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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA GEDEÃO MENDONÇA DE MOURA O conceito marxiano de trabalho Salvador 2012 1

O conceito marxiano de trabalho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

GEDEÃO MENDONÇA DE MOURA

O conceito marxiano de trabalho

Salvador 2012

1

GEDEÃO MENDONÇA DE MOURA

O CONCEITO MARXIANO DE TRABALHO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura

Salvador2012

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente ao Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de

Moura, orientador deste trabalho, pelo incentivo constante para que eu me aprofundasse

no estudo do pensamento marxiano e pela confiança e apoio que, sem dúvida, foi o que

tornou possível a realização desta pesquisa.

Agradeço ao Programa de Educação Tutorial (PET-Filosofia), ao qual estive

vinculado como bolsista durante quase três anos e a todos os camaradas com quem

convivi e trabalhei nesse espaço onde tive por diversas vezes a oportunidade de

apresentar a minha pesquisa, submetendo-a à discussão e crítica que foram

indispensáveis para a realização deste trabalho.

Agradeço ao Prof. Dr. Genildo Ferreira da Silva, tutor do PET-Filosofia, pela

amizade e pelo interesse em acompanhar a minha pesquisa desde o início até o término.

Agradeço à minha família pelo apoio incondicional aos meus estudos.

Agradeço, finalmente, a todos os camaradas com quem convivi mais

proximamente na graduação e que de uma forma ou de outra, por meio de diversas

discussões e debates informais, contribuíram para o amadurecimento desta pesquisa.

RESUMO

Partindo de duas obras de Karl Marx, a saber, os Manuscritos Econômico-Filosóficos de

1844 e O Capital, o objeto desta pesquisa é fazer uma análise do conceito marxiano de

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trabalho, tratando de abordar a seguinte questão: como o trabalho humano, que, para

Marx, é a origem e o fundamento do capital, aparece, especificamente na forma de

sociabilidade burguesa, como uma atividade que está subordinada e é dependente desse

último elemento, qual seja, o capital? Diante dessa inversão identificamos o seguinte: o

trabalhador que antes aparecia como sujeito do processo de trabalho, a partir do

momento que esse processo passa a ser gerido pelo capitalista, incorpora as

características de objeto, transformando-se apenas em mais um elemento do processo

produtivo. Seguindo de perto a análise marxiana do processo de trabalho, pensamos que

essa inversão é o resultado do fenômeno da subordinação do trabalho ao capital, ou para

usar a linguagem do jovem Marx dos Manuscritos de 1844, é o resultado da alienação e

do estranhamento que perpassa o processo de trabalho em sua forma propriamente

burguesa.

Palavras-chave: Trabalho, Capital, Sujeito, Objeto, Alienação, Estranhamento.

SUMÁRIO

INTRUDUÇÃO ................................................................................................................6

CAPÍTULO I - O conceito marxiano de trabalho nos Manuscritos de 1844...81. Uma filosofia da atividade ....................................................................................82. A atividade humana e o engendramento de si ....................................................10

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3. O trabalho estranhado ou

alienado ......................................................................134. O trabalho estranhado e a cisão entre a essência e existência do trabalhador ....165. Conclusão ............................................................................................................2

0

CAPÍTULO II - O conceito marxiano de trabalho: o aspecto do valor de

uso..................................................................................................................................22 1. O processo de trabalho e a relação homem/natureza ............................................23 a) O trabalho em sua forma especificamente humana ..............................................25 2. Os elementos do processo de trabalho .................................................................27 3. Produto do trabalho e o trabalho pretérito ...........................................................30 a) Trabalho vivo e consumo produtivo ....................................................................31 4. O trabalho concreto ..............................................................................................32 5. Conclusão .............................................................................................................33

CAPÍTULO III - O conceito marxiano de trabalho: o aspecto do valor .........35 1. O processo e o produto do trabalho propriamente capitalista ..............................36 a) O trabalho abstrato ...............................................................................................37 2. O processo de trabalho e a produção de mais valor .............................................39 a) A força de trabalho e a relação trabalho necessário/trabalho excedente..............39 3. A subordinação do trabalho ao capital .................................................................42

CONCLUSÃO ..............................................................................................................45

REFERÊNCIAS ...........................................................................................................47

INTRODUÇÃO

Karl Marx é hoje um clássico. Não apenas um clássico da economia política, da

sociologia, etc., mas sobretudo um clássico da história da filosofia. Um clássico

multifacetado, portanto. Retornamos a Marx aqui, enquanto um clássico, para analisar

um conceito que pensamos ser fundamental para compreender a sua obra, e assim a sua

filosofia, qual seja, o conceito de trabalho. Se, por um lado, não existe uma obra

específica em que o pensador alemão trate exclusivamente desse conceito, por outro, em

muitas de suas obras é possível encontrar aqui e ali alguma alusão ao conceito de

trabalho. Nossa análise estará centrada em duas obras de Marx, a saber, os Manuscritos

Econômico-Filosóficos de 1844 e O Capital. Trataremos de mostrar que o conceito de

trabalho que Marx elabora naquela obra de juventude, embora seja distinto, não se

apresenta como radicalmente diferente daquele elaborado nesta obra de maturidade.

Pensamos que isso se patenteia, principalmente, na semelhança da problemática do

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trabalho estranhado ou alienado com o problema da subordinação do trabalho ao capital.

Pois tanto um como outro fenômeno são uma consequência direta da seguinte inversão:

o trabalho que por certo foi o principal fator que engendrou o capital, na desenvolvida

forma de sociabilidade burguesa passa a ser engendrado por esse. Para tanto, dividimos a nossa investigação em três capítulos. No primeiro vamos

analisar o conceito marxiano de trabalho a partir dos Manuscritos de 1844. Pois é neste

texto que podemos acompanhar a gênese desse conceito, mostrando rapidamente a

influência dos pensamentos de Hegel e Feuerbach em sua formulação. Abordaremos

ainda a problemática do trabalho alienado ou estranhado e sua implicação direta na vida

do trabalhador. E por fim trataremos da solução que Marx dá para a superação dessa

forma de trabalho, que em vez de ser autocriação e afirmação livre do homem é antes de

tudo a negação de si.No segundo capítulo, tento como base o item 1 do capítulo V do livro I d’O

Capital, trataremos do conceito marxiano de trabalho do seu aspecto de produtor de

valor de uso. Ressaltaremos que enquanto produtor de valor de uso o trabalho é

condição necessária de existência do homem, e é a finalidade primeira de seu

intercâmbio com a natureza. Trataremos do trabalho em sua forma especificamente

humana, isto é, o trabalho enquanto atividade adequada a fins. Destacaremos em

seguida a importância dos elementos que compõem o processo de trabalho, dando

especial atenção aos instrumentos ou meios de trabalho. Por fim procuraremos

relacionar o trabalho enquanto produtor de valor de uso com a forma de trabalho que

Marx denomina de trabalho concreto.No terceiro e último capítulo, tendo como base algumas partes dos capítulos V,

XII e XIII do livro I e do capítulo XLVIII do livro III d’O Capital, trataremos do

conceito marxiano de trabalho do seu aspecto de produtor de valor, isto é, do modo

como o trabalho é efetivado numa forma de sociabilidade específica, mais precisamente,

na forma de sociabilidade burguesa. Analisaremos essa forma de trabalho que Marx

também denomina de trabalho abstrato, mostrando que este é condição fundamental

para a elaboração do produto do trabalho em sua forma especificamente mercantil, que

não é outra coisa senão a mercadoria. Procuraremos ainda fazer uma análise da

mercadoria força de trabalho e da imprescindível necessidade dela para o processo de

valorização de valor, processo que é inseparável de sua própria exploração. Por fim

mostraremos que é o trabalho enquanto produtor de valor que engendra o fenômeno da

subordinação do trabalho ao capital.

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É neste ponto que seremos tentados a ver uma semelhança entre o problema do

trabalho alienado ou estranhado que analisaremos a partir dos Manuscritos de 1844 com

a questão da subordinação do trabalho ao capital que abordaremos, a partir de O Capital,

na parte final do último capítulo desta nossa investigação.

CAPÍTULO I

O conceito marxiano de trabalho nos Manuscritos de 1844

Neste primeiro capítulo faremos uma análise do conceito marxiano de trabalho, no

sentido amplo de atividade ou práxis, a partir dos Manuscritos Econômico-Filosóficos

de 18441. A nossa análise estará focada, mais precisamente, nos seguintes tópicos desse

texto de Marx: Trabalho estranhado e propriedade privada e Crítica da dialética e da

filosofia hegelianas em geral, e nosso objetivo com isso é verificar a gênese desse

conceito mostrando que ele assume um papel central para a composição da teoria de

Marx, mais precisamente para a sua filosofia.

1. Uma filosofia da atividade

A filosofia de Marx, bem como a sua teoria econômica, estão assentadas sobre o

grande tema da crítica da economia política, do qual o pensador alemão se ocupou

durante praticamente toda a sua extensa atividade intelectual. Talvez por isso mesmo a

sua filosofia seja inseparável de sua teoria econômica, sendo que ambas se constituem

como seus principais instrumentos de crítica à forma de sociabilidade que se tornou

hegemônica com o advento da modernidade, a saber, a forma de sociabilidade burguesa.

1 É importante destacar logo de início que essa obra nunca foi preparada para publicação pelo próprio Marx. Os Manuscritos são um conjunto de anotações de leituras feitas pelo autor no ano de 1844 quando ele se encontrava em Paris. A primeira edição só foi publicada em 1932, portanto, 88 anos depois de escrito.

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Pensamos que não se compreende de maneira satisfatória a filosofia de Marx sem que se

tenha um entendimento razoável de sua teoria econômica, ou vice-versa. Não obstante,

a base de ambas as teorias, que constituem o pensamento marxiano como um todo,

repousa sobre o seu conceito de trabalho. É possível afirmar que este conceito, assim

como o tema da propriedade privada, está presente desde os primeiros escritos de Marx

até os últimos. Daí se pode concluir toda a relevância desse conceito que é o tema

principal da presente investigação.Marx é um legítimo herdeiro, não só dos grandes teóricos da economia política

clássica, sobre a qual a sua crítica se volta, ele também é um herdeiro direto da filosofia

clássica alemã e do seu mais importante e último representante: Hegel. A filosofia

clássica alemã se constitui como a filosofia idealista por excelência.2 A primeira vista

pode parecer paradoxal, mas o conceito fundamental sobre o qual essa filosofia está

alicerçada é justamente o conceito de atividade. O homem, o mundo, a cultura, etc., para

os pensadores que representaram essa filosofia é o resultado da atividade humana. O

homem é aquele que produz a si mesmo por meio de sua auto-atividade, e embora esta

atividade seja a atividade da consciência, do intelecto ou do espírito, o fato é que esse

conceito central da filosofia idealista alemã exerceu uma influência significativa sobre o

pensamento de Marx e na formulação do seu próprio conceito de atividade ou de

trabalho.3 Segundo Sánchez Vázquez,

A filosofia idealista alemã é uma filosofia da atividade, entendida esta atividade como da consciência ou do espírito. Precisamente por isso, principalmente na forma que assume em Hegel, como filosofia do saber absoluto, abriu caminho – ao se inverter radicalmente o conteúdo dessa atividade – à filosofia marxista da práxis.4

O conceito de atividade marxiano, como atividade prático-sensível do homem, como

bem assinala o filósofo espanhol, tem a sua origem no conceito de atividade próprio da

filosofia idealista alemã. No entanto, a diferença fundamental entre um e outro conceito

está na mudança do conteúdo que uma e outra filosofia conferem ao termo atividade. A

atividade a qual Marx faz referência em seu conceito é a atividade prática do homem, ao

2 Estamos nos referindo aqui diretamente ao Idealismo Alemão, movimento que se deu no campo da filosofia e que teve início com o sistema filosófico de Kant, passando por Fichte, Schelling e culminando na obra de Hegel, considerado por muitos historiadores da filosofia como o último e mais representativo pensador desse movimento filosófico. 3 Nas obras de juventude de Marx, e principalmente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 que aqui é objeto de nossa análise inicial, os termos “atividade” e “trabalho” são termos que, guardadas as devidas proporções, se equivalem.4 VÁZQUEZ, Sánchez, 2007, p. 63.

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passo que a atividade a qual os filósofos idealistas se referem é a atividade da

consciência ou do espírito, ou ainda à atividade teórica.Sendo assim podemos dizer que a filosofia de Marx é também uma filosofia da

atividade, se for levada em conta a ressalva feita acima. Essa filosofia marxiana da

atividade ficou conhecida como uma filosofia da práxis, uma filosofia que a partir do

conceito de trabalho, tem como finalidade primeira a transformação radical do atual

estado de coisas. Nessa medida, portanto, essa filosofia se configura como uma filosofia

propriamente da ação. Com efeito, atividade, trabalho e práxis, embora denotem

conceitos, em última instância, distintos, são termos que em muitos casos se equivalem

no interior da teoria de Marx, e que nesta assumem a função de categoria central. Para

Sánchez Vázquez,

Depois de examinar a concepção marxista da Práxis, chegamos à conclusão de que essa categoria é central para Marx, na medida em que somente a partir dela ganha sentido a atividade do homem, sua história, assim como o conhecimento. O homem se define, certamente, como ser prático. A filosofia de Marx ganha, assim, seu verdadeiro sentido como filosofia da transformação do mundo, isto é, da práxis.5

Cabe assinalar que o conceito de práxis em Marx, contrariamente ao conceito de

práxis dos gregos antigos,6 faz referência diretamente à atividade prática do homem, ao

seu contínuo intercâmbio com a natureza e a necessária transformação e humanização

dela. Por fim, o conceito marxiano de práxis faz referência também à atividade política

ou à atividade revolucionária. No mais, é importante esclarecer que esse mesmo

conceito não se configura como uma oposição entre teoria e prática, práxis é, na

verdade, a unidade necessária de ambas.

2. A atividade humana e o engendramento de si

Sendo a filosofia marxiana uma filosofia da práxis – e práxis aqui sempre deve ser

entendida como a atividade produtiva do homem, atividade adequada a fins, em

primeiro lugar –, com efeito, essa filosofia tem como categoria central o trabalho

humano. Para Marx, é por meio de sua atividade prático-sensível que o homem não

apenas provê as suas necessidades cotidianas e mais imediatas, o homem por meio do

seu próprio trabalho produz a si mesmo. Isso quer dizer que o homem é o resultado de

5 Idem, p. 169 e 170.6 Os gregos antigos faziam uma distinção entre práxis e poiésis. A práxis estava ligada à atividade teorética, aquele tipo de atividade que tem um fim em si mesmo e não produz um objeto externo ao sujeito. Já a poiésis estava ligada à atividade prática, aquele tipo de atividade que tem por fim a fabricação ou a produção de um objeto externo ao sujeito da ação. A atividade do artesão se configurava, portanto, como poiésis, ao passo que a atividade do filósofo se configurava como práxis.

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sua própria atividade produtiva, através do trabalho o homem engendra a si mesmo,

mais ainda, mediante o trabalho o homem tem seu nascimento histórico; mais

precisamente, o homem se torna um ser histórico, uma vez que esse nascimento é obra

de suas próprias mãos.

Mas, na medida em que, para o homem socialista, toda a assim denominada história mundial nada mais é do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano, enquanto o vir a ser da natureza para o homem, então ele tem, portanto, a prova intuitiva, irresistível, do seu nascimento por meio de si mesmo, do seu processo de geração. 7

Nessa medida, a história enquanto história do homem é o resultado de sua própria

atividade, é criação coletiva de sucessivas gerações. Assim, a história não é obra do

mero acaso nem de uma providência qualquer. O homem ao produzir a si mesmo

produz, por consequência, a própria história, a cultura. Não resta dúvida de que esta concepção marxiana de que o homem se autoproduz

através do próprio trabalho ocupa um lugar central na filosofia do pensador alemão.

Para Leandro Konder, “Esta concepção do homem como autocriação, como ser que se

produz a si mesmo pelo trabalho humano, é um dos fundamentos essenciais da filosofia

marxista”.8 Não obstante, essa concepção está intimamente lidada à concepção

hegeliana de trabalho. Segundo o próprio Marx, é mérito de Hegel ter descoberto esta

concepção de que o homem é o resultado do seu próprio trabalho, ao afirmar que,

A grandeza da ‘Fenomenologia’ hegeliana e de seu resultado final – a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e gerador – é que Hegel toma, por um lado, a autoprodução do homem como um processo, a objetivação (Vergegenständlichung) como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização (Entäusserung) e supra-sunção (Aufhebung) dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como resultado de seu próprio trabalho.9

Para Marx, Hegel é o primeiro pensador que realmente apreende a essência do trabalho.

Cabe ele a descoberta de que o homem verdadeiro, efetivo, o homem real, concreto e

objetivo é o resultado direto do seu próprio trabalho. Nesse ponto nos parece que Marx

não evita a herança hegeliana, mas, pelo contrário, a acolhe naquilo que há de

revolucionário. Pois a concepção de que o homem é o resultado de sua própria

atividade, embora esta assuma em Hegel e Marx conteúdos diferentes, não deixa de ser

uma concepção revolucionária. Vejamos. Uma vez que o homem faz a si mesmo, no

sentido de que é o principal agente e responsável direto por cada ação; coletivamente

7 MARX, 2009, p. 114. 8 KONDER, 2009, p. 40.9 MARX, 2009, p. 123.

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são os homens que, por meio de suas ações, criam a própria história e o conjunto das

relações sociais, portanto, nada impede que os homens conjuntamente venham a mudar

conscientemente o curso da história e a base sobre a qual se assentam as relações

sociais, a saber, a forma de sociabilidade burguesa. Mesmo porque toda forma histórica

de sociabilidade é obra dos próprios homens e não o resultado de uma razão ardilosa e

superior que impõe aos mesmos um destino inexorável.Marx, portanto, não vê nenhum problema em acolher a concepção hegeliana de

que o homem efetivo é o resultado do seu próprio trabalho. Mesmo porque esta

concepção de que o homem vem a ser mediante seu próprio trabalho constitui a base da

filosofia marxiana. Ainda assim, Marx não deixa de criticar Hegel, por este conceber o

trabalho humano apenas em seu aspecto positivo10, esquece ou se omite de ressaltar que

o trabalho humano numa determinada etapa do desenvolvimento histórico do homem,

mais precisamente no modo de produção capitalista, adquire um aspecto eminentemente

negativo. Diz Marx:

Provisoriamente, antecipemos apenas o seguinte: Hegel se coloca no ponto de vista dos modernos economistas nacionais. Ele apreende o trabalho como a essência, como a essência do homem que se confirma; ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu [lado] negativo. O trabalho é o vir-a-ser para si (Fürsichwerden) do homem no interior da exteriorização ou como homem exteriorizado. O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual.11

Como temos afirmado, segundo o ponto de vista do próprio Marx, o grande mérito e

achado de Hegel12 é ter reconhecido e concebido que a essência do homem é o trabalho,

uma vez que este é a sua atividade vital por excelência, através do qual o homem vem a

ser historicamente. Esta concepção hegeliana do trabalho em geral – porque não se

refere a um modo particular de trabalho, isto é, a maneira como o mesmo se dá de forma

alienada ou estranhada numa determinada forma de sociabilidade –, traz em si só o

10 Antes de prosseguir, e para evitar qualquer ambiguidade entre os termos “positivo” e “negativo” que a partir de agora faremos uso, é preciso esclarecer que quando Marx afirma que Hegel vê apenas o aspecto positivo do trabalho, ele está querendo dizer com isso que o velho filósofo concebe a atividade laboral do homem apenas como a afirmação e confirmação constante deste; confirmação daquilo que o homem é; em suma, afirmação da sua essência. Mais exatamente, Hegel não atenta para o fenômeno que Marx denomina de trabalho estranhado ou alienado que é peculiar à forma como o mesmo se efetiva na sociabilidade burguesa, e como tal é a mais completa negação do homem. Queremos ressaltar ainda que ambos os termos “negativo” e “positivo” que empregamos nesta parte da nossa investigação não correspondem, necessariamente, ao mesmo sentido com que são empregados por Hegel em sua obra. 11 MARX, 2009, p. 124.12 “Aos olhos de Marx, o grande mérito de Hegel consiste em ter assinalado esse aspecto positivo do trabalho. Não ter assinalado seu aspecto negativo – quando este adota a forma concreta de trabalho alienado – constitui, segundo Marx, sua limitação”. (VÁZQUEZ, Sánchez, 2007, p. 78).

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aspecto positivo do mesmo, ao afirmar que o trabalho é a contínua confirmação da

essência humana. Do ponto de vista de Celso Frederico:

A parcialidade desse enfoque, na obra de Hegel, é interpretada por Marx como uma decorrência necessária do fato de ele não distinguir a objetivação (as formas pelas as quais o homem se exterioriza, realiza-se em seu fazer) da alienação (forma particular e degradada de objetivação).13

Nisso reside a primeira crítica de Marx, a saber, no fato de Hegel apenas conceber o

trabalho em seu aspecto positivo, isto é, não reconhece o trabalho estranhado. A

segunda recai sobre o fato de que o trabalho que Hegel “unicamente conhece e

reconhece” é o trabalho do espírito ou do intelecto. O mundo, a cultura é o resultado do

“espírito” em sua ação e percurso pela história, mais ainda, o “espírito” é a história.

Nessa concepção são as ideias dos homens, a Ideia ou a Razão que constituem o mundo

real da cultura, e não a atividade material prático-sensível do homem. Diante do exposto acima, é possível dizer que Marx só em parte comunga do

conceito hegeliano de trabalho humano.14 Marx está de acordo com a concepção de que

o homem é o resultado do seu próprio trabalho, mas não do trabalho “abstratamente

espiritual” ou o trabalho do espírito como queria Hegel. Pelo contrário, o trabalho

mediante o qual o homem vem a ser, pelo qual o mundo da cultura é engendrado, para

Marx, é antes de tudo a atividade prática do homem em seu intercâmbio com a natureza.

3. O trabalho estranhado ou alienado

Passemos agora a considerar a crítica que Marx faz à forma como o trabalho

humano se efetiva numa forma de sociabilidade determinada, mais exatamente, no

modo de produção capitalista, em que o fenômeno do trabalho estranhado aparece como

uma parte constitutiva do mesmo.15 Para Marx,

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sündenfall) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como

13 FREDERICO, 2009, p. 181.14 “Marx reprova o fato de Hegel não ter percebido o aspecto negativo do trabalho – sua alienação –, mas essa reprovação pressupõe a concepção hegeliana do trabalho, exposta na Fenomenologia do espírito e sublinhada por Marx ao aprovar a tese de Hegel de que o homem é o produto se seu próprio trabalho”. (VÁZQUEZ, Sánchez, 2007, p. 125). 15 Porém queremos ressaltar aqui rapidamente que o trabalho estranhado – e veremos isso melhor ao término deste capítulo – é apenas um sintoma da forma como ele é levado a cabo numa determinada etapa do desenvolvimento histórico do homem. Se eventualmente essa etapa for superada como obra dos homens livremente associados, o fenômeno tenderá a desaparecer.

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uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.16

Como um paradoxo, na forma de sociabilidade burguesa, o mesmo trabalho que produz

riqueza, produz ao mesmo tempo miséria. O estado de pobreza constante do trabalhador

se choca de maneira direta e gritante com a riqueza do capitalista. Quanto mais

mercadorias o trabalhador produz mais ele próprio, enquanto mercadoria e homem, se

desvaloriza. Nessa mesma medida, o mundo dos objetos, das mercadorias, enquanto

criatura dos próprios homens, se sobrepõe ao mundo dos homens, já que este passa por

um processo de desvalorização constante, ao passo que aquele, por conseguinte, se

valoriza, produzindo assim uma completa inversão, que Marx a denomina de alienação

ou estranhamento.Vejamos mais de perto como Marx descreve o processo de alienação ou de

estranhamento do trabalhador frente aos objetos do seu próprio trabalho.

Este fato nada mais exprime, senão: o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung).17

Comecemos por esclarecer que o conceito de alienação de Marx deve sua origem

ao conceito de alienação de Feuerbach. A influência deste filósofo sobre as ideias

marxianas expostas no texto dos Manuscritos de 1844 fica clara em passagens como

essa que acabamos de citar. A diferença entre o conceito de ambos está no fato de

Feuerbach aplicar o seu conceito de alienação à esfera religiosa, ao passo que Marx o

aplica à esfera da produção de uma determinada forma de sociabilidade. Em linhas muito gerais, o conceito feuerbachiano de alienação, desenvolvido em

A Essência do Cristianismo, é este: o homem exterioriza determinados predicados que

são produtos do seu próprio pensamento e imaginação – predicados tais como

infinitude, imortalidade, etc – e acaba por criar um objeto ou um ser ideal, neste caso,

Deus que é a essência do homem alienada, isto é, exteriorizada, posta fora dele

mesmo.18 Para Feuerbach, Deus é um produto da consciência humana, no entanto, essa

16 MARX, 2009, p. 80.

17 Idem.

18 Segundo Feuerbach, “A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das limitações do homem individual, i.é., real, corporal, objetivada,

13

criação humana, em virtude da alienação, se volta contra o seu próprio criador, e Deus

passa a controlar e dominar o homem. Por causa da alienação de sua própria consciência

o homem não se dá conta de que Deus é um objeto ideal criado por ele mesmo. Nesse

caso a alienação é um processo através do qual um sujeito se torna objeto e o objeto se

torna um sujeito independente e autônomo diante daquele sujeito que primeiro lhe deu

origem. Mais ainda, o objeto passa a exercer domínio e controle sobre o sujeito. O mesmo processo ocorre, para Marx, na esfera da produção atingindo o sujeito

que está diretamente ligado à atividade produtiva peculiar à forma de sociabilidade

burguesa, qual seja, o trabalhador. Todos os objetos que são criados no processo de

trabalho são frutos da atividade produtiva do operário, porém todos os objetos que este

cria são, na verdade, propriedade de outrem, isto é, o produto do trabalho no modo

burguês de produção é propriedade exclusiva do capitalista. Por isso é possível dizer

que o trabalhador, na medida em que aliena previamente a si mesmo, isto é, vende-se ao

capitalista como mercadoria, aliena, por conseguinte, o produto do seu próprio trabalho.

Mais ainda, o produto criado se volta contra o próprio trabalhador, ele acaba por não

reconhecer que o objeto diante do qual se defronta é o produto do seu próprio trabalho

como exteriorização de si, objetivação de sua subjetividade. Também nesse caso o

objeto se volta contra o sujeito, isto é, o produto do trabalho se volta contra o seu

produtor como um poder independente e autônomo diante dele.O domínio que o produto do trabalho exerce sobre o trabalhador se dá na figura

do capital, produto do trabalho estranhado por excelência. Marx afirma que “A

apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto

mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o

domínio do seu produto, do capital.”19 E logo adiante, fazendo mais uma vez referência

ao poder que o mundo dos produtos criados pelo trabalhador exerce sobre este, na

medida em que quanto mais o trabalhador cria um mundo de riqueza cristalizado nos

objetos mais pobre material e espiritualmente ele se torna, Marx afirma que

(...) quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto

contemplada e adorada como uma outra essência própria, diversa da dele – por isso todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana.” (FEUERBACH, 1997, p. 57).19 MARX, 2009, p. 81.

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mais sem-objeto é o trabalhador. Ele não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é.20

Comentando essa mesma passagem do texto que acabamos de citar, e mostrando quão

hostil se torna o produto do trabalho diante do produtor, J. A. Giannotti afirma:

O trabalho se fixa no objeto, o produto alcança sua materialidade e sua objetividade num ex-tase do produtor; mas, em vez de o sujeito realizar-se na produção, no final, o produto lhe aparece como uma coisa estranha e hostil a fugir de seu controle.21

O objeto que deveria ser propriedade do sujeito que o criou, torna o sujeito, com efeito,

propriedade do objeto.22 O sujeito, nesse caso o trabalhador, o operário, na riqueza de

suas determinações é esvaziado material e espiritualmente na medida em que o mundo

dos objetos criados por ele se volta contra ele próprio.Para o propósito da nossa investigação, julgamos ser suficiente o que foi dito

acerca do trabalho alienado ou estranhado em Marx. Cabe agora investigar uma

problemática que é central nos Manuscritos de 1844 e que é um desdobramento direto

dentro da questão do trabalho alienado, qual seja, o problema da separação entre a

essência e a existência do homem enquanto trabalhador que é submetido ao processo de

trabalho que é peculiar à forma de sociabilidade burguesa.

4. O trabalho estranhado e a cisão entre a essência e existência do trabalhador

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, bem como em boa parte das

obras que se seguem imediatamente a esta, o conceito de trabalho humano elaborado

por Marx está demasiadamente comprometido com o problema da alienação. O trabalho

por meio do qual o homem engendra a si mesmo é o trabalho que, na forma de

sociabilidade burguesa, o nega violentamente. O trabalho aparece como o responsável

pela miséria do próprio trabalhador; no seu trabalho o homem se perde de si mesmo, se

auto-anula.Nos Manuscritos de 1844 Marx acaba por esboçar um conceito de essência

humana ao elaborar o seu conceito de trabalho. Para ele a essência do homem é o

trabalho, trabalho enquanto atividade voltada para fins que são previamente

estabelecidos de forma consciente, e é isso exatamente o que distingue a forma de

20 MARX, 2009, p 81.21 GIANNOTTI, 1966, p. 137.22 “Mas é o meio o verdadeiro poder sobre o objeto e por isso encaramos mutuamente nosso produto como o poder de um sobre o outro e sobre si mesmo, isto é, nosso próprio produto ergue-se contra nós; parecia ser nossa propriedade, mas na verdade somos nós a sua propriedade. Estamos excluídos na verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui outro homem.” (GIANNOTTI, 1966, p. 153).

15

trabalho humano da dos animais. 23 Se o trabalho é a essência do homem, e o trabalho na

forma de produção burguesa é a negação do próprio homem, logo o trabalho aparece

como a própria negação da sua essência, mais ainda, o trabalho que era para ser a

realização da essência humana é, não obstante, a sua própria negação. Ouçamos ainda o

que Marx afirma a respeito do trabalho humano em seu aspecto estranhado, que agora,

como sabemos, é a negação da essência do homem.

O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Äusserkichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro. Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.24

E logo um pouco à frente, Marx arremata:

Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua atividade pessoal – pois o que é a vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si (Selbstentfremdung), tal qual acima o estranhamento da coisa.25

O trabalho, enquanto trabalho estranhado ou alienado, é a forma através da qual o

homem acaba por perder-se de si mesmo, aliena-se de sua própria essência, uma vez que

a função e o resultado de seu trabalho é para um outro e nunca para si mesmo. O seu

trabalho como auto-atividade por meio da qual o homem vem a ser é agora “castração”

da sua própria “energia física e espiritual”. O seu trabalho por fim não produz apenas o

estranhamento da coisa, a alienação do produto do seu trabalho; o trabalho produz o

próprio estranhamente de si do homem, em outras palavras, o trabalho enquanto

essência do homem, que deveria ser a afirmação e realização desta é, na verdade, a sua

negação.

23 “O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal.” (MARX, 2009, p. 84). No segundo capítulo deste nosso trabalho voltaremos a tratar da questão do trabalho humano enquanto atividade consciente, que, por isso mesmo, se distingue de uma atividade meramente instintiva e animal. 24 MARX, 2009, p. 83.25 Idem.

16

Dessa questão surge o seguinte problema: se o homem, ou melhor, o trabalhador

mais especificamente, está privado, em virtude das circunstâncias históricas nas quais o

seu trabalho é efetivado, de realizar a sua própria essência, isso quer dizer que a

existência e a essência do trabalhador não podem coincidir, já que justamente a forma

como sua existência é engendrada, através do trabalho estranhado, é a efetiva negação

da sua essência.Tratando do problema da cisão entre a existência e a essência do homem enquanto

trabalhador nos Manuscritos de 1844, Sánchez Vázquez afirma o seguinte:

A análise da situação do trabalhador como sujeito da práxis produtiva, material, que Marx realiza nos Manuscritos de 1844, leva-o à conclusão de que o trabalho é a negação do humano. O ponto de partida é aqui a essência humana, à qual se opõe e nega a existência real, efetiva do trabalhador. Assim, pois, a atividade produtiva é uma práxis que, por um lado, cria um mundo de objetos humanos ou humanizados, mas, ao mesmo tempo, produz um mundo de objetos nos quais o homem não se reconhece e que, inclusive, se volta contra ele.26

Debatemo-nos com uma questão curiosa diante do que até agora expusemos. Trata-

se de uma dupla face do trabalho, ou seja, o mesmo trabalho que, por um lado, nega o

homem enquanto trabalho estranhado, o afirma por outro, na medida em que o homem

se autoproduz através do seu próprio trabalho. Podemos, agora, levantar a seguinte questão: qual a origem do trabalho

estranhado? Vejamos. Para Marx, a alienação da essência humana é também uma

consequência da alienação do trabalho humano, que não apenas cria objetos concretos,

efetivos, como dar origem, igualmente, ao conjunto das relações sociais. A alienação do

trabalho humano, por sua vez, aparece como efeito resultante da propriedade privada,

que pressupõe a divisão do trabalho. Porém, apesar de o trabalho estranhado ou alienado

aparecer como o resultado da propriedade privada, ele é, por seu turno, o próprio

fundamento desta forma de propriedade. Dessa maneira, em um momento o trabalho

estranhado é a causa da propriedade privada, e em outro é o efeito direto desta. Mas,

sem dúvida, foi o próprio trabalho estranhado que a engendrou. Podemos dizer que o

trabalho produziu o seu próprio algoz e se tornou uma espécie de vítima de si mesmo.

Mas evidencia-se na análise deste conceito que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como razão do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também os deuses são, originariamente, não a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano. (...) Somente no derradeiro ponto de culminância do desenvolvimento da propriedade privada vem à tona novamente este seu mistério, qual seja: que é, por um lado, o produto do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que é

26 VÁZQUEZ, Sánchez, 2007, p. 123.

17

o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização desta exteriorização.27

Vimos que o trabalho é a essência do homem, e como o trabalho, no modo de

produção burguês, só se efetiva de forma alienada, uma vez que o seu produto é

propriedade de outro que não o trabalhador, a essência humana também sofre um

processo de alienação, já que o trabalhador não aliena apenas o produto do seu trabalho

como aliena a si mesmo. Aliás, a alienação de si mesmo é condição necessária e

fundamental para que ocorra a alienação dos produtos do trabalho. Diante desse fato o

homem não pode realizar a sua essência de forma prática e efetiva, abrindo assim um

abismo entre a existência e a essência.Todavia, Marx oferece uma solução para a superação da cisão entre a essência e a

existência. Para ele o encontro e a fusão de ambas só pode se dá com a superação da

propriedade privada, isto é, quando não houver mais necessidade do trabalhador aliene-

se a outrem, e quando, portanto, o produto do seu trabalho for propriedade sua, da qual

ele poderá dispor ao seu bel prazer, e na medida em que poderá, também, se reconhecer

nos objetos criados pelo seu próprio trabalho. Nesse caso, a abolição do trabalho

alienado, que só pode ocorrer numa forma de sociabilidade pós-capitalista, em que os

homens terão o controle racional do processo de produção, é o meio pelo qual a essência

e a existência poderão se reconciliar, já que com a abolição da propriedade se abre a

possibilidade efetiva do homem se apropriar de todas as coisas que lhe foram negadas

historicamente, e isto inclui, sem dúvida, a sua própria essência. Para Marcuse,

A convulsão revolucionária que acaba com o sistema da sociedade capitalista põe em liberdade todas as potencialidades de satisfação geral que se havia desenvolvido neste sistema. Por isso Marx diz que a revolução é um ato de “apropriação” (Aneignung), significando que, com a abolição da propriedade privada, os homens devem obter a posse autêntica de todas as coisas que até então estiveram fora do seu alcance.28

É importante ressaltar que apesar do caráter residualmente especulativo do

conceito de essência humana elaborado pelo jovem Marx, esse conceito se distingue de

um mero conceito tradicionalmente metafísico. Pois a essência humana para Marx é

antes de tudo histórica, mesmo porque a sua realização, que se dá por meio da abolição

do trabalho alienado e da supressão da propriedade privada, é produto do devir histórico

e da luta revolucionária do homem. Se o homem não rompe com os grilhões impostos

pela sociabilidade capitalista que faz do seu trabalho um fardo, nunca o resultado do seu

27 MARX, 2009, p. 87 e 88.

28 MARCUSE, 1969, p. 262 e 263.

18

trabalho será a exteriorização da sua vontade livre e consciente, isto é, o seu trabalho

enquanto essência de si jamais será a realização desta.Enfim, o processo de desalienação da essência humana e o encontro com a

existência do homem concreto é um processo histórico e revolucionário dos homens que

desemboca na forma de sociabilidade comunista, em que há a superação do trabalho

alienado e este passará a ser doravante a realização plena do próprio homem. O trabalho

como a sua atividade vital que, na forma de sociabilidade pós-capitalista, será levado a

cabo de forma consciente e livre.

5. Conclusão

Este conceito de trabalho que analisamos a partir de um escrito de juventude de

Marx, passará por profundas transformações no processo de maturação da sua obra. Em

O Capital,29 por exemplo, Marx se afastará consideravelmente, ao elaborar o seu

conceito de trabalho, de questões como a problemática da cisão da essência com a

existência, que é um tema inseparável do conceito de trabalho elaborado nos

Manuscritos de 1844. Apesar disso, pensamos que mesmo em O Capital Marx não

abandona a problemática do trabalho alienado, pois trataremos de mostrar, na medida do

possível, que essa questão virá à tona quando nos defrontarmos, ao final do terceiro

capítulo desta nossa investigação, com o fenômeno da subordinação do trabalho ao

capital, fenômeno esse que é constitutivo do processo de trabalho enquanto perdurar a

forma de sociabilidade burguesa. Não podemos negar ainda que o conceito marxiano de trabalho que analisamos

está pejado de um moralismo constitutivo, mas perdoável se levarmos em conta que

naquela época estava apenas nascendo o filósofo combativo e revolucionário que se

debatia pela primeira vez com as questões que sempre tentou de forma exaustiva

fundamentar cientificamente durante a sua longa atividade intelectual. Portanto,

podemos dizer que dos Manuscritos de 1844 ao O Capital de 1867 o conceito marxiano

de trabalho evoluiu de uma concepção moralista do mesmo para uma concepção mais

bem fundamentada que podemos chamar, no contexto da obra, de científica.Passemos, portanto, a analisar o conceito marxiano de trabalho elaborado na sua

obra mais representativa da maturidade, a saber, O Capital.

29 Nos dois próximos capítulos deste nosso trabalho, a nossa análise acerca do conceito marxiano de trabalho se deterá sobre o texto do livro I (Caps. I, V, XII e XIII) e do livro III (Cap. XLVIII) d’O Capital.

19

CAPÍTULO II

O conceito marxiano de trabalho: o aspecto do valor de uso

No capítulo anterior procuramos analisar o conceito marxiano de trabalho a partir

dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, que se constitui como uma das

principais obras de juventude do pensador alemão, embora nunca tenha sido publicada

pelo próprio autor. O conceito de trabalho que Marx tratou de elaborar nessa obra –

embora permaneçam alguns aspectos constitutivos do mesmo em seus trabalhos da fase

madura30 -, distingue-se bastante do conceito que ele elabora em O Capital, sem dúvida,

sua obra mais representativa da maturidade e sobre a qual se deterá a nossa análise a

partir de agora.Uma significativa diferença, entre o conceito de trabalho que Marx elaborou nos

Manuscritos de 1844 e em O Capital, é o fato de que nesta obra ele define o trabalho

sobre um duplo aspecto, a saber, o trabalho enquanto produtor de valor de uso e o

trabalho enquanto produtor de valor. Esta é uma distinção fundamental para que se

possa entender o que seja o trabalho humano da perspectiva do Marx maduro, distinção

que não fora feita antes naquela obra de juventude. Essa distinção permite ainda que

Marx possa iniciar sua crítica à forma de sociabilidade que tem na mercadoria força de

30 No próximo e último capítulo deste nosso trabalho, trataremos de mostrar, justamente, que o problema da alienação ou do estranhamento é bastante semelhante ao fenômeno da subordinação do trabalho ao capital. Pensamos, dessa forma, que o conceito de trabalho que Marx elabora em O Capital, pelo menos nesse aspecto, se assemelha àquele elaborado nos Manuscritos de 1844.

20

trabalho a razão de ser da sua existência. Diante disso, a nossa investigação se deterá na

análise desse duplo aspecto do conceito de trabalho. Neste capítulo investigaremos o aspecto do conceito de trabalho enquanto

produtor de valor de uso, que Marx também denomina de trabalho concreto e, portanto,

específico, qualitativamente distinto, que é a condição fundamental e primeira da

existência do homem. Isso quer dizer que o trabalho enquanto produtor de valor de uso

é condição indispensável para a existência de qualquer forma de sociabilidade

específica; em outras palavras, o trabalho enquanto produtor de valor de uso sempre

existiu e sempre existirá necessariamente. É esse, com efeito, o aspecto mais geral do

conceito marxiano de trabalho. Já no próximo capítulo investigaremos o aspecto do conceito de trabalho enquanto

produtor de valor, que Marx denomina também de trabalho abstrato, homogêneo, que

não se distingue pela qualidade, mas apenas e simplesmente pela quantidade. O trabalho

enquanto produtor de valor é a forma específica de como o trabalho humano se efetiva

numa determinada forma de sociabilidade, a saber, na forma de sociabilidade burguesa,

em que o trabalho adquire a função primeira de reproduzir indefinidamente o capital. E

é exatamente por isso que nessa forma de sociabilidade ocorre o fenômeno da

subordinação do trabalho ao capital, que não é outra coisa senão a subordinação do

trabalhador aos interesses e vontade do capitalista.

1. O processo de trabalho e a relação homem/natureza

Passemos à análise do conceito marxiano de trabalho da sua perspectiva de

produtor de valor de uso. A respeito da análise deste aspecto do conceito de trabalho,

Marx, no início do capítulo V do livro I d’O Capital, afirma que

A produção de valores de uso não muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu controle. Por isso, teremos inicialmente de considerar o processo de trabalho à parte de qualquer estrutura social determinada.31

O trabalho em sua universal condição de produtor de valor de uso independe de toda e

qualquer formação social e econômica determinada32; é, no entanto, a forma ou o modo

como os valores de uso são produzidos que é possível determinar uma formação social

31 MARX, 2010, livro I, p. 211.32 Comentando esse aspecto do processo de trabalho, Mauro Moura afirma que “A produção de valores de uso, de objetos práticos úteis, é uma forma pura da socialidade humana, ou seja, é condição de possibilidade da existência do ser social. Seria inimaginável uma sociedade humana que não produzisse os meios de vida necessários a sua existência”. (MOURA, 2004, pp. 133 e 134).

21

específica.33 É importante ressaltar esse aspecto geral do conceito de trabalho porque ele

nos dá elementos para afirmarmos que o trabalho, enquanto condição fundamental de

existência do homem, jamais poderá ser abolido. O que poderá ser abolido,

eventualmente, é o fardo do trabalho alienado, na medida em que este é apenas uma

forma particular e contingente de manifestação do trabalho humano em uma forma de

sociabilidade específica e que, portanto, se configura como uma forma de sociabilidade

transitória. Nessa medida é que afirmamos que o trabalho em sua característica

universal de produtor de valor de uso sempre existiu e tente a existir necessariamente.Esse aspecto universal do processo de trabalho como produtor de valor de uso,

que é a base fundamental sobre a qual se assenta qualquer forma de sociabilidade,

demonstra a própria transitoriedade da sociabilidade burguesa, que está calcada numa

forma particular de trabalho, a saber, o trabalho que produz valor. Assim, a análise do

processo de trabalho do seu aspecto de produtor de valor de uso permite fazer a crítica

dessa forma de sociabilidade específica, uma vez que possibilita mostrar a sua forma

histórica e, portanto, contingente. Segundo Mauro Moura,

A perspectiva que permite Marx questionar e problematizar, demonstrando a transitoriedade da socialidade burguesa e sua modalidade peculiar de riqueza, é, precisamente, sua referência ao processo de trabalho como produtor de valores de uso.34

Para Marx, em seu aspecto mais geral, o trabalho é primeiramente uma relação de

intercâmbio do homem com a natureza.

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o homem, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza.35

Em seu contínuo intercâmbio material com a natureza, o homem acaba por conferir

forma útil aos elementos que essa lhe oferece, ou seja, produz valores de uso com a

finalidade de satisfazer as suas próprias necessidades ou apetências. Em outras palavras,

o homem dispõe da capacidade de atualizar em forma de produtos úteis à vida humana

aquilo que antes só existia em potência na natureza. No entanto cabe ressaltar que o

33 Em a Miséria da Filosofia, Marx afirma: “O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o capitalista industrial.” (MARX, 2009, p. 125). 34 MOURA, 2004, p. 150.35 MARX, 2010, livro I, p. 211.

22

homem não é o único agente nessa complexa relação. Ao agir sobre a natureza o homem

também acaba por sofrer a ação desta, na medida em que ao transformar a natureza

externa, o mundo a seu redor, acaba por transformar a sua própria natureza. Esta

afirmação de Marx em O Capital – de que o homem se transforma à medida que

transforma a natureza – corrobora, a nosso ver, a tese enunciada nos Manuscritos de

1844 de que o homem produz a si mesmo por meio de sua auto-atividade prático-

sensível. Isso demonstra que, embora o conceito de trabalho sofra mudanças

significativas daquela obra de juventude a essa obra de maturidade,36 Marx faz questão

de manter alguns aspectos essenciais do mesmo. Embora a controversa problemática da “natureza humana” não seja o tema

principal aqui em discussão, gostaríamos de destacar que a tese de que o homem

transforma a si mesmo, a sua natureza, na medida em que transforma a natureza externa,

revela um caráter revolucionário e se constitui, sem dúvida, em um dos pilares

fundamentais da filosofia marxiana. Ora, se o homem guarda em si a peculiar

característica de que ao transformar a natureza transforma, por sua vez, a si mesmo, isso

mostra que essa “natureza humana” não é uma natureza que define o homem sobre

aquilo que ele é para o todo e sempre. Pelo contrário, se trata de uma natureza humana

desengessada, contingente, sujeita a mudanças constantes no desdobrar do

desenvolvimento histórico do homem.37 Em suma, a natureza humana para Marx é

eminentemente histórica e por isso não determinada, isto é, não metafísica. Se o homem

não possui uma natureza determinada, isso quer dizer que a realidade humana, a própria

história – que é um produto do próprio homem – se apresenta como um processo em

aberto, e que toda e qualquer forma de sociabilidade é transitória e por isso mesmo é

passível de transformação.

a) O trabalho em sua forma especificamente humana

Vimos que em seu aspecto geral o trabalho se configura como intercâmbio, como

uma troca de energias entre o homem e a natureza. Pensando essa relação a fundo Marx

acaba por determinar o trabalho em sua forma especificamente humana. J. A. Giannotti

ao comentar o processo de trabalho em Marx afirma:

36 Aqui, por exemplo, Marx parece abandonar a problemática da essência humana ao colocar o problema em termos de natureza humana, que em virtude de seu caráter histórico tem a singular característica de se transformar continuamente. Por isso esse conceito é avesso àquele elaborado tradicionalmente pela metafísica, em que a natureza humana é algo dado para o todo e sempre. 37 Polemizando com Proudhon na Miséria da Filosofia, Marx afirma: “O sr. Proudhon ignora que toda a história não é mais que uma transformação contínua da natureza humana.” (MARX, 2009, p. 163).

23

Na expressão mais simples, o trabalho se apresenta como intercâmbio de energias (Stoffwechsel), metabolismo a operar entre o homem e a natureza, processo de assimilação e expulsão de substâncias que se faz à custa de acumular e despender forças naturais. Não é contudo neste nível que o trabalho interessa a Marx, preocupado como está em determiná-lo em sua forma especificamente humana.38

Para Marx, o que distingue a forma de trabalho humana de uma forma de trabalho

meramente instintiva, animal, o traço distintivo entre uma forma e outra, é que o homem

antes de realizar o seu trabalho e ter diante de si o produto que deseja, ele concebe esse

produto, ou melhor, o seu resultado, idealmente em sua cabeça.

Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador.39

O que Marx quer dizer com isso é que o trabalho que o homem leva a cabo é uma forma

de trabalho que se conforma a determinado fim que o homem estabelece previamente

antes da efetivação de sua atividade laboral propriamente dita. O produto do trabalho

humano, enquanto uma atividade voltada para fins, é a exteriorização ou objetivação da

subjetividade, na medida em que esse produto é primeiro concebido idealmente na

cabeça do trabalhador. Tratando dessa questão, Mauro Moura afirma que “O processo

de trabalho é a objetivação da subjetividade humana, efetivação daquilo que antes

estava (pré) figurado apenas subjetivamente.”40

Embora o homem disponha da liberdade de prefigurar o resultado do seu trabalho,

adequando a sua atividade a fins, não se pode esquecer que não se trata de uma

liberdade ilimitada, já que o homem tem de subordinar a sua vontade às condições

externas em que há de ser realizado o trabalho.

O produto surge como explicitação de um fim, de uma condição que se dá idealmente e se efetiva de modo a adequar o resultado ao início pressuposto, num movimento em que o trabalhador e sua vontade, de um lado, as coisas, de outro, perdem autonomia para transformarem-se em momentos de um processo mais amplo.41

Ou seja, o projeto que o homem tem idealmente em mira e que pretende efetivar

mediante o seu trabalho, tem de se adequar à própria realidade exterior e ao próprio

38 GIANNOTTI, 1983, p. 85.39 MARX, 2010, livro I, pp. 211 e 212.40 MOURA, 2004, p. 151.41 GIANNOTTI, 1983, p. 86.

24

campo instrumental do qual ele dispõe numa determinada etapa do seu desenvolvimento

histórico.42

Esta concepção de que o resultado do trabalho humano é antes prefigurado, nos

leva a pensar que, inicialmente, trabalho intelectual e manual se encontram unidos, um

não prescinde do outro. Com efeito, mesmo aparecendo de forma incipiente em outras

formações sociais e econômicas, só com o advento da divisão do trabalho e

posteriormente com a grande indústria, é que o trabalho intelectual foi separado

radicalmente do trabalho manual, constituindo assim, essa separação, um fenômeno que

se exacerba apenas na forma de sociabilidade capitalista. E é importante ainda destacar

que esta concepção de que o trabalho intelectual e manual inicialmente constitui uma

unidade, é o que torna a filosofia marxiana uma filosofia que não faz uma diferença

abrupta, radical, entre teoria e prática, como fizeram comumente a maioria dos

filósofos. Na verdade, na filosofia de Marx teoria e prática se implicam mutuamente:

não há prática sem teoria, da mesma forma que não há teoria sem uma prática que a

implique.

2. Os elementos do processo de trabalho

Ao continuar a sua análise do processo de trabalho do seu aspecto de produtor de

valor de uso, Marx afirma que são três os elementos que necessariamente compõem esse

processo. O primeiro elemento é que o trabalho é uma atividade adequada a fins, ou

seja, o próprio trabalho. O segundo elemento é o objeto de trabalho ou a matéria-prima.

E o terceiro e último elemento são os meios de trabalho.Para Marx, o objeto primeiro e universal do trabalho é a natureza. Configura-se

como objeto de trabalho tudo aquilo que o homem retira de forma imediata e que é

fornecido diretamente pela natureza, e, por isso mesmo, a existência de tal objeto

independe da sua ação. É exemplo de objetos de trabalho a madeira retirada da floresta

virgem ou uma fruta colhida de uma árvore que o homem não plantou. Como estes

objetos (madeira e fruta) são fornecidos diretamente pela natureza e sua existência

independe da ação laboral do homem, tais objetos não se configuram como aquilo que

Marx denomina de matéria-prima. Embora seja tênue o limite que separa objeto de

trabalho e matéria-prima, conceitualmente, para Marx, matéria-prima é objeto de 42 “Isso não significa que o resultado obtido tenha de ser necessariamente uma mera duplicação real de um modelo ideal preexistente. Não; a adequação não tem por que ser perfeita. Pode assemelhar-se pouco, e mesmo nada, ao fim original, já que este sofre mudanças, às vezes radicais, no processo de sua realização. Desse modo, para que se possa falar de atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independente de como se plasme, definitivamente, o modelo ideal originário.” (VÁZQUEZ, Sánchez, 2007, p. 221).

25

trabalho só e unicamente na medida em que lhe pesa trabalho anterior, isto é, a matéria-

prima deve a sua existência ao trabalho humano, uma vez que se configura como um

objeto bruto retirado da natureza que passa por modificação através da ação do homem.

Acerca dessa distinção, Marx afirma:

Se o objeto de trabalho é, por assim dizer, filtrado através de trabalho anterior, chamamo-lo de matéria-prima. Por exemplo, o minério extraído depois de ser lavado. Toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho só é matéria-prima depois de ter experimentado modificações efetuadas pelo trabalho.43

Cabe a ressalva aqui de que o objeto de trabalho como o segundo elemento do processo

de trabalho se articula de forma direta com o primeiro. Uma vez sendo o trabalho

humano uma atividade adequada a fins, esta atividade tem de se voltar necessariamente

para um objeto determinado a fim de cumprir o seu intuito que é a produção de um

valor de uso, de um produto que venha a satisfazer a alguma carência ou apetência

humana. Para Marx, os meios de trabalho ou instrumentos de trabalho são uma coisa ou um

conjunto de coisas que ao se interpor entre o trabalhador e o objeto de trabalho, tem por

fim facilitar a sua atividade laboral, por isso é possível afirmar que a aparição dos meios

de trabalho, ainda que os mais rudimentares, operam uma verdadeira revolução no

processo de trabalho, na relação contínua de intercâmbio do homem com a natureza.

Para ressaltar a importância dos meios de trabalho e o lugar central que eles ocupam no

processo de trabalho, Marx afirma que são os meios de trabalho a coisa que primeiro o

homem se apossa, se não levarmos em conta os objetos que o homem colhe na natureza

fazendo uso apenas de seus próprios membros.44

Quando o homem se apossa dos meios de trabalho ele faz destes uma extensão ou

prolongamento45 do próprio corpo. Nesse sentido Marx afirma que “Desse modo, [o

trabalhador] faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que

acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu próprio corpo natural,

apesar da Bíblia.”46 Quando o homem se apropria desses meios aumenta e potencializa,

ao mesmo tempo, o seu raio de ação; é como se o seu próprio corpo natural tivesse o

dom de aumentar em força e potência. Isso pode ser demonstrado no seguinte exemplo:

43 MARX, 2010, livro I, p. 212.44 “A coisa que o trabalhador se apossa imediatamente – excetuando meios de subsistência colhidos já prontos, tais como frutas, quando seus próprios membros servem de meio de trabalho – não é o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho.” (MARX, 2010, livro I, p. 213).45 “O instrumento é assim apropriado pelo trabalhador que transforma a coisa encontrada na natureza no prolongamento de seu próprio corpo.” (GIANNOTTI, 1983, pp. 87 e 88). 46 MARX, 2010, livro I, p. 213.

26

basta uma alavanca e um ponto de apoio para que apenas um homem seja capaz de

deslocar um peso que antes só três ou quatro homens eram capazes de mover. Assim,

para J. A. Giannotti,

O trabalho é poderoso na medida de seu ardil. A introdução do meio-termo entre a atividade do sujeito e a resistência e as fintas do objeto permite ampliar de maneira insuspeitada a potência do trabalhador, que passa a ter parte da natureza a sua disposição.47

Vimos que Marx define o trabalho como especificamente humano na medida em

que este é uma atividade que se conforma a determinados fins que são previamente

estabelecidos na mente do homem. Porém, ao analisar os meios de trabalho Marx é

levado a reconhecer que também a fabricação e a utilização destes meios é um elemento

a mais que caracteriza aquilo que ele denomina de forma especificamente humana de

trabalho. Para Marx,

O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho, e Franklin define o homem como ‘a toolmaking animal’, um animal que faz instrumentos de trabalho.48

E para acentuar a importância dos meios de trabalho, Marx continua: “Restos de antigos

instrumentos de trabalho têm, para a avaliação de formações econômico-sociais extintas

a mesma importância que a estrutura dos ossos fósseis para o conhecimento de espécies

animais desaparecidas.”49 Portanto, além dos instrumentos ou meios de trabalho

apontarem para a forma especificamente humana de trabalho, uma vez que o homem

também pode ser definido como um animal que se distingue dos outros exatamente por

fabricar instrumentos de trabalho; para Marx, ainda, é possível identificar determinadas

formações sociais já extintas através da análise dos instrumentos de trabalho que foram

usados no processo produtivo levado a cabo no seio dessa formação. Pois o que

distingue, afinal, uma determinada época econômica das demais não é apenas o que se

faz, mas, principalmente, como se faz, isto é, a forma como são empregados os recursos

ou os meios que são utilizados nesse fazer.Antes de finalizarmos a nossa análise deste terceiro elemento (os meios de

trabalho) que compõe o processo de trabalho, gostaríamos de ressaltar que, como bem

lembra J. A. Giannotti, existe uma determinação recíproca entre instrumento e objeto de

trabalho.

47 GIANNOTTI, 1983, p. 87.48 MARX, 2010, livro I, p. 213.49 Idem, pp. 213 e 214.

27

O arado, por exemplo, é de pouca utilidade numa cultura de clareira recém-aberta na floresta, enquanto se torna imprescindível na cultura da savana fértil de tipo europeu; só ele é capaz de cortar a trama das raízes e das gramíneas e abrir o sulco que receberá a semente.50

Isso quer dizer que o objeto determina e é determinado segundo a forma e o uso

específico de um instrumento. Não se pode usar indiscriminadamente, como nos ensina

o exemplo citado, o arado em qualquer forma de terreno, pois isso pode acarretar a

completa falta de êxito em uma determinada empreitada, comprometendo o próprio

processo de trabalho e o resultado que dele se pretende obter.

3. Produto do trabalho e o trabalho pretérito Marx considera que na produção de um valor de uso determinado, na maioria dos

casos, participam desse processo outros valores de uso como resultado de trabalhos

despendidos anteriormente. Nesse caso, esses valores de uso não são apenas resultados,

mas, principalmente, condições do processo de trabalho, ou mais exatamente, tais

valores de uso acabam por desempenhar a função de meios de trabalho. Segundo Marx,

Quando um valor-de-uso sai do processo de trabalho como produto, participam da sua feitura, como meios de produção, outros valores-de-uso, produtos de anteriores processos de trabalho. Valor-de-uso que é produto de um trabalho torna-se, assim, meio de produção de outros. Os produtos destinados a servir de meio de produção não são apenas resultado, mas também condição do processo de trabalho.51

É possível verificar mais claramente esse processo na indústria desenvolvida, em que é

muito raro encontrar um produto final que não seja o resultado de uma série de

trabalhos anteriores, muitos deles não apenas se dão em diferentes fábricas de um

mesmo país, como em diferentes fábricas espalhadas por diversas partes do globo. Isso

é o que ocorre, principalmente, na fabricação de automóveis.Marx chega ainda a afirmar que mesmo determinados produtos que julgamos ser

resultados da atividade natural, são, não obstante, produtos da atividade humana como o

resultado do trabalho de sucessivas gerações. Exemplo disso são as plantas e os animais

domesticados.

Animais e plantas que costumamos considerar produtos da natureza, são, possivelmente, não só produtos do trabalho do ano anterior, mas, em sua forma atual, produtos de uma transformação continuada, através de muitas gerações, realizadas sob controle do homem e pelo seu trabalho.52

50 GIANNOTTI, 1983, p. 96.51 MARX, 2010, livro I, p. 215.52 Idem.

28

Diante dessa afirmação de Marx, é possível dizer que uma parte considerável dos

objetos que compõe a realidade não são objetos em si, afastados e desprendidos do

homem, mas são produtos diretos da atividade laboral do homem. Assim, portanto, uma

parte significativa da realidade se constitui como resultado do trabalho de sucessivas

gerações.Prosseguindo em sua análise, Marx afirma que a matéria-prima, enquanto

resultado de trabalho pretérito, pode ocupar a posição de “substância principal” na

feitura de um determinado produto ou pode servir de material acessório para a

elaboração deste. Nessa medida, é possível dizer, também, que o material acessório

pode ocupar a função de meio de trabalho. Pois enquanto material acessório e valor de

uso, por exemplo, o carvão53 é o principal elemento que põe para funcionar a máquina a

vapor que no processo produtivo funciona como meio de trabalho. Assim é o carvão,

nesse caso, material acessório e também meio de produção.

a) Trabalho vivo e consumo produtivo

Para Marx, o processo de trabalho, para além de todos os aparatos técnicos que o

constitui (objeto de trabalho, meios de trabalho, etc.), depende fundamentalmente do

elemento que ele denomina de trabalho vivo (entenda, o trabalhador). É este o elemento

responsável por transformar “valores-de-uso possíveis em valores-de-uso reais.”54 Sem

o trabalho vivo não há qualquer produção de valores de uso, o processo de trabalho sem

ele se inviabiliza. Segundo Marx,

O trabalho [vivo], com a sua chama, delas [das coisas] se apropria, como se fossem parte do seu organismo, e, de acordo com a finalidade que o move, lhes empresta vida para cumprirem suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores-de-uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção.55

É o trabalho vivo ainda o principal elemento que engendra aquilo que Marx denomina

de consumo produtivo. O consumo produtivo é consumo dos meios e do objeto de

trabalho, e por isso se distingue do consumo individual. Aquele tipo de consumo é de

fundamental importância porque é através dele que se dá a produção dos objetos

(valores de uso) que são indispensáveis à existência humana. A respeito disso Marx

afirma:

53 Nesse sentido, Marx afirma que “O carvão é produto da indústria de mineração e, ao mesmo tempo, meio de produção dela”. (MARX, 2010, livro I, p. 216).54 MARX, 2010, livro I, p. 217.55 Idem.

29

O trabalho gasta seus elementos materiais, seu objeto e seus meios; consome-os; é um processo de consumo. Trata-se de consumo produtivo, que se distingue do consumo individual: este gasta os produtos como meios de vida do indivíduo, ao passo que aquele os consome como meios através dos quais funciona a força de trabalho posta em ação pelo indivíduo.56

Temos aqui refoçada a tese marxiana já enunciada em sua famosa Introdução de 1857,

em que Marx afirma que produção é imediatamente consumo.57

4. O trabalho concreto

No início deste capítulo atentamos para o fato de que Marx também denomina o

trabalho humano no seu aspecto de produtor de valor de uso como trabalho concreto

para contrapor com o aspecto do trabalho que produz valor e que é denominado de

trabalho abstrato.58 Cabem aqui, portanto, algumas palavras sobre aquilo que Marx

denomina de trabalho concreto.Marx chama de trabalho concreto aquela forma específica de trabalho que tem

como fim a produção de valores de uso, isto é, determinados produtos que têm como

fim não o mercado, mas a satisfação de alguma necessidade ou apetência humana. O

trabalho concreto é aquela forma de trabalho que se distingue pela sua qualidade

específica, e como tal não pode, a primeira vista, ser comparado com um outro trabalho,

já que um ofício determinado tem por fim a produção de um objeto que é sempre

distinto qualitativamente do que é produzido por um outro. Assim, pelas suas

qualidades respectivas de trabalhos diversos, por exemplo, o trabalho do operário de

uma fábrica onde se produz parafusos não pode ser igualado com o trabalho do operário

de uma fábrica que produz vidro, se levarmos em conta apenas o aspecto concreto de

ambas as atividades. Nas suas próprias palavras, Marx afirma que “o trabalho criador de

valor de uso é trabalho concreto e especial que, no que concerne à forma e à matéria, se

decompõe em modos de trabalho infinitamente vários.”59

O trabalho concreto, portanto, é uma forma particular, especial de trabalho que

tem como fim a produção de utilidades, valores de uso,60 ou seja, os seus produtos não

têm como finalidade primeira a destinação ao mercado, onde surge a possibilidade da 56 Idem.57 Nesse texto Marx afirma: “A produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo. [Primeiro]: o indivíduo, que ao produzir desenvolve suas faculdades, também as gasta, as consome, no ato da produção, exatamente como a reprodução natural é o consumo de forças vitais. Segundo: produzir é consumir os meios de produção utilizados, e gastos, parte dos quais (como na combustão, por exemplo) dissolve-se de novo nos elementos universais. (...) O próprio ato de produção é, pois, em todos os seus momentos, também ato de consumo”. (MARX, 1974, pp. 114 e 115).58 No próximo capítulo trataremos de falar um pouco acerca do conceito de trabalho abstrato.59 MARX, 2008, p. 62.60 Afirma Marx: “Chamamos simplesmente de trabalho útil aquele cuja utilidade se patenteia no valor-de-uso do seu produto ou cujo produto é um valor-de-uso.” (MARX, 2010, livro I, p. 63).

30

igualação com outros produtos distintos por meio da troca. Em suma, o trabalho

concreto diz respeito ao modo operativo de como se leva a cabo uma determinada

atividade, ou como afirma Rubin: “Trabalho concreto é a definição de trabalho em

termos de suas propriedades técnico-materiais.”61

5. Conclusão

O aspecto do trabalho que aqui analisamos, isto é, o trabalho como produtor de

valor de uso é a condição primeira da existência do homem. O homem e qualquer

configuração social não podem jamais existir sem essa forma de trabalho, por isso é que

o trabalho produtor de valor de uso independe de toda e qualquer forma de sociabilidade

determinada62, e é, por isso, condição de possibilidade de todas elas.63 Acerca disso

Marx afirma:

O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as formas sociais.64

Passemos agora a analisar, no último capítulo desta nossa pesquisa, o conceito de

trabalho em seu aspecto de produtor de valor. Analisaremos o processo de trabalho, ao

contrário do que foi feito até agora, numa forma de sociabilidade determinada, na forma

de sociabilidade burguesa. É a partir dessa análise que pretendemos atingir a questão

que nos motivou a escrever este trabalho, ou seja, procuraremos demonstrar, seguindo

de perto a própria análise de Marx, que é a forma de trabalho em sua peculiar condição

de produtor de valor que engendra o fenômeno da subordinação do trabalho (entenda, o

trabalhador) ao capital, fenômeno esse que faz com que o trabalhador não reconheça os

produtos do seu trabalho como o resultado da sua atividade prático-material, já que esta

é controlada pelo capitalista em função dos seus próprios interesses. Assim, veremos

que esse fenômeno da subordinação do trabalho ao capital, guardadas as devidas

61 RUBIN, 1980, p. 156.62 Mas é sempre importante lembrar que o modo como é efetivado a produção de valores de uso depende fundamentalmente da forma social. 63 Quase dez anos antes da publicação do livro I d’O Capital, Marx já esboçava ideia idêntica acerca da importância vital do trabalho humano do seu aspecto de produtor de valor de uso em sua Contribuição à Crítica da Economia Política. Ele afirma: “A atividade útil que busca a apropriação dos produtos da natureza sob uma ou outra forma, o trabalho é a condição natural da existência humana, a condição, independentemente de todas as formas sociais, do intercâmbio da matéria entre o homem e a natureza.” (MARX, 2008, pp. 62 e 63).64 MARX, 2010, livro I, p. 218.

31

ressalvas, se assemelha ao fenômeno do trabalho alienado que analisamos a partir dos

Manuscritos de 1844.

CAPÍTULO III

O conceito marxiano de trabalho: o aspecto do valor

Trataremos agora do conceito de trabalho em seu singular aspecto de produtor de

valor. Vimos no capítulo anterior que o trabalho que tem como fim a produção de

valores de uso é condição fundamental de existência de qualquer forma social. O

mesmo não ocorre com o processo de trabalho que tem como finalidade primeira a

produção de valor, uma vez que esse só tem a sua condição de possibilidade efetivada

em formas determinadas de sociabilidade, isto é, nas assim denominadas formas de

sociabilidade mercantis. Dessa forma, uma das principais características do modo

burguês de produção é que todo o processo de trabalho, dirigido pelo capitalista, não

tem outra função senão a produção de valor. Em outras palavras, o destino exclusivo

dos produtos do trabalho na forma de sociabilidade burguesa é o mercado. Antes de

satisfazer necessidades ou apetências humanas, esses produtos são destinados ao

processo de troca, e isso só se torna possível porque existe uma forma específica de

trabalho que tem a singular característica de criar a propriedade do valor em seus

produtos.É o valor, enquanto uma propriedade inerente aos produtos do trabalho que são

produzidos na forma de sociabilidade burguesa, o que abre a possibilidade para que esta

mesma forma de sociabilidade se transforme no âmbito mais apropriado para abrigar o

fenômeno da subordinação do trabalho ao capital. Assim, procuraremos mostrar ao final

deste capítulo que a autonomia do capital e o domínio e controle que este exerce sobre o

trabalho é uma consequência direta do modo como o próprio trabalho é efetivado em

sua forma especificamente burguesa.Em virtude dessa espécie de trabalho que tem como fim a produção exclusiva de

valor, podemos afirmar que o trabalho passa a ter seu fundamento no capital, uma vez

que este, na moderna sociedade burguesa, desempenha a função principal de força

32

motriz do próprio trabalho desde que o capitalista passa a gerir o processo produtivo em

vista de seus próprios interesses. Nessa medida, o trabalho que produz valor é a própria condição de possibilidade

efetiva, realizada, da forma de sociabilidade capitalista, já que é essa forma de trabalho

que torna possível a existência da mais-valia e, portanto, do capital, elemento sobre o

qual a moderna sociedade burguesa está ancorada e que acaba por reger e determinar o

conjunto das relações sociais.

1. O processo e o produto do trabalho propriamente capitalista No modo capitalista de produção propriamente dito, o processo de trabalho não é

guiado e gerido pelos próprios trabalhadores, mas está sob o controle e comando do

capitalista, que assim tem em vista somente a realização dos seus interesses. Como ele

foi ao mercado e comprou força de trabalho65 como se compra qualquer outra

mercadoria, pode o capitalista dela dispor por um determinado período do dia. Nesse

processo, durante as horas em que o trabalhador permanece sob o comando do

capitalista, ocorre um fato digno de nota: todos os produtos que são frutos do seu

trabalho passam a não lhe pertencer, tornam-se propriedade de outrem; ele os aliena ao

capitalista que passa a ser o proprietário exclusivo desses produtos. Mais ainda, esse

processo leva o trabalhador a nem mesmo reconhecer esses produtos como o resultado

do seu próprio trabalho.Não é de interesse do capitalista que do processo de trabalho resultem apenas

valores de uso. O produto, enquanto valor de uso, só interessa ao capitalista na medida

em que ele é também depositário de valor. Assim, o capitalista ao produzir, por

exemplo, determinado produto alimentício não tem como finalidade primeira a

saciedade da fome, isto é algo secundário, acidental. Ele fabrica tal produto para ser

levado ao mercado para que seja trocado por uma soma de dinheiro capaz de cobrir

todos os gastos despendidos na elaboração desse produto e mais uma parte que excede

todos esses gastos. A respeito desse processo, afirma Marx:

Primeiro, quer produzir um valor de uso que seja um valor de troca, o artigo destinado a venda, uma mercadoria. E segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o valor do conjunto das mercadorias necessárias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelo quais antecipou seu bom dinheiro no mercado. Além de um valor de uso, quer produzir mercadoria; além de valor de uso, valor, e não só valor, mas também valor excedente (mais-valia).66

65 Adiante trataremos com mais detalhes da categoria força de trabalho e das respectivas relações de compra e venda dessa espécie de mercadoria sumamente especial.66 MARX, 2010, livro I, p. 220.

33

O produto do trabalho propriamente capitalista é a mercadoria, exatamente na

medida em que a mercadoria é uma espécie peculiar de produto do trabalho que é

depositário de valor de uso e valor. Como sabemos, o valor de uso é aquilo que diz

respeito à utilidade de um determinado objeto que se presta a satisfação de necessidades

ou apetências humanas. Não seria sensato da parte do capitalista, portanto, produzir um

objeto que não tivesse utilidade alguma. Produz ele, então, mercadoria, que além de ser

um objeto que tem a sua utilidade garantida (valor de uso) é também um objeto que traz

em si a propriedade do valor, fator determinante para que esse produto do trabalho

humano (a mercadoria) possa ser levado ao mercado e trocado por outros produtos

oriundos do mesmo processo de trabalho que tem como fim a produção de valor. Desse

modo, um determinado produto, enquanto valor de uso, só tem importância para o

capitalista na medida em que ele comporta valor, isto é, na medida em que esse produto

é uma mercadoria.Assim é a mercadoria o produto do trabalho por excelência na forma de

sociabilidade burguesa por ela reunir em si elementos que a primeira vista parecem

antagônicos, a saber, valor de uso e valor. Com efeito, a mercadoria é o resultado da

combinação de trabalho concreto e trabalho abstrato.

a) O trabalho abstrato

O trabalho que produz valor é trabalho puramente quantitativo. Embora a

produção de valor seja simultânea a produção de utilidade, as qualidades específicas de

trabalho concreto ficam, digamos assim, suspensas ante esse processo. Ou seja, aqui o

trabalho que conta é aquele que pode ser medido, calculado, e dessa forma os mais

distintos trabalhos podem ser comparados. Por isso, as particularidades específicas de

um trabalho em particular tendem a desaparecer, ou melhor, ficam suspensas as

qualidades que determinam esse trabalho enquanto trabalho concreto.67

Algodão e fuso são indispensáveis ao trabalho de fiar, mas não se pode, com eles, estriar canos na fabricação de canhões. Mas, agora, consideramos o trabalho do fiandeiro como criador de valor, fonte de valor, e, sob esse aspecto, não difere do trabalho do perfurador de canhões, nem se distingue, tomando exemplo mais próximo, dos trabalhos do plantador de algodão e do produtor de fuso. É essa identidade que permite aos trabalhos de plantar algodão, de fazer fusos e de fiar constituírem partes, que diferem apenas quantitativamente, do mesmo valor global, o valor do fio. Não se trata mais

67 Segundo Marcuse, “O processo social de produção, porém, quando determina o valor das mercadorias, põe de lado a variedade do trabalho concreto, e retém como padrão de medida a porção de trabalho abstrato necessário contido em uma mercadoria.” (MARCUSE, 1969, p. 271)

34

da qualidade, da natureza e do conteúdo do trabalho, mas apenas da sua quantidade. Basta calculá-la.68

O trabalho que produz valor é aquela forma de trabalho que Marx denomina de

trabalho abstrato, que é dispêndio de trabalho humano em geral, em outras palavras,

trabalho socialmente necessário. Trabalho abstrato é, portanto, simplesmente dispêndio

de trabalho humano em geral ou trabalho diretamente social. É essa forma de trabalho

especificamente que cria a propriedade do valor em um produto e o transforma em

mercadoria. Por isso esse tipo de trabalho pode ser quantitativamente calculado e

medido, pois não se trata, como no caso do trabalho concreto, de atividade específica,

qualitativa e distinta, mas apenas da quantidade de tempo de trabalho despendido

socialmente na fabricação de um determinado objeto.O trabalho abstrato é ainda uma característica peculiar de como o próprio trabalho

é levado a cabo na forma de sociabilidade burguesa. Mais precisamente, o trabalho

abstrato só existe enquanto tal naquelas formas de sociabilidade denominadas de

marcantis, ou seja, essa espécie de trabalho está sempre vinculada a uma forma social

específica. Nessa medida, o conceito de trabalho abstrato também evidencia o modo

como é organizado o próprio trabalho numa forma de sociabilidade capitalista-

mercantil. Assim, para Rubin,

É óbvio que o trabalho abstrato está vinculado a uma “forma social” definida, e expressa determinadas relações entre os homens no processo de produção. (...) O trabalho abstrato compreende a definição de formas sociais de organização do trabalho humano. Esta não é uma definição genérica e específica de trabalho, mas a análise do trabalho a partir de dois pontos de vista: técnico-material e social. O conceito de trabalho abstrato expressa as características da organização social do trabalho numa sociedade mercantil-capitalista.69

Diante do que foi dito, é possível concluir que o trabalho abstrato-geral é a forma

específica do trabalho que tem como fim a produção de valor.70

2. O processo de trabalho e a produção de mais valor

Para que se dê a produção em sua forma especificamente burguesa, antes o

capitalista tem de dispor de todas as condições ou meios para poder realizar essa forma

de produção efetivamente. Estas condições são basicamente os meios de produção,

68 MARX, 2010, livro I, p. 222.69 RUBIN, 1980, p. 156.70 Em sua Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx já afirmava: “Como valores de troca, não obstante, representam trabalho homogêneo não diferenciado, isto é, trabalho no qual desaparece a individualidade dos trabalhadores. O trabalho que cria o valor de troca é, pois, trabalho geral-abstrato.” (MARX, 2008, p. 54).

35

matéria-prima e força de trabalho. O conjunto destes elementos são todos considerados

mercadorias e o capitalista os encontra, portanto, no mercado. Para a compra dessas

mercadorias o capitalista despende uma determinada quantidade de dinheiro,

naturalmente. Segundo Marx, para produzir fios, por exemplo, além da força de

trabalho, o capitalista tem de ter a sua disposição fusos (meios de produção) e

determinada quantidade de algodão (matéria-prima). À primeira vista, o produto que

resulta desse processo de trabalho parece ser apenas a transferência do exato valor que o

capitalista adiantou na compra dos meios necessários para a fabricação de tal produto.

Nosso capitalista fica perplexo. O valor do produto é igual ao do capital adiantado. O valor adiantado não cresceu, não produziu excedente (mais-valia); o dinheiro não se transformou em capital. O preço dos 10 quilos de fio é 15 xelins, e essa quantia foi gasta no mercado com os elementos constitutivos do produto ou, o que é o mesmo, com os fatores do processo de trabalho: 10 xelins com algodão, 2 xelins com a parte consumida do fuso e 3 xelins com a força de trabalho.71

No entanto, pensa Marx que para descobrir a origem da mais-valia é preciso voltar a sua

análise para um dos elementos constitutivos do processo de trabalho em sua forma

especificamente burguesa, a saber, a força de trabalho e a consequente relação daí

resultante entre trabalho necessário e trabalho excedente. Seguindo de perto a análise de

Marx, é possível constatar com clareza que a mais-valia é o resultado direto da

exploração da força de trabalho, ou seja, a exploração desta, enquanto trabalho vivo, é a

condição de possibilidade daquela. Paradoxalmente, o modo como o trabalho é

efetivado na forma de sociabilidade burguesa engendra a sua própria exploração.72

a) A força de trabalho e a relação trabalho necessário/trabalho excedente

A força de trabalho é uma espécie sumamente especial de mercadoria, por ser ela

justamente a mercadoria que confere existência e põe em movimento o capital.73 A

mercadoria força de trabalho, como qualquer outra mercadoria, o capitalista a encontra

no mercado e a compra por um determinado valor. O valor da força de trabalho é o

custo dos meios de subsistência74 que mantém essa força de trabalho durante um período

71 MARX, 2010, livro I, p. 224.72 Para Marcuse, “O trabalho ‘vivo’, a força de trabalho, é o único fator que aumenta o valor do produto do trabalho para além do valor dos meios de produção, este crescimento do valor transforma os produtos do trabalho em componentes do capital. O trabalho, por isso, não só produz sua própria exploração como também o meio que possibilita esta exploração, a saber, o capital.” (MARCUSE, 1969, p. 281).73 A existência da mercadoria força de trabalho é condição sine qua non do processo de trabalho propriamente capitalista, isto é, o trabalho enquanto produtor de valor.74 Segundo Marx, “O valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, se determina pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la.” (MARX, 2010, livro I, p. 269).

36

de vinte e quatro horas, de uma semana ou de um mês, isso depende da forma como o

capitalista a remunera.Vamos supor que o tempo de trabalho necessário para se obter os meios de

subsistência por parte do trabalhador seja apenas de uma parte da jornada de trabalho

para a qual foi a sua força de trabalho contratada inicialmente pelo capitalista. Se, por

exemplo, o trabalhador, que vendeu a sua força de trabalho ao capitalista, executasse

apenas sua atividade laboral durante o tempo de trabalho que é necessário para se prover

dos meios de subsistência, naturalmente, o capitalista não usufruiria de vantagem

alguma. Assim, no resultado do produto final, o capitalista obteria apenas o que tinha

despendido anteriormente ou o que adiantou com o seu dinheiro para a compra do

conjunto das seguintes mercadorias: meios de produção, matéria-prima e força de

trabalho. Dessa forma, da soma dos gastos com o conjunto de tais mercadorias

necessárias para a produção de um determinado produto não resultaria nenhum

dividendo, e assim não adiantaria nada produzir, já que com o montante de dinheiro

adiantado poderia o capitalista ter comprado o produto feito no mercado. No entanto,

não é isso o que na realidade ocorre. Marx afirma:

Mas o trabalho pretérito que se materializa na força de trabalho e o trabalho vivo que ela pode realizar, os custos diários de sua produção e o trabalho que ela despende, são duas grandezas inteiramente diversas. A primeira grandeza determina o seu valor de troca; a segunda constitui seu valor de uso. Por ser necessário meio dia de trabalho para a manutenção do trabalhador durante 24 horas, não se infira que este está impedido de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho são, portanto, duas magnitudes distintas. O capitalista tinha em vista essa diferença de valor quando comprou a força de trabalho.75

Dessa forma, quando o capitalista adquire a força de trabalho no mercado e a

coloca no processo produtivo, espera dela um mais valor além daquele que foi acertado

no momento do acordo de compra e venda com o trabalhador. Com efeito, a força de

trabalho, agora como um valor de uso do qual é proprietário o capitalista por um

período determinado do dia, se transforma em fonte de valor “e de mais valor do que o

que tem.”76 O que foi pago, na realidade, pela força de trabalho é o equivalente apenas a

uma parte da jornada de trabalho. Só que os meios de subsistência dos quais usufrui o

trabalhador para a reprodução de sua força de trabalho são suficientes para a realização

de uma jornada inteira de trabalho. Logo, o valor criado numa jornada de trabalho é

75 MARX, 2010, livro I, pp. 226 e 227.76 Idem, p. 227.

37

muito maior do que o valor de troca por meio do qual a permuta da força de trabalho foi

realizada.É evidente que o capitalista ao se dirigir ao mercado para a compra da mercadoria

força de trabalho já tinha consciência desse resultado final. Sendo, pois, parte da jornada

de trabalho executada pelo trabalhador horas não remuneradas na forma de trabalho

excedente, resulta daí a mais-valia, tesouro maior do capitalista, razão de ser da forma

de sociabilidade burguesa e, portanto, o meio pelo qual o movimento e a existência do

capital são possíveis.É basicamente a partir dessa análise da mercadoria força de trabalho que Marx

começa a desvendar o mistério sobre o qual se encontra envolta a figura do capital. A

sua face obscura vai sendo gradativamente posta as claras.Despossuído de qualquer outra mercadoria comum ou propriedade, ao trabalhador

só lhe resta uma mercadoria em especial, qual seja, sua força de trabalho, a única

mercadoria que ele pode levar ao mercado. Neste o trabalhador aliena-a por seu valor de

troca ao capitalista; feito isso, como já dissemos, esse passa a dispor por um

determinado tempo do valor de uso da força de trabalho. Pois, como ocorre com

qualquer outra mercadoria após a sua aquisição, o comprador dessa tem todo o direito

de usufruir do seu valor de uso, e ao vendedor não é conferido mais nenhum domínio

sobre a mercadoria que alienou. Guardadas as devidas ressalvas, o mesmo ocorre com a

mercadoria força de trabalho. Pois, de certa forma, quando o trabalhador vende a sua

força de trabalho ao capitalista e entra na fábrica tem, por um período determinado, a

suspensão de sua liberdade, já que tem de sujeitar-se aos desígnios e vontade de outrem,

uma vez que o processo de trabalho ao qual tem o trabalhador de se submeter é

controlado não por ele mesmo, mas pelo capitalista. Ainda a respeito da compra e venda

da força de trabalho, afirma Marx:

Na realidade, o vendedor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor-de-troca e aliena seu valor-de-uso. Não pode receber um sem transferir o outro. O valor-de-uso do óleo vendido não pertence ao comerciante que o vendeu, e o valor-de-uso da força de trabalho, o próprio trabalho, tampouco pertence ao seu vendedor. O possuidor do dinheiro pagou o valor diário da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, o uso dela durante o dia, o trabalho de uma jornada inteira.77

Diante do exposto, podemos afirmar que é o capital, personificado na figura do

capitalista, que exerce o controle e domínio sobre o trabalho. Estamos aqui diante de

uma importante inversão, qual seja, o trabalho que promoveu a origem, o

desenvolvimento e a afirmação plena do capital, agora, na forma de sociabilidade 77 Idem.

38

burguesa, se encontra subordinado a esse objeto que ele mesmo criou. O capital,

enquanto um produto do trabalho, ganhou autonomia e independência frente ao próprio

trabalho. Para concluir este capítulo, e portanto a nossa investigação, veremos como

Marx trata dessa questão em O Capital. Questão essa que está muito ligada à

problemática do trabalho estranhado que analisamos a partir dos Manuscritos de 1844.

Parece-nos, então, que o próprio Marx não deixa de recolocá-la em sua obra de

maturidade, agora apontado para o problema da subordinação do trabalho ao capital.

3. A subordinação do trabalho ao capital

O processo de trabalho que produz valor, que é a forma de trabalho por excelência

no modo burguês de produção, é um processo perpassado pelo fenômeno da

subordinação do trabalho ao capital. E é importante destacar que o desenvolvimento da

ciência e da técnica, sem dúvida, e as suas respectivas aplicações na esfera produtiva,

assume um papel preponderante nesse processo de subordinação. Com o advento da

maquinaria, por exemplo, além dos produtos do trabalho continuarem a não pertencer ao

trabalhador, este ainda sofre o revés de ficar completamente subordinado à máquina,

tendo de se adaptar como pode a um mecanismo automático. Nesse processo, o

trabalhador se torna apenas mais uma peça da máquina, se transforma em apêndice da

máquina, uma vez que esta parece assumir o papel principal no sistema produtivo,

enquanto o trabalhador fica relegado a um segundo plano. Para Marx,

A estreiteza e as deficiências do trabalhador parcial tornam-se perfeições quando ele é parte integrante do trabalhador coletivo. O hábito de exercer uma função única limitada transforma-o naturalmente em órgão infalível dessa função, compelindo-o à conexão com o mecanismo global a operar com a regularidade de uma peça de máquina.78

A máquina ainda desempenha um papel decisivo no processo de parcialização do

trabalho. O trabalhador fica circunscrito à execução de uma mesma e limitada atividade,

e acaba por perder o contato com o todo do processo produtivo. Esse processo o leva a

um completo estranhamento frente aos produtos do seu próprio trabalho, pois ele já não

os reconhece como resultado da sua própria atividade produtiva.Frente ao trabalhador a máquina parece se tornar independente, e ele a ela tem de

se adaptar, pois “Para trabalhar com máquina, o trabalhador tem de começar sua

aprendizagem muito cedo, a fim de adaptar seu próprio movimento ao movimento

uniforme e contínuo de um autômato.”79 Ou seja, no processo de trabalho voltado para a

78 Idem, p. 404.79 Idem, p. 480.

39

produção de valor, os aparatos (instrumentos) criados e desenvolvidos pela técnica a

serviço do capital, em vez de serem empregados pelo trabalhador, este é quem passa a

ser empregado por aqueles. Em vez de a máquina ser para o trabalhador é o trabalhador

que é para a máquina, em outras palavras, é a máquina que acaba por fazer uso do

trabalhador e não este daquela.80

Sendo, ao mesmo tempo, processo de trabalho e processo de criar mais-valia, toda produção capitalista se caracteriza por o instrumental de trabalho empregar o trabalhador, e não o trabalhador empregar o instrumental de trabalho. Mas essa inversão só se torna uma realidade técnica e palpável com a maquinaria. Ao se transformar em autômato, o instrumental se confronta com o trabalhador durante o processo de trabalho como capital, trabalho morto que domina a força de trabalho viva, a suga e exaure.81

Essa subordinação do trabalhador aos meios de trabalho é já, sem dúvida, a

subordinação do trabalho ao capital e o consequente estranhamento dos produtores

frente os produtos do seu próprio trabalho.O fenômeno da subordinação do trabalho ao capital, portanto, deve sua origem ao

seguinte fato: os produtos resultantes do processo de trabalho que tem como fim a

produção de valor aparecem como potências autônomas frente aos seus produtores, em

outras palavras, o capital se autonomiza frente ao trabalho. Segundo Marx,

São os meios de produção monopolizados por determinada parte da sociedade, os produtos e condições de atividade da força de trabalho os quais se tornam autônomos em oposição à força de trabalho viva e, em virtude dessa oposição, se personificam no capital. O capital são os produtos gerados pelos trabalhadores e convertidos em potências autônomas dominando e comprando os produtores, e mais ainda são as forças sociais e a forma do trabalho com elas conexa, as quais fazem frente aos trabalhadores como se fossem propriedades do produto deles. Temos aí portanto determinada forma social, envolvida numa névoa mística, de um dos fatores de um processo social de produção fabricado pela história.82

E mais adiante nesse mesmo texto, Marx arremata: “No capital e na pessoa do

capitalista – na realidade o capital personificado – os produtos se tornam força

autônoma ante os produtores.”83 Diante disso é possível afirmar que o trabalho

(trabalhador) enquanto sujeito que dá existência a um objeto (mercadoria, capital),

adquire todas as características de objeto, ao passo que os seus produtos ganham ares de

sujeito. Pois o objeto (capital) passa a exercer domínio e controle sobre o sujeito

80 Sobre a subsunção do trabalhador aos meios de produção, Marx afirma em seu assim conhecido Capítulo VI Inédito de O Capital: “(...) os meios de produção, as condições objetivas de trabalho, não aparecem subsumidas no operário: este é que aparece subsumido nelas. O capital emprega o trabalho. Já esta relação é, na sua simplicidade, personificação das coisas e coisificação das pessoas.” (MARX, 2004, p. 126).81 MARX, 2010, livro I, p. 483.82 MARX, 1980, livro III, p. 936.83 Idem, pp. 946 e 947.

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(trabalho), e assim se completa a inversão: o sujeito tornou-se objeto e o objeto tornou-

se sujeito; a criatura tornou-se criador, e o criador passa a condição de criatura. Isto é, o

capital que deve sua origem ao trabalho, agora aparece como o fundamento do próprio

trabalho, dele parece todas as coisas provirem. “(...) o capital se torna ser sumamente

místico, pois todas as forças produtivas sociais do trabalho parecem provir, brotar dele

mesmo e não do trabalho como tal.”84 Com essa problemática levantada por Marx em sua principal obra da maturidade,

não estaria ele retomando, sobre uma outra face talvez, o problema do trabalho

estranhado ou alienado tratado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844?

CONCLUSÃO

O conceito marxiano de trabalho aqui analisado a partir de obras tão distintas do

percurso intelectual de Marx, os Manuscritos de 1844 e O Capital de 1867, nos revelou

que esse conceito passou por significativas transformações de uma obra a outra. Em O Capital, por exemplo, quando Marx elabora o seu conceito de trabalho em

seu duplo aspecto de produtor de valor de uso e produtor de valor, ele se afasta

teoricamente de forma considerável da problemática da cisão da essência e da existência

do trabalhador provocada pelo fenômeno do trabalho alienado que investigamos a partir

dos Manuscritos de 1844. Pois na análise do conceito de trabalho que empreendemos a

partir de O Capital a questão acima não nos aparece em nenhum momento.No entanto, nos parece que Marx traz para O Capital, sem modificações maiores,

aquela sua concepção de que o homem se autoengendra, ou seja, produz a si mesmo,

através do seu próprio trabalho; concepção que está na origem da elaboração do seu

conceito de trabalho nos Manuscritos de 1844. Essa concepção, como vimos, aparece

em O Capital quando Marx afirma que o homem transforma a si mesmo, isto é, a sua

natureza, na medida em que transforma a natureza exterior mediante a sua atividade

laboral. Pensamos ainda que em O Capital Marx recoloca a problemática do trabalho

estranhado quando analisa, ainda no livro primeiro, as consequências negativas que

passam a afetar o trabalhador com o advento da maquinaria, este rebento profícuo da

união da ciência e da técnica tão celebrado pelo capital. Pois com o uso intensivo da

84 Idem, p. 949

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máquina no processo produtivo o trabalhador fica num segundo plano, já que ele tem de

se subordinar ao automatismo desse meio de produção que parece adquirir vida própria.

Assim, em vez de o trabalhador empregar os meios de produção, são os meios de

produção que passam a empregar o trabalhador.No livro III de O Capital, mais exatamente em algumas passagens do capítulo

XLVIII, Marx afirma, de forma bastante semelhante ao que faz nos Manuscritos de

1844 ao tratar do problema do trabalho alienado, que os produtos do trabalho, na forma

de sociabilidade burguesa, se tornam potências autônomas frente ao trabalhador. Ou

seja, no processo de trabalho cada vez mais automatizado o trabalhador perde cada vez

mais o contato com os produtos do seu próprio trabalho a ponto dele já não mais

reconhecer tais produtos como o resultado do seu próprio trabalho. Mais ainda, esses

produtos, enquanto potências autônomas, se volta contra o próprio trabalhador. O objeto

se torna sujeito e assim se completa a subordinação do trabalho ao capital.Em suma, é patente que o conceito marxiano de trabalho dos Manuscritos de

1844, não é, de forma alguma, o mesmo de O Capital, até porque temos aí um longo

período entre uma e outra obra durante o qual o pensamento marxiano passa por

mudanças significativas. Porém, o conceito marxiano de trabalho elaborado em O

Capital traz em si, digamos assim, importantes resquícios daquele elaborado naquela

obra de juventude.

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