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Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (Coleção História na Comunidade, v.3)
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O CRUZEIROuma revista (muito) ilustrada
Alberto Gawryszewski (org.)
Coleção História na Comunidade – volume 3
O CRUZEIROuma revista (muito) ilustrada
Coleção História na Comunidade
volume 3
ReitorProf. Dr. Wilmar Sachetin Marçal
Vice-ReitorProf. Dr. Cesar Antonio Caggiano Santos
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduaçãoProf. Dr. Alamir Aquino Corrêa
Pró-Reitor de ExtensãoProf. Dr. Paulo Bassani
Pró-Reitora de EnsinoProfa. Dra. Fátima Cristina de Sá
Diretor do Centro de Letras e Ciências HumanasProf. Dr. Ludoviko Carnascialli dos Santos
Chefe do Departamento de HistóriaProf. Dr. Cristiano Gustavo Biazzo Simon
Coordenador do LEDiProf. Dr. Alberto Gawryszewski
Agradecemos
• Aos funcionários:
- CDPH/UEL; - Biblioteca Municipal de Londrina; - Comissão de Licitação/UEL; - Arquivo Público do Estado de São Paulo.
• Em especial, a Diretora da DM/UEL, Dra. Arlete F. da Silva Reis.
Alberto Gawryszewski (org.)
Universidade Estadual de Londrina
Londrina • 2009
Coleção História na Comunidade
volume 3
O CRUZEIROuma revista (muito) ilustrada
Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina
Copyright© dos autores
Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral
Imagem da capa: O Cruzeiro, 26/04/1930 Imagem da contracapa: “Personalidades do ano de 1956”, O Cruzeiro, 06/01/1957
Tiragem: 1000 exemplares
Distribuição gratuita. Venda proibida.
Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CiP)
Toda matéria publicada é de inteira responsabilidade dos autores.
impresso no Brasil / Printed in Brazil
Feito depósito legal na Biblioteca Nacional
C957 O Cruzeiro : uma revista (muito) ilustrada / Alberto Gawrysewski (org.). Londrina : Universidade Estadual de Londrina / LEDI, 2009. (Coleção História na Comunidade, v.3) 90 p. : il.
Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-067-9
1. Ensino de História. 2. Ilustração. 3. Fotojornalismo – Brasil – História. I. Gawrysewski, Alberto. II. Título.
CDU 930.1:77
Apresentação
Sumário
7
9
35
55
89
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de HistóriaAna Heloisa Molina
Ilustradores da revista O Cruzeiro Alberto Gawryszewski
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960 Jorge Luiz Romanello
Referências bibliográficas
Sobre os autores
Ana Heloisa MolinaDoutora em História Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora Adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual de [email protected]
Alberto GawryszewskiDoutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de [email protected]
Jorge Luiz RomanelloDoutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]
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Apresentação
A publicação deste terceiro livro, da coleção História na Comunidade, é a continuidade da realização de um desejo: dar transparência às atividades científicas produzidas pelos professores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em especial do Departamento de História, que participam do Laboratório de Estudos dos Domínios da imagem (LEDi). É possibilitar um diálogo entre o saber científico e a comunidade.
Em agosto de 2006, foi criado no Departamento de História da UEL, na forma de projeto integrado (pesquisa/ extensão), o LEDI. Em três anos de existência, este tem desenvolvido diversas atividades relevantes. Entre elas podemos apontar: a realização, em maio de 2007, do I ENEIMAGEM (I Encontro Nacional de Estudos da Imagem – (www2.uel.br/eventos/eneimagem); a publicação da revista semestral Domínios da Imagem – http://www2.uel.br/cch/ his/dominiosdaimagem/ (em novembro de 2009 será lançado o número 05); cursos de extensão, e a realização, em maio de 2009 do ii ENEiMAGEM (www.uel.br/eventos/eneimagem).
Em 2008, o LEDI teve aprovado seu projeto junto ao PROEXT/2008- Programa de Extensão Universitária (ProExt Cultura), um programa dos Ministérios da Cultura e da
Educação, realizado com a colaboração da Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João Del Rei (FAUF). Para este projeto partimos da afirmação contida nas Diretrizes Curriculares para o Ensino da História na Educação Básica, que diz que as imagens, livros, jornais, fotografias, filmes etc. são documentos que podem ser transformados em materiais didáticos de grande valia na constituição do saber histórico.
Este livro, que acompanha a exposição com o mesmo nome, foi concebido como mais um instrumento nas mãos dos professores na tarefa de dialogar com os alunos. Existem muitos trabalhos acadêmicos que tratam da revista O Cruzeiro e da fotorreportagem, mas nenhum dirigido ao público comum.
A exposição, composta por cerca de 80 banners (que podia variar conforme o espaço físico disponível), será montada em escolas,
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museus, associações esportivas, classistas e culturais. Foi dividida em tantas cinco partes, da seguinte forma: Capas; reportagens sobre diversos temas (lazer, policial, política, entre outras); propagandas; Riso (charge e caricatura); Assis Chateaubriand.
Este livro é formado por três artigos. No primeiro a autora propõe discutir as características essenciais dos periódicos enquanto fonte histórica e apontar sugestões para a sala de aula no Ensino Fundamental e Médio, recortando os temas propaganda, a construção dos papéis masculinos e femininos e variedades culturais e sociais no interior da revista O Cruzeiro delimitando as décadas de 1930 e 1940 para tal proposta.
O segundo artigo discute alguns ilustradores da revista O Cruzeiro. Optou-se em apresentar quatro importantes desenhistas: Belmonte; Nássara; Augusto Rodrigues e Borjalo.
Por fim, no último, o autor teve por objetivo escrever uma breve história da revista O Cruzeiro destacando aspectos gerais de sua trajetória de quase cinco décadas: o uso maciço de imagens; importância no cenário político e cultural brasileiro, estratégias de comunicação etc. Metodologicamente o autor recorreu, sempre que possível, a análise das imagens e dos conteúdos das reportagens discutidas dentro das tendências historiográfica atuais sobre a temática.
Espero que este livro, da coleção História na Comunidade (composta por nove livros), contribua para o debate do ensino de História e, especialmente, possa ajudar no resgate de um importante instrumento de cultura e lazer do Brasil, bem como formador de opinião, a revista O Cruzeiro.
Este material pode ser copiado, no todo ou em parte, devendo ser nomeada sua fonte. O download dos textos poderá ser realizado pela página do LEDI (http://www.uel.br/cch/his/ledi/ ), bem como dos vídeos produzidos e das imagens que compõem a exposição.
Boa leitura!
Alberto GawryszewskiCoordenador da coleção
9
O uso de revistas, jornais e periódicos em aulas de
história para o Ensino Fundamental e Médio não é novidade.
Recortes de jornais, trechos e imagens de revistas pontuam
livros didáticos ou mesmo em textos preparados por
professores.
O desafio seria pensar tais fontes históricas
transformando-as em mediadoras culturais na relação de
ensino e aprendizagem em sala de aula.
Siman (2004) toma as idéias de Vygotsky para analisar
a construção e a aquisição do conhecimento (e da própria
subjetividade) a partir de matrizes sociais mediadas pela
cultura e pela linguagem.
Desta forma, o professor de História ao mediar as relações
entre os sujeitos e o objeto a ser conhecido (o conhecimento
histórico) inclui
[...] como parte constitutiva do processo ensino/aprendizagem, a presença de outros mediadores culturais, como os objetos da cultura, material, visual ou simbólica, que ancorados nos procedimentos de produção do conhecimento
Ana Heloisa Molina
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista
O Cruzeiro na aula de História
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Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
histórico possibilitarão a construção do conhecimento pelos alunos, tornando possível “imaginar”, reconstruir o não vivido diretamente, por meio de variadas fontes documentais” (SIMAN, 2004, p. 88)
Neste sentido, procuramos relembrar algumas
características essenciais dessa fonte (periódico) e apontar
algumas sugestões para a sala de aula de História, recortando
os temas propaganda, a construção de papéis masculinos e
femininos e variedades, no interior da revista O Cruzeiro e
delimitando as décadas de 1930 e 1940 para tal proposta.
História e periódicos
Temos a possibilidade de leitura e escrita da história
tanto nos periódicos como por meio dessas fontes e como tal,
existem armadilhas passíveis de serem contornadas desde que
atentos a alguns cuidados.
Não podemos deixar de registrar o alerta de Ana Maria
de Almeida Camargo
[...] corremos o grande risco de ir buscar num periódico precisamente aquilo que queremos confirmar, o que em geral acontece quando desvinculamos uma palavra, uma linha ou um texto inteiro de uma realidade (apud LUCA, 2006, p. 117).
Mediante a essa não fragmentação, podemos pensar
jornais e periódicos como uma fonte rica para obtenção de
dados econômicos e a ampliação de aspectos da vida social,
política e cultural de um determinado período histórico.1
1 Entre outros pesquisadores, Gilberto Freyre, por exemplo, estudou aspec-tos da sociedade brasileira no século XIX a partir de anúncios de jornais, no texto “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”. Recife, Imprensa Universitária, 1963 (LUCA, 2006, p.117)
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Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
Revistas, porém, necessitam de um grande cuidado.
Temos revistas ilustradas ou de variedades, e em grande
quantidade de títulos, em número crescente a partir do início
do século XX.
A leitura fácil e agradável e a abundância de temas e
imagens, em diferentes suportes como fotografias, desenhos,
charges e caricaturas, diagramadas de forma a chamar a
atenção dos leitores foram a tônica naquele momento.
Mas o que é uma revista de variedades? Luca (2006, p.
121) nos esclarece:
[...] poderia incluir acontecimentos sociais, crônicas, poesias, fatos curiosos do país e do mundo, instantâneos da vida urbana, humor, conselhos médicos, moda e regras de etiqueta, notas policiais, jogos, charadas e literatura para crianças, tais publicações forneciam um lauto cardápio que procurava agradar a diferentes leitores, justificando o termo variedades.
A autora alerta ainda para o uso deste termo no início
do século XX, onde a escolha “[...] não era arbitrária, antes
apontava para a relativamente pequena segmentação de
mercado. [...] Ainda que grande parte se autodenominasse
“de variedades”, é possível distinguir a intenção de atingir
públicos diversificados” (2006, p. 122).
Assim, as revistas de variedades procuravam atender ao
público feminino, masculino, infantil, esportivo, educacional,
literário, cultural e científico que no decorrer do século XX se
especializarão em segmentos distintos.
Procuremos atentar à materialidade das revistas em
diferentes momentos históricos ou perceber as mudanças
ocorridas em uma mesma revista em sua apresentação visual.
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Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Formato, tipo de papel, tamanhos de letras, diagramação
e disposição de imagens e textos, qualidade de impressão,
cores utilizadas, a divisão em seções, a distribuição de
títulos e subtítulos são alguns elementos que necessitam
de atenção, pois, tais apresentações propõem uma forma
de leitura, nada inocente, direcionando o olhar do leitor a
determinadas imagens ou manchetes em destaque, o que nos
coloca outros vetores: as orientações dos editores e o público
alvo de anúncios e reportagens, ou seja, o circuito produção,
circulação e recepção.
Feitos tais alertas vejamos as singularidades da revista
O Cruzeiro.
O Cruzeiro e o contar “a Verdade”.
O Cruzeiro surge em 1928 e a fotografia e a reportagem
adquirem novos sentidos e status o que proporciona a liderança
de vendas à revista.
A revista possuía circulação semanal, a primeira a
percorrer todas as regiões do país e pertencia ao conglomerado
“Diários Associados” sob a liderança de Assis Chateaubriand.
Com tiragem inicial de cinqüenta mil exemplares estabelecia um verdadeiro Record para os padrões da época chegando a circular 600.000.000 exemplares em média entre o meio e o final da década de 1950, atingindo um público estimado entre três e quatro milhões de leitores (devemos lembrar que cada revista normalmente era lida por várias pessoas) (ROMANELLO, 2009, p. 14).
A importância dessa revista no decorrer da primeira
metade do século XX pode ser mensurada pelos leitores
13
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
colecionarem tais reportagens acreditando guardar em suas
casas um pedaço da história do país e do mundo, “[...] uma vez
que os editores e fotógrafos de O Cruzeiro produziam no leitor
a sensação de contar “A Verdade” dos fatos, e não apenas uma
versão – entre muitas possíveis – sobre eles” (ROMANELLO,
2009, p. 16).
Fartamente ilustrada, com fotografias coloridas e
desenhos, com textos cuidadosamente redigidos para serem
lidos com rapidez e facilmente compreendidos, impressa em
papel de alta qualidade, que a tornava mais atraente, os temas
abordados ganham uma nova dimensão de apresentação e
recepção pelos leitores.
Uma breve parada para analisarmos os desenhos da
revista.
No período compreendido entre 1928 a 1940, as imagens
– desenhos, charges e fotografias – serviam muito mais para
explicar, ao acrescentar informações ao texto escrito. Ao
seduzir o olhar do leitor fazia com que este se interessasse
pelos assuntos apontados, e o direcionasse às informações
explicitadas pelo texto escrito.
Segundo Romanello (2009) o uso de desenhos era uma
opção, uma forma de atender ao gosto do público naquele
período, ainda muito acostumado a este tipo de comunicação,
pois os desenhos permitiam ressaltar detalhes e usar uma paleta
maior de cores, situação em que as fotografias começavam a
aperfeiçoar, bem como, as técnicas para imprimi-las.
Propagandas e a sedução do consumo
A publicidade irá atender às novas necessidades impostas
pelas mudanças da vida urbana e social do início do século XX
14
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
e a imprensa periódica a transformará em sua principal fonte
de recursos.
O anúncio se altera em sua estrutura e linguagem e os
reclames ocupam diferentes espaços seja em muros, bondes,
restaurantes, almanaques, jornais e revistas.
Pelas propagandas podemos perceber uma série de
elementos importantes na compreensão do cotidiano e da
dinâmica da sociedade em determinado período histórico,
como por exemplo, os diferentes estilos e padrões de vida,
as diversas expectativas dos vários grupos sociais, os papéis
delegados a mulheres, homens, crianças e idosos naquela
sociedade, os códigos de comportamento entre outros.
A publicidade não anuncia somente um produto, mas,
provoca um desejo. Esse desejo pode ser ao comprar um
produto possuir automaticamente as qualidades descritas pela
imagem e reforçadas pela seleção de palavras que a acompanha
como belo, forte, viril, saudável e sedutora. Recursos textuais e
visuais, as intenções empregadas para atrair o consumidor do
produto, as palavras chaves de persuasão propõem modelos
de comportamento e a manutenção de padrões estéticos a
diversas categorias sociais.
As propagandas veiculadas pelo O Cruzeiro eram
executadas em forma de desenhos ainda no início da década de
1950. Por meio desses desenhos oferecia ao consumidor uma
variedade de serviços e objetos como produtos farmacêuticos,
mobiliários, sapatos, bebidas entre outros. Destacam-se
os produtos dirigidos às mulheres, principal alvo da revista
enquanto um público consumidor em potencial, em especial,
os cosméticos e alimentos para a família como nas figuras 01,
02, 03 e 04 abaixo.
Comentemos as ilustrações.
15
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
A ilustração 01 nos traz informações textuais e visuais
interessantes. As propagandas da página à esquerda nos
anuncia, em desenhos, de cima para baixo, a loção Frank
Lloyd, aparentemente, unissex, com a chamada “ A loção
Frank Lloyd fica para o encantamento de todas as horas”;
no meio da página a esquerda, Vinovita “ É preciso que os
músculos e cérebros estejam vigorosos, isso só se consegue
com o poderoso tônico Vinovita” e abaixo, a publicidade dos
sapatos “Pompadoior. O sapato elegante que todas preferem”.
A página a direita é inteiramente dedicada à qualidade dos
biscoitos Aymoré, marca famosa, ainda hoje, no Rio de
Janeiro, pois “Um biscoito Aymoré appetece sempre. Em
qualquer occasião, ao café ou à hora do chá”.
A ilustração 02 nos proporciona outro viés. O uso de
fotografias interativas à palavra, marca do produto. Nesse
caso, a pasta Limol “ Faz uma pérola de cada dente” ocupa a
metade de duas páginas, com textos, em colunas, louvando
seus efeitos, e mulheres sorridentes abraçando as letras do
dentifrício. Vale observar que tal propaganda encontra-se
Ilustração 1. O Cruzeiro. 29/05/1937
16
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
abaixo de uma série de 04 fotografias de uma bela mulher
sorridente apresentando os cuidados necessários e charmosos
com os cabelos, em um diálogo sedutor entre as diversas
imagens, mesclando os produtos e suas mensagens.
A página escolhida para a ilustração 03 nos fornece
elementos instigantes. Temos a propaganda, com letras
destacadas, do produto cafiaspirina, (a atual aspirina) com o
texto “Eu me defendo trazendo sempre na bolsa um “carnet”
de cafiaspirina. Cafiaspirina o remédio de confiança contra
dores e resfriados, dor de cabeça e crises mensaes” ao lado
do logotipo dos laboratórios Bayer. Percebemos a figura de
uma mulher sorridente, prevenida, que possui um remédio
adequado tanto para a família (resfriados) quanto para
indisposições tipicamente femininas como as crises mensais
(leia-se as temidas cólicas menstruais).
É interessante notar que abaixo, em um retângulo menor,
e uma figura desenhada com tremores, temos o anúncio de
outro remédio contra dores de cabeça, o Transpirol: “Cuidado
com o primeiro arrepio. Transpirol evita resfriado, gripes,
Ilustração 2.O Cruzeiro. 13/05/1939
17
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
dores de cabeça”. Ainda
na coluna esquerda, outro
anúncio para as senhoras,
em um pequeno quadrado
onde uma figura feminina
com barba propaga: “Bigode
de senhoras e verrugas.
Eliminação garantida.
Absolutamente sem
cicatrizes” e o endereço do
consultório do profissional
responsável pela proeza.
Na coluna da direita temos
anúncios de produtos
destinados à família como o Tônico infantil e desenhos de
duas crianças e acima, a pasta Kolynos, que “ embelleza seu
sorriso” é demonstrado pela fotografia de uma mulher branca
e loura, sorrindo.
Temos aqui elementos suficientes para refletirmos
alguns aspectos dessas mensagens tanto para o período como
para o contemporâneo: a ação de grande laboratórios (Bayer)
ou marcas (Kolynos) estrangeiros; o modelo ideal de mulher
como agente de propaganda (loura e branca); os cuidados
higiênicos associados à beleza do corpo (comprimidos para a
família e crises mensais, dentifrício que embeleza e eliminação
de pêlos por profissionais), o que nos propõe a pensar na
permanência, sutil, desses vieses em propagandas atuais (vide
especialmente aquelas veiculadas pelas vendas de cervejas,
as pastas dentais ou aparelhos que prometem acabar com os
incômodos da depilação em canais de shoppings virtuais).
Ilu
stra
ção
3. O
Cru
zeir
o. 1
7/0
6/1
939
18
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Os anúncios da ilustração 04 são demonstrativos que
a sedução para a compra de determinados produtos está
relacionada às idéias de força e energia. Temos então um
casal beijando-se apaixonadamente indicando que Sexuol é
aconselhado para os casos de fraqueza nervosa e ergastenia
(estafa) (observando que não há textos, mas, a imagem e as
palavras relacionando-as ao produto) e um homem rabiscando
em uma parede “nada de xaropes ou remédios”, pois, Uredol
em gotas é um “dissolvente do ácido úrico”.
Atentemos que estes anúncios estão localizados em uma
página a esquerda da revista, no canto inferior direito para
refletirmos sobre sua capacidade de atrair a atenção em meio
a outros textos, ou mesmo, os valores pagos pelos produtos
para anunciar em posições mais favoráveis, o que nos remete
também à capacidade de síntese entre imagens e palavras
chaves, exercendo um impacto visual
e promovendo significados de forma
direta ao público.
A leitura de imagens e textos
de produtos em propagandas nesse
periódico nos permite exercitar
alguns pontos: a crítica ao consumo
hoje (ao lidar com as informações que
nos são transmitidas pelos anúncios
publicitários podemos pensar acerca
do discernimento para o consumo
atual e o estímulo ao supérfluo);
a semelhança entre os produtos
oferecidos naquele período e hoje; os
Ilustração 4. O Cruzeiro. 11/02/1939
19
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
modelos de propaganda, principalmente, os femininos; a
decodificação direta dos rótulos dos produtos no período
(Sexuol, Limol, Vinovita, por exemplo); as imagens
desenhadas das propagandas entre outros.
Mulheres e homens: lugares sociais e imagens
construídas
Podemos pensar que as imagens veiculadas em um
periódico nacional proporcionam determinadas construções
sobre o masculino, o feminino e a família que desejam
atingir.
Maria Paula Costa ao analisar a imagem feminina na
revista Cláudia nas décadas de 1960 a 1980 nos apresenta
algumas considerações pertinentes que podemos adotar nesse
item, atentando para os devidos períodos históricos.
A Revista Cláudia privilegiou a vida cotidiana feminina principalmente no âmbito familiar. No início dos anos 60, quando foi lançada, o perfil idealizado pelos editores seria a mulher casada, dona de casa, mãe e que teria no universo do lar o palco principal de suas experiências. O cotidiano familiar transformou-se em discurso nas páginas de Cláudia, e várias representações em torno do feminino e do masculino foram construídas, pensadas, inventadas e reinventadas no decorrer do período pesquisado (COSTA, 2009, p. 70).
Nos interessa aqui especialmente as construções e
reinvenções sobre o feminino e o masculino nas reportagens
apresentadas pelo O Cruzeiro.
Essa revista destinava seções direcionadas às mulheres
com títulos gerais como “Moda” ou “Culinária” e em um
período menor, por algumas décadas, possuía uma seção de
20
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
conselhos femininos intitulada “Da mulher para a mulher”
com opiniões sobre um amplo leque de possibilidades, desde
a vestimenta adequada a determinadas ocasiões ao desejo de
ser independente, indagações presentes nas correspondências
de mulheres de todo país.
Nessas duas páginas da edição de 14 de agosto de 1943
(ilustração 05) temos elementos interessantes que nos dão
a dimensão desse moldar o público feminino. À esquerda,
a página apresenta uma reportagem sobre vitaminas (canto
direito superior): “A vitamina E e sua influencia sobre
os órgãos de reprodução”; três anúncios, dois tomando
grande parte das colunas a esquerda (“Lojas Dr Scholl para
o conforto dos pés”) e a direita (Realce os encantos de sua
cútis. Milhares de mulheres usam e recomendam o talco
Ross para realçar a beleza da cútis. Boratado, antisséptico
e confortante) e um pequeno quadro da “Casa e Jardim” no
canto inferior esquerdo. Entremeando as três propagandas
temos trechos das cartas destinadas à seção “Da mulher para
a mulher”, respondida por Maria Teresa.
Observemos algumas perguntas e excertos de
respostas:
Ilustração 5. O Cruzeiro.14/08/1943
21
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
Jacy – Rio “Como conquistá-lo?”: Resposta: “No seu
caso ao que parece tudo marcha de maneira mais ou
menos satisfatória e, se for hábil, conseguirá, finalmente
chegar ao fim. Você bem o merece”.
Neném – Florianópolis “ só me casarei com trinta anos”.
Resposta: “Creio que deve pensar assim “só me casarei
quando encontrar alguém que ame” e estará com a razão.
O resto é literatura.”
Martha Lúcia – Rio “devo esperar que volte?” Resposta:
“[...] Aliás, antes do casamento, nenhuma situação deve
ser forçada e qualquer compromisso pode ser desfeito,
desde que represente sacrifício.”
Malita – Rio Grande do Sul “ acho que uma moça deve
ler tudo.” Resposta: “Discordo. Há coisas que nem
um homem, em díade adulta, deve ler. [...] E os livros
denominados “fortes” só podem cair nas mãos de criaturas
que possam compreendê-los convenientemente.”
Em meio a produtos para os pés, para beleza da cútis
e novidades para a casa, as indagações e respostas às cartas
possibilitam perceber a valoração da conquista e fisgar o
homem certo para o casamento e os compromissos com essa
instituição civil; o amor como premissa ao compromisso
matrimonial e as indicações de leituras a jovens, para
que essas não sejam envenenadas em suas concepções e
convenientemente encaminhadas à boa literatura. Essas
referências dizem respeito à família e ao lugar da mulher
como esposa e indivíduo a ser guiado, especialmente, em um
momento da história onde a mulher, devido ao período da II
Guerra, ocupa o mercado de trabalho e tem acesso ao voto, ou
seja, reorganiza e redimensiona seu papel na sociedade.
22
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Na página a direita, tomando metade da folha, a fotografia
de uma jovem sorridente, a beira da piscina, recostada em
uma espreguiçadeira em trajes de maillot, tendo crianças em
efeito borrado na água ao fundo.
Maria Teresa escreve mais longamente nessa seção
indagando sobre os “Perigos do amor” e responde a mais
correspondências como para a Funcionária – Rio, se esta
deve ou não usar óculos ou Juma – Rio Grande do Sul
sobre a renúncia ao amor ou ser “a outra”, onde a tônica,
nessa questão prende-se, para a conselheira sentimental,
às ilusões, relacionando-as aos perigos do amor, título de
chamada da página. As respostas de Maria Teresa (não
sabemos seu sobrenome, cargo ou se realmente era uma
mulher respondendo a outras) sugerem um reenquadrar e
moldar para o lar e as relações sociais, preservando assim, a
instituição família, um dos pilares da propaganda veiculada
pelo governo Vargas.
Sobre a figura da mulher conquistadora, mas,
enquadrada em determinados padrões, temos duas
propagandas interessantes.
As figuras 06 e 07 apontam produtos cosméticos com
apelos comerciais e sedutores.
O anúncio do creme Pond’s traz duas fotos e um
longo texto atestando as qualidades do produto para a
saúde da pele. As fotografias trazem uma jovem de cabelos
curtos e ondeados e sorriso sedutor. Abaixo a fotografia e o
depoimento da marquesa de Cambridge “bella cortezã de
Inglaterra” corroborando os efeitos promovidos e prometidos
pelo produto.
As semelhanças entre as figuras femininas selecionadas
apontam a aproximação, ou sua tentativa, entre modelos
23
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
estéticos internacionais
e a adequação ao público
feminino brasileiro, ou seja, se
até a cortesã inglesa utiliza um
produto acessível e facilmente
encontrado em farmácias,
porque não a mulher brasileira?
Lembremos, somente que o
termo “cortesã”, aqui, possui
a conotação de pertencente
à Corte, à nobreza, no caso, a
inglesa.
A ilustração 07 propaga
as vantagens dos productos
Satan com o título “Realce o
encanto de sua beleza” com o
desenho de uma bela mulher
cujas feições evocam a grande
dama do cinema Greta Garbo (1905-1990). A marca desse
cosmético sugere uma mulher fatal realçada pelos encantos
do produto calcada em uma atriz de grande apelo erótico,
mas, ao mesmo tempo, recatado, como toda mulher, leitora
de O Cruzeiro deveria ser. A atriz tomada como referência
para o desenho exerceu, durante sua atuação no cinema
norte americano (entre 1926 a 1941) uma aura de mistério, de
fascínio, inatingível, cujo filme A Dama das Camélias (1936)
tornou-se sucesso de público pela estória de uma prostituta
se redimir ao final da vida pelo amor, mas, esse amor não ser
possível de consagração, pois, a doença, devido aos excessos, a
ceifa da felicidade. Nessa película tais características tornaram-
se mais marcantes e consagraram internacionalmente a atriz,
Ilu
stra
ção
6.O
Cru
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/08
/19
38
24
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
símbolo de beleza, encanto feminino e intocabilidade, daí, sua
referência em muitos produtos destinados às mulheres.
Os modelos masculinos, ou melhor, as possibilidades da
construção do masculino encontram-se nas ilustrações 8 e 9.
A reportagem, em duas páginas abertas, apresenta
o sugestivo título “Necessita o homem ser bello?” feita por
Maurice Romain, de Paris, no qual entrevista mulheres da
sociedade francesa na discussão desse interessante assunto.
As mulheres entrevistadas são caricaturadas em meio ao texto,
que possui as seguintes chamadas: “A força e a expressão, eis a
verdadeira belleza masculina, diz Germaine Dulac”; “Todo os
homens interessantes a quem conheci, diz Marguerite Deval,
eram feios”; “Escolha de preferência um marido bello, diz
Mme Yvonne Netter”. Os cantos das duas páginas apresentam
uma fotografia em tamanho grande, de Charles L Laskey, que
segundo a legenda que as acompanha nos informa que se
trata de “bailarino americano, considerado padrão de belleza
corporal”, agregando, ainda, as fotografias, em tamanho
Ilustração 7. O Cruzeiro. 24/02/1938
25
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
menor do astro hollywoodiano, Cary Grant, “Um homem
bonito” e Walter Connoly, na outra página com a legenda “Um
homem feio”.
Cary Grant (1904-1986) inglês, com 1,87m, alça ao
estrelato em 1935 com o filme “Vivendo em dúvida” junto à atriz
Katharine Hepburn. Símbolo de elegância masculina, estréia
a comédia “Levada da breca” (1938) e o musical “Prelúdio de
amor” (1937) consolidando uma carreira cinematográfica com
tipos boas praças, sedutores e defensor de valores familiares.
Walter Connolly (1887-1940) ator americano,
coadjuvante, atuando no cinema entre 1914 e 1939, era
conhecido por personagens rústicos, com uma figura rotunda
típica, representava normalmente papéis como empresários
exasperados ou chefes maus.
A disposição das fotografias, caricaturas, texto e
chamadas internas nos sugere que é desejável que o homem seja
belo, especialmente o eleito para o matrimônio, mas, a presença
de “força e expressão” e “interesse” para os menos favorecidos
constituem cabedal também para brilhar na sociedade, ao
Ilustração 8. O Cruzeiro. 20/08/1938
26
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
menos, na francesa e porque não na brasileira, já que ressoam
por aqui muitos dos clichês europeus naquele momento.
A escolha dos atores do cinema e do bailarino como
padrão de comparação não foi casual. Tais referências conjugam
possuir ou não beleza plástica às qualidades expressas por
esses personagens, amenizando os possíveis “desajustes” ao
exercer determinadas características aceitáveis socialmente.
Ilustração 9. O Cruzeiro.14/05/1938
A ilustração 9 apresenta em duas páginas abertas, uma
reportagem especial para a revista realizada por A. Gugas,
“Para que os homens aprendam a cosinhar” e os seguintes
trechos do texto: “ Os homens estão aprendendo a cosinhar –
pois não. Isto também está sendo feito em Nova York, a cidade
das cousas surprehendentes. Não só as mulheres, donas de
casa devem saber a arte subtil de Vatel e seus discípulos, pela
falta de empregadas domésticas. Mas...quando as esposas
fizerem greve? Os barbados deverão ir para a cosinha e é esta
a razão pela qual.... estão pondo as barbas de molho! [...] E
são os homens de destaque social os alumnos mais assíduos.
Talvez porque estejam acostumados a comer bem, e não
27
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
queiram se arriscar a ingerir bifes de sola e arroz com Bispo”
A legenda: “Lavar pratos também faz parte do aprendizado”
constitui o toque de humor a um surpreendente assunto,
segundo inferimos pela reportagem.
As fotografias contribuem para reforçar essa “revolução”
masculina, já que a cozinha é um espaço consagrado da dona
de casa, mesmo para as esposas de “homens de destaque
social”. Um senhor jovem com barbas, em mangas de camisa,
aparentemente, batendo manteiga, supervisionado pelo
chefe e de homens confeitando um bolo, por exemplo, no
canto direito em coluna e outras fotografias com os alunos
observando cuidadosamente o chefe da escola de culinária
reforçam as frases do texto. Apesar de se tratar de um caso
na “surpreendente” Nova York repercutiria da mesma forma
em lares brasileiros? Talvez, como peculiaridade para a elite,
pois, o uso do termo surpreendente, por diversas vezes, alude
a exceção da situação.
Poderíamos indagar junto aos alunos quais os padrões
de beleza sugeridos pela sociedade, a influência dos meios de
comunicação e da cultura de massa na invenção de referências
masculinas e femininas e os papéis esperados para homens e
mulheres contemporaneamente a partir dessas duas últimas
ilustrações apontando para o poder de sedução e sugestão das
imagens e de palavras escolhidas para a construção de uma
sociedade que define claramente suas funções e lugares.
Variedades: o universo cultural e a sociedade em
flashes diversos.
Os temas culturais, a coluna social e a transformação
de elementos da sociedade e da paisagem em espetáculo
28
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
constituem os motes de um periódico voltado a entreter e
informar o público.
Selecionamos três figuras, entre tantas, para pensarmos
esse item. Como comentado, por variedades entende-se
acontecimentos sociais, crônicas, poesias, fatos curiosos
do país e do mundo, instantâneos da vida urbana, humor,
conselhos médicos, moda e regras de etiqueta, notas policiais,
jogos, charadas e literatura para crianças entre os temas
propostos pela equipe editorial da revista.
A primeira ilustração tem como chamada “Doze anos
com Walt Disney”
As legendas das imagens correspondem à esquerda no
alto com os dizeres “ O
primeiro “Mickey” e a
primeira “Minnie” de
Disney em 1928. À direita
figuras de sua primeira
“Silly Sinphonies” em
1929”, com três caveiras
dançando.
Ocupando mais
da metade da página
uma cena do filme
Três Porquinhos com
a legenda “O primeiro
grande sucesso de Walt
Disney foi em 1933 com
os “Três Porquinhos” que cantavam “Who’s afraid of the big
bad wolf”. Continuação nas páginas seguintes”. Esse quadro
maior, levemente deslocado chama a atenção do público
infantil e também do adulto para a indústria cinematográfica
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Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
e de desenho animado em franca expansão, salientando os
principais personagens de Disney (os camundongos Mickey,
Minnie e o cachorro Pluto) e a animação, especialmente via
música, de histórias infantis clássicas.
Em meio às transformações tecnológicas da indústria do
cinema e da atração exercida, ainda hoje, pelo império Disney
de animação, convém refletir com os alunos o papel do cinema
na sociedade contemporânea, a expansão visual dos games e
jogos interativos e o reinventar da imagem cinematográfica
pela versão em terceira dimensão.
Ilustração 11. O Cruzeiro, 21/05/1938
A ilustração 11 alia a crônica poética sobre o morro e
imagens que o repórter José Conde, autor do texto, considera
como a paisagem humana. Nessa reportagem temos a autoria
das fotografias, que nesse caso, pertencem a Kikoler e a
chamada possui referências onduladas, como a própria idéia
de morro.
Vejamos trechos do texto:
30
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
[...] Tudo foi afastando o pobre para os casebres de latas, do morro. Veiu o malandro: mixto de desordeiro e poeta. O samba era uma expressão da alma daquella gente. Triste, angustiado. Conseqüência da miséria do meio. A religião foi trazida pelos escravos da costa e aqui sofreu influencias da terra. Adaptou-se. Macumbas com “mãe de santo” e “filha de santo”. Com Xangô, Ogum, Exu. Com grande tristeza nos cantos de uma saudade estranha. Hoje o malandro desceu p’ra cidade. O andar bambo, a camisa listada. No morro ficaram as famílias pobres de operários e de marítimos que vão vivendo a vida ao seu jeito.
Nesse excerto podemos pensar alguns temas como: a
idéia de morro apresentada enquanto um lugar primeiramente
do malandro e depois do pobre; a descida do malandro à
cidade; a expressão do samba como elemento cultural das
classes sociais menos favorecidas; a religião africana e as
apropriações realizadas por seus moradores. Cabe perceber o
tom melancólico dado às macumbas de “mãe de santo” e os
cantos entoados por seus integrantes.
[...] negras lavando roupas, outras mulheres cuidando dos serviços caseiros, magras, caras de soffrimento. Uma venda, mais adeante (onde, de noite, os homens vêm beber e cantar sambas, para esquecer a vida). Crianças que não tem brinquedos, mas sabem brincar de roda... “Sou uma pobre viúva...Pobre de mim....”. Lá em baixo é a cidade grande se estendendo até longe. O mar. A bahia. Os edifícios sumptuosos. Coisa differente, que não é triste.
Esse trecho poético alia a descrição das mulheres pobres
e magras e os homens que vão ao bar a cantar os sambas em
contraste com os edifícios majestosos da cidade. O contraponto
pobreza-riqueza e a dura vida de seus personagens são descritos
nas histórias dos moradores como a de “[...] Vicência é viúva.
31
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
Cheia de filhos para criar. O marido ficou debaixo das rodas de
um bonde”; e os caminhos possíveis sonhados especialmente
pelas crianças. “Cada um tem o seu ideal. Esse menino deseja
ser marinheiro para correr mundo.”
As imagens da página à esquerda salientam uma criança
chorando, os barracos e as formas de cozinhar. Essas últimas
possuem como legendas “Cozinhar ao ar livre não enche
de fumaça a casa” e “ A bateria é pequena, e as cozinheiras,
milagrosas” indicando as dificuldades apresentadas e as
soluções encontradas pelas mulheres na sobrevivência
cotidiana.
O que une as duas páginas é uma fotografia deslocada
de crianças brincando de roda, tendo a paisagem de galpões
e trens a seus pés. À direita, como pilar, fotografias de duas
negras grávidas trabalhando: a primeira cortando lenha e a
segunda lavando roupa em uma tina. A legenda indica uma
contradição ou uma inversão da idéia de trabalho, como se no
morro não pudesse ocorrer o trabalho, ainda mais, o pesado
executado por mulheres, mesmo grávidas guerreando pela
sobrevivência: “Também no morro se trabalha... Trabalho
differente e pesado, sem direito a descanso quando alguém
está para nascer.”
A fotografia de crianças, dois meninos e uma menina,
registradas em ângulo de baixo para cima, o que valoriza a
dimensão a que se queira dar, fecha a reportagem. A legenda
sugere alento e a capacidade da infância em resistir em meio a
precariedade da situação: “A vida é boa de verdade para estes.
E, no morro, quantos motivos para grandes descobertas que a
alma infantil realiza sempre, dentro de mil insignificâncias...”
Temas atuais podem ser dialogados com as sugestões
promovidas por esta ilustração: a ocupação de morros por
32
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
traficantes e a utilização de crianças no tráfico de drogas cada
vez mais cedo; os morros cariocas enquanto local de turismo
estrangeiro; a relação da religião com determinados setores
sociais e a infiltração de outros vieses religiosos naquele
espaço; os sinais de pobreza que foram captados pelas lentes
do fotógrafo e as mudanças ou permanências desses sinais e
principalmente, quais seriam as possíveis paisagens humanas
proporcionadas pelo morro hoje.
A ilustração 12 registra o desfile do Dia da Raça em 1937
e é uma cena perfeitamente adequada para conjeturarmos
acerca das estratégias adotadas pelo governo Vargas na
estruturação do Estado Novo.
Atentemos às propagandas em um primeiro momento.
Dispostas nos cantos esquerdos e no alto à direita têm produtos
voltados ao público feminino respectivamente: o dentifrício
Gessy “... clareia... sem desgastar o esmalte”; Metrolina “
antisséptico gynecológico para a Hygiene íntima da mulher”
e o perfume Organdy de Bazin “ a venda em todo o país. Os
perfumes tem, como as artes e as letras, os seus grandes
mestres e as suas obras primas. Organdy de Bazin é a grande
obra prima da perfumaria.”
As fotografias dos desfiles apresentam moças
uniformizadas e percebemos pelas legendas tratar-se de
escolas femininas, crianças de escolas municipais e moças
do Instituto Superior de Preparatório. Bandeiras, ordem,
uniformes, chapéus são a tônica dos registros fotográficos.
As legendas e o texto narram: “ O Rio de Janeiro assistiu
em 05 do corrente ao “Dia da Raça”. 40.000 crianças de nossas
escolas, colegiais, classes armadas, associações esportivas.”
E ainda: “Foi um espetáculo grandioso e confortador, uma
33
Propagandas, masculino/feminino e variedades: a revista O Cruzeiro na aula de História
affirmação de pujança da nova geração do Brasil [...]. Nossa
objectiva procurou collher alguns aspectos da parada, que dão
idéia da sua imponência e grandiosidade”.
Temos aqui vários elementos interessantes para discutir
o período: o desfile do Dia da Raça (05/09) às vésperas do
desfile de independência (07/09); o uso de bandeiras e
uniformes, vetores fundamentais na organização visual de
corpo da nação, corpo social muito utilizado em governos
autoritários; a presença feminina ( a mulher enquanto
símbolo da nova raça); o diálogo com os produtos próprios
ao universo feminino (perfumes, higiene íntima, pasta dental)
relacionando raça/mulher/higiene; o próprio termo “raça”
utilizada naquele momento e os adjetivos e os termos adotados
pelo texto jornalístico (pujança, imponência, grandiosidade,
nova geração).
Ilustração 12. O Cruzeiro, 11/09/1937
34
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Dessa forma, o termo “variedades” nas ilustrações
selecionadas agregou crônicas culturais, sociais e políticas
com o objetivo de apresentar flashes da sociedade, mas, sem
abrir espaços a maiores reflexões, onde até mesmo a pobreza
ganha tintas de poesia e melancolia.
Considerações finais
As sugestões ora proporcionadas nesse texto tomam
como premissa a atividade do professor em sala de aula com
o documento imagético e textual disposto em um periódico.
isso implica em pensar as etapas de apresentação desse
documento: a mobilização de conhecimentos prévios de
alunos envolvidos; a descrição (destacar as informações que
o documento possui); a explicação (associar as informações
com os conhecimentos anteriores); a contextualização do
documento na época, bem como, a identificação da natureza
do documento e finalmente, a verificação dos limites e os
interesses vinculados ao documento.
Dessa forma o uso de O Cruzeiro em uma aula de história
possibilita uma multiplicidade de questões que dialogam
com a contemporaneidade: a análise dos conteúdos dos
textos, o formato apresentado, as propagandas e anúncios, a
disposição de imagens e fotografias, as autorias envolvidas,
como o conjunto de informações está distribuído, a circulação
territorial, o consumo da revista enquanto produto cultural,
mas, também como mercadoria e o público a ser atingido.
Assim, essa fonte histórica, como outras possíveis de
serem utilizadas na organização de um conhecimento histórico
escolar, media reconstruções explicativas de um período, em
diálogos atuais, orientando alunos a atentar quanto às escritas
e narrativas históricas realizadas em diversos momentos.
35
Alberto Gawryszewski
Ilustradores da revista O Cruzeiro
O editorial do número 01 da revista
O Cruzeiro deixava clara a importância da
imagem em sua composição: “O concurso da
imagem é nela um elemento preponderante.
A cooperação da gravura e do texto concede
à revista o privilégio de poder tornar-se
obra de arte.” Por ser uma revista nova
e moderna, apresentava-se como portadora de uma nova
mensagem usando novas tecnologias. O uso das imagens, em
especial da fotografia e da ilustração em cores, e de uma nova
diagramação foi pensado para mexer com os velhos hábitos e
criar novos modelos.
A capa do primeiro número, por si só, já é um bom
exemplo da proposta do editorial. As capas eram assinadas
como se fossem quadros. Nas reportagens, propagandas,
enfim, em quase toda a revista se encontravam ilustrações
feitas pelo lápis de algum artista. As fotos também estavam
presentes e foram ocupando um espaço cada vez maior dentro
36
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
da revista, mas não tiravam a beleza e a importância dos
desenhos, em especial dos desenhos satíricos.
Nossa preocupação neste trabalho não é discutir todas
as ilustrações contidas na revista O Cruzeiro, mas mostrar o
uso do cartum, da charge ou da caricatura em seu conteúdo.
Muitos foram os que contribuíram para O Cruzeiro com sua
arte. Como exemplo, podemos citar J. Carlos (1884-1950),
com ilustrações e capas; Guevara (?-1965), com caricaturas;
Appe (1920-2006), com caricaturas políticas; Alceu Penna
(1923-1980), em páginas duplas com a série As Garotas;
Millôr (1923), com a série Pif-Paf e Ziraldo (1932-), com a
Turma do Pererê.
Péricles (1924-1961), criador de um grande sucesso com
o personagem O Amigo da Onça, Carlos Estevão (1921-1970),
continuador da série com a morte de Péricles e criador de, entre
outros sucessos, Dr. Macarra e Ser Mulher, foram estudados
no primeiro volume da série História na Comunidade (volume
01), portanto, optamos por excluí-los deste volume.
Selecionamos quatro ilustradores da revista O Cruzeiro
para a abordagem neste estudo, a saber: Belmonte, Nássara,
Bordalo e Augusto Rodrigues. Outras seleções seriam
possíveis, pois outros ilustradores fizeram excelente trabalho
na revista e em suas carreiras profissionais.
Há uma diferença conceitual entre caricatura, mais
voltada para traços corporais do caricaturado, charge, mais
voltada para crítica a um fato específico e, por fim, cartum, este
com uma linguagem artística universal. A charge e a caricatura
possuem limites temporais e espaciais, já o cartum, não.
Acredito que o leitor ficará, ao final do texto, curioso
por conhecer ainda mais sobre os artistas aqui tratados, como
também pelos apenas nomeados.
37
Ilustradores da revista O Cruzeiro
Belmonte
“Juca Pato está carecaDe tanto levar no coco...Ele apanha como peteca,Até parece pato choco...”
Os versos acima fazem parte de um maxixe (tipo de
música muito difundida no fim do século XIX e início do
século XX, propícia à dança de salão) que fez muito sucesso na
cidade de São Paulo nos anos trinta. Seu nome é “Coitado do
Juca Pato” e se refere a uma figura muito popular na imprensa
brasileira nas primeiras décadas do século XX (criado em
1925). “Juca Pato” é o personagem mais importante criado por
Belmonte. Hoje ele está associado a um importante prêmio
da Associação Brasileira de Escritores, dado anualmente:
o Prêmio “Juca Pato”. Mas seu nome já esteve associado a
propaganda de cigarros, água sanitária, graxa de sapatos,
entre outras coisas.
Sua figura, por si só, já expressava sua personalidade:
careca, óculos escuros, gravata borboleta, cabeça
desproporcional, terno preto, polaina. Ele representava o
povo brasileiro, com seus sofrimentos cotidianos, indagações
sobre a existência, mutretas políticas etc. Simbolizando o
cidadão comum, não poderia se dar bem, pois não é o povo
que paga o pato?
Segundo Belmonte: “O ideal de justiça e os anseios de
igualdade foram, em verdade, os princípios que moveram
meu Juca Pato... Seria o nosso Dom Quixote a lutar contra os
moinhos de vento não fictícios?”
Belmonte foi um paulistano por toda a vida. Nasceu
em 1897 e morreu em 1947 sendo enterrado em sua terra, na
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Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
quadra 44 do cemitério São Paulo, onde, sobre a sepultura
há uma estátua de “Juca Pato”. Foi convidado para trabalhar
no Rio de Janeiro, mas sua “vida carioca” só duraria dois
dias, retornando para São Paulo. Também foi convidado
para ir para os Estados Unidos, mas se recusou. Era, talvez,
o mais importante desenhista fora do circuito carioca, que
concentrava a “nata” dos grandes chargistas e caricaturistas
(J. Carlos, Nássara, Theo, Álvarus etc.).
O período ditatorial do Estado Novo (1937-45) se
caracterizou pela repressão às diversas formas de expressão
coletiva, fosse reivindicatória ou cultural. O Departamento
de Imprensa e Propaganda (DiP) foi o órgão responsável por
divulgar as mensagens que interessavam ao Estado, realçando
as qualidades do líder Vargas, de suas propostas, pela difusão da
imagem do “bom trabalhador” brasileiro, detentor de direitos
trabalhistas e da proteção do Estado, e pelo combate contra
o “malandro”, o “sem-emprego”, o desocupado, que deveria
ser punido por não contribuir para o “engrandecimento” da
Nação. A censura sobre as artes não poderia ter sido diferente:
músicas, jornais, esculturas, romances etc., todos sofreram
com sua existência.
A censura direta às caricaturas trouxe mudanças de
conteúdo. O sentimento reinante para os caricaturistas
de humor no Brasil foi o da decadência de seu campo de
produção, atribuída à violência da censura. Sgarbi (apud
SILVA, 1989, p.27) nos informou que a caricatura política
deixou de existir para ceder lugar à caricatura de costumes
(fatos corriqueiros do dia-a-dia sem crítica ao estado). Álvaro
Cotrim (1965, p. 25), famoso caricaturista brasileiro, sobre o
mesmo período, disse:
39
Ilustradores da revista O Cruzeiro
A partir de 1937, com a implantação do celerado DIP, a caricatura, especialmente a política, que havia dado tão belos frutos, perdeu, naturalmente, seu ímpeto, [...]. Como na França de Luiz Felipe, em 1834, ao rigor da censura, os nossos caricaturistas também se voltariam, como seus ancestrais franceses, para a caricatura de costumes, um tanto anódino.
Herman Lima (1963, p. 30) também reforça essa tese
da liberdade de criação do caricaturista citando um de nossos
maiores caricaturistas, J. Carlos:
Era assim que em pleno Estado Novo, falado à Revista da Semana, em agosto de 1944, o mesmo J. Carlos afirmava categoricamente a decadência vertiginosa da caricatura, entre nós, por falta de ambiente propício, porque ‘reproduzir nos jornais, deformando-a, a cara de pessoas ilustres, famosas ou conhecidas por qualquer motivo não tem nenhuma significação.’[...].
Belmonte enfrentou a censura do Estado Novo com
dignidade e coragem, até que foi obrigado também a se voltar
para a temática internacional, tão crítica quanto a que fazia
correntemente, mas com menos censura. Estas charges
tiveram reconhecimento de fora do país. Um dos políticos
mais caricaturados por Belmonte foi o chefe de propaganda e
subordinado íntimo de Hitler, Goebbels. Conta-se que, ao ver
os desenhos de Belmonte que lá chegavam, teria dito que o
nosso artista estava a serviço dos Estados Unidos e Inglaterra,
ou seja, receberia dinheiro para produzir aqueles desenhos.
Para a revista O Cruzeiro Belmonte criou uma charge
dividida em dois quadros, onde comparava dois tempos. Não
era uma proposta inovadora, pois na música, por exemplo,
já encontraríamos tal situação. O Brasil se transformava,
40
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
urbanizava-se e se industrializava. Desde a reforma urbana que
ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1904, a elite buscava
romper com o passado colonial e imperial e mudar o perfil
das cidades com a construção de largas avenidas arborizadas
e de prédios com traços mais modernos. A revista O Cruzeiro
acompanhava e defendia essa transformação e visão.
A imagem ao lado,
por exemplo, publicada
no primeiro número da
revista O Cruzeiro, em
10 de novembro de 1928,
é muito significativa. Ao
fundo, na parte de cima,
temos o Pão de Açúcar,
gasômetro, arranha-
céus, avião, fábricas,
entre outras imagens.
Abaixo, em primeiro
plano, a palhoça, um
homem dormindo na
rede amarrada em uma
árvore e uma bananeira,
um caçador e uma onça, um formigueiro sendo atacado por
um tamanduá, um índio dormindo enquanto a carne humana
estava sendo preparada na panela e por aí vai. São personagens
retirados de pinturas clássicas brasileiras do século XIX, que
na perspectiva dos autores possuíam carga positiva. A revista,
ao contrário, buscava mostrar essas imagens representando
o Brasil atrasado, inclusive com um olhar preconceituoso,
já que defendia o Brasil Moderno, ou seja, tudo que poderia
barrar o progresso do país era denunciado e criticado, mesmo
41
Ilustradores da revista O Cruzeiro
que fosse preciso adentrar em um discurso carregado de idéias
pré-concebidas.
O editorial do primeiro número de O Cruzeiro deixou sua
proposta: Porque é a mais nova, Cruzeiro é a mais moderna
das revistas. É este o título que, entre todos, se empenhará
por merecer e conservar: ser sempre a mais moderna num
país que cada dia se renova, em que o dia de ontem já mal
conhece o dia de amanhã; ser o espelho em que se refletirá,
em períodos semanais, a civilização ascensional do Brasil,
em todas as suas manifestações; ser o comentário múltiplo,
instantâneo e fiel dessa viagem de uma nação para o seu
grandioso porvir.
Propunha ser uma publicação em prol do progresso do
Brasil. Não só defender, mas também registrar a ascensão de
nossa modernidade. Nada mais sutil. O conceito de civilidade
passava pelo desenvolvimento urbano, pelo crescimento
industrial, pela adoção de costumes modernos no trajar, falar e
comer. As comparações, para ajudar a difusão e aceitação dessas
idéias pela população, foram
uma constante na revista.
Assim, Belmonte aceitou
a proposta da revista e a
defendeu com seus desenhos.
Assim criou a série Ontem
e Hoje. É claro que, como
veremos a seguir, seus traços
também tinham a meta do riso
e de uma crítica moral.
A imagem ao lado,
publicada em dois de agosto
de 1930, é muito curiosa. A
42
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
comparação proposta por Belmonte é em todos os sentidos.
Vejamos a escrita: O homem – criação do mistério – teve
sempre atração ao misterioso... Há anos uma perna feminina
tinha todo o encanto das coisas ignoradas... Mas hoje que as
saias subiram, as pernas desceram de cotação! Na imagem
superior temos os prédios coloniais, buracos na via pública,
uma carruagem e um homem com sua roupa de época vendo
passar duas mulheres com cabelos presos, chapéu e longos
vestidos. Como diz a legenda, sem as pernas à mostra.
Na parte superior da imagem temos os prédios altos,
automóvel, mulheres acompanhadas de um homem, de outra
mulher e sozinhas. Homens conversando com homens e com
mulheres. A vestimenta de ambos os sexos compatível com a
modernidade, bem ao estilo americano da década de 20. As
mulheres usando o cabelo curto e com as pernas à mostra.
Belmonte não ousou colocá-las de calça comprida. A dúvida
é: se as pernas caíram de cotação, qual a outra parte feminina
que subiu de cotação? Veja-se que os vestidos agora são mais
justos. Para concluir, chamamos a atenção do cachorro rindo
para o leitor. Representa, talvez, alguma homenagem a um
cachorro do artista ou, quem sabe, foi puro prazer. Afinal, na
modernidade não é concebível cachorro abandonado na via
pública.
Outra imagem curiosa e divertida de Belmonte vem a
seguir. Diz o jovem à moça: A senhorita dá licença que eu a
acompanhe? Ela responde: Se o cavalheiro quiser. Na parte
inferior da imagem o diálogo quase que se repete: A senhorita
dá licença que eu a acompanhe? Se o cavalheiro puder... Na
parte superior temos a lentidão da liteira, que é carregada
por dois escravos descalços, sem camisa e com traços de
aborrecimento. Novamente a via esburacada e um prédio
43
Ilustradores da revista O Cruzeiro
colonial ao fundo. Na parte inferior da imagem vemos um
prédio em linhas modernistas, a via pública sem buracos e um
policial, com olhar surpreso, mas representando a segurança
dos tempos modernos. A mulher com seu cabelo curto,
independente, dirige seu automóvel, deixando o cavalheiro
a “comer poeira”. As vestimentas mais uma vez com suas
transformações. Temos também a figura do cachorro. Agora
são dois, cada um no ritmo de seu tempo: no passado, lento;
no presente, ligeiro.
O C
ruze
iro,
16
/08
/19
30
44
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Nássara
Alá-la-ô ô ô,mas que calor ô ô.Atravessando o deserto do Saara,o sol estava quentee queimou a nossa cara,Alá-la-ô ô ô.Viemos do Egitoe muitas vezes nós tivemos que rezar:Alá, Alá Alá,Meu bom Alá,mande água para ioiô,mande água para iaiá,Alá, meu bom Alá...
Sucesso do carnaval de 1941. Autoria de Nássara e Haroldo Lobo
Antônio Gabriel Nássara é uma das personalidades mais
ilustres da História do Brasil. Como caricaturista, chargista e
compositor de samba produziu alguns dos desenhos de humor
gráfico e sambas que mais marcaram o imaginário popular
de seu tempo. A música Alala-ô é cantada até hoje. Podemos
somar: Floribela, Balzaquiana, Sereia de Copacabana e
Periquitinho Verde. Foi também locutor do Programa do
Casé, sendo assim um dos pioneiros do rádio, e criador de
jingle publicitário.
Como caricaturista e chargista trabalhou para os
principais meios de comunicação impressos do Brasil, entre
eles: revista O Cruzeiro, A Nação, Diretrizes, Última Hora e
Pasquim.
Nássara nasceu no Rio de Janeiro em 1910, cursando
arquitetura até o quarto ano na Escola Nacional de Belas Artes
(hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seu primeiro
desenho publicado foi no jornal carioca O Globo, em 1927, mas
45
Ilustradores da revista O Cruzeiro
somente na década de 30 é que se tornou profissional. Teve
uma vida profissional ativa até sua morte, em 12 de dezembro
de 1996, com 86 anos de idade.
Assim como as letras de suas músicas, que satirizavam
e criticavam a situação política, econômica e social brasileira,
seus desenhos também o faziam. Apesar de a letra acima,
por exemplo, não trazer nenhuma referência ao problema da
falta de água na cidade do Rio de Janeiro, à época capital da
República, a correlação é clara para os contemporâneos da
música.
Para a revista O Cruzeiro produziu inúmeras caricaturas
de artistas e políticos brasileiros e estrangeiros e tinha sessão
intitulada Caricaturas do Nássara. A imagem a seguir,
por exemplo, com o título Água e Leite, traz uma situação
comum ao carioca e ao brasileiro urbano que era a falta de
água nas torneiras e o excesso de água no leite distribuído
para o consumo. Portanto, em uma mesma charge conseguiu
denunciar e fazer rir frente a dois problemas enfrentados
pela população. A mistura da água e leite era chamada de
“batismo” e objetivava o aumento do lucro do vendedor do
produto. Na primeira imagem temos a seguinte legenda: Eis
aqui os três “personagens” do drama da “Água no leite”. A
ingênua Mimosa, o inteligente Seu Manuel e a impossível
bica d’água. A mimosa é a vaca propriamente dita; o Seu
Manoel é o português que adultera o leite para aumentar seus
ganhos, e a bica d´água a responsável pelo produto adicionado
ao leite. Na segunda imagem vemos a cena de dois cientistas,
em seu laboratório, analisando uma suposta amostra de leite.
Chegam à seguinte conclusão: Depois de muitas horas de
inúteis trabalhos de pesquisa, os químicos resolveram mudar
de orientação; passaram a procurar a existência de leite na
água.
46
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
O Cruzeiro, 22/04/1944
O C
ruze
iro,
14
/08
/19
43
47
Ilustradores da revista O Cruzeiro
Outra série produzida por Nássara para O Cruzeiro foi
Minha Luta, onde satiriza a figura de Hitler utilizando o título
do livro do ditador. De 24 de julho a 02 de outubro de 1943, o
leitor da revista pôde se deliciar com o seu humor destruidor.
A imagem anterior foi publicada em 14 de agosto de 1943.
As críticas das frases são, especialmente, dirigidas
a Mussolini, a quem chama de rinoceronte e responsabiliza
pelas dificuldades encontradas pela Alemanha na guerra em
função de seus atos estratégicos fracassados. Na primeira
imagem publicada, em 24 de julho, Hitler escreve que copiou
de Chaplin o bigodinho e a de Napoleão a mão dentro da
casaca. Em síntese, de um lado ridiculariza o ditador e conta
uma parte da História, na visão do artista.
Na imagem abaixo, publicada em 17 de junho de 1944,
podemos perceber que agora se chamava Charges de Nássara
e seguia o modelo de Belmonte, ou seja, trabalhava com dois
tempos, passado e presente. Mais uma vez a figura é Hitler, que,
no primeiro momento, domina o leão inglês, mas por ele depois
é derrotado. Churchill, Primeiro-Ministro da Inglaterra, joga
no lixo, com ar de satisfeito, o símbolo nazista, a suástica.
48
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Borjalo
Mauro Borja Lemos, cujo nome artístico era Borjalo
nasceu em 15 de novembro de 1925, na cidade de Velho da
Taipa, estado de Minas Gerais. Faleceu em Teresópolis, em 19
de novembro de 2004. Por seu estilo de desenhar teria causado
um furor no meio artístico, ou seja, seus desenhos eram
compreendidos facilmente, mesmo sem o uso de palavras.
Além da revista O Cruzeiro, trabalhou para outras importantes
revistas e jornais brasileiros: A Cigarra e Manchete.
No fim dos anos 50 trocou a imprensa pela Televisão, que
ainda engatinhava. Passou pela TV Excelsior, TV Rio e, por fim,
a TV Globo, onde trabalhou até morrer. Foi nesta emissora que
criou, nos anos 70, para o programa Fantástico, a Zebrinha da
Loteria, que dava o resultado da Loteria Esportiva. Sua boca
e seus olhos se movimentavam quando
falava. De sua boca saía uma voz fina
e, quando o resultado do jogo não era
o esperado, ela gritava: ZEBRA! Outra
criação sua, que todos conhecem, é a
vinheta da Globo que faz Plim-Plim.
Um exemplo do que representava sua revolução artística
é a imagem ao lado, publicada em O Cruzeiro, no dia 29 de
julho de 1958. Não foi a primeira, mas a escolhi pela sua
beleza e simplicidade. Em realidade, trata-se de um cartum,
isto é, um desenho que possui linguagem universal, não se
limita ao tempo ou espaço específico. Neste outro caso estão a
caricatura e a charge que, em geral, só podem ser entendidas
no seu contexto, por seu público. Nesta imagem, o artista, em
uma caverna, copia pedaços de outra obra, ou conjunto de
obras, que se encontram pintadas na parede. São as conhecidas
49
Ilustradores da revista O Cruzeiro
pinturas rupestres. O suposto autor das obras, o homem das
cavernas, parece não estar gostando do que vê: ou a invasão
de seu lar, ou da cópia de suas obras, ou dos dois.
Por produzir cartuns e por serem de excelente qualidade
plástica, Borjalo teve seus trabalhos distribuídos fora do Brasil.
Assim, foram publicados na Inglaterra, Estados Unidos, Itália,
França e Bolívia.
50
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Outro cartum publicado na revista O Cruzeiro e que
mostra a genialidade de seus traços foi intitulado Borboletas.
As imagens emocionam e falam por si. O caçador sonha com as
borboletas, oferece flor, caça com o filho enquanto a borboleta
pai passeia com a borboleta filho e por aí vai...
O C
ruze
iro,
13/
07/
1957
O Cruzeiro, 09/04/1960
O Cruzeiro, 28/06/1958
51
Ilustradores da revista O Cruzeiro
No final dos anos cinquenta, publicou diversos cartuns,
cada um com um tema, divertindo-se e divertindo os leitores:
farol, laço, baleia, hidroavião, entre outros mais variados
possíveis. Na página anterior apresentamos dois, um de 1958
e outro de 1960, para mostrarmos uma continuidade na forma
de expressão. Diferentemente de outros de seus trabalhos,
traziam o humor fácil. Buscava provocar o riso simplório
e mexer com as emoções de seus leitores. Era internacional
porque suas causas não estavam limitadas às fronteiras do
Brasil. Logo após esta série, sai da revista.
Augusto Rodrigues
Augusto Rodrigues foi outro genial artista plástico
a figurar nas páginas da revista O Cruzeiro. Como pintor,
caricaturista, chargista, educador, teve uma vida intensa.
Nasceu na cidade do Recife, estado de Pernambuco, no ano de
1913, filho de uma família abastada e tolerante politicamente
e de importantes jornalistas na cidade do Rio de Janeiro.
Sem formação acadêmica, estreou como ilustrador do jornal
Diário de Pernambuco. Depois partiu para a cidade do Rio de
Janeiro, onde seu tio, Mario Leite Rodrigues, proprietário de
jornais como A Manhã e Crítica o ajudou. Como caricaturista
e chargista político, trabalhou em diversos jornais: O Jornal,
Diário de São Paulo, Fon-Fon!, Tribuna Popular, entre
outros.
Na revista O Cruzeiro, além de reportagens, fez muitas
ilustrações. Um exemplo de suas reportagens é a que aparece
abaixo, onde trata de um tema de sua seara.
52
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Tal como tantos outros desenhistas, no período do
Estado Novo partiu para charges e caricaturas de costumes
ou que tratavam de tema internacional. Ao travar uma luta
contra o nazi-fascismo internacional, sabia que combatia o
regime totalitário de Vargas. Desenhos seus com esse tipo de
perspectiva corriam o mundo, em especial na América Latina.
Um exemplo de charge de costumes, que buscava somente
o riso do leitor, é a intitulada Foot-ball (Futebol), publicada em
pleno Estado Novo, no dia 20 de janeiro de 1940. Apresenta,
de forma cômica, alguns personagens que compunham o
futebol: a esposa do jogador; o médico; o fotógrafo; o jogador,
o beque e, por fim, uma cena especial de um jogo. O fotógrafo
diz ao goleiro em plena ação: “Atenção! Fique firme! Não se
mova, que o flagrante vai sair na primeira página”. A esposa
O Cruzeiro, 01/06/1957
53
Ilustradores da revista O Cruzeiro
do jogador se dirige ao marido e fala: “Não, Fernando! Não
pegue nesta bola! Está toda suja de lama”. O jogador, com
uma galinha morta na mão, pensa: “Este é o único jeito de me
iludir, quando gritarem: GALINHA MORTA!. Fingindo que
não é comigo...”. Na parte inferior direita, em uma cena onde
jogadores estão machucados (um sem a cabeça) e brigando
diz que é “um ligeiro acidente ocorrido entre o Paz e Amor
Sport Club e o Harmonia Foot-Ball Club”.
No quadro dentro da ilustração, pede perdão pela forma
como desenhou: “Perdão! O futebol é uma coisa séria![...].
No estádio moderno, são os espectadores que massacram o
juiz [...] ou os próprios jogadores, quando se trata de partidas
internacionais[...]”. Ou seja, na imagem ou no texto, ou em
ambos, a razão é o riso fácil, a descontração.
O Cruzeiro, 20/01/1940
54
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Quando criança, teve muitos problemas nas escolas
em que estudou, sendo expulso de várias delas. Assim, esse
passado em que contestava a forma de ensinar, somado ao
fato de que compreendia que a escola não mudara desde seu
tempo, nem mudaria simplesmente com a redemocratização,
levou-o pensar na importância da arte para o ensino. Em 1948
fundou, com outros artistas que tinham a mesma preocupação,
a Escolinha de Arte do Brasil. Para Augusto Rodrigues e seus
companheiros, o regime democrático só se consolidaria com
cidadãos que soubessem preservar a paz e compreendessem
a condição humana, criando um meio social tranquilo e
saudável.
Hoje, Augusto Rodrigues é mais citado e estudado
como educador do que como pintor, embora sua proposta
pedagógica esteja toda relacionada com a arte. Desenvolveu
importantes trabalhos educativos, entre eles a organização
de exposições de arte produzidas por crianças brasileiras
em várias capitais da Europa. Todas essas atividades com a
educação o levaram a abandonar, quase que completamente,
a charge e a caricatura. Parou de trabalhar para os Diários
Associados e deixou de ilustrar O Cruzeiro.
Nos últimos anos de sua vida morou no bairro de Penedo,
cidade de Itatiaia, interior do estado do Rio de Janeiro, onde
faleceu, em 1993.
Ao finalizarmos este texto, espero ter contribuído para
a divulgação do trabalho desses ilustradores brasileiros. Por
sua arte se pode compreender melhor a História brasileira,
História política ou cotidiana, econômica ou da comunicação.
As imagens, neste caso, podem trazer o riso e a reflexão, mas
o importante é que representam uma forma de ver o mundo,
que era de muitos.
55
Jorge Luiz Romanello
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
Introdução
Falar em poucas páginas da história daquela que foi uma
das mais importantes revistas que já circulou no Brasil não é
tarefa simples.
O Cruzeiro, de fato, mais do que uma revista ilustrada,
foi um modelo para a mídia brasileira, ou, melhor dizendo,
foi uma lançadora de modelos que motivou importantes
mudanças nas estruturas da própria comunicação do país.
Ao longo das décadas em que a revista circulou, as
matérias e reportagens veiculadas em suas páginas ganharam
a confiança dos leitores e eram, em larga medida, encaradas
como “A Verdade” sobre os fatos publicados, e não apenas
uma versão entre as muitas possíveis.
Nesta história, tão importante quanto sua
representatividade enquanto veículo de comunicação e sua
respeitabilidade junto ao público, foi o fato de conseguir
atingir, de maneira única, a afetividade dos leitores. Era
56
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
comum encontrar pessoas que colecionavam as revistas, que
as guardavam semana após semana como uma referência
sobre os acontecimento, ou mesmo por sua beleza. Muitos
dos ex-leitores até hoje relatam em conversas informais, com
carinho, as lembranças das experiências de receber em casa,
ou de comprar nas bancas o esperado exemplar semanal da
revista.
Segundo eles, estes eram momentos habitualmente
vividos em família, e a chegada da revista aos lares é lembrada
em detalhes, como motivo de ansiedade para ler sobre os
acontecimentos da semana, ou, o mais comum, para saber
a última travessura feita pelo “Amigo da Onça”, o célebre
personagem criado por Péricles Maranhão e imortalizado nas
páginas de O Cruzeiro.
A variedade e a profusão de imagens foram suas
principais marcas, semanalmente a revista era ilustrada com
uma grande quantidade de fotos, cartoons, charges e desenhos
de todos os tipos, o que a tornava bastante atraente.
Em suas páginas os leitores – mas principalmente
as leitoras – encontravam cotidianamente uma enorme
variedade de assuntos: política, cidades, ciências, cinema,
teatro, o mundo do rádio, contos, moda, carnaval, história,
lugares exóticos, esportes, curiosidades e um sem número
de outros que se alternavam ou se sucediam semana após
semana, inseridos em meio a uma profusão de propagandas
de quase todos os produtos que se possa imaginar.
Para dar conta, ainda que parcialmente, de assunto tão
amplo e complexo, é necessário trabalhar simultaneamente
com a abordagem de várias perspectivas que se enredam na
história da revista.
Nesta perspectiva, é tão fundamental considerar a
57
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
perenidade do periódico, quanto as mudanças técnicas – que
dizem respeito ao maquinário disponível, à adoção de novos
padrões editoriais e estilos fotográficos e etc. – ocorridas ao
longo das quase cinco décadas em que circulou. Da mesma
forma o poder e a influência de seu proprietário, Assis
Chateaubriand também devem ser considerados, entre outros
aspectos.
Esta história – que é apenas uma entre as muitas
possíveis e necessárias a respeito do tema e que não pretende
esgotá-lo – tenta contemplar, na medida do possível, estas
diferentes questões, considerando elementos pertinentes à
cada uma delas.
A implantação e os primeiros anos de O Cruzeiro
A história da revista O Cruzeiro confunde-se com a
história da vida do advogado e jornalista aventureiro, Assis
Chateaubriand Bandeira de Mello – conhecido publicamente
como Assis Chateaubriand e, pelos íntimos, simplesmente
como Chatô.
Nascido em 1892 em Umbuzeiro, na Paraíba, ainda
como estudante da Faculdade de Direito do Recife, lançou-
se na carreira jornalística, fazendo das polêmicas públicas
uma forma de se projetar. Chateubriand já havia descoberto
o poder desta prática – quando, ainda com 17 anos, travou
uma polêmica com Sílvio Romero pelas páginas dos jornais,
tornando-se momentaneamente o centro das atenções locais
(MORAIS, 1994).
Na época, 1909, Romero era um famosíssimo intelectual
e Chateaubriand, um ilustre desconhecido. A ousadia deste
feito projetou sua imagem.
58
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Em 1916, recém formado e com apenas 24 anos, foi
admitido como professor da faculdade em que estudara.
Considerado muito jovem e inexperiente por muitos, teve sua
admissão contestada e somente conseguiu o cargo após uma
batalha judicial que movimentou influências de bastidores em
várias capitais.
Depois de tudo resolvido decidiu não assumir o posto
e mudou-se para o Rio de Janeiro, disposto a construir uma
cadeia de jornais.
Na capital, desenvolveu diversas atividades como
advogado e empresário, nunca se afastando do jornalismo,
profissão a qual mais tarde se dedicaria quase exclusivamente
(MORAIS, 1994).
Em 1924 com a compra de O Jornal, publicado na
cidade do Rio de Janeiro, iniciou-se efetivamente a execução
do projeto acalentado a muito tempo. Com esta aquisição –
logo seguida pela compra do Jornal da Noite de São Paulo
– Chateaubriand fundava os alicerces dos Diários Associados
A partir da compra de O Jornal, a aquisição de jornais,
revistas, rádios, agências de propaganda, e outras empresas
do setor, não parou mais.
A revista O Cruzeiro integrou este grupo e transformou-
se em sua empresa mais importante.
Em 4 de maio de 1928 foi fundada a Sociedade
Anônima Empresa Gráfica O Cruzeiro, uma revista semanal
ilustrada (NETTO, 1998, p. 35). O título já existia e foi
comprado do antigo proprietário, Edmundo Miranda Jordão,
pela importância, vultuosa na época, de dois contos e 500
mil réis (Id. ibid., p. 35), e circulou com o título O Cruzeiro em
seus primeiros anos.
Este pequeno fato pode parecer pouco importante, mas
59
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
por si só já revela detalhes sobre o funcionamento do mercado
editorial da época, na medida em que demonstra que outros já
percebiam o espaço e o potencial do mercado para a circulação
de mais uma revista, no segmento dos “Magazines”, como
foram chamadas mais tarde.
Até então não existia no Brasil uma publicação deste tipo
que atingisse todas as regiões do país, o que exigiu grandes
esforços e gastos e Assis Chateaubriand não mediu esforços
para concretizá-lo.
A revista definia-se em seus primeiros números, como
a “Revista Contemporânea dos Arranha-Céus”, numa clara
alusão aos grandes edifícios que erguiam-se nas megalóples
dos Estados Unidos e que começavam a ser construídos em
maior número também no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Naquela época, difundiam-se no país as promessas
do progresso representadas pelas grandes cidades, pela
difusão da tecnologia e da eletricidade que, juntamente com
a construção dos arranha céus de concreto, formavam o
próprio Glamour do modo de vida urbano, considerado por
muitos – principalmente pela elite – como o melhor, mais
civilizado e, principalmente, como um modelo a ser seguido
pelos brasileiros.
No editorial1 do primeiro número – publicado em 10
de novembro de 1928 – a revista definia-se como moderna.
O texto de autoria de Carlos Malheiros Dias mais parecia
uma declaração de intenções a respeito desta modernidade
e associava a imagem da revista aos arranha céus, à
radiotelefonia e ao correio aéreo
1 Termos semelhantes foram utilizados em mais de 400.000 panfletos utilizados para promover o lançamento da revista.
60
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio colonial, através de cujos escombros a civilisação traçou a recta da Avenida Rio Branco: uma recta entre o passado e o futuro. Cruzeiro encontra já, ao nascer, o arranha-céo, a radiotelephonia e o correio aéreo: o esboço de um mundo novo no Novo Mundo. Seu nome é o da constelação que, ha milhões incontaveis de annos, scintila, aparentemente immovel, no céo austral, e o da nova moeda em que resuscitará a circulação do ouro. Nome de luz e de opulencia, idealista e realistico, synonymo de Brasil na linguagem da poesia e dos symbolos (O Cruzeiro, 10/11/1928).
Segundo Ursini (2000, p. 20) estes elementos
apresentavam-se enquanto índices de um novo estilo de vida
Os índices do moderno estilo de vida estão relacionados ao que a técnica proporciona, aos novos espaços conquistados por meio da modelação da cidade e aos usos desses espaços. São índices o telefone, a casa com garagem – mesmo que se não o possua, ainda –, o fogão a gás, o aparelhos domésticos movidos a energia elétrica, entre os quais estava o aspirador de pó, chamado na virada da década de 1930 de “máchina elétrica” ... A idéia por trás dessas novidades tecnológicas é a de transformação. Transformação que pode ser vista nas grandes cidades que se remodelam sem parar: abertura de vias, construção de eddifícios, de pontes ... um mundo novo que podia ser visto ao vivo ou em imagens fotográficas. O cenário preferido pela revista O Cruzeiro era a cidade do Rio de Janeiro, a capital da República.
Nesta concepção, integrava-se a própria urbanidade a
que já nos referimos, e o Rio de Janeiro é mostrado como
modelo e índice de desenvolvimento para um país inteiro (id.
ibid., p. 20).
Publicados também no primeiro número, os projetos de
reforma urbana propostos para o Rio de Janeiro, elaborados
61
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
pelo urbanista Alfred Agache, integram uma reportagem sobre
o futuro da cidade. “O Rio de Janeiro de 1950” (O Cruzeiro,
10/11/1928) exemplifica estes sonhos de um futuro grandioso
para a capital do país. Neles, a cidade foi apresentada em
um estilo grandioso e futurista, os desenhos criavam a
sensação que em 1950 a cidade do Rio seria uma megalópole
integralmente constituída por prédios imensos, densamente
distribuídos entre ruas largas e avenidas, enquanto poderosos
holofotes iluminavam os céus. Todos estes elementos
símbolizavam o próprio conceito de modernidade da época.
Outras representações desta modernidade, também
podem ser encontradas na revista, como por exemplo, nas
propagandas dos mais diversos tipos de produtos, na presença
sistemática de reportagens sobre a aviação, ou mesmo na
glamourosa passagem do Graf Zeppelim pelo Brasil.
A passagem da “fantástica máquina voadora”, uma
legítima novidade tecnológica no mundo, produziu uma série
de reportagens em várias edições de O Cruzeiro. Nelas o tema
foi abordado pelos mais diversos ângulos, tendo sido motivo
do desenho de capa em mais de uma ocasião.
Na foto de página dupla 24 de abril de 1931 o engenho
aparece sobrevoando a cidade do Rio de Janeiro. A legenda
O Cruzeiro, 10/11/1928. http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro
62
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
destaca tratar-se do Graf Zeppelin, passando sobre o bairro
dos Arranha-Céus, no Rio de Janeiro – composição de Arnaldo
Fogmayer para O Cruzeiro.”
Neste desenho, de conotação tão realista que mais
parece uma foto aérea, predomina o discurso da modernidade
representado tanto no domínio da tecnologia de construção
de grandes edifícios, quanto da máquina voadora.
A fundação da revista era também parte de um projeto
político e criava um espaço que serviria para ajudar a construir
a figura de Vargas como candidato à sucessão presidencial nas
eleições de 1930.
Assim ao mesmo tempo o empresário juntava ao seu
rosário de órgãos de comunicação um tão sonhado magazine
de circulação nacional com sabor de entretenimento do tipo
fait divers e criava uma importante máquina de propaganda
política.
Com o advento da revolução de 1930 e a vitória de
Vargas, que tornaria-se ditador do país pelos próximos quinze
anos, o sucesso da revista parecia assegurado.
Em 24 de Janeiro de 1931, O Cruzeiro publicou uma
extensa matéria a este respeito, consagrando-lhe uma foto de
corpo inteiro na capa, provavelmente colorizada por processos
O Cruzeiro, 24/05/1931, p. 34 e 35
63
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
químicos, ou pelo uso de técnicas gráficas, uma vez que as
fotos coloridas ainda não existiam.
No plano geral destaca-se a baixa estatura característica
de Vargas, minimizada na edição, embora a foto tenha sido
tirada de cima para baixo. inúmeros civis mas principalmente
militares cercam Vargas. Enquanto uns simplesmente olham,
ao lado esquerdo um bate continência, ao passo que outro à
direita, indica-lhe o caminho. Ao fundo pode-se identificar
alguma mulheres – elemento importante que demonstra sua
participação indireta na vida política uma vez que as mulheres
não possuíam, ainda, o direito de votar.
A escolha desta foto
possui um significado muito
importante, considerando-se,
como já foi dito, que não existiam
praticamente publicações de
circulação nacional, em primeiro
lugar porque muitos brasileiros
certamente conheceram a figura
de Getúlio Vargas por meio dela
e, em segundo, porque com seu
uso apresentou-se à nação uma
imagem única, quase oficial,
daquele que se apossara da representação de líder da nação
representação que seria largamente trabalhada nos anos
posteriores por iniciativa do DiP Departamento de imprensa e
Propaganda responsável pela produção da imagem de Vargas.
Da mesma forma, no interior daquele número, uma série
de longas reportagens procura apresentá-lo como um chefe.
Fotos de rosto, de sua juventude, e em atos oficiais resumem
uma trajetória apresentada de forma vitoriosa.
O C
ruze
iro,
24
/01/
1931
64
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Na história da revista este apoio
aos políticos, não era uma postura muito
clara e principalmente quase nunca
assumida publicamente. O Cruzeiro –
assim como qualquer outro órgão de
comunicação de Chateaubriand – podia
publicar propagandas de campanha de
outros candidatos, da mesma forma que
publicava matérias, geralmente pagas,
a respeito das realizações de governo,
até mesmo de seus piores inimigos,
caso isto se fizesse necessário.
Este era um expediente interessante que garantia as
fontes de renda necessárias à sobrevivência de suas empresas ao
mesmo tempo em que mantinha junto ao público uma imagem
de imparcialidade, o que aumentava sua credibilidade.
O mais comum era que a resistência em liberar dinheiro
para propaganda por parte de algum governante, ou mesmo
pessoa influente, acarretasse destruidoras campanhas contra
sua imagem.
Na década de 1930 discutia-se na sociedade brasileira,
questões como a eugenia (a formação da raça) e a formação
da nação, na política, as idéias totalitárias ganhavam formas
mais definidas.
Estes temas refletiam-se em O Cruzeiro. A capa de 27 de
Dezembro de 1930 oferece um excelente exemplo disso, pois
reúne diversos aspectos destas discussões. Nela se produz um
discurso sobre a nação e a raça. Note-se que se trata de uma
criança branca, excessivamente grande e forte, o que produz
um estereótipo para o brasileiro, um ideal, um objetivo que
se desejaria atingir. Isto contrastava com a realidade, pois na
O Cruzeiro, 24/01/1931
65
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
prática, uma boa porcentagem da população brasileira era
mestiça e raquítica e sofria com problemas de saúde, como
doenças parasitárias e desnutrição derivadas de deficiências
básicas de atendimento de saúde, de falta de informação,
problemas provocados, muitas vezes, pelo desinteresse e
simples descaso dos governantes e das elites.
As simbologias da nação complementam o quadro. No
corpo do garoto, aparecem: às costas, a bandeira brasileira
indicada pela cor verde; no cinto um coldre com uma arma; na
cabeça um quepe; ao seu lado um pequeno canhão, símbolos
militares que o transformam em um pequeno soldado. As
cores da bandeira estão também representadas ao fundo, o
azul representa um céu limpo e claro, uma imagem do infinito
e calmo que paira sobre tudo. Sobreposto a ele destaca-se
o amarelo de um sol nascente, significando possivelmente
o nascimento de novos dias para a pátria que, somados ao
branco da pele do menino e ao verde do quepe e da bandeira,
completam as cores nacionais.
Assim, uma das interpretações possíveis desta
mensagem é: pátria forte se constrói com um povo forte.
Discurso muito parecido ao
do fascismo italiano, que
vicejava na época, mais tarde
incorporado também pelo
nazismo.
Algum tempo após a
vitória de Vargas, Chateaubriand
começou a se desentender com
ele, processo que culminou no
apoio do jornalista à revolução
constitucionalista de 1932.
O C
ruze
iro,
27/
12/1
930
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Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
A derrota dos revolucionários paulistas, pelas forças
varguistas, e as crescentes críticas a Getúlio Vargas nos anos
seguintes custaram caro a Chateaubriand. O ditador tentou
exilá-lo e acabou por prendê-lo por um breve período, mas,
segundo Aciolly Netto, ex diretor de O Cruzeiro e autor do
livro O Império de papel: os bastidores de O Cruzeiro, o
maior revés sofrido pela revista foi a execução de prestações
atrasadas da compra das rotativas alemãs da marca Hoegen.
As dívidas pendentes de várias empresas ligadas aos
diários associados junto a bancos públicos, como o Banco do
Brasil a Caixa Econômica Federal, foram usadas por Vargas
como tentativa de domesticar Chateaubriand. Tornar-se
inimigo do ditador quase destruiu os Diários Associados.
As empresas passaram algum tempo sem a liderança
direta do “Grande Capitão” – título pelo qual mais tarde
o Jornalista David Nasser trataria Chateaubriand em seus
editoriais – pois na época o empresário saiu do Brasil por algum
tempo para evitar maiores conseqüências derivadas da crise.
As limitações impostas representaram um duro golpe
nos projetos editoriais da revista, a tiragem caiu a modestos
15.000 exemplares semanais – menos de um terço dos
50.0000 iniciais – e cogitou-se inclusive a possibilidade do
seu fechamento.
A despeito destes reveses, o periódico atravessou os
tumultos e continuou a publicar os temas do cotidiano por
toda a década.
Os bailes de carnaval foram uma das marcas registradas
da revista e perduraram como assunto em suas páginas por
décadas. Eram dezenas de páginas ricamente ornadas de
fotos que cobriam os bailes de salão e alguns eventos de rua
promovidos particularmente pelas elites paulistas e cariocas.
67
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
Na cobertura de um destes bailes no carnaval de 1931,
destaca-se o tubo de lança perfume, produto livremente
utilizado pelos foliões de uma sociedade conservadora,
paradoxalmente largamente utilizado até meados da década
de 1940 e desde então proibido.
O mesmo tratamento receberam os esportes de maneira
geral, com especial destaque para o futebol, que com grande
freqüência aparecia nas páginas da revista, sob a forma
de reportagens sobre os eventos nacionais, estaduais e
eventualmente regionais.
A coluna “Stadio” esteve presente desde os primeiros
números de O Cruzeiro e caracterizou o tratamento do
futebol durante quase toda a década seguinte. A manchete
da edição da seção em 23 de março de 1929 foi o embate
entre o time paulista “Palestra Itália” (atual Palmeiras) e o
carioca “Botafogo F.C’”. A foto mostra um jogador pronto
para cabecear a bola – fato técnico relevante em uma época
O Cruzeiro, 09/02/1931, p.27.
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Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
em que os equipamentos fotográficos eram grandes, pesados
e limitados. Isto nos mostra que as contendas interestaduais,
tão exploradas pelas mídias nos dias de hoje, tinham já seu
espaço editorial garantido há oitenta anos atrás.
Importante notar ainda que na página ao lado, à
esquerda, foi publicada uma matéria provavelmente enviada
por agências internacionais, a respeito das habilidades do
Marechal polonês José Pilsudsky. isto mostra que nas páginas
de O Cruzeiro, havia um pacífico convívio entre temas. Por
meio deste simples exemplo, pode-se perceber, como um
assunto de relevância internacional, a guerra, podia dividir
espaço com uma corriqueira reportagem sobre esportes, sobre
o lazer das pessoas.
É provável que este espaço dedicado a este esporte tenha
contribuído para torná-lo respeitado no Brasil.
O Rádio era outro assunto recorrente. No decorrer da
década de 1930, várias rádios foram anexadas ao crescente
patrimônio do Diários Associados. Este veículo era um meio
de comunicação que se desenvolvia de forma muito vigorosa
e apresentá-lo na revista produzia uma excelente propaganda
O Cruzeiro, 23/03/1929, p. 4-5
69
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
sobre os eventos, programas e artistas que diariamente
chegavam ao interior dos lares brasileiros.
Estas reportagens tiveram grande importância em O
Cruzeiro até meados da década de 1950, quando começaram
a ceder seu lugar para as coberturas sobre a televisão, o novo
veículo que invadiu o Brasil em 1950.
A preparação de um programa de rádio, veiculado pela
“Rádio Tupi” – Chateaubriand era fixado em índios, tanto que
batizou uma série de empresas como Tupi, Coroados, Tamoios
etc –, foi objeto de uma matéria intitulada “Um Milagre
Radiophônico”. De autoria de Alceu Pereira, circulou em 23 de
fevereiro de 1939. Nela procurava-se levar ao conhecimento
do leitor as diversas etapas de elaboração prévia, necessárias
para uma transmissão ao vivo.
Desta forma aspectos corriqueiros para os funcionários,
tais como a seleção dos discos, a organização de partituras
para os cantores e o ajuste dos equipamentos, ocupam o
papel principal.O
Cru
zeir
o, 2
3/0
2/19
39, p
. 10
-11
70
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
O mesmo ocorreu com os concursos de misses, as praias
e um sem número de outros aspectos abordados pela revista e
que passavam, assim, a integrar a vida cotidiana dos leitores
da revista naquela década.
Delineados por outras características, encontraremos
ainda presentes com freqüência, assuntos relacionados e
Ciência e a Tecnologia.
A década de 1940, os anos de fortalecimento e
consolidação
A década de 1940 pode ser considerada como um
período de fortalecimento político de Chateaubriand e
de consolidação de suas empresas e no qual a revista O
Cruzeiro estruturou-se e modernizou-se, tornando-se a mais
importante revista do Brasil das décadas seguintes.
No âmbito cultural da década de 1940 a revista destacava-
se por cobrir uma grande variedade de assuntos.
No cenário artístico, por exemplo, a atriz Carmem
Miranda era uma figura gloriosa e muito querida pelo público.
Seus personagens e trabalhos renderam várias reportagens
em O Cruzeiro. No entanto, mais importante do que isso, é
considerar que ela se tornou uma das poucas personalidades
brasileiras a ser representada na capa de mais de uma edição da
revista. Naquela altura, no início da década de 1940, a cantora
e atriz se transformava, com a colaboração de O Cruzeiro, em
um dos estereótipos da cultura brasileira.
Na capa publicada em 1941 aparece em uma fotografia
colorida – uma das raras que, ao que parece não sofreu
retoques, não se assemelhando, portanto, a um desenho.
Carmen Miranda foi fotografada nos seus tradicionais
71
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
trajes exóticos e ornamentada com muitas pulseiras brincos e
colares, além do cabelo enfeitado com os conhecidos arranjos
de frutas tropicais e flores. É importante lembrar que esta
imagem é uma das imagens fundadoras, um ícone do cinema
brasileiro, uma indústria que dava os seus primeiros passos –
a companhia cinematográfica Atlântida foi fundada em 1941
– e que havia uma necessária circulação destas imagens no
circuito formado pelas várias mídias (cinema, revistas, jornais,
etc), cada uma delas interagindo em relação às outras.
A chegada da guerra redefiniu os acordos e alianças
políticas do país, redefinindo, desta forma, também os rumos
dos Diários Associados. Necessitando reunir politicamente o
país, Vargas refez alianças com todos os inimigos, entre os quais
estavam, de um lado, o liberal empresário de comunicação
Chateaubriand e, do lado oposto, por exemplo, Luís Carlos
Prestes, diretor do Partido Comunista brasileiro, preso havia
vários anos.
O Cruzeiro, 1941
72
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Abrandadas as disputas – uma vez que até a morte de
Vargas, Chateaubriand devotou-lhe um ódio profundo – a
rotina de trabalhos lentamente se reestabeleceu e a revista
não só sobreviveu como prosperou solidamente.
A Segunda Guerra Mundial se tornou o principal
assunto da revista na década, e esteve presente em menor
escala, antes mesmo da entrada do Brasil no conflito.
As matérias enviadas pelas agências internacionais eram
publicadas em abundância. As coberturas variavam as
temáticas: hora apresentavam a preparação de tropas brasileiras
e sua atuação na guerra, hora eram as grandes batalhas navais
e aéreas que recebiam destaque; o desembarque das tropas
aliadas na Europa em 1944 e, a partir daí, foram publicadas
muitas matérias sobre a retomada de territórios conquistados
pelas forças do “Eixo”; mais tarde, sobre os acordos de paz e
esforços de reconstrução dos países envolvidos.
Vindas principalmente da Europa e dos Estados Unidos,
essas imagens eram, com frequência, diagramadas entre
mapas a respeito dos teatros das operações militares, que
esclareciam sobre a geografia dos acontecimentos. Eram ainda
acompanhadas de sugestivos títulos, subtítulos e comentários
sobre o desempenho dos aliados e suas vitórias, elementos
que, conjugados, davam a elas um tom de propaganda.
Estas reportagens enchiam muitas das páginas da
revista a cada número informavam e formavam a opinião
do leitor.
“O Drama de Leningrado” este foi o título conferido a
uma reportagem publicada no final de 1943 que tratava da
desocupação da cidade de Leningrado, na União Soviética
(hoje Rússia). O foco principal da cobertura, ilustrada com
fotografias do jornal americano The New York Times foi a
73
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
luta dos sobreviventes da cidade que resistiu a anos de sitio
e intenso bombardeio, transformando-se, em função disto,
num símbolo de resistência aos nazistas.
As fotos destacam a cidade arrasada e em alerta contra
novos ataques das tropas alemãs, ainda próximas.
Em 1943, com a chegada do fotógrafo francês Jean
Manzon, iniciou-se uma fase de grande modernização em
O Cruzeiro, pois instituíram-se em suas redações novas
concepções estéticas de fotografia e novos modelos de
editoração. Estas mudanças foram fundamentais para que
nas décadas seguintes a revista se tornasse não só uma das
mais importantes publicações do mercado editorial brasileiro,
mas, principalmente, uma referência para outras revistas que
nasceram inspiradas no novo modelo.
Com o final da Segunda Guerra mundial em 1945, Vargas
encontrava-se politicamente desgastado e sua deposição foi
uma questão de tempo.
As artes faziam, cotidianamente, também, parte dos
assuntos de O Cruzeiro. Chateaubriand, um amante da cultura
O Cruzeiro, 11/12/1943
74
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
clássica européia, desenvolveu várias ações e campanhas em
prol deste segmento.
A revista levava aos seus leitores opiniões de críticos de
arte e, por meio de extensas reportagens, promovia as mostras
e exposições ocorridas no Brasil e no mundo.
O C
ruzeiro, 0
3/11/194
5, p. 28
-29Em uma destas ocasiões, pode-se ver Assis
Chateaubriand passeando entre as obras da coleção particular
de Carlos Guinle. intitulada O Brasil terá sua galeria, a
matéria especial de Alceu Pereira comenta a importância das
iniciativas desenvolvidas neste setor, e destaca a participação
de “Chatô” na organização da mostra que se realizaria no
prédio dos Diários Associados. As legendas informam que
trata-se de obras de grandes e importantes artistas tais
como: Creuze, George Romney,
Nather e Murilo e que estariam
abertas à visitação do público,
o que deveria ser incentivado,
segundo Penna. No detalhe, a figura
de Assis Chateaubriand ao lado do
colecionador de arte George Guinle.
75
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
Chateaubriand, pouco tempo depois, deu mais uma de
suas brilhantes cartadas, parte para a Europa, acompanhado
do jornalista e crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi para
adquirir obras de arte a baixos custos em um continente
arrasado por anos de guerra.
De volta da viagem, de posse de vários quadros dos mais
famosos pintores da história, no final de 1947 fundou o Museu
de Arte de São Paulo, o MASP – hoje chamado Museu de Arte
de São Paulo Assis Chateaubrind, em sua homenagem. Esta
ação espetacular o inseriu de uma vez por todas na história
da cultura do país enquanto um de seus personagens mais
importantes, uma vez que hoje este é o mais importante museu
do gênero na América Latina.
A história da formação do acervo do MASP ilustra uma
faceta aventureira já conhecida do empresário mas mostra
também outra característica típica de sua personalidade, a
truculência. Os quadros adquiridos na Europa na fase inicial
de formação do museu foram comprados com empréstimos
de bancos públicos nunca pagos, e mais tarde com dinheiro
doado por fazendeiros e industriais pressionados por ele a
colaborar com a iniciativa cultural. Há vários exemplos de
pressões e intimidações levadas a cabo por Chateaubriand,
relatadas pelo escritor e jornalista Fernando Morais (1994),
na fascinante biografia de Assis Chateaubriand, Chatô o Rei
do Brasil: A vida de Assis Chateaubriand
1950 década de ouro de O Cruzeiro
Em O Cruzeiro, a década de 1950 iniciou-se sob a égide
do sucesso. O trabalho de Manzon, iniciado na década anterior,
frutificava a olhos vistos, a revista ascendia aos 200.000
exermplares, e o número de leitores também se multiplicava.
76
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
David Nasser, jornalista talentoso formava com Manzon,
desde a década anterior, a maior dupla do jornalismo brasileiro
da época. Mesmo após a saída de Manzon das redações em
1951, outros jornalistas continuaram a praticar e a aprimorar
os modelos do moderno fotojornalismo canonizados pelas
maiores revistas da Europa e dos Estados Unidos.
O ano de 1950 marca, também, o retorno de Getúlio
Vargas à vida política do país, após um exílio voluntário de
cerca de 5 anos vividos no interior do Rio Grande do Sul.
A simples idéia do retorno do velho inimigo de
Chateaubriand causava-lhe repulsa, tanto que envidou
grandes esforços contra a eleição de Vargas. De qualquer
maneira, apesar de poderoso, Vargas agora voltava eleito e
sem os poderes ilimitados que a ditadura proporcionava.
As empresas ligadas aos Diários Associados
multiplicavam-se em ritmo acelerado e mais uma vez a
ousadia de seu proprietário marcou época na história dos
meios de comunicação do país. Em 18 de setembro de 1950
entrava no ar a primeira emissora de televisão da América
Latina, a “TV Tupi”.
Neste mesmo período as fotos coloridas aumentavam
de número nas páginas de O Cruzeiro e passavam a ocupar
cerca de 7 por cento das cerca de 200 fotos publicadas em
cada edição.
1954 foi um ano muito rico na história da revista,
principalmente em função das crises políticas e das
comemorações do aniversário de 450 anos da cidade de
São Paulo. Para um destes eventos, alguns índios foram
“importados” da região do Xingu, em nome da cidade. O
Cruzeiro participava ativamente na promoção da cidade e de
seu aniversário, publicando artigos e mais artigos sobre a beleza
77
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
e a força da Capital Bandeirantes, enquanto Chateaubriand
promovia e participava das solenidades, e com isso promovia-
se também.
É fato bastante conhecido a paixão de “Chatô” pelos
índios, assunto muito recorrente na revista. Assim, ao passear
pelas ruas da cidade de mãos dadas com um jovem indiozinho,
em meio a outros membros da tribo Caiapó, consagrava-se
mais ainda no cenário cultural e tornava ainda mais público
o seu personagem, ligando a sua imagem a um assunto que
atraia a atenção do leitor no decorrer das décadas.
O Cruzeiro, 06/02/1954
isso mais uma vez demonstra que Diários Associados,
revista O Cruzeiro e Assis Chateaubriand interligavam-se de
maneira quase absoluta. O empresário defendia e ampliava
suas empresas, com o poder e a promoção pessoal que estas
lhe facultavam.
No mesmo ano mais uma crise política chegava ao
auge no país: Getúlio Vargas suicidou-se e um repórter de O
Cruzeiro conseguiu fotos exclusivas do presidente morto, as
tiragens chegavam a espantosos 700.00 exemplares e o público
estimado de leitores é de 4 milhões. A repercussão da morte
78
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
do presidente teve, porém, desdobramentos inesperados:
um tumulto tomou conta do Rio de Janeiro e instalações de
jornais da cadeia dos Diários Associados foram depredados.
Chateaubriand foi acusado, juntamente com Carlos Lacerda
e outros, de ser o responsável pelo suicídio, em função da
campanha deflagrada contra Vargas.
Nos meses de setembro e outubro de 1954, uma série
reportagem produziu uma biografia do presidente destacando
aspectos pessoais e políticos de sua trajetória até o desfecho
trágico dos acontecimentos de agosto do mesmo ano. Dezenas
de fotos mostravam Getúlio em sua juventude e nos principais
momentos de sua intensa vida política.
“Getúlio o Homem”, de 16 de outubro de 1954, foi a
quarta e última da série, e mais parece uma retratação ou
pedido de desculpas velado, objetivando desfazer a imagem
negativa contra as empresas ligadas aos Diários Associados
e seu proprietário, que uma reportagem. “Morto nos Braços
da História” título que acompanha a foto da máscara
mortuária publicada no final da matéria (página a direita) liga
a reportagem ao texto da carta testamento e soa, ao mesmo
tempo, como uma grandiosa e respeitosa epígrafe tumular,
dedicada a um grande homem ou um grande líder.
O Cruzeiro, 16/10/1954
79
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
Outra prática recorrente na revista era procurar ensinar
ao leitor a respeito de fotografia. Esta era uma maneira
de valorizar as próprias imagens publicadas e tornava-se
necessário em função das rápidas e constantes mudanças
ocorridas neste campo a partir da década de 1940.
Outra faceta importante de O Cruzeiro foi a sua prática
pedagógica. Era comum encontrar uma série de orientações
sobre o comportamento masculino e feminino, moda, culinária
etc.
Também a fotografia procurava interar o público sobre
os debates no campo da fotografia, um esforço para educar
de maneira mais direta o olhar do leitor, fornecendo-lhe
informações sobre as tendências internacionais do setor.
Publicavam-se matérias especializadas e fotos vencedoras
de concursos e mesmo resumos de exposições nacionais e
internacionais. Isto ajudava a valorizar de forma mais direta
o repórter fotográfico, o principal agente na produção das
fotorreportagens desde meados da década anterior.
A reportagem No mundo da fotografia de João
Martins, constituíu-se em um esforço para ensinar o leitor a
perceber as particularidades e as diferenças entre uma foto
acadêmica e uma fotografia moderna.
O Cruzeiro, 10/11/1956
80
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
A foto acadêmica foi representada por A visão do
semeador, em que o austríaco Leopold Fisher retrata um
homem semeando um campo, fotografado em segundo plano
atrás de eixos de trigo, que formam o primeiro plano, já no
terceiro, um campo arado com pequena mata ao fundo.
Na imagem à direita da reportagem acima, mais
parecendo uma pintura modernista completando as páginas
de abertura da reportagem, encontramos Dança fantástica
do tcheco-eslovaco Adolf Rossi, que retrata um grupo de
dançarinas, fotografadas enquanto giravam saias rodadas. O
efeito da exposição longa transforma tudo – saias e pessoas
em movimento – em borrões, realçando o efeito de pintura.
A mensagem da reportagem como um todo demonstra
a preferência de seu autor pelo estilo moderno, a começar
pela distribuição do espaço visual entre as duas imagens. A
visão do semeador, uma foto retangular, aparece em tamanho
menor, à esquerda da página dupla de abertura da reportagem,
ao passo que Dança fantástica, ocupa cerca de uma página e
meia do lado oposto. Há ainda o endosso das legendas cujo
conteúdo é bem claro:
SUPERACADEMISMO. As visões do semeador [...] é um trabalho de montagem bem característico de um estilo fotográfico que, hoje em dia é relegado por muita gente à categoria de sub-arte. [...] Representa, realmente um superado produto da câmera escura. Já Dança fantástica é descrita da seguinte forma: SUPERMODERNISMO, Dança fantástica [...] é um inconfundível da arte fotográfica modernista, revolucionária, que atualmente tem adeptos intransigentes.
Em meados da década, a revista apresentou uma série
de reportagens e matérias internacionais que enfocavam a
paisagem de outras regiões do mundo e os costumes de seus
81
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
povos. Isto não constituía por si só uma novidade, pois este
tipo de matéria comparecia com uma certa freqüência em O
Cruzeiro, porém após a introdução do fotojornalismo, suas
características mudaram: América Latina, Antártida, Goa,
Líbano e Pólo Norte adquiriram contornos espetaculares,
efeito reforçado pelo uso de fotos coloridas.
Na reportagem sobre uma viajem de David Nasser ao
“continente gelado” promovida por O Cruzeiro em 1959
intitulada Na Rota do Pólo Norte, acentua-se o caráter
etnográfico (de descrição dos costumes de um determinado
grupo humano) envolvido em tais viagens, como trazer ao
público brasileiro a paisagem e os costumes dos esquimós.
As legendas destacam tais características, chamando a
atenção para o fato de tratar-se de uma população que vive
ornada com suas roupas e botas longas em vermelho e branco.
Vistos em suas roupas coloridas, transitando pelas ruas de
Godthaab, capital da Groenlândia, e em outros lugares, gentes
e paisagens compõem um quadro impresso nas páginas da
revista. Devidamente emoldurados pela edição detalhada,
chegavam como um pacote cultural fechado ao leitor, que
poderia interessar-se por algum ou por diversos dos aspectos
abordados.
O Cruzeiro, 31/01/1959
82
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
As estradas em construção criavam representações
– e eram representações em si mesmas – da modernidade,
veias de fluxo da economia pujante, mas, principalmente,
representavam a possibilidade de grandes viagens de carro,
materializavam momentaneamente sonhos de liberdade,
realizadas sobre quatro rodas. Esta imagem aproximava os
brasileiros das classes médias dos modelos propagados nos
Estados Unidos, ou seja, materializava-se uma aspiração que
ajudava a criar no país uma sensação de pertencer ao mundo
considerado desenvolvido.
Naquele momento construíram-se, modernizaram-
se ou ampliaram-se muitas estradas por todos o país,
prodígios quase sempre associados à genialidade e ao
empreendedorismo de “JK”, assunto este que fornecia fluxo
permanente de material para a revista. A tipologia que fundou
– ou remodelou – discursos, apelando particularmente para
sua espetacularização, foram as representações criadas a
partir das obras de construção realizadas em áreas onde
predominavam as selvas. Ambientes tratados como hostis,
verdadeiros inimigo do país, devendo por isso serem vencidos
pelos “heróico trabalhadores”, legítimos representantes da
“coragem do povo brasileiro”, que trabalhava penosamente
em sua construção para a afirmação da nação, esse processo
criou discursos visuais fundamentalmente apoiados em uma
relação antagônica entre homem e natureza.
A monumentalidade das obras foi fartamente realçada,
a revista explorou sucessivamente o contraste fornecido pelas
escalas. Comparou- homens com tratores de esteira e outras
máquinas. O próprio maquinário com a extensão das obras e
seu nível de dificuldades, além de carros e outros elementos
que caracterizam a ação humana, foram muito usados, criando,
83
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
com isso, o efeito de contraste com o contexto fornecido pela
natureza. Da mesma forma, as fotos aéreas ofereciam acesso ao
macro contexto em que se desenrolam as histórias, reforçando
ainda mais sua importância.
Em setembro de 1959, uma foto aérea muito escura,
disposta em duas páginas, trás o título Belém Brasília: a selva
vencida, em grandes letras brancas. O que se vê é uma fenda
larga e clara, um trecho totalmente desmatado, e uma clareira
onde se vêem alguns casebres, representa a estrada, em meio
a uma densa vegetação. Abaixo outra foto, menor, mostra
quando Whaldir Bohund [um dos engenheiros responsáveis
pelas obras] testemunha o entusiasmo de JK no dia em que
foi derrubada a última árvore da BR 14. Logo abaixo, o texto
legenda confirma a vitória do homem, sua conquista em uma
luta de titãs e o benefício que sua construção trará à região.
A Belém Brasília é uma realidade – Epopéia daqueles que
venceram a Floresta amazônica em 60 a Amazônia ligada
ao resto do País por via rodoviária e integrada na economia
nacional.O
Cru
zeir
o, 1
2/0
9/1
959
84
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Naquela época, as fotos aéreas não eram um recurso
novo em O Cruzeiro. Neste caso específico, porém, não é na
grandiosidade da obra – que somente pode ser percebida em
imagens aéreas – que reside o valor mais intrínseco do seu
uso, mas no efeito contrário, ou seja, no ato de mostrar em
que tipo de contexto, no caso, a selva fechada, se insere a obra,
de forma a ressaltar que muito embora se trate de uma obra
monumental, realizada ao longo de milhares de quilômetros,
a custa de muito esforço, vista do alto e de muito longe torna-
se pequena, em meio à imensidão da selva.
Esta serve para contrastar os detalhes tomados ao nível
do chão – fartamente explorados em outras imagens tomadas
em planos médios, ou fechados – exatamente para relativizar
o contexto em que está sendo construída a estrada, além
dos títulos e legendas que reforçam os valores da “epopéia”
que tais construções representam, e que custaram a vida de
heróicos engenheiros e operários.
Nas páginas seguintes da reportagem, uma série de fotos
mostra em detalhes, homens e máquinas em seus esforços para
vencer a lama e a mata, enquanto as legendas complementam
as informações afirmando que Apesar do lamaçal, máquinas
funcionam em novos lanços e Moderna máquinas funcionam
24h por dia na terraplenagem, ou ainda Mesmo onde há
máquinas, o esforço do caboclo é indispensável. Além delas, a
fotos aéreas destacam localidades que a construção de pontes
envolve no “processo civilizador”. E os títulos reafirmam
o porte da batalha empreendida contra a natureza, onde
Árvores de até dois metros de espessura eram comuns como
barragem na abertura da estrada.
As cidades atravessam a década de 1950 como um tema
importante em O Cruzeiro. A cidade de Nova iorque era a
85
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
megalópole por excelência e encabeçava a lista das capitais
mundiais do concreto. Aparecendo como uma verdadeira
ode ao poder e força do homem, ao representá-la na revista
em geral, enfatizava-se o domínio dos arranha-céus que
projetavam uma certa frieza, o que não significa que não se
invocasse aspectos de sua beleza e fascinação como cidade de
costumes cosmopolitas.
Muito em função das semelhanças físicas e por
representarem os centros econômicos nos dois países, Nova
Iorque, pelo seu gigantismo, inspirava a comparação com
São Paulo, a maior e mais urbana das cidades brasileiras
do período. Assim, é comum encontrá-las representadas
através de seus principais signos: a profusão dos grandes
edifícios e avenidas, os automóveis, e a constante referência
a esta urbanidade, onde a natureza ocupa papel de pouca
importância. Mas serão também comparadas nos problemas
sociais e desumanização gerados por este gigantismo. Em
New York, José Amádio e João Martins produzem uma
narrativa pessoal, procurando apresentar as fotos como
extensões de seus próprios olhares, ação que as legendas, em
tom pessoal, reforçam.
Ao mesmo tempo em que o subtítulo comenta A maior
e mais complexa cidade do mundo, assemelha-se a uma
garotinha de saia curta e idéias compridas, a maioria das
fotos publicadas focam o concreto. A maior parte das legendas
– muito técnicas – resumem os números colossais das redes
de metrô, de distribuição de vapor e outros, que procuram
valorizar os aspectos dinâmicos da megalópole, seu trânsito
maravilhoso, reservando um pequeno espaço para retratar [...]
a velha York, materializada na vida noturna e Times Square.
No conjunto dessas imagens, uma chama
particularmente a atenção. Fruto de uma tomada aérea
86
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
da cidade, disposta atravessada em duas páginas, fecha a
reportagem. Nela aparece um mar de concreto composto
por prédios de diversas alturas, entre os quais se destacam
imensos arranha-céus. O título considera que Cada vez mais o
homem constrói a sua solidão, ao passo que sob uma pequena
foto sobreposta no canto – onde se pode ver um arranha-
céu fotografado de baixo para cima – a legenda confirma a
perspectiva dizendo que É assim que a gente vê o coração
de New York [...]. Ou seja, do ponto de vista do observador
posicionado na calçada, a cidade é muito alta, avassaladora,
ângulo que acentua a insignificância e impotência do ser
humano perante tamanha imponência na altura dos edifícios
da cidade.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que erigiam-
se essas odes ao concreto, na prática, em meados da mesma
década, o desenvolvimento urbano do país apresentava
peculiaridades típicas da estrutura de um país marcado por
sua formação intrinsecamente rural, embora existissem as
grandes cidades
No final da década de 50, não tínhamos megalópolis no Brasil. Apenas duas cidades, Rio e São Paulo, possuíam mais de 1 milhão de habitantes. O espaço urbano era ocupado por cidades médias e pequenas, que constituíam verdadeiras ilhas na medida em que as precárias redes rodoviária e ferroviária existentes dificultavam a integração regional (Fundação Braudel, p. 9).
Se por um lado o número e o tamanho das cidades
não atribuíam a elas um caráter definidor na paisagem e
nas estatísticas, de outro, seu crescimento se acelerava ao
passo que a sistemática associação da idéia do progresso
87
Uma história da revista O Cruzeiro 1930-1960
com a imagem das cidades refletia-se nos modelos de
desenvolvimento que eram propagados, da mesma forma que
era influenciado por eles, movimento que se consagrava na
projeção do Brasil Moderno.
O país era reportado com o entusiasmo típico da época, o crescimento industrial, o aumento vertiginoso das cidades, e as benfeitorias do cotidiano promovidas pelas maravilhas industriais, registravam a certeza do país estar trilhando o caminho da modernidade [...] (BAITZ, 2003, p. 56).
Brasília por sua vez, encarnava toda essa simbologia do
novo e o moderno, ao mesmo tempo em que sintetizava todos
os valores do período e as ambições do presidente.
A capital que nasceu por acaso no comício goiano [...]. Simboliza esta cidade o tom que o presidente da república imprimia ao país, dinamismo, coragem, tenacidade, pioneirismo desbravador e audácia, fruto da vontade política associada ao espírito de aventura. [...] Em sua utopia, Brasília faria a ponte entre o projeto moderno de Juscelino Kubitschek de Oliveira e o modernismo mineiro doa anos 20 (GOMES, 1991, p. 145-147).
O C
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11/1
955
88
Revista O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada
Esta reportagem, que clamava as maravilhas e
competências de JK e do povo brasileiro, paradoxalmente
prenunciava o início de uma década de desastres para o país: o
governo de Juscelino aproximava-se do final e as tempestades
da conturbada passagem de Jânio Quadros se aproximava,
e traziam com elas os maus presságios de uma ditadura que
comandaria o Brasil com mãos de ferro a partir do Golpe
militar de 1964, por mais de 25 anos.
Chateaubriand adoeceu no início dde 1960 e apesar
de seus esforços para continuar à frente de suas empresas,
não conseguia superar as debilidades por ela causada. Os
Diários Associados sofreram então duros golpes, oriundos
das mudanças políticas decorrentes do golpe apoiado por
seu proprietário e, mesmo, de mudanças no cenário cultural
do país: a televisão avançava para tomar o lugar da principal
mídia e as revistas ilustradas começavam a se enfraquecer em
todo o mundo.
Com seu falecimento, em 1968, a derrocada da
revista tornou-se inevitável e acelerada e culminou com seu
fechamento em 1975.
Conclusão
Ao finalizarmos este capítulo, esperamos ter oferecido
elementos importantes para a reflexão a respeito da “Revista
O Cruzeiro”. Esperamos ainda que sua leitura colabore para o
entendimento da história recente do Brasil e para uma reflexão
crítica a respeito das relações dos meios de comunicação com
a sociedade atual.
89
BAITZ, Rafael. Um continente em foco: a imagem fotográfica da América Latina nas revistas semanais brasileiras (1954-1964). São Paulo: Humanitas/FFLCH, 2003. (Série Teses).
BELMONTE. Caricatura dos tempos. São Paulo : Melhoramentos / Círculo do Livro. 1982.
BOM MEHY, Helena. Utopias de cidade: as capitais do modernismo. In: GOMES, 1991
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. História del humor gráfico em el Brasil. Lleida: Editorial Milênio, 2005.
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