparede apodrecida, impresso reforada por sua insinuao de habitao mrbida, umaatmosfera criada pelo conjunto de cada rvore malformada e cada ilhota de fungos. Por fim,o acampamento dos grileiros, um ajuntamento miservel de choas, uma viso nauseante; emoradores histricos correram para se juntar ao grupo de lampies baloiantes. A pulsaoabafada de tants17 era agora debilmente audvel l longe, muito longe; e um grito agudo

horripilante veio em raros intervalos quando o vento mudava. Um claro avermelhadotambm parecia se infiltrar atravs da plida vegetao rasteira para alm das avenidasinfinitas da floresta noite. Relutantes em serem deixados novamente sozinhos, cada umdos intimidados grileiros recusou de pronto avanar outra polegada em direo cena deadorao profana, ento o Inspetor Legrasse e os seus dezenove colegas mergulharam scegas em escuras galerias de horror em que nenhum deles jamais havia pisado.

A regio agora invadida pela polcia era de reputao tradic ionalmente m,

substancialmente, desconhecida e jamais atravessada por homens brancos. Havia lendas deum lago oculto nunca vislumbrado por olhos mortais, no qual habitava uma imensa,disforme coisa branca poliposa com olhos luminosos; e os posseiros cochichavam sobre

rebeldes das colnias durante a guerra da Independncia Americana. (V.LOVECRAFT. O horror em Red Hook . Trad. de Celso M. Paciornik. Illuminuras, 2000.) [N.T.]16 Erva usada para feitios de proteo. O musgo espanhol uma epfita, i.e. uma planta que cresce sobreoutra planta como suporte mecnico, mas no parastica. Alm do musgo espanhol, a baunilha tambm podeser considerada uma epfita. [N.T.]17 No original, tantans. [N.T.]


15/36

demnios com asas de morcego voando de um lado a outro, fora das cavernas, adentrando o

solo, para vener-la meia-noite. Eles disseram que a coisa estivera l desde antes de

dIberville18, antes de La Salle19, antes dos ndios, e antes mesmo de algumas feras epssaros dos bosques. Era um enorme pesadelo, e v-la significava morrer. Mas ela fazia oshomens sonharem, e ento eles sabiam demais para irem embora. A tal orgia de feitiariaera, na verdade, na mais simplria orla desta rea abominvel, mas aquela locao era ruimo suficiente; por esse motivo s o lugar do culto j assustava os posseiros, mais que os sonschocantes e os prprios incidentes.

S a poesia ou a loucura poderiam fazer jus aos rudos ouvidos pelos homens de

Legrasse medida que eles abriam caminho pelo lamaceiro negro em direo rubraclareira e ao som abafado dos tants. H timbres vocais peculiares aos homens, e timbresvocais peculiares s bestas; e terrvel ouvir um quando a origem deveria ser o outro.Nesse ponto, a fria animal e a promiscuidade orgistica atingiam alturas demonacas comuivos e gritos de prazer que rasgavam e reverberavam naquela floresta sombria, comotempestades pestilenciais dos golfos do inferno. Uma vez ou outra o ulular catico cessavae, do que parecia um bem-ensaiado coral de vozes roucas, se erguia em um cantomelopico aquela frase ou ritual hediondo:

Phnglui mglwnafh Cthulhu Rlyeh wgahnagl fhtagn.

Ento os homens, tendo alcanado um claro onde as rvores eram mais finas,subitamente avistaram o espetculo com os seus prprios olhos. Quatro deles se sentirammal, um desfaleceu, e dois caram em um pranto desesperado com a cacofonia ensandecida

18 Formalmente conhecido como Sieur DIberville [...], Pierre le Moyne foi um explorador franco-canadense,oficial naval, e fundador da provncia da Lousiana. Ele nasceu em Montreal, Canada, e serviu marinhafrancesa por 10 anos. Durante o perodo entre 1686 e 1697 ele invadiu postos de comrcio de peles inglesesna Baa do Hudson em uma tentativa de expuls-los e ter o Canad para os franceses. Em 1698, Iberville saiuda Frana para estabelecer uma colnia prxima foz do Rio Mississipi. Tentativas anteriores de realizar amesma faanha haviam acabado em fracasso; a mais notvel delas promovida por La Salle em 1684. (V.verbete sobre DIberville noEverything2. [email protected]. EEUU, 2006. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]19 Ren Robert Cavelier, formalmente conhecido como Sieur de La Salle (1643-1687), explorador francs quechegou regio dos Grandes Lagos, ao Rio Mississippi e ao Golfo do Mxico, reindivicando toda a baciahidrogrfica do Mississippi para a coroa francesa. (V. verbete sobre La Salle naWikipedia. Wikipedia.pt.EEUU, 2005. Disponvel em: . Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]


16/36

da orgia, que felizmente atenuou. Legrasse jogou gua do pntano na face do homem

desfa lecido, e todos ficaram de p, tremendo e praticamente hipnotizados de horror.

Em um descampado natural do pntano havia uma ilhota coberta de relva de talvezum acre de extenso, livre de rvores e toleravelmente seca. Sobre ela, nesse momento,saltava e serpenteava a mais indescritvel horda de anormalidade humana que somente umSime20 ou um Angarola21 poderia retratar. Destitudos de roupa, esta prole hbrida zurrava,bramindo e contorcendo-se ao redor de uma monstruosa fogueira anelar; no centro da qual,revelado por ocasionais brechas na cortina de chamas, estava um enorme monolito degranito de bons oito ps de altura; no topo do qual, incongruente por sua forma diminuta,

repousava a prfida estatueta talhada. De um amplo crculo de dez cadafalsos dispostos emintervalos regulares, em cujo centro pendia o flamejante monolito, estavam, de cabea parabaixo, os corpos estranhamente mutilados dos indefesos grileiros que haviam desaparecido.Era no interior deste crculo que o anel de adoradores pulava e urrava, o sentido domovimento da multido indo da esquerda para a direita em um bacanal sem fim entre o anelde corpos e o anel de fogo.

Pode ter sido apenas imaginao e podem ter sido apenas ecos que induziram um doshomens, um irriquieto espanhol22, a fantasiar que havia ouvido respostas antifnicas ao

ritual, de algum longnquo e sombrio ponto no interior da terrvel e fabulosa floresta. Estehomem, Joseph D. Galvez, eu encontrei posteriormente e o interroguei; e ele se mostrouperturbadamente imaginativo. Na verdade, foi at longe demais como quando mencionouum fraco farfalhar de grandes asas, e o relancear de olhos brilhantes e um montanhoso vultobranco alm da rvore mais remota mas eu tenho a impresso de que ele andou ouvindomuita superstio nativa.

20 Sidney Herbert Sime (1867-1941), ilustrador, famoso por sua parceria com o poeta e dramaturgo LordDunsany. Celebrado em seu tempo como o mais imaginativo artista desde William Blake, sua arte seassemelha em certos aspectos ao simbolismo visionrio de seu contemporneo, George Frederick Watts.(V. verbete sobre Sime em Art Renewal Center (ARC). Museum. EEUU, 2004. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]21 Anthony Angarola (1893-1929), pintor norte-americano descendente de imigrantes da Itlia. Grande partede seu trabalho enfocava sua compaixo por pessoas que lutavam para adotar uma cultura estranha. (V.verbete sobre Angarola em Ask Art: the American artists bluebook.EEUU, 2006. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]22 No original, Spaniard (ingl.): espanhol. A traduo optou por manter o sentido primrio e no diferenaro termo de Spanish (ingl.), cuja traduo idntica. [N.T.]


17/36

De fato, a pausa horrorisada dos homens foi relativamente de breve durao. O dever

vem sempre primeiro; e embora devesse haver aproximadamente uma centena de mestios

celebrantes na aglomerao, a polcia confiou em suas armas de fogo e arremeteudeterminadamente contra a asquerosa turba. Por cinco minutos o caos e o alaridoresultantes foram indescritveis. Golpes ferozes foram desferidos, projteis foram atirados,e esquivas foram bem-sucedidas; mas no fim Legrasse podia contar cerca de quarenta e setesoturnos prisioneiros, os quais ele obrigou a vestirem-se com urgncia e fazerem fila entredois cordes de policiais. Cinco dos adoradores morreram, e dois gravemente feridos foramlevados em macas improvisadas por seus colegas-prisioneiros23. A imagem do monolito,

obviamente, foi cuidadosamente removida e carregada por Legrasse.Examinados no quartel-general depois de uma intensa jornada de esforo e fadiga, osprisioneiros todos provaram-se homens modestos, miscigenados, e de mentalidadeaberrante. A maioria era de marinheiros, mas havia alguns gatos pingados que eram negrose mulatos, um grande nmero de ndios ou portugueses criolos das Ilhas Cabo Verde, quedavam um colorido de vodusmo ao culto. Mas antes que muitas perguntas fossem feitas,ficou claro que algo mais profundo e arcaico que fetichismo negro estava envolvido.Degradados e ignorantes como eram, as criaturas mantiveram com surpreendente

consistncia a idia central de sua abominvel f.Eles adoravam, assim disseram, os Grandes Ancestrais24 que viveram eras antes de

existir qualquer homem, e que vieram ao novo mundo descidos do cu. Aqueles Ancestraishaviam ido agora, por dentro da terra e debaixo do mar; mas seus corpos mortos contaramseus segredos em sonhos aos primeiros homens, que ento criaram um culto que nuncamorreu. Este era o tal culto, e os prisioneiros disseram que ele sempre existira e sempreexistiria, oculto em ermos distantes e lugares sombrios ao redor do mundo at o momento

em que o grande padre Cthulhu, de sua casa sombria na pujante cidade de Rlyeh debaixodas guas, se ergueria e teria a terra novamente sob seu domnio. Algum dia ele atenderiaao chamado, quando as estrelas estivessem prontas, e o culto secreto estaria sempreesperando para libert-lo.

23 No original, fellow-prisoners. [N.T.]24 No original, the Great Old Ones (ingl.): os Grandes Velhos. A traduo optou pela expresso GrandesAncestrais para transmitir a idia de algo remoto. [N.T.]


18/36

Nesse instante nada mas podia ser dito. Havia um segredo que mesmo a tortura no

podia extrair. A humanidade no estava absolutamente s entre as coisas conscientes da

terra, de modo que formas vinham da escurido para visitar os poucos crdulos. Mas essasno eram os Grandes Ancestrais. Nenhum homem jamais vira os Ancestrais. O dolotalhado era o grande Cthulhu, mas ningum podia arriscar se os outros eram ou noprecisamente iguais a ele. Ningum podia ler a velha escritura agora, mas as coisas eramditas de viva voz25. O ritual entoado no era o segredo isto jamais era dito em voz alta,apenas sussurrado. O canto significava apenas isso: Em sua casa em Rlyeh o adormecidoCthulhu espera sonhando.

Somente dois dos prisioneiros foram considerados sos o suficiente para seremenforcados, e o resto foi confiado vrias instituies. Todos negaram tomar parte nosassassnios ritualsticos, e asseveraram que a matana havia sido realizada pelos AladosNegros que os alcanaram de seu ponto de encontro imemorial na floresta assombrada. Masdesses misteriosos aliados nenhum relato coerente pde ser obtido. O que a polciarealmente extraiu veio sobretudo de um mestio imensamente envelhecido chamado Castro,que se gabava de ter navegado para portos estranhos e conversado com lderes imortais doculto nas montanhas da China.

O velho Castro lembrou algumas lendas medonhas que empalideceriam asespeculaes dos tesofos e fariam o homem e o mundo parecerem algo recente epassageiro. Fazia milnios que outras Coisas dominaram a terra, e Elas tiveram grandescidades. Reminiscncias dElas, ele disse que os imortais chineses o haviam contado, aindapodiam ser encontradas nas pedras ciclpicas nas ilhas do Pacfico. Elas morreram todasvastas eras antes do homem chegar, mas havia algumas artes que podia reviv-Las quandoas estrelas tiverem retornado s posies corretas no crculo da eternidade. Elas, na

verdade, vieram ss das estrelas, e trouxeram Consigo imagens Suas.Esses Grandes Ancestrais, Castro continuou, no eram feitos de carne e osso. Eles

tinham forma ou essa imagem das estrelas no havia provado isso? mas tal forma notinha substncia. Quando as estrelas estivessem corretamente posicionadas, Eles podiamsaltar de mundo em mundo atravs do cu; mas quando as estrelas estavam fora de suaposio, Eles no podiam viver. Ainda que quando no estivessem vivos, eles jamais

25 No original, by word of mouth (ingl.). [N.T.]


19/36

realmente morressem. Todos Eles repousavam em casas de pedra em Sua grande cidade de

Rlyeh, preservada pela magia do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreio quando

as estrelas e a terra estivessem uma vez mas prontas para Eles. Mas nesse momento algumafora externa deveria servir para libertar Seus corpos. A magia que preservou-Os intactosigualmente Os impedia o movimento inicial, e Eles podiam apenas despertar na escurido epensar, enquanto incontveis milhes de anos se passavam. Eles sabiam tudo o que ocorriano universo, pois Seu modo de falar era por transmisso de pensamento. Mesmo agora Elesconversavam em Suas tumbas. Quando, depois de infinidades de caos, o primeiro homemsurgiu, os Grandes Ancestrais falaram aos sensitivos entre eles modelando seus sonhos;

pois somente assim podia a Sua linguagem alcanar as mentes primitivas dos mamferos.Ento, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens criaram o culto ao redor dos altosdolos que os Grandes os apresentaram; dolos trazidos em pocas obscuras de estrelassombrias. Aquele culto nunca morreria at que as estrelas se alinhassem novamente, e ossacerdotes secretos trouxessem o grande Cthulhu de Sua tumba para reassumir Seus lugar eretomar Seu domnio da terra. O momento seria facilmente reconhecido, pois a humanidadeteria se tornado como os Grandes Ancestrais; livre e feroz e alm do bem e do mal, comleis e morais jogados de lado e todos os homens gritando e matando e festejando em jbilo.

Ento os Ancestrais libertos ensinariam a eles novos modos de gritar e matar e festejar erejubilar-se, e toda a terra se incendiaria com um holocausto de xtase e liberdade.Enquanto isso, o culto, por meio dos ritos apropriados, deveria manter viva a memriadesses antigos modos, vigiando e transmitindo a profecia de seu retorno.

No tempo dos ancies, os homens escolhidos falaram com os Ancestrais sepultadosem sonhos, mas algo ento aconteceu. A grande cidade de pedra Rlyeh, com seusmonolitos e sepulcros, afundou em meio s ondas; e as guas profundas, cheias do mistrio

primordial atravs do qual nem mesmo o pensamento pode perpassar, fizeram cortar ascomunicaes espectrais. Mas a memria nunca morreu, e os sumo sacerdotes diziam que acidade se ergueria novamente quando as estrelas estivessem alinhadas. Ento saram daterra os espritos negros de terra, sombrios e decadentes, e cheios de boatos obtusosesconderam-se em cavernas no esquecido do fundo-do-mar. Mas, deles, o velho Castro noousava falar muito. Ele se calou rapidamente, e nenhuma persuaso ou sutileza pde extrairmais sobre o assunto. O tamanho dos Ancestrais, tambm, ele curiosamente se recusou a


20/36

mencionar. Do culto, ele disse que achava que seu centro estivesse prximo ao

incognoscvel26 deserto da Arbia, onde Irem, a Cidade de Pilares, sonha oculta e intata.Ele

no estava alinhado com o culto s bruxas europeu, e era virtualmente desconhecido entreseus membros. Nenhum livro jamais aludiu a ele, contudo os chineses imortais disseramque havia duplos sentidos no Necronomicon do louco rabe Abdul Alhazred, os quais oiniciado poderia ler como eles apontaram, particularmente o muito-discutido27 dstico:

No so os mortos que podem deitar eternamente,E com eternidades estranhas mesmo a morte a morte sente.

Legrasse, profundamente impressionado e nem um pouco desnorteado, inquiriu emvo a respeito das afiliaes histricas do culto. Castro, aparentemente, tinha contado averdade quando dissera que a coisa era hermeticamente secreta. As autoridades naUniversidade de Tulane no puderam lanar luz sobre o culto ou a imagem, e agora odetetive apelava s mais eminentes autoridades no pas e se deparava com nada menos quea estria da Groenlndia do Professor Webb.

O interesse febril despertado defrontao com a estria de Legrasse, corroborado

que foi pela estatueta, encontra eco na subseqente correspondncia daqueles queassistiram; emborasejam escassas as menes nas publicaes formais da sociedade. Precauo o primeiroao cuidado daqueles acostumados a enfrentar ocasionais charlatanices e imposturas.Legrasse, por algum tempo, emprestou a imagem ao Professor Webb, mas morte doltimo ela fora devolvida a ele e permanece em sua posse, onde eu a vi no faz muitotempo. verdadeiramente uma coisa terrvel, e inequivocamente semelhante escultura

onrica28

do jovem Wilcox.Que meu tio tivesse se excitado com a estria do escultor eu no me admirei, pois que

idias poderiam sobrevir, depois de tomar conhecimento do que Legrasse tinha aprendidosobre o culto, ao ouvir um jovem sensitivo que houvera sonhado no s com a figura e os

26 No original, pathless (ingl.): sem rumo, traduzido como o lugar a que no se chega, para o qual no seencontra caminho etc. [N.T.]27 No original, much-discussed (ingl.). A traduo optou pela permanncia do adjetivo composto. [N.T.]28 No original, dream-sculpture. Nesse caso em particular, dada a reincidncia da formao de substantivoscompostos com o prefixodream-(ingl.)[N.T.]


21/36

hierglifos exatos da imagem encontrada no pntano e a tbua do demnio da Groenlndia,

mas entrou em seus sonhos a partir de pelo menos trs das palavras exatas da frmula

pronunciadas de modo similar por esquims satanistas e mestios da Louisiana? O incioimediato de uma investigao sobre o limite da perfeio empreendida pelo ProfessorAngell era insignemente natural; embora reservadamente eu suspeitasse que o jovemWilcox tivesse ouvido falar do culto de modo indireto, e tivesse inventado uma srie desonhos para exaltar e conservar o mistrio s custas de meu tio. As narrativas-onricas erecortes colecionados pelo professor eram, logicamente, uma forte evidncia; mas oracionalismo de minha mente e a extravagncia de todo o tema me fizeram adotar o que eu

entendi como as mais sensatas concluses. Assim, depois de estudar o manuscritointeiramente mais uma vez e correlacionando as notas teosficas e antropolgicas com anarrativa do culto de Legrasse, eu fiz uma viagem a Providncia com o objetivo de ver oescultor e lhe repreender o quanto achei necessrio por tamanho atrevimento diante de umhomem conhecido e idoso.

Wilcox ainda vivia s no Edifcio Fleur-de-Lys na Rua Thomas29, uma horrendaimitao vitoriana da arquitetura bret do sculo dezessete, que ostenta seu fronto de taipaem meio s amveis casas coloniais na colina antiga, e debaixo da mesma sombra que o

mais belo campanrio georgiano na Amrica, eu o achei trabalhando em seus aposentos, eimediatamente me convenci pelos espcimes espalhados de que sua genialidade realmenteprofunda e autntica. Mais cedo ou mais tarde, eu acredito, ele ser lembrado como um dosgrande decadentes; pois ele cristalizou em barro e algum dia o espelhar em mrmore, ospesadelos e fantasias que Arthur Machen30 evoca em prosa, e Clark Ashton Smith31 tornavisveis em verso e na pintura.

29 O edifcio Fleur-de-Lys, localizado na Rua Thomas n7, em Providence, Rhode Island, cidade natal de H. P.Lovecraft, de fato existe, e abriga hoje um dos estdios do Providence Art Club. Construdo em 1885 pelorenomado artista Sydney Burleigh e pelo arquiteto Ed mund Wilson, o prdio mantido sob preservao peloProvidence Preservation Society Revolving Fund (PPSRF). O Providence Art Club foi fundado em 1880com o objetivo de estimular a apreciao da arte na comunidade. Localizado na Rua Thomas, sombra daPrimeira Igreja Baptista, o clube uma pitoresca seqncia de prdios histricos, que abrigam estdios,galerias e a sua sede. (V. notas sobre o Providence Art Club no site da prpria instituio:Providence Art Club.Home. EEUU, 2004. Disponvel em: . Acesso em 23 jan 2006. e V.tambm notas sobre o Providence Preservation Society Revolving Fund e o Edifcio Fleur-de-Lys no site doPPSRF: Providence Preservation Society Revolving Fund . Recent projects. EEUU, s.d. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]30 Arthur Machen (1863-1947), proeminente autor gals da dcada de 1890. bem reconhecido porinfluenciar os gneros sobrenatural, de fantasia e fico de horror. tambm famoso pelo importante papel na


22/36

Escuro, frgil, e de aspecto um pouco desleixado, ele virou-se languidamente minha

batida e me perguntou qual era o meu negcio sem sequer se exaltar. Ento eu lhe falei

quem eu era, ele mostrou algum interesse; pois meu tio instigou sua curiosidade eminvestigar os tais estranhos sonhos, contudo nunca houvesse explicado a razo do estudo.Neste particular, eu no expandi seu conhecimento, mas busquei com alguma sutileza tir-lo da jogada. Em pouco tempo eu fiquei convencido de sua sinceridade absoluta, porque elefalou dos sonhos de um modo que ningum jamais poderia. Eles e os seus resduossubconscientes tinham influenciado a arte dele profundamente, e ele me mostrou umaesttua mrbida cujos contornos quase me fizeram estremecer com a potncia de sua

malfica vibrao. Ele no pde recordar se havia ou no visto o original desta coisa excetoem seu prprio baixo-relevo onrico, mas os esboos tomaram forma insensivelmente emsuas mos. Era, sem dvida, a forma gigante com que ele havia delirado. Que ele realmenteno sabia nada do culto secreto, salvo sobre o que o catecismo inexorvel de meu tio tinhadeixado pistas, ele logo tornou claro; e novamente eu me esforcei para pensar em algummodo no qual ele poderia ter possivelmente recebido as misteriosas impresses.

Ele falou de seus sonhos em uma maneira curiosamente potica; me fazendo ver comterrvel vivacidade o desalento da cidade ciclpica de pedra verde enlodada - cuja

geometria, ele estranhamente falou, estava toda errada - e ouvir com temeroso receio oinsistente e quase mental chamado dos subterrneos: Cthulhu, fhtagn, Cthulhu, fhtagn.

Estas palavras formavam parte daquele ritual assustador que falava da viglia-onricado Cthulhu adormecido em sua vala de pedra em Rlyeh, e eu me senti profundamentetocado apesar de minhas convices racionais. Wilcox, eu tenho certeza, havia ouvido falardo culto de modo casual, e tinha ento esquecido-o rapidamente em meio massa deleituras e pensamentos igualmente esquisitos. Depois, puramente em virtude de sua

impressionabilidade, as lembranas acharam expresso subconsciente em sonhos, no baixo-relevo, e na esttua terrvel que eu agora observava; de forma que sua impostura sobre meutio tinha sido muito inocente. O jovem era de um tipo, ligeiramente afetado e ligeiramente

criao do mito dos Anjos de Mons. (V. verbete sobre Arthur Machen naWikipedia. Wikipedia.pt. EEUU,2006. Disponvel em: . Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]31 Clark Ashton Smith (1893-1961), poeta, escultor, pintor e autor de contos de fantasia, horror e ficocientfica. por essas histrias, e pela sua amizade literria com H. P. Lovecraft de 1922 at a morte desdeltimo em 1937, que ainda hoje bastante reverenciado. (V. verbete sobre Clark Ashton Smith naWikipedia.Wikipedia.org. EEUU, 2006. Disponvel em: . Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]


23/36

rude ao mesmo tempo, o qual eu nunca poderia gostar, mas eu estava agora inclinado o

suficiente a admitir seu gnio e sua honestidade. Eu me despedi amigavelmente, e lhe

desejei todo o sucesso que o seu talento prometia.O assunto do culto ainda continuou a me fascinar, e s vezes eu tinha vises de

sucesso e fama pessoal pelas pesquisas sobre sua origem possveis conexes. Eu visiteiNova Orleans, conversei com Legrasse e outros daquele grupo antigo da batida, vi aimagem medonha, e at mesmo questionei alguns dos mestios prisioneiros ainda vivos. Ovelho Castro, infelizmente, morrera h alguns anos. O que eu ouvi agora to graficamenteem primeira mo, embora realmente no fosse mais do que uma confirmao detalhada do

que meu tio escrevera, me excitou mais uma vez; porque eu tinha certeza de que eu estavano rasto de uma muito real, muito secreta, e muito antiga religio cuja descoberta me fariaum antroplogo ilustre. Minha atitude seguia sendo de materialismo absoluto, como eudesejava que fosse ainda hoje, e eu desconsiderei com perversidade quase inexplicvel acoincidncia das notas onricas e estranhos recortes coletados pelo Professor Angell.

Uma coisa que eu comecei a suspeitar, e que agora eu temo saber, que a morte demeu tio estava longe de ter sido natural. Ele caiu em uma rua de colina estreita queconduzia a uma antiga zona porturia enxameada por mestios estrangeiros, depois de um

empurro descuidado de um marinheiro negro. Eu jamais esqueci o sangue misturado e aperseguio martima dos membros do culto na Louisiana, e no iria me surpreender emaprender sobre mtodos secretos e ritos e crenas. Legrasse e os seus homens, verdade,foram deixados ss; mas na Noruega um certo lobo-do-mar que via coisas est morto.Poderiam as investigaes mais aprofundadas de meu tio depois de encontrar os dados doescultor ter chegado a ouvidos sinistros? Acho que o Professor Angell morreu porque sabiademais, ou porque era provvel que ele tivesse aprendido muito. Se eu partirei como ele,

isso ainda no est claro, porque eu tambm sei bastante.

III. A LOUCURA DO MAR

Se o cu alguma vez j desejar conceder-me uma ddiva, ser a destruio total dosresultados de um mero relancear que fixou meu olho em uma certa folha de papel que


24/36

forrava uma prateleira da estante. No era nada a que eu naturalmente teria me prendido no

curso de minha rotina diria, porque era um velho nmero de um peridico australiano, o

Boletim de Sydney, de 18 de abril de 1925. Ele tinha escapado at mesmo agncia derecortes que, poca de sua publicao, coletava avidamente material para a pesquisa demeu tio.

Eu j havia cessado minhas investigaes acerca do que o Professor Angelldenominou de Culto a Cthulhu, e estava visitando um amigo instrudo em Paterson, NovaJersey; o curador de um museu local e um mineralogista notvel. Certo dia, examinando osespcimes reservados rudemente dispostos nas estantes do depsito em uma sala nos

fundos do museu, meu olho se deteu sobre uma estranha gravura em um dos velhosdocumentos espalhados em baixo das pedras. Era o Boletim de Sydney que eu h poucomencionei, pois meu amigo tinha vastos contatos por todo o estrangeiro; e a gravura era umrecorte em meio-tom da imagem de uma pedra horrenda quase idntica quela que Legrassehavia achado no pntano.

Limpei ansiosamente a rea de seus preciosos contedos, esquadrinhei a folha emmincias; e fiquei desapontado por achar seu tamanho apenas moderado. O que sugeria apea, no entanto, era de extrema relevncia para minha busca pessoal; e eu cuidadosamente

rasguei a folha para uma ao imediata. Lia-se o seguinte:

MISTERIOSO NAVIO ABANDONADO ENCONTRADO EM ALTO-MAR

Vigilante chega com iate da Nova Zelndia armado e abandonado a reboque.Um sobrevivente e um morto foram encontrados a bordo. Uma estria de umabatalha desesperada e mortes em alto-mar. Lobo-do-mar resgatado se recusa a

narrar a estranha experincia. dolo singular encontrado sob sua posse. Inqurito a ser aberto.

O cargueiro Vigilante da Morrison Co., com destino a Valparaiso, chegou estamanh ao cais em Darling Harbour, levando a reboque o combalido edesativado mas pesadamente armado iate a vapor Alerta de Dunedin, N.Z., que


25/36

fora avistado em 12 de abril latitude S.3421, longitude W.15217, com um

homem vivo e um morto a bordo.

O Vigilante deixou Valparaiso no dia 25 de maro, e em 2 de abril foi obrigadoa mudar consideravelmente seu curso por conta das tempestadesexcepcionalmente intensas e ondas-monstro. Em 12 de abril o navioabandonado foi avistado; e embora parecesse deserto, descobriu-se depois deabordado que continha um sobrevivente em uma condio semi-delirante e umhomem que evidentemente estivera morto por mais de uma semana. O vivoagarrava-se a horrvel dolo de pedra de origem desconhecida, de cerca de um

p de altura, cuja natureza autoridades da Universidade de Sydney, da RoyalSociety, e do Museu de College Street todas professaram completoestarrecimento, e que o sobrevivente diz ter encontrado na cabine do iate, emum pequeno relicrio entalhado em padres comuns.Este homem, depois de recuperar seus sentidos, contou uma histria sumamenteestranha de pirataria e carnificina. Ele Gustaf Johansen, um noruegus deinteligncia mediana, e fora o segundo imediato da escuna de dois mastrosEmma de Auckland que velejava para Callao desde 20 de fevereiro com uma

guarnio de onze homens. O Emma, ele diz, estava atrasado e fora arremetidolargamente para o sul de seu curso pela grande tempestade de 1 de maro, e em22 de maro, na latitude S.4951 longitude W.12834, encontrou o Alerta,manejado por uma suspeita e malfazeja tripulao de canacas e miscigenados.Ordenado peremptoriamente a recuar, o Cap. Collins recusou-se a obedecer; aoque a estranha tripulao comeou a atirar selvagem e inadvertidamente naescuna com um bateria de canho de bronze peculiarmente pesada que fazia

parte do equipamente do iate. Os homens do Emma no se desviaram da luta,diz o sobrevivente, e, embora a escuna comeasse a afundar por causa dos tirosabaixo da linha-dgua eles trataram de suspend-la lado a lado com o inimigo eabord-lo, lutando corpo a corpo com a tripulao selvagem no deque do iate, esendo forados a mat-los, sendo o nmero ligeiramente superior, por causa deseu particularmente abominvel e desesperado conquanto canhestro modo delutar.


26/36

Trs dos homens do Emma, incluindo a o Cap. Collins e o primeiro imediato

Green, foram mortos; e os oito remanescentes, sob o comando do segundo

imediato Johansen tomaram o leme do iate capturado e continuaram em seucurso original, para ver se havia alguma razo em t-los ordenado recuar. No diaseguinte, ao que tudo indica, eles ancoraram e desembarcaram em uma pequenailha, embora no se conhea nenhuma ilha naquela parte do oceano; e seis doshomens de algum modo morrera em terra firme, conquanto Johansen semantenha estranhamente reticente sobre esta parte de sua estria, e fale apenasde sua queda em um precipcio. Em seguida, o que parece, ele e um

companheiro subiram a bordo do iate e tentaram manobr-lo, mas foramvencidospela tempestade de 2 de abril. Dali at o seu resgate, no dia 12, ohomem se lembra de pouca coisa, e nem mesmo recorda quando WilliamBriden, seu companheiro, morreu. A morte de Briden no revela nenhuma causaaparente, e provavelmente se deveu tenso ou exposio. Mensagenstelegrafadas de Dunedin relatam que o Alerta era bem conhecido por l comoum mercador de ilhas, e sustentava uma pssima reputao frente zonaporturia. Ele fora adquirido por um excntrico grupo de miscigenados cujas

freqentes reunies e viagens noturnas para os bosques atraam grandecuriosidade; e havia zarpado com bastante pressa logo aps a tempestade e ostremores de terra de 1 de Maro. Nosso correspondente de Auckland atribui aoEmma e sua tripulao uma excelente reputao, e Johansen descrito comoum homem sbrio e digno. O almirantado pretende instituir um inqurito sobretodo o caso a partir de amanh, quando todos os esforos sero dispendidos parainduzir Johansen a falar mais livremente do que o fez at o momento.

Isto era tudo, afora a gravura com a cena demonaca; mas que turbilho de idiasdespertou em minha mente! Aqui estavam novos e preciosos dados sobre o Culto aCthulhu, e evidncias de que ele tinha estranhos interesses no mar tanto quanto em terra.Que motivao teria levado a hbrida tripulao a ordenar que o Emma recuasse enquantoeles velejavam carregando seu horrendo dolo? Qual seria a ilha desconhecida em que seisdos tripulantes do Emma teriam morrido, e sobre a qual o imediato Johansen se mantinha


27/36

to reservado? O que teria a investigao do vice-almirantado trazido tona, e o que se

conhecia a respeito do malfico ritual em Dunedin? E o mais fantstico de tudo, que

encadeamento profundo e mais do que natural era esse que dera um maligno e agorainegvel significado para aquela seqncia de eventos to cuidadosamente registrada pelomeu tio?

No dia 1 de maro - ou 28 de fevereiro, se considerssemos a Linha Internacional deMudana de Data - vieram o terremoto e a tempestade. De Dunedin, o Alerta e suaasquerosa tripulao se arremessaram impetuosamente ao mar como se houvessem recebidouma intimao imperiosa, e do outro lado da terra poetas e artistas comearam a sonhar

com uma estranha e mida cidade ciclpica, ao passo que um jovem escultor moldavadurante o sono a forma do pavoroso Cthulhu. Em 23 de maro, a tripulao do Emmaatracou em uma ilha desconhecida e deixou seis homens mortos; e na data em que ossonhos dos sensitivos assumia uma impressionante vivacidade e obscurecia com o pavor dabusca maligna de um monstro gigante, ao passo que um arquiteto enlouquecera e umescultor subitamente deixou-se cair em delrio! E quanto tempestade de 2 de abril - a dataem que todos os sonhos com a mida cidade cessaram, e Wilcox emergiu inclume docativeiro de uma estranha febre? E quanto a tudo isso - e aos palpites do velho Castro sobre

os Ancestrais submersos, nascidos-das-estrelas, e seu reinado prximo; seu culto fiel e seudomnio sobre os sonhos? Estava eu pisando em falso na beira de um abismo de horrorescsmicos que qualquer ser humano jamais suportaria? Se estava, eles deveriam ser oshorrores da mente solitria, pois de algum modo, o dia dois de abril ps fim a toda equalquer ameaa monstruosa que estivesse tentando aprisionar a alma da humanidade.

Naquela noite, depois de um longo dia de apressados preparativos e tensascomunicaes, eu disse adieu aos meus anfitries e peguei um trem para So Francisco. Em

menos de um ms eu estava em Dunedin; onde, porm, eu descobri que pouco se sabiaacerca dos estranhos membros do culto que rondavam as velhas tabernas do porto. Aescria das docas era ordinria demais para chamar a ateno; contudo havia uma vagameno a uma certa viagem ao interior do pas que aqueles mestios teriam feito, durante aqual um tamborilar abafado e uma chama bem vermelha foram notados no alto de umascolinas distantes. Em Auckland, eu descobri que Johansen sara de cabelos brancos, aoinvs do loiro natural, aps um interrogatrio superficial e inconc lusivo em Sydney, e


28/36

depois disso teria vendido sua cabana em West Street e velejado, junto com a mulher, para

seu antigo lar, em Oslo. De sua traumatizante experincia, ele contaria aos amigos no mais

do que confessou aos oficiais do almirantado, e tudo o que eles puderam fazer por mim foidar-me o seu endereo em Oslo.

Em seguida, eu fui at Sydney e tentei em vo extrair alguma informao dos marujose membros da corte do vice-almirantado. Vi o Alerta, agora vendido e em uso comercial, noCais Circular na Baa de Sydney, mas no ganhei nada com sua majestosa indiferena. Afigura agachada com sua cabea de siba, corpo de drago, asas escamosas, e pedestalrepleto de hierglifos estava preservada no Museu do Parque Hyde; e eu a estudei longa e

detidamente, achando-a uma obra funesta de um arteso excntrico, mas que possua omesmo mistrio absoluto, o mesmo ar de uma terrvel antigidade, e a mesma sobrenaturalestranheza de material que eu havia notado no espcime menor de Legrasse. Gelogos, ocurador me contou, a tinham considerado um monstruoso quebra-cabea; pois juravam queno havia no mundo uma rocha como aquela. Ento eu pensei com certo estremecimento noque o Velho Castro contara a Legrasse a respeito dos Ancestrais; Eles vieram das estrelas,e trouxeram as Suas imagens com eles.

Abalado com uma revoluo mental como eu nunca sentira outrora, estava agora

decidido a visitar o Imediato Johansen em Oslo. Velejando para Londres, eu tornei aembarcar imediatamente para a capital norueguesa; e desembarquei num dia outonal em umcais acostvel sombra de Egeberg. O endereo de Johansen, eu descobri, ficava na VelhaCidade do Rei Harold Haardrada32, que mantivera vivo o nome de Oslo durante todos ossculos em que a maior cidade mascarou-se como Christiana. Fiz a curta viagem a txi, e,com o corao palpitante, bati porta de um edifcio elegante e antigo com a fachada deargamassa. Uma mulher de cenho entristecido, vestida de preto, respondeu ao meu apelo, e

eu fui picado pelo desapontamento quando a ouvi dizer em um ingls deficiente que Gustaf Johansen no estava mais entre ns.

32 No incio do sculo VI, no fiorde Vik, foi fundada a cidade de Oslo (atual capital da Noruega). Era umacidadezinha agrcola, mais prxima de um vilarejo feudal do que de um burgos. No entanto, seu povocomeou a exercer certa influncia sobre os povos vizinhos e gradualmente os foi submetendo ao seudomnio, o que provocou no final do sculo VII e comeo do VIII, a centralizao da regio sob o domnio deOslo. Tanto que o fiorde Vik tambm chamado de Oslo. [...] Depois da unificao da Noruega por HaraldoI, a capital do pas deixou de ser Oslo, para passar a ser Trondheim, que era na poca a principal cidadeNorueguesa. (V. informaes sobre parte da Histria norueguesa naKlepsidra: revista virtual de Histria.Klepsidra2. Ano 5, n 22. Brasil, 2004. Disponvel em:. Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]


29/36

Ele no sobreviveu muito tempo aps retornar, disse sua esposa, pois as desventuras

no mar em 1925 o exauriram. Ele havia contado a ela no mais do que contara ao pblico,

mas havia deixado um longo manuscrito - acerca de assuntos tcnicos como ele mesmodissera - escrito em ingls, evidentemente para proteg-la do perigo de uma leitura casual.Durante um cansativo passeio at uma ruela prxima doca de Gotemburgo33, uma resmade papel, caindo da janela de um sto, o acertou em cheio. Dois marinheiros indianos34 imediatamente o ajudaram e puseram-no de p, mas antes que a ambulncia pudessesocorr-lo ele estava morto. Os mdicos no conseguiram descobrir qual a verdadeira causada morte, e a creditaram a um problema do corao e a uma fraca constituio. Eu agora

sentia minhas entranhas se corroerem com aquele terror sombrio que no me abandonariaat que eu, tambm, repousasse em paz; acidentalmente ou pelo contrrio. Tendopersuadido a viva de que minha conexo com os tais assuntos tcnicos de seu maridoera o suficiente me dar algum direito sobre o manuscrito, levei comigo o documento ecomecei a l-lo no barco para Londres. Era algo simples e divagante - o esforo de umingnuo marinheiro em escrever um dirio ps-datado35 - e se empenhava em recordar dia adia aquela ltima maldita viagem. Eu no tentaria transcrev-lo textualmente36 em toda asua redundncia e nebulosidade, mas eu contarei em essncia o que dizia para dar a

conhecer porque o som da gua contra a lateral do navio se tornou to insuportvel paramim que tive que tapar meus ouvidos com algodo.

Johansen, graas a Deus, no soube verdadeiramente de tudo, embora tivesse visto acidade e a Coisa, mas eu nunca mais poderei dormir tranqilo enquanto estiver pensandonos horrores que espreitam incessantemente por trs da vida no tempo e no espao, edaquelas profanas blasfmias de estrelas ancis que sonham debaixo do oceano, sabidas e

33 Gotemburgo, cidade porturia sueca. A rea metropolitana da Grande Gotemburgo, somando-se algumasmunicipalidades vizinhas, tem aproximadamente 800 mil habitantes. A cidade-porto de Gotemburgo temsozinha mais de 400 mil habitantes, e a segunda mais populosa do pas. [...] A subregio compreendida porGotemburgo, Copenhague, Oslo e Malm, que conta com cerca de 7 milhes de habitantes, considerada azona industrial mais importante da Escandinvia. (V. informaes sobre a geografia sueca no site doconsulado chileno na cidade:Consulado General de Chile Gotemburgo. Gotemburgo. Sucia, 2004.Disponvel em: . Acesso em 23 jan 2006.) [N.T.]34 No original, Lascar sailors (ingl.): marinheiros da ndia ou da ndia Oriental. [N.T.]35 No original, post-facto (ingl.): feito ou construdo aps a ocorrncia real, aps o fato. A traduooptou pelo sentido geral por questes estilsticas. [N.T.]36 No original, verbatim (lat.): textualmente, literalmente. [N.T.]


30/36


31/36

sem muito esforo que aquilo no era desse ou de qualquer outro planeta so. O assombro

com o inacreditvel tamanho dos blocos de pedra esverdeados, a estonteante altura do

grande monolito entalhado, e a estupefata semelhana das esttuas colossais e dos baixos-relevos com a esquisita imagem encontrada dentro do relicrio no Alerta, pungentementevisvel em cada linha da descrio atemorizada do imediato.

Sem saber o que futurismo, Johansen alcanou algo muito prximo disto ao falarsobre a cidade; pois ao invs de descrever qualquer estrutura definida ou edificao, ele sedetm somente em vagas impresses de vastos ngulos e superfcies rochosas - superfciesmuito grandes para pertencerem a algo prprio ou adequado a esta terra, e mpias, com

horrveis imagens e hierglifos.Eu menciono sua descrio sobre ngulos porque lembraalgo que Wilcox havia me contado quando falou de seus sonhos terrveis. Ele disse que ageometria do ambiente onrico que ele vira era anormal, no-Euclideana, erepugnantemente repleta de esferas e dimenses distintas das nossas. Agora um iletradolobo-do- mar sentia a mesma coisa enquanto contemplava a terrvel realidade.

Johansen e seus homens desembarcaram em um banco-de-areia um pouco inclinadonessa monstruosa Acrpole, e subiram s escorregadelas em blocos de lama titnicos que jamais poderiam ter sido construdos para servirem de degraus a mortais. O sol escaldante

no cu parecia distorcido quando visto atravs do polarizador miasma, emanando daperverso encharcada de mar, e um sentimento ao mesmo tempo de ameaa e expectativaescondia-se de soslaio naqueles ngulos loucamente elusivos de rocha esculpida onde umsegundo relancear mostraria concavidade depois de o primeiro aparentar convexidade.

Algo muito parecido com o pnico instalou-se nos exploradores antes que qualqueroutra coisa mais definida que rocha e lama e algas pudesse ser vista. Todos teriam fugido seno temessem o escrnio dos outros, e foi apenas com indiferena que eles procuraram - em

vo, como ficou provado - por algum suvenir algo porttil que pudessem levar dali.Foi Rodriguez, o portugus, quem escalou at o sop do monolito e gritou de o que

ele tinha achado. Os demais o seguiram, e olhoram curiosos para a imensa porta entalhadacom o agora familiar baixo-relevo com a lula-drago38. Era, disse Johansen, como a enorme

38 No original, squid-dragon (ingl.). [N.T.]


32/36

porta de um estbulo; e todos eles s acharam que aquilo era uma porta por causa do lintel39

ornado, da soleira, e dos umbrais ao redor, conquanto no fossem unnimes em responder

se ela ficava deitada e achatada ou se estava inclinada como uma porta de acesso externo aoporo. Como Wilcox teria dito, a geometria do lugar estava toda errada. No se podia tercerteza se o mar e o cho estavam na horizontal, portanto a posio relativa de todo o restoparecia fantasgoricamente varivel.

Briden empurrou a pedra em vrios pontos diferentes sem resultado. Ento Donovanexaminou delicadamente as bordas, pressionando cada ponto separadamente conformeavanava. Ele escalou infinitamente a moldura grotesca de pedra - isto , chamaria-se

aquilo de escalar se a coisa no estivesse afinal deitada - e os homens se perguntaram comouma porta no universo podia ser to portentoso. Ento, muito suave e lentamente, ogigantesco40 lintel41 comeou a ceder desde o topo; e eles viram que era algo articulado.

Donovan deslizou ou de alguma maneira se impulsionou para baixo ou na direo doumbral e uniu-se novamente aos seus companheiros, e todos assistiram o estranho recuo doportal monstruosamente esculpido. Nesta fantasia de distoro prismtica ele se moviairregularmente em um caminho diagonal, de forma que parecia contrariar todas as regras damatria e da perspectiva.

A fresta era preta com uma escurido quase material. Aquela tenebrosidade era, naverdade, uma qualidade positiva; porque ela obscurecia tais partes das muralhas internasque deveriam ter sido reveladas, e, com efeito, dispersadas como fumaa de seu crcereperptuo, visivelmente eclipsando o sol conforme se esquivava no cu retrado e corcundaem um agitar de asas membranosas. O odor que exalou das recm-abertas profundezas eraintolervel, e por fim o ouvido de tuberculoso de Hawkins pensou ter escutado um srdido,frouxo som l debaixo. Todos ouviram, e todos estavam ouvindo atentos quando Ele

desabou desajeitadamente e escorregou lnguido sua imenso verde gelatinosa desde onegro portal at o lado de fora, no ar contaminado daquela venenosa e ensandecida cidade.Os garranchos de Johansen quase se fizeram desistir quando ele escreveu sobre isto. Dosseis homens que nunca alcanaram o navio, ele acha que dois pereceram de puro susto

39 No original, lintel (ingl. pelo fr. ant.lintel, do lat.limitale, relativo porta de entrada): verga de porta oude janela; em outra acepo: apoio lateral de prateleiras. A traduo optou pelo termo cognato emportugus. [N.T.]40 No original, acre-great (ingl.): grande, que ocupa um acre. [N.T.]41 Em algumas verses, o termo usado, em ingls, panel (painel), e no lintel (lintel). [N.T.]


33/36

naquele instante amaldioado. A Coisa no pode ser descrita - no h palavras para

tamanhos abismos de estridncia e loucura imemorvel, tamanhas contradies

assombradas a respeito de toda e qualquer matria, fora, e ordem csmica. Uma montanhacaminhou ou tropeou. Deus! de se admirar que, do outro lado da terra, um grandearquiteto tenha enlouquecido, e o pobre Wilcox delirado de febre naquele instanteteleptico? A Coisa dos dolos, a verde, pegajosa prole das estrelas havia despertado parareivindicar seus direitos. As estrelas estavam alinhadasnovamente, e o que um culto secularno foi capaz de fazer conscientemente, um bando de inocentes marinheiros havia feito semquerer. Depois de zilhes de anos o grande Cthulhu estava novamente liberto, e vido por

deleitar-se.

Trs homens foram varridos pelas flcidas garras antes que algum se desse conta.Deus os tenha em paz, se ainda houver paz no universo. Eram: Donovan, Guerrera, eAngstrom. Parker fugiu enquanto os outros freneticamente se arremetiam contra umainfindvel vista de rocha verde pelo barco, e Johansen jura que foi tragado para cima porum ngulo de alvenaria que no deveria estar l; um ngulo que era agudo, mas secomportava como se fosse obtuso. Ento apenas Briden e Johansen alcanaram o barco, e

seguiram desesperadamente para o Alerta, ao passo que a monstruosidade montanhosa searrastava pelas pedras cheias de lodo e hesitava, debatendo-se s margens da gua.

O barco a vapor no se danificara tanto a ponto de naufragar completamente, apesarda ida de todas as mos para a costa; e foi apenas questo de poucos instantes de empurresfebris para cima e para baixo entre o leme e os motores para ter o Alerta em marcha.Lentamente, em meio aos horrores distorcidos daquela cena indescritvel, ele comeou aagitar as guas letais; enquanto que na alvenaria da costa sepulcral no era da terra a

titnica Coisa das estrelas palrava e balbuciava como Polifemo42

amaldioando o fugaz

42 Na mitologia grega, existem dois personagens com o nome dePolifemo. O primeiro, um ciclope, filho dePosidon, Deus dos Mares, com a ninfa Thoosa, e vivia como pastor em uma caverna prxima Siclia, juntoao Etna. na caverna de Polifemo que Ulisses e os seus vo procurar comida. Percebendo a invaso, ociclope pe uma pedra na entrada da gruta e tranca a todos l dentro, s deixando sair as suas ovelhas. Ulisseslhe oferece vinho e o embebeda, para, ento, ceg-lo. Sem enxergar, Polifemo liberta Ulisses e seuscompanheiros sem querer e, furioso, atira ao lu pedras no mar para tentar atingir o navio dos inimigos. Maistarde, o ciclope pede ao pai, Posidon que se vingue de Ulisses, e o Deus dos Mares passa a atormentar aviagem do heri.


34/36


35/36

cometa, e de mergulhos histricos do poo lua e da lua de volta para o poo, tudo

animado por um coro cachinador de deformados, hilariantes deuses ancies e diabretes

verdes, de asas de morcego, zombeteiros, do Trtaro.Fora daquele sonho, viria o resgate - o Vigilante, o tribunal do vice-almirantado, as

ruas de Dunedin, e a longa viagem de volta para a velha casa prxima Egeberg. Ele nopodia contar - eles achariam que estava louco. Ele escreveria tudo o que veio a saber antesda morte chegar, mas sua esposa no deveria supor. A morte seria uma ddiva se pudesserasurar suas memrias.

Esse era o documento que eu li, e agora eu o pus na caixa de estanho ao lado do

baixo-relevo e dos documentos do Professor Angell. Com ele ir este meu registro - esteteste de minha prpria sanidade, em que reconstituo aquilo que eu espero nunca mais sereconstitua46. Eu contemplei tudo o que o universo pode oferecer de horror47, e mesmo oscus de primavera e as flores de vero talvez, depois de tudo, sejam veneno para mim. Maseu no acho que minha vida ser longa. Da mesma forma que meu tio se foi, que o pobreJohansen se foi, assim eu tambm irei. Eu sei muito, e o culto ainda vive.

Cthulhu tambm ainda vive, eu suponho, novamente encerrado naquele precipcio depedra que o escudou desde que o sol era jovem. Sua cidade amaldioada est mais uma vez

submersa, pois o Vigilante velejou at o lugar depois da tempestade de abril; mas seusministros na terra dele em terra ainda urram e cabriolam e fazem sacrifcios ao redor demonolitos com dolos coroados em locais ermos. Ele deve ter sido apanhado pelo naufrgioenquanto ainda em seu abismo negro, ou de outra forma o mundo, a essa altura, estariagritando de medo e frenesi. Quem conhece o fim? O que emergiu pode afundar, e o queafundou pode emergir. O asco aguarda e sonha nas profundezas, e a decadncia se espalhapor sobre as oscilantes cidades dos homens. Uma era vir - mas eu no devo e no posso

pensar! Deixe-me rezar para que, se eu no sobreviver ao fim deste manuscrito, meustestamenteiros ponham a cautela antes da audcia e cuidem para que ele no caia sobnenhum outro olhar.

46 No original, is pieced together that which I hope may never be pieced together again (ingl.). A expressopiece together (ingl.) pode ser entendida como juntar os pedaos. A traduo optou pelo sentido geral dotermo, de recompor, reconstituir. [N.T.]47 No original, all that the universe has to hold of horror (ingl.). [N.T.]


36/36

A Biblioteca Lovecraft deseja demonstrar sua gratido a Eulogio Garca Recalde por transcrever este texto.Este texto foi convertido em PDF por Agha Yasir www.ech-pi-el.come traduzido para o portugus por KA- AK-KIM www.contoaberto.org.

Documents

O Chamado de Cthulhu 2