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Olho as montanhas e desce de suas vertentes o perfume de seus sedosos véus. Olho as alturas e só vejo o sol omnipotente a estender-me suas mãos luminosas como qualquer enamorado. A vida ou nada. A vida apenas ou qualquer destino. Quando o pinhal, trémulo, floresce e dos nós que brotam do seu corpo cantam as novas crias do verão com fome fresca: a fome e apenas vida. Este piar, meu peito, o movimento de tudo o que está cansado e vive. Não está tudo animado de uma fome magestosa e terna? Uma fome vigia para que a vida continue, sendo canto, para que a vida continue, sendo vida. Uma fome ou este eu que aqui, no centro da bondade, irradia os clamores que fazem da manhã um sortilégio suavemente deitado: baixo os olhos e pousa-se o coração como uma ave nos laboriosos campos delicados da cor do mel , olho mais fundamente e quase não vejo outra carícia que não seja beleza. É o silêncio o que me impregna inteiro esta distância, o que me dá a altura inconveniente de onde as coisas se incorporam à sua divindade. Mas este curso que em meu dorso palpita irresistível sabe que o mundo é mais, que vida é vida, que o que o sangue pelas veias leva é uma bravia torrente que não logra deter-se alegre: mana e mana com imprevisto curso lamentoso sua força cega: geme e goza e canta porque a vida é isso, trino ardente, porque a vida é isso, força cega, força que lavra o mundo primoroso e o homem reclinado que dormita no pinhal derradeiro. (La meé.a-física) RASHID: O COLAR DESFEITO CONTA UM A "Única Grande Ode", de Muhammad Rashid, recordou-me Usbek, o estrangeiro em Paris das "Lettres Persanes". Antes de conhecer este poeta que nasceu com nome (e nisso se distingue de An- tónio Barahona da Fonseca, poeta anónimo) eu fizera a mesma per- gunta cretina daquele parisiense que se julga o expoente máximo das civi- lizações universais: "ah, ah, Mon- sieur est Persan? C'est une chose bien extraordinaire! Comment peut- ·on être Persan?" Como se pode ser M. Rashid em Lisboa, urbe civilizadamente ocidental, nos anos da expansão espacial? Acreditei, e disso não sei se me penitencie agora, que tão peregrina circunstância pudesse ser uma extravagância intelectual à maneira de Pessoa , deriva personal com mais interesse charadístico do que poético, no sentido em que a poesia se identifica com o ser e não com o nome. A menos que se trate do Nome, nome do Ser Supremo, evidentemente. Mas acontece que Rashid existe, ou existiu, não como charada teatral, mas como vi(d)a iniciática para alcançar o ser. Pro- jecto ambicioso de que o "Ritual de Passagem", primeiro volume da incompleta trilogia "Aos Pés do Mestre" , nos dri .l confirmaçã..>. SEmõi[ 79

O COLAR DESFEITO · 2019. 3. 3. · jecto ambicioso de que o "Ritual de Passagem", primeiro volume da incompleta trilogia "Aos Pés do Mestre", nos dri .l confirmaçã..>. SEmõi[

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Page 1: O COLAR DESFEITO · 2019. 3. 3. · jecto ambicioso de que o "Ritual de Passagem", primeiro volume da incompleta trilogia "Aos Pés do Mestre", nos dri .l confirmaçã..>. SEmõi[

Olho as montanhas e desce de suas vertentes o perfume de seus sedosos véus.

Olho as alturas e só vejo o sol omnipotente a estender-me suas mãos luminosas como qualquer enamorado.

A vida ou nada. A vida apenas ou qualquer destino. Quando o pinhal, trémulo, floresce e dos nós que brotam do seu corpo cantam as novas crias do verão com fome fresca:

a fome e apenas vida. Este piar, meu peito, o movimento de tudo o que está cansado e vive. Não está tudo animado de uma fome magestosa e terna?

Uma fome vigia para que a vida continue, sendo canto, para que a vida continue, sendo vida. Uma fome ou este eu que aqui, no centro da bondade, irradia os clamores que fazem da manhã um sortilégio suavemente deitado:

baixo os olhos e pousa-se o coração como uma ave nos laboriosos campos delicados da cor do mel ,

olho mais fundamente e quase já não vejo outra carícia que não seja beleza.

É o silêncio o que me impregna inteiro esta distância, o que me dá a altura inconveniente de onde as coisas se incorporam à sua divindade.

Mas este curso que em meu dorso palpita irresistível sabe que o mundo é mais, que vida é vida, que o que o sangue pelas veias leva é uma bravia torrente que não logra deter-se alegre: mana e mana com imprevisto curso lamentoso sua força cega:

geme e goza e canta porque a vida é isso, trino ardente, porque a vida é isso, força cega, força que lavra o mundo primoroso e o homem reclinado que dormita no pinhal derradeiro.

(La meé.a-física)

RASHID: O COLAR DESFEITO

CONTA UM

A "Única Grande Ode", de Muhammad Rashid, recordou-me Usbek, o estrangeiro em Paris das "Lettres Persanes". Antes de conhecer este poeta que nasceu com nome (e nisso se distingue de An­tónio Barahona da Fonseca, poeta anónimo) eu fizera a mesma per­gunta cretina daquele parisiense que se julga o expoente máximo das civi­lizações universais: "ah, ah, Mon­sieur est Persan? C'est une chose bien extraordinaire! Comment peut­·on être Persan?"

Como se pode ser M. Rashid em Lisboa, urbe civilizadamente ocidental, nos anos da expansão espacial? Acreditei , e disso não sei se me penitencie agora, que tão peregrina circunstância pudesse ser uma extravagância intelectual à maneira de Pessoa, deriva personal com mais interesse charadístico do que poético , no sentido em que a poesia se identifica com o ser e não com o nome. A menos que se trate do Nome, nome do Ser Supremo, evidentemente. Mas acontece que Rashid existe, ou existiu , não como charada teatral , mas como vi(d)a iniciática para alcançar o ser. Pro­jecto ambicioso de que o "Ritual de Passagem", primeiro volume da incompleta trilogia "Aos Pés do Mestre" , nos dri .l confirmaçã..>.

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Page 2: O COLAR DESFEITO · 2019. 3. 3. · jecto ambicioso de que o "Ritual de Passagem", primeiro volume da incompleta trilogia "Aos Pés do Mestre", nos dri .l confirmaçã..>. SEmõi[

Por "ser" entendo o real que é em estado de graça, luz contra­posta à opacidade civilizada duma realidade que p_erdeu a graça, ficou des-graçada. Rashid '!ra A.B. da Fonseca em estado de graça. Que não dura. não é contínua, mas ainda explode intervalarmente. E por isso me lembrei de Usbek, representante do estado de ingenuidade (liberdade) primordial, de quando, por exemplo, escreve a t{oxane:

"Que voos êtes heureuse, Roxa­ne. d 'être dans le doux pays de Perse. et non pas dans ces climats empoisonnés ou l'on ne connoit ni la pudeur ni la verto! Que voos êtes heureuse! Vóus vivez dans inon sérail comme dans le séjour de 1 'innocence, inaccessible aux atten­tats de tous les humains"

E com a candura e ingenuidade de Usbek passo à nostalgia do estado primordial de inocência e necessi­dade de encontrar as pontes de li­gação com o lugar edénico, atitudes religiosas próprias de Rashid, o amante dos prazeres naturais:

''Tenho dos meus antepassados árabes os olhos castanho-curvos,

a fronte escarpada e a destreza na luta Deles herdei o Invisível e a noção de conforto ao nível do sol(o) e os lícitos prazeres que ensinam a usar dos frutos da terra, -oh, todos os prazeres, o haxixe e a luxúria. ,-- magnífica, a lu­xúria ; - sobretudo o erotismo ~ a pregui ça "

80 SE m&'

Transcrevi um fragmento final da ode, forçoso será agora regressar a outro princípio. O princípio de que parto, entretanto, é sempre o mesmo: este espaço que habitamos, tal como o habitamos, está saturado de uma realidade intransitável. É preciso que manifestemos um sonho neste lu­gar para que se possa enfim dormir.

Muhammad Rashid-António Ba­rahona da Fonseca é um estranho poeta cuja obra S(( torna difícil de agarrar em termos de visão de con­junto, por ser fragmentária e in­completa. Não somente "Aos Pés do Mestre" (MR) e "Pátria Minha" (ABF) são textos cujas partes finais não foram ainda publicadas (o que é lamentável, pois trata-se de obras muito belas e de estilo francamente original), mas também a "Única Grande Ode'' é um projecto poe­mático, não podendo ser considerada um texto acabado.

"" CONTA DOIS

A Ode tem características de poema em formação, apesar de se apresentar como grande e única (no sentido de unida; a noção de uno é frequente nas obras do autor, recordemos o "Amor Único"). É claro que a . obra dos poetas vivos nunca é definitiva. Porém, a Ode assume a incompletude como pro­cesso poético homólogo da vida

.4 pessoal; em curso · Qe fprm~ão e aperfeiçoamento. O poema. · es­pelha o que em Rashid é proéura incessante de uma maturidade in­terior que possa exprimir-se pelo acesso à serenidade absoluta. Se­renidade que pode significar a pu­rificação das muitas amarguras sofridas durante o percurso: "Que a acumulação das máculas seja lavada", prescreve Çankara.

Acumulação.

Talvez pudesse dizer que tive um sonho. Os livros que me inquietam vêm por vezes povoar-me as noites. No meu sonho havia uma palavra obcecante . repetida até ao deses­pero: acumulação. Digerida a ode, aparecia reduzida a um problema central , o da acumulação. Podia ser a sobreposição de frases sem cone­xão lógica , ou o amontoado de pro­posições de natureza heterogénea:

"Escrever imediatamente quando Deus quizer". O presente, neste caso, não se articula com o futuro, porque talvez o poeta não tenha encontrado a verdadeira conexão com o senhor da decisão: Deus. A acumu­lação sintáctica seria assim mero reflexo visível do conflito invisível entre Eu e Deus. Os dois nomes não são rigorosamente substituíveis, não correspondem ao Um da umca ode. Pelo contrário, as duas entida­des acumulam-se. Na verdade, há três identidades acumuladas - Eu (Rashid), Deus, e Ele (ABF) -, trindade imperfeita porque per-feitamente divisível, dividida e con­flituosa. Seria preciso que os três fossem um só, algo como a assunção do "Amor Único".

Procura-se a unidade geradora de libertação. A procura pressupõe um percurso, logo, uma infinitude. Enquanto Ulisses viaja, Ítaca não pode ser considerada ponto final ("Pátria Minha"). De resto, não há pontos finais nos livros -do autor, talvez porque não há possibilidade de usar esse tipo de pontuação. Seria falsear na escrita o que na vida é incompletude e devir. O percur­so mostra-se sobressaltado, pois a viagem é feita por etapas breves, subitamente interrompidas por ou­tros destinos que se cruzam com o do sujeito. O cruzamento mais dolo­roso será o de ABF com MR. Como a intersecção se ; situa no plano interior, a viagem não tem expressão geográfica ou, a tê-la, será de ordem simbólica. Por isso o terceiro volume de "Aos Pés do Mestre" se intitula "O Peregrino Imóvel". Trata-se da imobilidade específica do êxtase, se bem que Rashid nunca o atinja: a acumulação (de experiências) não conduz ao êxtase, mas à exaus­tão. Em todo o caso, a tendência itinerativa manifesta-se pela contem­plação.

CONTA TRÊS

Rashid é um ser puro, a candura de "Aos Pés do Mestre" só pode ser a de criança realmente abençoada por Deus. Mas na Ode já cada vez a criança é mais alta: o crescimento arrasta a decomposição de Rashid . Quando ABF fala, na Ode, pela boca do poeta islâmico, a atmosfera mística começa a diss01•:er-se, a do-

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çura extática dá lugar ao mar amar­go. O conflito entre o sagrado e o profano, entre o Invisível e o visível, entre o som inaudível e o ruído. Se ABF desaparecesse da vida de Rashid, talvez a acumulação de ruídos provocada pelo primeiro pudesse ser purificada pelo silêncio contínuo do segundo. Rashid é a consciência posta à escuta do si­lêncio: "Que tenha fundas raízes em cada um o desejo do conhecimento do Ser", ainda Çankara.

MR e ABF são a mesma pessoa, não se dando sequer o caso de pelo meio aparecer a persona. Apenas, o primeiro corresponde a uma opção religiosa que surge como via de re­denção para o segundo, acontecendo entretanto que a a-identidade de ABF é demasiado forte para se deixar submergir pelo outro que nasceu com Nome. O conflito entre as duas ati­tudes estampa-se claramente em "Pátria Minha", obra do poeta profano ("Procura-se: Rashid, o Bem Dirigido I I - Procura-se amanhã de manhã quando I houver luz, disse para uma presença de mim que perdera o nome de Barahona I podia ser um agora e logo à noite outro"), aquele cuja falta de fé é mais forte que a fé do poeta islâmico. Na "Única Grande Ode" também há acumulação de páginas da vida de ambos, ABF começa a corroer a identidade de Rashid. A submissão do Bem Dirido consente que o outro lhe devore a inocência. Ítaca corres­ponde, assim, ao lugar da identidade a recuperar.

A fragmentação do texto - acu­mulação de citações, mantras, expe­riências, incidentes, páginas soltas de diário sonâmbulo - relaciona-se com o despedaçamento do sujeito, vida opaca de que rebentam pontos luminosos. Os momentos de trans­parência fulgurante são os que me­recem ser escritos e comungados em leitura . Entre eles não há pontes de ligação.

CONTA QUATRO

O sonho: era um poema contí­nuo, escrito por acumulação, folhas coladas a todo o comprimento das noites. Colagem. " Papel e te­soura " . Depois o colar partiu-se , as cartas espalharam-se pelo ar , algumas perderam-se . Não há Ii-

gação entre as pedras, não há o fio do colar. De que natureza eram as ligações, que pedras foram perdi­das? Só quandQ forem achadas se poderá conhecer a sua natureza.

No diário comum juntam-se os dias, um após outro. Mas na Ode os dias soltaram-se, não formam sequências temporais: "Digam em­bora que me biografei vou escre­ver uma página da minha vida". Note-se, não se vai escrever um li­vro limitado por princípio e fim, mas uma pagma. A acumulação de páginas, não linearmente cola­das, ~á a imagem do percurso intermitente. noite sem ligação com o dia, dia .sem ligação com o tempo. Tempo sem· ligação com o corpo. É como um poema espe­cular feito em pedaços. Diz-se, quando se parte um espelho, haverá sete anos de azar. Que Rashid não precise de tanto para reconstruir o seu "Amor Únicv". Afinal, foi isso o que se partiu. Sobram peda­ços do filme, lembranças doces e amargas, pedras do colar desfeito. É preciso um laço que una tudo outra vez, fio que dê a volta e funda princípio e fim: "OM MANI PADME HÜM". está escrito na Ode .. OM designa o todo , a assunção do Ser Um. Acumulam-se fórmulas mági­cas obsessivamente reiteradas, na tentativa de exorcismar a duali­dade e alcançar a consciência per­feita do Uno. Mas entre os dois

Rashid e António Barahona da Fonseca - talvez não haja ele­mentos possíveis de ligação. Pro­vavelmente o Ser está acima da resolução do conflito entre sagrado e profano, o fio do colar pode não participar da natureza de nenhum deles. Podem as nascentes do mel situar-se numa ilha impossivelmente outra.

CONTA CINCO

As pedras têm diferente confi­guração, divergindo também de valor . . Há fragmentos na Ode de irreal beleza mística, tão caracte­rísticos de MR-ABF, trechos pro­fanos mais inclinados à formula­ção dos preceitos da arte poéti­ca de ABF, e luminosos instantes daquele erotismo cândido que · fazem de "Aos Pés do Mestre" um jardim das delícias. " Untei o pénis com

mel'' é um convite específico de Rashid.

Colar desfeito, ainda, porque as águas de um e outro tendem agora a juntar-se num processo de dissolução de ambos. Por isso· há necessidade de mais um renas­cimento - "Já não sei quantas vezes nasci" - , forma de superar as limitações impostas pelo con­flito entre civilização ocidental e tradição oriental, dando-se à luz um corpo novo, perfeito e uno:

"Chegou a hora de ultrapassar os limites po mundo a fim de habitar na cara do terror e dos anjos, lou­cura possível ou tiestino à Fausto, ou então transcendência total, ilu­minação, coincidência com a luz, ou morte imunda como um parasita"

Não . é a morte de Rashid que se deseja, mas a liquidação da duali­dade. Se não houver a coincidência com a luz, ou a transcendência total, o sujeito não conseguirá sobreviver a um destim> vulgar e sem história. Há que chegar ao "Prado do Repouso" em situação de graça, muito para além do bem e do mal.

Ou muito para além do prazer e da dor, numa Ítaca edénica onde o mel corre e as abelhas esvoaçam atraídas pela luz. Até chegar a esse lugar que se situa aqui e agora, sendo embora uma ilha fora da rea­lidade, o navegador solitário terá de enfre_ntar um imenso mar amargo.

A "Unica Grande Ode" é, então, não uma obra acabada, mas um texto (a)morosamente despedaçado, em vias de conjugar as pedras soltas numa construção que possa enfrentar a vida nova, iluminada. Acontece entretanto que, se é amargo o mar a percorrer, também a ressurreição é uma "aurora que não desponta facilmente". Para que a manhã se cumpra há necessidade de mantras, fórmulas, filtros má­gicos. O mais importante filtro é exactamente o mel, bebida apazi­guadora, iluminante, capaz de res­suscitar os mortos. Tão central se torna essa procura da regeneração que o seu símbolo dará origem à temática central de u'ma obra de Rashid a publicar futuramente: ' 'A Vida das Abelhas ' '. •

Mari<.L E:, tela Guedes

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