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Reportagem. Um oásis luxuriante e silencioso no meio do bulício turístico de Belém, um parque com hortas e bosque a dois passos do centro urbano e um espaço verde no coração bairrista da capital - o Jar- dim Botânico Tropical, o Parque Bensaúde e o Jardim da Cerca da Graça são paraísos quase secretos a descobrir e a disfrutar em plena cidade Jardins quase secretos de Lisboa MARIA JOÃO GUARDÂO Textos LEONARDO NEGRÃO Fotografias Um esquilo esgueira-se por uma ti- puana acima no Jardim Botânico Tropical, cinco hectares de quietu- de e flora intensa a três minutos da algazarra do Mosteiro dos Jeróni- mos ou da Fábrica de Pastéis de Be- lém. Muitos dos que agora sobem pela alameda de palmeiras Wa- shingtonias, aos pares, levam sacos de papel com a marca das natas tra- dicionais que hão de abrir mais adiante, num banco como este, com vista para as raízes centenárias de uma Fiais macrophylla, vulgo fi- gueira-estranguladora, uns 40 me- tros de largura na copa maciça e múltiplos troncos que hipnotizam Anne-Linde e Gillian, duas estu- dantes de Amesterdão de férias em Lisboa. "Já tínhamos entrado e espreitado, fizemos uma espécie de reconhecimento do terreno assim que chegámos a Belém e decidimos vir aqui pi- quenicar quando fos- se hora", diz a primei- ra. Gillian acrescenta o encantamento: "O jardim é mui- to bonito e estas árvores com as raí- zes de fora são incríveis, nunca ti- nha visto." Degustados os pastéis - cada um custa pouco menos do que os dois euros pagos à entrada-, partem à descoberta do oásis com mais de um século de idade e cerca de 500 espécies tropicais e subtro- picais (grande parte originária das então colónias) , plantado para ser um centro de documentação vivo e tornado cada vez mais precioso pela passagem do tempo ea ação humana. espécies em vias deex- tinção nos países de origem, e esse legado tem um valor incalculável. "Estejardimélindo demorrere diferente de qualquer outro", diz Graça Pereira Machado, do ex- Ins- tituto de Investigação Científica Tr- opical (que assegurava a tutela do JBT e foi recentemente extinto e inte- grado na Universidade de Lisboa) . "Mais do que umjardim é um labo- ratório de investigação de plantas", resume, numa visita às várias espé- cies e seus problemas específicos - apraga de escaravelhos que ataca as Phoenixpoi exemplo, palmeiral intervencionado a peso de ouro. "A nossa preocupação é manter vi- vas as árvores." Amíngua de jardi- neiros e equipamento, à estufa en- cerrada porque os vidros do telha- do ameaçam ruir, às modernas casas de banho fechadas porque as raízes das árvores galgaram a cana- lização, à ação limitada pela subnu- trição orçamental dos últimos anos e pelo limbo gerado pela transição de tutela, o JBT opõe a sua luxurian- te beleza (e a resiliência de uma pe- quena equipa) . Recebe visitas de es- colas, poucos portugueses - ne- nhum à vista nesta manhã, numa vintena de visitantes abordados - e muitos turistas. A maior parte aprecia, alguns recla- mam. Do palácio fe- chado, por exemplo - o dos Condes da Ca- lheta, edifício históri- co onde os Távoras fo - ram sumariamente julgados e que abriga, entre outras preciosidades, uma rara xiloteca (arquivo de madeiras catalogadas) . Bas, um holandês de quase dois metros que queria visitá-lo atira, irónico, que "se não dinheiro para o manter aberto talvez deves- sem transformá-lo em hotel", en- quanto a mulher, Natalie, prefere o Jardim de Macau-"um belo espaço, um pouco negligenciado"- e os fi- lhos adolescentes acham graça aos patos e gansos que se passeiam com as respetivas ninhadas. Estão de partida, do jardim e das férias em Portugal, movimento inverso ao de outra família, francesa, "três André e um Camus" brincam os irmãos Jean-Pierre e Monique, mais a pri- ma Cristianne e o marido, Robert, todos na casa dos 50. Trazem o Gui- de dv Routard debaixo do braço, juntamente com avisos de amigos paranão falharem avisita, e estão sentados com vista para o alpendre onde, durante a Exposição do Mun- do Português, o Estado colonial de 1940 exibiu umleão e, mais àfrente, uma família de bijagós - etnia gui- neense representada também nos

o dim e são em plena Jardins quase secretos de Lisboa · ... depois de obras demora-das transformarem a cerca do anti- ... Portas do Sol e sempre que pode vem com o cão à Cerca

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Reportagem. Um oásis luxuriante e silencioso no meio do bulícioturístico de Belém, um parque com hortas e bosque a dois passos docentro urbano e um espaço verde no coração bairrista da capital - o Jar-dim Botânico Tropical, o Parque Bensaúde e o Jardim da Cerca da Graçasão paraísos quase secretos a descobrir e a disfrutar em plena cidade

Jardins quasesecretos de Lisboa

MARIA JOÃO GUARDÂO Textos

LEONARDO NEGRÃO Fotografias

Um esquilo esgueira-se por uma ti-puana acima no Jardim BotânicoTropical, cinco hectares de quietu-de e flora intensa a três minutos daalgazarra do Mosteiro dos Jeróni-mos ou da Fábrica de Pastéis de Be-lém. Muitos dos que agora sobempela alameda de palmeiras Wa-shingtonias, aos pares, levam sacosde papel com a marca das natas tra-dicionais que hão de abrir maisadiante, num banco como este,com vista para as raízes centenáriasde uma Fiais macrophylla, vulgo fi-gueira-estranguladora, uns 40 me-tros de largura na copa maciça emúltiplos troncos que hipnotizamAnne-Linde e Gillian, duas estu-dantes de Amesterdão de férias emLisboa. "Já tínhamosentrado e espreitado,fizemos uma espéciede reconhecimentodo terreno assim quechegámos a Belém edecidimos vir aqui pi-quenicar quando fos-se hora", diz a primei-ra. Gillian acrescentao encantamento: "O jardim é mui-to bonito e estas árvores com as raí-zes de fora são incríveis, nunca ti-nha visto." Degustados os pastéis -cada um custa pouco menos do

que os dois euros pagos à entrada-,partem à descoberta do oásis commais de um século de idade e cerca

de 500 espécies tropicais e subtro-picais (grande parte originária dasentão colónias) , plantado para serum centro de documentação vivo etornado cada vez mais preciosopela passagem do tempo e a açãohumana. Há espécies em vias deex-tinção nos países de origem, e esse

legado tem um valor incalculável."Estejardimélindo demorrere

diferente de qualquer outro", dizGraça Pereira Machado, do ex- Ins-tituto de Investigação Científica Tr-opical (que assegurava a tutela do JBTe foi recentemente extinto e inte-grado na Universidade de Lisboa) .

"Mais do que umjardim é um labo-ratório de investigação de plantas",resume, numa visita às várias espé-cies e seus problemas específicos- apraga de escaravelhos que atacaas Phoenixpoi exemplo, palmeiralintervencionado a peso de ouro."A nossa preocupação é manter vi-vas as árvores." Amíngua de jardi-neiros e equipamento, à estufa en-cerrada porque os vidros do telha-do ameaçam ruir, às modernascasas de banho fechadas porque asraízes das árvores galgaram a cana-lização, à ação limitada pela subnu-trição orçamental dos últimos anose pelo limbo gerado pela transiçãode tutela, o JBT opõe a sua luxurian-te beleza (e a resiliência de uma pe-quena equipa) . Recebe visitas de es-colas, poucos portugueses - ne-nhum à vista nesta manhã, numavintena de visitantes

abordados - e muitosturistas. A maior parteaprecia, alguns recla-mam. Do palácio fe-chado, por exemplo -o dos Condes da Ca-lheta, edifício históri-co onde os Távoras fo -

ram sumariamentejulgados e que abriga, entre outraspreciosidades, uma rara xiloteca(arquivo de madeiras catalogadas) .

Bas, um holandês de quase doismetros que queria visitá-lo atira,irónico, que "se não há dinheiropara o manter aberto talvez deves-sem transformá-lo em hotel", en-quanto a mulher, Natalie, prefere oJardim de Macau-"um belo espaço,um pouco negligenciado"- e os fi-lhos adolescentes acham graça aospatos e gansos que se passeiamcom as respetivas ninhadas. Estãode partida, do jardim e das férias emPortugal, movimento inverso ao deoutra família, francesa, "três Andrée um Camus" brincam os irmãosJean-Pierre e Monique, mais a pri-ma Cristianne e o marido, Robert,todos na casa dos 50. Trazem o Gui-de dv Routard debaixo do braço,juntamente com avisos de amigos

paranão falharem avisita, e estãosentados com vista para o alpendreonde, durante a Exposição do Mun-do Português, o Estado colonial de1940 exibiu umleão e, mais àfrente,uma família de bijagós - etnia gui-neense representada também nos

impressionantes bustos espalhadospelo jardim. "Viemos do Mosteirodos Jerónimos", dizMonique, "e é

muito agradável chegar aqui depoisdaquela confusão toda."

0 coração da Mouraria é verdeO Jardim da Cerca da Graça aindanão fez um ano mas já tem fregue-ses fiéis. Foi inaugurado no verãopassado, depois de obras demora-das transformarem a cerca do anti-go Convento da Graça num mira-douro em socalcos, com espaçopara parque infantil, laranjal a som-brear mesas para piquenique e rel-vado para apanhar sol. "Tem quasetudo", resume Adriana Freire, "só fal-ta plantar alfazema e outras plantas'úteis' na encosta que é inacessível."

Afotógrafa que inventou a CozinhaPopular da Mouraria, espaço vizi-nho e comunitário onde "todos co-mem e todos cozinham", que ali-menta o quiosque do jardim, acen-tua a sua natureza bairrista. "Há tu-ristas, claro, mas a população maisfrequente é a que vive perto. Nãoexistia nada de semelhante aqui e

agora este jardim faz a felicidade de

famílias, crianças e cães." A paisa-gemhumana deste princípio de tar-de de um dia de semana confirma--lhe as palavras: há pais e mães combebés de colo, como Anu, nepalesaque vive há três anos na Baixa e sereúne frequentemente aqui com as

amigas, mães recentes como ela. OuBernardo, que é repórter de imageme vive na Graça, e vem frequente-mente com Mariana, de 5 meses,apanhar ar ao jardim. Mais àfrente,um jovemlabrador chamado Pablo

cumprimenta duas inglesas queconversam no relvado, enquanto odono o vigia de perto. Emanuel éanimador sociocultural, vive nasPortas do Sol e sempre que podevem com o cão à Cerca da Graça,"uma muito boa obra. Só falta umpouco mais de sombra no relvado,onde as árvores são escassas e aindapequenas". Advoga o usufruto dojardim em harmonia por pessoas ebichos -um movimento de utenteschegou a preconizar a proibição decães no espaço verde - "desde quehaja civismo de parte a parte", o ci-vismo que reconhece o dever de re-colher dejetos e controlar os movi-

mentos do bicho mas também odireito de cada cidadão (incluindoos donos de cães) ao usufruto da ci-Jardim da Cerca da

Graça ainda nãofez um ano mas játem fregueses fiéisdade e dos bichos a socializarementre si. Muito a propósito, Pablotenta fazer amizade com Luna,uma pinscher novinha que se refu-gia aos pés da dona. Rosa Mateusmora há 40 anos na Mouraria e dizque o jardim foi "a cereja no topo dobolo" das obras que mudaram acara do bairro. Todos os dias vembeber o seu café e passear a cadela àCerca da Graça. "Aminhaneta, quetem 6 anos, está sempre à espera dasférias para vir para aqui comigo, sónão vem mais vezes porque osmeus filhos vivem fora de Lisboa."Sentadas à sombra calma do po-mar, Natália Catalão e a prima, Flo-rentina Augusta, também são vizi-nhas do jardim e reformadas - "otrabalho acabou, agora é altura detomar conta da neta", diz a primeira."Ao sábado estou sempre aqui comela. Isto é incrível, os miúdos ado-ram, há festas com balões pendura-dos nas laranjeiras, fazem-se pique-niques. Fazia muita falta um espaçodestes." A melhorar, duas ou trêscoisas: mais vigilância, o piso já comalguns rombos, uma casa de banhopública (a única que existe, acessí-vel a todos, é a da cafetaria) .

Um paraíso à mão de semearHá uma guitarra a soar no bosqueaberto do Parque Bensaúde, trêshectares e meio de rico patrimóniovegetal, incluindo "o maior e maisantigo sobreiro identificado na ci-dade de Lisboa" - informação daJunta de Freguesia de Benfica que,desde 20 14, gere um dos segredosverdes mais bem guardados da ci-dade. Margarida eVasco, estudan-tes de 17 e 20 anos, respetivamente,moram no centro de Lisboa masvêm aqui de propósito "porque é

calmo, tem espaço verde e está ra-zoavelmente bem tratado", diz ela,cadernos abertos na mesa de ma-deira. "E não tem a confusão dos jar-dins da moda", remata ele, o músico

que dedilha a tal guitarra.Não são os únicos a estudar no

parque, neste fim de tarde em que a

primavera resolveu finalmente ma-nifestar-se. Pendurado no céu, Bru-no, de 23 anos, faz uma pausa nosmovimentos na teia de escaladapara dizer que mora no bairro e fre-

quenta o Bensaúde com regulari-dade. "Estuda-se bem aqui, o somdas árvores ajuda a concentrar.E nos intervalos dá para esticar o

corpo e fugir à rotina do ginásio fe-chado." O mesmo faz M., 50 e pou-cos anos, que prefere não ser iden-tificada. É juíza e está à espera dotreinador para começar a sessão na"área defitness" do parque. "Façoeste tipo de treino há quatro anos e,

quando o tempo permite, procura-mos alternativas ao ar livre. Desco-brimos este espaço que está muitobem estruturado, tem aparelhos e

poucas pessoas atreinar."Umarea-lidade que está prestes a alterar-se:neste mês, o Bensaúde junta-se àiniciativa Lisboa Vai ao Parque que,ao fim de semana, propõe ativida-des desportivas, lúdicas e gratuitasaté ao final do verão.

As obras de requalificação emcurso abriram uma nova entradana Estrada da Luz, que vem so-mar-se à existente junto à cafetariaAlfacinha de Gema, com esplanadapara graúdos e miúdos, legos gi-gantes e mesinhas feitas de troncosde árvores a abrir o apetite para ovasto parque infantil mais acima.É aqui que se junta um grupo decães e respetivos donos, a caminhoda zona que lhes está reservada,com árvores e cercado de madeira,rampas e pneus para os bichos seexercitarem e bancos para os hu-manos descansarem. Um parquecanino que é uma raridade na capi-tal (o único outro existente, no Jar-dim do Campo Grande, é um pa-rente pobre, exíguo e sem vegeta-ção). Abaixo, em socalcos, está o

parque hortícola, memória daQuinta Bensaúde que, como as de-mais "quintas de recreio" oitocen-tistas, fazia coexistir num mesmoespaço, "jardim formal, hortas, po-mares, campos de semeadura ezona de mata". Carlos Ferreira fazuma pausa na plantação de bata-ta-doce para apontar, uma a uma,as muitas espécies que semeou nahorta que lhe foi atribuída por con-curso camarário, por cerca de 140euros/ano - ervilha-torta, tomate,

feijão, pimento, pepino, alho, cebo-la, aipo, morangos, rosas e, a toda avolta, uma cerca de chá e flores an-tipraga num espaço aproveitado aomilímetro e desenhado com sabere gosto. Planeador estratégico, nacasa dos 50, vive no bairro desde os18 anos mas passou a infância e aadolescência no campo. "Aprendicom a minha avó a mexer na terra econtinuo a ter imenso prazer nessaligação e a precisar do trabalho ma-nual para ocupar o meu tempo li-vre. Somos um grupo coeso, troca-mos sementes e conhecimentos,tentamos ultrapassar as dificulda-des do terreno."

"Desenhar um jardim é traçarum espaço de liberdade '

conceito Quando Fernanda Fraga-teiro desenha um jardim, liberdadeé a noção poética e concreta queguia todas as outras: "Penso numjardim como um espaço preciosopara ser usado livremente por to-dos." Entende o espaço verde nomeio do urbano como algo orgâni-co que deve ser desenhado apensarno corpo, e no corpo em movimen-to. "Quando desenho um jardimpenso em 'direito ao tempo' e 'direi-to ao espaço' - que não são senãodois modos de declinar os nomes daliberdade. Um espaço flexível que se

oponha ao espaço extremamentedesenhado e controlador que é o es-

paço público. Desenhar um jardimé traçar um espaço de liberdade."

Artista plástica com uma obra de-

licada e forte, presente em impor-tantes coleções, Fragateiro é tam-bém autora do Jardim das Ondas,um mar de relva no Parque das Na-ções criado num diálogo entre dis-ciplinas com o arquiteto paisagistaJoão Gomes da Silva (por ocasião daExposição Mundial de 1998) e doJardim nas Margens, integrado nareabilitação da Ribeira das Jardas,

projeto do ateliê de arquitetura pai-sagista NPK e desenvolvido no âm-bito da Polis Cacem. Em comum, otrabalho intenso do plano do chão,da relva, da modulação do terreno,das matérias. "Um jardim é sempreum espaço em construção, em mu-tação, enquanto um edifício é umespaço que começa a morrer assim

que se acaba de construir." O favori-

to dela em Lisboa é capaz de conju-gar ambos em harmonia: "No Par-que da Fundação Calouste Gulben-kian a articulação entre o espaçoexterior do jardim e o que é edifica-do é feita em perfeita sintonia."