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O Diabo e o Cristo na recriação pictórica dissidente de William Blake para Paraíso Perdido Dissident pictorial recreation of Devil and Christ in William Blake’s Paradise Lost illustrations Prof. Ms. Enéias Farias Tavares 1 Resumo: Embora inicialmente tenha defendido a centralidade do Satã de Paraíso Perdido, uma década mais tarde Blake apresentaria uma interpretação díspar do poema de Milton. Nela, Satã manteria a força dramática e a centralidade inicial, embora decaísse gradualmente nas ilustrações do poema em contraste com a figura do filho redentor. O objetivo desse artigo é apresentar a tradição de ilustrações de Paraíso Perdido anterior a Blake e analisar seu conjunto de lâminas para o poema. Meu mapa de análise partiu de David Bindman em Blake as a painter e foi auxiliado pelas notas de Stephen C. Behrendt em The moment of explosion, além das de June Singer, Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye e J. Davies. Palavras-Chave: Crítica Literária, Pintura, Blake, Milton, Paraíso Perdido Abstract: Although Blake has initially defended the centrality of Satan in Paradise Lost, a decade later the poet presented a different interpretation of the work of Milton. In that, Satan would keep dramatic power and initial centrality but decayed gradually in the illustrations of the poem in contrast with the figure of the redeemer son. The aim of this paper is to present the tradition of Paradise Lost illustrations before Blake and analyze his set of paintings for the poem. My map of analysis was based on David Bindman in Blake as a painter and was aided by the notes of Stephen C. Behrendt in The moment of explosion, besides June Singer, Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye and J. Davies’s analyses. Key-Words: Literary Criticism, Painting, Blake, Milton, Paradise Lost Ao compor Matrimônio do céu e do inferno (1793) William Blake foi associado pelos críticos da obra de Milton, em especial os que debruçaram sobre Paraíso Perdido, aos principais responsáveis pela valorização da personagem satânica do poema no período romântico. Tais críticos, que em 1 Enéias Farias Tavares é professor mestre em Estudos Literários e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Santa Maria. Traduziu Otelo - O mouro de Veneza, de Shakespeare, e agora, debruça-se sobre a poesia e a pintura de William Blake. Além de autor de artigos e ensaios que tratam da relação entre literatura e outras artes, integra o corpo editorial das revistas Querubim e Todas as Musas.

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O Diabo e o Cristo na recriação pictórica dissidente de William Blake para

Paraíso Perdido

Dissident pictorial recreation of Devil and Christ in William Blake’s Paradise

Lost illustrations

Prof. Ms. Enéias Farias Tavares1

Resumo: Embora inicialmente tenha defendido a centralidade do Satã de Paraíso Perdido,

uma década mais tarde Blake apresentaria uma interpretação díspar do poema de Milton. Nela,

Satã manteria a força dramática e a centralidade inicial, embora decaísse gradualmente nas

ilustrações do poema em contraste com a figura do filho redentor. O objetivo desse artigo é

apresentar a tradição de ilustrações de Paraíso Perdido anterior a Blake e analisar seu

conjunto de lâminas para o poema. Meu mapa de análise partiu de David Bindman em Blake

as a painter e foi auxiliado pelas notas de Stephen C. Behrendt em The moment of

explosion, além das de June Singer, Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye e J.

Davies.

Palavras-Chave: Crítica Literária, Pintura, Blake, Milton, Paraíso Perdido

Abstract: Although Blake has initially defended the centrality of Satan in Paradise Lost, a

decade later the poet presented a different interpretation of the work of Milton. In that, Satan

would keep dramatic power and initial centrality but decayed gradually in the illustrations of the

poem in contrast with the figure of the redeemer son. The aim of this paper is to present the

tradition of Paradise Lost illustrations before Blake and analyze his set of paintings for the

poem. My map of analysis was based on David Bindman in Blake as a painter and was aided

by the notes of Stephen C. Behrendt in The moment of explosion, besides June Singer,

Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye and J. Davies’s analyses.

Key-Words: Literary Criticism, Painting, Blake, Milton, Paradise Lost

Ao compor Matrimônio do céu e do inferno (1793) William Blake foi

associado pelos críticos da obra de Milton, em especial os que debruçaram

sobre Paraíso Perdido, aos principais responsáveis pela valorização da

personagem satânica do poema no período romântico. Tais críticos, que em

1 Enéias Farias Tavares é professor mestre em Estudos Literários e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Santa Maria. Traduziu Otelo - O mouro de Veneza, de Shakespeare, e agora, debruça-se sobre a poesia e a pintura de William Blake. Além de autor de artigos e ensaios que tratam da relação entre literatura e outras artes, integra o corpo editorial das revistas Querubim e Todas as Musas.

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sua grande maioria se dividem entre os que defendem o heroísmo de Satã

como protagonista e os que fazem uma leitura cristã da obra, comumente citam

a frase de Blake, “Milton era do partido do demônio sem o saber”, ao lado das

considerações de Shelley, Byron e Coleridge, para justificar essa afirmação.

Para tais críticos, Blake teria, não apenas em Matrimônio como também em

outros poemas e pinturas, defendido um ideal de rebeldia contra a ordem

vigente, quer divina ou política, inspirado na personagem de Milton.

Entretanto, a partir da década de 1940, com os estudos de Frye e

Davies e da análise pontual de Stepehn C. Behrendt em 1983, essa opinião

crítica da obra de Blake tem sido contestada. Tal mudança é resultante,

sobretudo, da ênfase que tais críticos deram à obra pictórica de Blake. Nela,

pode-se notar uma relação ainda mais evidente do que a crítica textual sugeria

entre as personagens blakeanas Urizen, Orc e Los e as bíblicas ou miltonianas

Deus, Satã e Cristo. A partir dessa constatação, pode-se então empreender

uma interpretação bíblica ou cristã da obra de Blake assim ou ainda, meu

intento neste texto, propor uma interpretação blakeana das figuras ou tipologias

bíblicas. Para segurarmos essa hipótese, aludirei às ilustrações que Blake fez

de Paraíso Perdido entre os anos de 1807 e 1808.

Nas doze pinturas, uma década mais tarde somadas às dedicadas ao

Paraíso Reconquistado, Blake colocou muito de suas concepções míticas

como também apresentou uma interpretação dissonante da obra de Milton. Na

opinião de Bentley Jr., em The Stranger from Paradise, Blake mostrou nessas

lâminas “poder e graça em cenas de tensão hiper-natural, demonstrando tanto

que havia compreendido profundamente Milton quanto também estendendo os

sentidos da obra do poeta num característico modo blakeano” (2003, p. 287).

Sobre isso, Foster Damon, em A Blake Dictionary, menciona que “nenhum

outro ilustrador fora tão preciso em seguir o texto de Milton, mesmo em suas

mais complicadas metáforas, e nenhum outro nunca incluiu em suas

ilustrações tanto de suas próprias interpretações” (1988, p. 285). Assim, o que

se percebe na versão pictórica de Blake para Paraíso Perdido é um esforço

tanto de interpretar e ilustrar a obra de Milton como também o de apresentar

uma visão cultural e poética muito particular, visão que perpassa toda sua obra.

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Neste ensaio, o desafio que propus foi o de apresentar a tradição de

ilustrações de Paraíso Perdido para então analisar seu conjunto de pinturas,

tendo por interesse as personagens de Satã e de Cristo. O mapa de análise

que segui partiu de David Bindman em Blake as a painter e foi auxiliada pelos

comentários pontuais e detalhados de Stephen C. Behrendt em The moment

of explosion – Blake and the ilustration of Milton, além dos de June Singer,

Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye e J. Davies.

De forma geral, os ilustradores de Paraíso Perdido nos séculos XVII e

XVIII ignoraram a importância da figura de Cristo tanto ao ilustrarem o acordo

de redenção no terceiro canto do poema, quanto ao representarem

pictoricamente a antevisão de Miguel no canto doze. Segundo Beherendt, esse

desvio interpretativo por boa parte dos ilustradores resultou em uma

transferência visual e interpretativa do herói original do poema, Cristo, para o

anti-herói Satã. Essa caracterização imagética equivocada dos ilustradores2 foi

um dos fatores responsáveis pela visão forma errônea de considera Satã o

herói do poema e relegar as outras personagens a coadjuvantes (1983, p. 124).

Segundo o crítico, esse tipo de ênfase pictórica dada à personagem

demoníaca havia começado ainda no renascimento, quando gradualmente

convencionou-se representar de forma humana a anterior caracterização

grotesca e burlesca do diabo medieval3. A observação das ilustrações para

Paraíso Perdido demonstra que a fascinação pela personagem satânica de

Milton é ainda anterior ao romantismo, tendo encontrado no período um público

de poetas e pensadores que viram na personagem um molde de muitas de

suas inquietações e reflexões, reflexões essas que vão até o século vinte4. Se

2 Entre os ilustradores de Paraíso Perdido, que vão do século XVII ao XIX, encontram-se Bernard Lens (1688), Henry Aldrich (1688), Jean Baptista de Medina (1688), Louis Cheron (1720), James Thornhill (1720), Francis Hayman (1749), Henry Fuseli (1779 e 1802), Edward Burney (1799), William Blake (1806-7), John Martin (1827), J. M. Turner (1835) e Gustave Dore (l866). 3 Para um estudo aprofundado da variação entre a forma pictórica monstruosa do demônio até o fim do medievo e de sua alteração para uma imagem atraente no renascimento, ver livro de Luther Link. (LINK, Luther. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. São Paulo, 1998.) Para um estudo da alteração literária da personagem demoníaca que tem início no século quinze e que resulta na concepção do anti-herói romanesco ver Mario Praz (PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Editora da Unicamp. São Paulo, 1996). 4 Shelley em Defesa da Poesia, menciona que “O demônio de Milton, como um ser moral, é muito superior ao seu Deus, como alguém que persevera em um objetivo que assumiu como

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o romantismo observaria na personagem um aspecto de rebeldia contra a

ordem estabelecida, o século anterior esteve mais interessado na essência

teatral e dramática do Satã de Milton (Behrendt, 1983, p. 124).

Como resultado dessa interpretação equivocada e tendenciosa,

Beherendt afirma que essa ênfase ao que deveria ser o vilão do poema

resultou num apagamento da trama e da atenção que o poeta havia dado as

outras personagens. Em vista disso, ao invés das ilustrações sumarizarem o

poema, objetivo e primeira meta dessa arte, elas serviriam apenas como

holofotes teatrais que focariam um pretenso heroísmo prometeico em Satã.

Buscando essa ênfase, os ilustradores dramatizaram ou ressaltaram os

aspectos mais teatrais do poema. Tal percepção fez com que escolhessem

cenas de confronto em detrimento dos diálogos visando assim os episódios de

maior plasticidade estética ou de conflito, artificializando-as ou até mesmo

exagerando-as. Behrendt afirma que quase todos os ilustradores anteriores e

mesmo contemporâneos de Blake usaram a temática de Milton apenas como

desculpa para suas próprias concepções de arte, religião ou de caracterização

demoníaca (1983, p. 125), execução interpretativa que seria anulada por Blake.

Figura 1 – Ilustrações para Paraíso Perdido Canto IV Francis Hayman (1749), Henry Fuseli (1779) e Edward Burney (1799)

sendo excelente, apesar da adversidade e da tortura; é alguém que, na fria segurança do triunfo indubitável, impõe a mais terrível vingança ao inimigo, não por fazê-lo se arrepender mas no planejamento de um plano que significará mais horrores para seu oponente” (LOBO, Luiza. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 220). Quase um século mais tarde, Gustav Jung, na introdução para o livro de Z. Weblowsky, Lúcifer e Prometeu, escreveu que o Satã de Milton é o primeiro grande exemplo de individuação da história por ser o primeiro que se recusa a fazer parte de um cosmos organizado. Na opinião de June Singer, comentando o texto de Jung, o Satã de Milton seria ficcionalmente um Hamlet pré-histórico (SINGER, June. Blake, Jung e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Madras, 2004, p. 109).

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Usaremos para ilustrar essa tendência, três ilustrações de artistas

diferentes que não apenas conferiram a Satã uma centralidade exagerada

como igualmente diminuíram outros aspectos e personagens do poema5. Num

período de meio século, entre 1749 e 1799, não houve grandes alterações na

ilustração do quarto canto do poema. Na primeira imagem, de Hayman, Satã

em forma angelical circunda a árvore em que Adão e Eva descansam. Sua

expressão facial condiz mais com uma sordidez exagerada do que com o misto

de desespero e inveja que permeiam as elucubrações satânicas na passagem

original. No segundo caso, na pintura de um grande admirador de Milton e que

teve influência central no estilo de Blake, Henry Fuseli, Satã não é nem o

sórdido vilão a maquinar um plano de tentação e queda nem o ressentido herói

miltoniano, mas uma figura imponente e soberba, mais prometeica que

satânica. Mesma característica que Burney demonstrará mais tarde.

Nesse sentido, é ilustrativo o fato de nenhum dos artistas ter configurado

o misto de sentimentos dicotômicos de Satã diante da intimidade que Adão e

Eva dividem, justamente o que explicaria a relativa simpatia que o leitor nutre

pela personagem. Comunhão essa que Satã desconhece e que aprofunda nele

a consternação por ter sido expulso da presença divina.

Num outro aspecto, Fuseli e Burney também “falham” enquanto

ilustradores ao intentarem narrar, numa imagem, dois episódios distintos. O

encontro de Satã com os Anjos que protegem o jardim se dá no final do canto e

não durante a observação que o vilão faz do casal edênico. Essa aparição e

aparente proteção militar dos anjos dedicados a Adão e Eva desvia a atenção

justamente para o que é fundamental no poema de Milton: o tema da escolha.

Na pintura e na ilustração se compreende uma proteção angelical que, se

retirada, resultaria na completa fragilidade do casal diante de Satã. Em vista

dessa caracterização, perdeu-se o que deveria ser importante numa

interpretação pictórica da obra de Milton: a altivez demoníaca – nas duas

imagens Satã parece mais amedrontado e indignado com a presença dos anjos

5 Para mais ilustrações dedicadas ao poema de Milton, acessar www.paradiselost.org. A seção da página dedicada às Ilustrações está dividida conforme as cenas dos cantos em ordem cronológica, facilitando a observação da variação de diversos artistas para o mesmo episódio.

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do que interessado na reflexão sobre si mesmo ou sobre a realidade material –

e o tema da escolha que levaria à queda física e a redenção do homem.

Como demonstrarei em artigo posterior, esse equívoco dos artistas

também se repete na caracterização do casal no último canto do poema, no

qual é narrada a sua saída do Éden. Enquanto em Milton fica a sutil impressão

de que a queda seria necessária para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da

humanidade, todos os artistas retratam a cena ressaltando sentimentos como

vergonha e aflição. É sobre essa tradição de leituras e versões pictóricas

equivocadas e tendenciosas que Blake se ressurgirá ao ilustrar o poema.

Em resposta a interpretação mais tradicional de Paraíso Perdido, Blake

criou um conjunto de imagens que visava não apenas ressaltar as qualidades

da personagem de Satã como também evidenciar a centralidade de Cristo no

enredo do poema. Segundo Beherendt, para Blake o importante foi separar

visão total da detalhada, ou seja, buscando uma arte que elucidasse o épico

miltoniano ao invés de uma que apenas o decorasse (ibidem, p. 125).

A técnica escolhida por Blake para a ilustração de Milton – em Comus

(1801), Paraíso Perdido (1806-1807), L’Allegro e Il Penseroso (1816) e

Paraíso Reconquistado (1816-1820) – diferia tanto da usada em seus livros

iluminados quando nas ilustrações que havia feito para obras como Night

Thoughts, de Edward Young, ou para os Poems, de Thomas Gray. Nas

primeiras, Blake criou uma técnica que possibilitou gravar texto e imagem

numa mesma lâmina. No caso das ilustrações para obras de outros autores,

Blake usou a gravação normal, apenas da imagem, deixando no centro da

página um retângulo em branco para posteriormente ser impresso o texto do

poema.

De forma diferenciada, na criação de ilustrações para os principais

poemas de Milton Blake optou por painéis maiores que poderiam tanto ser

contrastados ao poema no ato da leitura quanto igualmente observados como

peças autônomas. Se tal escolha foi intencional ou exigência dos que

encomendaram as pinturas, não se sabe. Entretanto, importa aqui o fato do

resultado final da arte de Blake para Milton resultar numa interpretação nova e

estimulante para poemas que já haviam sido ilustrados por diversos artistas.

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Figura 2: Três Diferentes Técnicas de Composição de Blake em Europa uma profecia (Lâmina 12), Night Thoughts (Lâmina 6) e L’Allegro e Il Pensoroso (Lâmina 5)

Com Paraíso Perdido, Blake deparou-se tanto com o maior poema

inglês do período, com uma considerável iconografia já publicada. Henry

Fuseli, por exemplo, já havia até mesmo organizado duas exposições de obras

de diferentes artistas baseadas nos poemas de Milton. Todavia, o que diferia

Blake de outros pintores foi sua capacidade de interpretar e recriar suas fontes,

fazendo dele tanto intérprete quanto par criador de seus precursores. Segundo

Behrendt, “Blake recusou-se a aceitar os dois limites – da tradição textual e

iconográfica – como absolutas, julgando-as mais como pontos de partida ou

como indicadores de um contexto visual e verbal específico, um contexto que

ele desejava evocar para seus próprios objetivos críticos” (1983, p. 67).

Para compreender esses objetivos, primeiramente é necessário nos

reportarmos à leitura que Blake havia feito da obra de Milton no poema O

matrimônio do céu e do inferno. Nele, Blake acusou Milton de ter incorrido

numa série de “erros poéticos” na estrutura e na concepção de seu poema.

Desfavorável a qualquer tipo de repressão ou instrução religiosa – sobretudo

depois de sua decepção pessoal com a Igreja da Nova Jerusalém de Emanuel

Swedenborg – a década de 1790 marcou a obra de Blake por sua completa

releitura do imaginário bíblico e miltoniano em obras como ficaram conhecidas

como Proféticas destacando caracteres como “energia” e “oposição”.

Ao citar Milton e Paraíso Perdido, Blake propõe em seu poema a

centralidade de Satã como verdadeiro protagonista e como catalisador da

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energia poética necessária ao artista. June Singer, em Blake, Jung e o

Inconsciente Coletivo, refletiu sobre a relação de Blake com a obra de Milton

ao comentar a composição de Matrimônio do céu e do inferno, livro que

marcaria

a “virada” dos poemas simples ou aparentemente simples para as obras mais recentes, profundas e proféticas. Nesse pequeno livro, que consiste de 27 gravuras com texto, imagens e bordas decorativas, Blake retratou o problema do bem e do mal e anunciou sua crença em que a regra da ordem, convenção e moralidade expressa nos códigos atuais de comportamento, como ensinadas pela lei e pelas igrejas, era extática, restritiva e enfraquecedora, enquanto que o livre exercício do desejo e as energias da psique eram doadores de vida. Tanto para ele, como para Milton em Paraíso Perdido, o demônio representava a energia criativa e doadora de vida. Ele era o verdadeiro herói, trazendo redenção para um mundo envelhecido e deteriorado. (2004, p. 16)

Blake tinha trinta e três anos quando compôs o poema, trabalhando nele

os aspectos dicotômicos entre o opressor divino e o rebelde demoníaco,

oposição que seria recriada nos livros posteriores nas personagens Urizen e

Orc. Segundo Behrendt, essa leitura primeira de Blake estaria distante da

leitura posterior que data da composição do épico Milton (1804) e das

ilustrações de Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado. Para o crítico, um

dos grandes erros dos estudiosos de Blake foi resumir algumas idéias esparsas

nas primeiras obras do poeta – como essa suposição de que Satã seria o herói

supremo e definitivo de sua mitologia – como exemplificadoras de seu

pensamento. Antes, o que se percebe em Blake é um recorrente exercício de

análise de suas percepções, quer pessoais quer artísticas.

Como exemplo desse exercício, pode-se afirmar que as opiniões de

Blake sobre a obra de Milton e sobre o texto Bíblico, opiniões expressas direta

ou indiretamente nas obras compostas nos anos 1790 e que seriam

completamente revistas nos poemas épicos finais: Milton (1804) e Jerusalém

(1820). No primeiro, o criador de Paraíso Perdido foi transformado em

personagem, travando um diálogo com o próprio Blake numa resposta mais

complexa do que as afirmações de Matrimônio sobre as oposições

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Deus/Diabo ou Opressão/Energia poderiam expressar. Já em Jerusalém, o

texto bíblico e sua interpretação religiosa, católica ou protestante, seriam

completamente repensados num poema dedicado a públicos específicos:

judeu, deísta, cristão e homem comum. Tal variação crítica é recorrente em

toda a obra de Blake. Nela, o leitor encontra um pensamento em revulsão

constante em que antigas inquietações nunca deixaram de ser analisadas,

poética e pictoricamente.

Desse modo, as formulações de Blake em 1794 não corresponderiam

totalmente às idéias do próprio poeta quando ilustrou Milton, uma década mais

tarde. Embora Matrimônio sirva de parâmetro para o modo como Blake

demonstrou sua admiração pelo precursor – “Oposição é verdadeira amizade”

– as afirmações de Blake sobre o “erro poético” de Milton poderiam somente

marcar o início da leitura que faria de Paraíso Perdido e de outras obras.

Nessa releitura efetuada na primeira década de 1800, perceptível tanto

no poema Milton quanto nas ilustrações de Paraíso Perdido, Beherendt supõe

que Blake teria diminuído sua opinião sobre a centralidade de Satã, passando

a interar-se mais na caracterização miltoniana de Cristo. Igualmente, o que

David Bindman, numa passagem esclarecedora e de notável precisão em

Blake as a painter, argumenta é que o poeta observou a encomenda de

ilustrações para Paraíso Perdido como uma possibilidade de revisitar não

apenas a obra de Milton como também de rever sua própria interpretação do

poema. Segundo o crítico, nessa série de ilustrações

Blake deslocou a ênfase de Milton de Satã para Cristo, “corrigindo” o poema de acordo com a popular crença de que Milton havia feito de Satã o herói do poema. Blake demarcou centralmente suas aquarelas apresentando Cristo e Satã num campo de contestação. O último ocupa o campo nas primeiras duas lâminas, mas após a decisão de Cristo de abdicar de sua posição no céu para descer a Terra (Lâmina 3), Satã é revelado como um ser patético a observar Adão e Eva, enquanto abraça onanisticamente a serpente, emblema do seu próprio ser (L 4). O poder superior de Cristo é visualizado na dramática batalha contra os anjos rebeldes (L 7), na sua clara identificação com o Deus que criou Eva (L 8), na sua central posição no julgamento de Adão e Eva (L 10), e na profecia de Miguel sobre a crucificação (L 11). (2003, p. 100)

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Essa constatação de Behrendt e Bindman não é nova. Na primeira

metade do século vinte, alguns críticos destacaram que havia em Blake uma

correlação entre o seu ideal de herói, a divindade forjadora de metal Los, e a

figuração literária e pictórica de Cristo. Um dos primeiros a desenvolver essa

relação foi Northrop Frye no clássico Fearful Symmetry, de 1947. Nele, o

crítico afirma que, na acepção de Blake, Cristo era central ao cânone artístico

do ocidente nem tanto por sua caracterização perfeita e sim por apresentar em

equilíbrio aspectos divinos e humanos. Nessa acepção Cristo seria o matador

do deus vulcânico judaico e das leis tirânicas e impositivas. Além disso, em

suas histórias e fábulas, deixara claro que apenas a inocência, não a culpa,

poderia levar o homem à salvação imaginativa (1990, p. 79).

Um ano depois do estudo de Frye, J. G. Davies escreveu The theology

of Wiliam Blake, livro no qual traçou a relação de alusões temáticas e

estruturais na obra de Blake com sistemas cristãos, místicos e bíblicos. No

caso deste, quando se fala da centralidade desses sistemas em sua obra, não

se quer dizer que sua percepção passaria pela lente de qualquer crença ou

credo religioso. Pelo contrário, como Davies deixa claro, Blake nutria uma total

aversão pelas instituições religiosas de seu tempo. Como muitos artistas, Blake

“concebeu Cristo ao seu próprio modo, ressaltando no personagem sua própria

personalidade vívida e complexa naquilo que mais interessava ao seu gênio, e

negligenciou completamente aquilo que não o interessava. Nas mãos de Blake,

Cristo tornou-se um herói rebelde”, similar a tantos outros na mitologia do autor

(1948, p. 110). Baseado nisso, quando trago a personagem de Cristo aqui, a

título de análise, como Frye e Davies fizeram, trago-a em sua versão blakeana,

como reconfiguração artística e mítica de sua própria personagem heróica, seja

ela o demônio de Matrimônio ou o Los dos livros proféticos posteriores.

Contudo, se Blake diminuiria a participação da personagem Satânica em

detrimento da figura de Cristo, como veremos em suas ilustrações para o épico

miltoniano, sua completa antipatia pela figura da divindade paternal judaica

permaneceu. Nas ilustrações para Paraíso Perdido Blake recusou-se a

representar pictoricamente o deus miltoniano, personagem importante no

poema de Milton, mas que, na acepção de Blake, continuava sendo sua

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principal falha. Desprezando Javé, Deus ou o seu próprio Urizen, sua releitura

mais importante incidiria sobre as suas versões pictóricas de Satã e Cristo.

No início do dezoito, Blake completou dois conjuntos de ilustrações para

Paraíso Perdido, o primeiro para o Reverendo Joseph Thomas em 1807 e o

segundo para Thomas Butts em 1808. Antes de empreender seu trabalho de

composição, Blake havia feito uma série de estudos para aquela que seria sua

versão pictórica definitiva para o poema de Milton. Blake também fez um

estudo cuidadoso da tradição de ilustração anterior, dando-se ao trabalho de,

em muitas lâminas, fazer referências diretas às interpretações anteriores,

visando unicamente corrigi-las ou contrapô-las à sua leitura do poema.

Tematicamente, as lâminas de Blake evitam a ordenação cronológica

bíblica e apresentam uma fissura no tempo, estando ele mais interessado

numa visão imaginativa da realidade, “a eternidade numa hora”, do que numa

ordenação temporal previsível. Citando alguns versos de Milton, Beheredt

afirma que nos designs de Paraíso Perdido Blake teria mostrado que “no seio

de um momento, arde a pulsação de uma artéria na qual todas os eventos

temporais tiveram início, e no qual foram concebidos e concretizados” (Milton,

Lamina 29, versos 1-3). Na arte de Blake, nota-se esse instante de suspensão

da realidade física, um fotograma da condição interior de suas personagens.

Tal condição seria picturalizada por Blake apenas quando associada a

personagens que teriam uma capacidade imaginativa elevada (1983, p. 130).

Assim, tal momento de explosão poético e existencial seria inacessível para o

Deus Pai de Paraíso Perdido, personagem que praticamente inexistente nas

ilustrações de Blake, assim como também inexistiria para o filho caído,

encerrado em seu próprio sofrimento e vingança. Nas lâminas essa dádiva de

percepção e imaginação seria visível apenas no Cristo, o único no poema que

conseguiria guiar a história da queda para um final de possibilidades positivas.

Na leitura de Blake, tanto Satã quanto o Pai teriam promulgado, segundo a

narrativa do velho testamento, uma guerra contra a humanidade. No novo

testamento essa guerra teria sido revertida em compreensão e aceitação pela

personalidade compassiva do Filho. Em vista dessa oposição, primeiro

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centrarei a análise na ilustração que Blake faz de Satã, para depois me

concentrar naquele que seria para o poeta o protagonista do épico.

Nas primeiras duas lâminas de sua série, Blake homenageia a leitura

dos aspectos heróicos de Satã, leitura no qual ele mesmo havia incorrido. Em

Satã Clamando às suas Legiões, lâmina que abre sua série, Blake de

imediato renega a tradição já comum de ora mostrar Satã com asas ora com

uma indumentária militar romana. Nela, ao invés de liderar ou guiar tropas e

legiões demoníacas, Satã tenta silenciá-las ou acalmá-las. Todas as outras

figuras demoníacas estão em estado de desespero e lamento, exceto Satã,

inegavelmente figura central e apolínea da imagem. Segundo Berehedt, nessa

primeira ilustração, ao invés de exaltar Satã, Blake o distingue como antítese

perfeita de Deus, tentando organizar o caos. O autor observa os braços abertos

de satã como paródia negativa do sacrifício do filho. Segundo o crítico

Satã é tão bom – ou mau – quanto seu pai no que concerne aos rebeldes. Energia contra Razão é criativa e construtiva – a dialética sempre o é; já Energia transmutada em Repressão da Criatividade, por outro lado, é sempre destrutiva. Reconhecendo isso, o homem precisaria descobrir com Blake uma alternativa correta: a liberação de criatividade imaginativa representada pelo filho como Blake veio a perceber. (1983, p. 132).

Mesmo ao aceitar a leitura de Berehedt, está sutilmente subscrito na

versão de Blake a majestade e o heroísmo das versões e interpretações

anteriores de Satã. Em sua escolha e composição pictórica, tendo os raios

solares atrás de si, as armas postas ao lado e recebendo a atenção dos

demônios e do expectador, Satã abre o conjunto de designs de Blake com a

mesma centralidade que possui tanto no poema de Milton quanto nas suas

interpretações mais radicais. Se o poema abre com Satã, será em seu

desenvolvimento que a personagem será temática e estilisticamente diminuída.

Nesta lâmina, Blake relê sua própria tradição mítica, podendo ser vista como

recriação da energia de Orc, deus revoltoso e mercurial na cosmologia

blakeana, ao redor de Urizens demoníacos acorrentados as suas imperfeições.

Na segunda pintura, Satã chega aos portões do inferno, Blake corrige

as leituras errôneas da descrição de Milton sobre a Morte, que em obras

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anteriores figurava como esqueleto envolto num manto negro, representação

tipicamente medieval. Nela, Blake opõe a posição corporal de Satã e sua lança

à arma e a posição corporal da Morte incorpórea. Entre os dois, o Pecado.

Segundo Beheredt, o objetivo dessa cena, tanto em Milton quanto em

Blake é representar a trindade demoníaca em nítida oposição. Enquanto os

ilustradores anteriores ressaltaram apenas o aspecto dramático e teatral da

cena, Blake opõe as três figuras como forma de exprimir sua união dissonante

e desorganizada (1983, p. 135). Essa trindade demoníaca será recorrente em

ilustrações posteriores, sobretudo pela transmutação que Blake fará da

caracterização incorpórea da Morte numa versão do Deus Pai.

Na recriação de Blake, Morte e Pecado são alegóricos, ao lado de uma

representação de Satã que continua a ressaltar os aspectos elogiosos da

aparição anterior. Abaixo do ventre da versão feminina do Pecado, Blake recria

a descrição do dragão de sete cabeças segundo o Apocalipse e a narrativa do

segundo canto de Paraíso Perdido. Nessa caracterização do Pecado, Blake

segue tradição tanto ao caracterizá-la em forma feminina quanto em relacioná-

lo com a Prostituta do livro de Apocalipse. Poucos anos depois, ele próprio

dedicaria a tela A prostituta da Babilônia (1809) à caracterização alegórica da

personagem. Em contrapartida às figuras mais opacas do Pecado e da Morte,

a fúria de Satã ao avançar contra o segundo prevê a crise identitária que a

personagem sofrerá ao abandonar os limites férreos de seu reino infernal.

Na quarta lâmina, Satã espiando Adão e Eva, percebe-se num primeiro

plano a figura satânica envolta pela forma serpentina de sua contraparte animal

futura. Abaixo da união narcísea entre Satã e a Serpente, Blake opõe a união

igualmente especular entre Adão e Eva. Neste, o artista trabalhou com a

totalidade da união do casal, sua completa perfeição e adaptabilidade à

imagem e a posição corpórea um do outro. São imagens espelho, que

encontram na sua gêmea as particularidades de si mesmas, unidas pelo corpo,

pelas faces, pelos olhos. Ao redor delas, uma prodigiosa natureza que pulula

de flores, frutos e folhas, objetos vegetais e naturais que as protegem,

sugerindo o caráter produtivo e procriador de sua união. O que Blake intuiu e

evidenciou nessa lâmina foi a integração física e espiritual do homem e da

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mulher antes da queda, uma integração que Satã não mais acessaria.

Figura 3 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 1, 2 e 4)

Em contraste com a imagem iluminada e resplandecente de Adão e Eva,

a metade superior da lâmina é dominada por Satã, cuja divisão entre luz e

trevas resulta numa elaborada caracterização dos estados passado e futuro da

personagem. Na imagem de Blake, Satã ainda reuniria algumas características

angelicais, traços que por fim se dissolveriam ao abraçar seu desespero e sua

falsidade. Por isso a escolha de Blake de caracterizar satã justamente nessa

linha limítrofe entre luz e trevas, entre aspecto angelical e demoníaco, situação

em que sua própria angústia seria mais evidente. Tal iluminação ambivalente é

também usada por Blake para ressaltar o caráter dúbio de Satã, sendo essa a

primeira vez que a forma angelical e serpentina de Satã aparecem fisicamente

unidas. Enquanto Adão e Eva configuram uma máxima caracterização de

satisfação física e de inserção material, Satã paira acima do cosmos,

desconectado dessa realidade, podendo apenas vislumbrá-lo a distancia.

A mão ainda angelical almeja tocar a união do casal, tocar seus corpos

ou sua materialidade, e talvez sua cumplicidade especular, mas não consegue,

pois há um alo verdejante e angélico de proteção divina ao redor deles. Em

contraste a mão direita do anjo caído aproxima a face da serpente recriando o

mesmo gesto dos amantes. Estando só, o Satã blakeano apenas pressente e

ressente o negativo de uma sexualidade inexistente. Segundo Beheredt, “a

sexualidade satânica é, sem dúvida, a pervertida e isolacionista sexualidade do

ciúme e da paranóia, procurando condenar e destruir aquilo que não pode

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possuir, compreender ou apreciar” (1983, p. 140).

A coexistência do sol e da lua no horizonte marca o momento de fissura

temporal ao qual havia aludido. Nesse contexto de embevecimento especular

de Adão e Eva o tempo representado é o da eternidade, eternidade de uma

união perfeita e idealizada que o casal experiência e eternidade de completa

desconexão e angústia para o anjo caído. Somente aqui, no limite dessas três

lâminas, pode-se perceber resquícios da glorificação dedicada à personagem

pelos outros ilustradores de Paraíso Perdido. Entretanto, mesmo nessas,

Blake reforça apenas o limite daqueles caracteres elogiosos e divinos que

apenas potencializam e intensifica a queda vertiginosa de Satã.

Na terceira lâmina do conjunto, como veremos a seguir, Satã é

representado à parte do contexto celestial, cujos limites na ilustração de Blake

são demarcados pelo círculo de nuvens. Nessa paisagem, Satã está

completamente excluído da presença divina e angélica. Expulso do céu e

perdido no cosmos físico, sua energia confrontadora ilimitada o afasta

continuamente, quer dos anjos antigos irmãos quer dos demônios atuais

companheiros. Excluído e exilado, o Satã de Blake também configura o

aspecto solitário que tanto despertou nos românticos sua admiração.

Se Blake fez de Satã, nas primeiras lâminas de seu poema talvez a

caracterização mais atraente da cultura ocidental, foi apenas para ressaltar sua

decadência posterior. Nas outras imagens do artista, Satã é apenas o inimigo,

o opositor, primeiramente apartado da presença divina e depois ressentido e

invejoso da materialidade física que desconhece e de uma conexão que lhe

proibida. Por fim, na leitura de Blake e no poema de Milton, relegado e

condenado à forma do animal que escolheu para tentar Eva, Satã é apenas

uma sombra do ímpeto e da força anterior. Por outro lado, há uma elevação

temática fundamental na leitura que Blake efetua da figura de Cristo.

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Figura 4 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 3 e 7)

O início dessa ênfase na caracterização de Cristo já é perceptível na

terceira lâmina da série de Blake, Cristo se oferece para redimir o homem.

Nela, temos a única representação da figura paternal divina da série. Uma

divindade cansada, escondida, cabisbaixa, como o Urizen blakeano,

acorrentado à sua própria limitação moral e impositiva. A figura do filho,

contrariamente, reconfigura corporalmente a futura crucificação. Ao redor do

pai e do filho, anjos em formas humanas louvam segurando coroas doutoradas,

embora dirijam sua percepção para o anjo caído, na parte inferior da lâmina.

Ao invés de representar a materialidade da cruz, como os artistas

anteriores fizeram nessa passagem, Blake opõe o filho à composição corporal

da cruz. Segundo Beheredt, “tanto Milton quanto Blake – em particular o último

– atentaram para as implicações metafóricas da crucificação, cujo emblema

carrega na arte ocidental não apenas conotações de morte e auto-sacrifício,

mas também de irmandade, redenção e criatividade” (1983, p 137).

No contraste entre as posições do pai e do filho, encontra-se na figura

divina um aspecto similar ao que resultou na queda de Satã. O Deus blakeano

possui um racionalismo dissociado de expressões faciais carecendo, portanto,

de emotividade e subjetividade. Suas mãos contem ou limitam o corpo do filho.

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Por outro lado, Blake legou a este a espontaneidade e a acessibilidade corporal

e imaginativa que é imperceptível na sombria e fugas aparição paterna.

Também se opõe à imagem desse Cristo, a caracterização satânica que

observa a cena celestial à distância. Nessa configuração, Blake contrasta a

energia retentiva do Pai com a energia explosiva e incontrolada, incontida do

anjo caído. São imagens dicotômicas, bipolares e antagônicas em

caracterização corporal e subjetiva.

Na sétima lâmina, A fuga dos anjos rebeldes, Blake opõe os exércitos

celestes, que tem por comandante um Cristo guerreiro com um arco e uma

flecha, às hostes rebeldes. Na imagem, os demônios caem com uma

diversidade de expressões faciais e corpóreas, todas elas ressaltando o fardo

da derrota e da expulsão. Este é o design mais impactante de toda a coleção e

também, num certo aspecto, o mais artificial. Contribui para essa impressão

Blake ter dividido a lâmina em dois blocos, um celeste e um infernal.

No primeiro deles, Cristo está rodeado por um halo de anjos que,

assombrados e inquietos, testemunham a guerra narrada em Apocalipse 12.

No segundo, preponderantemente composto em tons vermelhos mais pesados

e escuros, Blake ilustra o poder e a centralidade do general divino diante da

miséria dos caídos. Segundo Behrendt, essa lâmina no centro do poema

ressalta não apenas a oposição entre os elementos divinos e satânicos do

poema de Milton, como também a capacidade do seu herói em estabelecer um

relativo equilíbrio num espaço permeado pela aflição da queda.

Na décima ilustração de Blake, O julgamento de Adão e Eva, Blake

centraliza a posição de Cristo por colocá-lo entre o casal pecador. Acima deles,

o Pecado e a Morte adentram o mundo físico após o pecado original. Como a

condenação à morte decorrente do pecado fora promulgada por Deus, Blake

apresenta a Morte com os caracteres do seu paternal Javé-Urizen.

Se na segunda lâmina Blake havia retratado a Morte em forma etérea,

aludindo e corrigindo os artistas anteriores, aqui ele a mostrará como um

homem velho e coroado, aparentemente maléfico. Nas palavras de Chauvin,

em L´oeuvre de William Blake – Apocalipse et transfiguration, este será,

em toda a sua obra “o arquétipo blakeano da tirania” (1992, p. 154). A décima

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lâmina também marca a decadência definitiva de Satã que, nas lâminas

anteriores já havia tomado a forma da serpente.

Figura 5 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 10 e 11)

A grande inversão que Blake propõe na décima lâmina é mostrar a cena

do julgamento destituída da angústia e do desespero comumente associado ao

arrependimento de Adão e Eva. Embora esta esconda o rosto com as mãos,

num gesto de tristeza, a expressão facial de Cristo e de Adão revelam

aceitação e confiança. Segundo Beheredt, os corpos de Adão e Eva serem

representados de perfil, em Blake tem a conotação de incompletude ou

fragmentação, em contraste com a figura unificadora, frontal, do filho,

novamente numa pose que lembra a crucificação ou sacrifício redentor.

Por sua vez, a trindade demoníaca é retratada igualmente como

apartada. Enquanto satã em forma serpentina se arrasta pelo chão da terra,

Pecado e Morte jogam setas de trovão e derramam a forma líquida do

sofrimento sobre a terra. A opressão alegórica do pecado e da morte serve de

contraste para a expressão compassiva do Filho. Como Milton fez no decorrer

de todo Paraíso Perdido, as noções de Julgamento e Queda unem-se e

mesclam-se com a de Redenção, diminuindo os limites entre o surgimento de

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uma e de outra. Blake capta perfeitamente essa idéia, diferente de outros

artistas que apenas ressaltaram o desespero e as maldições advindas da

queda, ao expor nessa lâmina, e em outras, tanto a severidade do julgamento

divino, sugerido pela trindade demoníaca, quanto a imagem salvadora do filho.

Na penúltima lâmina, Miguel narra a crucificação, Blake torna visual e

realista a narrativa angélica do poema de Milton. Nela, o anjo mostra a Adão o

futuro do salvador crucificado, tendo aos pés da estaca, o Pecado e a Morte,

subjugando-os. Eva dorme agora sobre o solo, não mais sob a relva, cercada

por uma natureza que não mais acolhe o humano.

Blake é o primeiro é o primeiro dos ilustradores de Paraíso Perdido a

representar a cena da crucificação. Os outros artistas apenas aludiram mesmo

que materialmente ao símbolo em lâminas anteriores, mas nunca colocando e

evidenciando visualmente que a queda do homem, na concepção de Milton, foi

o que propiciou a demonstração de amor divino por meio da redenção.

Ao apresentar a forma física conciliadora de seu Cristo, quer entre o pai

limitador, quer diante da falha do homem, Blake dedicou a sua caracterização

pictórica uma harmonia que inexistem nos extremos Deus/Satã. Diante da

crucificação, quer na leitura religiosa ou artística, o pintor supôs estar ali diante

de uma das mais marcantes figurações da cultura ocidental. Diante da cena, as

alegorias Pecado, Morte, Satã, e outras, resultam anuladas perante a imagem

conciliadora do sacrificado. Com a lâmina onze de sua série, Blake não apenas

findou sua interpretação pictórica da obra de Milton como também previu a

guinada crítica que perceberia o filho, não o demônio, como herói do poema.

Diferente do pai desejoso de dominação ilimitada e do anjo caído

desejoso de glória infinita, o Cristo de Blake parece saber que o homem

constitui-se dos opostos do pai e do demônio. Entretanto, longe de confrontar

ou lutar por um ou outro, ele aceita as vontades e os desejos do corpo e da

existência humana, equilibrando-as. Nesse aspecto, as ilustrações para

Paraíso Reconquistado, que Blake faria uma década mais tarde, celebram

tanto a divina natureza de Cristo quanto sua encarnação mortal. No final deste,

Cristo retorna após a peregrinação pelo deserto ao convívio dos homens, à

presença da mãe e dos amigos, final presente tanto no poema de Milton quanto

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nas pinturas de Blake. Em resumo, Beherendt afirma que Blake dissecou em

suas ilustrações para Paraíso Perdido

o sacrifício do filho, apresentando seus vários aspectos e efeitos numa série de designs que analisam o significado universal de ato crucial da escolha que perpassa todo o poema – na verdade toda a história do homem ocidental – enfim resolvendo-o. A percepção madura de Blake sobre o poema de Milton, segundo a qual o deus de vingança do velho testamento seria eclipsado por um ser divino benevolente e compassivo num paradigmático ato de autoflagelação, caracterizaria toda a sua interpretação pictórica. Tal leitura constitui a mais radical ruptura com a interpretação convencional e conservadora da tradição crítica dedicada ao Paraíso Perdido. (1983, p. 127)

Diferente dos livros ilustrados do período, Blake não imprimiu versos

abaixo das gravuras, marcando o momento preciso de suas representações.

Sequer numerou-as numa ordem precisa ou sequer indicou em que passagem

elas deveriam figurar. Antes, parece que ele objetivou uma obra autônoma que

deveria e seria lida ao lado do poema, mas que também exigiria do leitor-

observador sua própria interpretação. Diante das lâminas, caberia ao leitor

encontrar seja no guerreiro satânico seja no salvador sacrificado e benévolo

seus próprios ideais literários e imaginativos.

Portanto, ao negar ou reinterpretar criativamente a iconografia

convencional dedicada ao Paraíso Perdido, de Milton, William Blake não

apenas apresentou sua própria interpretação do Gênesis bíblico nem tampouco

apenas a interpretação da leitura que Milton havia feito do mito. Quando

contrastados com as figuras míticas do próprio Blake, como Urizen, Orc e Los,

com Javé, Satã e Cristo, todo o conjunto de lâminas ganha um novo tom de

significância e apreciação artística, colocando as pinturas de Blake acima

mesmo, em alguns aspectos, da interpretação bíblica ou miltoniana.

Na oposição Javé/Satã ou Urizen/Orc, Blake remontou a própria

oposição psicológica entre Razão e Desejo. Entre eles, num tom conciliador,

Blake colocou a figura do filho sacrificado da leitura cristã ou do deus forjador

de metais de sua própria mitologia. Quaisquer leituras ou interpretações

apenas demonstram a capacidade de Blake, capacidade ainda inédita em toda

a cultura ocidental anterior ou posterior a ele, de, quer em poesia ou pintura,

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que em poesia e pintura, conjurar diferentes elementos da cultura e da arte e

construir com estes uma pedra filosofal múltipla e facilmente adaptável a

múltiplas leituras, interpretações ou expectativas de apreensão estética.

Bibliografia

BEHRENDT, Stephen C. The Moment of explosion – Blake and the

illustration of Milton. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1983.

BENTLEY JR., G. E. The Stranger from Paradise – A biography of William

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CHAUVIN, Danièle. L´oeuvre de William Blake – Apocalipse et

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SINGER, June. Blake, Jung e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Madras,

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Referências Digitais

The William Blake Archive (www.blakearchive.org)