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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
EDSON PIRES DA FONSECA
O DIREITO COMO ESPAÇO DE LUTAS:
a teoria constitucional como ferramental de trabalho do jurista orgânico
Florianópolis, 2006.
EDSON PIRES DA FONSECA
O DIREITO COMO ESPAÇO DE LUTAS:
a teoria constitucional como ferramental de trabalho do jurista orgânico
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Direito, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Wolkmer.
Florianópolis, 2006.
EDSON PIRES DA FONSECA
O DIREITO COMO ESPAÇO DE LUTAS:
a teoria constitucional como ferramental de trabalho do jurista orgânico
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Dr. Edmundo Lima de Arruda Junior
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Dr. Ledio Rosa de Andrade
Universidade do Extremo-Sul de Santa
Catarina
Florianópolis, 08 de Dezembro de 2006.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte primeira de todas as coisas, pelas dádivas que sempre
irradia em minha vida.
Ao meu orientador, Professor Antonio Carlos Wolkmer, exemplo de
dedicação em prol da construção de um pensamento jurídico emancipatório de raiz
latino-americana, pelos ensinamentos proferidos, colaboração, incentivo e confiança.
Aos Professores Edmundo Lima de Arruda Júnior e Ledio Rosa de
Andrade, por me honrarem com as suas ilustres presenças em minha banca, pelo
apoio, sugestões e por serem juristas que, acima de tudo, parafraseando Dworkin,
levam o direito a sério.
À Professora Cecília Caballero Lóis, em cujas concorridas aulas ampliei
meu gosto pelo direito constitucional, pela magnífica experiência que pude vivenciar
como seu assistente na graduação, bem como pelo carinho e conhecimento
partilhados.
Ao professor Sergio Cademartori, pela amizade, ensinamentos e
jeepeadas.
À Ericka, pela formatação do trabalho, pelo carinho, compreensão, amor,
cumplicidade e por todo o resto, que seria impossível enumerar.
Aos meus companheiros de caminhada e utopia no mestrado: Humberto,
Rodrigo, Simone, Lucas, Maíra, Samuel, Mateus Quadros, Carol Ferri, Erik, Hermes,
Fabiana, Cissa, Ana Paula, Carol Pecegueiro, Margit, Leonardo Rossano, Alice,
Elton e Rafael Schincariol pelo apoio, incentivo, pelos sonhos, angústias, frustrações
e conquistas compartilhados.
Ao Josué, Lau, Pedro, Pedro Filho, Romeu, Sinai, Tomé e Vitor, meus
diletos Amigos, cujos ensinamentos e apoio constantes têm sido o meu
sustentáculo.
Aos amigos da Universidade Estadual de Londrina, em especial, ao Fábio
Pássari, Regiane Andreola, Erika Dmitruk, Leandro Volochko, Zé Otávio Ereno, João
Fernando, Ana Rafaela Gusmão, Gustavo Munhoz, Rodrigo Mioto, Paula Araripe,
Saymon Mazzaro, Eliana Mazzaro e Alexandre Camus, pelo apoio constante e pelas
preciosas lições de vida.
Aos Professores Júlio, Aylton Durão e Arnaldo Godoy, pelo exemplo,
compromisso e ensinamentos.
Aos alunos da UNDB, em especial ao Bruno Antonio, Erick Railson,
Roberto Oliveira, Anne, José David e Stephano, que auxiliaram no fichamento de
algumas obras.
Aos Professores da UNDB, em especial, Isaac Reis, André Meirelles, Ney
Bello e Rodrigo Raposo, pela força e pelo diálogo qualificado.
Ao povo brasileiro, que por meio da CAPES e do CPGD/UFSC financiou
este trabalho: espero conseguir retribuir o investimento à altura!
Aos funcionários e estagiários do CPGD, em especial ao Marcos, Douglas
e Carla, que não medem esforços para auxiliar os mestrandos nessa difícil
empreitada.
Ao movimento estudantil da Universidade Estadual de Londrina, lugar em
que tudo começou.
À minha família, em especial ao meu irmão Eder, pela interlocução
qualificada.
Aos meus amigos de Cândido Mota, pelo apoio de uma vida inteira.
A todos aqueles que direta ou indiretamente colaboraram na confecção
deste trabalho.
"Os que fazem da objetividade uma religião mentem. Eles não querem ser objetivos: mentira; Eles querem ser objetos para salvar-se da dor humana.”
Eduardo Galeano
FONSECA, Edson Pires da. O direito como espaço de lutas: a teoria constitucional
como ferramental de trabalho dos juristas orgânicos. 2006. Dissertação. Mestrado
em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
RESUMO
Parte-se neste trabalho da idéia de que o direito é um importante espaço de lutas das classes sociais espoliadas. Criticam-se as correntes vinculadas ao marxismo ortodoxo, que pautadas na relação mecanicista entre estrutura e superestrutura, tratam o direito unicamente como dominação, ignorando-o como possível espaço de emancipação. Auxiliam, dessa maneira, a perpetuação das correntes conservadoras no ambiente jurídico. Nesse contexto, o direito alternativo surge como superação dialética dessas correntes, por fazer do judiciário um front da guerra de posição. Os juristas orgânicos, comprometidos com a superação do bloco histórico atual e com a construção de um novo bloco histórico, são protagonistas desta batalha. Defende-se que diante da heterogeneidade teórico/ideológica de seus membros, o direito alternativo passou de uma prática em busca de uma teoria para a prática de diversas teorias, sendo a sua ação iluminada por inúmeras fontes teóricas. Com a promulgação da Constituição brasileira de 1988, muitas conquistas oriundas das lutas populares foram erigidas à condição de princípios constitucionais. Com isso, a teoria constitucional passa a ser uma importante ferramenta de trabalho dos juristas orgânicos na exploração do viés emancipatório do direito, a partir da utilização de uma dogmática da efetividade integral do texto constitucional. Apresenta-se alguns pontos das obras dos constitucionalistas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle como profícuos referenciais teóricos para o atuar alternativista. A defesa da efetividade integral da Constituição é salutar para que as conquistas populares albergadas em seu texto deixem a folha de papel e aterrissem no mundo da vida.
Palavras-chave: Direito alternativo. Teoria crítica. Gramsci. Teoria constitucional.
Dogmática emancipatória.
FONSECA, Edson Pires da. FONSECA, Edson Pires da. Law as a field of struggle: constitutional theory as a fudamental work tool of the organic jurists. 2006. Dissertation. Masters of Law. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
ABSTRACT
This works aims at demonstrating Law as an arena for the confrontation among excluded social classes. It is criticized the ideological currents related to orthodox Marxism, which based on the relation between structure and superstructure, consider that Law is a space for domination and ignore it as a possible field for emancipation of rights. This tends to an hegemonic perpetuation of the conservative thought in the juridical environment. The so called Direito Alternativo appears as a dialectic overcoming of those critical thoughts for making of the Judiciary an arena of “position war”. The organic jurists, compromised on the overcoming of the actual historical block and on the construction of a new one, are the protagonists in this struggle. Before theoretical and ideological heterogeneity of its members, the Direito Alternativo movement has passed from a pragmatic quest for a theory to a pragmatic quest for many theories, having nowadays uncountable theoretical sources enlightening its actions. Since the promulgation of the 1988 Brazilian Federal Constitution many conquests originated in the social struggles were taken to the level of constitutional principles. Since then, constitutional theory became an important work tool of the organic jurists for the scrutiny of the emancipatory bias of Law, based on a dogmatic of the integral effectiveness of the constitutional norm. It is presented the second generation of the constitutional material theory – Konrad Hesse, Friedrich Müller and Peter Häberle – as a theoretical reference for the alternativista act. A constitutional dogmatic founded on a fully effectiveness of the legal norm is important for the conquest acquired in the 1988 Federal Constitution to abandon the piece of paper and land in the real world. Key-words: Direito alternative. Critical theory. Gramsci. Constitutional theory. Emancipatory dogmatic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 13
CAPITULO I - O DIREITO COMO ESPAÇO DE LUTAS: o direito alternativo
1 O MODELO LIBERAL-INDIVIDUALISTA-NORMATIVISTA DE
DIREITO E A SUA CRISE ...................................................................... 19
1.1 Capitalismo, estado moderno e direito ................................................ 21
1.1.1 Modelo liberal .......................................................................................... 22
1.1.2 As mudanças na ordem econômica a crise do modelo liberal de direito . 28
1.1.3 A modernidade e o direito ........................................................................ 33
1.2 O direito como espaço de lutas: a guerra de posição .......................... 38
1.2.1 Crítica à relação mecanicista entre estrutura e superestrutura: o direito
como instrumento da guerra de posição ................................................. 38
1.2.2 As idéias de bloco histórico e de hegemonia em Gramsci ...................... 43
1.2.3 Guerra de posição: o conceito de Gramsci .............................................. 48
1.2.3.1 Gramsci e o direito ................................................................................... 51
2 DIREITO ALTERNATIVO: algumas considerações ................................ 54
2.1 Introdução .............................................................................................. 54
2.2 Histórico ................................................................................................. 57
2.2.1 Antecedentes teóricos ............................................................................. 57
2.2.2 Um breve histórico ................................................................................... 62
2.2.3 Alguns esclarecimentos prévios: o que não é direito alternativo ............. 64
2.3 Tipologia proposta ................................................................................ 70
2.3.1 O uso alternativo do Direito – instituído relido ......................................... 71
2.3.2 Positividade combativa (instituído sonegado) .......................................... 75
2.3.3 Direito alternativo em sentido estrito (Instituinte) ..................................... 77
CAPITULO II - FERRAMENTAS DA TEORIA CONSTITUCIONAL
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 83
2 O MÉTODO CONCRETISTA DE KONRAD HESSE ............................... 85
2.1 A força normativa da Constituição ...................................................... 85
2.2 Método hermenêutico-concretizador – Konrad Hesse ....................... 88
3 A METÓDICA ESTRUTURANTE DE FRIEDRICH MULLER ................. 91
3.1 Esboço de uma doutrina pós-positivista ............................................. 94
3.1.1 A metódica estruturante como esboço de uma metódica do direito
constitucional .......................................................................................... 98
3.1.2 A teoria da norma de Friedrich Muller ...................................................... 100
3.1.3 A interpretação como concretização ....................................................... 104
3.2 Sobre a metódica estruturante ............................................................. 110
3.2.1 Pressupostos de uma metódica jurídica científica ................................... 112
3.2.1.1 Elementos metodológicos strictiore sensu .............................................. 114
3.2.1.2 Elementos da concretização a partir do âmbito da norma e do âmbito
do caso ................................................................................................... 117
3.2.1.3 Elementos dogmáticos ............................................................................ 118
3.2.1.4 Elementos da técnica de solução ............................................................ 120
3.2.1.5 Elementos de teoria................................................................................. 120
3.2.1.6 Elementos de política constitucional ....................................................... 121
4 A COMUNIDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO: a
hermenêutica constitucional de Peter Häberle........................................ 122
4.1 Tese fundamental, estágio do problema ............................................. 123
4.2 Os participantes do processo de interpretação constitucional ........ 124
4.3 Conseqüências para a hermenêutica constitucional jurídica ........... 128
CAPITULO III - O JURISTA ORGÂNICO/ALTERNATIVISTA
1 O INTELECTUAL TRADICIONAL E O INTELECTUAL ORGÂNICO:
breves considerações ............................................................................. 132
1.1 O jurista orgânico e o jurista tradicional ............................................. 140
2 O DIREITO ALTERNATIVO COMO PRÁTICA JURÍDICA
CONSTITUINTE ..................................................................................... 146
2.1 Direito Alternativo: a retomada crítica da dogmática jurídica ................ 146
2.2 A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo .................................. 158
2.2.1 A sociedade aberta dos intérpretes e a jurisdição constitucional
brasileira ................................................................................................. 162
2.2.2 A metodologia jurídica concretista e a racionalização do direito ............. 167
2.2.3 A concretização dos direitos fundamentais sociais: perspectivas e desafios
................................................................................................................. 168
2.2.3.1 Constitucionalismo dirigente, ativismo judicial e a concretização dos direitos
sociais ...................................................................................................... 180
CONCLUSÃO.......................................................................................... 191
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 200
13
INTRODUÇÃO
Almeja-se com a presente dissertação discutir as possibilidades
emancipatórias presentes na dogmática jurídica, por meio da articulação entre teoria
constitucional e direito alternativo. Parte-se da negação do discurso dominante em
algumas correntes ortodoxas do marxismo, que sustentam ser o direito apenas um
espaço de dominação de uma classe social com relação às demais, não se
vislumbrando nele nenhuma possibilidade emancipatória.
Esse equívoco deriva do caráter meramente mecanicista atribuído à
relação entre estrutura e superestrutura, que concebe a superestrutura como mero
reflexo da estrutura econômica. Defende-se, aqui, na esteira do conceito gramsciano
de bloco histórico, relido por Poulantzas, que a superestrutura não é um reflexo
autômato da estrutura: há um condicionamento recíproco entre ambas. Sustenta-se,
pois, que a partir do arcabouço teórico elaborado por Gramsci é possível defender a
existência de espaços de lutas emancipatórias no direito, que devem ser ocupados
pelos juristas orgânicos/alternativistas.
Entende-se por jurista orgânico ou alternativista o intelectual orgânico, no
sentido gramsciano, que faz da esfera jurídica um espaço de luta em favor da
superação do bloco histórico atual e da construção de um novo bloco, comprometido
com a concretização dos direitos fundamentais sociais constitucionalmente
assegurados, mas politicamente sonegados.
Os pressupostos para o delineamento do trabalho são oriundos da
articulação entre direito alternativo e teoria constitucional.
Desde a sua origem o movimento do direito alternativo tem sido alvo de
inúmeras críticas, muitas delas feitas sem o rigor que deve permear uma crítica
acadêmica. Ambiciona-se com esta dissertação enfrentar essas críticas à luz do
conhecimento alternativista, verificando-se a pertinência, coerência e correção de
cada uma delas.
Para tanto, inaugura-se o trabalho com a descrição do modelo liberal-
individualista de direito e a sua crise. Em seguida, abordam-se alguns aspectos das
imbricações entre direito liberal e capitalismo. Evidencia-se a crise desse paradigma
jurídico por meio do reconhecimento de sua incapacidade em cumprir as promessas
da modernidade. Na seqüência, desenvolve-se a idéia do direito como espaço de
lutas, a partir da reconstrução do conceito gramsciano de guerra de posição.
14
Aborda-se também a relação mecanicista entre estrutura e superestrutura,
enfatizando o papel do direito como elemento da superestrutura. Fecha-se o tópico
traçando conceitos de bloco histórico e hegemonia.
Ainda no primeiro capítulo, o item dois enfocará o movimento do direito
alternativo. Inicialmente, serão apresentadas as suas raízes históricas, que vão
desde os seus antecedentes teóricos alienígenas, como o uso alternativo do direito
italiano, até os primeiros congressos de direito alternativo realizados na Ilha de
Santa Catarina, no início dos anos de mil novecentos e noventa.
No que tange ao direito alternativo na atualidade, defende-se que houve
uma mudança de perspectiva nos objetivos do movimento, que deixou de ser “uma
prática em busca de uma teoria” para consolidar-se como a prática de diversas
teorias. Mais consentâneo com os objetivos do alternativismo do que construir uma
teoria própria para iluminar a sua práxis, o que poderia dogmatizá-lo, é valer-se
instrumentalmente das diferentes correntes teóricas existentes. Foge-se, desse
modo, do apego dogmático a uma única vertente teórica, mantendo-se acesa a
criticidade ínsita ao movimento. Na mesma toada, serão analisadas as principais
críticas feitas ao direito alternativo, colacionando argumentação apta a superá-las.
O estudo do direito alternativo será feito com base na clássica tripartição:
uso alternativo do direito ou instituído relido, positividade combativa ou instituído
sonegado, e, por último, direito alternativo em sentido estrito ou plano instituinte, que
albergam o pluralismo jurídico.
Com base na análise do uso alternativo do direito serão traçadas as
principais imbricações desta corrente do direito alternativo com as modernas
concepções hermenêuticas, exemplificando a sua utilização prática no direito
brasileiro. O uso alternativo do direito trata da apropriação hermenêutica do direito
positivo, atribuindo a ele um novo sentido, consentâneo com os valores
emancipatórios que se quer construir. Para isso, utiliza-se como parâmetro
hermenêutico a vasta principiologia constitucional que plasma conquistas das
classes sociais exploradas. Em síntese, vale-se aqui do próprio ordenamento jurídico
positivo como meio de efetivação e concretização das conquistas sociais sonegadas
à população, em especial, à sua parcela materialmente mais carente.
A positividade combativa, segunda das tipologias do alternativismo
jurídico, será objeto de maior atenção por ser nela que este trabalho melhor se
enquadra. Essa corrente defende que um dos papéis do jurista orgânico é o de lutar
15
pela concretização dos direitos das classes populares que já foram erigidos à
condição de normas jurídicas, mas que ainda não são aplicados. Nessa perspectiva,
a efetivação da própria Constituição Federal desponta como importante foco da luta
alternativista, uma das razões de se optar por abordar, no segundo capítulo,
algumas das ferramentas da teoria constitucional que podem auxiliar na
concretização integral da Constituição.
Encerra-se o capítulo inaugural defendendo-se a atualidade do direito
alternativo e, conseqüentemente, refutando as críticas de alguns seguimentos do
mundo jurídico que o consideram ultrapassado, fora de moda.
No segundo capítulo, como substrato teórico do trabalho, serão
apresentadas algumas das principais correntes da teoria constitucional
contemporânea. Os autores selecionados para essa empreitada são membros de
uma profícua geração do direito constitucional alemão, denominada por Paulo
Bonavides como segunda geração da teoria material da constituição. São eles:
Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle1. Ressalta-se que esses autores e
suas obras não serão abordados de modo analítico e nem exaustivo, o que seria
impossível nos restritos limites de uma dissertação de mestrado. Serão enfocados
tão-somente alguns de seus principais conceitos e proposições, em especial os que
podem servir de ferramenta jurídica emancipatória no âmbito de sistemas
constitucionais dirigentes e de alta densidade principiológica como o brasileiro de
1988.
De Konrad Hesse será estudado o conceito de força normativa da
constituição, elemento central na argumentação estabelecida por ele no diálogo
atemporal travado com Ferdinand Lassale. Hesse tentou responder à provocação
lassaleana de que as constituições escritas são meras folhas de papel, isto é,
documentos escritos sem nenhum valor normativo concreto.
Com base na tese da força normativa pode-se aferir a normatividade da
Constituição vigente, importante para que a sua carga emancipatória aterrisse no
cotidiano brasileiro, contribuindo para a redução do fosso que separa as promessas
feitas pelo Texto constitucional daquilo que é efetivamente concretizado.
1Ao agrupar, sob o mesmo manto, autores de matrizes teóricas variadas, não se quer incorrer naquilo
que Virgílio Afonso da Silva chamou, parafraseando Kelsen, de “sincretismo metodológico”. O agrupamento tem finalidade muito mais instrumental do que acadêmica. Eles são abordados juntos em virtude das diferentes possibilidades emancipatórias abertas por suas obras, e não por haver absoluta compatibilidade teórica entre eles.
16
Friedrich Müller, Decano da Faculdade de Direito da Universidade de
Heidelberg, na Alemanha, é um dos mais destacados constitucionalistas da
atualidade. Seus escritos tiveram boa acolhida pela comunidade jurídica brasileira,
contribuindo para isso o Professor Paulo Bonavides, que há muito os divulgava.
Neste trabalho, serão enfocados alguns aspectos da sua metódica estruturante,
fundadora de uma teoria jurídica pós-positivista.
A teoria da norma delineada por Müller ancora-se na não-identidade entre
texto de norma e norma jurídica. Compõe-se esta última de programa da norma –
texto da norma interpretado a partir dos métodos de interpretação tradicional, de
Savigny – e o âmbito da norma – parcela da realidade escolhida pelo programa da
norma para fazer parte da mesma. Supera-se, dessa maneira, a dicotomia entre
constituição real e jurídica, já que ambas, dialeticamente, integram a própria norma
jurídica.
Diante disso, saltam aos olhos as possibilidades que podem se desenhar
para o direito alternativo com a utilização da metódica estruturante. De um lado, a
realidade passa a ser componente da própria normatividade jurídica, de outro, a
metódica serve como elemento de aferição da racionalidade das decisões judiciais,
indispensável na busca da objetividade possível do direito, afastando do direito
alternativo qualquer pecha de irracionalidade que lhe queiram atribuir seus críticos.
Da rica obra de Peter Häberle este trabalho selecionará para estudo a
tese da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, em virtude da pertinência
da obra para o atual momento do direito constitucional brasileiro, em especial no que
diz respeito à jurisdição constitucional. Essa tese foi veiculada na obra
“Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição”,
que teve boa aceitação no cenário jurídico brasileiro. Propõe o autor que a
interpretação constitucional seja retirada do monopólio judicialista em que estava
encarcerada, passando a ser feita à luz do dia, pelos diferentes atores sociais, pois
todos aqueles que vivem sob a égide de uma determinada constituição são seus
intérpretes autorizados.
Com essa ampliação da interpretação constitucional o juiz não poderá
mais se isolar em sua torre de marfim, decidindo ao alvedrio do que pensa a
sociedade. Deverá, isso sim, abrir a interpretação constitucional para acolher as
contribuições de todas as potências públicas presentes na sociedade. Ressalva-se,
no entanto, que não se advoga aqui a subserviência do juiz à vontade de maiorias
17
eventuais. Cumpre-se lembrar a lição de Luigi Ferrajoli, para quem o papel do juiz no
estado constitucional de direito é contramajoritário, incumbindo-lhe a defesa dos
direitos fundamentais dos cidadãos contra qualquer maioria.
O último capítulo inicia-se com a apresentação do conceito gramsciano de
intelectual orgânico. Parte-se dele para se desenvolver a idéia de jurista orgânico,
contraponto do jurista tradicional na guerra de posição travada no espaço jurídico. O
jurista orgânico não se enquadra nos moldes estreitos e mitológicos do jurista
tradicional, oculto por detrás do dogma da neutralidade, mera “boca que diz as
palavras da lei”. Ele é de uma nova estirpe, comprometido com a superação do
status quo, preocupado com a construção de outra sociedade, na qual o ser
prevaleça sobre o ter, garantidora daquilo que Amilton Carvalho chamou de “uma
vida em abundância para todos”.
Na seqüência, com Saavedra López e Clèmerson Clève, o direito
alternativo será defendido como uma prática jurídica constituinte. Sustenta-se que o
direito alternativo representa um plus em relação às teorias críticas do direito, pois
resgata as possibilidades emancipatórias latentes na dogmática jurídica. Com isso, o
direito alternativo ganha em objetividade, sem se apartar do seu compromisso ético
e transformador.
Enfrenta-se, ainda, as possibilidades que alguns enfoques metodológicos
podem descortinar para o alternativismo, em especial, como já mencionado,
auxiliando a refutar as críticas de que o movimento geraria insegurança jurídica e
politização demasiada do espaço jurídico.
A complexa questão da efetividade dos direitos fundamentais sociais
também está presente no trabalho. Aborda-se a evolução da tutela dos direitos
sociais nos ordenamentos jurídicos, enfocando, principalmente, o tratamento que
lhes é dispensado tanto pela Lei Fundamental alemã quanto pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional. Analisa-se a necessidade de tutela jurídica das mínimas
condições de vida, mesmo nos países cujas constituições não positivaram em seus
textos os direitos sociais, já que sem condições materiais mínimas, os próprios
direitos liberais de liberdade não podem ser fruídos. A doutrina da reserva do
possível também é trabalhada. Reconhece-se, de um lado, que o impossível não
pode ser exigido, porém, de outro, com Eros Grau, que a reserva do possível não
pode se restringir às limitações orçamentárias do Estado, devendo ser consideradas
as possibilidades econômicas concretas do país.
18
Aborda-se ainda a teoria da constituição dirigente, seus contornos, limites,
possibilidades e atualidade, especialmente em um modelo constitucional como o
brasileiro de 1988.
Por derradeiro, conclui-se o trabalho reafirmando-se que os aportes
teóricos da teoria constitucional concretista, que serão desenvolvidos no segundo
capítulo, são importantes ferramentas para a efetivação dos direitos fundamentais,
em especial os sociais, armas imprescindíveis num cenário de constituição dirigente,
no qual o direito é reconhecido como efetivo espaço de lutas das classes sociais
exploradas. Resgatam-se, com isso, as possibilidades emancipatórias do direito e da
dogmática jurídica, pontos de partida para a ruptura com séculos de tradição que
fizeram do direito latifúndio das classes sociais dominantes.
19
CAPITULO I - O DIREITO COMO ESPAÇO DE LUTAS: o Direito Alternativo
1 O MODELO LIBERAL-INDIVIDUALISTA-NORMATIVISTA DE DIREITO E A SUA
CRISE
O direito, entendido como arcabouço de regras formuladas com base em
um conjunto acordado de julgamentos normativos sobre conduta, é um fenômeno
relativamente recente nas sociedades ocidentais. Para Tigar e Levy, ele surgiu
quando a tecnologia permitiu a distinção entre norma e natureza, possibilitando que
as condutas não fossem mais justificadas a partir da “vontade dos deuses” 2.
Sustentam os citados autores que as relações sociais, da forma
expressada pelas regras formais e ordens jurídicas, representam uma função básica
de todos aqueles que querem assumir e conservar o poder estatal. Para eles, as
regras jurídicas vinculam-se, obrigatoriamente, ao tempo: “são construções de um
grupo de pessoas em um dado estágio de desenvolvimento da sociedade. Formas
jurídicas peculiares não são condições 'naturais' ou básicas da existência humana.”
O direito destaca-se, desse modo, como uma superestrutura erguida sobre a
estrutura relacional do poder, razão pela qual, desde o fim da era ateniense, as leis
têm sido perpetuações de relações de poder em um determinado grupo social
As leis encerram em palavras, expressas sob a forma de injunções, os direitos ou deveres que um determinado grupo defenderá ou aplicará com o emprego do poder de que dispõe, e proporcionam maneiras previsíveis de solucionar os litígios que surgem nesse contexto.
3
O papel fundamental para perpetuar esse estado de coisas sempre foi
ocupado pela ideologia4, contudo, não se pode esquecer que as leis, em última
instância, repousam na força. A burguesia, no entanto, em sua ascensão, sempre se
preocupou com a questão da legitimidade do poder.5 Valeu-se para esse propósito
da tese de que o poder exercido sob a forma de violência controlada pelo estado
deve ser justificado com base em algum sistema de autoridade comumente aceito.
2TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine. O Direito e a ascensão do capitalismo. Tradução Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p. 269-270. 3Ibid, p. 270-271.
4Sobre Ideologia, entre outros, Cf. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense,
1991, p.13-48; LÖWY, Michel. A ideologia nas ciências sociais: elementos para uma análise marxista. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2000; CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001; WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 5Sobre a legitimação do discurso burguês na Revolução Francesa, Cf. SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A
constituinte burguesa: o que é o Terceiro Estado. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986.
20
Esse exercício previsível do poder é um dos mais importantes elementos da
legitimidade. Não é sem motivo que o constitucionalismo do século XVIII estava todo
ancorado na idéia de limitação do poder, garantindo aos cidadãos liberdades
negativas, isto é, direitos contra o estado. Como bem asseveram Tigar e Levy
“[...] Em contraste com sistemas de pensamento não ocidentais, os antigos burgueses achavam que o detalhamento da maneira como a lei seria aplicada era a essência da eqüidade, da segurança pessoal e da liberdade.”
6
Ao contrário do que se propalava, tais sistemas não eram necessários
para garantir a liberdade individual, mas sim para afiançar a liberdade corporificada
no direito comercial e contratual da burguesia7 ocidental, bem como nas relações de
propriedade, adaptando-se com precisão aos interesses burgueses em
desenvolvimento8.
Salientam Tigar e Levy que em todos os casos de construção de sistemas
jurídicos eles são justificados com recurso a fontes que se acreditam
axiomaticamente válidas, mas que em verdade expressam apenas as aspirações do
grupo dominante. Parece que a ideologia jurídica9 adquire vida própria quando
separada das relações sociais que regula, ficando fora e acima das classes sociais
que governa.10
É nesse sentido que o Professor Antonio Carlos Wolkmer sustenta que
em cada período histórico predomina certo tipo de ordenação jurídica, já que o
direito é um produto da vida humana organizada e a expressão das relações sociais
provenientes de necessidades.
[...] o fenômeno jurídico que florescerá na cultura européia, a partir do século XVII e XVIII, corresponderá à visão de mundo predominante no âmbito da formação social-burguesa, do modo de produção capitalista, da
6TIGAR; LEVY, op. cit., p. 271-273.
7Para Wolkmer, a burguesia, no início da idade moderna, era uma classe insurgente. Já nos séculos
XIX e XX, representa o setor proprietário dos meios de produção. Marx bem destaca este duplo aspecto da burguesia no “Manifesto do Partido Comunista”. Para ele, somente o proletariado era na sua época uma classe autenticamente revolucionária. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa-Ômega, 2001, p.35-37. 8TIGAR; LEVY, op. cit., p. 274.
9Segundo Tigar e Levy “A ideologia jurídica constitui um enunciado, em termos de sistema de regras
legais, das aspirações, objetivos e valores de um grupo social”. A ideologia jurídica não é exclusividade do grupo que exerce o poder, já que os grupos que aspiram ao poder também formulam o seu ataque em termos de sistemas de regras e princípios, contudo, para os que estão no poder, a ideologia é a “lei” Ibid., p. 275. 10
Ibid., p. 274-275.
21
ideologia liberal-individualista e da centralização política, através da figura de um Estado Nacional Soberano.
11
Esse paradigma jurídico que emergiu da sociedade moderna tem como
principais características a estatalidade, a racionalidade formal, a certeza e a
segurança jurídica.12
1.1 Capitalismo13, estado moderno e direito
Para o professor português Vital Moreira, a revolução burguesa, ao
extinguir os direitos e privilégios feudais e detonar toda a estrutura protecionista do
mercantilismo, tinha por intuito substituir a ordem jurídica artificial da economia por
uma ordem natural, automática, ajurídica, que propiciaria a libertação, a
desvinculação – a quebra dos vínculos jurídicos – da propriedade, do trabalho, da
produção e do comércio.14
O capitalismo, como modelo econômico e social que se vale do capital
como instrumento central da produção material, instaurou-se à medida que se
esgotou o feudalismo. Para Wolkmer, as principais características do capitalismo
são15:
11
“Não se pode captar a plena dimensão de um sistema, de uma sociedade e de uma cultura, sem a constatação múltipla de fatores causais inerentes à historicidade humana” WOLKMER, op. cit., p. 25- 26. 12
Ibid., p.26. 13
Os dois principais autores a conceituarem o capitalismo foram, segundo Wolkmer, Karl Marx e Max Weber. Karl Marx, no Capital, sustenta que o capitalismo é um modo de produção de mercadorias, constituído no princípio da era moderna, atingido o seu apogeu na Revolução Industrial inglesa. O Capitalismo, nesta perspectiva, engloba não só um sistema de produção de mercadorias, mas também um sistema social no qual a força de trabalho se transforma em mercadoria e se torna objeto de troca como outro qualquer encontrado no mercado. Já para Weber, o Capitalismo é produto histórico do racionalismo utilizado para pensar as relações sociais no moderno mundo ocidental. A racionalidade é a expressão fundamental do mundo moderno europeu. Essa racionalização é propiciada pela Reforma Protestante, em especial a ética calvinista, que atribui todo mérito à natural vocação humana para o trabalho e para um esforço físico capaz de levar à riqueza e à conquista da salvação individual. Em Weber, portanto, o Capitalismo é entendido como ponto alto de um processo de racionalidade da vida organizada, como também como ethos civilizatório da moderna sociedade ocidental européia. Mesmo sendo inegáveis as contribuições de Marx e Weber, assevera Wolkmer, algumas críticas não podem ser omitidas. O primeiro, em que pese a profundidade de sua análise, não se traduz em prognose da efetiva dinâmica da evolução do capitalismo. Já Weber não almeja a abolição do mercado, que é a garantia, em sua opinião, de cálculo racional e de autonomia dos sujeitos: à extinção do mercado sucederia o despotismo puro. WOLKMER, op. cit., p. 29-34. 14
MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra: Centelha, 1978, p. 74. 15
Já Erich Fromm, citado por Wolkmer, sustenta que os traços característicos do capitalismo são: 1) homens políticos e juridicamente livres; 2) homens livres vendem a sua força de trabalho para o proprietário de capital, mediante um contrato; 3) mercado como regulador de preços e da produção; 4)suposição de que a ação competitiva de muitos, resulte a maior vantagem possível para todos
WOLKMER, op. cit., p. 30-31.
22
1) propriedade privada dos meios de produção, ativada pelo trabalho
formalmente livre e assalariado;
2) sistema de mercado, baseado na iniciativa privada;
3) processos de racionalização dos meios e métodos para a valorização
do capital e exploração das oportunidades de mercado para efeito de lucro16.
O padrão de juridicidade que se tornará hegemônico nesse cenário
caracterizado pelo capitalismo, sociedade burguesa, ideologia liberal-individualista e
moderno estado soberano, é o da racionalidade lógico-formal17 centralizadora do
direito produzido unicamente pelo estado, em uma perspectiva monista de fonte do
direito18.
Para Figueira, a compreensão do direito exige que se estabeleça a
conexão entre os conceitos jurídicos e as relações sociais que os geraram.19 Em
virtude disso e visando facilitar a compreensão do modelo liberal de direito, tratar-se-
á, na seqüência, da estruturação da sociedade liberal na modernidade.
1.1.1 O modelo liberal20
16
Para Wolkmer, os acontecimentos históricos que mais influenciaram nesse período foram: a) impulso das atividades comerciais de algumas cidades européias com o Oriente, em especial após as Cruzadas; b) substituição das relações sociais servis pela força de trabalho assalariada; c) passagem das pequenas oficinas para as manufaturas e; d) constante busca do lucro, mercado livre e sistematização do comércio através das trocas monetárias. Ibid, p. 29. 17
A experiência histórica do Estado liberal, segundo Faria, privilegiou a racionalidade formal. Nesse modelo, as normas são classificadas como jurídicas pela maneira como são decididas, independentemente dos seus conteúdos. Nem os fins justificam os meios nem as regras do jogo podem ser alteradas por pressões conjunturais. FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988, p. 72. 18
José Eduardo Faria, tratando do Estado Moderno, atesta: “encarado simultaneamente como aparelho de dominação e de organização, o Estado moderno é do resultado da diferenciação de um sistema econômico que regulamenta o processo produtivo através do mercado, de modo descentralizado e apolítico. Nessa perspectiva, ele organiza as condições nas quais os cidadãos – enquanto indivíduos privados atuando concorrencialmente – explicitam o processo produtivo”. Ibid, p. 61. 19
FIGUEIRA, Eliseu. Renovação do sistema de Direito Privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 63. 20
Para Wolkmer, o Liberalismo serve de justificação racional do novo mundo. Surgiu com o desenvolvimento do comércio, do favorecimento de uma classe média individualista e produtiva, bem como do clima de tolerância que tomou conta da Inglaterra e da Holanda, após os conflitos gerados pela Reforma. O Liberalismo, em seu início, constituiu bandeira revolucionária da burguesia, pautado na idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, o que atendia não só aos interesses burgueses, mas também os de seus aliados pobres. Porém, ao consolidar o ser poder político e religioso, aplica, na prática, apenas os aspectos da teoria liberal que lhes interessam. O Liberalismo é cheio de situações ambíguas: é revolucionário e ao mesmo tempo conservador. Por exemplo, se por um lado prega a liberdade, por outro limita a ação daqueles que não têm dinheiro. Os traços essenciais do Liberalismo são: núcleo econômico: livre iniciativa, propriedade privada, economia de mercado; núcleo político-jurídico: Estado de Direito, soberania popular, supremacia constitucional, separação dos poderes, representação política, direitos civis e políticos; núcleo ético-filosófico: liberdade pessoal, tolerância,
23
Segundo Marcelo Galuppo, a gênese da modernidade nos séculos XV e
XVI deveu-se a um processo denominado descentramento radical. No mundo antigo
e medieval havia um centro – polis ou Igreja – unificador das ações humanas, o que
não se repetiu no mundo moderno. A idéia de centro permitia uma lógica de
organização pautada na comunidade, que, ao contrário da sociedade, pressupõe um
único projeto coletivo aglutinando e dando sentido à existência humana. Não havia
nas comunidades antigo-medievais lugar para o indivíduo: o todo gozava de
prevalência em relação às partes.21
A modernidade, ao contrário da idade média, caracterizou-se pela
explosão do centro aglutinador do pensamento e da ação. A idéia de um centro
unificador não dá conta da multiplicidade de projetos de vida dos sujeitos reunidos
em uma sociedade plural, formada pela justaposição artificial dos referidos projetos.
Esse descentramento está relacionado, segundo Hanna Arendt, em citação feita por
Galuppo, a três processos: Revolução Científica; Grandes Navegações e Reforma
Protestante.22
O conceito de estado de direito liberal sintetiza o regime jurídico-político
da sociedade que, com a ruptura dos vínculos feudais, consolida as novas relações
econômicas e sociais adequadas ao desenvolvimento das forças produtivas23. Seus
postulados fundamentais resumem-se nos seguintes princípios: separação de
poderes, princípio da legalidade, abstração e generalidade do sistema normativo e
divisão entre esfera pública e privada.24
crença e otimismo na vida, individualismo. Segundo Wolkmer, o traço mais marcante do Liberalismo é o individualismo. Prioriza-se, assim, o homem como centro autônomo de decisões econômicas, políticas e racionais. A ação justifica-se pela subjetividade em que o sujeito racional reconhece e afirma a sua individualidade. WOLKMER, op. cit., p. 37-40. 21
GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol. I, n. 3, p. 195. 2005. 22
Ibid., p.196. 23
Na transição da economia feudal para a economia capitalista a exigência de desenvolvimento imposta pelo novo sistema (a sociedade capitalista, por força de suas leis internas, tem uma necessidade inelutável de crescimento quantitativo) chocava-se com o regime político-jurídico fundado no privilégio e na estrutura feudal da propriedade, impondo sua necessária transformação. O sujeito da história era agora a nova classe ascendente que ia emergindo da crise do regime senhorial e reclamava uma transformação profunda nas relações políticas, econômicas e sociais. FIGUEIRA, op. cit., p. 68-69. 24
Ibid, p. 64.
24
No modelo liberal25 o direito não é o regulador da vida econômica: direito
de propriedade e contrato não são institutos econômicos, mas sim da ordem jurídica
geral que se apresenta como expressão da ordem natural da sociedade.26 O
princípio da autonomia da vontade27 é o eixo em torno do qual giram as regras do
direito privado, servindo de linha unificadora para a codificação logo encetada pelos
juristas construtores do modelo liberal.28
Assevera Moreira que a ideologia liberal se apresentava como uma
unidade sem brechas nos planos econômico, jurídico e filosófico. A liberdade de
fazer e de contratar, por exemplo, eram expressões da visão de uma sociedade que
se acreditava naturalmente ordenada, eternamente equilibrada. As codificações
liberais – a começar pelo Código de Napoleão – são o modelo jurídico dessa visão
em que o econômico era desconhecido.29
As instituições jurídicas que servem à economia são as que, de modo
geral, servem à sociedade civil. Exclui-se, assim, a economia do direito, fazendo
com que o problema econômico não apareça como problema jurídico. As relações
econômicas diluem-se na massa comum das imbricações entre duas pessoas,
levando à descaracterização econômica desses entes: patrão, trabalhador e
empresário não fazem parte do léxico jurídico.30
Para Figueira, esta construção jurídica apresenta-se como expressão de
uma nova sociedade, na qual, objetivando-se a libertação dos indivíduos de todas as
formas de sujeições, implanta-se uma concepção humanista. Esse humanismo tem
um conteúdo econômico e oculta as desigualdades, sujeições e opressões reais.
Realiza apenas no plano da abstração a liberdade e a igualdade, que não
conseguem transcender ao aspecto meramente formal. Feitas essas ressalvas, não
25
Para Eliseu Figueira, impunha-se, nesse momento, em síntese: 1) separação entre sociedade civil e Estado, de maneira que o poder político, limitado a uma função de garantia da ordem pública, não tivesse ingerência no poder econômico deixado à iniciativa privada; 2) tornava-se necessário um novo regime de propriedade, de liberdade de comércio e de circulação de bens. Ibid, p. 69. 26
MOREIRA, op. cit., p. 75. 27
A liberdade individual, como ideologia do jusnaturalismo, exprimindo uma ordem natural, revela-se na conexão com a realidade histórica como um conceito de conteúdo econômico. A libertação dos vínculos feudais trouxe ao indivíduo uma liberdade puramente formal, mas não uma libertação das limitações à sua personalidade pela satisfação das necessidades orgânicas, culturais e espirituais. O indivíduo adquiriu a liberdade de se deslocar, de mudar de profissão, de comerciar, de produzir e até de ser proprietário, só que essa livre escolha, em função da desigual repartição da riqueza – os possuidores dos meios de produção e os detentores apenas de sua força de trabalho –, não lhe permitia uma real libertação de suas necessidades. FIGUEIRA, op. cit., p. 69. 28
Ibid., p. 65-66. 29
MOREIRA, op. cit., p.77. 30
Ibid., p.75-76.
25
se pode deixar de reconhecer esse viés humanista como um importante salto
qualitativo na transformação da humanidade e da sociedade.31
Figueira salienta que no passado clássico e feudal as relações
econômicas e sociais eram impostas de fora, mediadas pela força – escravos e
servos eram instrumentos de produção, propriedade do senhor. Na sociedade pré-
capitalista e capitalista as relações de produção correspondem a uma ordem natural,
na qual a coercibilidade não é exercida por uma força exterior, extra-econômica, mas
pela dinâmica das leis inerentes e internas ao sistema, pautado pela igualdade e
liberdade dos indivíduos. No plano jurídico, a mediação é feita pelo contrato, isto é,
pelo consenso estabelecido no mercado de trabalho, segundo o qual todos os
agentes econômicos, proprietários e trabalhadores são apresentados como sujeitos
livres e iguais. 32
Defende Moreira que o contrato de trabalho é um exemplo típico da
dissociação entre o modelo capitalista e a realidade. No capitalismo, ele está
integrado ao domínio da autonomia da vontade, no qual duas pessoas, em
igualdade de condições, regulam as suas relações segundo a sua vontade
esclarecida e livre, permutando duas coisas de valor equivalente: o salário e o
trabalho. Essa concepção jurídico-privatista assenta-se, portanto, em um contrato
celebrado pela livre manifestação de vontade de dois indivíduos. No plano
econômico, todavia, faltam esses pressupostos: a liberdade do contrato transmuda-
se na necessidade de aceitar as condições de um poder econômico mais forte. O
trabalhador é livre para dispor de sua força de trabalho, porém é livre também de
tudo, desprovido de qualquer outra coisa, de meios de produção e de subsistência.
É esta liberdade que transforma aquela outra em servidão. Além disso, num modelo
dominado pela autonomia da vontade, não há lugar para o sindicato, explicitando o
caráter objetivo de instrumento de domínio de classe da ordem jurídica burguesa.33
Nesse contexto, o estado moderno tem como tarefas, segundo Habermas,
citado por Faria, desenvolver e garantir o direito privado burguês, o mecanismo
monetário, além de determinadas infra-estruturas. Em outras palavras,
31
FIGUEIRA, op. cit., p. 73. 32
Contrato: encontro de vontades autônomas, destinado a realizar as exigências do novo modo de produção para uma livre e rápida circulação das mercadorias. Está situado no centro da vida jurídica, representa o mais importante instrumento de realização do equilíbrio de interesses, sendo a mais adequada forma de mediação nas relações econômicas e sociais. Ibid., p. 72-73. 33
MOREIRA, op. cit., p. 78-80.
26
[...] as premissas para a existência de um processo econômico despolitizado, liberto de normas éticas e de orientações ligadas ao valor de uso. Já que não é o Estado a agir como capitalista, ele deve conseguir os recursos necessários à sua ação a partir das rendas privadas.
34
Afirma Faria que a consolidação histórica do estado moderno se deu por
meio de uma regulamentação específica dos conflitos, baseada na edição racional
de normas, ordenadas hierarquicamente e amplamente conhecidas e reconhecidas.
Em virtude disso é que a eficácia das instituições de direito decorre da efetividade de
um poder político capaz de exercer o monopólio da violência, dispondo, assim, do
poder de sanção.35
A conciliação da filosofia jusnaturalista, que afirmava a liberdade, a
igualdade e a propriedade como direitos originários inerentes ao indivíduo – com a
supremacia do estado legislador – foi conseguida por meio do reconhecimento
jurídico positivo das liberdades fundamentais e dos direitos do homem.36
Em suma, o estado moderno, visto ao mesmo tempo como aparelho de
dominação e de organização, é fruto da diferenciação de um sistema econômico que
regulamenta o processo produtivo por intermédio do mercado, de maneira
descentralizada e apolítica. Organiza, dessa maneira, as condições nas quais os
cidadãos, entendidos como indivíduos privados que concorrem entre si, explicitam o
processo produtivo.37
No estado de direito liberal confere-se ao direito positivo o papel de
descrever os tipos gerais e abstratos e, aos indivíduos, o dever de lhes dar vida nas
relações concretas. Há dois direitos: em primeiro lugar, o normativo, exterior, que
nada ordena e apenas prevê: as suas normas são principalmente de natureza
supletiva; e, em segundo, o direito concreto, autônomo e contratual, que
regulamenta os interesses dos particulares nas relações de sua vida real. A
articulação entre estes dois planos é feita pelo reconhecimento da capacidade
jurídica a todo sujeito humano38.
34
HABERMAS, Jürgen. Problemas de Legitimação no Estado moderno. In: _______. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983. apud FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988, p. 62. 35
FARIA,1988, p. 59. 36
A antinomia primado da lei versus autonomia da vontade, terminou pela conciliação que atribui à lei (ao Estado) o poder de conferir aos indivíduos a faculdade de auto-regulamentação dos seus interesses. FIGUEIRA, op. cit., p. 73-74. 37
FARIA, op. cit., p. 61. 38
FIGUEIRA, op. cit., p. 76.
27
Nesse modelo, o juiz de direito deve, ao fazer a mediação entre a lei e o
caso concreto, fechar-se no interior do ordenamento abstrato, sem recorrer a fatores
exteriores. A sua operatividade consiste numa atividade lógico-formal, isto é, ele
deve fazer a subsunção do fato concreto ao tipo abstrato contido na norma, sem se
referir, em qualquer hipótese, a valores sociais. Desse modo, a relação jurídica, ao
invés de ser o elo entre a norma e a relação social a ela referida, é a relação entre o
sujeito e a norma39.
Essa posição interpretativista tem sido assumida pelos historicistas,
pandectistas e positivistas, ainda que por razões distintas. Para eles, o direito
objetivo é compreendido, na sua função de neutralidade, como um sistema fechado
e auto-suficiente. O equívoco cometido pela escola histórica foi compreender a
história como evolução linear da sociedade e não como sua transformação dialética
qualitativa. Contudo, teve o mérito de apontar que em virtude de o direito ser produto
de uma comunidade organizada, a intervenção do estado na economia e no
ordenamento jurídico não encontra nenhum limite externo, isto é, não está limitada
por nenhuma ordem natural ou por uma presumida natureza humana inviolável.40
Para Lenio Luiz Streck, o paradigma liberal-individualista do direito
sustenta a disfuncionalidade entre o direito e as instituições encarregadas de aplicar
a lei. Essa disfuncionalidade, contudo, passa a ser a própria funcionalidade do
sistema. O modo de produção do direito instituído/forjado para resolver disputas
interindividuais não da conta dos problemas oriundos de uma sociedade complexa,
na qual os conflitos são transindividuais.41
Machado, no mesmo sentido, sustenta que a cultura liberal individualista,
“reduzida ao conhecimento da normatividade vigente e ao domínio das técnicas de
aplicação da lei”, é adequada à resolução de conflitos interindividuais, de cunho
privado, não sendo, todavia, suficiente para o enfrentamento das necessidades do
novo milênio, no qual se ingressa na era dos direitos coletivos, públicos ou
transindividuais42.
39
Ibid., p.76. 40
FIGUEIRA, op. cit., p. 76. 41
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 33-34. 42
MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e Mudança Social. São Paulo: UNESP, 2005, p. 209-210.
28
1.1.2 As mudanças na ordem econômica a crise do modelo liberal de direito
Segundo Moreira, o modelo liberal, postulador do princípio da separação
entre o econômico e o jurídico, foi desagregado. Com o desenvolvimento da
estrutura econômica os instrumentos jurídicos comuns que a serviam – propriedade
e contrato – mostraram-se insuficientes. Na primeira fase desse processo – até a 1ª
Guerra Mundial – a criação de novos institutos foi esparsa e assistemática, mas
atingiu os fundamentos da ordem jurídica privada da economia. Com o crescimento
das empresas a propriedade individual perdeu a sua base no domínio da economia
industrial, dando lugar à sociedade. Situação semelhante viveu o contrato; a ficção
do contrato de trabalho desapareceu com a criação dos sindicatos, que passaram a
ser parte legítima na relação contratual. A liberdade contratual tornou-se autofágica;
surgiram os cartéis e os trustes dominando o mercado e tabelando os preços. A
economia, desse modo, começou a provocar o despedaçamento da unidade da
ordem jurídica liberal 43.
Diante de tal quadro, salienta Moreira, foram duas e divergentes as
reações. De um lado, proibiram-se os acordos de domínio de mercado – legislação
antitruste estadunidense, Clayton Act, 1896. Reconheceu-se, assim, que o modelo
jurídico liberal garantia o modelo econômico; então, para a manutenção do
paradigma econômico devia-se alterar o modelo jurídico liberal, por já não exercer,
adequadamente, as suas funções. De outro lado, mantiveram-se intactos os quadros
da ordem jurídica liberal, fazendo com que os acordos de domínio de mercado
fossem válidos e vinculantes. Todavia, o modelo econômico já não correspondia à
realidade: economia de mercado não era mais sinônimo de livre concorrência.44
A livre concorrência e a livre iniciativa privada, os dois grandes princípios
do modelo econômico, não faziam parte da ordem jurídica liberal. Contudo, nas
condições reais da economia – grande número de empresas, nenhuma delas
podendo dominar o mercado –, os institutos jurídicos do contrato e da propriedade
implicavam na realização daqueles princípios. Porém, com a alteração da realidade,
aqueles princípios já não desempenhavam a mesma função; a solução seria criar
43
MOREIRA, op. cit., p. 83-84. 44
Ibid., p. 84-85.
29
novos institutos para preencher a lacuna. Porém, inexoravelmente, ou o jurídico ou o
econômico entrariam em crise.45
De qualquer maneira, a ordem liberal mantém-se praticamente idêntica a
si mesma. Somente com a primeira guerra mundial este imobilismo fictício foi posto
em xeque. Durante a guerra o estado canalizou toda a economia para a satisfação
das exigências bélicas. Para isso, teve de criar um novo aparelho jurídico ou utilizar
os aparelhos jurídicos até então existentes para um novo fim. A primeira grande
guerra, a inflação e o desemprego em massa deram o golpe de misericórdia nas
representações liberais. Os conceitos de propriedade e de contrato dissolveram-se.
Ao mesmo tempo, as instituições do direito privado e a economia laissez-faire
mostraram-se incapazes de assegurar o desenvolvimento da sociedade. A partir de
então o direito foi progressivamente chamado a cobrir cada vez mais extensas zonas
da ordem econômica.46
Na seqüência, no caminho trilhado por Vital Moreira, cumpre-se demarcar
as linhas de força da ordem jurídica da economia e verificar o que não se enquadra
no sistema jurídico privado do modelo liberal, destacando as principais
características da ordem econômica contemporânea.
Primeiramente, despedaçou-se a unidade interna do modelo do direito
privado oitocentista. Traduziu-se isso num prévio despedaçamento do modelo
econômico e social liberal, do qual aquele era expressão. Há agora, ao contrário do
modelo jurídico-privado liberal, uma ordem econômica explícita, que assume
expressamente a conformação da economia e que tem nela o seu objeto consciente.
Não há um conceito unânime de direito econômico: uns o vêem como novo ramo do
direito, outros como apenas um novo modo de estudar e considerar o direito.47
A moderna economia capitalista precisa do estado e de sua aperfeiçoada
máquina burocrática em conseqüência da perda de importância do uso e da tradição
como sistema normativo da ação humana, bem como do destroçamento, pelo
desenvolvimento do mercado, dos centros extra-estaduais – associações –
formadores de direito.48
45
Ibid., p.85. 46
Ibid., p.86. 47
Ibid., p.97. 48
Segundo Vital Moreira, a intervenção crescente de normas tomadas explicitamente para regular a economia, é efeito de um processo de racionalização da mesma. Para Weber, citado pelo autor, o direito e a economia evoluíram igualmente no sentido de uma maior racionalidade, aquele se libertando de todas as representações carismáticas ou teológicas, esta ganhando autonomia e um
30
A ordem jurídica racional e a atividade racional do estado são as únicas
compatíveis com a ação econômica final-racional típica do capitalismo. A estrutura
técnico-econômica do capitalismo requer previsibilidade de conseqüências e
calculabilidade de probabilidades que só um direito logicamente formalizado e uma
atividade estatal a cargo de uma máquina burocrática aperfeiçoada podem
fornecer49.
O burguês considerava o direito e a atividade do estado como um dado,
tal qual o mercado. Era natural que o mercado se alterasse, o mesmo não podendo
ser dito do direito e do estado. O caráter de dado da ordem jurídica é condição
fundamental de efetivação do princípio econômico, isto é, da condução da atividade
própria segundo o princípio racional da maximização das vantagens. Para Moreira,
dois são os pressupostos para a existência dessa situação: em primeiro, uma ordem
jurídica dada e eterna; em segundo, uma atividade estatal mínima e previsível. A
substância essencial do estado de direito é, portanto, a previsibilidade da conduta do
estado. A calculabilidade e a previsibilidade continuam a ser um valor fundamental
da ordem econômica capitalista.50
Nota-se, então, que a ordem jurídica clássica foi posta em xeque por uma
tripla ordem de razões; a primeira delas, de origem econômica: o progresso técnico
gera o capitalismo monopolista; a segunda, motivada por razões sociais: nascimento
do movimento operário e o agravamento dos conflitos de classe; por último, razões
de ordem ideológica: aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo.51
O novo estado do direito, de viés econômico, traduz as relações do poder
político em face da evolução dos fatores econômicos, sob influência do progresso
técnico; as empresas tornaram-se cada vez maiores a ponto do seu próprio
funcionamento apelar para a intervenção estatal. A concorrência entre pequenas
unidades cedeu lugar às relações estratégicas entre centros de decisão de grande
envergadura, concentradores de recursos e interdependentes. Esta nova dimensão
dos negócios, este papel de enormes unidades e grupos, titulares de um importante
poder discricionário, estreitaram as relações entre o direito e a economia.52
princípio racional de orientação. O tipo lógico-formal-racional do direito e a ação econômica final-racional representam a fase mais alta dessa evolução e estão incindivelmente relacionados. Ibid., p. 98-99. 49
MOREIRA, op. cit., p. 100-102. 50
Ibid., p. 100-102. 51
Ibid., p. 122. 52
Ibid., p. 122-123.
31
De um lado, o progresso técnico exigiu o planejamento e a disciplina
pública da economia. A planificação da economia estava pressuposta com o
surgimento da fase monopolista, sendo conseqüência da própria concorrência. Por
outro lado, a concentração e o domínio econômicos por poucas empresas facilitam a
regulamentação econômica e a planificação, na medida em que o comportamento
do mercado e do processo econômico se dá em função delas.53
Leciona Moreira que foram as tensões sociais, características da
sociedade industrial desenvolvida, que, contrariando as doutrinas do liberalismo
clássico, forçaram uma progressiva intervenção estatal na economia. Se a ordem
econômica clássica transformou-se na ideologia jurídica da liberdade individual e da
propriedade privada utilizada em vista da exploração sistemática da grande maioria
por uma minoria, é essa maioria consciente que vai procurar destruir aquela ordem.
Os conflitos econômicos – sobretudo as greves – entre patrões e operários
desempenharam um importante papel no estado moderno, pois a grande
contestação do direito clássico veio dos operários que, organizados primeiramente
em sindicatos, depois em partidos, conseguiram conquistar a cidadania e ter voz
política. O direito do trabalho, nesse contexto, recebeu formas jurídicas públicas.54
A voz conquistada pelo operariado permitiu-lhes exercer certo controle
sobre a ordem econômica, possibilitando a introdução de direitos sociais nas
constituições, tema que será tratado no último capítulo. Resulta daí a introdução na
ordem econômica de elementos, em tese, contrários à ordem liberal.55
Moreira salienta que essas representações foram tiradas de teorias ou
doutrinas anti-burguesas. Ideologias das mais diversas confluem na superação da
ordem econômica liberal e na modelação da ordem econômica contemporânea. Em
relação ao socialismo, chegou-se a afirmar que a via da revolução proletária fora
impedida justamente pela reforma do capitalismo à luz da doutrina marxista
anticapitalista.56 O capitalismo tem uma capacidade enorme de metamorfosear-se,
assimilando em seu favor elementos colhidos em teorias que o negam, reforçando a
53
Ibid., p. 125-126. 54
O sufrágio universal foi objeto da primeira luta do operariado. Pensou-se que essa democratização na estrutura capitalista pudesse levá-la à ruína, mas, ao contrário, o sufrágio revelou-se como uma válvula de segurança contra a revolução. Havia, portanto, ingenuidade quanto à capacidade de defesa do capitalismo e um pessimismo quanto à sua compatibilidade com formas democráticas. Ibid., p. 128-129. 55
Ibid., p.128-129. 56
Alguns pensadores sustentam que Marx forneceu ao capitalismo algumas das armas que lhe têm permitido resistir ao fim que lhe previu.
32
sua capacidade de resistência. A ordem jurídica atua como o principal centro de
operação desse processo.57
Uma das premissas básicas do liberalismo é a desvinculação completa
entre economia e política. A economia acusava a política de ser guiada por uma
irracionalidade perturbadora. Esta representação era factível quando o sistema
econômico era auto-regulável e o sistema social estava imune a tensões e
desequilíbrios fundamentais advindos da economia. Contudo, a primeira guerra
mundial pôs termo a essa representação, inaugurando uma nova etapa da ordem
econômica, caracterizada por um novo estatuto das relações entre o sistema político
– político-jurídico – e o sistema econômico, adequado à nova forma do sistema
capitalista industrial.58
Na percepção de Moreira, a ordem econômica contemporânea59
fundamenta-se na destruição do estatuto de apoliticismo da economia, isto é, na sua
transformação em objeto de prática política. O efeito conjunto dos fatores
econômicos, sociais e ideológicos citados, colocou em xeque o sistema
social/político do capitalismo liberal. Para que ele se mantivesse foi necessária a sua
transformação, principalmente com a atribuição ao sistema jurídico-político – estado
e direito – de um lugar de maior destaque na regulação do equilíbrio do sistema
social.60
A crise do estado de direito liberal é, portanto, nas palavras de Antonio
Manuel Peña, a crise da lei e do direito em sua versão tradicional, vistos como
mecanismos de regulação e de programação social61. Segundo ele, são inúmeros os
fatores que contribuíram para a citada crise. Em primeiro lugar, aponta as
experiências políticas concretas que demonstraram o risco inerente ao formalismo,
57
MOREIRA, op. cit., p. 128-129. 58
Ibid., p.131. 59
Ressalva-se aqui que a análise da economia contemporânea feita por Vital Moreira e utilizada como base para o presente tópico, não considerou, até pela data de sua publicação, as transformações mais recentes na economia, principalmente a guinada neoliberal agudizada pelos governos Thatcher, na Inglaterra, e Regan, nos Estados Unidos, e imposta a muitos países por meio do Consenso de Washington. A análise também não dá conta das inúmeras transformações oriundas da globalização econômica. Contudo, resta atual para os fins deste trabalho, ao fornecer elementos para a compreensão da gênese capitalista e as suas imbricações com do direito liberal burguês, bem como os elementos para a sua superação. Cf.: FARIA, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999; GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006; ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Goiânia: Editora da UFG; Brasília: Editora da UnB, 1997. 60
MOREIRA, op. cit., p.130. 61
FREIRE, Antonio Manuel Peña. La garantía en el Estado constitucional de derecho. Madrid: Editorial Trotta, 1997, p.54.
33
além do insuportável desvio entre o modelo liberal e a sua práxis social e
econômica: a função última do poder deve ser a garantia dos direitos e interesses
dos indivíduos. Outro elemento importante foi a constatação do caráter conflitivo da
realidade social e da não-neutralidade do direito no que tange aos conflitos sociais.
A lei é parte do conflito social e não é expressão pura da vontade geral, mas de uma
maioria eventual, interessada e dispersa. Nesse sentido, a lei deixa de ser uma
garantia contra o estado, passando a ser um instrumento conveniente de legitimação
do poder62.
Além dos fatores que contribuíram para essa crise, Peña aponta tensões
desagregadoras que afetam o direito no estado liberal. A lei passou a ser vista como
um ato personalizado, impregnado de interesses sociais e políticos, quase nunca
generalizáveis, e, por esse motivo, suscetíveis a críticas por serem parciais ou
eminentemente classistas. Destaca-se, também, o aparecimento, paralelo ao
ordenamento legislativo estatal, de ordenamentos menores que refletem formas
autônomas de organização que não desejam ser enquadradas dentro do marco
jurídico-público nem se inserirem em um único e centralizado processo normativo63.
Em suma, com as mobilizações populares tratadas anteriormente, as
promessas feitas pela modernidade de igualdade, liberdade e fraternidade
começaram a ser cobradas. A mera formalização desses direitos não foi suficiente
para atender aos anseios das classes trabalhadoras. Desse modo, a mesma
modernidade jurídica que abriu as luzes para o estado liberal também balizou o
surgimento do estado social, principalmente por meio das crises já abordadas.
Na seqüência, enfocar-se-á o direito na modernidade, não sem antes
tentar delimitar com mais acuro o sentido com que esse vocábulo é utilizado neste
trabalho.
1.1.3 A modernidade e o direito
Ao trabalhar o conceito de modernidade, Adeodato opta por um conceito
qualitativo em vez de um temporal, isto é, nem tudo o que vem após a Revolução
Francesa pode ser considerado moderno. Ressalva que os parâmetros do direito
62
FREIRE, Antonio Manuel Peña. La garantía en el Estado constitucional de derecho. Madrid: Editorial Trotta, 1997, p.55. 63
Ibid., p.56. Sobre o pluralismo jurídico, conferir WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa-Ômega, 2001.
34
definidos como modernos não constituem um caminho pelo qual evoluirão todos os
povos. Feitas essas considerações preliminares, define como modernos “os
sistemas jurídicos emancipados e auto-referentes do primeiro mundo”64. Para o
autor, o direito dogmático, autopoiético, é uma grande novidade da modernidade,
havendo uma grande tendência entre os países contemporâneos de dogmatizarem o
seu direito,65 com o estado assumindo o monopólio da jurisdição.66
Salienta-se, dessa maneira, que a modernidade jurídica, compreendida
historicamente como “o ciclo de gradual autonomização da esfera jurídica,”67 tem
como um de seus principais marcos a superação do modelo jusnaturalista, fazendo
com que o direito deixe de ser transcendente para se mundanizar. Superam-se, com
isso, inúmeros problemas; criam-se, todavia, outros68.
A produção jurídica, por exemplo, expõe-se a diversas outras vicissitudes,
tais como: as incertezas da política, os interesses econômicos, a diversidade de
moralidades, etc.69 A segurança jurídica70, necessária para a garantia da
64
Adeodato não defende que sistemas alopoiéticos sejam, em todos os aspectos, menos complexos e sofisticados do que os autopoiéticos, mas, é inegável: são menos complexos do ponto de vista da diferenciação funcional 65
A ênfase racionalizadora do direito positivo, escreve Faria, leva a dogmática a valorizar valores formais tais como, os da imperatividade, estatismo, coatividade e coerência lógica, de maneira desconectada da própria matéria objeto de regulamentação. FARIA, José Eduardo – Eficácia Jurídica e Violência Simbólica: o direito como instrumento de transformação social – São Paulo: EDUSP, 1988, pp.60 e 61. Para Jürgen Habermas, a modernidade fica cada vez mais dependente de uma razão procedimental, isto é, de uma razão que conduz um processo contra si mesma. A crítica da razão é obra dela própria - idéia antiplatônica (Kant), segundo a qual não há nada mais elevado a que possamos apelar, já que, ao chegarmos, descobrimos que as nossas vidas já estavam estruturadas lingüisticamente. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 12. 66
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 211- 212. 67
ARRUDA JR, Edmundo Lima; GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002, p. 51- 53. 68
João Maurício Adeodato trabalha com exemplos de argumentos tipicamente modernos divulgados pela imprensa brasileira, como o dos marajás do serviço público, que declaram saber que o valor dos seus proventos é imoral, mas legal. Este é o preço pago pela autopoiese: a legitimidade torna-se palavra sem significado ao ser equiparada à legalidade, pois o direito legítimo é aquele produzido segundo as regras do sistema. “no topo do sistema de normas, ato de vontade do poder constituinte originário fixa livremente os conteúdos do direito. Advogando o fim da 'ideologia' do direito natural, o positivismo coloca como modernidade exatamente essa autofixação dos critérios do lícito e ilícito. ADEODATO, op. cit., p. 213. 69
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 51. 70
O conceito dominante de segurança jurídica não passa de uma mitologia jurídica da modernidade, para citar a homônima obra de Paolo Grossi. Esse discurso serve para deslegitimar todas as formas de se pensar e aplicar o direito que não sejam o reducionismo simplista engendrado pelo positivismo normativista dos leguleios. Arruda Júnior e Gonçalves, em feliz passagem, defendem que a idéia de segurança jurídica deve ser revista. Não se pode mais pensar em segurança jurídica como a garantia de que o resultado almejado será conseguido mediante um procedimento hermenêutico meramente subsuntivo, pautado em uma idéia de neutralidade axiológica do método e do intérprete, que não resiste ao menor sopro de cientificidade, principalmente quando confrontada com os preciosos
35
estabilidade exigida pelo meio de troca liberal-burguês, tornou-se um imperativo e
uma ideologia. Esse anseio liberal encontra no positivismo a doutrina que melhor lhe
atendeu.71 Denuncia Herkenhoff que a segurança que a lei fundamentalmente
garante é a segurança das classes que fizeram a lei ou tiveram papel preponderante
em sua feitura72.
Do mesmo modo que a modernidade, a conceituação do positivismo
jurídico é ampla e diversificada. Optou-se aqui por algumas formulações que
traduzem em breves linhas a essência desse fenômeno complexo. Uma
conceituação mais apurada, contudo, é indispensável para a compreensão do
positivismo em toda a sua amplitude.73
Defende Galuppo que a grande questão que envolve a modernidade é a
realização da emancipação humana. Para isso, todavia, é necessário dominar a
sociedade e a natureza. Nesse sentido, “o Positivismo é um projeto inerente à
própria Modernidade: conhecer para dominar, e dominar para libertar. Ordem e
Progresso.” Para ele, o positivismo não é somente a primeira epistemologia
moderna, mas também a mais radicalmente moderna. Afirma que o próprio
Descartes, a seu modo, já era um positivista por sustentar, em seu célebre Discurso
aportes oriundos da hermenêutica filosófica gadameriana. O próprio Kelsen, no célebre capítulo oitavo de sua clássica “Teoria Pura do Direito,” já era cristalino ao defender a impossibilidade de uma única interpretação correta na aplicação do direito. Uma norma jurídica, defendia ele, comporta uma série de interpretações, todas elas válidas, não havendo no direito mecanismo algum capaz de dizer qual é a única interpretação correta. Pensar em segurança jurídica depôs da hermenêutica filosófica é pensar no direito de se ter clareza a respeito das pré-compreensões desde as quais somos julgados. Revelar as pré-compreensões por trás da discricionariedade, transformando-as em posições – hermenêutica genealógica – das quais se exige fundamentação. Como em importante síntese argumentou Gadamer, o trabalho do hermeneuta é desvelar tudo o que fica de não dito quando se diz algo. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004; KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito.Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998; ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 246. 71
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 51. Para Galuppo, o projeto da modernidade entra em crise, perceptível desde a passagem do século XIX para o século XX. A dominação que pretendia libertar o homem, alertam Marx, Nietzsche, Freud, produziu o seu contrário. Esses três autores denunciavam o projeto moderno, por defendê-lo, acreditando ainda ser possível a emancipação humana. A modernidade, nesse contexto, seria um projeto inacabado, como bem asseverou Jürgen Habermas. Não há necessidade, no entanto, salienta Galuppo, de abandonar, como defendem os pós-modernos, o projeto da modernidade e suas grandes conquistas, como o sujeito e o direito à diferença: uma correção de itinerário já seria suficiente. A organização dos novos movimentos sociais na década de sessenta, aponta nesse sentido. GALUPPO, op. cit., p. 200-201. 72
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o Direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 112. 73
Para uma análise do positivismo é indispensável a leitura, entre outros, de: BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999; BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004; HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
36
do Método, que a supremacia do homem sobre a natureza o transforma em senhor.
74
Galuppo alerta para que não se confunda positivismo, positivismo jurídico
e o processo de positivação do direito. O fenômeno da positivação tem as suas
raízes na idéia de que o ordenamento jurídico é criação humana e como tal pode ser
mudado para propiciar a já citada emancipação. Essa idéia é essencialmente
moderna,75 por pressupor que o direito, a política e a história são obras
fundamentalmente humanas, o que leva à concepção de que a mudança, o
movimento e a própria revolução constituem a essência da realidade social; tal
abordagem é oposta à da antiguidade e do medievo, que trabalhavam com um
universo social estático e finito.76
O positivismo jurídico afigura-se como uma epistemologia e uma ideologia
de leitura do direito positivo, de cunho metafísico,
“que crê, de uma forma um tanto quanto contraditória com a idéia de mudança inerente ao fenômeno da positivação, na auto-existência do objeto criado pelo homem, notadamente da lei, razão pela qual o Positivismo
pretende converter o conhecimento jurídico em ciência.”77
O positivismo jurídico, compreendido como ideologia/epistemologia do
conhecimento jurídico moderno, possui quatro características consideradas notáveis:
a) a ficção de que o objeto do conhecimento jurídico, a lei, é auto-
existente, isto é, não foi produzida pelo homem, podendo ser
conhecida, dominada e controlada pelo cientista, do mesmo modo que
um físico ou um biólogo fazem com relação à natureza;
b) a idéia de neutralidade, pois não compete ao cientista avaliar o
ordenamento jurídico, mas tão-somente descrevê-lo, seja ele justo ou
injusto. Desse modo, não há relação entre direito e moral – entende-se
aqui por direito o direito positivo e por moral o direito natural ou justiça;
74
GALUPPO, 2005, p. 197. 75
A moderna organização estatal é centralizada, secularizada e organizada burocraticamente. O Estado corporifica o projeto racional da humanidade. A passagem do Estado de natureza ao Estado civil é simbolizada pelo contrato social. Essa passagem assinala a tomada de consciência dos homens, com relação aos condicionamentos naturais a que está sujeita sua vida em sociedade e da capacidade de que dispõe para controlar esses condicionamentos para a sua sobrevivência. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa-Ômega, 2001, p. 40-41. 76
GALUPPO, op. cit., p. 197-198. 77
Ibid., p.198.
37
c) o modelo de ciências naturais aparece como modelo apropriado ao
conhecimento jurídico. Quer-se com isso que a Ciência do Direito
domine o direito e o seu conhecimento, do mesmo modo com que as
ciências naturais dominam a natureza. Adota-se, então, um critério de
verdade para a aferição do conhecimento;
d) raciocínio sistemático, tendo por pano de fundo a idéia de um
ordenamento jurídico concebido como conjunto de prescrições
harmônicas entre si, que regulam de forma completa a vida humana e
que guardam uma relativa independência entre eles.78
Arruda Júnior e Gonçalves definiram o positivismo jurídico como uma
“doutrina das fontes jurídicas do direito, dispondo sobre os órgãos do Estado
constitucionalmente autorizados a produzir normas cuja validade é aferida pelo
próprio Estado.” Excluem-se, dessa maneira, fontes duvidosas como a razão, Deus,
uma raça, algum credo, a natureza, uma classe social, as justiças, as ideologias,
etc.79 Barroso afirma que com o positivismo “o Direito reduzia-se ao conjunto de
normas em vigor, considerava-se um sistema perfeito e, como todo dogma, não
precisava de qualquer justificação além da própria existência.”80
Entende Galuppo que a conseqüência direta da concepção positivista foi
levar o direito, no final do século XX, a um rigorismo semelhante ao rigorismo moral
kantiano, que desconhece a ética da responsabilidade inerente à ação política e
jurídica, “que articularia, em uma sociedade plural, o direito com a moral e com a
ética, evidenciando seus compromissos com a ação prática.”81
Como asseveram Arruda Jr. e Gonçalves, o positivismo jurídico é
marcado por ambigüidades: de um lado, é necessário reconhecer a sua contribuição
para a superação do jusnaturalismo, de outro, deve-se constatar a sua insuficiência,
em virtude de fundamentar o direito como pura validade. Contudo, negar os méritos
do positivismo é uma postura tão equivocada quanto promover o seu
endeusamento82.
78
GALUPPO, op. cit, p.198-200. 79
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit, p. 58 e ss. 80
BARROSO, L.R. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro: Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, Pr: Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 1, n. 1, p. 39, 2001. 81
GALUPPO, op. cit., p. 200. 82
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit. p. 52.
38
Destaca Galuppo que o paradoxal nessa discussão é que em poucos
ramos do conhecimento um modelo científico é tão importante e adotado como o
positivismo na ciência do direito, todavia, nunca um paradigma se mostrou tão
inadequado a um ramo do conhecimento como o positivismo jurídico para o direito.83
Para Arruda Júnior e Gonçalves, numa perspectiva histórica, a necessária
crítica ao positivismo significa “um tipo de exame que se vale das conquistas do
positivismo para avançar no presente para além dele.” Adentra-se, com isso, na
seara pós-positivista, que permite olhar além do positivismo a partir do próprio
positivismo84. Tal temática será objeto de análise mais detida no próximo capítulo,
principalmente quando se abordar alguns aspectos das contribuições de Friedrich
Müller para o direito.
1.2 O direito como espaço de lutas: a guerra de posição
1.2.1 Crítica à relação mecanicista entre estrutura e superestrutura: o direito como
instrumento da guerra de posição
Uma parcela significativa do marxismo não vislumbra possibilidades
emancipatórias no direito, encarando-o, tão-somente, como espaço de dominação
de uma classe social em relação às demais. Essa visão apresenta alguns problemas
que precisam ser enfrentados antes de se abordar o movimento do direito
alternativo, pois a prática alternativista tem como pressuposto justamente a negativa
desse discurso reducionista. Para o entendimento do problema será trabalhada a
relação mecanicista entre estrutura e superestrutura e a sua superação a partir do
desenvolvimento, pelo militante e pensador sardo Antonio Gramsci,85 da tese do
bloco histórico.
83
GALUPPO, op. cit., p. 202. 84
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit. p. 52. 85
Segundo Otto Maria Carpeaux, “Antonio Gramsci nasceu em 23 de janeiro de 1891 em Ales, província de Cagliari, na Ilha de Sardegna, na parte mais pobre e mais atrasada da Itália, filho de gente humilde ao qual só duras privações permitiram o estudo na Universidade de Turim, onde em 1915 aderiu ao socialismo, no mesmo ano em que Benito Mussolini saiu das fileiras do partido socialista para entrar nas do nacionalismo reacionário e belicoso, que seria depois o berço do fascismo. Enquanto o renegado sonhava, nas trincheiras, sua futura ditadura, o jovem Gramsci organizou em 1917 a greve dos operários de Turim contra a continuação da guerra. Restabelecida, precariamente, a paz européia, e entrando a Itália numa fase de graves perturbações sociais, Gramsci fundou o semanário Ordine Nuovo que reuniu em breve os mais avançados intelectuais da península. Organizou os Consigli di fabbrica que, em momentos de greve, ocuparam fábricas e
39
Nos dizeres de López, o atuar crítico desnuda a contradição inerente a
todo direito ilegítimo, qual seja, a contradição existente entre a universalidade de sua
aparência e a particularidade dos interesses que protege.86
Boaventura Santos, por sua vez, entende por teoria crítica “toda a teoria
que não reduz a „realidade‟ ao que existe”. Para ele, a realidade apresenta um
campo de possibilidades e o papel da teoria crítica é o de avaliar essas alternativas
ao que está empiricamente colocado. A existência, reforça, “não esgota as
possibilidades da existência”. Há, portanto, alternativas que possibilitam a superação
do que é criticável no que existe: “O desconforto e o inconformismo ou a indignação
perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua superação.”87
As teorias críticas do direito brasileiro, derivadas das diversas tendências
marxistas, ganharam corpo nas décadas de sessenta e setenta, assumindo o
fundamental papel de denunciar o direito como poder, como instrumento ideológico
de legitimação das classes dominantes, como ocultação e castração.88 Esse
discurso foi importante para desmascarar as principais teorias jurídicas tradicionais,
além de ampliar, a partir de uma abordagem interdisciplinar, o horizonte de atuação
usinas, preparando-se para administrá-los. Em abril de 1920 dirigiu a greve geral. No Congresso do Partido Socialista Italiano em Livorno, em janeiro de 1921, foi Gramsci o líder da ala radical que saiu, constituindo-se como Partido Comunista Italiano. Foi o primeiro secretário-geral desse partido, que o elegeu deputado e do qual fundou o órgão jornalístico, o diário L'Unità. Enquanto isso, fortaleceu-se cada vez mais a ditadura fascista, que ainda tolerava a existência do Parlamento para oferecer ao estrangeiro o espetáculo de uma democracia simulada. Mussolini conseguiu vencer a crise mais grave do seu regime, a indignação moral do país inteiro depois do assassinato de Matteoti. Só então, o terrorismo iniciou, sem freios, a opressão totalitária. Os mandatos dos deputados oposicionistas foram cassados. Perdida a imunidade parlamentar, Gramsci foi preso em 8 de novembro de 1926 e confinado na ilha de Ustica, perto de Palermo. Alguns meses depois, transportaram-no de volta, algemado, para Roma. Processo perante o Tribunal especial. O Promotor falou com franqueza: "Devemos", dizia aos juízes, "inutilizar por 20 anos esse cérebro perigoso": a 20 anos de reclusão na Penitenciária de Turi, perto de Bari, foi Gramsci condenado. Submeteram-no a um regime severo, embora permitindo-lhe escrever cartas e notas, permissão da qual nasceu a imponente obra desse espírito encarcerado. Mas em 1933 os sintomas da tuberculose dos ossos tornaram-se evidentes. A doença fez progressos rápidos. Enfim, as autoridades fascistas não quiseram que o preso morresse como mártir dentro dos muros do cárcere. Gramsci foi solto três dias antes do desenlace. Morreu em 27 de abril de 1937 numa clínica particular em Roma. Foi sepultado no Cemitério dos Ingleses, à sombra da Pirâmide de Cestio, perto do túmulo de Keats. Uma coroa de verdes permanentes, com fita vermelha, indica o lugar em que dormem seus pobres restos mortais”. CARPEAUX, Otto Maria. A Vida de Gramsci. Texto originalmente publicado na Revista Civilização Brasileira, 7, maio 1966. Disponível em: <http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv79.htm>. Acesso em: 15 julh. 2006. 86
LÓPEZ, Modesto Saavedra. El Juez entre la Dogmática Jurídica y la Crítica del Derecho. Crítica jurídica: Revista latinoamericana de política, filosofía y derecho. Universidad Nacional Autónoma de México: Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades: Faculdades do Brasil: Universidad de Buenos Aires: Facultad de Derecho, 2003. Disponível em: <http://www.unibrasil.com.br/asite/publicacoes/critica/21/U.pdf>. Acesso em: 20 julh. 2003. p. 16. 87
SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 23. 88
SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 31.
40
dos teóricos do direito. Todavia, a leitura do direito apenas como superestrutura
social, como elemento de dominação de uma classe social sobre as outras, segundo
Schier,89 causou uma série de conseqüências negativas, quais sejam:
a) impossibilidade de visualização da dogmática jurídica como
instrumento emancipatório;
b) desprestígio do discurso jurídico;
c) migração dos estudantes críticos de direito para outros cursos,
principalmente sociologia e filosofia;
d) desprestígio dos profissionais do direito;
e) crença no direito como mero reflexo das relações de poder na
sociedade
f) extrema politização do discurso jurídico;
g) esvaziamento da dignidade normativa da ordem jurídica, entre outros.
Essa visão do direito apenas como reflexo superestrutural das relações de
base é fruto da visão mecanicista existente em parcela do marxismo, que trabalha a
relação entre estrutura e superestrutura de modo meramente mecânico.
Sustenta Damasceno que o marxismo não avançou muito na
compreensão dialética do direito. O fenômeno jurídico foi tratado apenas
marginalmente como parte do todo social; a tradição marxista nunca conseguiu
compreender o direito como uma ferramenta de luta no processo de transformação
da sociedade, ao revés, salienta, o que sempre predominou foram as doutrinas
mecanicistas. Para essas teorias, o direito e o estado são manifestações da base
econômica, servindo apenas para a manutenção do estado de coisas vigente.90
Em que pese essa visão da ortodoxia marxista sobre a impossibilidade
emancipatória do direito, discorda-se, neste trabalho, dessa posição. Defende-se,
com Damasceno, a possibilidade de utilização de aportes do marxismo historicista e
humanista, principalmente a partir das contribuições de Gramsci e Poulantzas91,
89
Ibid., p. 36. 90
SILVA, Rafael Damasceno Ferreira. O Poder judiciário e hegemonia: o caso dos magistrados alternativos do Rio Grande do Sul. 1995. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1995. 91
Até mesmo fragmentos das próprias obras marxianas podem ser utilizados para questionar a citada visão da ortodoxia marxista. Uma obra sempre citada quando se quer rebater a concepção mecanicista da relação entre estrutura e superestrutura é a introdução redigida por Engels em 1895, à obra de “Lutas de Classes na França”, de Karl Marx. A presença do pensamento de Engels nos Cadernos do Cárcere de Gramsci, pode ser encontrado em: BARATTA, Giorgio. As rosas e os cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Tradução Giovanni Semeraro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 131 e seg.
41
para se repensar o direito, de modo dialético, superando, assim, o mecanicismo e o
determinismo.92
Portelli, ao tratar da relação dialética e orgânica entre estrutura e
superestrutura, sustenta que Gramsci, ao contrário de Marx, não analisa essa
relação no seio do bloco histórico93 como uma relação entre dois elementos de
importância desigual: “a superestrutura ético-política tem um papel de importância
igual ao de sua base econômica, e não primordial, como afirma N. Bobbio, senão
seria subestimar os limites orgânicos fixados para a ação da superestrutura.”
A relação presente no bloco histórico é uma relação dialética entre dois
momentos igualmente determinantes do bloco: o momento estrutural, que é a base
que engendra diretamente a superestrutura, “que no início é apenas o seu reflexo;”
durante esse primeiro momento a superestrutura só poderá agir dentro dos precisos
limites traçados pela estrutura. Com isso, fica nítido que a estrutura influi
constantemente sobre a atividade superestrutural. O papel desempenhado pelo
momento ético-político, para Portelli, é um papel motor, já que é ele que desenvolve
a consciência de classe dos grupos sociais, organizando-os tanto do ponto de vista
político quanto do ponto de vista ideológico. Salienta, que
“no seio da superestrutura, então, desenrola-se o essencial do movimento histórico e a estrutura torna-se o instrumento da atividade superestrutural. A fraqueza ou importância desta última pode, inclusive, limitar a evolução da estrutura, seja mantendo o antigo bloco histórico, seja não superando o
nível trade-unionista da correlação de forças.”94
Em virtude do alegado é que Portelli considera a primazia de um ou outro
elemento do bloco histórico como um falso problema, por ser evidente que a sua
estrutura sócio-econômica é seu elemento decisivo. Todavia, não é menos evidente
que em qualquer movimento histórico as contradições surgidas na base se traduzem
92
SILVA, 1995, passim. 93
Segundo Hugues Portelli, o conceito de bloco histórico é considerado por grande número de estudiosos de Gramsci como o seu conceito-chave. Esse conceito deve ser analisado a partir de três aspectos, quais sejam: em primeiro lugar, na condição de centralidade, as relações entre estrutura e superestrutura. Não há na idéia de bloco histórico a primazia de um desses citados elementos do bloco histórico. O ponto essencial para a abordagem dessa relação está ancorado no estudo do vínculo, que Gramsci classifica como orgânico, que realiza a unidade do bloco histórico. Esse vínculo orgânico depende de uma organização social concreta. O vínculo orgânico, então, é realizado por grupos sociais cuja função é realizada no nível superestrutural, os intelectuais, que Gramsci considera os funcionários da superestrutura. No último capítulo faremos uma análise mais detida sobre os intelectuais. PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Tradução Angelina Peralva. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p.14. 94
PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Tradução Angelina Peralva. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 65-66.
42
e se manifestam nas atividades superestruturais. Assim, a relação entre esses dois
elementos é, ao mesmo tempo, dialética e orgânica. Gramsci alerta, segundo
Portelli, para o equívoco que o próprio conceito de bloco histórico quer evitar: o de
se considerar esses dois elementos separadamente. O caráter dialético e orgânico
da relação entre estrutura e superestrutura acarreta, então, suas conseqüências,
quais sejam: “em primeiro lugar, a natureza orgânica dessa relação permite delimitar
o bloco histórico concreto”; em segundo, “a subestimação desse caráter orgânico
acarreta graves erros políticos.”95
Feitas essas observações sobre a relação dialética e orgânica entre
estrutura e superestrutura, afirma-se, na mesma toada, que é no próprio seio das
teorias críticas que se encontram os juristas que possibilitarão o resgate da
dignidade teórica e normativa do direito. Em outras palavras, são os próprios
pressupostos epistemológicos desta concepção reducionista que permitem a sua
superação. Assevera Schier que o próprio discurso crítico já havia deixado espaços
discursivos que poderiam ser explorados, possibilitando uma autocrítica da própria
crítica, são eles:
a) o já citado reconhecimento, mesmo que embrionário, da insuficiência
da relação mecanicista e determinista entre estrutura e superestrutura,
e;
b) a criação de uma adequada concepção de dialética. Schier destaca
aquilo que já se observou na análise dos aportes da obra gramsciana,
isto é, que “não se mostrava mais possível conceber que os elementos
„superestruturais‟ não desempenhassem qualquer influência nos
fatores reais de poder, na estrutura das relações de produção.”96
Essa possibilidade de superação do mecanicismo é importante para uma
reflexão teórica sobre o direito alternativo, já que ele trabalha justamente com a
negação do discurso que reduz o direito a um espaço exclusivo de dominação e
exploração. Andrade sustenta que Gramsci não encara o direito como um mal em si,
como simples forma de dominação, pois aceita uma nova noção de juridicidade
liberada de todo resíduo de transcendência e de absoluto, isto é, de todo fanatismo
moralista. Com isso, defende, é possível reafirmar as possibilidades transformadoras
do direito e sustentar teoricamente um direito alternativo inspirado no pensamento
95
Ibid., p. 66-67. 96
SCHIER, op. cit., p. 37.
43
gramsciano, vislumbrando-se, então, os juristas alternativos como intelectuais
orgânicos, construtores de uma nova concepção de direito, sem dogmas e
emancipatória.97
1.2.2 As idéias de bloco histórico e de hegemonia de Gramsci
Antes de se tratar do direito alternativo, faz-se necessário a abordagem
do conceito gramsciano de bloco histórico, pois, como já visto, é a partir dele que se
dá a superação da visão mecanicista entre estrutura e superestrutura. Com isso,
ensina Damasceno, possibilita-se a compreensão dialética da relação entre esses
dois campos, superando-se a mera unilateralidade da função de dominação que
parecem desempenhar, ao mesmo tempo em que se rejeita nesses espaços a
possibilidade de discursos mitológicos98, como o da neutralidade axiológica,99 que
impregnam até hoje as teorias normativistas.100
Na obra de Gramsci a discussão sobre hegemonia antecede a de bloco
histórico: “Seu conceito traduz uma primazia política de uma classe social sobre
outras, primazia esta que se estende à esfera cultural, e insere-se sobretudo na
órbita da sociedade civil.” Caubet a define, em termos mais precisos, como “a
capacidade que a classe dominante tem de operar uma direção intelectual e moral,
de absorver as demais classes em seu projeto totalizador.”101
Assim, dentro da teoria de Gramsci, a conquista e a manutenção da
hegemonia adquirem importância fundamental. Dá-se isso pelo fato de que em sua
obra a força, por si só, não basta. A classe dominante somente mantém-se no poder
caso obtenha o consenso de grupos sociais que a sustente. Desse modo, explica
97
ANDRADE, Lédio Rosa. Magistratura e democracia. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de; BORGES FILHO, Nilson. Gramsci: Estado, direito e sociedade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995, p.126. 98
Sobre mitologias jurídicas da modernidade, Cf. GROSSI, 2004, passim. 99
Sobre a impossibilidade de neutralidade axiológica do intérprete, conferir os importantes aportes propiciados pela hermenêutica filosófica, destacando-se: BITTAR, Eduardo C. B. Hans-Georg Gadamer: a experiência hermenêutica e a experiência jurídica. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu. RODRIGUEZ, José Rodrigo (Orgs.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo, RS: Ed. da Unisinos, 2002. (Coleção Idéias, v. 7), p. 65; STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004; STRECK, 2001, passim.; PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 100
SILVA, 1995, passim. 101
CAUBET, Yannick. As idéias políticas de Antônio Gramsci. In: WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Introdução à história do pensamento político. Rio de Janeiro: São Paulo: Renovar, 2003, p. 359.
44
Caubet, um grupo social que aspire ter o controle político da sociedade deve
trabalhar para antes ser o „dirigente‟ desta mesma sociedade, ou seja, angariar o
consenso em torno do seu plano universalizante ou, em outras palavras, deve
conquistar a hegemonia.102
Na teoria gramsciana a obtenção do poder governativo não é, em si
mesma, fundamental ou suficiente. “O nascimento de um Estado como expressão do
domínio de uma classe é um momento [...] da conquista da hegemonia cuja
explicitação, não obstante, se exerce prevalentemente no terreno da ideologia”103
Para Gruppi, “a hegemonia tende a construir um bloco histórico, ou seja, a
realizar uma unidade de forças sociais e políticas diferentes; e tende a conservá-las
juntas através da concepção do mundo que ela traçou e difundiu”. Na seqüência,
afirma que “a luta pela hegemonia deve envolver todos os níveis da sociedade: a
base econômica, a superestrutura política e a superestrutura ideológica.”104
No pensamento gramsciano a supremacia de um grupo social manifesta-
se de duas formas: a) como direção intelectual e moral; e, b) como dominação.
Defende Gruppi que a hegemonia avança com a capacidade de direção política,
ideológica e moral daquela que, até aquele momento, era a classe subalterna.105
O entendimento da relação dialética entre estrutura e superestrutura
favoreceu-se, sobremaneira, da noção gramsciana de bloco histórico, ponto de
partida para a compreensão do fenômeno social e, conseqüentemente, do fenômeno
jurídico.
Sob o manto do conceito de bloco histórico, desenvolvido por Gramsci
durante a sua estada no cárcere italiano, encontra-se o conjunto composto pela
estrutura econômica e a superestrutura – que pode ser política, jurídica ou
ideológica. A relação dialética entre ambas compõe o todo social. Define-se como
bloco histórico uma dada formação histórica, constituída por fatores econômico-
sociais, político-jurídicos e culturais, todos em um processo dialético de interação.
Com isso, destaca-se o papel desempenhado em um determinado momento
102
Ibid., p. 359-360. 103
Ibid.,360. 104
GRUPPI, Luciano. O Conceito de hegemonia em Gramsci. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p. 78. 105
Ibid., p. 78-79.
45
histórico pelos elementos político-culturais na composição de uma realidade
social.106
O bloco histórico tem como amálgama a ideologia. Nesse contexto
teórico, ele pode ser entendido como um “conjunto de alianças de classe” que “se
forma quando a classe dirigente consegue aliciar o apoio de algumas classes
subalternas „comprando-lhes‟ a adesão ao seu projeto de sociedade”107.
A ideologia assumiu em Gramsci um significado diverso do que lhe
atribuíra Marx. Com efeito, para o autor italiano, ideologia significava “uma
concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva.”
Como a ideologia tem por função reproduzir a concepção de mundo da classe
dirigente, a construção de um contra-discurso ideológico passa a ser fundamental.
Esse é o papel do intelectual orgânico.108
A preocupação de Gramsci era explicar a complexidade do domínio
exercido por uma determinada classe social sobre a sociedade. Esse domínio
inicia-se nos meios de produção e estende-se até a direção político-ideológica da
sociedade. Desse modo, a “superestrutura” atua como garantidora da coesão
social, unificando as diferentes potências sociais em um projeto de sociedade.
O conceito de bloco histórico reúne dominantes e dominados, pois,
como salienta Damasceno, o papel dos dominados, geralmente ativo, é
fundamental para a compreensão de qualquer sociedade.109
Nesse diapasão, entende-se então por bloco histórico, nas palavras de
Damasceno,
“um esquema de análise que pode ser visualizado pela imagem de um edifício onde na parte inferior teríamos a base ou infra-estrutura material, as forças produtivas e relações de produção da vida social e, na parte superior, as superestruturas política e ideológica, incluindo aquilo que Gramsci denomina „Estado‟ em sentido amplo, isto é, „sociedade civil mais sociedade política.‟”
110
Ressalta o referido autor que o esquema apresentado é meramente
ilustrativo, pois a realidade é rebelde a esquemas.111
106
SILVA, 1995, passim. 107
Ibid. 108
CAUBET, op. cit., p. 360-361. 109
SILVA, 1995, passim. 110
Ibid. 111
Ibid.
46
Gramsci, portanto, não enfatiza a “diferença”, mas, sim, a relação
dialética entre base e superestrutura; não há como uma classe dominar a base,
isso é, dominar a infra-estrutura, sem dominar também as esferas políticas e
ideológicas dessa sociedade. Damasceno sustenta que essa concepção de bloco
histórico permite a superação dos limites analíticos tanto do idealismo – que não
conecta o estado às formas jurídicas e ideológicas, com o mundo da produção –
quanto do economicismo – que subestima a importância daqueles campos.112
A concepção gramsciana de estado representa, segundo Damasceno, uma
ruptura com a compreensão marxista do poder no capitalismo, que operava
segundo a lógica de uma teoria restrita do estado. Isso não só em virtude de
aspectos históricos, mas também de uma visão reducionista que colocava o estado
unicamente como propagador da vontade das elites.113
Ressalva-se que nunca foi uma preocupação central do pensamento
marxiano a construção de uma teoria do estado. As considerações que o jovem
Marx desenvolve sobre o estado aparecem na “Crítica à Filosofia do Direito de
Hegel”114, denunciando, no magistério de Damasceno, seu idealismo e o seu
112
SILVA, 1995, passim. 113
Não nos esqueçamos aqui da célebre frase de Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, segundo a qual a o Estado moderno é apenas o comitê para gerenciar os interesses comuns da burguesia. Essa visão, contudo, é mitigada no Dezoito Brumário. Segundo Damasceno: “Sendo as relações econômicas determinantes em última instância, e sendo estas relações de classe e de poder, o Estado consistiria no órgão de poder da classe dominante destinado a dominar as classes subalternas para submetê-las ao regime de exploração e propriedade privada capitalista; e como o fim da sociedade de classes significaria o fim do Estado e do direito, estas instâncias acabaram sendo relegadas a segundo plano, apresentando-se como insalváveis para a ação política” SILVA, 1995, passim. 114
Enquanto Hegel parte do Estado e considera o homem uma subjetivação daquele, Marx propõe partir do homem e considerar o Estado como uma objetivação deste, mais precisamente uma objetivação das qualidades subjetivas dos indivíduos. Essas qualidades, perdidas na etérea esfera estatal, são recuperadas pelos indivíduos na democracia. Em Marx, o advento da democracia suprime a esfera celestial da vida política e reconcilia o homem com o cidadão. Na democracia, nenhum dos elementos que a constituem pode adquirir uma representação diferente daquela que lhe pertence. Cada um deles é realmente um elemento da totalidade do Demos. Enquanto na monarquia, uma parte determina o caráter do todo, na democracia, na qual se parte do homem e se conclui que o Estado é o homem objetivado, realiza-se a verdadeira unidade do universal com o particular. Deixam assim de coexistir, lado a lado, o homem político e o homem não-político, o Estado e a sociedade civil, conteúdo e forma, universal e particular, como se fossem duas existências distintas, separadas, postas em relação antagônica. Suprimida a alienação – o Estado abstrato –, a democracia vem reconciliar o homem consigo mesmo. Agora, cada indivíduo efetiva-se como um ser integral, único, portador da universalidade de sua espécie que, enfim, deixou de ser-lhe estranha. Cada um é um uno-todo, um semideus realizado que, à semelhança do monarca em Hegel, combina harmoniosamente os fins da vida pública com a sua vida particular, sem separar jamais os dois momentos. O reino da felicidade inaugura-se com a vitória dos indivíduos sobre a alienação imposta pelo Estado abstrato. Marx não diz como isso pode ser alcançado. Parece que o Estado é aniquilado, sem mais, pela força da consciência crítica dos homens redimidos, como se a máquina estatal não tivesse uma existência real e uma capacidade de retaliação feroz às pretensões emancipatórias
47
caráter mundano. A desmistificação da neutralidade estatal e o conseqüente
desvelamento de seu caráter de classe é um grande mérito do legado marxista.115
Na obra de Gramsci o estado transcende à mera função repressiva
limitada à sociedade política, incluindo, agora, a sociedade civil, que engloba os
entes privados incumbidos da legitimação do sistema. Este modelo estatal
composto pela relação dialética entre a sociedade civil e sociedade política, recebe
a denominação de estado ampliado. Para Damasceno, essa visão que define o
ente estatal como o somatório entre sociedade civil e sociedade política atende à
orientação básica contida nos Cadernos do Cárcere. Desse modo, quando Gramsci
contrapõe estado e sociedade civil está utilizando o termo estado como sinônimo
de sociedade política. Mantém-se, contudo, a essência de sua formulação ao
destacar que o poder da classe dominante vai além da repressão, além de
enfatizar o equilíbrio dialético entre sociedade civil e sociedade política.116
Entende Damasceno que o estado é um aparelho de centralização
política da classe dominante, no entanto, não padece de uma determinação
mecânica com relação aos interesses econômicos. Segundo ele, é com a releitura
dessas consciências rebeladas. O Estado, num passe de mágica, parece que desaparecerá, ou, melhor dizendo, será reapropriado pela consciência humana desejosa de recuperar sua essência extraviada. Na democracia, a extinção do Estado é substituída pela democracia direta, na qual a gestão dos assuntos públicos dispensa a presença de uma esfera autônoma, separada dos homens comuns. Os homens reintegrados, indivisos, integrais, são o fundamento último da nova ordem. Com a democracia, a sociedade civil enfim liberta-se da tutela do Estado político e torna-se um sujeito. A irracionalidade do regime monárquico cede lugar ao reino da plena racionalidade, fazendo com que forma e conteúdo se identifiquem. Mas como a sociedade civil é apresentada, em sua oposição ao Estado, como um ser indiferenciado, possuidor de um conteúdo único que se extraviara na esfera celestial da política, fica-se com a impressão de que a democracia é a realização de um único sujeito. O Grande Demos surge como uma multidão indiferenciada, o povo indiviso que constitui a sociedade civil homogênea.Como a mediação foi banida para sempre, nada mais natural que essa oscilação brusca entre o singular e o universal, entre o indivíduo infeliz, quando separado radicalmente da universalidade (a vida política, em Marx), e o uno-todo auto-suficiente e feliz, quando, graças à desalienação, reapropria o universal. Sem as mediações sociais, sem o movimento de especificação, a visão marxiana da sociedade civil não consegue iluminar as diferenciações internas, a formação de interesses comuns ou antagônicos, o surgimento das classes sociais etc. Na noite da sociedade civil todos os gatos são pardos e se juntam pela força da consciência subjetiva que faz reconhecer em cada um, a espécie comum a todos. FREDERICO, Celso. O jovem Marx. 1843-1844: origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995, p. 85-88; HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2003; MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Presença. 115
SILVA, 1995, passim. 116
Para Damasceno, “Os elementos do Estado são interpenetrantes e multicondicionantes. Pode haver tanto elementos repressivos numa organização da sociedade civil quanto elementos ideológicos numa entidade tipicamente ligada ao Estado-coerção, como o exército, por exemplo. Sem um mínimo de crença, motivação ou consenso, não há obediência, e sem obediência não há organização militar. E o próprio exército desempenha funções tipicamente ideológicas, especialmente em tempo de paz”. Ibid.
48
de Gramsci feita pelo pensador grego Poulantzas117 que o estado ganha outra
conformação, que possibilita vislumbrar a sociedade política como um espaço de
lutas.
Para Poulantzas, assevera Damasceno, o papel do estado no
capitalismo é o de organizar a classe dominante e o equilíbrio dos compromissos,
sendo, pois, local privilegiado da luta de classes. O estado é tão contraditório
quanto a sociedade, de maneira que o resultado das suas políticas não é,
mecanicamente, fruto exclusivo da vontade das classes dominantes, mas, também,
das relações de poder presentes na sociedade.118
É Poulantzas, portanto, que irá enriquecer a estratégia de Gramsci
quando, ao definir o estado como 'condensação material de uma correlação de
forças entre classes e frações de classes [...]', admite a guerra de posições no
campo do estado – sociedade política. Trata-se de uma superação de Gramsci, a
partir da ampliação do conceito de hegemonia.
[...] a ampliação da hegemonia da classe trabalhadora não abre mão da construção, ainda por dentro da sociedade capitalista, do avanço e reforço das juridicidades no estado e fora dele que garantam tanto as 'regras do jogo' na legalidade bem como a efetividade das leis já reconhecidas e sonegadas pelo poder político vigente.
119
Os juristas orgânicos aproveitam-se dessa tese para fundamentar as lutas
travadas no direito, como se verá a seguir.
1.2.3 Guerra de posição: o conceito de Gramsci
A releitura do marxismo feita por Gramsci permitiu o resgate não-
dogmático do pensamento marxiano, possibilitando a renovação dos movimentos
sociais, populares e de esquerda, especialmente os partidos comunistas europeus
no pós-guerra, além de ser um dos referenciais teóricos mais importantes para
ajudar a pensar um projeto de luta político-cultural de esquerda na América
Latina.120
117
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Tradução Rita Lima. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 118
SILVA, 1995, passim. 119
ARRUDA JR, Edmundo Lima de. Gramsci e o Direito: reflexões sobre novas juridicidades. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de; BORGES FILHO, Nilson (Orgs.). Gramsci: Estado, Direito e Sociedade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 36-37. 120
Sobre Gramsci, Cf: SILVA, 1995, passim; CAUBET, op. cit., p. 349-377; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de janeiro: Campus, 1989;
49
Caubet relata que inicialmente Gramsci alinhou-se aos demais autores
marxistas no que diz respeito à caracterização do estado liberal. Contudo, nos
Cadernos do Cárcere, ele apresentou a sua teoria ampliada do estado,
“denunciadora da falsa noção que representa a separação das sociedades política e
civil, inculcada pelo ideário liberal”. Isso, segundo Caubet, “Por um lado,
complementa a visão marxista, ao utilizar a noção de sociedade política equivalente
ao Estado-coerção. Por outro, supera a estreita visão marxista do Estado como um
„comitê executivo‟ da burguesia”.121
Baseando-se na sociedade capitalista de seu tempo Gramsci dividiu –
ainda que apenas metodologicamente – a superestrutura em dois níveis. De um
lado, encontra-se a „sociedade política‟, isto é, os aparelhos administrativo-
burocrático e político-militar, que exercem a função de dominação, de coerção e de
comando imposto pela força; de outro lado, está localizada a sociedade civil,
constituída pelas instituições encarregadas da elaboração ou da divulgação das
ideologias, de modo a possibilitar a formação do consenso, que serve de base para
as relações de poder.122
Para Damasceno, Gramsci compreendeu a lição proferida por Marx de
que não existe no ser humano uma essência absoluta, dada a priori. O homem é
construído por meio da praxis e ao se construir, constrói também a história. Com
isso, o pensador sardo retira o pensamento marxista da vulgaridade a que havia
sido submetido pela leitura economicista, por ele qualificada como „a doutrina da
inércia do proletariado.‟123
Edmundo Arruda Júnior defende a atualidade do pensamento
gramsciano, destacando a idéia de reformismo-revolucionário, cunhada por
Coutinho, maior estudioso de Gramsci no Brasil. Com essa idéia, salienta-se o
caráter processual da estratégia revolucionária, possibilitada pelo conceito de guerra
de posição.124
Concorda-se aqui com Arruda Jr. quando este aceita como válida a teoria
do conflito de Gramsci, principalmente no que tange à estratégia revolucionária que
GRUPPI, Luciano. O Conceito de hegemonia em Gramsci. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 4. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000. MAESTRI, Mário; CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2001; PORTELLI, 2002, passim. 121
CAUBET, op. cit., p. 354. 122
Ibid., p. 355. 123
SILVA, 1995, passim. 124
ARRUDA JR, op. cit., p. 32.
50
defende a guerra de posição em busca da ampliação dos espaços de hegemonia,
rumo a um projeto social de bases hegemônicas distintas da reinante. Desse modo,
a obtenção da direção da sociedade deve ser vista como momento prévio à
conquista do poder do estado, isto é, antes da dominação do poder político.
Segundo Arruda Jr., a estratégia da guerra de posição é complexa, compreendendo
uma teia de mediações no processo de articulação das lutas políticas em diversos
fronts culturais.125
Gramsci propõe a idéia de guerra de posição em lugar da tradicional
guerra de movimento, que é a guerra em sua acepção mais comun, isto é, no
sentido bélico. Um exemplo clássico de guerra de movimento é o da Revolução
Russa, na qual houve a tomada violenta do poder por parte dos bolcheviques. A
guerra de posição tem um sentido diverso do tradicional; trata-se de uma revolução
cultural, da tomada do poder por meio da ocupação dos diferentes espaços
existentes na sociedade civil e, a partir de Poulantzas, também na sociedade
política. Afirma Ledio Rosa de Andrade que:
[...] a guerra de posição é uma constante busca de posições culturais nas instituições da sociedade civil, com o objetivo de estabelecer uma contracultura à ideologia dominante da ideologia das massas, bem como de difusão de nova visão de mundo, condições para o câmbio e para o
estabelecimento de bloco histórico sólido.126
Ocupar posições ou espaços, esclarece, significa ampliar o vínculo
orgânico dos atores comprometidos com outra visão de democracia e com outros
princípios.127
Andrade cita como exemplo da guerra de posição o golpe militar de 1964,
no Brasil. Após a tomada do poder os militares começaram a difundir a ideologia da
segurança nacional, com a qual buscavam legitimar o novo regime. Em meados da
década de oitenta esse modelo entrou em profunda crise – inclusive pela atuação
dos intelectuais orgânicos –, que culminou na redemocratização do país. Contudo,
em virtude da ausência de consciência de classe, não houve troca do bloco
histórico, sendo eleito pelo Colégio Eleitoral um político conservador, Tancredo
Neves, que, como se sabe, não chegou a assumir a Presidência, o que foi feito pelo
Vice-Presidente José Sarney, aliado histórico da ditadura militar.128
125
Ibid., p. 33. 126
ANDRADE, op. cit., p.123. 127
Ibid.,p.123. 128
Ibid.,p.123.
51
Extrai-se do exposto toda a complexidade da guerra de posição: uma luta
longa, institucional, processual, um verdadeiro “reformismo-revolucionário”, presente
no dia-a-dia, nas lutas cotidianas. Por meio dela, os intelectuais orgânicos procuram
apresentar um novo bloco histórico, difundindo-o, ao mesmo passo em que pelejam
para a dissolução do velho como discurso legitimador da classe dominante,
conquistando a afirmação dos interesses da classe dominada.129
Em síntese, com a guerra de posição Gramsci contrapõe-se à guerra de
movimento. Enquanto esta tenta alterar abruptamente o status quo por meio da
força, a guerra de posição busca a alteração gradual das estruturas de poder,
visando à conquista da hegemonia.
1.2.3.1 Gramsci e o direito
Para Edmundo Arruda Júnior é difícil entender a exata compreensão que
Gramsci tinha do direito. Ora trabalhava o direito numa concepção negativa, de base
positivista, ora positiva, de base jusnaturalista.130 No mesmo sentido, Ferreira
sustenta ser difícil identificar, nos vários trechos dos Cadernos do Cárcere em que
Gramsci se refere ao direito, qual é a sua definição precisa sobre o tema ou a escola
a que se filia. Entretanto, o citado autor deixa claro que na obra de Gramsci o direito
não aparece como mero reflexo superestrutural passivo, mas, sim, como instrumento
de primeira grandeza na manutenção ou alteração das condutas, sendo o estado
consciente da importância que as leis positivas têm no estabelecimento da
hegemonia.131
Diante disso, não se pode mais tratar o direito como um singelo
desdobramento autômato da estrutura econômica, como fazia a ortodoxia marxista,
que não vislumbrava nele nenhuma possibilidade emancipatória, servindo apenas
como instrumento de dominação oriunda da base capitalista.
A função do direito no estado e na sociedade é tornar homogêneo o grupo
dominante e criar um conformismo social útil ao desenvolvimento do grupo
dirigente.132
129
Ibid.,p.124-125. 130
ARRUDA JR, op. cit., p. 36. 131
FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 cavaleiros húngaros: uma leitura dos Cadernos de Gramsci. Brasília: UNB; São Paulo: Hucitec, 1986, p. 259-263. 132
Ibid., p.269.
52
Como Gramsci não vê o direito como um mal em si, como simples forma
de dominação, é possível sustentar, teoricamente, um direito alternativo inspirado
em seu pensamento. Nessa perspectiva, afiguram-se os juristas alternativos como
intelectuais orgânicos, construtores de uma nova concepção de juridicidade, sem
dogmas e verdadeiramente emancipatória.133
Ledio Andrade, pautando-se nas discussões sobre a guerra de posição,
trata da atuação dos juízes de direito como intelectuais orgânicos, comprometidos
com a transformação do bloco histórico134. Adentra-se, com isso, na análise do
direito alternativo, que será detalhada ainda neste capítulo.135
Andrade propõe uma análise da praxis alternativista sob o viés da guerra
de posição. Desse modo, vislumbra-se a politização do cotidiano jurídico, na medida
em que os juristas alternativos, também chamados de orgânicos – influência de
Gramsci –, fazem de suas atividades profissionais tentativas de não permitir o
distanciamento entre a prática jurídica e os problemas sociais. Mescla-se o mundo
jurídico com a sociedade civil.136 Em outras palavras, faz-se uma conciliação
dialética entre ser e dever ser, entre texto e realidade. Não é mais possível dissociar
os textos de normas da realidade circundante.
O bloco histórico atual tem na propriedade privada uma de suas principais
pilastras. A luta alternativista, assevera Andrade, deve ser travada no sentido de
abalar essas estruturas, retirando o seu caráter absoluto. Para isso, sob a égide de
uma Constituição principiológica como a brasileira de 1988, não há mais
necessidade de se sustentar um discurso jusnaturalista. Basta o próprio texto
constitucional, pois é a Constituição que exige da propriedade privada o
cumprimento de sua função social, condicionando o proprietário a utilizá-la visando
não somente aos seus interesses, mas também aos de toda a sociedade.137
Dessa maneira, por meio da guerra de posições travada no âmbito do
judiciário, os juízes alternativos estão tentando transformar o direito, um dos mais
133
ANDRADE, op. cit., p.126. Cf. CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. 134
O conceito de intelectual e de jurista orgânicos será desenvolvido com mais vagar no último capítulo deste trabalho. 135
Ibid., p. 126-127. 136
Ibid., p.130-131. 137
ANDRADE, op. cit., p. 131. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra tem sido de fundamental importância para que o princípio da função social da propriedade não se transforme em letra morta, ganhando normatividade. Cf. COMPARATO, Bruno Konder. A Ação Política do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2003; PAULA, Roberto de. Direito Agrário Constitucional: a propriedade privada à luz da Constituição Federal e da Justiça. Oikos: São Leopoldo/RS, 2007.
53
eficazes aparelhos ideológicos e repressivos do estado, de latifúndio das classes
dominantes, em local de batalhas contra-hegemônicas, tendo como norte a
emancipação humana e a democracia.138
Embora o judiciário tenha sido historicamente utilizado como instrumento
de dominação de classe, isso não impede que, dialeticamente, ele comporte
possibilidades emancipatórias. Em especial, como se verá no próximo capítulo, em
um país como o Brasil, dotado de uma Constituição com alta carga emancipatória
latente e possuidor de um controle misto de constitucionalidade, que permite que
todo o juiz seja, por meio do controle difuso, guardião da Constituição.139 Diante de
tudo isso, é imperioso reconhecer que a luta social condiciona mudanças na
estrutura jurídica.140
É possível, e a prática vem demonstrando, a guerra de posições dentro do
judiciário. Essa guerra é travada pelos juristas orgânicos, que são os trabalhadores
jurídicos comprometidos com a negação do bloco histórico atual e com a construção
de uma alternativa democrática141.
Segundo Andrade, a luta alternativista é pela construção de um novo
bloco histórico, não em termos dogmáticos e doutrinais, mas, sim, num processo
dialético, imprevisível e cheio de incógnitas, no qual “os cidadãos possam fazer sua
própria história.”142
Há dúvidas sobre o alcance da guerra de posição na magistratura e sobre
a possibilidade de se conseguir hegemonia crítica entre os juristas. Contudo, como
assevera Andrade, não se pode negar a existência de juristas críticos, bem como a
necessidade de compreenderem as mudanças e terem ferramentas teóricas para
agir em suas atividades laborais. Trata-se, pois, “da inserção dos juristas nas
138
Ibid., p. 131. 139
Sobre controle de constitucionalidade das leis, Cf: BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004; CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000; MENDES, Gilmar. Controle de constitucionalidade: uma análise das leis 9868/99 e 9882/99. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 11, fev. 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 28 maio 2006; MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998MENDES, Gilmar Ferreira. O Papel do Senado Federal no Controle de Constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa 162 (2004): 149-168; NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988. 140
TIGAR; LEVY, op. cit., p. 275. 141
ARRUDA JR, op. cit., p. 37. 142
ANDRADE, op. cit., p. 132-133.
54
práticas de cidadania, cuja colaboração com o povo possibilitará a reconstrução de
outra direção de seu destino, transformando-o em autor de sua história.”143
Caminha-se, diante do exposto, para o resgate da dignidade normativa do
direito, passando-se a encará-lo a partir de uma nova concepção dogmática de
caráter crítico/emancipador. Assevera Schier que a dimensão epistemológica das
ciências sociais ao abrir espaço para o ser humano, por meio de uma razão
dialógica, estabelecer compromissos e consensos para construir o seu mundo,
descortinou um espaço emancipatório.144
É nesse contexto que surge o direito alternativo, representando a
superação dialética das correntes críticas adstritas à ortodoxia marxista, analisando
a dogmática jurídica a partir de uma perspectiva emancipatória, valendo-se do
ferramental dogmático como arma combativa.145
2. DIREITO ALTERNATIVO: algumas considerações
2.1 Introdução
Compõe-se o pensamento jurídico crítico de inúmeras correntes, cada
qual com as suas características e delineamentos146. Dentre elas, optou-se neste
trabalho pelo direito alternativo, em virtude do reconhecimento de seu relevo no
tratamento do direito como arena das batalhas emancipatórias.
Nessas quase duas décadas de existência, o movimento alternativista tem
cumprido com esmero a árdua tarefa de fazer do judiciário um espaço efetivo de
batalhas em defesa da concretização dos direitos oriundos das lutas populares que
já foram erigidos à condição de direito positivo, mas que ainda continuam sendo
sonegados. Além disso, ocupa lugar de destaque na luta pela superação da visão
143
Ibid., p. 133. 144
É claro, contudo, que as condições reais e históricas da sociedade limitam o potencial emancipatório do direito. SCHIER, 1999, passim. p. 48 seq. 145
CARVALHO, Amilton Bueno. Direito alternativo: teoria e prática. Porto Alegre: Síntese, 1998. p.12. 146
Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2006; MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Lisboa: Estampa, 1988; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao movimento critical legal studies. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005; SOUSA JR, José Geraldo (Org.). Introdução crítica ao Direito. Brasília: UNB, 1993. (Série O direito achado na rua); WARAT, Luiz Alberto. Obras completas. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 3 v.
55
monista de direito, abrindo caminho para o reconhecimento de outras formas de
juridicidade que não passem pela mediação estatal.
Inúmeros avanços na jurisprudência brasileira derivam das disputas
travadas na esfera jurídica pelo movimento alternativista. A força do movimento foi
tamanha que ele não pôde ser ignorado nem mesmo pelos mais conservadores
juristas. Ousa-se afirmar que o debate jurídico da primeira metade dos anos noventa
no Brasil foi travado com o direito alternativo, seja para enaltecê-lo, seja para criticá-
lo.147
Por certo, o movimento não tem mais as mesmas características que
tinha nos anos noventa, quando do seu início. Muitas foram as transformações
sofridas. A busca inicial por uma teoria genuinamente alternativista, por exemplo,
deu lugar a uma pluralidade de enfoques teóricos, oriundos das mais diversas
matrizes epistemológicas. Contraria a própria essência alternativista o
enclausuramento dogmático do direito alternativo a uma única possibilidade de
análise do fenômeno jurídico. A diversidade de possibilidades teóricas é uma das
maiores riquezas do movimento, destacando-se como importante arma na luta para
a retirada do direito da condição de monopólio do pensamento conservador.
Comparando-se o momento atual do direito alternativo com o seu furor
inicial, não há como negar que houve certo esvaziamento. Considera-se, aqui, no
entanto, que esse enxugamento fazia parte de uma necessária acomodação que,
inexoravelmente, assolaria o movimento depois da excitação inaugural. Alguns
importantes nomes que militavam nas fileiras alternativistas, não mais empunham a
bandeira. Os motivos para isso são variados. Não se pretende, por óbvio, analisar
exaustivamente essas possibilidades, mas, tão-somente, aventar algumas hipóteses
para reflexão.
Essa perda de organicidade do grupo foi influenciada, em parte
significativa, pela realocação dos diferentes atores do movimento em outros espaços
da luta jurídico-política. Sob o manto do direito alternativo uniram-se pessoas que
empunhavam bandeiras teóricas, visões de mundo e interesses muito variados.
Naquele momento histórico, o direito alternativo representava um elo, um canal
147
A obra que faz a análise mais completa sobre o direito alternativo é a obra de Ledio Rosa de Andrade, “Introdução do Direito Alternativo Brasileiro” Cf. ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. Sobre a temática, conferir as inúmeras obras constantes na referência bibliográfica do presente trabalho.
56
coletivo, uma voz forte para esses diferentes grupos; abertos outros os espaços,
deve-se encarar com naturalidade o reposicionamento de parte dessas forças.
O fenômeno vivido pelo movimento alternativista assemelha-se ao que
aconteceu com o movimento estudantil nos anos sessenta, quando este era voz de
várias correntes ideológicas e movimentos sociais, que se aproveitavam da
organicidade dos estudantes para fazerem ecoar uma voz que, isolados, ainda não
possuíam. Posteriormente, cada segmento continuou a luta nos seus diferentes
espaços.
Desse mesmo modo, muitos juristas que perfilhavam as fileiras
alternativistas continuam militando para a ampliação dos espaços de lutas populares
no ambiente jurídico, trabalhando incansavelmente para a construção de um
pensamento jurídico e de uma práxis jurídica emancipatórios, fazendo de suas
profissões verdadeiras trincheiras em busca da emancipação humana. Contudo,
substituíram o “rótulo” de alternativista pelo de garantista, constitucionalista,
ambientalista, etc.148
Não se pode desconsiderar também a existência de alguns juristas que se
declaravam alternativas, lutadores do povo, mas, ao que parece, não eram nada
disso, cerrando, na atualidade, fileiras em favor da reprodução do estado de coisas
que outrora criticavam.
Com isso, poder-se-ia perguntar: perdeu o sentido o discurso
alternativista? O fato de o direito alternativo constituir um dos marcos teóricos deste
trabalho já antecipa a posição do autor sobre esse assunto, que será retomado com
mais vagar ao longo do texto. Entende-se aqui que a alternatividade é,
fundamentalmente, uma postura do jurista em relação ao mundo que se quer
construir e ao papel que o direito ocupará nessa construção.
Conclui-se, com base no exposto, que a conformação teórica do direito
alternativo tem por essência a prática de diversas teorias. É nesse contexto que a
busca de ferramentas de trabalho na teoria constitucional, proposta por este
trabalho, se afigura como de fundamental importância para as reflexões
alternativistas. Partindo-se de uma Constituição como a brasileira de 1988,
albergadora de inúmeros direitos e garantias fundamentais, frutos de imensa luta
das classes espoliadas, faz-se necessário o desenvolvimento de perspectivas
148
O Professor Antonio Carlos Wolkmer faz um interessante inventário dos diversos nomes do pensamento jurídico crítico brasileiro e estrangeiro: Cf. WOLKMER, 2006, passim.
57
teóricas que possibilitem a concretização integral da Constituição, sob pena de ela
se tornar meramente simbólica no que tange aos direitos das classes exploradas,
enquanto a sua efetividade plena está reservada ao atendimento dos privilégios das
elites149.
Como já tratado na introdução, na atualidade, em alguns ambientes
acadêmicos as discussões alternativistas são consideradas fora de moda,
superadas. Infelizmente, questões acadêmicas ainda são tratadas como vestuários,
que entram e saem de moda de acordo com as novas tendências da estação. O
direito alternativo só deixará de fazer sentido quando os problemas que ele visa
combater deixarem de existir ou se restar comprovada a sua total ineficácia para a
construção de um novo direito. Não é isso, no entanto, que essas quase duas
décadas de história têm demonstrado. Enquanto o direito ainda for latifúndio do
pensamento conservador, espaço de perpetuação do status quo, o direito
alternativo, tal qual a camisa branca e o terno escuro, ainda terá lugar de destaque
nas prateleiras, muitas vezes empoeiradas, do conhecimento jurídico.
2.2 Histórico
2.2.1 Antecedentes teóricos
O direito alternativo não surgiu do nada. É fruto de intenso processo de
transformação dialética do direito, pautando-se em uma sólida tradição do
pensamento jurídico crítico estrangeiro e nacional. Inspirou-se em diversas correntes
críticas, em especial nas correntes italiana, francesa e espanhola do uso alternativo
do direito e da magistratura democrática. Cerrando fileiras no movimento estão
juristas marxistas, neomarxistas, humanistas dialéticos, sociólogos do direito,
corrente psicanalítica, teologia da libertação, entre outros150.
149
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo. In: LEMBO, Cláudio. Uma vida dedicada ao Direito: homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, o Editor dos Juristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41- 43. 150
Profundo inventário sobre o pensamento jurídico crítico brasileiro pode ser encontrado em: WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
58
No Brasil, dentre os principais antecedentes teóricos do direito alternativo,
destacam-se: o “Direito Achado na Rua”, desenvolvido por Lyra Filho151 e hoje
continuado por José Geraldo Sousa Júnior, da Universidade de Brasília.152 No plano
da sociologia jurídica, tem-se a sólida obra do professor uspiano José Eduardo
Faria, com investigações que vão desde a análise emancipatória da prática judicante
até, nas obras mais recentes e de viés menos crítico, reflexões sobre as imbricações
entre direito e economia globalizada.153 Merece destaque a zetética trabalhada por
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a partir do método tópico problemático desenvolvido
por Theodor Viehweg, além de suas contribuições ao desenvolvimento da idéia de
função social da dogmática jurídica.154 A criminologia crítica/radical, com os
professores Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos e Vera Regina Andrade, também
é fonte de inspiração para o direito alternativo, à medida que possibilita um novo
olhar sobre a criminalidade, desnudando o caráter seletivo do sistema penal155.
Outra forte influência veio dos estudos jurídicos críticos desenvolvidos por
Luiz Fernando Coelho156, um dos principais inspiradores do alternativismo quando,
ainda nos anos oitenta, lecionava no Curso de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC), berço teórico do direito
alternativo. O professor e psicanalista maranhense Agostinho Ramalho Marques
Neto também apresenta importantes contribuições ao pensar o direito a partir de
categorias lacanianas, conciliando, assim, direito e psicanálise.157
151
Cf. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Brasília: Brasiliense, 1991; LYRA, Doreodó Araújo. Desordem e processo: estudos em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: SAFE, 1986; CHAVES, Leonardo Rossano Martins. Filosofia jurídica brasileira e Humanismo dialético: Roberto Lyra Filho. In: WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Fundamentos do humanismo jurídico no Ocidente. Barueri: Manole: Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2005. 152
SOUSA JR, 1993, passim. 153
FARIA, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999; FARIA, 1988, passim. FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 1992. 154
Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. 155
Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003; BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 9ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2004; SANTOS, Juarez Cirino. Criminologia Radical. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; 156
COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 157
Cf. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Subsídios para pensar a possibilidade de articular Direito e Psicanálise. In: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho et. al. Direito e Neoliberalismo. Curitiba: EDIBEJ, 1996; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. Ainda sobre a conexão entre o direito e a psicanálise, conferir: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada entre direito e psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
59
Em que pese toda a divergência que havia no CPGD/UFSC entre os
alternativistas e os waratianos, não se pode negar a enorme influência da obra de
Luiz Alberto Warat para a construção de um pensamento jurídico crítico no Brasil.
Warat auxiliou, sobremaneira, na retirada do direito da mesmice que o dominava,
misturando-o ao cinema, à filosofia, à literatura e à psicanálise, o que resultou em
obras como: A Ciência Jurídica e seus dois maridos, O Amor Tomado pelo Amor,
Manifesto do Surrealismo Jurídico, dentre inúmeras outras.158
Ledio Rosa de Andrade também destaca o papel de João Batista
Herkenhoff159 e de Roberto Aguiar,160 que trouxeram – e ainda trazem –
fundamentais contribuições para a construção de um pensamento jurídico crítico,
especialmente nas lutas travadas para a restituição da democracia em terra brasilis.
Andrade cita o memorável Congresso Nacional de Magistrados, em 1975, no qual
Herkenhoff propôs uma moção pedindo a volta do estado de direito – não incluiu a
palavra democrático – e foi derrotado de forma esmagadora, recebendo o apoio de
três ou quatro congressistas. Tal atitude demonstra a conivência de parcela da
magistratura brasileira com a ditadura militar.161
No cenário internacional o direito alternativo sofreu grande influência do
movimento italiano do uso alternativo do direito, capitaneado, principalmente, por
Luigi Ferrajoli e Pietro Barcelona162. Esse movimento propunha uma releitura do
direito vigente à luz de um novo marco interpretativo, que ressaltasse o seu caráter
emancipador em detrimento do usual viés opressor. A proposta pressupunha,
portanto, uma mudança no sentido atribuído às normas jurídicas sem que houvesse
a necessidade de mudança da legislação. A influência do uso alternativo do direito
foi tamanha, que o direito alternativo tem uma de suas tipologias explicitamente
inspirada nele, como se verá posteriormente.
Ferrajoli, um dos precursores do uso alternativo do direito, com a
publicação da obra Direito e Razão, no final dos anos oitenta, delineou os pontos
158
Cf. WARAT, 2004, passim. 159
HERKENHOFF, 1999, passim; HERKENHOFF, João Baptista. O direito dos códigos e o direito da vida. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1993. HERKENHOFF, João Baptista. Para gostar do direito. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1994. 160
Cf. dentre inúmeras obras AGUIAR, Roberto A. R. de. O que é justiça. 5. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1999; AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-ômega, 1984. 161
ANDRADE, Ledio Rosa. O que é Direito alternativo? Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p.14 e ss. 162
Cf. BARCELLONA, Pietro; COTTURRI, Giuseppe. El Estado y los Juristas. Barcelona: Editorial Fontanella, 1976.
60
básicos do chamado garantismo jurídico163, que goza de crescente prestígio no
direito brasileiro, possibilitando, dentre outras coisas, repensar o papel do juiz, que
deve ser visto como garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos contra
qualquer maioria, bem como delinear um conceito substancial de democracia
limitada pelos direitos fundamentais.164
A obra do professor argentino radicado no México, Oscar Correas,
também foi um excelente substrato para o desenvolvimento do direito alternativo.
Profundo estudioso de Kelsen, além de rigoroso pesquisador das teorias críticas, a
sua obra sempre teve grande acolhida entre os alternativistas, sendo ele presença
constante nos congressos de direito alternativo. Os professores franceses Michel
Mialle165 e André-Jean Arnaud166, ambos com ótimo trânsito no pensamento jurídico
crítico brasileiro, foram e continuam sendo marcos teóricos cruciais.
A tese da constituição dirigente desenvolvida pelo constitucionalista
português Gomes Canotilho teve grande impacto sobre o direito constitucional
brasileiro, fazendo de seu autor presença obrigatória nos debates jurídicos
nacionais, principalmente, em razão da Constituição Federal de 1988 seguir o
modelo dirigente167. Em meados dos anos noventa Canotilho publicou um artigo em
que tecia críticas à tese da constituição dirigente, o que provocou acesa polêmica
entre os constitucionalistas. Contudo, como salienta Lenio Streck e o próprio
163
Sobre o Garantismo de Ferrajoli, Cf. CADEMARTORI, Sérgio. Estado, direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999; CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed. ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002; CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003; ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003. (Teoria Geral do Direito) 164
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução Perfecto Andrés Ibañez y Andrea Greppi. 2. ed. Madrid: Trotta, 2001a; FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001b; FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los Derechos Fundamentales: debate con Luca Baccelli et. al. Madrid: Trotta, 2001c; FERRAJOLI, Luigi. Juspositivismo crítico y democracia constitucional. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/90250622101470179 isonomia16/isonomia16_01.pdf>. Acesso em: 24 junh. 2006. 165
MIAILLE, 1988, passim. 166
Cf. ARNAUD, André-Jean. O Direito Traído pela Filosofia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. ARNAUD, André-Jean (org). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar,1999. 167
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
61
Canotilho, o constitucionalismo dirigente continua adequado ao Brasil, país de
modernidade tardia168.
Outro português de grande importância para o pensamento jurídico crítico
é o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, autor, dentre muitos outros trabalhos de
peso, de pesquisas de campo fulcrais para a compreensão do fenômeno do
pluralismo jurídico, tal qual a tese sobre o Direito de Pasárgada. Boaventura
participa intensamente do debate político e acadêmico brasileiros, sendo sempre
presença marcante no Fórum Social Mundial, discutindo e apresentando propostas
para um novo mundo possível169.
Os juristas espanhóis Joaquim Herrera Flores, Perfecto Ibañez e Modesto
Saavedra López também tiveram grande influência no movimento alternativista,
possibilitando uma boa interlocução entre o direito alternativo brasileiro e o
pensamento jurídico europeu.170 Carlos Cárcova e Alícia Ruiz, importantes juristas
argentinos, também não podiam ficar de fora desta lista, pela inegável repercussão
de seus trabalhos entre os juristas críticos brasileiros.171
Por fim, as teorias concretistas de inspiração tópica, dos
constitucionalistas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle, cujas
obras serão objeto de análise no capítulo segundo deste trabalho, também
influenciaram, de certa maneira, um atuar crítico no direito. É claro que antes de
1988 essa influência era diminuta, em função do insignificante papel desempenhado
pelo direito constitucional em um país imerso numa ditadura militar.
De modo algum se pretendeu aqui abarcar todas as vertentes teóricas
que influenciaram o direito alternativo. Objetivou-se, tão-somente, demonstrar, a
partir de alguns exemplos, que o direito alternativo não surgiu do nada, tendo como
antecedentes sólidas bases teóricas.
168
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 169
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1988.SANTOS, 2001, passim; SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 11. ed. Porto Alegre: Edições Afrontamento, 1999. 170
CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de (Orgs.). Direito alternativo brasileiro e pensamento jurídico europeu . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 171
CÁRCOVA, Carlos Maria. Direito, política e magistratura. Tradução Rogério Viola Coelho e Marcelo Ludwig Dornelles Coelho. São Paulo: LTr, 1996.
62
2.2.2 Um breve histórico
A articulação inicial do direito alternativo deu-se em torno de um grupo de
juízes do Rio Grande do Sul que debatia propostas para a Assembléia Nacional
Constituinte que culminou na Constituição Federal de 1988. Perceberam esses
juízes que tinham em comum grande insatisfação com o divórcio entre direito e
justiça, muitas vezes presente na aplicação do modelo jurídico dominante. Para
tentar responder a isso criaram um grupo de estudos, que se reunia na sede
campestre da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), visando
buscar alternativas para a superação do modelo liberal-individualista-normativista de
direito.172
O grupo foi crescendo, ganhando novos adeptos. Como a maioria dos
membros eram juízes, as críticas ao modelo dominante de direito não ficaram
apenas no plano teórico; ganharam rapidamente concretude, aterrissando nas
atividades forenses dos participantes. Com isso, em pouco tempo, foram notados,
pois as suas decisões em muito se diferenciavam dos posicionamentos doutrinários
e jurisprudenciais dominantes.
A repercussão foi tanta que levou a Porto Alegre o jornalista Luiz Maklouf,
do paulistano Jornal da Tarde, interessado em fazer uma matéria com esse grupo de
juízes que tinham na justiça, e não na lei, seu horizonte interpretativo/aplicativo do
direito. Do material coletado em horas de entrevistas nos gabinetes dos juízes e em
amistosas rodas de chimarrão e mesas de bares, surgiu o artigo intitulado “Juízes
gaúchos colocam direito acima da Lei”, publicado em 25 de outubro de 1990. A
reportagem buscava desmoralizar o grupo de estudos e, em especial, o magistrado
Amilton Bueno de Carvalho, hoje desembargador. Maklouf utilizou-se de conversas
privadas, gravadas em momentos de descontração, nas quais foram utilizadas
expressões que, retiradas do contexto, tornavam caricatas a imagem dos juízes
orgânicos gaúchos.
No entanto, segundo Ledio Rosa de Andrade, essa reportagem foi
submetida “à teoria do efeito perverso”: visava-se um fim, mas o resultado levou a
outro, diametralmente oposto; em linguagem popular, “o tiro saiu pela culatra”. Com
a publicação da matéria outros juristas que também estavam angustiados com a
172
Sobre um histórico do direito alternativo Cf. ANDRADE, 1996, passim.
63
ineficácia do direito dominante em dar respostas à deplorável condição de injustiça
social a que está submetida parcela significativa da população brasileira, souberam
da existência do trabalho desenvolvido pelos magistrados gaúchos, solidarizando-se
a eles173.
Maklouf confundiu a disciplina de direito alternativo que Amilton lecionava
com o movimento de juízes orgânicos gaúchos, taxando-os, equivocadamente, de
juízes do direito alternativo. Surgiu daí a utilização da expressão direito alternativo
para se referir ao grupo de juristas orgânicos. Importante esclarecer que o próprio
movimento alternativista considera que o nome direito alternativo não traduz a
efetiva práxis dos juristas orgânicos, contudo, como o nome já havia se consolidado,
decidiram mantê-lo. Porém, até hoje a utilização do nome tem colocado o movimento
na mira de infundadas e apressadas críticas.
Como fruto dessa articulação propiciada pela divulgação em âmbito
nacional do grupo de magistrados gaúchos, em 1991, entre os dias 04 e 07 de
setembro, foi realizado, em Florianópolis, o “I Encontro Internacional de Direito
Alternativo”, reunindo milhares de pessoas, entre juízes de direito, advogados,
promotores de justiça, professores universitários e estudantes.
O crescimento do movimento foi vertiginoso, alastrando-se por todo o
Brasil, América Latina e parte da Europa, tornando-se objeto de inúmeros grupos de
estudos, artigos científicos, livros, seminários, monografias de conclusão de curso,
dissertações e teses, sendo, inclusive, disciplina curricular em algumas faculdades
de direito e escolas da magistratura.174
Importante salientar que a Editora Acadêmica foi um espaço profícuo para
a divulgação dos trabalhos alternativistas, destacando-se os clássicos Lições de
Direito Alternativo e Revista de Direito Alternativo.
Pode-se considerar que a reportagem do Jornal da Tarde, o Encontro
Internacional de Florianópolis e o lançamento do livro Lições de Direito Alternativo I,
pela Editora Acadêmica, foram os grandes marcos fundacionais do movimento do
direito alternativo brasileiro.
173
ANDRADE, 1996, p. 106. 174
No CPGD/UFSC, com a licença nos últimos anos do Professor Edmundo Arruda Jr., a disciplina de Direito Alternativo não foi mais ofertada. Espera-se que com o retorno do Prof. Edmundo, já concretizado, a disciplina volte a ser oferecida. Sobre a temática do direito alternativo há no âmbito do CPGD/UFSC a disciplina de “Pluralismo Jurídico”, que atrai sempre muitos estudantes, ministrada com maestria pelo Professor Antonio Carlos Wolkmer, no último trimestre letivo de cada ano.
64
2.2.3 Alguns esclarecimentos prévios: o que não é direito alternativo
Talvez o principal problema enfrentado pelo movimento do direito
alternativo em sua caminhada histórica seja a falta de ética e de responsabilidade
acadêmico-científica de uma parte significativa de seus detratores. Grande parcela
das críticas sofridas pelo movimento origina-se de pessoas – inclusive grandes
vultos do direito brasileiro – que nada ou muito pouco leram sobre o tema antes de
emitirem as suas opiniões ou tirarem as suas conclusões. Como exemplo disso, cita-
se o destacado professor Goffredo Telles Júnior que, em seu livro autobiográfico,
tece duras críticas ao direito alternativo com base, unicamente, no artigo do Jornal
da Tarde supracitado, não citando como fonte de pesquisa nenhuma obra
alternativista.175 Esse tipo de atitude não é condizente com o trabalho de um
investigador científico. Exige-se dele um debruçar constante sobre o seu objeto de
estudo, esquadrinhando-o, perquirindo-o das mais variadas formas, sob os mais
variados ângulos, objetivando, sempre, entendê-lo a partir de seus referenciais
históricos e axiológicos.176
Essa desoladora, antiética e freqüente conduta que “[...] ressoa como um
eco dessa obsoleta hermenêutica jurídica do século XIX177”, exige que essa breve
incursão pelos pressupostos teóricos do direito alternativo parta justamente daquilo
que ele não é.
O direito alternativo, ao contrário do que sustentam os seus críticos, não é
contrário à lei e nem contrário à dogmática jurídica, ao revés, vale-se do que há de
mais elevado em termos de direito positivo, a Constituição Federal, para
fundamentar a sua práxis. Do mesmo modo, aproveita-se da dogmática jurídica
como uma importante aliada na tarefa de concretizar direitos. O Desembargador
gaúcho e um dos mais destacados alternativistas, Amilton Bueno de Carvalho,
afirma com clareza que “não se vislumbra sociedade sem normas. Aliás, às vezes,
leis más são melhores do que a ausência de leis.”178 Como bem coloca Luis Roberto
Barroso, “fruto do debate político, ela (a lei) representa a despersonalização do
175
TELLES JUNIOR, Goffredo. A folha dobrada: lembranças de um estudante. 2. reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 158-164. 176
FONSECA, Edson Pires da. Fundamentos teóricos e filosóficos do direito alternativo. 2003. Trabalho de conclusão de curso (Monografia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2003. 177
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 237. 178
CARVALHO, Amilton Bueno. Direito alternativo em movimento. 2. ed. Niterói, RJ : LUAM, 1997. p. 62.
65
poder e a institucionalização da vontade política. O tempo das negações absolutas
passou. Não existe compromisso com o outro sem a lei.”179
Contudo, não se pode mais pensar, à maneira dos positivistas, que direito
é sinônimo de lei ou, até mesmo, que a norma jurídica está pronta e acabada com a
promulgação da lei escrita. Para o constitucionalista alemão Friedrich Müller, que
será estudado no próximo capítulo, o texto da norma é apenas a ponta do iceberg
normativo.
Quando o direito alternativo julga contra legem, não o faz de maneira
arbitrária ou ao arrepio do direito; muitas vezes a decisão contraria a literalidade da
lei, mas está em perfeita consonância com outros métodos de interpretação, como o
teleológico e o sistemático. Também julga contra a lei quando esta contraria
princípios e regras albergados na Constituição Federal. Age, assim, em harmonia
com a idéia de supremacia hierárquica da constituição, segundo a qual uma norma
infraconstitucional contrária à Magna Carta e que não possa ser reaproveitada por
meio do mecanismo da interpretação conforme, deve ser defenestrada do
ordenamento jurídico. Atua, também, em sintonia com as idéias de filtragem
constitucional e normatividade dos princípios, construções seminais da dogmática e
da teoria do direito para se trabalhar com um modelo constitucional principiológico,
como o brasileiro180.
Reafirma-se, portanto, que o direito alternativo está em perfeita sintonia
com a mais sólida e avançada dogmática jurídica e que não nega a aplicação de
uma lei de modo arbitrário e inconseqüente, como tentam passar os seus críticos; só
não a aplica cegamente, por exigência da própria dogmática jurídica e da construção
hierárquica do direito positivo, que criam regras para aplicação e interpretação
normativas.
Valem-se os alternativistas dos ferramentais dogmáticos para a efetivação
da justiça e do direito. Não se pode confundir, como fazem os leguleios, direito e lei:
a rejeição a esses subprodutos do positivismo, que já serviram de disfarce para
“autoritarismos de matizes variados,”181 em nada se assemelha à negativa pura e
simples da lei.
179
BARROSO, op. cit., p. 32. 180
Esses pontos serão desenvolvidos com vagar no próximo capítulo. 181
BARROSO, op. cit., p. 40.
66
No Brasil, na verdade, quem contraria constantemente a lei são os juristas
tradicionais, ditos legalistas, quando selecionam qual legislação querem aplicar.
Negam freqüentemente eficácia a textos de normas constitucionais, enquanto dão
primazia a textos de normas infraconstitucionais, simplesmente porque essas são
mais favoráveis à visão de mundo que, camufladamente, defendem. A negativa da
lei pelos juristas tradicionais é tão evidente que o próprio direito alternativo tem como
uma de suas frentes de atuação a positividade combativa, que será estudada
adiante, que nada mais é do que o reconhecimento da necessidade de se travar
uma luta constante na esfera jurídica para que sejam aplicadas as leis que trazem
em seu bojo conquistas históricas das classes sociais exploradas – por exemplo, o
Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, além da
própria Constituição Federal, “Lei das leis”, ápice da pirâmide normativa – e que são
ignoradas pelo status quo.
Os juristas tradicionais são legalistas ao defenderem a efetividade dos
dispositivos normativos que garantem privilégios às elites que dirigem e exploram
esse país desde a sua invasão pelos portugueses no século XVI, mas passam ao
arrepio da lei quando essa incorpora conquistas das classes sociais que buscam
emancipação.182
O que o senso comum teórico tem chamado de julgar contra legem, em
muitos casos, como já dito, nada mais é do que julgar contra a literalidade da lei. A
interpretação meramente literal já era considerada pobre sob os auspícios da Escola
da Exegese, no início do século XIX, que chegou a defender que a interpretação
literal não dava conta da complexidade da sociedade francesa de então. Acentua-se
que isso ocorreu há mais de duzentos anos e, mesmo assim, inúmeros profissionais
do direito ainda reduzem a aplicação do direito à interpretação literal das leis.
Desconsidera-se, ao agir assim, os próprios métodos clássicos de interpretação da
Escola Histórica, segundos os quais a interpretação deve ser não só literal, mas
também histórica, teleológica e sistemática.
Do mesmo modo que se enfatizou que o direito alternativo não nega a lei,
ele também não defende, como sustentam alguns de seus críticos, o livre-arbítrio
dos juízes, ao contrário, exige deles que fundamentem racionalmente as suas
decisões. Além disso, não se restringe às fundamentações superficiais, que evocam
182
FONSECA, 2003, passim.
67
como fundamento decisório, de maneira vazia, artigos de leis, criando-se a ilusão de
que se está decidindo com base exclusiva na lei, escamoteando as razões de fundo
pelas quais se optou por um e não por outro entendimento possível para o caso.
Exige-se, como bem aclara o desembargador gaúcho Rui Portanova, a
motivação ideológica da sentença, isto é, a explicitação das condicionantes
históricas, políticas, morais, religiosas e econômicas que influenciaram na
decisão183. Depois de Kelsen, no capítulo oitavo da Teoria Pura do Direito184, afirmar
que uma norma jurídica comporta mais de uma possibilidade de interpretação válida,
não havendo mecanismo no direito capaz de dizer qual é a interpretação correta,
fundamentações de decisões jurídicas nas quais os julgadores sustentam tão-
somente que julgaram com base no artigo tal, inciso tal, da lei tal, pouco ou nada
dizem, pois não esclarecem o motivo pelo qual se optou por essa interpretação e
não por inúmeras outras que aquele texto de norma jurídica também comportava.
Os alternativistas não advogam poderes supremos e arbitrários para os
juízes nem mesmo quando entendem que eles estão autorizados a não aplicar
determinada lei, visto que a referida autorização decorre de critérios objetivos
albergados tanto no ordenamento jurídico quanto na própria dogmática. Ferrajoli é
categórico ao sustentar que a sujeição do juiz à lei não é, como no positivismo,
sujeição à letra da lei, mas, sim, sujeição à lei válida, isto é, coerente com a
constituição185.
O fato de uma norma jurídica comportar mais de uma interpretação válida
abre ao intérprete a discricionariedade para escolher qual dos sentidos comportados
por aquele texto possibilita melhor solução para o caso, devendo-se considerar os
aspectos teleológicos, sistemáticos, hierárquicos, principiológicos, bem como
inúmeros outros procedimentos hermenêuticos úteis à decisão. A mera subsunção
lógica de um fato a uma previsão normativa não dá conta da complexidade do
fenômeno jurídico.
Como a discricionariedade é inexorável à interpretação, a postura
alternativista de motivar ideologicamente as decisões afigura-se primordial para a
vedação do arbítrio, pois obriga o intérprete a explicitar as reais motivações de sua
183
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. 184
KELSEN, op. cit., p. 391. 185
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução Perfecto Andrés Ibañez y Andrea Greppi. 2. ed. Madrid: Trotta, 2001a, p.26.
68
opção por um ou outro sentido interpretativo da norma. No momento histórico atual é
inadmissível, diante dos os avanços do conhecimento jurídico, em especial da
hermenêutica, tolerar a velha máxima de Montesquieu, segundo a qual o juiz é
“apenas a boca que pronuncia as palavras da lei”. Essa postura permite o
encobrimento dos critérios de decisão, servindo de ante-sala para o arbítrio.
Outro mito relacionado ao direito alternativo é o que afirma que ele ataca
os postulados da segurança jurídica, gerando incertezas ao negar a aplicação de
determinados dispositivos legais. Nada mais equivocado. São os juristas tradicionais
que atentam contra a segurança jurídica ao insistirem na aplicação de leis que
contrariam a Constituição Federal, quando essas mantêm privilégios dos grupos
sociais dominantes. Como exemplo do desrespeito de parcela significativa do
Judiciário à normatividade constitucional, traz-se à colação passagem citada por
Andreas Krell, pautando-se em Fernando Scaff, ao tratar da inefetividade dos
direitos sociais no Brasil:
a pouca experiência dos membros do Poder Judiciário no manejo dos princípios constitucionais termina subvertendo a lógica jurídica e colocando a população refém de normas infralegais editadas sem qualquer preocupação com esses princípios superiores, no mais das vezes, com elas conflitantes
186.
Portanto, ao negar aplicabilidade às normas infraconstitucionais que
contrariam a Constituição os alternativistas, repisa-se, não estão desrespeitando a
lei, mas, tão-somente, cumprindo a exigência da própria estrutura do ordenamento
jurídico, organizado de maneira hierárquica, num escalonamento de normas
jurídicas, no qual as normas inferiores somente serão válidas se estiverem em
conformidade com as normas superiores, encontrando na Constituição o ápice
normativo. Diante disso, quem então avilta a segurança jurídica?
Os chamados juristas tradicionais também desrespeitam a segurança
jurídica quando se escondem por detrás de uma pseudoneutralidade axiológica,
afirmando extrair a “verdade jurídica” a partir da aplicação de um método neutro,
num processo meramente subsuntivo.187
186
KRELL, Andréas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional "comparado". Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002, p.73. 187
Segundo Friedrich Müller, “a „subsunção‟ é apenas aparentemente um procedimento lógico formal; na verdade, é um procedimento determinado no seu conteúdo pela respectiva pré-compreensão de dogmática jurídica”. MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. Tradução Peter Naumann. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2000a. p. 62.
69
Como bem ensina Roberto Lyra Filho, citado por Azevedo, “toda
neutralidade é filha do status quo, pois lhe dá campo livre, enquanto se recusa a
tomar atitude.”188 Em outras palavras, o “não se posicionar” já é uma tomada de
posição em favor da manutenção do estado de coisas.
Desde, pelo menos, a publicação por Hans-Georg Gadamer,189 em 1960,
da obra “Verdade e Método”, é cristalino que o intérprete vê o objeto a ser
interpretado a partir dos seus pré-conceitos, de sua historicidade, vivencialidade e de
suas opções políticas, religiosas e ideológicas. Superado o mito da neutralidade do
direito e de seus intérpretes, deve o jurista alternativo definir claramente o seu
compromisso ideológico, assumindo a dimensão ideológica do discurso jurídico,
motivando a decisão judicial com a ideologia que usa de pano de fundo. Assume,
assim, qual o tipo de sociedade quer construir e, fundamentalmente, em qual lado da
luta de classes está posicionado.190
Dessa maneira, quando o jurista tradicional diz estar julgando com
neutralidade, está ocultando – ainda que inconscientemente – suas posições. Isso
sim gera insegurança. Nunca se sabe o motivo pelo qual, dentre as diversas
interpretações possíveis e todas elas válidas que aquele texto de norma jurídica
comporta, escolheu aquela e nem a quem está tentando privilegiar, ou que tipo de
sociedade está tentando construir ao assim agir. Clèmerson Clève afirma que “pior,
todavia, do que o que pretende decidir ocultando a ideologia é aquele que decide
ideologicamente imaginando que age de modo neutro, imparcial, e coerente com a
verdade.”191
Segundo Azevedo, o papel criativo do juiz é fundamental para a
segurança jurídica. Para ele, “sem dúvidas, a percepção e o sentimento da vida e da
situação do povo pelos magistrados fortalecerão a segurança jurídica, a menos que
seja associada aos interesses de uns poucos e dissociada dos interesses da
maioria.” Tem-se, com isso, que “o caminho para a segurança jurídico-social acha-se
exatamente no adequado encaminhamento dessa tensão imanente ao processo
histórico.” 192
188
AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989. p. 76. 189
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 190
CLÈVE, 1995, passim. 191
Ibid., p. 46-47. 192
AZEVEDO, op. cit., p. 74-75.
70
A segurança jurídica plena, cultuada pelo positivismo jurídico, é
inatingível, figurando como um dos mitos da modernidade jurídica. Todavia, a
impossibilidade de sua plenitude não deve servir de empecilho para que se trabalhe
pela construção do máximo de segurança possível. Em outras palavras, a
impossibilidade de objetividade plena no direito não deve afastar os juristas da
busca da objetividade possível. Ressalva-se, porém, com Herkenhoff, que “jamais se
poderá, em nome da segurança, consagrar a injustiça ou justificar a sentença
contrária ao bem comum.193”
Com o intérprete assumindo o seu lugar no processo hermenêutico a
segurança jurídica passa a ter novos contornos. No entendimento de Edmundo
Arruda Júnior e Marcus Fabiano Gonçalves, a segurança jurídica deve ser vista na
atualidade como “o direito a ter clareza a respeito das pré-compreensões desde as
quais somos julgados.”194 Assim, para além da mitologia, a única possibilidade de
segurança jurídica possível é saber a partir de quais pré-compreensões se está
sendo julgado, isto é, ter clareza do motivo pelo qual dentre as diversas
interpretações válidas que um texto de norma jurídica comporta, o juiz optou
justamente por aquela. E isso, insiste-se, os alternativistas fazem muito bem ao
motivarem ideologicamente a sentença.
2.3 Tipologia proposta
Neste tópico será apresentada a tipologia – frentes de atuação – proposta
para o direito alternativo por dois de seus principais atores: o desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Amilton Bueno de Carvalho – uso
alternativo, positividade combativa e direito alternativo em sentido estrito –, e o
professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Edmundo Lima de Arruda
Júnior – instituído relido, instituído sonegado, instituinte. Ambas as tipologias
referem-se às mesmas coisas com palavras diferentes. A denominação utilizada por
Edmundo Arruda é mais precisa do ponto de vista conceitual, embora a
desenvolvida por Amilton seja mais popular.
193
HERKENHOFF, João Batista. Como aplicar o Direito. 4. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 112. 194
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 246.
71
2.3.1 O uso alternativo do Direito – instituído relido
O uso alternativo do direito195 tem como antecedente o movimento
homônimo desenvolvido pela Magistratura Democrática italiana, fundado em 1964,
como corrente interna da Associação Nacional dos Magistrados. Eles tinham por
objetivo teorizar em torno da politicidade da atividade do jurista, reafirmando o
caráter político do direito. Dentre os integrantes desse movimento destacaram-se
Pietro Barcellona196, Luigi Ferrajoli, Giusepe Coturri, Salvatore Senese, Vincenzo
Accattatis, Domenico Pulitano e Francesco Misiani. De todos eles, os três primeiros
são os mais conhecidos da comunidade jurídica brasileira197.
Para Diego Duquelsky o uso alternativo do direito consiste na “atividade
que se desenvolve no próprio seio do ordenamento jurídico, utilizando as
contradições, ambigüidades e lacunas do direito vigente, buscando através de uma
interpretação qualificada, que os efeitos da norma sejam cada vez mais
democráticos.”198
Jesus Antonio de La Torre Rangel sustenta que na América Latina o uso
alternativo representa as diversas ações jurídicas que visam o favorecimento do
povo ou da classe dominada, a partir da aplicação normativa feita pelos tribunais.
Aponta duas zonas em que o uso alternativo do direito pode ser utilizado: a primeira
delas, é quando se fazem efetivas disposições jurídicas que beneficiam as classes
dominadas e que não são aplicadas; a segunda, é quando se dá às normas
aparentemente “neutras”, um sentido que possibilite uma aplicação do direito
favorável aos oprimidos. Somente esta segunda acepção corresponde à delimitação
feita pelo direito alternativo para a expressão uso alternativo do direito. A primeira
195
Pode-se detectar na passagem de Tigar e Levy aqui trazida à colação, uma espécie de uso alternativo do direito, na medida em que os autores sustentam que a ideologia, como sistema de palavras vinculadas ao tempo e de frases cristalizadas e com origens no conflito humano, do grupo que detém o poder do Estado, destina-se a abafar as rivalidades e desviar a atenção do povo para a interpretação do sistema de regras. Porém, sempre se poderá interpretá-lo de maneira diferente. Com o tempo, as contradições entre o sistema dominante de relações e as regras formais que o governa, tendem a aumentar. Cabe, então, ao grupo dissidente, como uma de suas primeiras tarefas, explorar os limites da ideologia jurídica dominante para ver o quanto pode ser realizado dentro desses limites. TIGAR; LEVY, op. cit., p. 277. 196
Sobre Barcellona, conferir: MONREAL, Eduardo Novoa. Elementos para una Crítica y Desmistificación del Derecho. Buenos Aires: Ediar, s/d, pp. 63 a 75. 197
GÓMEZ, Diego J. Duquelsky. Entre a lei e o Direito: uma contribuição à teoria do Direito Alternativo. Tradução: Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001, p. 13. Ferrajoli, por exemplo, tem sido bastante estudado no Brasil, em virtude da teoria do garantismo jurídico, anteriormente mencionada. Ressalta-se, no entanto, que essa teoria foi desenvolvida no final dos anos oitenta, bem depois do uso alternativo do direito 198
Ibid.p.13.
72
conceituação apresentada por Rangel é conhecida como positividade combativa,
temática que será abordada posteriormente.199
No Brasil, o uso alternativo do direito é uma atividade basicamente
hermenêutica. A eterna disputa entre formalistas e realistas, assevera Duquelsky,
está superada, principalmente a partir dos aportes propiciados pela hermenêutica
filosófica gadameriana. Não se deve mais falar, como faziam os positivistas, em uma
aplicação meramente subsuntiva da lei. Segundo Gadamer, a interpretação
pressupõe sempre um acordo entre a objetividade do texto e a subjetividade do
autor.200
Nesse sentido é que o uso alternativo do direito propõe uma releitura de
todo o ordenamento jurídico adotando como norte interpretativo os princípios de
direito albergados na Constituição Federal, pontos de partida para a construção de
uma sociedade justa, fraterna e garantidora, no mínimo, de igualdade de
oportunidades a todos. Mantém-se a base legal no que puder ser aproveitada,
dando-lhe apenas outro viés interpretativo. É por isso que Edmundo Lima de Arruda
Junior denomina-o como o plano do “instituído relido”, pois, por meio de
procedimentos hermenêuticos, altera-se o sentido de dispositivos normativos já
presentes no ordenamento jurídico positivo. Objetiva-se, dessa maneira, reaproximar
direito e justiça, alterando, simplesmente, os pressupostos interpretativos.201
Para o professor Oscar Correas,
o “uso alternativo del derecho [...] es la interpretación – uso – del sistema normativo hegemónico de manera que se consiga la producción, por parte de ciertos funcionarios públicos, de decisiones – normas – favorables a los intereses de ciertos sectores sociales a los cuales el sistema normativo desea en realidad desproteger.”
202
Com o uso alternativo do direito a hermenêutica passa a ser um local
importante para a luta emancipatória, pois permite que o sentido inicial de alguns
textos de normas seja revisto, possibilitando uma releitura democratizante do
ordenamento jurídico. Há, no entanto, limites a essa atividade interpretativa. O novo
sentido dado ao texto de norma objeto da interpretação deve estar dentro da esfera
de possibilidades trazidas pelo texto, caso contrário rompe-se com a
199
RANGEL, Jesús Antonio de la Torre. El uso alternativo del Derecho por Bartolomé de las Casas. México: Universidad Autônoma de Aguascalientes, 1991, p. 4. 200
GÓMEZ, op. cit., p.13. 201
CARVALHO, 1998, p. 54. 202
CORREAS, Oscar. Derecho Alternativo: elementos para uma definición. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de (Org.). Lições de Direito Alternativo do Trabalho, São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 20.
73
discricionariedade e parte-se para a arbitrariedade, solução não desejada pelos
próprios alternativistas.
A alteração do sentido atribuído a uma norma sem a alteração de seu
texto não é fenômeno incomum no direito, sendo a mutação constitucional um
exemplo disso203. Em voto proferido na Reclamação 4335-5, do Acre, o Ministro
Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, alegou mutação constitucional no
artigo 52, X, da Constituição Federal, para ampliar os limites da decisão do Supremo
em sede de controle difuso de constitucionalidade.
Prevê o citado dispositivo constitucional que a Resolução do Senado
confere efeito erga omnes à decisão do STF em sede de controle difuso de
constitucionalidade, suspendendo a execução da lei ou ato normativo204. Para
Mendes, contudo, o artigo 52, X, da Constituição Federal sofreu mutação
constitucional, tornando desnecessária a manifestação senatorial para que as
decisões da Suprema Corte no controle difuso tenham eficácia erga omnes e efeito
vinculante, tendo o condão, tão-somente, de dar publicidade à decisão proferida pelo
Supremo.
Pode-se valer o direito alternativo, dessa maneira, de instrumentais da
nova dogmática como ferramenta de luta. A interpretação conforme a constituição
faz parte destes dispositivos hermenêuticos colocados à disposição dos juristas
orgânicos. Por meio dela, tenta-se poupar, na medida do possível, a norma jurídica
aparentemente inconstitucional, preservando-se a integridade do ordenamento
jurídico, ao mesmo passo em que se minimiza o atrito entre os poderes legislativo e
judiciário.
A interpretação conforme consiste na adequação do sentido de
interpretação de um texto de norma infraconstitucional com o de um texto
constitucional. Explica-se. Como uma norma comporta mais de uma possibilidade
interpretativa válida, se houver possibilidade de compatibilizá-la com a constituição
por meio da escolha de um de seus possíveis sentidos, aquela norma será
considerada constitucional se, e somente se, o sentido a ela atribuído for aquele pré-
determinado; qualquer outro a devolverá à esfera da inconstitucionalidade. Faz-se
203
Sobre mutação constitucional conferir: FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986; VEGA, Pedro de. La Reforma Constitucional y la problemática del poder constituyente. Madrid: Tecnos, 1999. 204
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 169.
74
isso aproveitando as diversas possibilidades interpretativas que o texto comporta.
Obviamente que o limite da interpretação conforme é o limite da própria literalidade.
No afã de se salvar um texto de norma aparentemente inconstitucional não se pode
dar a ele um sentido contrário ao texto205.
Ainda na esfera do uso alternativo do direito, um exemplo prático de sua
utilização pode ser encontrado na Apelação Crime n.º 297019937, da 2ª Câmara
Criminal do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, da lavra de Amilton
Bueno de Carvalho, baseado em parecer do Procurador de Justiça Lenio Luiz
Streck.206 Nesse Acórdão, é feita uma releitura do artigo 16 do Código Penal, à luz
do princípio da isonomia (artigo 5º, caput, CF/88), com base no artigo 34, da Lei
9.249/95. No caso em apreço, o réu passou um cheque recebido de terceiro, que
sabia ser furtado, após preenchê-lo no valor de R$80,00 e falsificar a assinatura do
correntista. Antes que o Ministério Público formulasse a denúncia, ressarciu a vítima.
Mesmo assim foi denunciado, sob o argumento de que o artigo 16 do Código Penal
prevê que no caso de reparação do dano haverá apenas a redução da pena.
Todavia, o artigo 34 da Lei 9.249/95, afirma não haver crime se os sonegadores de
impostos efetuarem o pagamento do valor sonegado antes do oferecimento da
denúncia. Ora, se para o sonegador de impostos não há crime, por que para o
estelionatário há? Afronta-se claramente o princípio da isonomia, razão pela qual o
acórdão usou alternativamente o direito a fim de conceder o mesmo benefício para
os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência.
Em um caso como esse os juristas tradicionais acusariam os
alternativistas de terem julgado contra a lei. Na verdade, não se julgou contra a lei,
apenas, com base na normatividade dos princípios e na interpretação conforme a
constituição, alterou-se o entendimento do artigo 16 do Código Penal, à luz do artigo
34 da Lei 9.249/95, visando harmonizá-lo com o artigo 5º, caput, da Constituição
Federal,207 que afirma que todos são iguais perante a lei. Julgou-se, portanto, em
perfeita harmonia com a lei; julgamento contrário à lei, no caso, seria o julgamento
tradicional, dando primazia a um dispositivo infraconstitucional em detrimento do
texto da norma constitucional.
205
Cf. APPIO, Eduardo. Interpretação Conforme Constituição. Curitiba: Juruá, 2002; SILVA, Virgílio Afonso da. La intepretación conforme a la constitución: entre la trivialidad y la centralización judicial: Cuestiones Constitucionales, 2005ª. 206
CARVALHO, op. cit., p. 165 ss. 207
Assevera o citado artigo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se [...].”
75
2.3.2 Positividade combativa (instituído sonegado)
A segunda tipologia alternativista, conhecida como positividade
combativa208 ou instituído sonegado, representa a luta travada pelos juristas
orgânicos em prol da efetivação de leis que trazem em seu bojo conquistas sociais
importantes das classes sociais exploradas, que já fazem parte do direito positivo
vigente, mas que não são aplicadas209.
Desde pelo menos Jhering já se asseverava que a efetivação da norma
não se esgota com a sua promulgação, pois dependerá da correlação de forças
entre os diferentes setores sociais. Justamente por isso Lassale fazia menção à
constituição folha de papel para se referir à positivação de direitos que não
encontravam eco e efetividade junto aos fatores reais de poder. Para que
reivindicações históricas das classes espoliadas saiam da folha de papel e ganhem
concretude é necessário, muitas vezes, além da atividade do jurista, forte
mobilização popular.210
Em outras palavras, a positivação de conquistas da sociedade é um
passo importante da luta social por direitos, mas somente um passo. A etapa
seguinte, que é da concretização dessas conquistas, depende de intensa luta e
participação social211. Como bem coloca Amilton Carvalho, “o avanço é mais
significativo na concretude do que no texto.”212
Geralmente, esses direitos que foram positivados e que são sonegados
dão guarida a importantes princípios construídos pela humanidade em seu caminhar
208
Amilton Bueno de Carvalho chamava esse tópico de positivismo de combate, contudo, Clèmerson Merlin Clève sustentou que o positivismo é sempre passivo, nunca de combate. As críticas foram aceitas por Amilton que passou, desde então, a adotar essa nomenclatura: positividade combativa, isto é, o combate a partir do direito positivo, e não do positivismo jurídico, coisas distintas, mas ainda muito confundidas. 209
Por meio dessa tipologia fica ainda mais evidente que o direito alternativo não defende a negação da lei. 210
CARVALHO, Amilton Bueno. Direito Alternativo na Jurisprudência. São Paulo: Acadêmica, 1996, p. 12. Cf.: IHERING, Rudolf Von. A Luta Pelo Direito. [Trad. José Cretella Jr. e Agnes Cretella] 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. 211
Chama-se a atenção para os perigos de um fenômeno que cada vez mais ganha espaço: a judicialização da política. Depositam-se, com ela, todas as expectativas das lutas populares no jurídico, esvaziando-se, conseqüentemente, o espaço político. Em vez de se utilizar a arena jurídica como complementar à luta travada na esfera política, faz-se com que ela ocupe a integralidade da luta. Esse procedimento é equivocado, pois sem a luta política, avança-se muito pouco na seara jurídica. Sem a intervenção direta nos fatores reais de poder, a constituição, por exemplo, não transcende a condição de mera folha de papel, de que já falava Lassale no século XIX. 212
CARVALHO, 1997, p. 51.
76
histórico. Os princípios, segundo o jusfilósofo estadunidense Ronald Dworkin, são
padrões que devem ser respeitados por serem uma exigência de justiça ou eqüidade
ou alguma outra dimensão da moralidade.213 Por meio da positividade combativa o
direito alternativo visa “estratificar as conquistas legais que permitem que os
princípios aterrizem na vida diária.”214
Destaca-se a própria Constituição Federal de 1988 dentre as leis que são
sonegadas. É do conhecimento de qualquer neófito em direito que a Constituição
ocupa o topo hierárquico do ordenamento jurídico. A partir do momento em que a
alternatividade tem de lutar pela efetivação da “lei das leis”, desnuda-se quem
realmente demonstra desprezo pela legalidade, caindo por terra qualquer
argumentação que tente colocar os alternativistas como contrários à lei e à
dogmática jurídica.
Um exemplo de aplicação concreta da positividade combativa pode ser
encontrado no Habeas Corpus nº. 295.037.816, da 4ª Câmara Criminal do extinto
Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, de autoria de Amilton Bueno de
Carvalho.215 Nesse acórdão, Amilton assume uma postura claramente legalista, ao
exigir respeito ao artigo 10 do Código de Processo Penal, segundo o qual o inquérito
policial deve terminar no prazo de dez dias, se o indiciado tiver sido preso em
flagrante, ou estiver preso preventivamente.216 No caso em apreço, o cidadão, preso
preventivamente, já estava preso há mais de oitenta dias. O acórdão manda colocá-
lo em liberdade, questionando o papel do juiz e do promotor que, num estado
democrático de direito, deve ser o de garantir os direitos fundamentais do cidadão.
Segundo Carvalho, “a norma que impõe determinado tempo à prisão resume
conquista democrática, exigindo, pois, obediência, máxime quando, ante o caso
concreto, nada de „justo‟ está a autorizar o seu descumprimento217.”
213
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a Sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36. 214
CARVALHO, 1998, p. 13. 215
Ibid., p. 79 e ss. 216
Outro exemplo de aplicação da positividade combativa pode ser encontrado em outra obra do mesmo autor, quando ele aborda a luta pela efetivação das conquistas contidas na Lei 8009/90, que trata da impenhorabilidade do único imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar, suas benfeitorias, equipamentos e móveis que o guarnecem, ressalvados os denominados “adornos suntuosos”. A impenhorabilidade tem como fonte o princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo Amilton Bueno de Carvalho, essa Lei incorporou ao direito legislado avanço na busca da utópica vida em abundância para todos. CARVALHO, 1998, op. cit., p. 39 e ss. 217
Ibid., p. 80.
77
No mesmo sentido, pode-se destacar a luta travada dentro do judiciário
para restringir as hipóteses de prisão civil por dívida de duas para uma, excluindo-
se, pois, a possibilidade de encarceramento do depositário infiel. Quando, no início
dos anos noventa, juristas alternativistas começaram a defender essa tese, eram
vistos com desconfiança e preconceito por seus pares. Embora o Supremo Tribunal
Federal ainda não tenha até a presente data encerrado o julgamento sobre esse
tema, tal situação já é irreversível, pois conta com votos favoráveis da maioria
absoluta dos Ministros. Exigiu-se, nesse caso, a aplicação do Pacto de San José da
Costa Rica, em detrimento da legislação ordinária218.
Outro exemplo que pode ser trazido à colação diz respeito à
inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime prevista na hedionda Lei
dos Crimes Hediondos. Desde o início os alternativistas proclamavam a
inconstitucionalidade do dispositivo, por ferir o princípio constitucional da
individualização da pena. Como sempre, foram chamados de violadores da lei.
Contudo, em 2006, o Supremo Tribunal Federal alterou o seu entendimento sobre o
tema declarando inconstitucional a impossibilidade de proibição de progressão de
regime pela lei, em razão de afronta direta à Constituição219.
Por meio da positividade combativa, exige-se um constante atuar dos
juristas orgânicos na efetivação e cumprimento de leis que concretizem princípios
constitucionais albergadores de conquistas sociais já positivadas, mas que são
sonegadas pelos mandatários de plantão. Justifica-se, assim, a necessidade de
transformação do Judiciário em palco de lutas contra-hegemônicas, visando à
efetivação e concretização de direitos.
2.3.3 Direito alternativo em sentido estrito (Instituinte)
Trabalha-se neste tópico o pluralismo jurídico, que combate a idéia do
estado como único espaço de produção de direito válido. Nas palavras de Amilton
Carvalho, há um direito não-oficial, achado na rua, insurgente, construído pelos
218
Conferir, dentre outros: HC 87.585-8/TO; RE 349.703/RS e RE 466.343/SP, todos do Supremo
Tribunal Federal. 219
Cf.: HC 82.959-70/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 23/02/2006, publicado no DJ
01-09-2006.
78
atores sociais em seu caminhar histórico, que está, muitas vezes, em conflito com o
próprio direito estatal.220
O pluralismo jurídico localiza-se na esfera do direito alternativo em sentido
estrito ou, como prefere Arruda Jr., na seara do instituinte. Das tipologias propostas
para o direito alternativo, sem dúvidas, é nesta que residem as maiores
controvérsias, havendo divergência entre os próprios atores do movimento.221
O pluralismo jurídico teve grande desenvolvimento teórico a partir do
trabalho homônimo publicado por Antonio Carlos Wolkmer, propulsor de grandes
debates sobre a temática, referência obrigatória em todos os espaços de lutas
populares em torno do direito. O tema é complexo e exige estudo e reflexões
acuradas. Em virtude da profundidade do trabalho de Wolkmer e dos profícuos
debates que ele suscitou, o pluralismo é uma das searas do direito alternativo que
mais geraram produções acadêmicas222.
Tem-se, com Wolkmer, que o pluralismo jurídico parte da contestação do
monismo estatal, isto é, das teses que vêem o estado como único produtor de
juridicidade válida. Contudo, nem toda a situação que pressuponha ordenamentos
jurídicos paralelos ao estatal pode ser considerada exemplo do pluralismo jurídico
que se quer aqui defender.
Do ponto de vista empírico, Boaventura de Sousa Santos realizou, no
início dos anos de mil novecentos e setenta, importante pesquisa de campo na
Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, chamada por ele, na ocasião, de
Pasárgada. Para Santos, haverá pluralismo jurídico sempre que vigorar, no mesmo
espaço geopolítico, mais de um ordenamento jurídico.
Wolkmer, todavia, faz uma importante ressalva: somente pode ser
considerado pluralismo jurídico aquele que colaborar para a emancipação social. É a
essa tese que esse trabalho se filia. Para discutir “formas periféricas de legitimação”,
220
CARVALHO, 1998, p. 60. 221
Interessante a leitura das críticas feitas por Lédio Rosa de Andrade às formas mais importantes de fundamentação do direito alternativo. Cf. em: ANDRADE, 1996, passim. p. 303 seq; Edmundo Arruda Júnior tece inúmeras críticas ao pluralismo jurídico, principalmente em ARRUDA JR, Edmundo Lima de. Direito moderno e mudança social: ensaios de sociologia jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997; NEVES, Marcelo. Do Pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) da juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. In: Direito e debate. n. 5, Jan./Jun. 1995. Contudo, a despeito das inúmeras críticas, defende-se aqui que o pluralismo jurídico é fundamental para se traçar uma teoria do direito a partir da periferia, em consonância com o lecionado pelo Prof. Antonio Carlos Wolkmer, em paradigmática obra sobre o tema. 222
WOLKMER, 2001, passim. Cf. também: NEVES, op.cit.
79
ressalta, “torna-se natural uma discussão liminar sobre os princípios fundantes da
legitimidade capaz de nortear uma cultura libertária compartilhada”. Essa análise
passa, prossegue, “pela 'legitimidade' dos atores e pela 'legitimidade' de suas
propostas, interesses e reivindicações”223.
Para Wolkmer, os movimentos sociais são o grande locus de “práticas
cotidianas habilitadas a transformar carências e necessidades humanas em novos
direitos”. Porém, assevera, nem todos os movimentos sociais são legítimos. Para
isso, é necessário que sejam “[...]conscientemente organizados e comprometidos
com mudanças paradigmáticas, com a pluralidade das formas de vida cotidiana e
com o projeto de uma sociedade auto-gestionária, descentralizada, liberta e
igualitária”. Desse modo, não são legítimos os movimentos sociais que não se
identificam “[...]com as ações civis e políticas justas, e com o interesse do povo
excluído, oprimido e espoliado, bem como aqueles grupos associativos voluntários
que não questionam a ordem injusta e a estrutura de dominação”.224
O modelo de pluralismo defendido por Wolkmer denomina-se
“comunitário-participativo”. Para o citado autor, a superação da crise do modelo
jurídico tradicional de regulamentação social, no qual a produção do direito é
monopólio do Estado moderno centralizador, “[...]é necessário optar por processos
estratégicos pluralistas de médio (“reformismo compartilhado”) e longo prazo
(“rupturas compartilhadas”).225
O pluralismo de médio prazo conecta-se à reprodução e às reformas
legais, “[...] tenta utilizar, retrabalhar, e ampliar certos procedimentos paralegais e
extrajudiciais na esfera do próprio sistema jurídico oficial” Remodela e amplia
conquistas do velho paradigma, ao mesmo passo em que luta por um direito mais
justo, porém dentro da ambiência do aparelho estatal, ainda que de um Estado
democrático controlado pelas maiorias.226 Este pluralismo de médio prazo
identificado por Wolkmer corresponde às duas vertentes do direito alternativo já
estudadas: o uso alternativo do direito e a positividade combativa.
Por sua vez, o pluralismo de longo prazo, vincula-se “[...]às mudanças,
rupturas, disposições paralelas e concorrentes”. Embora sem negar ou abolir o
direito positivado pelo Estado, avança-se “[...]democraticamente rumo a uma
223
WOLKMER, op. cit., p.321. 224
Ibid., p.323. 225
Ibid., p.307. 226
Ibid., p.307.
80
legalidade diversa, à margem da juridicidade posta pelo Estado”. Funda-se não mais
nos controles disciplinares e na racionalidade tecno-formal, “[...]mas na justa
satisfação das necessidades cotidianas e na legitimidade de novos sujeitos
coletivos”.227
Vale reforçar, por ser uma constante fonte de críticas, que, no âmbito do
pluralismo jurídico comunitário-participativo, nem todo o direito produzido
paralelamente pode ser reconhecido como válido, pois, se assim fosse, as severas
“leis” dos traficantes seriam erigidas à condição de direitos válidos, bem como as
ignominiosas práticas que vigoram nos presídios, como “código de ética” dos
detentos228. O direito paralelo que se pretende validar é aquele que resume
conquistas democráticas, colimando a construção de uma sociedade mais justa e
menos excludente, pautada no ser e não apenas no ter.
Inúmeros são os exemplos sociais de pluralismo jurídico, destacando-se o
papel exercido pelos movimentos sociais em luta pela reforma agrária, direitos
femininos, direitos dos homossexuais, dos indígenas, quilombolas, trabalhadores,
etc. Deve-se enfatizar também a importância das inúmeras associações de
moradores da periferia, que servem de instâncias alternativas de solução de
conflitos.
Muitas práticas importantes que podem significar uma abertura maior do
aparelho estatal, no âmbito do já mencionado pluralismo de “médio prazo”, gozam
hoje de lugar de destaque. Vide a lei da ação civil pública, a iminência da aprovação
de um código de processo coletivo, a mediação dos conflitos, a consolidação dos
juizados especiais, entre outros mecanismos.
A tônica, pois, do pluralismo jurídico está na ampliação das esferas de
produção de juridicidade, em especial, no protagonismo da sociedade que, de
maneira autônoma, pode construir e destruir direitos. Como exemplo do
protagonismo social na seara penal, destaca-se o princípio da adequação social, por
meio do qual a sociedade descriminaliza condutas que, embora ainda tipificadas no
ordenamento jurídico, não mais lhe interessa punir.
Nesse sentido, recorda-se a sempre polêmica questão da
descriminalização do jogo do bicho. Em acórdão prolatado na Apelação-crime e
227
Ibid., p.307. 228
Como exemplo dessas duas situações vale a pena conferir dois filmes nacionais de grande repercussão: Cidade de Deus e Estação Carandiru, ambos pautados em obras literárias homônimas.
81
Recurso em Sentido Estrito nº 297.036.758, da 4ª Câmara Criminal do extinto
Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, da lavra do hoje Desembargador do
TJ/RS, Aramis Nassif, absolveu-se o réu com base no artigo 386, III, do Código de
Processo Penal, ou seja, em razão do fato em apreço não constituir infração penal,
embora o jogo do bicho ainda esteja tipificado no artigo 58, caput, do Decreto-lei nº
3.688/41, a chamada Lei das Contravenções Penais. Assim, segundo Amilton, “o
acórdão reconhece, expressamente, que a sociedade civil tem o poder de
descriminalizar tipos penais impostos pelo legislador de plantão: „a coletividade não
se interessa pela punição dos bicheiros. Ao contrário, já inseriu o jogo de bicho no
seu dia-a-dia.‟”229 Embora se reconheça o direito da sociedade de descriminalizar
condutas, o mesmo não vale para a criação de tipos penais, que tem no princípio da
legalidade uma grande conquista histórica da humanidade230.
Traçar alternativas ao vetusto monismo estatal como fonte única de
produção do direito é tarefa a ser perseguida cotidianamente pela alternatividade.
Para tal, como assinalou Wolkmer em passagem já trazida à colação, é possível a
utilização de ferramentas hermenêuticas e legislativas de viés emancipatórios, bem
como a necessária organização e articulação dos movimentos sociais, protagonistas
legítimos da construção jurídica, dês, é claro, que tenham como pauta o respeito aos
seres humanos e a construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e que
colime não somente a igualdade formal burguesa, mas, fundamentalmente, a
construção de uma verdadeira igualdade substancial, material, com todas as suas
conseqüências e contornos.
Ao término deste capítulo inaugural, vale reafirmar, em síntese, que o
direito alternativo, ao contrário do que apregoam os seus opositores, não nega a lei
nem a dogmática jurídica. Questiona, isso sim, os postulados positivistas de
neutralidade axiológica do método e do intérprete, bem como o apego irrefletido à
lei, como se a mesma abarcasse a totalidade do fenômeno jurídico. Não confunde
229
CARVALHO, 1998, p. 70. 230
A tese da adequação social, defendida por Welzel, pode ser um elemento teórico da descriminalização de condutas pelo desinteresse social em puni-las. Exemplo disso pode ser encontrado no Código Penal, artigo 234, que trata como crime, dentre outras condutas, a venda de revistas pornográficas. Não há mais, claramente, interesse social em punir tal conduta, caso contrário, teria de se dar voz de prisão a todos os donos de bancas de revistas. Os juristas positivistas têm dificuldades em aceitar essa tese, em virtude da previsão legal de que somente uma lei pode revogar outra lei. Sobre a adequação social conferir, dentre outros: FARIA, Maria Paula B. R. A Adequação Social da Conduta no Direito Penal: Ou o Valor dos Sentidos Sociais na interpretação da Lei Penal. Coimbra: Coimbra, 2005.
82
também, como fazem alguns, dogmática jurídica com dogmatismo.231 Enquanto este
é defendido pelos já mencionados “ventríloquos de todo o poder estabelecido”232 e
significa um apego preconceituoso e acrítico a dogmas, aquela se apresenta como
um saber instrumental e auxiliar na solução dos conflitos de interesses que cabem
ao direito equacionar. É, portanto, o instrumento de que se vale o jurista para intervir
no mundo jurídico. Dessa maneira, revisar a dogmática jurídica é resgatar o próprio
direito como forma de intervenção social e como verdadeira ferramenta de luta da
sociedade, em prol da construção da tão almejada justiça social.
231
CLÈVE, 1997, p. 37. 232
ARRUDA JR, 1992, p. 73.
83
CAPITULO II - FERRAMENTAS DA TEORIA CONSTITUCIONAL
1 INTRODUÇÃO
O presente capítulo terá como objeto o estudo de alguns elementos das
teorias de três constitucionalistas alemães do pós-segunda guerra mundial: Konrad
Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle233. Não se objetiva aqui a reconstrução
analítica de cada uma dessas teorias, mas, tão-somente, pinçar alguns de seus
aspectos nucleares, especialmente naquilo que descortinam de possibilidades
emancipatórias aos juristas orgânicos no dia-a-dia de suas lides234.
Nos últimos anos, detecta-se uma crescente participação destes autores
no direito constitucional brasileiro, despontando na atualidade, ainda que
timidamente, como referências para o debate acadêmico e prático. As obras de cada
um deles têm as suas particularidades, contudo, guardam inúmeros pontos de
convergência, dos quais se destacam:
1.Influência, de fundo, do método tópico-problemático desenvolvido por
Theodor Viehweg;
2.Desenvolvimento de teorias concretistas;
3.Preocupação implícita com os fatores reais de poder, entre outras.
233
Afirma Marcelo Neves que as teorias de Müller e de Häberle são passíveis de uma abordagem quanto à distinção semiótica entre sintática, semântica e pragmática. Müller trata das características semânticas da linguagem jurídica que, em virtude da ambigüidade e vagueza, principalmente na esfera constitucional, exigem um processo de concretização, e não somente um „procedimento de aplicação‟ conforme regras de subsunção. Em Häberle aflora a “relação pragmática da linguagem com diversos expectantes e „utentes‟, o que implica um discurso conflituoso e „ideológico‟. Aspectos semânticos e pragmáticos, pontua Neves, relacionam-se, já que a ambigüidade e a vagueza presentes na linguagem constitucional geram expectativas normativas diferentes e contraditórias. Por outro lado, “as contradições de interesses e de opiniões entre expectantes e agentes constitucionais fortificam a variabilidade da significação do texto constitucional”. Salienta Neves que somente diante de uma unidade de interesses e concepção de mundo seria possível que as questões constitucionais perdessem a sua relevância semântico-pragmática, para se tornarem questões primariamente sintáticas, orientadas pelas regras da dedução lógica e subsunção. Isso, contudo, é incompatível com a complexidade da sociedade moderna. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 79-80. 234
Como já dito na introdução deste trabalho, ao se abordar, no mesmo texto, autores de matrizes teóricas diferentes, não se quer incorrer naquilo que Virgílio Afonso da Silva, parafraseando Kelsen, denominou de “sincretismo metodológico.” Não se desconhece a contradição epistemológica existente entre algumas das teorias aventadas, porém, o objetivo do capítulo não é construir uma teoria constitucional, mas apenas destacar algumas possibilidades emancipatórias fornecidas pela moderna dogmática constitucional. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.
84
Paulo Bonavides destaca a influência que sofreram do método tópico-
problemático, denominando-os de autores concretistas de inspiração tópica,
agrupando-os no que chamou de segunda geração da teoria material da
constituição. Cada um deles, porém, construiu teorias autônomas, dotadas de
elementos diferenciadores próprios.235
Ressalta-se, que embora eles tenham a tópica como ponto de partida,
alguns a modificaram tão intensamente que se discute o que efetivamente restou
deste modelo em suas teorias. Müller, por exemplo, tece críticas explícitas à
tópica236. Para ele, o método não atende aos pressupostos de racionalidade exigidos
por um estado democrático. Segundo Bonavides, Müller pretende racionalizar e
estruturar o processo de concretização da norma, de modo a que a atividade
interpretativa deixada aberta pela tópica, não dissolva o teor de obrigatoriedade ou
normatividade da regra constitucional.237
Esses juristas são chamados de concretistas por partilharem a idéia de
que interpretação é sinônimo de concretização e concretização é sinônimo de
interpretação, de maneira que só faz sentido falar em norma constitucional diante de
um determinado caso concreto.
Outro traço característico parece ainda perpassar a obra dos três autores:
a preocupação com os fatores reais de poder. Como constitucionalistas do pós-
segunda guerra, não querem ver a constituição sucumbindo ao fático, tornando-se a
mera folha de papel de que falava Ferdinand Lassale.238 Cada um, à sua maneira,
introduziu os fatores reais de poder em suas teorias, tentando controlá-los.239
Inocêncio Mártires Coelho defende haver uma vinculação entre o discurso
de Häberle e o de Lassale, no que é contrariado pelo constitucionalista mexicano
Diego Valadés240, que não aceita a existência de continuidade teórica entre eles.
235
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 160. 236
Essas críticas serão apresentadas com mais vagar na abordagem de sua obra. 237
Ibid., p. 456. 238
LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998. 239
COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista Diálogo Jurídico, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, Salvador, v. I, n. 5, ago. 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 8 maio 2004. 240
Diego Valadés, na introdução ao livro El Estado Constitucional, de Peter Häberle, critica o texto de Inocêncio Mártires Coelho, negando que haja uma possibilidade de articulação entre o pensamento de Lassale e o de Häberle. Para ele, no que tange a Hesse a visão está correta, já que este tem uma preocupação explícita com o tema, tanto que abre a sua obra sobre a força normativa da constituição justamente fazendo referência a Lassale. Quanto à Häberle, sustenta, a preocupação é outra. É vincular ampla e dinamicamente a constituição e a Cultura. O argumento de Lassale estava orientado
85
Tem razão Valadés neste ponto, quando sustenta que ambos professam
perspectivas teóricas distintas, estando Häberle mais interessado na conexão entre
constituição e cultura. Todavia, ao introduzir as potências públicas no processo de
interpretação constitucional, não há como negar a existência, mesmo que apenas
como pano de fundo, da preocupação de que o normativo não sucumba ao fático, de
que a constituição não seja mera folha de papel.
O rol de autores aqui trabalhados não é exaustivo. Há inúmeros outros
cujas obras descortinam possibilidades emancipatórias ao intérprete jurídico. Como
dito acima, Hesse, Müller e Häberle são conhecidos dos juristas brasileiros, mas as
respectivas obras ainda repercutem no campo prático das lides forenses muito
aquém de suas possibilidades. Espera-se que este trabalho contribua, ainda que
parcamente, para a ampliação dos horizontes de utilização das ferramentas jurídicas
desenvolvidas por estes autores no cotidiano jurídico pátrio, como instrumentos de
concretização e efetivação da Constituição Federal de 1988.
2 O MÉTODO CONCRETISTA DE KONRAD HESSE
2.1 A força normativa da Constituição
Konrad Hesse241, importante constitucionalista alemão, trabalhou
significativos temas de direito constitucional. Foi com ele, por exemplo, que a
discussão sobre a força normativa da constituição ganhou fôlego. Embora a idéia de
força normativa remonte à relação entre normalidade e normatividade desenvolvida
no sentido de harmonizar a idéia de Estado de Hegel com as doutrina econômicas de Marx, que culminaria num Estado dos trabalhadores. Segundo Valadés, Lassale deixa isso muito claro em um texto chamado “E Agora?”, no qual sustenta o argumento de que o novo fator real de poder deveria ser o povo orientado para a democracia. Em 1863 Lassale explicita melhor o seu argumento afirmando que só na democracia reside o direito e nela também reside em toda a sua integridade o poder. VALADÉS, Diego. Peter Häberle, un Jurista para el Siglo XXI. In: HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. México, DF: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. Versão em PDF. Disponível em: <http://www.bibliojuridica.org/libros/libro.htm?l=14>. Acesso em: 2 junh. 2006, p. 9-10. 241
Konrad Hesse nasceu em 29 de Janeiro de 1919, em Königsberg, na Alemanha, e faleceu em 15 de Março de 2005, aos 86 anos. Foi Juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão no período compreendido entre sete de novembro de 1975 e 16 de julho de 1987, momento de sua aposentadoria. Hesse foi um dos mais destacados professores de direito constitucional da Alemanha. Dentre as suas principais obras destaca-se Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, publicada pela primeira vez, em 1967, e traduzida para vários idiomas, além da clássica conferência sobre a força normativa da constituição, que será trabalhada mais adiante. Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
86
por Heller242 ainda sob os auspícios do constitucionalismo de Weimar243, Hesse, por
meio de sua célebre aula inaugural na cátedra da Universidade de Freiburg, em
1959, resgatou essa idéia dando-lhe novos contornos. Fez isso, de maneira que a
“folha de papel” lassaleana não fosse sempre o lado mais fraco na sua contínua e
tensa relação com os fatores reais de poder.
Para Inocêncio Mártires Coelho a obra de Konrad Hesse contrapõe-se à
concepção mecanicista das relações entre as forças sociais e a constituição jurídica,
confrontando-se com o determinismo sociológico de Lassale.244 Sem negar a
importância das forças sócio-políticas no surgimento e na sustentação da
constituição folha de papel, salienta a existência de um condicionamento recíproco
entre a constituição e a realidade político-social que lhe cerca.
Hesse contrapôs à constituição “folha de papel” de Lassale245 a sua idéia
de força normativa da constituição, ancorada na “vontade de constituição.”246
Defende ele a existência de uma tensão necessária e imanente entre a norma
fundamentalmente estática e racional – constituição jurídica – e a realidade fluída e
irracional – constituição real. A constituição reclama normatividade. Sustenta, ainda,
que embora haja um condicionamento mútuo entre a constituição jurídica e a
constituição real, elas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra. Para ele,
“ainda que não de forma absoluta, a constituição jurídica tem significado próprio”.
Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo de
forças do qual resulta a realidade do estado. Em outras palavras, a pretensão de
eficácia da constituição também é um fator real de poder247.
Ao abordar a questão da força normativa da constituição Hesse questiona
se ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças
242
HELLER, Hermann. Teoria del Estado. Tradução Luís Tobío. México: Fundo de Cultura Econômica, 1955. 243
Oficialmente, a República de Weimar nasce em 11 de agosto de 1919, com a promulgação de sua Constituição e como uma das conseqüências da Primeira Guerra Mundial. O ocaso dela se dá em 30 de janeiro de 1933, quando Hitler ascende ao poder, por meio do artigo 48 da Constituição de Weimar. O constitucionalismo produzido no período de Weimar é um dos mais ricos da história constitucional. Cf. RICHARD, Lionel. A República de Weimar, 1919-1933. São Paulo : Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1988. 244
COELHO, 2001, passim. 245
Lassale, baseado em Marx, sustentava que a constituição era uma mera folha de papel, totalmente condicionada pelos fatores reais. Hesse, contrapondo-se a Lassale, apresenta a idéia de força normativa da constituição, ou seja, a constituição é condicionada pelos fatores reais, mais também os condiciona. Cf. LASSALE, 1998, passim. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 9 seq; 246
Ibid., p.9. 247
Ibid., p.15.
87
políticas e sociais, há também uma força determinante do direito constitucional, e,
em caso afirmativo, qual então seriam o seu alcance e fundamento? Ou, então, essa
força não passaria de uma ficção necessária para o constitucionalista, que tenta
afirmar que o direito domina a vida do estado quando, na verdade, é o contrário o
que ocorre?248
Para ele, essas questões são candentes no direito constitucional, em
virtude de não existir no âmbito da constituição, ao contrário do que ocorre em
outras esferas da ordem jurídica, uma garantia externa para execução de seus
preceitos.249
Para Hesse, não se pode confundir a pretensão de eficácia de uma
constituição com a sua condição de realização. Com isso, defende que a
constituição não é simplesmente „um ser‟, não é um mero reflexo das condições
fáticas de sua vigência, ela configura também um „dever ser‟. Nas palavras de
Hesse, graças à pretensão de eficácia a constituição procura imprimir ordem e
conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao
mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como
fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-
políticas e econômicas.250
Dessa forma, a força normativa da constituição advém da tentativa de
realização dessa pretensão de eficácia. O grau de normatividade da constituição
está diretamente relacionado à sua correspondência com a realidade, com o
presente. Para Hesse, “Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr
corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o
desenvolvimento de sua força normativa.”251
Necessário, ainda, que a constituição incorpore, além dos elementos
fáticos, os elementos espirituais de seu tempo, o que lhe garantiria o apoio e a
defesa da consciência geral: quanto maior a vontade de constituição, menores serão
os limites de imposição da constituição real.252
Outra idéia fundamental para a configuração da força normativa da
constituição é a de práxis constitucional. Com base nela exige-se que todos os
248
HESSE, op. cit., p. 11-12. 249
Ibid., p. 11-12. 250
Ibid., p. 15. 251
Ibid., p. 20. 252
Ibid., p. 20.
88
cidadãos partilhem da vontade de constituição, mesmo que isso signifique renunciar
a alguns benefícios em favor da preservação de um princípio constitucional, por
entenderem que o respeito à constituição garante “um bem da vida indispensável à
essência do Estado, mormente ao Estado democrático.”253 Nesse ponto, o viés
republicano da abordagem de Hesse fica claramente salientado, à medida que exige
como condição da normatividade constitucional a existência de cidadãos virtuosos,
que abdicam de interesses particulares em prol dos interesses públicos.
Para Inocêncio Coelho, quando Hesse apela para esse sentimento
constitucional, a sua construção teórica faz com que a eficácia da constituição
dependa de um fator de natureza axiológica, é dizer, do respeito que lhe devotarem
os seus destinatários, especialmente aqueles que tenham poder de fato para violá-la
ou destruí-la. Ao agir assim ele esquece o seu ponto de partida dialético, para
assumir uma postura claramente idealista, pois “desloca a discussão sobre a eficácia
da Constituição do plano da condicionalidade fática para o do condicionamento
ético, convertendo numa questão de fé o que muitos entendem ser apenas uma
questão de força.”254
Hesse conclui a sua monografia afirmando ser papel do direito
constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de constituição, principal
garantia de sua força normativa. Deve-se fazê-lo explicitando as condições sob as
quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível,
propiciando o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucionais.255
Segundo Coelho, nota-se em Hesse uma nova crença na constituição,
que o leva a redefinir o próprio papel da ciência do direito constitucional, a quem
cumpre a tarefa deontológica de – explicitando as condições sob as quais as normas
constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível – realçar, despertar e
preservar a vontade de constituição.256
2.2 Método hermenêutico-concretizador – Konrad Hesse
Na perspectiva trabalhada por Hesse a interpretação afigura-se como
decisiva para a consolidação e preservação da força normativa da constituição. Para
253
HESSE, op. cit., p.22. 254
COELHO, 2001, passim. 255
HESSE,op. cit., p. 27. 256
COELHO, 2001, passim.
89
ele, “a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma
excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais
dominantes numa determinada situação.” Afirma ainda que “uma mudança das
relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da
Constituição.”257
Em Hesse, interpretação constitucional e concretização constitucional são
tratadas como sinônimas. Segundo a Professora Cecília Caballero Lóis, ao deslocar
a interpretação para a concretização, Hesse a transforma numa operação tópica,
que vincula as premissas ao problema e à questão. Essas premissas são os
princípios constitucionais, que assumem o encargo de ordenar e coordenar a
solução do conflito.258
A concepção de interpretação trabalhada por Hesse é restritiva, o que se
percebe claramente diante de sua afirmação de que só cabe falar em interpretação
quando as normas constitucionais suscitam dúvidas. Apesar dessa visão estreita do
fenômeno da interpretação, ele defende a falência e a insuficiência dos métodos
hermenêuticos tradicionais.259 Além disso, o seu modelo teórico exige uma
constituição aberta, isto é, uma configuração constitucional que permita o diálogo
constante entre o texto constitucional e a realidade.
O método hermenêutico-concretizador trabalha, conjuntamente, os
conteúdos fático e semântico dos textos normativos, a partir da hermenêutica
filosófica e da tópica.260 Tem por base a idéia gadameriana261 de que a leitura de um
texto se inicia pela pré-compreensão do seu sentido pelo intérprete. Assim, a
interpretação constitucional é uma compreensão de sentido, na qual o intérprete
concretiza a norma “para e a partir de uma situação histórica concreta.”262
Para Canotilho, o método hermenêutico-concretizador destaca vários
pressupostos da atividade interpretativa, quais sejam:
257
HESSE,op. cit., p. 22. 258
LÓIS, Cecília Caballero. Uma teoria da Constituição: justiça, liberdade e democracia em John Rawls, 2001. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001, p.138. 259
Ibid., p. 138. 260
VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 261
GADAMER, 1997, passim. 262
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p.1176.
90
a) pressupostos subjetivos: o intérprete, por meio da pré-compreensão,
desempenha um papel criador na obtenção do sentido do texto
constitucional;
b) pressupostos objetivos – contexto: neste item, atua o intérprete como
operador de mediações entre o texto e a situação concreta;
c) círculo hermenêutico: o intérprete, por intermédio da mediação
criadora, ao relacionar o texto e o contexto, transforma a interpretação
em “movimento de ir e vir.”263
Direciona-se esse método para um pensamento problematicamente
orientado264 que, todavia, se afasta do método tópico-problemático em função deste
admitir o primado do problema perante a norma, enquanto o método hermenêutico-
concretizador, assenta-se no “pressuposto do primado do texto constitucional em
face do problema.”265
O método hermenêutico-concretizador desenvolvido por Konrad Hesse
não foi muito além da tópica. A sua importância está relacionada muito mais à
influência que exerceu em autores que trabalharam a abertura hermenêutico-
pragmática da constituição do que propriamente no valor intrínseco à teoria.
Defendeu uma visão restritiva de interpretação, que sustentava só serem objetos de
interpretação as normas que carecessem de sentido imediato. Contudo, embora não
a tenha desenvolvido de forma mais detalhada, já havia assumido a idéia de
interpretação conforme os princípios da proporcionalidade e da unidade do sistema,
que teve repercussões importantes em movimentos posteriores.266
Como já tratado no primeiro capítulo, não há mais como o pensamento
jurídico crítico ignorar as possibilidades que o direito, reconhecido como espaço de
lutas contra-hegemônicas, abre para a emancipação social. Nesse contexto, a
fecundidade desta obra de Hesse assenta-se no reconhecimento de que a força da
constituição não está lastreada apenas na realidade fática, sendo também
construída cotidianamente pelos atores sociais em sua caminhada histórica.
263
CANOTILHO,op. cit., p. 1176. 264
Ibid., p.1176. 265
Ibid., p.1176. Esta concepção que garante maior primazia ao texto em detrimento do problema está desenvolvida com maior ênfase em Müller do que em Hesse. 266
LÓIS, op. cit., p. 139.
91
3 A METÓDICA ESTRUTURANTE DE FRIEDRICH MÜLLER
Friedrich Müller, Decano da Faculdade de Direito da Universidade de
Heidelberg, é um dos mais destacados constitucionalistas da atualidade. É boa a
acolhida de sua obra em território brasileiro, tendo contribuído para tal o Professor
Paulo Bonavides, há muito tempo divulgador dos trabalhos de Müller.
Considera-se aqui a obra de Müller de grande importância para se
repensar o direito constitucional. A sua teoria da norma e a preocupação com a
construção de uma metódica estruturante do direito são bases sólidas para se
trabalhar o fenômeno jurídico para além das mitologias positivistas e jusnaturalistas.
Com Müller, dá-se significativo passo na direção de um método de trabalho pós-
positivista para o direito.
Müller tenta tirar o direito dos extremos em que o colocaram o
normativismo kelseniano e o decisionismo de Carl Schmitt. A metódica jurídica não
pode dar ênfase nem à objetividade pseudonaturalista dos métodos empalidecidos
juntamente com a força de convencimento do positivismo, nem à hermenêutica
filosófica, pois, como ciência normativa aplicada, “[...] as exigências de vigência e
obrigatoriedade devem ser formuladas de forma decisivamente mais rigorosa do que
nas disciplinas não-normativas das Ciências Humanas.”267 Assim, não é pelo fato do
direito não comportar uma objetividade absoluta, ao gosto dos normativistas, que ele
seja simplesmente um ato de vontade do intérprete, sem a presença de limites.
O conceito de metódica jurídica abrange o de hermenêutica,
interpretação, métodos de interpretação e metodologia. A hermenêutica trabalhada
por Müller não se refere à técnica retórica aplicada à ciência jurídica, “[...] mas às
condições de princípio da concretização jurídica normativamente vinculada do
direito.” Contudo, ressalta Müller, a concretização prática da norma não se reduz à
interpretação do texto. A metódica abrange todas as modalidades de trabalho da
concretização da norma e da realização do direito. 268
Para Müller, no Tribunal Constitucional alemão o processo de decisão
jurídica aparece apenas como procedimento de dedução lógica; a realização do
267
MÜLLER, op. cit., p. 21. 268
Entende-se por metodologia, no sentido tradicional, a totalidade das regras técnicas da interpretação de normas jurídicas – interpretação gramatical, sistemática, etc.; por hermenêutica, à teoria da estrutura da normatividade jurídica e dos pressupostos epistemológicos e de teoria da metodologia jurídica. Por interpretação compreende-se a interpretação de textos de normas jurídicas, isto é, as possibilidades de tratamento jurídico-filológico do texto de norma jurídica Ibid., p. 22.
92
direito é apresentada como um problema cognitivo269. A concretização da norma é a
interpretação do texto da norma, que nada mais é do que a descoberta da vontade
objetiva do legislador. Desse modo, as decisões do Tribunal Constitucional
enfatizam o teor literal e o nexo de sentido da determinação legal, por meio do uso
dos métodos tradicionais.270
O Tribunal Federal tem decisões pautadas na idéia de „valor‟ dos direitos
fundamentais, mas também possui decisões amparadas em análises de âmbitos da
norma. Segundo essas últimas, os direitos fundamentais são vistos como garantias
materialmente reforçadas pelos seus âmbitos de normas, como correlação que pode
ser interpretada de forma materialmente racional de garantias de liberdade
individual, política e material, dotadas de valores próprios e fundamentadas na
história.271
Müller faz severas críticas à ponderação de valores, método desenvolvido
pelo também jusfilósofo alemão Robert Alexy, e que encontra grande receptividade
entre os constitucionalistas brasileiros. A insuficiência dos procedimentos de
ponderação é abordada nos seguintes termos:
O teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito com ajuda dos pontos de vista hermenêutica e metodicamente diferenciadores e estruturantes da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito, a ser efetuada, do que com representações necessariamente formais de ponderação, que conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo (Urteilsvorbehalt) em todas as normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistemas de valores e valoração, necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas.
272
Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, apresenta
contra-argumentos às críticas feitas por Müller a elementos de sua obra. Como esse
debate é periférico para os fins deste trabalho, transcrevem-se apenas os seus
principais pontos na nota abaixo.273
269
Sobre a jurisprudência do Tribunal Federal Alemão, conferir: MARTINS, Leonardo (Org.). Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução Beatriz Henning et. al. Montevidéo, Uruguai: Fundación Konrad-Adenauer, Oficina Uruguay, 2005. 270
Müller, op. cit. p. 25-28. 271
Ibid., p. 36. 272
Ibid. 273
Para Alexy a razão decisiva de Müller reside na vinculação entre teoria da norma e teoria da aplicação do direito, já que defende que ambas são as duas faces da mesma moeda. Nesse contexto, o argumento desenvolvido por Müller divide-se em três: 1) as normas jurídicas gerais nunca podem predeterminar completamente a imposição de normas individuais por parte dos órgãos de
93
Ainda na esteira de alguns dos principais elementos da teoria de Müller,
tem-se o que o autor chamou de discrepância entre o discurso do Tribunal
Constitucional Federal e a sua prática efetiva. Do ponto de vista de uma prestação
de contas hermenêutica e metodológica, fundamental no estado democrático de
direito, com base na sua própria práxis, a jurisprudência do Tribunal Constitucional
[...] fornece um quadro de pragmatismo sem direção, que professa de modo tão globalizantemente indistinto quão acríticos „métodos‟ exegéticos transmitidos pela tradição - e caudatários do positivismo legalista na sua alegada exclusividade - mas rompe (durchbricht) essas regras em cada caso de seu fracasso prático sem fundamentar esse desvio.
274
Essa mesma crítica que Müller faz ao Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha pode ser feita, mutatis mutandi, ao Poder Judiciário brasileiro. Na práxis
judicial brasileira não há uniformidade no uso das ferramentas disponibilizadas pela
dogmática e hermenêutica jurídicas. O discurso jurídico majoritário no Brasil, por
exemplo, é o normativista, contudo, os mesmos juristas que se auto-intitulam
normativistas, sistematicamente, negam normatividade e efetividade à Constituição
Federal, texto de norma que ocupa, segundo o próprio discurso que defendem, o
topo hierárquico do ordenamento jurídico. Não há coerência entre o discurso
propalado e a práxis efetiva. Isso dificulta o controle da racionalidade da atividade
aplicação do direito. „Os conceitos jurídicos nos textos normativos não possuem significado, os enunciados não possuem sentido como algo concluído e dado de antemão‟; 2) teorias como a teoria semântica da norma proposta por Alexy – que coincide as normas jurídicas válidas como objetos lingüísticos que devem ser identificados de acordo com determinados critérios de validade – estariam obrigadas a formar norma de decisão só com a ajuda de dados lingüísticos, mas isso não seria possível; 3) contém a solução de Müller – para a tomada de decisão –, no mesmo grau de importância, além dos dados lingüísticos (programa da norma), os dados reais (âmbito da norma). Por isso, o âmbito da norma pertenceria à norma. Segundo Alexy, esse argumento sustentado por Müller está sujeito a três objeções: 1) as teorias semânticas não estão obrigadas a fundamentar as suas decisões jurídicas exclusivamente com a ajuda de argumentos semânticos. Isso só seria verdade se os elementos que não compõem a norma não pudessem ser utilizados nas fundamentações jurídicas. Se isso fosse verdade, salienta Alexy, todo o arsenal da argumentação jurídica deveria ser incluído no conceito de norma ou o âmbito da argumentação jurídica deveria ser limitado consideravelmente, o que seria custoso à sua racionalidade; 2) críticas contra a idéia de que seja necessário incluir no conceito de norma argumentos porque eles serão necessários para a fundamentação da decisão. Alexy afirma que para contrapor as teses de Müller é necessário distinguir: conceito de norma, relevância normativa e o fundamento de uma norma. Relevância normativa: normativamente relevante é tudo aquilo que pode ser apresentado, conforme ao direito, como argumento a favor ou contra uma decisão jurídica. Todas as normas jurídicas válidas, por exemplo, são normativamente relevantes, contudo, nem tudo o que é normativamente relevante é uma norma jurídica ou uma parte dela. Sem a distinção entre a norma, a proposta de interpretação e os argumentos que a apóiam não é possível obter um quadro claro da fundamentação jurídica. Para o ideal do Estado de direito, salienta Robert Alexy, é mais útil uma clara separação entre o que foi imposto como norma e aquilo que um intérprete apresenta como razões para uma determinada interpretação, do que uma fidelidade à lei criada em virtude de uma definição do conceito de norma. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Versión castellana Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 76-78. 274
Müller, op. cit., p. 37-38.
94
decisória do Judiciário, pois não são fixados com clareza os pressupostos
metodológicos e as razões pelas quais se decidiu de determinada maneira e não de
outra.275
3.1 Esboço de uma doutrina pós-positivista
Bonavides sustenta que a teoria da norma de Müller, pautada na não-
identidade entre texto de norma e norma jurídica, bem como a normatividade dos
princípios defendida por Ronald Dworkin, tema sobre o qual será feita breve menção
ao final do capítulo, são os grandes marcos fundacionais do chamado pós-
positivismo.276
Com Müller, delineia-se, efetivamente, uma construção teórica pós-
positivista. O autor trabalha a sua teoria de modo a superar os elementos básicos do
positivismo sem, contudo, negar a importância de algumas categorias por ele
desenvolvidas.
Como defendem Arruda Júnior e Gonçalves, numa perspectiva histórica, a
necessária crítica ao positivismo “significa um tipo de exame que se vale das
conquistas do positivismo para avançar no presente para além dele.” Adentra-se,
com isso, na seara pós-positivista, ou seja, vislumbra-se o além do positivismo a
partir do próprio positivismo. 277
Na compreensão de Marcelo Galuppo, o pós-positivismo pressupõe que o
direito é obra humana que pode ser utilizada para a emancipação. Ao reconhecer
que o direito é obra humana o pós-positivismo se afasta de qualquer perspectiva
jusnaturalista, identificando o direito com normas jurídicas produzidas historicamente
por uma sociedade.278
Galuppo aponta três características básicas do pós-positivismo:
a) o pós-positivismo recusa-se a pensar o ordenamento jurídico a partir
da categoria do sistema. A idéia de sistema pressupõe um processo de
produção do direito harmônico, bem como um único projeto para a
sociedade, emanado por uma única fonte. No entanto, o direito,
275
No último capítulo traremos à colação uma crítica tecida pelo constitucionalista Luiz Virgílio Afonso da Silva ao mau uso que o Supremo Tribunal Federal faz da interpretação conforme a constituição, que serve para ilustrar essa falta de rigor metodológico aqui denunciada. 276
BONAVIDES, op. cit., p. 248. 277
ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., p. 52. 278
GALUPPO, op. cit., p. 202.
95
produto de uma sociedade plural e conflitante, não tem a harmonia
como uma de suas características. Utiliza-se no lugar do pensamento
sistemático, o problemático, que entende que o conhecimento jurídico
é concretista, ou seja, produzido a partir de casos concretos;279
b) o conceito de verdade inerente ao mundo objetivo é recusado pelo pós-
positivismo, que alega que o direito pertence ao mundo intersubjetivo,
que não trabalha com o critério de verdade, mas com o de correção
normativa. Por trás do termo verdade está a possibilidade de se
verificar a adequação de um enunciado para descrição do mundo
objetivo pela confrontação do enunciado com o próprio mundo. A
correção normativa, porém, não pode ser verificada no mesmo sentido
do que a verdade. O que se pode averiguar são as razões que a
sustentam, e essas razões serão sempre provisórias. A correção
normativa assume uma função contrafática, inerente ao conceito de
âmbito normativo. O único modo de se verificar a correção normativa
de um enunciado normativo é compará-lo a outro enunciado normativo
que, como ele, “não descreve, mas prescreve uma realidade.” Com
isso, embora os fatos possam nos convencer de que uma proposição é
falsa, não podem nos provar que são incorretas. A epistemologia pós-
positivista substitui a busca pela verdade no conhecimento jurídico pela
correção normativa na aplicação adequada de normas jurídicas a um
determinado contexto. Essa conceituação, segundo o autor, ancora-se
na contraposição aristotélica e tomista entre a ordem das coisas que
são sempre – objeto da ciência – e a ordem das coisas que são na
maioria das vezes – objeto da prudência. “Ciência (e verdade) implicam
previsão, o que é impossível no direito. Prudência implica um saber
circunstancial;”280
279
GALUPPO, op. cit., p. 202. Paulo Roberto Soares Mendonça, ao enfrentar as críticas feitas por Canaris à tópica, em especial a impossibilidade de conciliação do modelo sistemático com a tópica, ressalta que não há um único conceito de sistema. Afirma, ainda, que não dá para sustentar a inexistência de um caráter sistemático no direito inglês e estadunidense, em virtude de suas normas serem derivadas da solução de casos concretos. Com isso, sustenta que não há incoerência na concepção de um sistema jurídico originário de operações tópicas; essa impossibilidade de conciliação dos dois modelos não passa, em sua intelecção, de mais um mito. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 243-247. 280
GALUPPO, op. cit., p. 203-205.
96
c) Por último, ao pretender-se um conhecimento de ordem hermenêutica
para o direito, recusa o estatuto teórico descritivo das ciências naturais.
Com a distinção entre o plano de aplicação e o plano de justificação
das normas jurídicas positivas281, tem-se que se uma norma é genérica
em sua criação, não deve, no entanto, ser aplicada indistintamente em
qualquer circunstância. A atividade do legislador é incompleta,
competindo ao aplicador um juízo de adequabilidade da norma ao
caso, verificando se as condições de aplicação de uma determinada
norma estão presentes no caso concreto.282
Galuppo conclui que o pós-positivismo nega ao direito o caráter de
ciência, afirmando que o conhecimento jurídico não é científico e nem precisa sê-lo,
em especial se tiver como objetivo a emancipação humana.283
A concepção pós-positivista defendida por Müller é elaborada „de baixo
para cima‟, a partir das dificuldades cotidianas do trabalho jurídico, tendo sido
desenvolvida, de forma indutiva, a partir de muitas centenas de análises da
jurisprudência da corte suprema.284
Nesse viés pós-positivista, Müller tece pesadas críticas ao positivismo, em
virtude da impossibilidade, sob os seus auspícios, de nexo material entre as normas
de direito constitucional e dados da história e da sociedade atual. Não há negação
desses nexos, mas eles são considerados indiferentes para a ciência jurídica. O
direito vigente apresenta-se como um sistema de enunciados jurídicos sem lacunas,
isto é, todos os casos imagináveis já foram pré-decididos. O positivismo
compreende, equivocadamente, a norma jurídica como ordem, como juízo hipotético,
como premissa maior formalizada segundo os princípios da lógica formal, como
vontade materialmente vazia, como se a lei não fosse produção humana.285
Desnudadas a insuficiência e debilidade do positivismo, Müller aponta
outro problema: a ineficácia da maioria dos métodos que se dispõe a superar o
positivismo. A bibliografia científica está impregnada dos mesmos problemas
encontrados na jurisprudência. Existe consenso sobre a insuficiência das regras
281
Cf: GÜNTHER, Klauss. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004. 282
Ibid., p. 205. 283
Ibid., p. 205. 284
MÜLLER, Friedrich. Concretização da Constituição. In: Métodos de trabalho do Direito Constitucional. 3. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 131. 285
Ibid., p. 41-42.
97
tradicionais de interpretação para a concretização dos direitos fundamentais e da
constituição, contudo, os procedimentos propostos como substitutos não atendem
aos imperativos de clareza dos métodos jurídicos característicos do estado de direito
e nem aos requisitos de objetividade jurídica que asseguram a medida possível da
segurança jurídica. 286
Tributa-se o fracasso dessas concepções à tentativa de superação do
positivismo sem o abandono de seu contexto teórico, de sua compreensão da
norma, que trata texto da norma e norma como sinônimo. Além disso, as prescrições
jurídicas são vistas como ordens logicizadas ou juízos hipotéticos, em vez de
modelos de ordenamento materialmente determinados.287
Assevera Müller que as concepções tradicionais se valem de fórmulas em
branco como „finalidade‟, „razoabilidade‟ e „adequação‟ para esconderem os
argumentos materiais. Na concepção pós-positivista, por sua vez, eles são
nomeados claramente, correlacionados aos outros elementos, processados
abertamente, o que auxilia na redução do arbítrio. Os fatos não podem sustentar de
qualquer maneira a decisão ou o sentimento pessoal sobre o que é direito, mas sim:
Devem poder identificar-se para tal fim, por meio de um trabalho de fundamentação segundo o critério do programa da norma, sendo que esse trabalho deve ser apresentado abertamente. E o programa da norma é obtido pela interpretação integral e racionalmente recapitulável de todos os elementos, primacialmente lingüísticos, da concretização (da constituição).
288
Müller aponta as contradições presentes no discurso tradicional,
sustentando que é exigência do estado de direito a garantia da tecnicidade das leis
constitucionais, como forma mínima de controle do grau de objetividade
genericamente alcançável pelo trabalho jurídico. Contudo, os problemas de
concretização jurídica não podem ser superados mediante a aplicação de decisões
voluntaristas preexistentes e nem pela subsunção e pela inferência silogística feita
com o auxilio dos cânones savignyanos. Para ele, é incontestável que as regras de
interpretação de Savigny não foram formuladas para dar conta do direito
286
Uma severa crítica é feita por Müller ao uso corrente na seara constitucional dos métodos tradicionais de interpretação. Afirma que a mais violenta crítica à tendência presente na metódica constitucional atual de transformação de categorias como „valor‟, „ordem de valores‟ ou „sistema de valores‟ em categorias de concretização jurídica parte de uma posição que recomenda um retorno às regras tradicionais da hermenêutica desenvolvidas por Savigny. Segundo essa corrente, a dissolução da lei constitucional em casuística transformaria o Estado de Direito em Estado do Judiciário. Müller, 2000, passim. p. 39-43. 287
MÜLLER, 2000, passim. p. 39-43. 288
MÜLLER, op. cit., p. 132-133.
98
constitucional, mas podem ser utilizadas como pontos de vista auxiliares, cuja
fecundidade varia de acordo com peculiaridades das normas jurídicas
concretizandas.289
Nessa concepção, restringir a análise do direito à sua forma de linguagem
impossibilita perceber que o direito constitucional positivo possui um teor material
normativo. A percepção da constituição como estrutura evidente de normas que
deve ser concretizável com as regras savignyanas de interpretação textual impede
que o possível seja transformado em dever, ao mesmo tempo em que converte o
impossível em postulado.290
Para Müller, o direito constitucional é uma disciplina jovem, ainda pouco
fundamentada, dependente da política em grau relativamente forte, além de ser
pouco diferenciada em termos técnicos e formais. Os elementos de teoria utilizados
pelo direito constitucional são pouco claros. O disciplinamento desses elementos por
meio de uma metódica do direito constitucional que não extrai os seus enunciados
de conteúdos teóricos ou ideológicos, mas das possibilidades da concretização
prática, exige um novo enfoque.291
Em que pese os métodos pautados nas regras de Savigny terem utilidade
histórica nas searas civilista e penalista, no âmbito constitucional a sua utilização é,
no mínimo, injustificada. O ponto chave de fundamentação de uma metódica
jusconstitucional deve ser a teoria da norma jurídica, principalmente no que tange à
diferenciação entre o texto da norma e a norma jurídica propriamente dita.292
3.1.1 A metódica estruturante como esboço de uma metódica do direito
constitucional
Para Müller, a metódica do trabalho no direito constitucional é uma
metódica de titulares de funções. Ao lado da jurisprudência e da ciência jurídica, a
legislação, a administração e o governo trabalham, em nível hierárquico igual, na
concretização da constituição.293 O modelo seqüencial estruturante não vale apenas
para o juiz, mas para todos os funcionários para os quais foi delegada competência
289
MÜLLER, op. cit. p. 43-44. 290
Ibid., p. 45-46. 291
Ibid., p. 47. 292
Ibid., p. 48-49. 293
Ibid., p. 51.
99
decisória segundo prescrições jurídicas.294 A própria observância da norma, salienta-
se, também configura a sua concretização, à medida que um conflito constitucional
ou um litígio deixam de ocorrer.295
Cumpre à metódica decompor os processos de elaboração da decisão e
da fundamentação expositiva em passos de raciocínios suficientemente pequenos
para abrir o caminho ao feedback controlador por parte dos destinatários da norma,
dos afetados por ela, dos titulares de funções estatais e da ciência jurídica.296
O enfoque hermenêutico defendido por Müller está ancorado na não-
identidade entre texto da norma e norma. O teor literal de uma prescrição juspositiva,
assevera em clássica passagem, é apenas a ponta do iceberg normativo. O teor
literal serve, via de regra, à formulação do programa da norma, enquanto o âmbito
da norma, geralmente, é apenas sugerido como um elemento co-constitutivo da
prescrição.297
O texto da norma não produz a normatividade; ela é resultante dos dados
extralingüísticos de tipo estatal-social, de um funcionamento e de uma atualidade
efetivos desse ordenamento constitucional para motivações empíricas na sua área.
Decorre, assim, de dados que mesmo que se quisesse não poderiam ser fixados no
texto da norma.298
Em outras palavras, essa propriedade do direito de ter sido elaborado de
forma escrita, lavrado e publicado segundo um determinado procedimento ordenado
por outras normas, não é idêntica à sua qualidade de norma. A normatividade que
se manifesta em decisões práticas não está orientada lingüisticamente apenas pelo
texto da norma jurídica concretizanda. A decisão é elaborada com a ajuda de
materiais legais, de manuais didáticos, de comentários e estudos monográficos, de
precedentes e de material do direito comparado, isto é, com o auxílio de inúmeros
textos que não são idênticos ao teor literal da norma, transcendendo-o.299
Segundo Müller, somente a partir da observação do trabalho jurídico na
práxis e na ciência é que foi possível delinear os fundamentos de uma hermenêutica
jurídica que aponta para além do positivismo legalista. A metódica jurídica
tradicional, à luz da teoria da comunicação, apresenta – com sua concentração na
294
MÜLLER, 2005, p. 132. 295
Ibid., p. 51. 296
MÜLLER, 2000a., p. 53. 297
Ibid., p. 53. 298
Ibid, p. 54. 299
Ibid., p. 54-55.
100
teoria da interpretação do texto, da univocidade, com a idéia de conteúdo pronto –
um estilo ontológico de raciocínio.300
Nessa perspectiva, a chave para a construção do esboço de uma
metódica pós-positivista está ancorada na estrutura da norma e na normatividade.301
Como já dito, o texto da norma não contém a normatividade e a sua estrutura
material concreta, mas apenas dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da
concretização materialmente determinada do direito no âmbito do seu quadro302.
Dessa maneira, a norma jurídica não pode ser vista apenas como texto
lingüístico inicial, mas como um modelo ordenador materialmente definido. A
normatividade
não é nenhuma propriedade substancial dos textos no código legal, mas um processo efetivo, temporalmente estendido, cientificamente estruturável: a saber, o efeito dinâmico da norma jurídica, que influi na realidade que lhe deve ser atribuída (normatividade concreta) e que é influenciada por essa mesma realidade (normatividade materialmente determinada).
303
3.1.2 A teoria da norma de Friedrich Müller
Como já evidenciado, a teoria da norma delineada por Müller assenta-se
na tese da não-identidade entre norma e texto de norma, que o positivismo,
equivocadamente, igualou, criando, do ponto de vista da lingüística jurídica, um mito
consistente na suposição de que para cada caso jurídico há uma única solução, que
já está dada de antemão nos textos das leis.304
A metódica estruturante do direito desnudou as reais possibilidades de
superação desse mito, apresentando-se como um genuíno ferramental de trabalho
pós-positivista.305 A norma jurídica, dessa maneira, afigura-se como algo muito maior
do que a literalidade do seu texto. Robert Alexy sustenta que, para Müller, reduzir a
300
MÜLLER, 2000a, p. 55. 301
Ibid., p. 56-57. 302
Marcelo Neves afirma que a relação entre texto e realidade constitucionais não se confunde com a antiga antinomia entre norma/realidade constitucional, da qual a teoria de Jellinek da força normativa do fático é exemplo e, até mesmo, a própria teoria de Hesse não conseguiu se desvincular, na medida em que sua teoria trata apenas da relação da Constituição Jurídica com a realidade. NEVES, 1994, op. cit., p. 76-77. 303
MÜLLER, 2005, p.130. No mesmo sentido, Cf. NEVES, 1994, p. 77. 304
Ibid., p. 129. 305
Ibid.
101
norma jurídica ao seu aspecto meramente lingüístico seria uma mentira vital pautada
em uma compreensão meramente formalista do estado de direito.306
Com a metódica estruturante, parte-se do pressuposto de que a norma
jurídica é também determinada pela realidade social, pelo âmbito normativo.
Compõem a norma jurídica: i) o programa da norma, isto é, o texto da norma
interpretado à luz dos métodos tradicionais; ii) o âmbito da norma, que é o recorte da
realidade social, na sua estrutura básica, que o programa da norma escolheu para si
ou em parte criou como seu âmbito de regulamentação.307
O programa da norma nada mais é do que o texto da norma interpretado
à luz dos métodos clássicos de interpretação – interpretação gramatical, histórica,
sistemática, etc. –, afigurando-se como resultado parcial do processo de
concretização308. Adeodato salienta que os textos de norma são os textos
componentes do ordenamento jurídico – textos de leis, processos, acórdãos,
sentenças. Compõem-se de dados lingüísticos – a língua em que foram escritos,
respeitando-se as suas regras de inteligibilidade – e de dados reais – o contexto
fático em que atuam: estupro, matar, alguém.309
A interpretação em Müller, continua Adeodato, compreende as etapas
apontadas pelos métodos tradicionais, como o gramatical, o sistemático e o
subjetivo. O elemento subjetivo divide-se em duas partes, a histórica – trabalha com
textos de normas anteriores – e a genética – elementos e processos sociais que
deram a feição ao texto. Todos esses elementos comporão o programa da norma.
Ao estabelecer regras de preferência, Müller afirma que os elementos imediatamente
ligados ao texto da lei, como o gramatical e o sistemático, são privilegiados na
interpretação. Essa função limitadora do texto tem como pressuposto o estado
democrático de direito.310
O texto da norma é importante na interpretação, pois fixa os limites a
partir dos quais a norma será concretizada. Aproxima-se, desse modo, da idéia de
moldura kelseniana, como elemento impeditivo do decisionismo.311 Assevera
Adeodato que “essa função limitadora do texto não é metodológica, mas sim
306
ALEXY, 1993, p. 73-75. 307
Müller, 2000, p. 57. 308
ADEODATO, 2002, p. 242. 309
Ibid., p. 242. 310
Ibid., p. 238-239 e 242. 311
Dizer que um texto de norma jurídica comporta mais de uma possibilidade interpretativa, não é o mesmo que afirmar que ele comporta qualquer possibilidade interpretativa.
102
normativa, sua fundamentação é deôntica e não científica.” Muitas normas
decisórias concretizadas mediante procedimentos metodologicamente corretos e
convincentes podem não ser compatíveis com os textos previamente fixados no
sistema. A preferência pelos elementos formais constitui-se um „elemento
estabilizador de primeiro nível e um pressuposto insubstituível de sociedades
complexas do tipo da sociedade industrial‟.312
Karl Larenz, no mesmo sentido, salienta que em Müller o texto da norma
funciona como a baliza da “concretização possível da norma”, servindo como limite
de compatibilidade da decisão judicial.313 O programa da norma, portanto, não é
nem unívoco nem absolutamente vago. Ele indica espaços de ação metodicamente
domináveis, dentro dos quais o trabalho jurídico se deve legitimar e com base nos
quais ele pode ser controlado e criticado.314
O âmbito da norma é também um fator co-constitutivo da normatividade.
Não é idêntico aos pormenores materiais do conjunto dos fatos, mas uma parte
integrante da própria prescrição jurídica. Da totalidade dos dados afetados por uma
prescrição do âmbito material, o programa da norma destaca o âmbito da norma
como componente da hipótese legal normativa.315
Desse modo, desponta o âmbito normativo como a estrutura básica do
segmento da realidade social que o programa da norma escolheu para si como a
sua área de regulamentação – por exemplo, as circunstâncias factuais de um furto
qualificado – ou que ele em parte criou – por exemplo, normas que explicam o que
se pode entender como “aptidão” para o serviço público. Pode ser ou não gerado
inteiramente pelo direito, devendo ser encontrado empiricamente.316
Segundo Jean Uema, o âmbito da norma “não é uma realidade fora do
direito, como se fora o fato social se encaixando na hipótese legal já determinada
aprioristicamente pelo aplicador.” Implica uma seleção feita pelo programa da norma.
Não se realiza uma operação lógico-formal, mas lógico-dialética de
complementaridade entre o texto e o contexto. A identificação do âmbito da norma
312
ADEODATO, op. cit., p. 238-239. 313
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p.183. 314
MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional. Tradução Peter Naumann. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 44. 315
MÜLLER, 2000a, p. 58-59. 316
MÜLLER, 1995, p. 42.
103
deve ser feita empiricamente, o que dependerá da formação dos juristas.317 Uma
formação meramente tecnicista, ancorada apenas na leitura acéfala de extensas
codificações, não dá conta da realidade com a qual o profissional do direito terá de
lidar, principalmente no que tange ao trabalho com o âmbito da norma.
O âmbito da norma pode se referir a elementos da realidade de naturezas
diversas, quais sejam:
a) exclusivamente jurídicos – normas processuais;
b) sociais – relações de trabalho, educação, saúde;
c) econômicos – livre iniciativa, juros, orçamento, etc.;
d) políticos – organização política do Estado, entre outros.318
O âmbito da norma, portanto, transcende a mera faticidade de um recorte
da realidade extrajurídica, não podendo ser interpretado como mera força normativa
do fático. Ele entra no horizonte visual da norma jurídica e da norma de decisão
unicamente no enfoque indagativo determinado pelo programa da norma. Tratar o
âmbito da norma como normativo não faz com que a legislação, a administração e
os tribunais sucumbam a nenhuma normatividade apócrifa do fático. De acordo com
Müller, o próprio Tribunal Constitucional Federal alemão insurgiu-se contra as
acusações de que tal procedimento decorreria de um sociologismo ou de uma
metódica não-jurídica.319
Na práxis jurídica é comum os cânones oriundos dos métodos tradicionais
da interpretação de Savigny encobrirem, por meio da linguagem, partes integrantes
do âmbito da norma que, por força da sua consistência material, são co-
determinantes da decisão do caso jurídico.320
Assevera Friedrich Müller que “as diferenças das várias disciplinas
setoriais da ciência do direito estão fundadas na diferente autonomia material dos
âmbitos da norma.” Em normas como as processuais, salienta, “[...] os âmbitos das
normas desaparecem por trás dos programas das normas.”321 Quanto mais
materialmente vinculada for uma norma, quanto mais partes integrantes não-geradas
pelo direito contiverem o seu âmbito da norma, tanto mais a sua implementação
317
UEMA, Jean Keiji. Considerações sobre a interpretação constitucional. In: SCALOPPE, Luiz Alberto Esteves (Org.). Transformações no Direito Constitucional. Cuiabá: Fundação Escola, 2003, p. 266-267. (Série Transformações no Direito Nacional, n. 2). 318
Ibid., p. 266-267. 319
MÜLLER, 2000a, p. 58-59. 320
Ibid., p. 59. 321
Ibid., p. 59-60.
104
carecerá dos resultados de análises do âmbito da norma. No caso de prescrições de
direito constitucional, os âmbitos da norma são fecundos e possuem um peso
decisivo para a concretização.322
Müller apresenta alguns exemplos de fatores tipológicos da estrutura da
norma e das suas condições distintas de concretização, dos quais se destacam:
a) a peculiaridade do âmbito material – de maior relevância política e
social, gerado pelo direito, etc.;
b) a confiabilidade do texto da norma na formulação do programa da
norma;
c) a precisão do programa da norma formulado no teor literal quando do
recorte do âmbito da norma do âmbito material;
d) o grau e o estado do tratamento – científico – de uma área de
regulamentação dentro e fora da ciência e da práxis jurídicas;
e) a posição normativa da prescrição jurídica a ser concretizada, na
codificação ou no ordenamento constitucional – por exemplo, na
constituição: determinação da forma de estado, imperativos do estado
de direito de concretude variável, direitos fundamentais, etc.323
3.1.3 A interpretação como concretização
Konrad Hesse afirma em seu Escritos de Derecho Constitucional que não
existe interpretação constitucional desvinculada dos problemas concretos.324
Segundo Uema, esse entendimento afasta as concepções metafísicas e os seus
abstracionismos, que concebem as normas jurídicas como idéias prontas e
acabadas, ora representando a vontade do legislador, ora a da lei, das quais os
fatos sociais seriam subsumidos. Com Müller, por sua vez, tem-se que a
interpretação, ao mesmo tempo em que já opera com o caso concreto a se resolver,
liga-se à aplicação no processo de concretização da constituição, atualizando-a e
realizando-a.325
322
Ibid., p. 60. 323
Ibid., p. 60-61. 324
HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional – (selección). Traducción Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 43-45. 325
UEMA, op. cit., p. 251.
105
Afirma Adeodato que Müller chama de concretização o que
tradicionalmente se denomina interpretação. Esta, por sua vez, não significa
silogismo. Esses critérios meramente formais, sem exigência de responsabilidade e
fundamentação, constituem herança equivocada do positivismo exegético. Como a
produção normativa ocorre somente na concretização, tem-se que “a hermenêutica
em Müller não é ontológica ou essencialista, mas também não consiste no estudo
dos procedimentos retóricos ou metodológicos da normatividade jurídica: ela
investiga os pressupostos teóricos da atividade do jurista”.326
Na seqüência, Adeodato enfatiza que em Müller a interpretação é um
conceito restrito, reduzindo-se à interpretação de textos normativos. Porém, como a
norma jurídica é mais do que o texto, a concretização vai além da interpretação. Os
pontos de vista interpretativos comuns – gramaticais, sistemáticos, genéticos –,
fundados inicialmente na linguagem, fornecem os „dados lingüísticos‟ – ex. m com u
formam a sílaba um; Isabel viu Cristina é diferente de Cristina viu Isabel, devido à
relação entre sujeito e objeto – (Sprachdaten); os “dados reais” (Realdaten) são
fornecidos pelos elementos naturais e sociais, por exemplo: dois corpos não ocupam
o mesmo lugar no espaço; há força gravitacional; um lenço, ao cair, faz menos
barulho do que um copo; uma faca é capaz de atravessar um corpo humano. Eles
constituirão, sucessivamente, os elementos do âmbito do caso e do âmbito da
norma. São os dados pré-jurídicos brutos, formando o contexto antes do início da
concretização. A metódica estruturante procura conectar tais dados ao processo
decisório, de forma juridicamente regular, evitando a forma arbitrária ou “puramente
pragmática” dos decisionistas.327
Para Müller, a interpretação do teor literal da norma é um dos elementos
mais importantes no processo de concretização, mas somente um elemento. Uma
metódica destinada a ir além do positivismo legalista deve indicar regras para a
tarefa da concretização da norma no sentido abrangente da práxis efetiva. Ela deve
elaborar os problemas da pré-compreensão da ciência jurídica e do fato da
concretização estar referida ao caso. Com isso, comprova-se a normatividade
apenas na regulamentação de questões jurídicas concretas.328
326
ADEODATO, op. cit., p. 240. 327
Ibid., p. 240-241. 328
MÜLLER, 2000a, p. 61.
106
A necessidade de interpretação de uma norma não advém, leciona Müller,
de seu caráter plurívoco, mas da necessidade se sua aplicação a um caso - real ou
fictício. A norma jurídica, ao contrário do que alega o positivismo, não está pronta
nem substancialmente concluída. Ela é um núcleo materialmente circunscritível da
ordem normativa, diferenciado com os recursos da metódica racional, concretizado
no caso individual e “com isso quase sempre tornado nítido, diferenciado,
materialmente enriquecido e desenvolvido dentro dos limites do que é admissível no
Estado de Direito (determinados sobretudo pela função limitadora do texto da
norma).”329
Chama-se a atenção, com Müller, para o fato de um enunciado jurídico
não funcionar mecanicamente. A „subsunção‟, ressalta, “é apenas aparentemente
um procedimento lógico formal; na verdade, é um procedimento determinado no seu
conteúdo pela respectiva pré-compreensão de dogmática jurídica”. A futuridade da
norma não permite que a vontade nem a decisão de uma prescrição em si possam
ser identificadas; não há, portanto, que se falar em vontade do legislador ou da
norma jurídica. O dogma voluntarista descende da pandectística e privou a norma, a
partir da separação entre direito e realidade, da relação material com o seu âmbito
de regulamentação e vigência. 330
Toda e qualquer norma somente faz sentido com vistas a um caso a ser
(co) solucionado por ela. A necessidade de uma decisão jurídica abrange a
problemática da compreensão, os momentos e procedimentos cognitivos. Contudo,
a decisão não se esgota nas suas partes cognitivas. Ela aponta para além das
questões hermenêuticas. Afirma Müller que a força enunciativa de uma norma para
um caso é provocada por esse mesmo caso e que, citando Esser, “[...] „a
concretização da norma jurídica em norma de decisão e do conjunto de fatos,
juridicamente ainda não decidido, em caso jurídico decidido deve comprovar a
convergência material de ambos, publicá-la e fundamentá-la.‟”331
Para Karl Larenz, “Müller contesta a contraposição estrita entre ser e
dever ser, entre a norma e a realidade a que ela se dirige.” Para ele, concretização
não significa tornar a norma mais concreta, mas produzir pela primeira vez a norma
que servirá de parâmetro para a decisão do caso. O texto da norma não é a norma
329
Ibid., p. 61-62. 330
Ibid., p. 62-63. 331
Ibid., p. 63-64.
107
de acordo com a qual o caso será resolvido, isto é, não é a norma decisória, mas
tão-somente o ponto de partida para a sua construção. Nesse caso, a decisão teria
apenas de ser compatível com o texto da norma, que seria o parâmetro de
concretização possível. A norma não está pronta e acabada, o seu sentido
completa-se apenas na concretização. Desse modo, somente na argumentação
jurídica o texto obtém significado e é produzida a base decisória da sentença.332
Segundo Larenz, Ralph Christensen, ancorado em Müller, ensina que
seria um erro acreditar que a norma jurídica, como base decisória de uma sentença,
já está dada no texto da norma; ela deve, na verdade, ser elaborada em primeira
mão pelo juiz. A aplicação de uma norma não é possível apenas por meio de uma
simples subsunção.333
Em sua teoria Müller enfrenta a importante discussão sobre a pré-
compreensão do intérprete e o papel por ela desempenhado no trabalho jurídico.
Influenciado pela leitura gadameriana da hermenêutica filosófica334, levanta essa
discussão apontando caminhos para que o jurista lide com essa zona de penumbra
composta pela pré-compreensão. Partindo-se da existência da pré-compreensão do
intérprete não se pode falar em neutralidade axiológica, todavia, também não se
pode falar em arbítrio: nem certeza absoluta, nem relatividade plena, eis o ponto de
equilíbrio.
Para a hermenêutica filosófica a descoberta do sentido e a aplicação
estão inseparavelmente reunidas num processo unitário, que inclui,
obrigatoriamente, o sujeito compreendente, sem o qual o sentido do texto a ser
compreendido nem poderia ser concretizado e, nessa medida, completado. A
dimensão especificamente jurídica de contextos de dominação e do uso da
violência, que sanciona em última instância a decisão jurídica, está vinculada à
linguagem e, com isso, às suas condições gerais.335
332
LARENZ, op. cit., p. 183-184. 333
Ibid., p. 185-186. Assevera Müller que é em virtude desse estado de coisas que fracassou a tentativa de operacionalização total da normatividade jurídica por meio de computadores. Esse procedimento só faz sentido onde a aplicação da lei excepcionalmente não se apresenta como concretização, mas como simples subsunção. Uma axiomatização que não possa levar em consideração as estruturas e funções fortemente diferenciadas dos enunciados jurídicos e, sobretudo, dos âmbitos das normas, que pertencem a elas com grau hierárquico igual, já ignora, de plano, as funções sociais e as estruturas do direito positivo. MÜLLER, 2005, op. cit., p. 45. 334
Cf. GADAMER, 1997, passim; ROHDEN, op. cit., p. 65; STRECK, 2001, passim. 335
MÜLLER, 1995, p. 40-41.
108
Müller apresenta alguns conceitos centrais da hermenêutica filosófica,
mas, como se verá na seqüência, abandona-os, adotando conceitos análogos
desenvolvidos em conformidade com a metódica jurídica. Assim, o autor parte da
hermenêutica filosófica, porém tenta superá-la, por entender que ela não atende às
exigências de racionalidade e controle típicos do direito.
Os elementos considerados centrais na hermenêutica filosófica são:
e) a referência à práxis, que precede toda e qualquer interpretação;
f) a referência vital do intérprete ao processo de compreensão;
g) a pré-compreensão;
h) a inserção do intérprete num contexto de tradição a ser atualizado.336
Quando se está diante do processo de interpretação de textos de norma a
compreensão e a pré-compreensão são essenciais. A compreensão do texto está
determinada, permanentemente, pelo movimento antecipatório da pré-
compreensão.337 A possibilidade de interpretação está vinculada à existência de
compreensão, e esta, por sua vez, depende da pré-compreensão do intérprete. Não
existe interpretação sem pressupostos, da mesma forma que não há relação jurídica
sem relação social.338 Como conheço as coisas a partir de “pré-conceitos”, estes se
incorporam a elas, de modo que quando as conheço, conheço também “pré-
conceitos”. O ser-no-mundo carrega esta experiência do estar-aí (dasein) da qual
não pode se desvincular: minha compreensão-de-mundo não pode ser modificada
por já ser determinada pela minha visão-de-mundo.339
Ao tratar do papel que a pré-compreensão desempenha no trabalho
jurídico Müller sustenta que
a dogmática, a teoria e a metódica do direito (constitucional) devem disponibilizar meios para fundamentar os momentos especificamente jurídicos desse caráter de pré-julgamento autonomamente como pré-compreensão normativa e materialmente referida do universo jurídico, para delimitá-la de forma clarificadora, diferenciá-la e introduzi-la destarte no processo da concretização como fator estruturado, controlável e discutível.
340
No mesmo sentido, afirma que
a pré-compreensão jurídica e a sua justificação racional [...] é assim o lugar de uma crítica das ideologias que nasce da práxis e não deve ser feita auto-
336
Ibid., p. 40. 337
STRECK, op. cit., p. 207. 338
Ibid., p. 264. 339
BITTAR, op. cit., p. 184. 340
MÜLLER, 2000a, p. 64-65.
109
suficientemente com vistas à própria práxis, mas com vistas à racionalidade e correção da decisão a ser tomada.
Para Müller, a ciência do direito possui as suas especificidades: de um
lado, em razão de sua matéria histórica, não goza da objetividade das ciências
naturais; de outro, diferencia-se das ciências humanas compreensivas, em virtude
de sua vinculação ao direito positivo vigente. Evidencia-se, dessa maneira, que o
direito não é dotado, como queriam os positivistas, da objetividade e verificabilidade
das ciências da natureza, também não possui a abertura presente nas ciências
humanas, pois é uma ciência normativa, vinculada ao ordenamento jurídico
vigente.341
Em passagens como essa fica cristalina a importância da escolha do
pensamento de Müller como parte deste trabalho: ele retira o direito do formalismo
reducionista caracterizador do positivismo/normativismo, ao mesmo passo em que
lhe empresta elementos de controle e racionalidade fundamentais na esfera de
atuação de um estado constitucional de direito. O postulado da objetividade jurídica
não pode ser um conceito ideal absoluto,342 mas, sim, tratado sob o ponto de vista
de uma racionalidade verificável da aplicação do direito, suscetível de discussão, e
como postulado da sua adequação material. A objetividade não pode alegar se
defrontar com a prescrição e o caso sem pressupostos, pois estes são dados com a
linguagem que abrange tanto as prescrições jurídicas quanto os intérpretes.343
A ciência jurídica deve verificar, segundo Müller, os seus pressupostos,
diferenciá-los e expô-los em termos de método, sem falseamento ou
embelezamento: “A necessidade da racionalidade mais ampla possível da aplicação
do direito segue da impossibilidade da sua racionalidade integral; admitir isso seria
ignorar o caráter de decisão e de valoração do direito”. Dando continuidade,
assevera que “sem a sobriedade do excesso racionalista a ideologia poderia
desenvolver-se sem limites e controles”344
Retornando à abordagem específica da concretização jurídica tem-se que
a mesma não consiste em mera reelaboração de valorações legislativas. A norma
341
Ibid., p. 65. 342
O escritor uruguaio Eduardo Galeano, em seu Livro dos Abraços, em uma crônica chamada Celebração da Subjetividade diz “[...] Os que fazem da objetividade uma religião, mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor humana”. GALEANO, Eduardo. O Livro dos abraços. Tradução Eric Nepomuceno. 11. ed. Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 118. 343
MÜLLER, 2000a, p. 65. 344
Ibid., p. 65-66.
110
jurídica deve regulamentar uma quintessência indeterminada de casos jurídicos
práticos, nem concluída nem suscetível de sê-lo no futuro. Tais casos não podem e
não devem ser pré-solucionados pelo legislador. As competências repartidas entre
executivo, legislativo e judiciário não são para a explicação, recapitulação de textos
de normas, mas competências para a concretização jurídica e a decisão do caso
com caráter de obrigatoriedade, em cujo quadro a interpretação como explicação do
texto constitui um elemento importante, mas apenas um entre outros.345
Sustenta Uema que “[...] sem uma interpretação adequada da Constituição
não pode haver nenhuma Constituição efetiva.” O processo interpretativo, como
atividade racional de desvelamento da normatividade, está ligado, obrigatoriamente,
à idéia de concretização, que visa à aplicação da norma a um caso concreto. Afirma,
na seqüência, que “a interpretação da Constituição realiza sua atualização,
entendida a normatividade com sua referência ao futuro, ao adequar a norma, dentro
dos limites de possibilidades de seu programa, à nova realidade social.”346
Karl Larenz, abordando Müller, ensina que a norma que está na lei
precisa de clarificação e precisão, sendo este, justamente, o trabalho do juiz.
Ressalva-se, todavia, que a interpretação da norma não pode ser feita ao seu bel
prazer: ele tem de encontrar uma norma para o caso, mas deve aplicar a norma que
lhe é dada do modo que reconhecer como correto, a cada um dos casos que lhe
caiba julgar. Para Müller, desse modo, todo o direito aplicado por um tribunal é
direito judicial, com isso, critica Larenz, a quota da legislação é tratada no processo
decisório com menos importância do que merece.347
3.2 Sobre a metódica estruturante
A metódica de Müller, na intelecção de Paulo Bonavides, é concretista,
tendo como inspiração principal a tópica348, “a qual ele faz alguns reparos,
345
Ibid., p. 66-67. 346
UEMA, op. cit., p. 268-269. 347
LARENZ, op. cit., p. 184-185. Aparenta-se exagerada a crítica de Larenz, pois Müller insiste sempre, em sua teoria, na importância que tem o texto da norma como elemento estabilizador, inclusive sustentando que os elementos de interpretação diretamente relacionados aos textos de norma devem ter prevalência em caso de conflito. 348
Sobre essa afirmação de Bonavides de que a teoria de Müller tem inspiração tópica, pode se levantar a seguinte questão: a metódica estruturante subverteu tanto os pressupostos do método tópico-problemático que se pode perguntar o que restou efetivamente desse método no pensamento de Müller? Mas isso já é assunto para uma outra dissertação.
111
modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia
proposta.”349
Canotilho350 aponta que a metódica normativo-estruturante tem por
escopo investigar as várias funções de realização do direito constitucional,
pretendendo-se ligada à resolução de problemas práticos, de maneira a captar as
transformações das normas e concretizá-las numa decisão prática. Para isso, “deve
preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de
normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização
normativa e com as funções jurídico-práticas.”351
Müller, em passagem digna de transcrição literal, lança os contornos da
metódica estruturante. A metódica, diz ele:
resume o que foi dito sobre a estrutura de norma e texto da norma, de normatividade e processo de concretização, sobre o nexo entre concretização estruturada da norma e as tarefas das funções individuais da práxis jurídicas, sobre a não-identidade de norma e texto da norma e sobre a não-identidade de concretização e interpretação; resume, outrossim, os enunciados sobre os papéis da pré-compreensão, do „sistema‟, da „axiomática‟ e da „tópica‟. A metódica estruturante analisa as questões da implementação interpretante e concretizante de normas em situações decisórias determinadas pelo caso. Ela apreende a hierarquia igual de elementos do programa da norma e do âmbito da norma. Ela procura
349
BONAVIDES, op. cit., p. 456. Para Müller, quando a tópica dá primazia ao problema ela deixa de atender as exigências de controlabilidade e objetividade que devem ser buscadas pelo processo de concretização do direito constitucional. Segundo ele, tendo em consideração a abordagem tópica, não é possível que se proponha exceder, no caso de conflito, o direito vigente em proveito de uma solução mais apropriada ao problema. Esta concepção viola em vários pontos o direito (constitucional) positivo, abstração mesma feita das liberdades tomadas com a prescrição que se impõe em cada caso específico: viola a intangibilidade da Constituição democrática e liberal, a submissão às normas, mesmo as infraconstitucionais, os imperativos de segurança jurídica, igualdade e legibilidade da ordem jurídica e, por último e não menos importante, a determinação constitucional das relações entre as diferentes funções jurídicas. MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Traduit de l‟Allemand par Olivier Jouanjan. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 136. (Collection Leviathan). Paulo Roberto Soares Mendonça, tratando do assunto, sustenta que embora haja uma origem tópica do direito privado e não do direito público, com o advento do Estado de bem-estar social houve profundas alterações no papel do direito constitucional, de modo que as suas normas e princípios passaram a ser aplicáveis a casos concretos, sobretudo em situações que tratem da preservação de direitos fundamentais. Desse modo, a tópica passou a ter grandes possibilidades nesse campo, principalmente com a jurisprudência das cortes constitucionais. Para Mendonça, há aqui um choque entre Müller e Canaris; enquanto Müller vincula o método tópico ao direito privado, justificando com isso a sua dificuldade de aplicação no direito constitucional, Canaris vê no direito constitucional um campo fértil para a tópica, em virtude do trabalho frequente com cláusulas gerais. Segundo Mendonça, com a constitucionalização do direito privado, quando os interesses privados passaram a derivar de uma aplicação direta de princípios constitucionais, as limitações identificadas por Müller para a aplicação da tópica no direito constitucional perdem razão de ser. Penso, contudo, que as críticas de Müller a utilização da tópica no direito constitucional se devem mais aos motivos supra expostos, do que, propriamente, como afirmado por Mendonça, a uma origem histórica civilista da tópica. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 250- 251, 298- 299. 350
CANOTILHO, 1999, p. 1177. 351
Ibid., p. 1177.
112
desenvolver meios de um trabalho controlável de decisão, fundamentação e representação das funções jurídicas. Com isso ela se move na direção da exigência de encontrar graus de interpretação „à maneira‟ de Savigny, que sejam conformes ao direito constitucional atual. Diante da necessidade de estruturas normativas relativamente indistintas ela fornece com vistas a demandas futuras de regulamentação às „instituições de redução da indeterminidade, internas ao sistema‟, os instrumentos que nem Savigny nem o positivismo legalista tinham oferecido.
352 (grifo do autor)
Para Müller, a função da metódica, formulada em termos da teoria do
direito, consiste em elaborar regras para a imputação bem-sucedida das normas de
decisão estabelecidas no caso individual.
Como fundamentação, a metódica jurídica é uma técnica de decisão, pois
a solução de casos jurídicos é uma técnica decisória. Do ponto de vista político,
compete à metódica o deslocamento da responsabilidade pela decisão, orientação,
distribuição e dominação funcionalmente pessoal no caso individual, para instâncias
mais distantes como o legislativo e o judiciário. Por último, a função de racionalidade
da metódica consiste na sua instrumentalidade, que oferece calculabilidade à
sociedade econômica e comercial burguesa, produzindo efeito legitimador ao basear
tanto o status quo quanto a sua transformação na anuência, na solução de
compromisso e na opinião aceita da maioria: eis o limite da sua instrumentalidade.353
A instrumentalidade da metódica evidencia-se na possibilidade de ser
colocada a serviço de conteúdos políticos distintos. Seus limites estão na
necessidade de aceitação, pela maioria dos atingidos, dos conteúdos e modos de
procedimento do ordenamento jurídico.354
3.2.1 Pressupostos de uma metódica jurídica científica
De acordo com Friedrich Müller, o estado constitucional da Idade
Moderna, à medida que se constitui como estado de direito, exige e permite uma
metódica jurídica que opera com a pretensão de controlabilidade e de racionalidade,
isto é, de uma metódica científica no sentido definido. O lado técnico disso deve ser
assegurado por regras e garantias formais. Dessa maneira, não se elimina a função
dominadora e orientadora do ordenamento jurídico.355
352
MÜLLER, 2000a, p. 68-69. 353
MÜLLER, 1995, p. 28. 354
Ibid., p.30. 355
Ibid., p. 29-30.
113
Segundo Müller, nas operações da metódica jurídica que avançam entre o
programa da norma e o âmbito da norma, a “circularidade da compreensão”,
conhecida da discussão tradicional, pode ser comprovada no sentido de indagações
e dados parciais que se corrigem reciprocamente. O trabalho decisório, na sua
totalidade, não se torna tarefa de outros cientistas sociais, mas sim de juristas de um
novo tipo, profissionalizados como especialistas em ciências jurídicas e sociais. No
entanto, a tendência previsível da política universitária de exorcizar do estudo
tradicional do direito os restos remanescentes de sua cientificidade em prol de uma
eficiência economizadora de custos, deixa pouca margem à esperança de uma
cientifização considerável da práxis jurídica para o futuro próximo.356
Seguindo em sua argumentação, Müller afirma que a metódica
estruturante é uma metódica jurídica, desse modo, sua fundamentação só poderá se
basear na análise de técnicas práticas de trabalho nas funções da concretização do
direito e da constituição. A metódica estruturante não transfere, inadvertidamente, a
hermenêutica filosófica à ciência jurídica.357 Como já mencionado, Müller aponta
conceitos análogos da própria metódica estruturante que podem ser utilizados na
substituição de elementos típicos da hermenêutica filosófica, são eles:
a) diante da pré-compreensão geral coloca-se uma pré-compreensão
específica jurídica e de teoria jurídica, cujos pontos referenciais
356
MÜLLER, 1995, p. 46. Partilha-se dessa preocupação. Constata-se hoje, no Brasil, um ensino jurídico em avançado estado de deterioração, ministrado em mais de mil faculdades, muitas com inúmeras vagas ociosas, preocupadas muita mais com o sucesso e a rentabilidade de seus empreendimentos empresariais do que com o necessário oferecimento de um ensino de qualidade. Formam-se bacharéis acéfalos, leitores exclusivamente de sinopses, resumos, que tem feito com que manuais considerados paupérrimos há alguns anos, sejam hoje encarados como “clássicos” do direito, obras de aprofundamento para “eruditos. Um ensino jurídico como este forma – ou deforma – profissionais do direito com grandes limitações, inaptos a operarem com ferramentas metodológicas sofisticadas, como a teoria da argumentação, metódica estruturante, etc., mas que são fundamentais para a compreensão e aplicação de um modelo de direito como o emergido no Brasil com a Constituição Federal de 1988. Conferir, sobre ensino jurídico no Brasil: AGUIAR, Roberto A. R. de. A crise da advocacia no Brasil: diagnóstico e perspectivas. São Paulo: Alfa-Omega, 1991; ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Advogado e mercado de trabalho. Campinas: Julex, 1988a; ______. Introdução ao idealismo jurídico: uma releitura de San Tiago Dantas. Campinas: Julex, 1988b; ______. Ensino jurídico e sociedade: formação, trabalho e ação social. São Paulo: Acadêmica, 1989; FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1987; JUNQUEIRA, Eliane Botelho . Faculdades de Direito ou fábricas de ilusão? Rio de Janeiro: IDES, Letra Capital, 1999; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico: saber e poder. São Paulo: Acadêmica, 1988; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino Jurídico e Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Por um ensino alternativo do Direito: manifesto preliminar. In ARRUDA JR, Edmundo Lima (Org.). Lições de Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992, vol I, p. 143-154; Mais sugestões podem ser encontradas em <http://www.abedi.org/publicacoes.php>. 357
MÜLLER, 2000a, p. 70.
114
principais são normas vigentes, isto é, sancionáveis com violência e
tentativas de sua sistematização científica ou teórica;
b) o caráter modelar como marca essencial da atualidade do contexto de
tradição ou de compreensão é aqui o caráter modelar de uma validade
com caráter vinculativo, é dizer, caráter modelar de uma pretensão a
um determinado comportamento, exigida em última instância com
ajuda de violência;
c) a referência à vida e à práxis está aqui inserida precisamente nesse
quadro do processo normatividade, cuja integridade é assegurada nas
suas fronteiras através do uso da violência legitimada pelo Estado.358
A metódica estruturante, portanto, não fala em graus ou estágios de
interpretação, mas de elementos – como momentos de um processo unitário – do
processo de concretização. Não há possibilidade, salienta Müller, em virtude da sua
não-normatividade, de se estabelecer uma ordem hierárquica vinculante entre os
elementos metódicos.359
Na seqüência, serão apresentados os principais elementos do processo
de interpretação abordados pela metódica estruturante:
3.2.1.1 Elementos metodológicos strictiore sensu360
Os elementos metodológicos em sentido estrito são os que se referem
diretamente à interpretação de textos, tais como: interpretação gramatical, histórica,
genética, sistemática e teleológica, além dos princípios de interpretação
constitucional e os problemas da lógica formal e da axiomatização no direito
constitucional. Os primeiros elementos são as chamadas regras tradicionais da
interpretação, que englobam a interpretação gramatical, genética, histórica,
sistemática e teleológica.361
Para Müller, as interpretações gramatical, sistemática e genética
constituem os elementos de concretização mais próximos, não por algo que lhes
sejam substancialmente inerentes, mas por motivos funcionais, em virtude do lugar
358
MÜLLER, 1995, p. 40-42. 359
MÜLLER, 2000a, p. 69-70. 360
Ibid., p. 71. 361
MÜLLER, 2000a, p. 71. Cf. Também MÜLLER, 1996, op. cit., p. 259-276.
115
que ocupam num ordenamento jurídico codificado, fixado no seu conteúdo,
deliberado, lavrado e promulgado em conformidade com determinados trâmites
legislativos.362
Inicia-se a concretização com a busca do sentido literal do texto da
norma. A interpretação gramatical do direito constitucional escrito determina-se
segundo os diferentes tipos de normas. As normas da parte organizacional, por
exemplo, se comparadas ao elemento gramatical da concretização dos direitos
fundamentais, quase não oferecem dificuldades. No entanto, do ponto de vista da
linguagem e da gramática, não se pode dizer que as primeiras normas foram
formuladas com mais clarezas do que as segundas; a dificuldade mais acentuada na
concretização dos direitos fundamentais localiza-se na diferença estrutural das
normas jurídicas. Müller ressalta que não é:
Uma diferença lingüística, („gramatical‟) dos textos das normas, mas a eficácia da pré-compreensão (jurídica) que demonstra que o texto da norma do art. 4º al.1 da Lei Fundamental [„A liberdade de crença e de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis‟] possa afigurar-se ao jurista „menos claro‟, „mais amplo‟ ou „mais indeterminado‟ do que o texto da norma do artigo 52 al.1 da Lei Fundamental [„O Conselho Federal elege o seu Presidente por um ano‟].
363
Para um leigo, talvez ambas fossem suficientemente claras ou não-claras,
já o jurista constata diferenças consideráveis entre as estruturas desses dois textos
de normas.364
Com tudo isso, “a interpretação gramatical evidencia depender da
estrutura da norma”. O aspecto gramatical, aparentemente unívoco, freqüentemente
obriga a decidir-se entre diferentes significados. Isso só é possível em virtude do
método gramatical não dizer respeito ao texto da norma, mas à norma. O possível
sentido da norma deve ser interpretado por antecipação. Abandona-se, assim, a
interpretação literal de cunho filológico.365
Por razões ligadas ao estado de direito, o possível sentido literal
circunscreve o espaço de ação de uma concretização normativamente orientada que
respeita a “correlação jusconstitucional das funções. O teor literal demarca as
362
Ibid., p. 71-72. 363
MÜLLER, 2000a, p. 73-74. 364
Ibid., p. 74. 365
Ibid., p. 74.
116
fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, isto é, funcionalmente
defensáveis e constitucionalmente admissíveis.”366
Em caso de conflito entre os elementos de concretização o texto da
norma tem precedência hierárquica, pois: “À medida que o texto expressa de forma
lingüisticamente confiável o espaço de ação para os enunciados normativos, o
resultado não pode contrariar as possibilidades de solução remanescentes nesse
espaço de ação.”367
As interpretações genética, histórica e sistemática, ensina, estão
intrinsecamente relacionadas à gramatical. Pode-se afirmar que os dois
procedimentos referentes a textos não-normativos – genético e histórico – seriam,
quanto ao seu objeto, pontos de vista auxiliares no âmbito do aspecto gramatical, já
que podem auxiliar a precisar as possíveis variantes de sentido no espaço de ação
demarcado pelo teor literal.368
No que tange ao método teleológico, Müller sustenta que
na práxis ele atua como uma bacia de confluência de valorações subjetivas ou ao menos subjetivamente mediadas de natureza referida ou não-referida a normas, na sua totalidade de natureza preponderantemente determinada
pela política do direito e da constituição ou pela política em geral. 369
Geralmente, continua ele, “a concretização sistemática abrange, ao lado
do contexto dos teores literais argumentativamente exposto, ao mesmo tempo o
contexto das estruturas materiais dos âmbitos de regulamentação”. A interpretação
sistemática dos direitos fundamentais, por exemplo, obriga que as normas
infraconstitucionais, em caso de conflito, sejam corrigidas com base no programa e
no âmbito das normas dos direitos fundamentais. Segundo Müller,
Os direitos fundamentais estão especialmente reforçados nos seus âmbitos de normas. Em virtude da sua aplicabilidade imediata eles carecem de critérios materiais de aferição que podem ser tornados plausíveis a partir do
seu próprio teor normativo, sem viver à mercê das leis ordinárias.370
Quanto às interpretações sistemática e teleológica, cumpre-lhes combinar
vários – quando não todos – elementos de concretização, sob a designação de
sistemáticos ou teleológicos. Conclui Müller que os métodos de Savigny
366
Ibid., p. 74-75. 367
MÜLLER, 2000a, p. 76. 368
Ibid., p. 77. 369
Ibid., p. 78-79. 370
Ibid., p. 78-79.
117
desempenham papel na concretização do direito: “Todas as funções jurídicas, da
legislação até a interpretação científica, comprovam pela sua práxis que esses
elementos não podem ser dispensados na sua totalidade por ocasião da
concretização da norma”. Desse modo, reconhece-se a importância dos métodos
tradicionais para a interpretação do texto da norma e a conseqüente elaboração do
programa normativo, no entanto, como já dito, esses métodos, isoladamente, não
dão conta da complexidade do direito constitucional.371
3.2.1.2 Elementos da concretização a partir do âmbito da norma e do âmbito do caso
371
Continuando com a divisão do procedimento de concretização Müller aborda os subcasos das regras tradicionais de interpretação. O primeiro subcaso elencado foi o da praticabilidade, que é a verificação do processo de concretização constitucional com relação ao seu fim. Um segundo subcaso mencionado foi o da „interpretação a partir do nexo da historia das idéias‟. Tem-se a partir desse subcaso o fornecimento de retroinferências valiosas aos teores conceituais do texto da norma, quando se puder comprovar um nexo de tradição histórica normativamente ininterrupto. O critério de aferição do efeito integrante é o próximo tópico desenvolvido. Salienta este subcaso das regras tradicionais da interpretação que na concretização do direito constitucional se deve dar preferência aos pontos de vista instauradores e preservadores da unidade da constituição. O princípio da unidade da constituição provém da República de Weimar. Para Smend, uma constituição é a regulamentação dos aspectos particulares do processo global daquele estado, produzindo permanentemente o seu próprio processo vital. Assim, uma constituição não visa os detalhes, mas a totalidade do seu processo de integração. Kelsen, todavia, observou o que havia de criticável neste holismo. Para ele, a unidade do estado é fundada apenas do ponto de vista normativo, do mesmo modo que a ordem jurídica é uma unidade apenas como ordem lógica, em virtude desta propriedade de poder ser descrita em propostas de direito que não se contradizem umas às outras. Do ponto de vista operacional esse princípio ordena que as normas constitucionais devam ser interpretadas de modo a evitar contradições com outras normas e princípios de igual natureza. O quinto subcaso é o referente ao quadro global de direito pré-constitucional, que nada mais é do que um subcaso da interpretação histórica. Na seqüência Müller trata dos chamados princípios da interpretação da constituição; dentre esses aspectos destacam-se: sistema de direitos fundamentais; constituição como sistema de valores - o autor não aceita nenhum desses dois como princípios da metódica; interpretação conforme a constituição - ele considera argumentativamente defensável, mas com reservas, em virtude de determinadas tendências da jurisprudência. Restringe-se a tratá-lo apenas como um elemento da interpretação, ao lado de outros; aferição da correção funcional: afirma que a concretização não pode modificar a distribuição constitucionalmente normatizada das funções nem pelo modo da concretização nem pelo resultado desta. Possibilita, assim, a diferenciação racional e a controlabilidade dos elementos de concretização. Outro princípio de grande importância é o da concordância prática, principalmente no que tange às colisões de direitos fundamentais. Esse princípio impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, de modo a evitar que um se sacrifique totalmente em relação aos outros. É utilizado não só quando há contradições normativas, mas também, por exemplo, quando ocorrem colisões com normas de direitos fundamentais em que o âmbito de vigência de uma norma se sobrepõe parcialmente ao de outra. Nesse caso, tem-se a tarefa de traçar a todos os bens jurídicos envolvidos as linhas de fronteira de modo tão proporcional que eles cofundamentem também no resultado a decisão sobre o caso. Müller, com essa abordagem, posiciona-se de modo contrário às técnicas de ponderação de valores e de bens. Tem-se, por último, a força normativa da constituição. Na solução de conflitos constitucionais, destaca Müller, deve-se primar pela solução que promova a maior eficácia da constituição normativa. Cf. MÜLLER, 2000a, op. cit., pp.80 a 87; MÜLLER, 1996, passim. p. 280, 284 ; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2006, p. 1224 a 1226; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 4. ed. rev. e atual. 2. reimp. São Paulo: Saraiva, 2002, p.193; ALEXY, 1993, p. 73-75; HESSE, 1991, passim.
118
Trabalhar com o âmbito normativo da decisão exige do jurista formação
interdisciplinar, em razão da necessidade de manuseio de ferramentas oriundas da
sociologia, da ciência política, da economia, etc. Para trabalhar os novos contornos
da norma jurídica delineados pela teoria estruturante o profissional do direito deverá
se aperfeiçoar nas disciplinas básicas – as chamadas propedêuticas. Somente com
base em sólida fundamentação teórica e em uma irrecusável cooperação
interdisciplinar é que se formarão juristas dignos dessa alcunha e aptos a lidar com
essas novas demandas.372
Sustenta Müller que os resultados da concretização continuada
constituem o fundamento da teoria da norma. A teoria constitucional que queira ser
teoria de uma constituição normativamente vigente deve elaborar as estruturas
materiais dos âmbitos das normas constitucionais. No entanto, isso deve ser feito de
forma refletida. A análise do âmbito das normas de direitos fundamentais provou ser
de grande serventia não só para a elaboração de uma dogmática dos direitos
fundamentais, como também para a própria teoria constitucional. “Evidencia-se aqui
uma combinação, hermeneuticamente fundamentada e metodicamente controlada,
de elementos da concretização da constituição e conteúdos da teoria constitucional.”
Essa combinação, enfatiza, pode beneficiar o trabalho na constituição.373
Ao englobar elementos do âmbito do caso e do âmbito da norma a
metódica estruturante desponta como importante ferramenta de trabalho para os
alternativistas, por permitir que a realidade, sempre escamoteada do direito, ressurja
com força total, como parte integrante da própria normatividade jurídica.
3.2.1.3 Elementos dogmáticos
Valem-se os juristas na resolução de casos concretos não somente dos
textos de normas e históricos sobre eles, mas também de materiais doutrinários e
jurisprudenciais. Estas fontes de conhecimento estão estruturadas linguisticamente
372
MÜLLER, 2000a, p. 89-90. No entanto, não é nessa direção que tem apontado o ensino jurídico brasileiro. A maioria esmagadora das faculdades e, conseqüentemente, dos estudantes de direito, seguem repetindo uma formação bestializante, pautada na leitura acéfala de extensas codificações, formadora dos já denominados ventríloquos de todo e qualquer poder instituídos. Os estudantes entram nesse engodo procurando o caminho mais fácil que leva ao paraíso, isto é, à aprovação num concurso público, possibilitador de regalias sonegadas aos reles mortais – salário muito acima da média, estabilidade, etc.. Não percebem, contudo, que ao assim agirem se distanciam de qualquer possibilidade concreta de compreensão e manuseio do direito e de suas intrincadas ferramentas. 373
Ibid., p. 90- 91.
119
e, ainda, inacabadas, isto é, indisponíveis para aplicação imediata, carecendo de
interpretação.374 É nessa atividade interpretativa que o jurista dá sentido à norma
jurídica, construindo-a da maneira mais adequada para atender as nuanças do caso
concreto, respeitando, porém, as balizas que lhes são impostas pelos textos de
normas e demais critérios limitadores anteriormente mencionados.
Ressalta Müller que os enunciados dogmáticos expressam quase sempre
a opinião dos seus autores acerca de determinadas normas. Com relação à
proximidade com os teores normativos, os elementos dogmáticos só estão atrás dos
elementos metodológicos em sentido estrito e dos elementos do âmbito da norma.375
Dessa maneira, a dogmática jurídica376 apresenta-se como um
subsistema de técnicas de comunicação no universo jurídico. Ao abordar esse tema
Müller cita diversas possibilidades de discussão dogmática de problemas jurídicos,
quais sejam: tradição, comunicação, formação de escolas, crítica e controle,
tentativas de construção que interligam diferentes tendências, tentativas de
sistematização expansiva, conversão em técnicas de solução e reflexão teórica.377
Afirma Müller que conteúdos dogmáticos, teóricos e de política jurídica,
como modos técnicos de trabalho, influenciam fortemente na solução de casos
jurídicos. Ressalta, no entanto, que isso ainda não gera o caráter vinculante da
normatividade de normas jurídicas. O resultado exigido pelo caso não deve ser
justificado de qualquer modo subjetivo, mas sim pela comprovação mentalmente
recapitulável, e com isso criticável, da orientação segundo a norma. Assevera o
referido autor que
374
Ibid., p. 91. 375
Ibid., p. 92. 376
Sobre dogmática jurídica manifestou-se o jurista espanhol Manuel Atienza: “A dogmática é, sem dúvida, uma atividade complexa, na qual cabe distinguir essencialmente as seguintes funções: 1) fornecer critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias em que ele ocorre; 2) oferecer critérios para a aplicação do Direito; 3) ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico” Cf. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003, p.19. Segundo Vera Regina Pereira Andrade “a Dogmática Jurídica, globalmente considerada, convive desde sua gênese com uma marcada problematização, em cujo universo é possível individualizar, sem prejuízo de outros, três grandes argumentos dominantes e recorrentes: a) o de sua falta de cientificidade, que interpela sua promessa e identidade epistemológica; b) o de sua separação da realidade social decorrente de seu excessivo formalismo, que interpela sua identidade metodológica; e c) o de seu conservadorismo ou de sua instrumentalização política conservadora do status quo social, que confronta sua identidade funcional. ANDRADE, Vera Regina Pereira. Dogmática e sistema penal: em busca da segurança jurídica prometida, 1994. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1994, p. 29-31. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/Andrade-DogmáticaSPBSJP.pdf>. 377
MÜLLER, 2000a, p. 92.
120
à medida que normas de decisão concretizadas com referência ao caso sempre são registradas e transmitidas por enunciados „dogmáticos‟ da práxis e da ciência, a dogmática tem, portanto, o seu lugar também entre os elementos orientados stricto sensu segundo as normas.
378
3.2.1.4 Elementos da técnica de solução
Segundo Müller, os elementos da técnica de solução são verdadeiros
manuais de orientação, que elaboram perguntas direcionadas ao conjunto de fatos,
tais como: a imbricação dogmática de fundamentos de pretensões do nexo de
problemas de direito material e processual determinado pelo direito vigente, a
admissibilidade de suposições de conjuntos de fatos e de coisas similares na
perspectiva dos enfoques indagativos centrais para tais nexos como, por exemplo, „o
que se pede‟? „O que importa?‟.379
Esses manuais apresentam propostas para a estratégia e tática de uma
técnica de solução de casos e um modo de apresentação exitosos, porque
convencionalmente aceitos e desejados, conforme ensina a experiência. Como
aspectos teóricos, os pontos de vista por eles oferecidos devem funcionar como
fatores auxiliares. Não devem, portanto, conduzir a suposições e resultados
independentes da norma ou contrários a elas.380
Portanto, os elementos de técnica de solução propiciam os delineamentos
fundamentais por meio dos quais se procurará formular e examinar as hipóteses
sobre a norma, isto é, “pontos de vista para soluções orientadas segundo problemas
e com os quais se pretende encontrar a espécie de estruturação e argumentação no
texto da decisão que parece mais útil segundo a respectiva função”.381
3.2.1.5 Elementos de teoria
Segundo Friedrich Müller, os elementos de teoria contribuem, sobretudo,
para a pré-compreensão em teoria da constituição, contudo, nem sempre são
introduzidos de forma consciente na concretização: “As concepções de Estado e as
compreensões da constituição atuam como processamento e fundamentação de
378
MÜLLER, 2000a, p. 92-93. 379
Ibid., p. 94. 380
Ibid., p. 94. 381
Ibid., p. 93.
121
determinados tipos de pré-compreensões”. No que tange ao método, afirma que
positivismo, decisionismo, normologismo e teoria da integração devem ser
submetidos às seguintes perguntas: qual o espaço que eles deixam para
argumentos ideológicos? “Até onde eles exigem, admitem ou impedem uma
fundamentação do processo de concretização que seja independente deles mesmos
e em vez deles se oriente segundo as normas?”382
Müller sustenta que essas concepções não conseguem apreender a
peculiaridade da ciência jurídica como ciência normativa. As ciências humanas, de
outro lado, esbarram na generalidade do seu enfoque jusfilosófico ou sociológico
quando tentam intermediar a relação entre norma e realidade. Em síntese, o
sociologismo descuida demais do programa da norma; o normologismo faz o mesmo
com o âmbito da norma; o decisionismo, por sua vez, faz desaparecer ambos sob o
prisma da decisão soberana.383
Conclui Müller que
a norma jurídica deve ser compreendida, diferenciada e tipificada como esboço com caráter de obrigatoriedade, que abrange por igual o que ordena e o que deve ser ordenado; deve-se passar da metódica da interpretação lingüística para uma metódica do processo efetivo do tratamento da norma.
384
3.2.1.6 Elementos de política constitucional
Defende Müller que “O estilo de raciocínio da política constitucional refere-
se à ponderação das conseqüências, à consideração valorativa de conteúdos.” Os
elementos de política constitucional fornecem pontos de vista valiosos para a
compreensão e implementação das normas constitucionais. Porém, os aspectos por
eles abordados só podem ser utilizados como comparação, delimitação e
clarificação, não podendo ser introduzidos como premissas normativas.385
Para Müller, os pontos de vista da política constitucional permeiam todo o
trabalho constitucional. Todavia, ressalta:
nem o caráter vinculante do direito constitucional, lá onde ocorreu uma pré-decisão normativa, nem a racionalidade e objetividade exigidas pelo Estado de Direito, até onde ela é em princípio possível na ciência jurídica, devem ser questionadas.
386
382
MÜLLER, 2000a, p. 95-96. 383
Ibid., p. 96. 384
Ibid. 385
Ibid., p.97. 386
Ibid.
122
Encerrando, o autor traça o que chama de hierarquia dos elementos de
concretização. Para ele, são dois os pressupostos de onde devem partir os
elementos de concretização e a seqüência hierárquica entre eles: em primeiro lugar,
os pontos de vista auxiliares da concretização, de natureza hermenêutica e
metodológica, não são normativamente vinculantes; em segundo lugar, “a metódica
jurídica é em parte afetada diretamente por imperativos do direito (constitucional)
vigente.” Caso haja resultados parciais contraditórios, prevalecem os elementos
diretamente relacionados às normas – elementos metodológicos e do âmbito da
norma, bem como uma parte dos aspectos dogmáticos. Dentre os aspectos
diretamente referidos às normas, em caso de conflito, prevalecem os que dizem
respeito às interpretações gramatical e sistemática, por dizerem respeito à
interpretação de textos de normas. “A função limitadora do teor literal da prescrição
concretizanda [...], própria do Estado de Direito, vale também diante de resultados
empíricos a partir do âmbito da norma.”387
Diante de tudo o que foi exposto, salta aos olhos o importante papel que
teorias concretistas como a de Müller podem ter para o direito alternativo. Por meio
dela, como já dito alhures, a realidade, que sempre fora escamoteada pelos
mecanismos jurídicos tradicionais, pode ser inserida na própria estrutura normativa,
afigurando-se, ao lado do texto, como componente da própria norma jurídica. Desse
modo, abre-se um amplo leque de possibilidades de trabalho para os juristas
orgânicos na concretização dos valores emancipatórios contidos no Texto
Constitucional de 1988. Além disso, também permite a amplificação das
possibilidades de controle do processo de concretização das normas jurídicas,
restringindo o arbítrio das decisões judiciais e afastando do direito alternativo as
críticas de que ele afrontaria a segurança jurídica e a própria legalidade.
4 A COMUNIDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO: a
hermenêutica constitucional de Peter Häberle
Dando seqüência ao trabalho, as próximas páginas serão dedicadas à
apreciação de alguns aspectos da densa obra do jurista alemão Peter Häberle388,
387
MÜLLER, 2000, passim. p. 112. 388
O constitucionalista alemão Peter Häberle nasceu em 1934 em Göppingen, Alemanha. Fez seus estudos universitários nas universidades de Tübingen, Bonn, Freiburg – na Alemanha – e também na
123
considerados importantes para os fins desta dissertação. O seu livro de maior
divulgação no Brasil, e que será o fio condutor desta análise, é o Hermenêutica
Constitucional,389 traduzido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar
Ferreira Mendes. Esse breve texto de Häberle carrega em seu bojo importantes
balizamentos para se repensar o jusconstitucionalismo brasileiro, sob o viés da
democracia participativa. Os seus aportes teóricos têm saído do campo meramente
acadêmico, ganhando materialidade no cotidiano constitucional pátrio.
A utilização do presente referencial teórico neste trabalho deve-se às
perspectivas descortinadas por ele para a hermenêutica constitucional, auxiliando na
consolidação de um efetivo estado constitucional e democrático de direito, não
somente numa perspectiva retórica, mas, principalmente, do ponto de vista da sua
concretização. Faz isso ao colaborar para a criação de uma esfera pública ampliada
dos intérpretes da constituição, retirando essa atividade do monopólio do intérprete
autêntico kelseniano.
4.1 Tese fundamental, estágio do problema
Häberle inicia a obra em apreço traçando um panorama da situação da
teoria da constituição e da interpretação constitucional. Segundo ele, “A teoria da
Constituição esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma
„sociedade fechada.‟”390 Esse âmbito é ainda mais reduzido em função da
concentração da interpretação constitucional nos juízes e nos procedimentos
formalizados.391
De acordo com Häberle, para se enfrentar seriamente o tema constituição
e realidade constitucional, faz-se necessário a incorporação de elementos das
universidade francesa de Montpellier. Em sua tese de doutorado, fez uma análise dos direitos essenciais na Lei Fundamental de Bonn. Atualmente é professor titular aposentado de Direito Público e Filosofia do Direito da Universidade de Bayreuth (Alemanha). Também é diretor do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Européia na mesma instituição. Tem tido importante acolhida do público jurídico brasileiro. Essas informações foram extraídas do seguinte sítio: <http://www.unb.br/acs/unbagencia/ag0905-31.htm>. Acesso em: 30 abr. 2006. 389
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 11-55. 390
HÄBERLE, op. cit., p. 11. 391
Ibid., p. 12.
124
ciências sociais e das teorias jurídico-funcionais, bem como os métodos de
interpretação voltados para o interesse público e o bem-estar geral.392
O núcleo central da tese defendida por Häberle ancora-se na existência
de um processo de interpretação constitucional realizado pela sociedade aberta393 e
em proveito dela própria.394 Sustenta que no processo de interpretação
constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as
potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer um
elenco fechado de intérpretes da constituição. Desse modo, o processo de
interpretação constitucional aparece como mais um elemento da sociedade aberta.
Quanto mais pluralista for a sociedade em questão, mais abertos deverão ser os
critérios de interpretação.395
Para o constitucionalista alemão quem vive a norma acaba por interpretá-
la ou pelo menos por co-interpretá-la. Todo aquele que vive sob a égide de uma
norma, isto é, que vive no contexto regulado por uma norma, é – indireta ou
diretamente – um intérprete dessa norma. Nesse caso, o destinatário da norma é um
participante ativo do processo hermenêutico. Como a norma não é vivida apenas
pelos intérpretes jurídicos da constituição, eles não detêm o monopólio da
interpretação constitucional.396
Conclui-se, tendo por base o exposto, que uma teoria da constituição e da
hermenêutica propiciam uma mediação específica entre estado e sociedade.397
4.2 Os participantes do processo de interpretação constitucional
A investigação sobre os participantes do processo de interpretação é
conseqüência do conceito republicano de interpretação aberta que deve ser
considerada como objetivo da interpretação constitucional. Uma teoria constitucional
que se concebe como ciência da experiência deve estar em condições de explicitar
os grupos concretos de pessoas e os fatores que formam o espaço público, o tipo de
392
Ibid., p.12. 393
Häberle retira a expressão “sociedade aberta” da obra de Karl Popper intitulada “A Sociedade Aberta e seus Antípodas” Cf. POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. 3. ed. São Paulo: Itatiaia, 1987. t.1. 394
HÄBERLE, op. cit., p. 12-13. 395
Ibid., p. 12-13. 396
Ibid., p. 15. 397
Ibid., p. 17.
125
realidade de que se cuida, a forma como ela atua no tempo, as possibilidades e
necessidades existentes.398
Häberle afirma, sem prejuízo da precedência que atribui à jurisdição
constitucional – até porque reconhece que a ela compete dar a última palavra sobre
a interpretação –, que devem ser reconhecidos como igualmente legitimados a
interpretar a constituição os seguintes indivíduos e grupos sociais:399
a) o recorrente e o recorrido, no recurso constitucional, como agentes que
justificam a sua pretensão e obrigam o tribunal constitucional a tomar
uma posição ou a assumir um diálogo jurídico;
b) outros participantes do processo, que têm direito de manifestação ou
de integração à lide, ou que são convocados, eventualmente, pela
própria corte;
c) os órgãos e entidades estatais, assim como os funcionários públicos,
agentes políticos ou não, na suas esferas de decisão;
d) os pareceristas ou experts;
e) os peritos e representantes de interesses, que atuam nos tribunais;
f) os partidos políticos e frações parlamentares, no processo de escolha
dos juízes das cortes constitucionais;
g) os grupos de pressão organizados;
398
Ibid., p. 19. 399
Omar Serva Maciel, ao abordar em um texto de sua lavra quem são os intérpretes da constituição na obra Hermenêutica Constitucional, de Häberle, traça as seguintes considerações críticas, cuja transcrição literal reproduzo: “A propósito, permitimo-nos a seguinte crítica pontual ao raciocínio de HÄBERLE. É que este prestigiado Autor aparentemente retira do seu rol de intérpretes (idem, p. 20-23) a maioria silenciosa, representativa da comunidade como um todo, e que também vive a constituição. Poder-se-ia abonar esse esquecimento caso se retenham as considerações preliminares (ibidem, p. 19) encarecidas pelo próprio Häberle a respeito da mencionada catalogação, no sentido de que o método empregado no seu discurso e os conceitos que o informam se ressentem de uma definitividade, como que justificando, por corolário, a natureza in fieri da classificação realizada. Igualmente, conjectura-se que o respeitável publicista alemão purga-se da mencionada omissão ao afirmar que a “interpretação constitucional é, todavia, uma „atividade‟ que, potencialmente, diz respeito a todos” (ibidem, p. 24). De qualquer modo, é de se causar espécie que essa exclusão tenha recaído numa categoria que desempenha papel tão importante no concerto pluralístico da contemporaneidade. Conquanto marginalizada pelo processo de exclusão socioeconômica, essa massa disforme e inorganizada compõe um pano de fundo decisivo para a construção dos canais de comunicação constitucionais que necessariamente haverão de existir em uma sociedade aberta de intérpretes. Aliás, precisamente por que pretende ser incluído no alvo das políticas redistributivistas - até para que não restem desacreditadas as promessas que soem serem feitas no âmbito das Constituições Dirigentes, tais como “erradicação da pobreza”, “eqüitativa distribuição de renda”, “solidariedade social”, “dignidade da pessoa humana” e etc. -, esse “oceano de esquecidos” deve se fazer ouvir, posto que atua (e é essa a parcela de cidadania pró-ativa que lhe cabe), quando nada, como um inconsciente coletivo hermenêutico”. MACIEL, Omar Serva. A interpretação pluralista de Peter Häberle como contributo à democratização do processo constitucional. Disponível em: <https://redeagu.agu.gov.br/UnidadesAGU/CEAGU/revista/Ano_IV_marco_2004/Omar%2020A%20interpretacao%20pluralista.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2006.
126
h) os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter
participativo;
i) a mídia, em geral, imprensa, rádio e televisão;
j) a opinião pública democrática e pluralista, e o processo político;
k) os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada;
l) as escolas da comunidade e as associações de pais;
m) as igrejas e as organizações religiosas;
n) os jornalistas, professores, cientistas e artistas;
o) a doutrina constitucional, por sua própria atuação e por tematizar a
participação de outras forças produtoras de interpretação.
Atesta Häberle que até pouco tempo imperava a idéia de que o processo
de interpretação constitucional estava reduzido aos órgãos estatais ou aos
participantes diretos do processo. Todavia, a interpretação constitucional é uma
atividade que diz respeito a todos, já que a conformação da realidade da
constituição torna-se também parte da interpretação das normas constitucionais
pertinentes a essa realidade.400 Também nas funções estatais, reforça ele, não se
pode perder de vista as pessoas concretas, os parlamentares, os funcionários
públicos, os juízes.401
No mesmo sentido é a afirmação feita por Inocêncio Mártires Coelho,
segundo a qual num estado de direito a leitura da constituição deve ser feita “em voz
alta e à luz do dia”, no âmbito de um processo verdadeiramente público e
republicano, do qual participem os diversos atores sociais, agentes políticos ou não,
pois todos os membros da sociedade, e não apenas os dirigentes, fundamentam na
constituição os seus direitos e obrigações.402
Em Häberle, a interpretação é um processo aberto. A ampliação do
círculo dos intérpretes é apenas uma conseqüência da necessidade de integração
da realidade ao processo de interpretação.403 O juiz interpreta a constituição na
esfera pública e na realidade. Essas influências que ele recebe não podem ser
400
HÄBERLE, op. cit., p. 23-25. 401
Ibid., p. 23-25. 402
COELHO, 2001, passim. 403
HÄBERLE, op. cit., p. 30.
127
vistas apenas como ameaça à sua independência, mas também como parte da sua
legitimação, evitando o livre arbítrio da interpretação judicial.404
Assim, se de um lado não se deseja em uma sociedade aberta o
isolamento do juiz em sua torre de marfim, inacessível aos cidadãos, alheio à
realidade que o circunda, de outro, não se permite um juiz que julgue apenas de
acordo com a vontade da maioria. Como assevera Ferrajoli, em um estado
constitucional e democrático de direito a legitimidade do juiz não deriva da vontade
da maioria, mas da defesa dos direitos fundamentais do cidadão contra qualquer
maioria405. O papel que o juiz exerce no estado constitucional é, portanto, um papel
contramajoritário.
Do ponto de vista teorético-constitucional a legitimação das forças
pluralistas da sociedade para participar da interpretação constitucional reside no fato
de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da
constituição.406 Numa sociedade aberta, reforça Häberle, a democracia se
desenvolve também por meio de refinadas formas de mediação do processo público
e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização
dos direitos fundamentais. A democracia desenvolve-se mediante a controvérsia
sobre alternativas, possibilidades e necessidades da realidade e, também, no
“concerto” científico sobre questões constitucionais.407
Nessa perspectiva, a democracia deve ser vista como o domínio do
cidadão e não do povo, no sentido rosseauniano do termo. A democracia do cidadão
é mais realista do que a democracia popular. Assim, é a liberdade fundamental –
pluralismo – e não “o povo” que se converte em ponto de referência para a
constituição democrática. A sociedade é livre e aberta na medida em que se amplia
o círculo dos intérpretes da constituição em sentido amplo.408 Segundo Omar Maciel,
A lucidez da abordagem feita por HÄBERLE radica no fato de que o conceito “povo” refere-se a uma dessas expressões “gordas” que podem ser facilmente manipuláveis, as mais das vezes pelas maiorias eventuais, descomprometidas com um sentimento de pertença e com a abolição de toda sorte de exclusões ou discriminações.
409
404
Uma possível objeção poderia ser a de que, dependendo da forma como seja praticada, a interpretação constitucional pode dissolver-se num grande número de interpretações e de intérpretes. Porém, uma vinculação limitada à constituição corresponde a uma legitimação igualmente mais restrita. Ibid., p. 29-32. 405
FERRAJOLI, 2001, passim. 406
HÄBERLE, op. cit. p. 33. 407
Ibid., p. 36-37. 408
Ibid., p. 38-40. 409
MACIEL, op. cit., p. 6.
128
Friedrich Müller, no mesmo sentido, afirma que o núcleo da democracia
está ancorado na idéia de uma determinação normativa do tipo de convívio de um
povo pelo próprio povo. Segundo ele, diante da impossibilidade material do
autogoverno, ambiciona-se ao menos a autocodificação das prescrições vigentes
com base no debate amplo e aberto entre opiniões e interesses, com alternativas
palpáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político.410
4.3 Conseqüências para a hermenêutica constitucional jurídica
Na esteira do processo de ampliação dos intérpretes da constituição o juiz
constitucional já não interpreta de forma isolada. A esfera pública pluralista
desenvolve força normatizadora. Desse modo, posteriormente, a corte constitucional
haverá de interpretar a constituição em correspondência com a sua atualização
pública.411 O processo constitucional formal, assevera Häberle, não é a única via de
acesso ao processo de interpretação constitucional. O raio da interpretação
normativa amplia-se graças aos intérpretes da constituição da sociedade aberta. A
sociedade torna-se aberta e livre, porque todos estão potenciais e atualmente aptos
a oferecer alternativas para a interpretação constitucional.412
A interpretação constitucional jurídica traduz a pluralidade da esfera
pública e da realidade, as necessidades e as possibilidades da comunidade que
constam do texto da constituição, que o antecedem ou subjazem a ele. A teoria de
Häberle se propõe a alterar uma tendência existente na teoria da interpretação de
sempre superestimar o significado do texto413.
Com a ampliação do rol de intérpretes da constituição compete à corte
constitucional controlar a participação leal dos diferentes grupos na interpretação da
constituição, de forma que, na sua decisão, se leve em conta, interpretativamente,
os interesses daqueles que não participam do processo414. Um minus de efetiva
410
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000b. p. 57. Conferir também MÜLLER, Friedrich. Fragmento (Sobre) o Poder Constituinte do Povo. Tradução Peter Naumann. São Paulo: RT, 2004. 411
HÄBERLE, op. cit., p. 41. 412
Ibid., p. 41. 413
Essa discussão foi, mutatis mutandi, como já abordado neste trabalho, feita por Müller quando este questionou a confusão feita pelo positivismo jurídico ao tratar o texto da norma como sinônimo da própria norma. Ibid., p. 42-43. 414
Na Constituição brasileira de 1988, ampliou-se, sobremaneira, o rol de intérpretes da Constituição. Observa-se isso analisando, principalmente, o disposto no artigo 103 da Constituição Federal. Essa discussão será retomada, com mais vagar, no último capítulo. Enquanto na ordem constitucional
129
participação, salienta Häberle, deve levar a um plus de controle constitucional.
Desse modo, a intensidade do controle de constitucionalidade há de variar segundo
as possíveis formas de participação415.
Com a tese de Häberle da sociedade aberta amplia-se a própria
comunidade de intérpretes da constituição. De um modo geral, as decisões
constitucionais ocorrem dentro de um vasto espectro normativo, abrindo-se a uma
multiplicidade de possibilidades interpretativas. Com isso, a ampliação da
possibilidade de participação dos cidadãos no processo de interpretação da
constituição tem a função de racionalizar e legitimar as decisões da corte
constitucional. Conforme assevera Souza Neto, a necessidade de justificar as
decisões judiciais “perante os demais participantes da interação comunicativa exige
que se argumente com razoabilidade e reciprocidade.”416 No último capítulo esse
tema será retomado com mais atenção.
A teoria constitucional, para Häberle, não tem uma função exclusivamente
harmonizadora: consenso resulta de conflitos e compromissos entre participantes
que sustentam diferentes opiniões e defendem os próprios interesses. Dessa forma,
o direito constitucional é um direito de conflito e compromisso. Com isso, coloca-se
para a teoria constitucional a questão fundamental sobre a possibilidade de vincular
normativamente as diferentes forças políticas, isto é, de apresentar-lhes bons
métodos de interpretação.417
Respondendo a questão atinente à pertinência ou não da
constitucionalização de outros participantes do processo constitucional, Häberle
sustenta que constitucionalizar formas e processos de participação é uma tarefa
específica de uma teoria constitucional procedimental. O processo político precisa
ser aberto, devendo uma interpretação divergente ter oportunidade de ser
sustentada em algum momento. O processo político é um processo de comunicação
anterior apenas o Procurador-Geral da República era legitimado para propositura da Ação Direita de Inconstitucionalidade, na nova Constituição, vários outros são os legitimados. Cf. PINHO, Judicael Sudário de. Temas de Direito Constitucional e o Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Atlas, 2005, p.22. 415
HÄBERLE, op. cit. p. 46. 416
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria da Constituição, Democracia e Igualdade. In: ______ et al; Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 55-56. 417
HÄBERLE, op. cit., p. 51-53.
130
de todos para com todos, no qual a teoria constitucional deve tentar ser ouvida,
encontrando um espaço próprio e assumindo sua função como instância crítica.418
Em síntese, Häberle afirma que uma ótima conformação legislativa e o
refinamento interpretativo do direito constitucional processual constituem as
condições básicas para assegurar a pretendida legitimação da jurisdição
constitucional no contexto de uma teoria de democracia.419
Uma jurisdição constitucional democrática e participativa é de grande valia
para o direito alternativo, pois possibilita a concretização constitucional, fiscalizando
e protegendo os valores constitucionalmente inscritos no texto da constituição,
frutos, muitas vezes, de intensas lutas das camadas populares da sociedade. Com a
ampliação da participação social no processo de interpretação constitucional
aumentam-se as chances de que a Constituição tenha normatividade integral, de
que ganhe concretude, condição necessária para a consolidação e amplificação do
Estado Constitucional e Democrático de Direito no Brasil.
Reforça-se, ao final do presente capítulo, o que já foi mencionado
anteriormente, isto é, que não se objetivou aqui uma abordagem exaustiva das
teorias apresentadas, muito menos se defendeu que são apenas essas as
possibilidades teóricas descortinadas pela teoria constitucional contemporânea ao
direito alternativo. Não há como negar, por exemplo, a grande importância que a
teoria dos princípios tem para a construção de uma dogmática jurídica
emancipatória: o reconhecimento do caráter normativo dos princípios possibilitou um
grande avanço à teoria constitucional, abrindo inúmeras possibilidades de trabalho
aos juristas orgânicos.
Em um sistema constitucional de alta densidade principiológica como o
brasileiro, trabalhar com teorias que sustentam o caráter normativo dos princípios é
salutar. E para isso muito bem servem teorias como as desenvolvidas por Ronald
Dworkin e Robert Alexy. Embora haja inúmeras diferenças teóricas entre eles,
defendem, grosso modo, que princípios e regras são espécies do gênero norma
jurídica. Atesta-se, assim, o caráter normativo dos princípios, uma vez que, tanto
quanto as regras, também são exemplos de normas jurídicas.
Apesar de não se ignorar a importância da normatividade dos princípios
no cenário constitucional pátrio, optou-se por não abordá-la neste trabalho. Em
418
Ibid., p. 55. 419
Ibid., p. 49.
131
primeiro lugar, em virtude do recorte teórico escolhido; em segundo, pelo fato do
tema já ser desenvolvido com bastante profundidade em muitos trabalhos
acadêmicos. Para os interessados em aprofundar-se nessa discussão segue, em
nota de roda-pé, algumas indicações que podem auxiliar no início dessa
empreitada.420
Quanto às teorias aqui apresentadas, todas elas comportam
possibilidades emancipatórias passíveis de exploração por um jurista orgânico,
comprometido com a superação do estado de coisas vigente. É esse estado de
coisas que naturaliza o enorme fosso social que separa as elites, inseridas em um
frenético e insustentável padrão de consumo, da gama incomensurável de
marginalizados, excluídos de qualquer direito de cidadania e que, geralmente,
encontram na repressão policial o único contato com o aparato estatal.
Valer-se de um arcabouço teórico como o proposto, que traz elementos
da realidade para dentro da interpretação constitucional, permite a utilização do
espaço jurídico como concretizador das conquistas sociais, além de assegurar os
preceitos mínimos de controlabilidade das decisões judiciais, exigência imperiosa em
um estado constitucional de direito. Esvazia-se, por outro lado, parcela significativa
das críticas feitas aos juristas orgânicos de serem contrários à lei, pois ancora o
direito alternativo dentro do que há de mais elevado em termos legais e de
dogmática jurídica: a Constituição Federal e a dogmática constitucional concretista.
420
ALEXY, 1993, passim; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006; CANOTILHO, 2006, passim; DWORKIN, 2002, passim; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Hermenêutica Constitucional, direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo, (Orgs.). Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002; SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005b; SILVA, 2004, passim; SANCHÍS, Luis Pietro. Ley, Principios, Derechos. Madrid: Dykinson, 1998; TOLEDO, Cláudia. Direito adquirido e estado democrático de direito. São Paulo: Landy, 2003.
132
CAPITULO III - O JURISTA ORGÂNICO/ALTERNATIVISTA
Neste tópico inaugural do capítulo que fecha este trabalho serão
abordados alguns aspectos da rica obra do pensador sardo Antonio Gramsci,421
especialmente em suas conexões com o direito. Como mencionado no primeiro
capítulo, Gramsci não se ocupa especificamente do direito, porém, há em seus
trabalhos inúmeras passagens que podem auxiliar na ampliação da potencialidade
emancipadora da crítica jurídica.
No primeiro capítulo, já foram exploradas as possibilidades
emancipatórias abertas pelos conceitos gramscianos de hegemonia e bloco
histórico. Vez agora de se reconstruir, sinteticamente, o conceito de intelectual
orgânico, adaptando-o ao direito, o que permitirá tratar o jurista comprometido com a
superação de um determinado bloco histórico como jurista orgânico.
1 O INTELECTUAL TRADICIONAL E O INTELECTUAL ORGÂNICO
Uma afirmação chave feita por Antonio Gramsci em sua obra é a de que
todos os homens são intelectuais, embora nem todos ocupem funções intelectuais
na sociedade. Desse modo, a distinção entre intelectuais e não-intelectuais não leva
em consideração uma aptidão especial do sujeito, mas sim a função que a pessoa
desempenha preponderantemente na sociedade. Não existem não-intelectuais, mas
existem graus diversos de atividades intelectuais:
Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um 'filósofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma
concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar.422
Rafael Damasceno sustenta que Gramsci amplia o conceito de intelectual
para além da idéia geral, que normalmente só se refere aos „grandes intelectuais‟.
Intelectual aqui é qualquer elemento pensante e organizador de idéias, concepções, enfim, de cultura em sentido amplo. Gramsci denomina como „intelectuais’ os agentes da superestrutura encarregados da difusão de ideologia; não constituem uma classe, mas um grupo ligado a diversas
classes sociais.423
(grifo do autor).
421
Cf. CAUBET, op. cit., p. 349-377; COUTINHO, 1989, passim; MAESTRI, 2001, passim; PORTELLI, 1983, passim. 422
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a organização da cultura.Tradução Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p. 7-8. 423
SILVA, 1995, passim.
133
No modelo defendido por Gramsci o intelectual não pode mais ser aquele
cujas habilidades residam na eloqüência, chamada por ele de „motor exterior e
momentâneo dos afetos e das paixões‟, mas alguém que se suje da poeira da vida
prática, atuando ativamente como construtor, organizador, 'persuasor permanente'.
Deve ser também superior ao espírito matemático abstrato, elevando-se da técnica
trabalho à técnica ciência e à concepção humanista histórica, condição obrigatória
para que deixe o status de mero 'especialista' e chegue a 'dirigente', que é um
especialista mais político.424
É com grande maestria que Gramsci aborda o papel do intelectual na
organização cultural da sociedade. Uma de suas primeiras indagações é se os
intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente ou se cada grupo
social possui sua categoria especializada de intelectuais?425 Para ele, o grupo social
nascido em um determinado contexto de produção econômica necessita criar para
si, de maneira orgânica, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe darão
homogeneidade e consciência de sua própria função nos planos econômico, social e
político: os intelectuais orgânicos426.
Luciano Gruppi é enfático ao afirmar que os intelectuais não constituem
um grupo social autônomo, pois são vinculados aos grupos sociais existentes, que
os formam para se tornarem técnicos da produção. Além disso, eles emprestam à
classe dominante economicamente a consciência de si mesma e de sua própria
função social e política. Atribuem, dessa maneira, homogeneidade à classe
dominante e à sua direção.427
Nesse diapasão, intelectual orgânico – no sentido de organismo que
nasce numa nova circunstância – é aquele intelectual que surge a partir da
perspectiva de nascimento desse novo grupo social, na maioria das vezes, como
“pessoas especializadas em determinados setores”. Cada grupo social essencial,
surgido a partir de uma estrutura econômica anterior e como expressão do
424
GRAMSCI, 1989, p. 8. 425
Para Rafael Damasceno “„cada grupo social essencial, contudo, surgindo na história a partir da estrutura econômica anterior‟ isto é, no caso, a burguesia, grupo essencial do bloco histórico capitalista, „(...) encontrou - pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias - categorias intelectuais preexistentes". É o que Gramsci denomina “intelectuais tradicionais‟. Estes intelectuais são provenientes de diversos extratos sociais, mas tendem a ser cooptados às ideologias das classes fundamentais do modo de produção” SILVA, op. cit., 1995. 426
GRAMSCI, op. cit., p. 7-9. 427
GRUPPI, op. cit., p. 80.
134
desenvolvimento dessa estrutura, encontrou categorias intelectuais preexistentes,
que continuaram no tempo, mesmo com todo o curso natural da história, moldada
por ruptura, modificações e transformações. Esses intelectuais preexistentes,
geralmente chamados de intelectuais tradicionais, se dizem independentes e
autônomos do grupo social dominante,428 embora essa independência seja
questionável.
Dessa maneira, a classificação de um intelectual como orgânico ou
tradicional é feita considerando-se o bloco histórico ao qual está vinculado. Existem
diversas categorias intelectuais formadas em conexão com todos os grupos sociais,
principalmente com os grupos sociais mais importantes. Todo o grupo que almeja
assumir o domínio tem como uma de suas mais marcantes características a luta pela
assimilação e conquista ideológica dos intelectuais tradicionais, que será
potencializada pela elaboração de seus próprios intelectuais orgânicos.429
Atesta Gruppi que em Gramsci os intelectuais são os quadros da classe
dominante, cabendo-lhes a elaboração da ideologia. Atuam como os persuasores da
classe dominante, os funcionários da hegemonia desta classe, os mediadores de
consenso.430
Gramsci levanta a discussão acerca dos limites máximos da acepção do
termo intelectual. A distinção entre intelectuais ancora-se no próprio sistema de
relações em que as atividades se encontram, isto é, no próprio conjunto geral das
relações sociais. Conforme mencionado no início, um operário, por exemplo, não se
caracteriza apenas pelo trabalho manual ou instrumental, mas por exercer esse
trabalho em determinadas condições e relações sociais; contudo, também há nele
um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual
criadora.
Para Antonio Gramsci, o ponto central da questão ora em apreço continua
a ser a distinção entre intelectual como categoria orgânica de cada grupo social
fundamental e intelectual como categoria tradicional.431
Segundo Gruppi, no capitalismo industrial os intelectuais orgânicos são os
técnicos e os cientistas ligados à produção, ou seja, à função central da economia
capitalista. Todo grupo social ao se firmar no campo econômico deve elaborar a sua
428
GRAMSCI, 1989, p. 7-9. 429
Ibid, p. 8-9. 430
GRUPPI, op. cit., p. 80. 431
GRAMSCI, op. cit., p. 16-17.
135
hegemonia política e cultural por meio de seus próprios quadros, de seus próprios
intelectuais. Encontram, no entanto, simultaneamente, intelectuais formados pela
estrutura econômica anterior, pela sociedade precedente: são os intelectuais
tradicionais.432
A nova classe dominante, ao mesmo passo em que tenta formar seus
próprios intelectuais orgânicos, esforça-se para assimilar os tradicionais, uma vez
que o êxito dessa assimilação influencia na eficácia da expressão dos seus próprios
intelectuais orgânicos. No capitalismo, os intelectuais orgânicos têm uma relação
mais estreita com a produção, enquanto os tradicionais têm uma relação mais
mediatizada, possuindo, contudo, mais do que os orgânicos, uma função de
mediação política.433
A escola é o instrumento de trabalho utilizado para a formação de
intelectuais de diferentes níveis. Formam-se, desse modo, categorias intelectuais em
conexão com todos os grupos sociais, em especial com os grupos sociais mais
importantes. Todo o grupo que assumir o domínio tem como uma de suas mais
marcantes características a luta pela assimilação e conquista ideológica dos
intelectuais tradicionais, que será potencializada pela elaboração de seus próprios
intelectuais orgânicos.434
Segundo Gramsci,
“a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamentais, mas é 'mediatizada', em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os
funcionários.”435
Nesse sentido, continua, é possível fixar dois planos superestruturais: o
primeiro deles é a sociedade civil – conjunto dos organismos privados –, que
corresponde à função de hegemonia exercida pelo grupo dominante em toda a
sociedade; o segundo é a sociedade política – ou Estado –, que corresponde à
função de domínio direto ou de comando que se expressa no Estado ou no governo
jurídico. Os intelectuais são os comissários do grupo dominante que exercerão as
funções subalternas de hegemonia social e governo político, isto é, são os
responsáveis pelo consenso espontâneo dado pelas grandes massas ao grupo
432
GRUPPI, op. cit., p. 80-81. 433
Ibid., p. 80-81. 434
GRAMSCI, op. cit., p. 8-9. 435
Ibid., p. 10.
136
dominante, em virtude do prestígio que obtém como reflexo de sua posição e função
no mundo produtivo. Além disso, cuidam do aparato de coerção que assegura
'legalmente' a disciplina dos grupos que não consentem.436
Gramsci era consciente de que essa definição amplia muito o conceito de
intelectual, no entanto, defendia a sua necessidade, por ser a que mais se aproxima
da realidade concreta. Para ele, a atividade intelectual deve ser diferenciada em
graus: estão no mais alto grau os criadores da ciência, da filosofia e da arte; no mais
baixo encontram-se os 'administradores' e divulgadores mais modestos da riqueza
intelectual já existente, tradicional, acumulada.437
Segundo Gramsci, em todo país em que houve câmbio do bloco histórico
existiram tendências que entraram em consonância e outras que se sobrepuseram.
Como exemplo, cita-se a França, onde graças à prevalência dos intelectuais
orgânicos que surgiram da Revolução de 1789 se buscou transcender os valores
anteriores e criar subsídios para a construção de uma sólida base nacional. Diverso,
no entanto, é o caso da Inglaterra e da Alemanha, países em que se verificou a
sobreposição dos intelectuais tradicionais, contribuindo para uma onda de
conservadorismo e monopólio. Na Rússia, por sua vez, as forças intelectuais eram
inertes, passivas e apáticas, verdadeiros empecilhos ao avanço e mobilização do
conhecimento. Nos Estados Unidos, em certa medida, percebia-se a ausência de
intelectuais tradicionais, a existência de intelectualidade ativa e um número
surpreendente de intelectuais negros. Estes poderiam exercer até uma influência
sobre as massas atrasadas na África, no sentido de fortalecer o sentimento de
identidade e reforçar os laços contestatórios e reivindicatórios do povo negro
africano.438
Gramsci, em suas análises, detectou o abismo existente entre o povo e o
discurso intelectual, in verbis:
De qualquer modo, existe uma fratura entre o povo e os intelectuais, entre o povo e a cultura. Os livros religiosos (também) são escritos em latim médio, de modo que mesmo as discussões religiosas escapam ao povo, se bem que a religião seja o elemento cultural que prevalece: da religião o povo real vê os ritos e sente as prédicas exortativas, mas não pode acompanhar as discussões e os desenvolvimentos ideológicos, que são monopólio de uma
casta.439
436
GRAMSCI, op. cit., p. 10-11. 437
Ibid., p. 10-12. 438
Ibid., p. 19-22. 439
Ibid., p. 26.
137
Há nessa passagem uma nítida crítica do pensador sardo ao
distanciamento entre os intelectuais e o povo, bem como do monopólio do saber
exercido por aqueles.440 Até 1250 a população italiana não compreendia os livros e
não tinha subsídios para participar do mundo da cultura, mas depois desse ano o
povo ganhou importância e, conseqüentemente, as línguas vulgares tiveram um
período ascendente com forte resistência dos doutos italianos, chegando até a ter
uma vitória sobre o latim.441
Fica patente, portanto, que para o autor em comento o intelectual deve se
impregnar de mundanidade, sair da clausura de seu gabinete, de sua torre de
marfim e se aproximar do povo e de seus problemas concretos.
Levando a discussão para uma seara mais revolucionária, Gramsci
ressalta o valor do movimento socialista como grupo de intelectuais inteiros e sua
forte influência junto à juventude. Havia uma grande simpatia entre a juventude e o
operariado, chegando esse a ser liderado por parcelas da juventude; contudo, nos
momentos de crises históricas os jovens retornavam às suas origens.442
Para Maliska, o intelectual orgânico tem na relação com a classe
revolucionária a fonte de um pensamento comum. É uma relação que visa melhor
defender a nova concepção do mundo de que é portadora a classe revolucionária
ascendente. A missão do intelectual orgânico é empreender e realizar a reforma
intelectual e moral que leva toda a massa a ascender ao status de intelectual,
rompendo com a subordinação do povo à cultura tradicional e reconciliando-o com a
sua própria cultura. A filosofia da práxis só pode ser concebida como um combate
permanente, que torne ideologicamente homogêneo o senso comum.443
Ainda fazendo um resgate histórico do papel do intelectual, tem-se que a
importância dos intelectuais não se deu somente na ciência política, mas em toda
concepção de vida espiritual e cultural. Uma breve síntese das modificações
440
Ainda em sua análise sobre o papel dos intelectuais na cultura, Antonio Gramsci nos brinda com interessante análise sobre a relação do clero com os intelectuais. A Igreja Católica sempre quis manter seu domínio, mas para isso teve que usar mecanismos que dessem sustentabilidade a esse domínio e, de certo modo, o perpetuasse. Contudo, com o Risorgimento deu-se uma intensa luta entre Estado e Igreja; esta, na necessidade de defesa de sua independência, buscou a Itália cada vez mais como base de sua supremacia, e os italianos como o pessoal de seu aparelho organizativo. Na Itália, a Igreja busca sempre o universalismo, nacionalizando seu pessoal dirigente e assim reforça a função histórica da Itália como sede do papado. Ibid., p. 46-47. 441
Ibid, p. 26-27. 442
GRAMSCI, op. cit., p. 49. 443
MALISKA, Marcos Augusto. Os operadores jurídicos enquanto intelectuais orgânicos. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de; BORGES FILHO, Nilson (Orgs.). Gramsci: Estado, Direito e Sociedade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 85-86.
138
propiciadas no pensamento a partir das contribuições de Hegel, trazida à colação
por Gramsci, ajuda a esclarecer melhor o assunto:
Com Hegel, começa-se a não mais pensar segundo as castas ou os „estados‟, mas segundo o „Estado‟, cuja „aristocracia‟ são precisamente os intelectuais. A concepção “patrimonial” do Estado (que é o modo de pensar por „castas‟) é, de imediato, a concepção que Hegel deve destruir (polêmicas irônicas e sarcásticas contra Von Haller). Sem essa „valorização‟ dos intelectuais feita por Hegel não se compreende nada (historicamente)
do idealismo moderno e de suas raízes sociais.444
Ao analisar as modificações orgânicas que estavam ocorrendo na cultura
inglesa Gramsci detectou, já em seu tempo, um fenômeno que ganhou muita força
na contemporaneidade, que é o da priorização na formação educacional de uma
orientação eminentemente técnica e científica, em detrimento de uma cultura
humanística.445 A modificação foi tão intensa que os próprios jovens das classes
cultas consideraram os estudos clássicos como uma estérea perda de tempo. Essa
tendência de esvaziamento humanístico é um fenômeno mundial.446
Na civilização moderna, todas as atividades práticas se tornaram
complexas a ponto de estarem sempre necessitando da criação de escolas para
formar intelectuais de nível mais elevado para lecionarem nessas mesmas
escolas.447
A proposta de Gramsci para a superação dessa crise seria a implantação
de uma escola única, de cultura geral, humanista, formativa, que estivesse num
equilíbrio correto entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Vislumbra-se aqui
uma quebra na mitológica cisão entre teoria e prática, muito presente no discurso
jurídico dominante.448
444
GRAMSCI, op. cit., p. 53. 445
“Na Inglaterra, até todo o século passado, poder-se-ia quase dizer que, até a Guerra Mundial, a finalidade educativa mais alta que as melhores escolas se propunham era a de formar o gentleman; indica uma pessoa que tenha não só boas maneiras, mas que possua um sentido de equilíbrio, um domínio seguro de si mesma, uma disciplina moral que lhe permita subordinar voluntariamente seu próprio interesse egoísta aos interesses mais vastos da sociedade em que vive. O gentleman, portanto, é a pessoa culta, no significado mais nobre do termo, se por cultura entendermos não simplesmente riqueza de conhecimentos intelectuais, mas capacidade de realizar o próprio dever e de compreender seus semelhantes, respeitando todo princípio, toda opinião, toda fé que seja sinceramente professada”. GRAMSCI, op. cit., p. 83. 446
Esse fascínio pela formação técnica em detrimento de uma formação humanística pode ser explicado, em parte, pelos próprios avanços vislumbrados nas ciências da natureza nessa época. É um momento histórico de avanços científicos notáveis, o que, sem dúvidas, influenciou todo o processo de produção cultural. Ibid., p. 84-85. 447
Ibid., p. 109. 448
Em Gramsci, a escola unitária ou de formação humanista (num sentido amplo), tem como proposta inserir os jovens na atividade social (depois de certo grau de maturidade e capacidade), levá-los a serem seres pensantes e dotados de autonomia na orientação e na iniciativa de suas ações. O Estado, nessa escola unitária, se faria presente na função educacional como meio de torná-la pública
139
Para Gramsci, sem dúvidas, o papel que deveria ser desempenhado pela
escola é o de formadora de sujeitos autônomos, capazes de pensar por si:
Descobrir por si mesmo uma verdade, sem sugestões e ajudas exteriores, é criação (mesmo que a verdade seja velha) e demonstra a posse do método; indica que, de qualquer modo, entrou-se na fase de maturidade intelectual
na qual se podem descobrir verdades novas.449
As academias, símbolos da divisão entre a alta cultura e a vida, entre os
intelectuais e o povo, deveriam ser a organização cultural dos elementos que, após
passarem pela escola unitária, galgariam o trabalho profissional, firmando-se como
um espaço de interação entre estes e os universitários450.
Nesse contexto profissional, seus trabalhadores abandonariam a
passividade intelectual e buscariam maior engajamento coletivo, por meio de
institutos especializados em todos os ramos de investigação e trabalho científico,
dando ensejo à difusão e concretização de qualquer forma de atividade cultural que
pretendam empreender. Deve-se também criar mecanismos para selecionar e
desenvolver as capacidades individuais da massa popular, que hoje são
sacrificadas, negligenciadas e se perdem em erros e tentativas que não surtem
efeito.451
Ao tratar do estudo, Gramsci enfatiza ser este um trabalho árduo e
fatigante, não só muscular-nervoso, como também intelectual, recheado de esforço,
adaptação, aborrecimento e sofrimento. Analisando o papel das universidades
ressaltou que em virtude de serem centros de irradiação de pensamentos, elas têm
e acessível a todas as gerações, sem divisão de grupos ou castas. A última fase da escola unitária seria prioritária e decisiva porque se daria ênfase à criação dos valores fundamentais do humanismo, autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, seja ela de cunho científico ou prático-produtivo. Nessa fase se daria o estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida, deixando de ser monopólio das universidades ou deixados ao acaso. Desse modo se alimenta tanto a idéia de escola ativa como de escola criadora. Aquela como elemento contrastante e repudiante da escola mecânica e passiva; já a escola criadora, não no sentido de ser uma escola de “inventores e descobridores” com um “programa” predeterminado que obrigue à inovação e à originalidade a todo custo, mas que tenha em seu bojo um método de investigação e de conhecimento concisos. Ibid., p. 110-113. 449
GRAMSCI, op. cit., p. 115-116. 450
Lembra-se aqui que para Gramsci academia e universidade não são palavras sinônimas, ambas representando instituições distintas. 451
A consciência da criança não é algo “individual”, mas é o reflexo das relações sociais nas quais está inserida. Portando ela não pode ser um mero recipiente mecânico que absorva os ensinamentos passados pelo corpo docente. Um professor medíocre pode conseguir que os alunos se tornem mais instruídos, mas não conseguirá que sejam mais cultos; esse tipo de docente só passara a parte mecânica da escola – as datas, as definições, etc. –, ignorando a parte problematizadora – um julgamento, uma análise estética, filosófica. O discente não pode cair na passividade, pelo contrário, a escola e a vida têm que estar em plena conexão e interação, e umbilicalmente ligadas de maneira que a consciência ativa seja a mola propulsora para o desenvolvimento moral e intelectual do aluno. Ibid., p. 116-122.
140
a tarefa de educar seus cérebros para pensarem de modo claro, seguro e pessoal,
libertando-os de toda influência tendenciosa, aparente e camuflada de idéias
obscuras e falsas. A universidade deve prezar por uma disciplina que norteie a
formação intelectual no sentido de relacionar todo conhecimento novo com os que já
possuem e integrá-los em conjunto, aceitando os princípios como centro de
pensamento. É partindo desses pressupostos que se construirá uma faculdade
crítica, que dê sustentabilidade a não recepção de argumentos e idéias falaciosas e
enganadoras.452
Em suma, para bem cumprir o seu papel de defesa da nova concepção
de mundo apresentada pela classe revolucionária, faz-se necessário que o
intelectual orgânico empreenda e realize a reforma intelectual e moral que leva toda
a massa a ascender ao status de intelectual, rompendo com a subordinação do povo
à cultura tradicional e reconciliando-o com a sua própria cultura. Para isso, são
imprescindíveis as escolas e as universidades, formadoras de um senso crítico
capaz de abrir caminhos para essa reconciliação. A filosofia da práxis só pode ser
concebida como um combate permanente, que torne ideologicamente homogêneo o
senso comum.453
1.1 O jurista orgânico e o jurista tradicional
Feitas as considerações iniciais acerca do conceito gramsciano de
intelectual orgânico, parte-se agora para uma tentativa de transposição deste
conceito para o ambiente jurídico, mais especificamente para o jurista comprometido
com a superação do status quo. Com isso, chega-se à idéia de jurista orgânico, que
será estudado neste tópico, em especial por meio de sua distinção do chamado
jurista tradicional.
Em regra, o jurista tradicional é o jurista normativista, que trabalha o
direito tendo como pano de fundo as mitologias jurídicas criadas na modernidade
pelo positivismo, tais como: a idéia de que é possível a neutralidade axiológica do
método e do intérprete; a redução do direito à lei; a transposição do método de
trabalho das ciências da natureza para as ciências humanas; a separação completa
452
GRAMSCI, op. cit.,p.116-122. 453
MALISKA, Marcos Augusto. Os operadores jurídicos enquanto intelectuais orgânicos. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de; BORGES FILHO, Nilson (Orgs.). Gramsci: Estado, Direito e Sociedade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 85-86.
141
entre direito e moral, bem como um deturpado apego à segurança jurídica, desculpa
de última hora para sustentar qualquer decisão conservadora, negadora de direitos
às classes espoliadas, mesmo que constitucionalmente positivados.
Barroso, ao tratar do modelo positivista, teceu considerações
merecedoras de literal transcrição:
Conceitualmente, jamais foi possível a transposição totalmente satisfatória dos métodos das ciências naturais para a área de humanidades. O Direito, ao contrário de outros domínios, não tem nem pode ter uma postura puramente descritiva da realidade, voltada para relatar o que existe. Cabe-lhe prescrever um dever-se e fazê-lo valer nas situações concretas. O Direito tem a pretensão de atuar sobre a realidade, conformando-a e transformando-a. Ele não é um dado, mas uma criação. A relação entre o sujeito do conhecimento e seu objeto de estudo – isto é, entre o intérprete, a norma e a realidade – é tensa e intensa. O ideal positivista de objetividade e
neutralidade é insuscetível de realizar-se.454
Azevedo, ao tratar do jurista tradicional, destacou:
Preso a uma camisa-de-força teorética que o impede de descer à singularidade dos casos concretos e de sentir o pulsar da vida que neles se exprime, esse juiz servo da legalidade e ignorante da vida, o mais que poderá fazer é semear a perplexidade social e a descrença na função que deveria encarnar e que, por essa forma, nega. Negando-a, abre caminho para o desassossego social e a insegurança jurídica.
455
No mesmo sentido são as palavras de Alexandre Rosa:
O jurista tradicional, vinculado que está ao positivismo rasteiro, informado por apropriação aparentemente despolitizada de Max Weber, acaba manifestando-se como um jurista 'autista', longe do mundo da vida, agarrado na segurança do mundo lógico e crente – porque só pode ser fé – que cumpre o seu papel de dizer o Direito. Esse jurista (sic) geléia geral acaba, portanto não dizendo o Direito, mas o que mandam que diga: é
incapaz de pensar, pasteurizado de valores, é o jurista papagueador.456
(grifo do autor).
Em síntese, o jurista tradicional orgulha-se de ser um cumpridor eficaz
das leis, porém, em muitos casos, dá primazia a textos de normas
infranconstitucionais em detrimento de textos de normas constitucionais; apresenta-
se como neutro, quando há muito já foi superada no plano gnoseológico a
possibilidade de neutralidade axiológica do método e do intérprete. Desse modo,
quando se propagandeia neutro, mostra-se como eficaz agente mantenedor do
status quo. Como bem assevera Amilton Carvalho
[...] a justiça neutra, aquela que procura colocar o conflito na conceituação do justo já preexistente e não a que é buscada em função do litígio, só
454
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 1, n. 1, 2001. 455
AZEVEDO, op. cit., p. 25. 456
ROSA, op. cit., p. 70-71.
142
serve para favorecer os fortes, os que são intelectualmente donos da definição pré-concebida do que é ou não justo, é a justiça dos dominadores que pretende colocar o mundo a seu serviço. Esconde, pois, a opção pelos fortes.
457
Essa crítica, já detalhada no primeiro capítulo, é reforçada por Dalmo
Dallari, que rechaça a possibilidade de neutralidade axiológica do intérprete,
sustentando que
a neutralidade jurídica é uma quimera. Todo Direito, por sua própria condição, está inspirado numa ideologia política, à qual serve, como ferramenta jurídica do sistema. Mesmo os intentos jurídicos „puristas‟ teorizados em abstrato se inserem num contexto estatal determinado, onde
a racionalidade normativa fica à mercê da circunstancialidade política.458
Na mesma esteira, Griffith defende que o juiz não pode ser neutro, pois
não há neutralidade ideológica, exceto quando ela se manifesta como apatia,
irracionalismo ou decadência do pensamento. Posturas como essas são reprováveis
quando assumidas pelos cidadãos em geral e mais fortemente ainda quando
adotadas por juízes. Nem a imparcialidade nem a independência pressupõem a
neutralidade. “Os juízes são parte do sistema de autoridade dentro do Estado e
como tais não podem evitar serem parte do processo de decisão política. O que
importa é saber sobre quê bases são tomadas essas decisões.”459
Bastante diversa é a atuação do jurista orgânico. Segundo Maliska, os
trabalhadores jurídicos preocupados com a negação do bloco histórico dominante e
com a construção de uma alternativa democrática não são meros técnicos, mas
agentes conscientes do seu papel na sociedade460.
Ainda de acordo com ele, Gramsci pode auxiliar muito no estudo crítico do
direito. O jurista não deve ser mero reprodutor do saber, mas romper com as
tradições e auxiliar o seu povo na busca pela emancipação social, política e
econômica, fazendo do direito um instrumento de justiça e progresso social461.
Edmundo Arruda, tratando dos possíveis locais de luta na sociedade,
afirma residir na sociedade civil o principal locus organizador das lutas políticas das
classes espoliadas, pois constitui
457
CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 41. 458
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 96. 459
GRIFFITH, J.A.G. Giudici e política, p. 191 apud ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92. 460
MALISKA, op. cit., p. 74. 461
Ibid., p.94.
143
[...] terreno fértil à intervenção ampla dos operadores jurídicos, considerados enquanto técnicos e cidadãos. Ressaltamos também residir no terreno do estado (sociedade política num sentido mais restrito) um espaço sensível à
luta política, como bem completou Poulantzas a Gramsci.462
O alternativista é um jurista orgânico, pois se vale do direito como front na
guerra de posição travada em prol da construção de um bloco histórico
comprometido com a concretização dos direitos sonegados às classes espoliadas e
com a construção de uma sociedade mais fraterna e solidária, na qual o “ser”
prevaleça sobre o “ter”.
Para Andrade, sob o viés da guerra de posição, a atuação alternativista
leva à politização do cotidiano jurídico, não permitindo que a prática jurídica se
distancie dos problemas sociais. Desse modo, mesclam-se o mundo jurídico com o
da sociedade civil, propiciando a salutar interação dialética entre ser e dever ser,
entre faticidade e normatividade.463
Andrade assevera que os juristas alternativos estão tentando transformar
um dos mais eficazes aparelhos ideológicos e repressivos do Estado, o Judiciário,
num mecanismo que contribua com a construção da emancipação e da democracia.
Com isso, tenta-se retirar o direito do isolamento em que foi colocado pelo
normativismo, sujando-o novamente, devolvendo-lhe as impurezas que foram
retiradas pela teoria pura. A articulação entre o direito alternativo e outros
movimentos sociais é uma forma de mundanizar o direito e acentuar o seu caráter
emancipador, objetivando-se a construção de uma hegemonia alternativa mais
estruturada.464
Essa articulação, que já esteve mais consolidada, precisa ser retomada,
superando-se as suas deficiências. De um lado, é importante que os alternativistas
compreendam que o direito deve ser utilizado para potencializar as lutas sociais e
não como forma de contê-las; de outra parte, é necessário que alguns movimentos
sociais superem a visão da ortodoxia marxista, já abordada no primeiro capítulo, que
considera o direito tão-somente como um instrumento de dominação, não
vislumbrando nele qualquer possibilidade emancipatória.
462
ARRUDA JR, Edmundo Lima. Operadores jurídicos e mudança social: sensos comuns, novo senso e outros consensos (Gramsci e o Direito Alternativo), In. Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofia y Derecho. Instituto de Investigaciones Jurídicas. Universidade Autónoma de México, 1995, p. 4. 463
ANDRADE, 1995, p. 130-131. 464
Ibid., 132-133.
144
Ledio Andrade salienta que a luta alternativista é pela construção de um
novo bloco histórico, não em termos dogmáticos, doutrinais, mas num processo
dialético, imprevisível e cheio de incógnitas, no qual “os cidadãos possam fazer sua
própria história.”465
Dialogando com os alternativistas sobre a própria práxis alternativista,
Edmundo Arruda Junior sustenta que:
Diferentemente dos operadores jurídicos que se filiam mais ortodoxamente aos postulados teóricos da análise sistêmica, calando-se sobre seus lugares da fala, bem como sobre as conseqüências de seus discursos, ou melhor, de seus "silêncios", devemos deixar claro nosso propósito. Não havendo fala inocente, nem tampouco rigor analítico que legitime uma presumida verdade encontrada no alto do mirante da ciência, nosso discurso, como todo discurso expressa dado saber com implicações imediatas e mediatas
com o poder (negado ou a se conquistar).466
(grifo do autor).
Para Arruda, a construção de um novo senso crítico acontece
no choque desconstrutivo com os sensos comuns que dão organicidade ao status quo jurídico e reforçam a hegemonia dominante. Este primeiro movimento, imprescindível, todavia restará insuficiente se, paralelamente à desconstrução do velho não se der a construção (teórica) do novo (segundo momento).467
Na hercúlea tarefa de construção deste novo senso crítico, a primeira
parte já foi muito bem desenvolvida pela crítica jurídica; compete agora ao direito
alternativo ir além, auxiliando na construção de uma dogmática jurídica
emancipatória, pautada na prática heterodoxa de diversas teorias, que não são fins
em si mesmas, mas instrumentos para a concretização do novo bloco histórico e
para a implementação dos conteúdos emancipatórios já positivados no direito
vigente.
Existem vários questionamentos e dúvidas sobre o real alcance da guerra
de posição no judiciário, em especial sobre a possibilidade de se alcançar
hegemonia crítica entre os juristas, tradicionalmente mais conservadores. Contudo,
como salienta Andrade, esse é um debate estéril, pois, independentemente das
dúvidas e questionamentos, não é possível ignorar que há juristas críticos atuando
efetivamente no cenário jurídico brasileiro. Esses trabalhadores, por sua vez,
necessitam não só compreender as mudanças, como ter ferramentas teóricas para
agir em suas atividades laborais. Trata-se, sustenta Andrade, “da inserção dos
465
ANDRADE, 1995, p.132. 466
ARRUDA JUNIOR, 1995, p. 3. 467Ibid., p. 4.
145
juristas nas práticas de cidadania, cuja colaboração com o povo possibilitará a
reconstrução de outra direção de seu destino, transformando-o em autor de sua
história”.468
Segundo Edmundo Arruda Jr., “[...] a construção da juridicidade
alternativa passa pela ampliação dos níveis de participação democrática”. Essa
participação deve envolver os movimentos sociais, magistrados, promotores de
justiça469, procuradores da república, defensores públicos, professores, estudantes,
assessorias jurídicas populares470, movimento estudantil, sindical, etc.471
Para Arruda Jr., a julgar pela repulsa dos juristas tradicionais ao direito
alternativo, algo acontece na seara jurídica, “[...] tribuna dos ventríloquos de todo
poder estabelecido, revoltados com o fim de seus discursos monológicos e com suas
verdades absolutas, a começar pela simples e fácil identificação de Direito e Lei.”472
Resgatando a célebre passagem da obra de Gramsci, já abordada neste
trabalho, na qual o pensador sardo sustenta que todos os homens são filósofos,
embora nem todos pratiquem a filosofia, Ledio Andrade sustenta, citando Valentino
Guerratana, que
“os juristas alternativos procuram praticá-la, e de maneira democrática, pois 'filósofo democrático é o filósofo que quer modificar o ambiente cultural do qual forma parte, mas aceita, ao mesmo tempo, ser modificado por este ambiente que atua como maestro porque lhe obriga a uma contínua autocrítica.'”
473 (grifo do autor).
O jurista orgânico, portanto, afigura-se como um jurista comprometido
468
ANDRADE, 1995, p. 133. 469
Sobre o papel de orgânico que pode ser desempenhado pelos membros do Ministério Público, Antonio Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart, enfatizam com maestria: “Atuar comunitariamente na organização e conscientização da sociedade civil, colaborando na formação de organismos de base e difundindo os valores democráticos, sobretudo no que tange ao campo dos direitos humanos e sociais. Questionar os padrões de efetividade do ordenamento jurídico, denunciando a distância existente entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades sócio-econômicas. Utilizar o novo instrumental jurídico que está à sua disposição para, na defesa dos interesses coletivos e difusos, abrir espaços de participação no Judiciário, órgão do aparelho repressivo do Estado, reprodutor da ideologia da classe dominante, transformando-o „num locus político privilegiado como arena de luta, confronto e negociação de interesses‟, contribuindo, dessa forma, para a gradativa absorção do Judiciário pela sociedade civil e alargando o acesso à justiça”. (grifo do autor). MACHADO, Antonio Alberto; GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992, p. 34-35. 470
Sobre assessoria jurídica popular, conferir: LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. 2005. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Teoria do Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. 471
ARRUDA JR, Edmundo Lima de. Gramsci e o Direito: reflexões sobre novas juridicidades. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima de; BORGES FILHO, Nilson (Orgs.). Gramsci: Estado, Direito e Sociedade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 38. 472
Ibid., p. 38. 473
ANDRADE, op. cit. p. 133.
146
com a transformação do estado de coisas que relega as classes sociais espoliadas
a condições subumanas. É um profissional do direito de outra estirpe, que utiliza o
conhecimento jurídico como arma em favor da emancipação das classes oprimidas.
A formação desse profissional exige um ensino jurídico diferenciado, que
transcenda o reducionismo simplista do normativismo legalista, um ensino que
reaproxime o direito da justiça e da realidade, potencializando as possibilidades
emancipatórias latentes no direito positivo. O jurista orgânico faz de sua profissão
uma trincheira de lutas em prol da superação do bloco histórico atual e aponta,
utopicamente, para a construção de um novo bloco histórico.
2 O DIREITO ALTERNATIVO COMO PRÁTICA JURÍDICA CONSTITUINTE
2.1 Direito alternativo: a retomada crítica da dogmática jurídica
Como já mencionado, defende-se neste trabalho que o direito alternativo
se caracteriza pela prática de diversas teorias. No capítulo anterior destacou-se,
dentre as diferentes teorias utilizadas pelos alternativistas em suas lides cotidianas,
alguns elementos da teoria constitucional. Em um Estado como o brasileiro, no qual
as promessas da modernidade, nos dizeres de Streck, ainda não foram cumpridas,
estruturado por uma Constituição compromissória, analítica e principiológica, a
utilização de ferramentas constitucionais como as assinaladas é imprescindível. Em
virtude disso, no presente tópico, o direito alternativo será abordado como uma
prática jurídica constituinte, como um resgate crítico da dogmática do direito
constitucional, com vistas à concretização integral da Constituição Federal de 1988.
Clèmerson Clève sustenta que o direito alternativo se diferencia da teoria
crítica do direito na medida em que esta, eminentemente acadêmica, ocupava-se em
desmistificar o fenômeno jurídico através de novos deslocamentos epistemológicos,
ou seja, preocupava-se com a desconstrução. O direito alternativo, por sua vez,
vale-se dessa experiência, mas quer ir além. Não lhe basta a crítica ao direito posto,
nem tampouco o título de baluarte do discurso denúncia; almeja, isso sim, colaborar
efetivamente para a construção de um novo direito. Por tudo isso é que ele
representa um plus em relação à teoria crítica. O jurista crítico acreditava na
mudança social unicamente por meio da política, quadro que começa a se alterar
147
quando se reconhece que o trabalhador jurídico desempenha importante papel na
consolidação de posições renovadas das classes populares.474
Avançando, Clève distingue dogmatismo de dogmática jurídica,
sustentando ser esta a ferramenta de trabalho do jurista para intervenção no mundo
jurídico, enquanto aquele representa o apego preconceituoso e irrefletido a
dogmas.475
Dessa maneira, a dogmática jurídica configura-se como “o resultado da
práxis jurídica contemporânea, sendo a manifestação instrumental necessária e
indispensável para a atividade de aplicação do direito ao caso concreto476”.
Afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior que:
Sendo um pensamento conceitual, vinculado ao direito posto, a dogmática pode instrumentalizar-se a serviço da ação sobre a sociedade. Nesse sentido, ela, ao mesmo tempo, funciona como um agente pedagógico – junto a estudantes, advogados, juízes, etc. – que institucionaliza a tradição jurídica, e como um agente social que cria uma „realidade‟ consensual a respeito do direito, na medida em que seus corpos doutrinários delimitam um campo de solução de problemas considerados relevantes e cortam
outros, dos quais ela desvia a atenção.477
Nessa esteira de construção de uma dogmática jurídica crítica, Clève
delineia o conceito de dogmática constitucional emancipatória, afirmando que:
Na moderna concepção do direito constitucional desenvolveu-se uma renovada linha doutrinária conhecida como dogmática constitucional emancipatória, tendo, esta vertente, o objetivo de estudar o texto constitucional à luz da idéia de dignidade da pessoa humana. Consiste em formação discursiva que procura demonstrar a radicalidade do Constituinte de 1988, tendo em vista que o tecido constitucional passou a ser costurado a partir de uma hermenêutica prospectiva que não procura apenas conhecer o direito como ele é operado, mas que, conhecendo suas entranhas e processos concretizadores, ao mesmo tempo fomente uma mudança teorética capaz de contribuir para a mudança da triste condição que acomete a formação social brasileira. O foco desta dogmática não é o Estado, mas, antes, a pessoa humana exigente de bem-estar físico, moral e psíquico. Esta dogmática distingue-se da primeira, pois não é positivista, embora respeite de modo integral a normatividade constitucional, emergindo de um compromisso principialista e personalizador para afirmar, em alto e bom som, que o direito Constitucional realiza-se, verdadeiramente, na
474
CLÈVE, 1995, p. 37. 475
Ibid., p. 37. Segundo Manuel Atienza, “A dogmática é, sem dúvida, uma atividade complexa, na qual cabe distinguir essencialmente as seguintes funções: 1) fornecer critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias em que ele ocorre; 2) oferecer critérios para a aplicação do Direito; 3) ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico”. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. 3. ed. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 19. 476
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Uso alternativo do Direito e saber jurídico alternativo. In: ARRUDA JR, Edmundo Lima. Lições de Direito alternativo. Volume I, São Paulo: Acadêmica, 1991. p. 111. 477
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. Sao Paulo: Atlas, 2003. p. 85.
148
transformação dos princípios constitucionais, dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e dos direitos fundamentais em verdadeiros
dados inscritos em nossa realidade existencial.478
Dentro dessa perspectiva, Clève provoca os juristas críticos, enfatizando
não bastar o discurso denúncia de amigo das classes populares: é necessário sujar
as mãos com a lama impregnante da prática jurídica, colaborando para a construção
de uma dogmática emancipatória, que permita lutar ombro a ombro com as forças
conservadoras, no lugar em que elas imperam.479
É nesse contexto que o citado autor critica o uso do termo “positivismo de
combate”, já que a retomada da dogmática pressupõe um pensamento novo,
distante dos mitológicos postulados do positivismo – neutralidade, imparcialidade,
etc.. Para a nova dogmática o direito positivo é um fenômeno datado, processual e
relacional, em constante evolução, que não é dado, mas construído a partir do
movimento dialético da história e cuja concretização sofre a importante contribuição
do jurista. “O jurista participa do processo de recriação do direito, assim como o
cientista, ensina Bachelard, participa do processo de construção do seu objeto”. A
construção desta nova dogmática jurídica, de viés emancipador, desafia um esforço
interdisciplinar, no qual a redescoberta da constituição pode representar um
significativo avanço.480
Assevera Clève que o direito não é um dado, mas um processo. O jurista
participa ativamente desse processo de criação do direito, pois quando apreende o
direito ele o faz a partir de suas perspectivas ideológicas, políticas e científicas. Até
Kelsen admitia isso, mas os positivistas brasileiros são mais kelsenianos que o
próprio Kelsen.481
Em virtude da baixa densidade normativa e do elevado grau de abstração
de seus preceitos, é grande a criatividade permitida no direito constitucional. Vista
como um sistema aberto, a constituição comunica-se com o mundo fático,
478
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista Crítica Jurídica, n. 22, jul/dez 2003, p.18. Disponível em: <www.unibrasil.com.br>. Acesso em: 23 jan. 2005. 479
CLÈVE, 1995, p. 37-38. 480
Ibid., p. 38. 481
Ibid., p. 50. Sobre a Interpretação na Teoria Pura do Direito conferir: KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito.Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, especialmente o capítulo VIII; REIS, Isaac. Interpretação na Teoria Pura do Direito. Seqüência, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, n.45, p.11-30, dez.2002; LUZ, Vladimir de Carvalho. A Invisibilidade da Crítica Kelseniana Sobre os Limites da Dogmática Jurídica: Um Senso Comum Teórico Ainda Não Desvelado? Cadernos UNDB, Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, São Luís, n.1, p. 11-37, 2006.
149
aprendendo com ele e interagindo com os signos mutacionais oferecidos pela
realidade. Por isso a constituição comporta a mutação constitucional, que permite a
alteração na correlação de forças dinamizadora das várias instâncias da formação
social. Essa é, para Clève, a válvula de oxigenação do direito positivo e o canal
legitimador da atuação do jurista criador e criativo.482
Também conectando o discurso alternativista com o constitucionalista,
Modesto Saavedra, professor da Universidade de Granada, na Espanha, compara o
uso alternativo do direito europeu com o direito alternativo latino-americano, tendo
como pano de fundo o Estado Constitucional. O autor aponta como causa principal
do declínio do uso alternativo do direito (UAD) a “modificação do clima ideológico
produzido pela crise da esquerda marxista, e o abandono e marginalização do
projeto político baseado na luta de classes e tendente à transformação radical da
sociedade capitalista.” Contudo, afirma que os pressupostos do UAD não só
continuam válidos, como também já fazem parte do patrimônio comum de quase
toda a cultura jurídica, são eles: o antiformalismo, o abandono do legalismo e a
ampliação dos limites da dogmática jurídica.483
No bojo da mudança de perspectiva apontada, o papel do jurista crítico é
o de contribuir para uma manipulação ótima do direito, realizando uma política
jurídica de afiançamento e desenvolvimento dos direitos fundamentais.
Assevera Saavedra que para o direito alternativo o direito não se
circunscreve aos juízes, como sustentava o uso alternativo do direito; é de interesse
de toda a sociedade civil, que demanda reconhecimento por parte da magistratura.
Nesse sentido, o direito alternativo é mais amplo, mais aberto do que o uso
alternativo do direito, já que este é um trabalho basicamente hermenêutico, restrito,
em grande parte, aos titulares de função.484
O jurista espanhol aponta que a desestruturação das fontes do direito
presente em todas as sociedades complexas é agravada nos países da América
Latina, por estarem situados na periferia do capitalismo global, por comportarem um
alto grau de exclusão social e, também, por albergarem distintas culturas e etnias.
482
Ibid., p. 50-51. A historicidade do processo de construção do direito positivo e, principalmente, a participação decisiva e criativa do intérprete no processo de concretização do direito foram temas abordados nos capítulos iniciais deste trabalho. A participação do jurista na construção da decisão, por meio do processo de concretização normativa, justifica plenamente a escolha aqui feita, dentre as diversas possibilidades constantes da teoria constitucional, do marco teórico concretista, apresentado, em linhas gerais, no segundo capítulo. 483
LOPEZ, 2004, p. 34-35. 484
Ibid., p. 36-37.
150
Essa diversidade de fontes tem recebido o nome de pluralismo jurídico. Esse direito
alternativo – insurgente – tem um caráter jurídico na medida em que possui um
significado normativo e uma pretensão de legitimidade485.
Saavedra analisa o movimento alternativo brasileiro do ponto de vista da
legalidade e da legitimidade. Para ele, quando o direito alternativo se opõe
marcadamente ao direito estabelecido pelo Estado ocorre um déficit objetivo de
legalidade e o questionamento de sua legitimidade. Contudo, não vislumbra
problemas quando a prática alternativista colide-se com as leis vigentes, desde que
essa colisão possa ser escusada com base na Constituição486.
Na verdade, quando os alternativistas recusam-se a aplicar uma norma
jurídica contrária à Constituição estão atuando em perfeita sintonia com as idéias de
legalidade e de legitimidade. Partindo disso, o autor distingue uma versão fraca de
uma versão forte do direito alternativo. A versão fraca seria próxima ao uso
alternativo do direito, ou seja, pode encontrar acomodação via interpretação
inovadora ou via uma integração praeter legem das lacunas. Já na versão forte,
estar-se-ia mesmo diante de uma afronta ao princípio da legalidade487.
Modesto Saavedra afirma ser muito difícil responder se o juiz tem
legitimidade para ser o mediador entre interesses setoriais, passando por cima de
tomadas de decisão estabelecidas constitucionalmente. De um lado, a lei é uma
conquista histórica, mas de outro, não se pode paralisar a sociedade diante da
ineficácia do legislativo488. Com isso, a jurisdição constitucional ganha importância,
provocando a substituição do princípio da legalidade, que reinou absoluto desde a
Revolução Francesa, pelo da constitucionalidade489.
485
Ibid., p. 39. Sobre o pluralismo jurídico, como já citado, o mais completo trabalho é o de Antonio Carlos Wolkmer, que desenvolveu em obra homônima, fruto do seu profícuo doutoramento na Universidade Federal de Santa Catarina, profundo estudo sobre o assunto: Cf. WOLKMER, 2001, passim. 486
LOPEZ, 2004, p. 42, 44-45. 487
Ibid., p. 44-45. 488
A dificuldade aqui é grande em se tentar equacionar os limites da atuação judicial na política. Muito se tem escrito sobre a judicialização da política e da politização do jurídico. De um lado, não se pode esvaziar o espaço político, remetendo todas as decisões para o judiciário, de outro, o modelo constitucional vigente exige um judiciário atuante na concretização dos valores plasmados na constituição. 489
Ibid., p. 46-47. Há um grande debate em torno do alcance da jurisdição constitucional, em virtude do conflito entre princípio democrático e princípio da constitucionalidade. Para aprofundar-se mais no assunto, conferir, entre outros: VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 27-41; SANCHÍS, Luis Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, pp.137 e ss.
151
Como assevera Clèmerson Merlin Clève, com o iluminismo houve um
endeusamento da lei, que não podia atentar contra a justiça e a liberdade por ser
obra dos representantes da nação – questão de forma – e orientada pela razão –
questão de fundo. O culto da lei pelo liberalismo produziu como uma de suas
conseqüências a idéia de que a lei contém todo o direito. A lei era vista como a
expressão da vontade geral, mas como o Parlamento era composto exclusivamente
por burgueses, essa vontade era a vontade burguesa490.
Com o sufrágio universal a lei passou a ser a expressão da vontade
política do grupo majoritário no seio do parlamento. Paradoxalmente, o processo de
democratização oriundo do sufrágio universal gerou um direito formalizado,
destituído de conteúdo: se a lei expressa uma vontade política, cada vez menos
interessa aos juristas o seu conteúdo, mas, tão-somente, o procedimento. 491
Clève atesta que
“Com efeito, se a Constituição instrumentalizou, num primeiro momento, os ideais burgueses herdados do contratualismo e do idealismo, hoje constitui 'espaço de mediação de conflitos e condensação da relação de forças travadas entre as classes e frações de classes sociais', mesmo em sociedades periféricas como a brasileira”. “As Constituições doutrinárias (fiéis a um único postulado ideológico, doutrinário ou filosófico) passam a ceder espaço para as Constituições compromissórias, condensadoras do conflito emergente e desenvolvido no seio da sociedade.”
492 (grifo do autor).
Essas constituições compromissórias, segundo Vieira, criam
compromissos na esfera econômica e social. Surgiram num ambiente social e
político bem mais complexo do que aquele que produziu as constituições liberais,
sendo textos contraditórios, pois conciliam interesses conflitantes dos diferentes
grupos sociais.493
Com tudo isso, democratiza-se o ambiente constitucional, alargando as
possibilidades de debate. Para Clève, no entanto, há um preço a ser pago por isso:
“O questionamento permanente da legitimidade da Constituição” 494.
Paradoxalmente, no fato de a constituição compromissória não pertencer a
ninguém reside tanto a sua fraqueza quanto a sua força: como não é de ninguém,
não há quem a abone integralmente; por outro lado, por não ser de ninguém, é de
490
CLÈVE, 1995, p. 34-36. 491
Ibid., p. 34-36. 492
Ibid., p. 36. 493
VIEIRA, op. cit., p 38. 494
CLÈVE, op. cit. p.36.
152
todos, não havendo quem não defenda ao menos uma parte dela. Aproveitar isso é
um dos maiores desafios do constitucionalismo contemporâneo.495
Com a ampliação da inserção constitucional “a legalidade, deste modo,
fazia-se constitucionalidade”496, isto é, o princípio da legalidade era substituído pelo
princípio da constitucionalidade, o que permitiu maior abertura do direito, tratada nas
seguintes palavras de Modesto Saavedra:
A Constituição é uma lei, mas é de uma qualidade diferente devido ao forte caráter ético-político de seus conteúdos e à imprecisão de sua formulação. Por isto passou a converter-se em algo assim como a porta por onde entra a moralidade em direção ao direito, uma porta que pode ser administrada pelos Tribunais a fim de abrir ou fechar a comunicação entre ambos os
espaços através da argumentação jurídica.497
Com a utilização do princípio da constitucionalidade o jurista não precisa
mais, diante de um caso concreto, ao negar aplicação a um texto de norma que
afronta os valores constitucionais, apelar para formulações jusnaturalistas ou para
critérios subjetivos de justiça na busca de soluções adequadas ao problema. O
acesso à constituição, compreendida como norma e como hard law, substitui com
vantagens essas tentativas, permitindo ao juiz não aplicar uma lei que, mesmo
amparada constitucionalmente, seja injusta.498
Em qualquer caso, insiste Saavedra, o juiz tem ao seu dispor todos os
recursos oferecidos pela teoria da argumentação jurídica. O problema, atesta, é
quando se ultrapassa os limites de uma argumentação jurídica correta, de modo a
resgatar o fantasma da aplicação do direito contra legem. No entanto, dentro dos
limites discricionários apresentados pela argumentação jurídica, o juiz possui um
amplo espectro de fundamentação, não precisando ficar preso aos ditames da
argumentação tradicional. Ao mesmo tempo, uma perspectiva como essa mantém
dentro de limites controláveis o ímpeto de alguns juristas de aplicar o direito de
acordo, exclusivamente, com as suas próprias convicções499.
495
Ibid., p.36. 496
FERRAZ JR., 1998, p. 194. 497
LOPEZ, 2004, p. 47. 498
Ibid., p.51; LOPEZ, 2004, op. cit., p. 48-49. Alguns desses mecanismos que permitem ao juiz negar aplicação a uma lei injusta, fazem parte do sistema constitucional, sem estarem, necessariamente, expressos na constituição. Exemplo disso é a idéia de desobediência civil, sustentada pelo próprio Saavedra, bem como por Luigi Ferrajoli, quando este afirma em sua obra mais célebre, que o juiz tem o dever de não adesão e de desobediência civil quando está diante de uma lei injusta. Cf. FERRAJOLI, 2001, passim. Um dos tradutores da citada obra de Ferrajoli para o português, inverteu o sentido dado pelo autor, afirmando que o juiz tem o dever de não adesão a desobediência civil. FERRAJOLI, 2002, passim. 499
LOPEZ, op. cit., p. 48-49.
153
Nesse contexto, é possível resgatar o que já fora defendido por Müller,
quando enfatizou a necessidade da busca de uma racionalidade possível para o
direito, colocando-o no meio do caminho entre o mitológico discurso da racionalidade
plena defendido pelo normativismo e a irracionalidade absoluta de algumas
correntes sociológicas.
Na compreensão de Saavedra, a luta pela objetividade no campo do
direito alternativo será longa. Para superação desse desafio deve-se explorar a
constituição, em toda a sua potencialidade. Em virtude disso, arremata, é que o
“UAD deve fincar-se no marco de uma teoria da Constituição (especialmente da
jurisdição constitucional) e de uma teoria da argumentação jurídica.”500
Em virtude do sistema misto de controle de constitucionalidade das leis
adotado no Brasil a utilização da jurisdição constitucional pelos alternativistas ganha
maior relevo, pois, no controle difuso, todo juiz, em certa medida, é um juiz
constitucional. Nos países europeus que se valiam do uso alternativo do direito os
intérpretes não podiam contar com esse mecanismo, limitando-se às possibilidades
oferecidas pela hermenêutica. Assim, os juristas brasileiros gozam de alternativas
mais alentadoras no processo de definição do direito aplicável à solução dos casos
concretos.501
Como bem define Clève:
As Constituições, hoje, são documentos normativos do Estado e da Sociedade. A Constituição representa um momento de redefinição das relações políticas e sociais desenvolvidas no seio de determinada formação social. [...] A Constituição opera força normativa, vinculando, sempre, positivamente ou negativamente, os poderes públicos. Os cidadãos têm,
500
LOPEZ, 2004, p. 48-49. Sobre teoria da argumentação jurídica, importante reforçar a importância da obra de Alexy e da síntese das principais teorias da argumentação feita por Manuel Atienza. Cf. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2004; ATIENZA, 2003, passim. 501
CLÈVE, 1995, p. 51. Chama-se a atenção, contudo, para um processo de alteração, por via da jurisdição constitucional, do sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro. Trata-se do fenômeno, que na falta de melhor nomenclatura, pode-se denominar de abstrativização do controle de constitucionalidade. A inserção da Ação Declaratória de Constitucionalidade foi um passo desse processo, seguido pela Lei da Repercussão Geral e, no âmbito do STF, pelo embate travado em torno da Reclamação 4335-5, do Acre, na qual o Ministro Gilmar Mendes defendeu haver ocorrido mutação constitucional no Artigo 52, X, da Constituição Federal, de modo que a eficácia erga omnes das decisões do Supremo em sede de controle difuso, não mais dependem de resolução do Senado Federal, servindo esta, tão-somente, para dar publicidade à decisão. Há, com isso, uma clara tendência à concentração de poder no Supremo Tribunal Federal, em detrimento da jurisdição difusa. Tal alteração pode ser perigosa, ainda mais diante da reduzida discussão social em torno da composição da Corte. Cf: LEAL, Roger S. O Efeito Vinculante na Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006; MENDES, Gilmar Ferreira. O Papel do Senado Federal no Controle de Constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa 162 (2004): 149-168;
154
hoje, acesso direto à normativa constitucional, inclusive para buscar
proteção contra o arbítrio ou a omissão do legislador.502
A Constituição é, portanto, o grande espaço onde se opera a luta jurídico-
política. A luta que se travava no seio da Assembléia Constituinte transferiu-se para
o campo da prática constitucional – aplicação e interpretação. Afirmar esta ou aquela
interpretação de uma norma constitucional constitui comportamento dotado de
compromisso ideológico irrefutável.503
O alternativista deve definir claramente o seu compromisso ideológico. Os
juristas, em geral, e os juízes, em especial, procuram esconder as suas preferências
por detrás do mistificador discurso da neutralidade axiológica. É como se
prolatassem uma não-decisão, aplicando tão-somente a vontade da lei. “O controle
da decisão judicial deve aqui incidir sobre o silêncio e não apenas sobre o texto da
decisão.” 504
Deve-se assumir a dimensão ideológica do direito, clarificando a
motivação ideológica da sentença, como forma de se conseguir a transparência
exigida pelo Estado Democrático de Direito. Segundo Clève, “Pior, todavia, do que o
que pretende decidir ocultando a ideologia é aquele que decide ideologicamente
imaginando que age de modo neutro, imparcial e coerente com a verdade.” 505
No entanto, Clève ressalta que a clara definição ideológica, por si só, é
insuficiente. Faz-se necessário que o direito alternativo elabore, de maneira clara e
objetiva, os pressupostos teóricos do conhecimento jurídico que pretende operar.
[...] o discurso alternativo precisa superar o voluntarismo e o subjetivismo, alcançando um padrão objetivo de juridicidade. Os argumentos dos juristas alternativos devem ser sólidos e objetivos o suficiente para colocar em xeque as leituras conservadoras do direito e da Constituição. O rigor quanto à concepção do direito que os alternativos querem fazer triunfar constitui dimensão necessária para construção de uma nova ordem.
É preciso, segundo o citado autor, utilizar a crítica conservadora de
maneira antropofágica, aos moldes de Oswald de Andrade, isto é, “como absorção
do inimigo sacro para transformá-lo em totem.”506
Neste contexto, afirma Clève, o juiz não pode ser um mero aplicador de
códigos: precisa fazer a filtragem constitucional, porém, muitos ainda não estão
502
CLÈVE, 1995, p. 39. 503
Ibid., p. 40. 504
Ibid., p. 46. 505
Ibid., p. 46. 506
Ibid., p. 47.
155
preparados para isso. A escola de direito precisa mudar, para formar um novo
profissional, apto a dar respostas a essas demandas, pois:
Um juiz perdido no cipoal normativo do direito positivo, que se pretende mero aplicador da lei, será um juiz corporativo ou individualista ou social conforme o texto que pretenda aplicar. O juiz não pode ser prisioneiro das concepções que presidiram a elaboração dos textos normativos individualmente considerados. O juiz deve entender a dimensão axiológica que preside, hoje, na atualidade, no momento da realização da justiça, o
sistema jurídico.507
A mudança no judiciário passa por alterações profundas no ensino
jurídico, formador do outrora mencionado bacharel anticidadão, ventríloquo de todo
e qualquer poder estabelecido.
Afirma Clève que na sociedade liberal o direito dependia do legislador.
Atualmente, na sociedade técnica e de massas, com a superação dos postulados
individualistas, com o nascimento de conflitos sem uma pronta resposta normativa,
com o caráter de provisoriedade das leis, o direito não sobrevive, não se aperfeiçoa,
não evolui e nem se realiza sem o jurista.508
Para lidar com essas novas demandas, exige-se do jurista “uma imensa
dose de criatividade”. Ferraz Jr. lembra Gramsci ao abordar a “necessidade de se
modificar o tipo tradicional do dirigente político, este preparado só para atividade
jurídico formal, integrando a sua cultura segundo as novas necessidades que
exigem uma competência técnica muito mais ampla”.509
Uma Constituição como a brasileira de 1988 pode oferecer não só um
aporte para a atualização do direito – construção de uma dogmática atualizada –,
mas também para a arquitetura dos parâmetros objetivos definidores do direito que
os alternativistas pretendem aplicar510.
Para López, “O direito alternativo consiste na luta para ampliar a eficácia e
o reconhecimento de determinadas opções ideológico-políticas, uma luta que
ambiciona a conversão dessas opções em direito plenamente válido.” Nesse sentido,
perquirir a aceitação jurídica do direito alternativo só faz sentido a partir de um ponto
de vista interno da ordem jurídica; do ponto de vista externo511 a preocupação não
507
CLÈVE, 1995, p. 48-49. 508
Ibid., p. 47-48. 509
FERRAZ JR, 1998, p.195. 510
Ibid., p. 49. 511
Cf.: HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
156
está relacionada com o grau de alternatividade que a ordem oficial pode conviver,
mas com o grau de eficácia que essa prática tem em termos de luta pelo poder.512
Do ponto de vista interno, pode-se entender o direito alternativo como
uma prática jurídica constituinte. É daí também que cabe julgar sua justificação mais
profunda e os seus limites morais. Segundo López, o horizonte do direito alternativo
é estabelecido pelos valores e princípios do sistema democrático que ainda não
foram desenvolvidos em toda a sua potencialidade ou que tenham sido
desenvolvidos de maneira contrária aos seus postulados.
Visto sob este ângulo, o direito alternativo contribui para a (re) fundação
do Estado Constitucional, pois tem como um de seus objetivos evitar que a liberdade
e a igualdade sejam meras declarações formais. Para tal, apela às forças sociais e
interpela os juízes para que colaborem nesta tarefa e supram as deficiências do
legislador513. Com isso, aprofunda-se na constituição, que deve ser entendida como
garantia do processo de participação eqüitativa de todos nas tomadas de decisões
coletivas. Compete aos juízes manter abertos os canais de participação e
deliberação formalmente consagrados no texto constitucional.514
A atuação alternativista deve compreender ações no plano
jurisprudencial, pedagógico, organizativo e da opinião pública. É essa ampla frente
de atuação que caracteriza o direito alternativo latino-americano como um
verdadeiro movimento.515
Uma questão que Saavedra reputa fundamental é saber se o Estado
Constitucional é uma aspiração suficiente para resolver os problemas da América
Latina. Segundo ele, inúmeros conflitos e contradições presentes no Continente
poderiam encontrar solução satisfatória no marco do Estado Constitucional. Em
primeiro lugar, aponta as contradições próprias do capitalismo dependente, que
geram desigualdades sociais insuportáveis. Em segundo lugar, está o
multiculturalismo, isto é, a existência num mesmo espaço de grupos distintos que
exigem direitos diferentes e reconhecimento. Por último, estão as contradições
existentes entre estado e sociedade ou sociedade e indivíduo: o estado tentando
expandir sua autoridade e a sociedade tentando impor uma mesma forma de vida a
512
LOPEZ, 2004, p. 49-50. 513
No Brasil, para suprir as omissões legislativas podem ser utilizadas, dentre outras ferramentas, o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 514
LOPEZ, op. cit., p. 49-51. 515
Ibid., p. 51.
157
todos os seus membros. Afirma Saavedra que o Estado Constitucional, desde que
visto como estado democrático, social e multicultural, oferece uma plataforma de
solução para esses tipos de contradições.516
Na luta por esse Estado pode-se inscrever uma prática jurídico-política
que promova, por exemplo, uma leitura das normas trabalhistas favoráveis ao
empregado; uma leitura não-delitiva das ocupações de terra; uma interpretação
extensiva do furto famélico. O reconhecimento dos direitos dos índios, a
discriminação positiva de alguns coletivos – como mulheres e negros – prejudicados
pela igualdade formal de direitos; o reconhecimento dos direitos dos homossexuais,
entre inúmeros outros.517
Na compreensão de Saavedra López os problemas mais graves do direito
alternativo não são jurídicos, mas políticos. Em primeiro lugar, necessita-se de uma
reforma das instituições para que as práticas jurídicas encontrem trabalhadores que
as levem adiante – juízes independentes, governos representativos, controle de
constitucionalidade das leis, incentivo às organizações cidadãs capazes de contribuir
para o fortalecimento do espaço público. Em segundo lugar, é preciso atacar o
condicionamento imposto às sociedades periféricas pelo processo de globalização
da economia. Este segundo problema, para ele, parece o mais difícil de resolver.518
Neste contexto, salienta Saavedra:
“As práticas jurídicas alternativas são um componente a mais na luta social para libertação de forças que são extraordinariamente resistentes, tão resistentes como as forças de produção econômica e as instituições, agora de âmbito global, que cresceram a seu serviço.”
519
Partilha-se aqui com López do entendimento de que a teoria constitucional
é uma importante ferramenta de trabalho para os alternativistas, possibilitadora de
uma racionalidade efetiva para o direito, livrando o direito alternativo de parte
significativa das críticas que recebe. A teoria constitucional não deve ser vista, no
entanto, como um dogma, o que contrariaria a própria essência alternativista, mas,
516
Ibid., p. 51-52. 517
Ibid., p. 52-53. No Brasil este debate tem sido travado, por exemplo, em torno da política de cotas nas universidades públicas e da união homoafetiva. 518
Ibid., p. 53-54. 519
Ibid., p. 54.
158
como um instrumental, como uma importante ferramenta de trabalho para a
concretização de valores potencializadores da emancipação humana.520
Como bem sustenta Clève, “[...] a criação de um direito comprometido
com os valores libertários depende basicamente de um sujeito histórico: as classes
populares.” As classes populares devem se organizar para influir na dialética da
história. Contudo, a luta no plano jurídico é inevitável, exigindo a aproximação entre
os juristas orgânicos e os movimentos sociais, somando forças para fazerem com
que a Constituição seja concretizada em sua integralidade e não apenas no que diz
respeito aos interesses das classes dominantes.521
Diante do exposto, não há dúvida de que o jurista pode ser um importante
aliado na luta democrática, ao procurar, dentro dos limites do discurso jurídico – que
mesmo politizado possui limites –, criar categorias e conceitos, consolidar posições
alcançadas nos embates políticos, bem como dar efetividade aos comandos
constitucionais condensados na Constituinte.522
Encerra-se este tópico com Streck, para quem a noção de Estado
Democrático de Direto está indissociavelmente ligada à realização dos direitos
sociais e pressupõe uma valorização do jurídico. O Judiciário passa a fazer parte da
arena política, como uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade,
deslocando-se a esfera de tensão dos procedimentos políticos para os judiciais523.
2.2 A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo
No Brasil, o discurso pós-moderno chegou antes do cumprimento das
próprias promessas da modernidade. Para Streck, o direito é um importante
instrumento de luta para a efetivação dessas promessas. Uma das alternativas para
tentar equacionar o enorme déficit social existente no país é defender as instituições
da modernidade contra o neoliberalismo pós-moderno. As benesses da
520
Sobre a discussão da racionalidade no direito, importante leitura é a de Enrique Haba, Cf. HABA, Enrique P. ¿Una Discusión: Quiénes son los „Iracionalistas‟ en la Teoría del Derecho? Revista Doxa, n. 19, 1996. 521
CLÈVE, 1995, p. 50. 522
Ibid., p. 50. 523
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: perspectivas e possibilidades de concretização de direitos fundamentais-sociais no Brasil. In: Anais da XVIII Conferência Nacional dos Advogados: cidadania, ética e Estado. Brasília, OAB, Conselho Federal, 2003, v. 02, p. 1363-1364.
159
modernidade ainda são privilégios da minoria rica, o que resulta na existência de
duas categorias de cidadãos: os subcidadãos e os sobrecidadãos524.
Nesse cenário, segundo Clève, o desafio posto aos juristas alternativos é
a construção de uma dogmática jurídica – vista como tecnologia da ação jurídica –
não positivista e não dogmática. Essa tarefa pode encontrar importante aporte na
Constituição. Um direito constitucional alternativo constituirá sempre, em face da
Constituição de 1988, uma teoria constitucional da efetividade integral do Texto
Constitucional525.
Na atualidade, a defesa da Constituição brasileira de 1988 deve ser uma
tarefa incessante do jurista alternativo, visto que encontrará nela “[...] um
reservatório impressionante de topois argumentativos justificadores de renovada
ótica jurídica e da defesa dos interesses que cumpre, para o direito alternativo,
defender”526.
Adeodato descreve a transição dos alternativistas para o discurso
constitucionalista. Segundo ele, “no início dos anos 90, os juristas mais progressistas
buscavam um discurso mais alternativo, em alguns casos até anti-estatal”. No
entanto, “os acontecimentos posteriores os fizeram agarrar-se à Constituição, que se
tornou uma espécie de âncora das novas esperanças bem-intencionadas”.527
Para Clèmerson Clève, a construção dessa dogmática constitucional
emancipatória exige: i) uma ética da responsabilidade; ii) uma política da criatividade
e, também, iii) um compromisso ideológico definido, isto é, uma crítica da
neutralidade. A somatória disso autorizará uma filtragem constitucional que fará
incidir sobre o direito infraconstitucional os valores substanciais emancipatórios
adotados pela constituição. Em virtude da comunicação entre a constituição e a
realidade é natural que a atualização constitucional signifique a oxigenação
constante do direito infraconstitucional, já que este só pode ser compreendido à luz
da constituição528.
524
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 26-29. 525
CLÈVE, 1995, p.53. 526
Ibid., p. 40; FONSECA, Edson Pires da. A Teoria Constitucional e os Juristas Orgânicos. In: Congresso Nacional do CONPEDI (14. : 2005 : Fortaleza, CE) Anais do / XIV Congresso Nacional do CONPEDI. – Florianópolis : Fundação Boiteux, 2006. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Edson%20Pires%20da%20Fonseca.pdf 527
ADEODATO, João Maurício. Jurisdição Constitucional à Brasileira: situação e limites. Revista
do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, n.2, 2004, p.179. 528
CLÈVE, op. cit., p. 53.
160
A Constituição brasileira é democrática, compromissória e analítica.
Sustenta uma resposta para o passado e uma proposta para o futuro. Esses dados
normativos trazidos pela Constituição devem ser potencializados por uma dogmática
constitucional emancipatória. Nas palavras de Clève:
Se a Constituição condensa normativamente valores caros às classes populares, nada mais importante do que a busca (política sim, mas também jurídica) de sua afirmação, realização, aplicação. O como fazer isso juridicamente é obra da nova dogmática, cujo desafio é fazer desta Constituição uma Constituição normativa integral. Porque hoje corremos o risco de fazer dela uma Constituição normativa na parte que toca aos interesses da classe hegemônica e uma Constituição nominal na parte que
toca aos interesses das classes que buscam a emancipação.529
(grifo do
autor).
Essa busca pela efetividade integral da Constituição deve ser cotidiana,
obrigando o jurista a adotar, como já dito, uma ética da responsabilidade e da
criatividade, que possibilite a reconstrução de todo o arcabouço jurídico, de modo a
dar concretude – e não mera programaticidade
530 – aos direitos das classes espoliadas.
A luta pela efetivação integral da Constituição comporta vários fronts no
âmbito da teoria do direito constitucional. Inúmeras são as possibilidades de trabalho
abertas por essa perspectiva, não havendo espaço na seara alternativista para
dogmatismos de qualquer matiz.
No estado contemporâneo as normas constitucionais definidoras de
direitos fundamentais são aplicadas graças à utilização da nova hermenêutica e dos
métodos concretistas de interpretação. Ocorre ainda a concretização constitucional
de valores como a igualdade e a liberdade. A estrutura constitucional aberta e a
estabilidade institucional oriundas desse modelo estatal permitem a equalização dos
interesses políticos e sociais, absorvendo as freqüentes crises do capitalismo e
mantendo abertos e diversificados os sistemas jurídico e político531.
529
CLÈVE, 1995, p. 41-43. 530
Sobre a necessidade de releitura das normas programáticas no constitucionalismo atual, conferir: CANOTILHO, 2001, op. cit., p. 297-301; Marcelo Neves, com maestria, trata da questão das normas programáticas no âmbito da constitucionalização simbólica. Segundo ele, a vigência da norma programática depende da existência de possibilidades estruturais de sua realização, porém, no caso da constitucionalização simbólica “as disposições programáticas não respondem, então, a tendências presentes nas relações de poder que estruturam a realidade constitucional”. Encobre-se, dessa maneira, o problema da constitucionalização simbólica “através da deformação do conceito jurídico-dogmático de normas constitucionais programáticas”. NEVES, 1994, op. cit., p.102-104. 531
SILVA, Anabelle Macedo. Concretizando a Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.28.
161
Com a Revolução Francesa, o modelo constitucional emergente, de base
liberal, representava uma ruptura com o paradigma anterior, no entanto, teve de se
metamorfosear para dar conta das novas demandas oriundas das reivindicações
socialistas que culminaram no estado social. Para dar conta dessa nova
configuração estatal, fez-se necessário desenvolver um novo constitucionalismo, que
trabalhasse a superação da dicotomia norma constitucional/realidade, tão a gosto
dos positivistas.532 O constitucionalismo da República de Weimar, principalmente
com Heller e Smend, é precursor desta nova perspectiva constitucional e superador
das limitações liberais.
Após o término da segunda guerra mundial, com o advento da Lei
Fundamental de Boon, desenvolveu-se, como visto no capítulo anterior, a segunda
geração da teoria constitucional, conhecida como constitucionalismo tópico-
concretista. Continuando nas linhas traçadas em torno da Constituição de Weimar,
buscou-se a superação da separação entre os sentidos formal e material da
constituição, trabalhando a vinculação da norma com a realidade. Na atualidade,
esse esforço visa à racionalização metodológica, imunizante do enfraquecedor
decisionismo voluntarista. Dessa maneira, os concretistas procuram fugir dos
parâmetros artificiais traçados pela jurisprudência tradicional que:
i) ou concretiza-se por meios voluntaristas, creditando tal intervenção
aos métodos clássicos de interpretação; ou,
j) frustra a efetividade de normas constitucionais, ao empregar topoi
argumentativos retrógrados.533
O processo de concretização de normas compromissórias, como as
presentes na Constituição de 1988, representa um espaço importante de luta
político-jurídica, podendo auxiliar na necessária construção de consenso social em
torno do conteúdo das normas constitucionais. A concretização é um dos veículos
para o embate entre grupos sociais opostos, porém, salienta Silva, a frustração da
concretização gera a constitucionalização simbólica534 e o conseqüente
enfraquecimento do sistema jurídico, que perde espaço para o poder político e
532
SILVA, 2005, p. 32. 533
Ibid., p. 34-35. 534
Sobre o tema da constitucionalização simbólica, conferir: NEVES, 1994, op. cit. passim.
162
econômico, que passam longe da argumentação e da racionalidade necessárias ao
direito.535
Textos de normas abertos como os da Constituição brasileira fomentam
um fenômeno presente na maioria dos países ocidentais: a judicialização do
discurso político, responsável por fazer com que as reivindicações políticas se
expressem com maior facilidade em termos jurídicos do que em termos ideológicos.
Com isso, desafia-se o jurista a enfrentar a complexidade do fenômeno examinando
suas categorias, compreendendo sua especificidade e revisando suas premissas536.
Segundo Anabelle Silva, a dogmática emancipatória empenha-se em
subsidiar com instrumental teórico os lidadores do direito para o desempenho de
suas novas funções decorrente do processo de judicialização da vida política·.
Todavia, desaconselha-se o depósito de todas as fichas da disputa
política na esfera jurídica. A concretização do direito só é favorável aos interesses
das classes espoliadas caso haja, paralelo à luta travada na instância judiciária, forte
mobilização popular e a conseqüente ocupação dos espaços existentes na
sociedade civil e política. É perigoso para a luta social depositar todas as suas
esperanças no direito e, com isso, esvaziar as arenas de lutas políticas na
sociedade; ambos devem ser complementares, nunca excludentes.
Em outras palavras: embora na atualidade o caminho da luta
constitucional seja imprescindível para o direito alternativo, concorda-se aqui com
Adeodato, para quem é um equívoco atribuir caráter messiânico às possibilidades
aventadas pela jurisdição constitucional e pelas atividades legislativas, “pois o
subdesenvolvimento brasileiro é fenômeno social de raízes muito mais profundas”.537
2.2.1. A sociedade aberta dos intérpretes e a jurisdição constitucional
brasileira.
Um ponto importante que a nova dogmática possibilita é a própria
participação social nos debates jurídicos, antes travados em tribunais herméticos, ao
arrepio de qualquer protagonismo social. Construções teóricas como a do alemão
Peter Häberle, trabalhada no segundo capítulo, possibilitam essa abertura concreta
535
SILVA, op. cit, p. 39-42. 536
Ibid., p. 56-59. 537
ADEODATO, João Maurício. Jurisdição Constitucional à Brasileira: situação e limites. Revista
do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, n.2, 2004, p.179.
163
da atividade de interpretação constitucional. A formulação teórica segundo a qual
todos os que vivem sob a égide de determinada constituição são seus intérpretes
autorizados parece muito abstrata e de difícil implantação, especialmente em um
país periférico como o Brasil. Mas é somente uma aparência. A própria jurisdição
constitucional brasileira já adotou, como se verá adiante, ao menos em parte, esta
abertura procedimental. Quando se aborda a ampliação do rol de intérpretes da
constituição, se quer dizer que o juiz constitucional já não pode interpretar de forma
isolada, solipsista, pois a esfera pública pluralista desenvolve força normatizadora. A
corte constitucional, desse modo, deverá interpretar a constituição em consonância
com a sua atualização pública538.
Assevera Häberle que o processo constitucional formal não é a única via
de acesso ao processo de interpretação constitucional, pois o raio da interpretação
normativa, graças aos intérpretes da constituição da sociedade aberta, se amplia
sensivelmente. A sociedade torna-se aberta e livre porque todos estão
potencialmente aptos a oferecer alternativas para a interpretação constitucional.
Kant já asseverava que o cidadão se torna livre quando obedece a leis que ele
próprio criou. Como na teoria concretista a norma jurídica só existe na
concretização, para que possa ser livre é necessário que o cidadão participe
também da interpretação/concretização constitucional539.
Nesse sentido, a interpretação constitucional jurídica deve traduzir a
pluralidade da esfera pública e da realidade, as necessidades e as possibilidades da
comunidade que constam do texto constitucional, que o antecedem ou subjazem a
eles. Há uma tendência da teoria da interpretação de sempre superestimar o
significado do texto, mas a teoria apresentada por Häberle vem modificar isso540.
Cláudio Pereira Souza Neto, voltando-se para a jurisdição constitucional
brasileira, afirma que a ampliação do rol de legitimados à propositura das ações
constitucionais do controle concentrado – ADI, ADC, ADO e ADPF – trazida pelo
artigo 103 da Constituição Federal é exemplo da maior abertura da interpretação
constitucional à sociedade. Com isso, inúmeros segmentos da sociedade organizada
538
HÄBERLE, 1997, p. 41. 539
Ibid., p. 42-43; tratando do tema Adeodato lembra que em países periféricos como o Brasil, inúmeros conflitos sociais são resolvidos à margem do Judiciário, colocando os cidadãos, portanto, como verdadeiros protagonistas da interpretação constitucional. ADEODATO, João Maurício. Jurisdição Constitucional à Brasileira: situação e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica
Jurídica. Porto Alegre: IHJ, n.2, 2004, p.184. 540
HÄBERLE, op. cit., p. 42-43.
164
estão autorizados a levar demandas sobre a inconstitucionalidade de leis e atos
normativos diretamente ao Supremo Tribunal Federal, num autêntico processo
objetivo atinente à defesa da ordem constitucional vigente. Não há dúvidas que
disso resulta maior participação social na tarefa de dizer a Constituição.
Sob a regência da ordem constitucional pretérita havia no Brasil um único
legitimado à propositura de ação de inconstitucionalidade diretamente no STF: o
Procurador-Geral da República. No entanto, como ele podia ser demitido por ato
discricionário do Presidente da República, o manejo da ação de
inconstitucionalidade, na prática, obedecia exclusivamente à vontade deste, sob
pena de gerar a demissão do Procurador-Geral.
No mesmo sentido de abertura procedimental da interpretação
constitucional encontra-se o amicus curiae541, previsto no artigo 7º, §2º, da Lei
9.868/99, que detalha o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e da
ação declaratória de constitucionalidade:
Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. § 1º (VETADO) § 2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
Salienta Souza Neto que a mesma lei também prevê a hipótese de
pronunciamento de perito ou comissão deles, além da possibilidade de realização de
audiência pública sobre o assunto542. Todos esses dispositivos direcionam-se a
ampliar e pluralizar a participação social no processo de decisão constitucional543.
541
Tratando da figura do amicus curiae o hoje Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, asseverou o seguinte: “Da mesma forma, afigura-se digno de realce o dispositivo ( § 2º do art. 6 º) constante da Lei 9882 que permite que o relator, segundo critérios seus, admita a manifestação de interessados no processo. Trata-se de figura assemelhada à contida na Lei 9868 (art. 7º, § 2º). Em ambos os casos, o que se pretendeu foi introduzir em nosso direito positivo a figura do "amicus curiae" no processo de controle de constitucionalidade. O instituto em questão, de longa tradição no direito americano, visa a um objetivo dos mais relevantes: viabilizar a participação no processo de interessados e afetados pelas decisões tomadas no âmbito do controle de constitucionalidade. Como há facilmente de se perceber, trata-se de medida concretizadora do princípio do pluralismo democrático que rege a ordem constitucional brasileira. Para além disso, o dispositivo em questão acaba por ensejar a possibilidade de o Tribunal decidir as causas com pleno conhecimento de todas as suas implicações ou repercussões”. MENDES, Gilmar. Controle de constitucionalidade: uma análise das leis 9868/99 e 9882/99. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 11, fevereiro, 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 28 maio 2006. 542
“Art. 9º Vencidos os prazos do artigo anterior, o relator lançara o relatório, com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento. § 1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas
165
O Ministro Marco Aurélio Mello, Relator no STF da argüição de
descumprimento de preceito fundamental 54, que trata da possibilidade de aborto ou
interrupção da gravidez no caso de anencefalia fetal, após indeferir o pedido da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e de outras entidades que queriam atuar
no processo como amici curiae, convidou-os, em conjunto com diversos segmentos
da sociedade civil, para participarem de uma audiência pública no Supremo, com o
fito de trazer ao Tribunal os diferentes pontos de vista existentes sobre o tema 544.
Contudo, foi somente em 2007, sob a batuta do Ministro Carlos Brito, que
o STF realizou a sua primeira audiência pública em sede de ação direita de
inconstitucionalidade. Com isso, a Suprema Corte abriu à sociedade a possibilidade
de apresentar argumentos acerca da constitucionalidade ou não de pesquisas com
células-tronco embrionárias, em face do direito à vida, assegurado por cláusula
pétrea constitucional. Essa discussão foi provocada pela ADI 3510, na qual a
Procuradoria Geral da República questionou a constitucionalidade do artigo 5º, da
Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), que permite, sob determinadas condições,
pesquisas com embriões humanos. Novamente, a mais alta Corte do Judiciário
brasileiro abriu as suas portas aos diferentes segmentos da sociedade que podem
auxiliá-la em sua tomada de decisão nesse controvertido caso. Dessa maneira, a
sociedade ocupa cada vez mais o seu lugar como protagonista da interpretação
constitucional.
com experiência e autoridade na matéria. § 2º O relator poderá, ainda, solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição. § 3º As informações, perícias e audiências a que se referem os parágrafos anteriores serão realizadas no prazo de trinta dias, contado da solicitação do relator”. 543
SOUZA NETO, 2003, p. 56. 544
Em decisão proferida em 28 de Setembro de 2004 o Ministro Marco Aurélio convocou audiência pública para tratar da ADPF 54, nos seguintes termos: “Então, tenho como oportuno ouvir, em audiência pública, não só as entidades que requereram a admissão no processo como amicus curiae, a saber: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Católicas pelo Direito de Decidir, Associação Nacional Pró-vida e Pró-família e Associação de Desenvolvimento da Família, como também as seguintes entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja Universal, Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero bem como o hoje deputado federal José Aristodemo Pinotti, este último em razão da especialização em pediatria, ginecologia, cirurgia e obstetrícia e na qualidade de ex-Reitor da Unicamp, onde fundou e presidiu o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas – CEMICAMP”. Disponível em: http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=107822&tip=UN. Acesso em 29 maio 2006. Embora esta tenha sido a primeira convocação de uma audiência pública feita pela mais alta Corte do Judiciário brasileiro, a primeira audiência aconteceu somente em 2007, no polêmico caso das pesquisas com células tronco-embrionárias.
166
Essa ampliação da interpretação constitucional poderia ser ainda mais
efetiva caso o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso não
tivesse vetado o inciso II, do Artigo 2º, da Lei nº. 9.882/99, que delineou os
contornos da argüição de descumprimento de preceito fundamental, ADPF. O citado
inciso facultava aos cidadãos acesso direto à jurisdição constitucional concentrada
no caso de violação de preceito fundamental. Com o veto, somente os legitimados
do Artigo 103 da Constituição Federal podem propor a ADPF.
Assenta-se no mesmo viés restritivo a construção jurisprudencial do STF
que dividiu os legitimados à provocação do controle concentrado em temáticos e
universais545. Os legitimados universais podem questionar a constitucionalidade de
qualquer norma jurídica passível de controle, independentemente do tema sobre o
qual versem, enquanto os legitimados temáticos só podem atuar se houver
pertinência entre o tema abordado pelo dispositivo normativo que será atacado e a
atividade do legitimado546.
Essa criação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal está na
contramão da ampliação da participação social na jurisdição constitucional criada
pela Constituição brasileira vigente. Movido pelo pragmatismo que muitas vezes o
marca, o STF não só restringiu a participação social no controle de
constitucionalidade ao arrepio do que foi expressamente manifestado pelo
constituinte de 1988, como também aviltou os pressupostos básicos do processo
objetivo, no qual, por princípio, inexiste qualquer interesse subjetivo a ser defendido.
O acesso amplo à jurisdição constitucional afigura-se como importante
ferramenta para o direito alternativo, haja vista possibilitar que os grandes temas
constitucionais não sejam tratados isoladamente pelo Judiciário, mas sim debatidos
com toda a sociedade, principalmente por meio de seus segmentos organizados.
No controle difuso, em face de sua característica descentralização, que
faz de todo o juiz, em qualquer grau de jurisdição e em qualquer parte do território
brasileiro, um juiz constitucional para o caso concreto, tem-se valioso aliado aos
propósitos alternativistas. Porém, nos últimos anos, houve encolhimento desse
modelo, ao mesmo passo em que foi ampliada a esfera de incidência do controle
545
Sobre a construção jurisprudencial do STF acerca dos legitimados temáticos e universais, conferir: ADI 396-DF; ADI 138-RJ; ADI 893-PR; ADI 1.114-DF; ADI 1.096-RS. 546
As entidades de classe de âmbito nacional, as confederações sindicais, a Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, compõem o rol de legitimados temáticos, segundo a jurisprudência do STF. Todos os demais legitimados do artigo 103 são legitimados universais.
167
concentrado. Esse processo, que tem sido chamado de abstrativização do controle
de constitucionalidade, inicia-se com o próprio advento da Constituição de 1988,
acentuando-se com a implantação da ação declaratória de constitucionalidade. Na
mesma toada estão a súmula vinculante, a repercussão geral e a recente
possibilidade discutida pelo STF, em voto do Ministro Gilmar Mendes, na
Reclamação 4335-5 do Acre, de eficácia erga omnes e efeito vinculante nas
decisões do Supremo em controle difuso, dispensando-se a Resolução Senatorial
prevista no Artigo 52, X, da Constituição.
Apesar dos citados entraves à ampliação da participação social na
interpretação constitucional, não se pode negar, como demonstrado, a existência de
significativos avanços nesta seara sob os auspícios da Constituição Federal vigente.
Cumpre agora aos alternativistas ocuparem esse importante espaço de interlocução,
dando mais um passo à frente em busca da almejada concretização integral da
Constituição.
2.2.2. A metodologia jurídica concretista e a racionalização do direito
Mantendo o foco nas contribuições das teorias concretistas para o direito
alternativo, volta-se a se destacar a importância da perspectiva hermenêutica
adotada pela segunda geração da teoria material, em razão da relevância atribuída à
atividade concretizadora, momento em que o trabalhador do direito fará a mediação
entre a textual previsão normativa e a realidade social. Além disso, contribui
significativamente para a melhoria da controlabilidade das decisões judiciais, por
meio de sofisticadas técnicas metodológicas.
A busca pela racionalidade possível para o direito, como já dito, tem sido
uma preocupação freqüente das teorias jurídicas, sobretudo a partir da segunda
metade do século XX. Não se pode negar, como fizeram os positivistas, que
existem fatores irracionais inevitáveis permeando toda decisão judicial. Eles são
oriundos da própria vagueza da linguagem ordinária e da impossibilidade de
neutralidade axiológica do método e do intérprete. Negar esses fatores é legitimar,
silenciosamente, uma decisão ideologicamente comprometida. Assim, a explicitação
de toda questão decidida aparece como requisito de honestidade metodológica e
168
como pressuposto da busca de uma racionalidade possível para as decisões
judiciais547.
Boa parte das críticas que os alternativistas sofrem com relação a um
suposto desrespeito à lei e a um endeusamento do arbítrio do juiz deriva exatamente
do apego ainda exacerbado de parte dos juristas brasileiros às já mencionadas
mitologias jurídicas da modernidade, como neutralidade axiológica do método e do
intérprete, redução do direito à lei, entre outros.
Na verdade, o que o direito alternativo propõe, ancorado em sólida
concepção dogmática já abordada e agora ainda mais evidenciada, é o
reconhecimento da impossibilidade de neutralidade no direito e, em face disso, a
premente necessidade de o julgador deixar absolutamente claro os seus pontos de
partida, isto é, os pressupostos ideológicos, políticos, econômicos e jurídicos em que
se baseou para lastrear a sua decisão.
Nesse contexto, nada mais preciso do que a compreensão e utilização de
algumas perspectivas metodológicas desenvolvidas pelas teorias concretistas, em
especial, a metódica estruturante. Num cenário pós-positivista, sustenta Silva que a
metodologia “deixa de ser a arte da justificação para se tornar uma reflexão sobre a
produção do direito”, tendo como função, nos dizeres de Müller, explicitar a estrutura
concretizadora da norma no caso particular e a análise estrutural do método para a
concretização. É também por meio da metodologia que o trabalho cotidiano do
jurista é conceituado, servindo como técnica de decisão e formação de normas para
casos concretos, de maneira a garantir a sindicabilidade ampla da decisão e o
respeito à segurança jurídica, utilizando-se honestamente dos métodos,
principalmente ao lidar com textos de normas jurídicas mais abstratos e de textura
aberta548.
A hermenêutica tradicional pauta-se unicamente no exame do dado
lingüístico, enquanto a metódica estruturante busca superar esse reducionismo,
comprometendo-se também com a apreensão da realidade. Esse compromisso com
a inclusão da realidade no fenômeno jurídico é de grande importância para a
concretização/efetivação dos direitos sociais, como se verá no próximo tópico.
547
SILVA, 2005, p. 62. 548
Ibid., p. 63-64.
169
2.2.3. A concretização dos direitos fundamentais sociais: perspectivas e
desafios
Como bem assevera Jorge Miranda, num sistema pluralista as normas
constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber as diversas
concretizações consoantes às alternativas periodicamente escolhidas pelo
eleitorado.549 Desse modo, o trabalho com os textos destina-se a legitimar as
conseqüências dos mesmos na realidade social, comprometendo-se o
constitucionalismo concretista com a igualdade e com a justiça das normas e com a
guarda do valor segurança,550 instrumentalizado através da tecnologia
metodológica.551
A judicialização das relações sociais implica na ampliação da função
jurisdicional, fazendo com que o direito se distancie das premissas positivistas,
voltando-se contra o formalismo encobridor do elemento voluntarístico das decisões.
As teorias que se colocaram contrárias ao positivismo, tais como o realismo jurídico
estadunidense552 e a jurisprudência dos interesses alemã, conduziram ao
redimensionamento da função jurisdicional, reconhecendo-a como ato volitivo e
portador de inevitável margem de discricionariedade.553
Salienta Canotilho que o discurso constitucional “sempre é um discurso
codificador da realização de interesses pragmáticos e da legitimação de pretensões
de domínio político. A „verdade discursiva‟ é a codificação de uma luta por posições
constitucionais.”554 Assevera-se, no entanto, que o poder de integração de um texto
constitucional depende, decisivamente, de sua realização e concretização na vida
cotidiana, o que pressupõe um mínimo de exeqüibilidade jurídica555.
A concretização dos direitos sociais tem desafiado os juristas orgânicos. É
de fundamental importância para a efetividade integral da Constituição Federal de
1988 que os direitos sociais nela esculpidos ganhem concretude. Em que pese o §1º
549
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV: Direitos Fundamentais. 2. ed. rev. Coimbra: Coimbra, 1993. p.105ss-348ss. 550
Ressalva-se que o valor “segurança jurídica” defendido pela metódica, como já dito, é de uma segurança oriunda de uma racionalidade possível do direito, e não aquela mitológica segurança jurídica do positivismo normativista. 551
SILVA, 2005, p.65. 552
Sobre o realismo jurídico estadunidense, conferir: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao movimento critical legal studies. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. 553
SILVA, op.cit., p. 64-65. 554
CANOTILHO,1994.p. 460. 555
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 29.
170
do artigo 5º da Constituição Federal ser categórico ao afirmar que as normas sobre
direitos fundamentais têm aplicação imediata, não é isso o que, geralmente, ocorre
com os direitos fundamentais sociais556.
Bonavides chama a atenção para os ataques que o Estado Social,
plasmado na Constituição Federal de 1988, vem sofrendo. Para ele,
Poderosas forças coligadas numa conspiração política contra o regime constitucional de 1988 intentam apoderar-se do aparelho estatal para introduzir retrocessos na lei maior e revogar importantes avanços sociais, fazendo assim inevitável um antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade. Não resta dúvida que em determinados círculos das elites vinculadas a lideranças reacionárias está sendo programada a destruição do Estado social brasileiro. Se isso acontecer será a perda de mais de cinqüenta anos de esforços constitucionais para mitigar o quadro de injustiça provocado por uma desigualdade social que assombra o mundo e humilha a consciência desta Nação. Mas não acontecerá, se o Estado social for a própria Sociedade brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a valores igualitários e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil
557.
Leciona Sampaio que os direitos sociais são frutos da “superação do
individualismo possessivo e do darwinismo social, decorrente das transformações
econômicas e sociais ocorridas no final do Século XIX e início do Século XX”. Deve-
se isso, continua, à crise das relações sociais decorrentes dos modos liberais de
produção, acelerada pela Revolução Industrial e pela conseqüente organização do
operariado, guiado pelo ideário marxiano558.
A inefetividade dos direitos sociais não é fenômeno recente,
acompanhando-os desde a sua positivação. Os sofisticados artigos da Constituição
de Weimar559 que tratavam dos direitos sociais foram “ridicularizados” por parte dos
integrantes da extrema-direita e extrema-esquerda políticas, como “promessas
vazias do Estado burguês” e “contos de fada”. Como conseqüência, o legislador
fundamental alemão de 1949 renunciou, deliberadamente, à formulação de normas
que conferem direitos subjetivos a prestações estatais positivas. Desse modo, os
556
Sobre os direitos sociais como direitos fundamentais, conferir: KRELL, op. cit., p.19-23. 557
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.336. 558
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 261. 559
Vale aqui lembrar, com Sampaio, que as bases para a construção de um Estado de Bem-Estar Social já estavam dadas antes da primeira guerra mundial, contudo, faltava ainda aos direitos sociais a estatura constitucional, que só lhes seria assegurada pelas Constituições do México de 1917 e de Weimar de 1919. SAMPAIO, op. cit., p. 218.
171
direitos sociais, cuja eficácia sempre depende de complexos fatores econômicos e
políticos, não integraram o texto da Lei Fundamental.560
Em sua maioria, os constitucionalistas alemães criticam a inclusão dos
direitos fundamentais sociais na constituição, em virtude da sua não realização
imediata por parte do estado, provocando a impressão no cidadão de que todo o
texto constitucional nada mais seria do que uma “construção de frases” ou um
“catecismo popular, cheio de utopias”, que resultaria na perda de normatividade da
constituição e da sua força de estabelecer valores.561
Sanchís relembra a posição de Forsthoff, para quem a intenção de
vivificar os direitos sociais tinha de fracassar, pois formulações desse tipo não são
aptas para fundamentar direitos e deveres concretos. De maneira ainda mais
incisiva, aborda Braud, que afirma não gozarem os direitos sociais de aptidão para a
efetividade, estando situados fora do direito562.
Esses posicionamentos, todavia, ressalta o próprio Sanchís, parecem, na
atualidade, majoritariamente abandonados. Não se pode mais aceitar a tese do
período de Weimar, segundo a qual a própria indeterminação dos direitos sociais
impossibilitava a sua aplicação imediata. O fato das normas materiais da
constituição serem geralmente esquemáticas, abstratas, indeterminadas e elásticas,
assevera, não afeta o seu caráter vinculante563.
Retornando ao tratamento dispensado pela Lei Fundamental alemã aos
direitos sociais, Dieter Grimm esclarece que embora não haja direitos fundamentais
sociais expressos na Lei Fundamental, a doutrina publicista alemã adotou a
perspectiva segundo a qual a realização de inúmeros direitos de liberdade tem
pressupostos materiais564. Diante disso, salienta, “o Tribunal Constitucional Federal
impôs obrigações sociais ao Estado, derivadas dos clássicos direitos de
liberdade”565. Reforça-se essa posição com Sanchís, ao asseverar que para a
560
KRELL, op. cit., p. 46. Krell menciona que uma exceção é o direito da mãe à proteção e assistência por parte da comunidade, que consta do artigo 6º, IV, da Lei Fundamental. 561
Ibid., p. 46. 562
SANCHÍS, Luis Pietro. Ley, principios, derechos. Madrid: Dykinson, 1998, p.98. 563
Ibid., p.98. 564
Para Habermas, os direitos fundamentais sociais servem para garantir os “verdadeiros pressupostos para desfrutar em condições de igualdade de chances aqueles direitos individuais e políticos fundamentais”. HABERMAS, Jürgen. Sobre a Legitimação pelos Direitos Humanos. [Trad. Claudio Molz]. in MERLE, Jean-Christophe e MOREIRA, Luiz [Orgs.]. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p.78-79. 565
GRIMM, Dieter. Constituição e Política. [Trad. Geraldo de Carvalho]. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.251.
172
jurisprudência do Tribunal Constitucional os direitos prestacionais, como normas
objetivas, não são meramente retóricos566.
Na mesma direção, Alexy lembra uma decisão do Tribunal Constitucional
de 1975, na qual se disse que “'certamente, a assistência social aos necessitados de
ajuda é um dos deveres óbvios do Estado social'”. Afirma ainda o Tribunal que a
comunidade deve assegurar aos necessitados as condições mínimas para uma
existência digna. Diante disso, enfatiza, “não pode haver nenhuma dúvida de que o
Tribunal Constitucional Federal parte de um direito fundamental a um mínimo
vital”567.
Alexy reforça esse entendimento ao sustentar que há diversos pontos de
apoio na Lei Fundamental para a reivindicação de direitos prestacionais, como, por
exemplo, a própria questão da igualdade, que pode ser interpretada como igualdade
fática, material. Contudo, ressalva, do ponto de vista do seu texto, não há como
negar à Lei Fundamental o caráter primário de constituição burguesa, orientada à
tutela dos direitos de defesa.568
O paradoxal disso tudo, acentua Grimm, é que embora no plano do direito
constitucional a República Federal alemã seja menos marcada como Estado social,
na prática, ela é um Estado social em grau mais intenso do que a República de
Weimar, que tinha um direito constitucional socialmente mais forte569.
Trazendo o debate para o Brasil, Andreas Krell aponta juristas que,
apoiando-se em autores norte-americanos e alemães, deixam entender que os
direitos sociais contidos na Constituição brasileira não seriam propriamente direitos
fundamentais. Essa afirmação, segundo ele, vai ao encontro da ultrapassada
abordagem feita por Carl Schmitt, que negava a qualidade de verdadeiros direitos
fundamentais aos direitos sociais consagrados no Texto Constitucional de Weimar,
por serem completamente sujeitos à vontade do legislador ordinário.570
Sampaio, ao tratar do tema, aborda a concepção comum a alguns
constitucionalistas brasileiros, que defendem que os direitos sociais podem ser
retirados do texto constitucional, por possuírem fundamentalidade de segundo nível,
566
SANCHÍS, 1998, p.99. Conferir ainda:MARTINS, Leonardo (Org.). Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução Beatriz Henning et al. Montevidéo, Uruguai: Fundación Konrad-Adenauer, Oficina Uruguay, 2005, p.827-829. 567
ALEXY, 1993, p. 422. 568
Ibid., p. 421. 569
GRIMM, Dieter. Constituição e Política. [Trad. Geraldo de Carvalho]. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.251. 570
KRELL, 2002, p. 48-49.
173
isto é, meramente formal-procedimental. Em outras palavras, os direitos sociais
contidos na Constituição de 1988 não seriam cláusulas pétreas. Contudo, rebate o
citado autor, “a tese não resiste a indagações hermenêuticas mais superficiais”571.
Diante de todas as regras de interpretação os direitos sociais contidos na
Constituição do Brasil são também fundamentais, com todas as conseqüências daí
advindas. A tentativa de relativizá-los e de retirar-lhes a qualidade da
“fundamentalidade” é perigosa, além de não trazer nenhuma vantagem.572
Efetivar os direitos sociais é exigência básica da própria essência do
Estado Democrático de Direito, pois são eles condições imprescindíveis para a
fruição dos demais direitos, inclusive os de liberdade. Não há que se falar em
liberdade humana quando as condições mínimas de subsistência não estão
garantidas. Como lembra Sarmento, “diante da desigualdade de fato existente no
meio social, se o Estado não agir para proteger o mais fraco do mais forte, os ideais
éticos de liberdade, igualdade e solidariedade em que se lastreia o
constitucionalismo seguramente vão se frustrar”.573
Neste sentido, José Afonso da Silva afirma que
um regime democrático de justiça social não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta, a miséria. Ora, o reconhecimento dos direitos sociais, como instrumento de tutela dos menos favorecidos, não tem tido a efetividade necessária para reequilibrar a posição de inferioridade que lhes impede o efetivo exercício das liberdades garantidas.
574
Grande é a celeuma existente no direito acerca dos limites de efetivação
dos direitos sociais. A reserva do possível, segundo a qual a efetivação dos direitos
sociais, econômicos e culturais está condicionada à disponibilidade estatal de
recursos econômicos, encontra-se sempre presente neste tipo de argumentação. De
acordo com esse ponto de vista a limitação dos recursos públicos apresenta-se
como verdadeira barreira fática à efetivação dos direitos sociais prestacionais.575
Canotilho esclarece que “os direitos à educação, saúde e assistência não deixam de
571
SAMPAIO, 2002, p.265. 572
KRELL, 2002, p. 48-49. 573
SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais e Globalização: limites ético-jurídicos ao realinhamento constitucional. in QUARESMA, Regina e OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula (Coords.) Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.325-326. 574
SILVA, José Afonso. O Estado Democrático de Direito. in QUARESMA, Regina e OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula (Coords.) Direito Constitucional Brasileiro: perspectivas e controvérsias contemporâneas. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.7-25. 575
Ibid., p.51.
174
ser direitos subjectivos pelo facto de não serem criadas as condições materiais e
institucionais necessárias à fruição desses direitos”576.
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão o direito às
prestações positivas está subordinado à reserva do possível, encontrando como
limite aquilo que o indivíduo, razoavelmente, pode esperar da sociedade577. Esta
concepção tem o condão de impossibilitar exigências acima de um determinado
limite básico social.578 Segundo Grimm, “em virtude da abundância das tarefas e da
escassez dos meios, não há garantias de existência acima de um mínimo social”.579
A temática da reserva do possível também já foi enfrentada pelo Supremo
Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 45, ocasião em que o Ministro Celso de
Mello afirmou que os direitos sociais estão subordinados à cláusula da reserva do
possível. O Ministro Eros Grau, em análise doutrinária sobre o tema, ressalva que
essa 'reserva' “não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento”, ou seja, não se
pode confundi-la com disponibilidade financeira do Estado. Deve-se compreender a
reserva do possível a partir dos próprios limites materiais – econômicos – que
condicionam a ação estatal. Grau critica duas posturas extremadas: de um lado, o
que chama, ancorado em Oliveira Vianna, de idealistas utópicos, que, ignorando a
realidade, “imaginam possa a Constituição em um passe de mágica instalar as
condições materiais indispensáveis à concretização de todos os direitos [...]”; de
outro lado, estão os que subordinam a força normativa da Constituição à força
normativa do orçamento público580.
Para Anabelle Silva, o argumento da escassez de recursos econômicos é
frágil, pois a Constituição defere à União e aos Estados-membros competências
tributárias e financeiras que possibilitariam a arrecadação de recursos destinados à
implantação das políticas públicas pertinentes aos direitos fundamentais
prestacionais. Porém, eles permanecem inertes diante do não pagamento dos seus
créditos581. Outro obstáculo aparece em situações em que há dependência somente
576
CANOTILHO, 2001, p.368. 577
ALEXY, 1993, p. 425; [BverfGE33, 303 (333). numerus clausus]; MARTINS, 2005, op. cit., 656-667. 578
KRELL, 2002, p. 52. 579
GRIMM, op. cit., p.252. 580
GRAU, Eros Roberto. Realismo e Utopia Constitucional. in ROCHA, Fernando Luiz Ximenes e MORAES, Filomeno (Coords.). Direito Constitucional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.124-125. 581
Aliás, o próprio direito penal brasileiro é bastante condescendente com os sonegadores de impostos, excluindo-se a existência de crime desde que o pagamento dos tributos devidos seja efetuado antes do oferecimento da denúncia criminal.
175
do remanejamento de recursos já existentes para o atendimento de determinado
direito prestacional, não cabendo nesse caso a reserva do possível. Mesmo em
hipóteses mais complexas, em que se postulem soluções definitivas e profundas, a
cláusula de escassez ainda permanece relativa, pois há a possibilidade de fixação
de obrigação orçamentária para o exercício subseqüente.582
É forte o debate no Brasil sobre o papel do Judiciário na implementação
de políticas públicas concernentes à concretização dos direitos sociais positivados
na Magna Carta. Alguns autores criticam o ativismo judicial, defendendo que deveria
ficar ao alvitre do Executivo escolher, por exemplo, se o Estado brasileiro tratará
com os recursos disponíveis para a saúde milhares de doentes vítimas de moléstias
comuns à pobreza ou um grupo pequeno de doentes terminais, vitimados por
doenças raras ou de cura improvável. Concorda-se aqui com Krell quando este
sustenta que a reposta coerente a essa questão, tendo por base a principiologia
contida na Constituição Federal de 1988, seria: tratar todos! Não sendo suficientes
os recursos, deve-se retirá-los de outras áreas – transporte, fomento econômico,
serviço de dívida – onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos
mais essenciais da pessoa humana: sua vida, integridade física e saúde. O uso de
relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas, tais
como, “por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?”, etc.583
Para Krell, esta posição não quer, como sustentam alguns, “conferir certo
caráter messiânico ao texto constitucional”, mas simplesmente fazer aquilo que já
fora apregoado por Dworkin: levar o direito a sério. Andreas Krell corrobora as
palavras de Lenio Streck, para quem o debate europeu sobre a superação e
limitação do estado social, com a contenção dos respectivos direitos subjetivos, não
pode ser transferida para o Brasil, país em que o estado providência nunca foi
implantado e as promessas da modernidade não foram ainda cumpridas.584
Argumentou-se na Alemanha para a não inclusão dos direitos sociais na
Lei Fundamental de Boon que eles representam uma categoria diferente de valores
fundamentais ou fins de estado; assim, não faria sentido inserir direitos fundamentais
“ao trabalho” ou “à moradia” na Lei alemã enquanto estes não fossem exigíveis
diretamente pelos indivíduos em juízo. Para Krell, a questão aqui parece ser muito
582
SILVA, 2005, p. 183-186. 583
KRELL, 2002, p. 53. 584
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. apud KRELL, op. cit., p. 53-54.
176
mais de vontade política e organização administrativa. Poucos países foram capazes
de direcionar as verbas necessárias para atender a todos os necessitados. Nessas
áreas, a prestação concreta de serviços públicos precários e insuficientes por parte
de municípios, dos estados e da união deve ser compelida e corrigida pelos
tribunais. 585
Dentro de todo esse contexto, bastante oportuna é a advertência feita por
Krell, segundo a qual fica nítido que uma transferência mal refletida do conceito da
“reserva do possível” e do entendimento dos direitos sociais como mandados de
otimização586 – e não legítimos direitos fundamentais – constituiria uma importação
acrítica de soluções alienígenas, nem sempre aptas a proporcionarem respostas
coerentes às verdadeiras necessidades materiais do povo brasileiro. Infelizmente, há
décadas o país sofre com essa visão colonizada, que adere a modismos, pautada
na premissa de que tudo o que é bom para o primeiro mundo também é bom para o
Brasil. Deixa-se, com isso, de se desenvolver soluções que dêem conta,
efetivamente, dos problemas do país. 587
Para a teoria do estado social, enfatiza Krell, o poder público tem o dever
de transpor as liberdades presentes na constituição para a realidade constitucional.
Na vida moderna, regida pela tecnologia e indústria, a prestação dos serviços
públicos se torna cada vez mais importante para o exercício dos direitos sociais –
escolas, hospitais, eventos culturais, comunicações, fornecimento de energia, água,
transportes. É obrigação de um estado social controlar os riscos resultantes da
pobreza, que não podem ser atribuídos aos próprios indivíduos, e restituir um status
mínimo de satisfação das necessidades pessoais.588
A dignidade humana e os direitos humanos de liberdade e igualdade
exigem uma ação estatal que assegure esses valores além das garantias formais da
lei, por meio de oportunidades sociais reais. Questiona-se então se não deriva disso
uma obrigação do estado de proporcionar reformas estruturais na sociedade589.
585
KRELL, 2002, p. 55-56. 586
Para Alexy, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das condições fáticas e normativas existentes. Em suma, os princípios são normas que se caracterizam pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, dependendo a medida do seu cumprimento tanto das condições fáticas quanto das jurídicas. ALEXY, 1993, op. cit., p. 86; Para conferir a crítica de Habermas a conceituação dos princípios como mandato de otimização, consultar: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I [Trad. Flavio Beno Siebenichler] Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.315 e ss. 587
Ibid., p. 56. 588
Ibid., p. 59-60. 589
KRELL, 2002, p. 61.
177
Segundo Krell, a teoria do “mínimo existencial”, que atribui direito subjetivo aos
cidadãos contra o poder público em casos de diminuição de prestação dos serviços
sociais básicos que sejam essenciais à garantia de uma existência digna, até hoje foi
pouco discutida na doutrina e na jurisprudência brasileiras. O referido “padrão
mínimo social” para sobrevivência engloba, dentre outros elementos, o atendimento
básico de saúde, a compra de vestimentas, educação fundamental e moradia; o
conteúdo concreto desse mínimo590, no entanto, variará de país para país.591
A ordenação do cumprimento deste “padrão mínimo”592 pelo estado
poderia ser feita, sem maiores traumas, pelo judiciário; os problemas que aparecem
são ideológicos e não jurídicos. Os argumentos freqüentes de falta de verbas e de
ausência de competência do judiciário não são suficientes para justificar que o
estado não preste os serviços sociais básicos. Sarlet, citado por Krell, afirma que o
não cumprimento estatal dos serviços sociais básicos pode ser equiparado à pena
de morte.593
Anabelle Silva leciona que tradicionalmente a execução dos direitos
fundamentais prestacionais necessita da intervenção ativa do estado. A elevação
desses direitos à categoria de textos de norma não esgota sua função normativa,
exigindo atos executórios que transcendem à intervenção legislativa. Exige-se, com
isso, um redimensionamento da função legislativa e judicial; a função judicial clama
uma nova postura dos juízes, que supere a visão tradicional, negadora de
normatividade aos direitos sociais por considerá-los meramente programáticos, e
aceite a realidade da transformação da concepção do direito e das funções estatais,
que coloca a concretização da norma jurídica nas mãos do judiciário.594
A tripartição de funções do estado, aos moldes de Montesquieu, sempre
foi um tipo ideal, nunca tendo existido uma divisão exata e estanque entre elas595.
Krell afirma que
590
Sobre a existência de um mínimo ético, conferir: ARRUDA JR; GONÇALVES, op. cit., passim. 591
Ibid., p.63. Para Krell, alguns autores entendem que a garantia da dignidade humana inclui também o “direito ao trabalho”. 592
A discussão sobre um mínimo ético é feita com bastante propriedade em: ARRUDA JR, 2002. 593
KRELL, op. cit., p. 63-64. Cf. BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 155s. 594
SILVA, 2005, op. cit., p. 67-68. Sobre a questão dos direitos sociais como normas programáticas, conferir: KRELL, op. cit., p. 25-29. 595
Para uma análise crítica da visão que coloca a tripartição de poderes como um verdadeiro dogma, conferir, dentre outros: KRELL, 2002, p. 85 e ss; Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.p.1021-1029.
178
o Estado Social moderno requer uma reformulação funcional dos poderes no sentido de uma distribuição que garanta um sistema eficaz de freios e contrapesos, para que “a separação dos poderes não se interponha como véu ideológico que dissimule e inverta a natureza eminentemente política do direito”
596.
Com o encolhimento da função legislativa houve a repartição de suas
atribuições com os demais poderes; a utilização de conceitos indeterminados e
normas-princípios são exemplos da partilha de poder com o judiciário, que aparece
como aperfeiçoador da atividade reguladora, a partir da análise de casos concretos.
Amplifica-se, dessa maneira, a intervenção do judiciário nas relações sociais
decorrentes de leis e direitos fundamentais cuja catalogação funcionou como
propulsor da expansão da justiça constitucional, permanecendo a concretização dos
direitos fundamentais prestacionais como desafio constante. Desse modo, cumpre
ao judiciário optar entre conferir aos direitos fundamentais sociais eficácia
meramente programática ou adotar um padrão de intervenção que prestigie a força
normativa da constituição, concretizando os direitos prestacionais vinculados ao
mínimo existencial.597
Nesse processo de reconfiguração do judiciário não há usurpação da
função legislativa, pois a concretização da norma-decisão pelo juiz se reporta a um
texto normativo vigente, ao contrário da função legislativa. O processo judicial
caracteriza-se pela inércia do julgador, exaltando-se o valor segurança, enquanto o
processo legislativo demanda ação do legislador, submetendo-se ao valor
participação. A nota distintiva da jurisdição das demais funções estatais são os
limites processuais, caracterizadores das suas “virtudes passivas”.598
Para Anabelle Silva, o judiciário aparece na realidade do Welfare State
como mediador das relações sociais. Com isso, o processo judicial assume novas
funções na ordem política e social, o que resulta na intensificação da juridicização
das relações sociais. As temáticas da constitucionalização dos princípios
fundamentais e do dirigismo constitucional se ajustam à judicialização dos conflitos
sociais, fazendo com que o direito assuma um padrão prospectivo de atuação, que o
compromete com o futuro e com intervenções promocionais e dirigentes599.
596
KRELL, 2002, p. 90. 597
SILVA, 2005, p. 69-72. 598
Ibid., p. 69-72. 599
Ibid., p. 72-73.
179
Desse modo, a atuação jurisdicional do estado nos processos judiciais
deverá se conformar aos novos paradigmas do estado social, repleto ainda de
potencialidades aptas a impulsionar a superação de desigualdades na realidade
brasileira.600
Segundo Silva, Engisch identifica uma tendência à concreção no direito
contemporâneo, o que exige da teoria geral do direito iniciativas variadas e
mecanismos jurídicos voltados ao concreto e à distinção concreto/abstrato. A
concretização traz em seu bojo uma atividade de determinação e especificação. A
idéia de determinabilidade no direito está em sintonia com o valor segurança jurídica,
sendo garantidora da máxima objetividade das leis; contudo, pode também importar
em mácula à eqüidade. A indeterminação, por um lado, permitiria a conversão do
juiz em criador do direito, contrariando o princípio da separação dos poderes, mas
proporcionando ganhos em termos de justiça individualizada e de igualdade social,
já que as cláusulas gerais exigem valoração de circunstâncias, sendo abstratas,
indeterminadas e amplas, permitindo que decisões sejam válidas em direito por mais
distintas e contraditórias que sejam. Os textos de normas são gerais e abstratos, e
isso implica em variabilidade e indeterminação, coisas que o positivismo, como já
mencionado, reluta em aceitar. As normas constitucionais, por suas citadas
características, são mais abstratas, permitindo uma variedade maior de
possibilidades de sentido, que permanecem até o momento da concretização.601
Engisch, continua Anabelle Silva, defende que lutar por um ordenamento
concreto significa lutar pelas formas existenciais de um direito perceptível, pois
concretização implica em percepção e determinação. Esquadrinhar o processo de
concretização de uma norma jurídica é examinar a relação direito e vida, no
momento exato em que surge um direito vivo. A concretização, nesse contexto,
afigura-se como orientação do direito ao mundo da vida.602
Concretizar as disposições normativas de cunho emancipatórias contidas
na Constituição de 1988: eis o desafio imposto aos juristas orgânicos! Para que
essa almejada concretização dos direitos sociais realmente se efetive,
imprescindível que os alternativistas se armem das ferramentas dogmáticas.
600
Ibid., p. 72-73. 601
Ibid., p. 79-80. 602
Ibid., p. 81.
180
As teorias escolhidas por este trabalho para nortear o atuar alternativista
já foram tratadas no segundo capítulo, com alguns pontos retomados neste. Não se
pode deixar de abordar com mais vagar, porém, a importância da teoria do dirigismo
constitucional para a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição
vigente, em face da própria influência que exerceu nos trabalhos do Constituinte de
1988.
2.2.3.1. Constitucionalismo dirigente, ativismo judicial e a concretização
dos direitos sociais
Como já mencionado, a teoria da constituição dirigente, que tem no
constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho seu principal expoente,
influenciou, e ainda influencia, sobremaneira, não somente o processo constituinte
que culminou na Constituição Federal vigente, como também boa parte da própria
dogmática constitucional pátria. Este modelo de constitucionalismo espera uma
atuação criativa do judiciário, que permita a inclusão dos excluídos, de modo a
eliminar a iníqua desigualdade que assola a sociedade brasileira.603
Desde que a expressão constituição dirigente foi utilizada por Peter
Lerche, em 1961, traz-nos a idéia de vinculação do legislador. Enquanto Lerche
ocupou-se em distinguir quais normas vinculariam ou não o legislador, Canotilho
atribuía o caráter dirigente a todo o texto constitucional.604
Na perspectiva dirigente adotada por Canotilho vislumbra-se a
possibilidade de mudança social por meio do direito. Afirma o Mestre lusitano que
“as constituições dirigentes, na formulação das suas normas de acção, tanto podem
603
KRELL, 2002, p. 67. Cf. CITTADINO, 2000, passim. Esta obra apresenta um interessante histórico do processo constituinte que culminou na atual Constituição brasileira, além de desenvolver importantes categorias da atual filosofia política, como o comunitarismo. 604
Vale destacar que, nos últimos anos, Canotilho revisou o seu posicionamento, principalmente após a publicação do texto “Romper ou Rever com a Constituição Dirigente?”. Essa nova postura do mestre português, pautada na idéia de um “constitucionalismo moralmente reflexivo”, causou intensos debates no ambiente constitucional brasileiro, tendo motivado a publicação de uma obra organizada por Jacinto Coutinho, em que alguns dos principais constitucionalistas brasileiros dialogam com Canotilho sobre o assunto. De qualquer sorte, o próprio autor tem admitido que a sua mudança de paradigma tem por pressuposto a realidade dos países europeus que já passaram por um efetivo estado social, não sendo as suas premissas aplicáveis a um país como o Brasil, que ainda não cumpriu as promessas da modernidade. Conferir, sobre o tema : CANOTILHO, 2001, p. V a XXX; BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; BERCOVICI, Gilberto; MORAES FILHO, José Filomeno de e LIMA, Martônio Mont‟alverne B. Teoria da Constituição: estudos sobre o Lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a constituição dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
181
corresponder a um programa do 'liberalismo socialmente activista' (uma 'teoria de
alcance médio') como a um programa centrado numa praxis emancipatória ou
reconstrutiva”605.
Sustenta Canotilho que “os princípios dirigentes constituem 'medidas de
decisões críticas', de acordo com as quais o mundo político-social se deve projectar
e conformar”. Não se ignora, contudo, que o processo de mediação legislativa está
inserido nas relações sociais concretas e nos domínios particulares de atuação e
também não se “furta às exigências funcionais e racionais do processo económico,
social e político”606.
Afirma o referido autor que a política constitucional – o processo público
de decisão, investigação e concretização dos princípios normativo-constitucionais –
não se reduz a uma “tecnologia incremental” indiferente aos 'princípios de justiça'. “O
processo da estratégia da política de justiça concebe-se, em parte, como um
processo para a realização dos princípios normativo constitucional”. Lembra ainda
que o discurso constitucional é sempre “'codificador' da realização de interesses
pragmáticos e da legitimação de pretensões de domínio político”. A 'verdade
discursiva', arremata, “é a codificação de uma luta por posições constitucionais”.607
Krell afirma que num cenário de constituição dirigente os direitos sociais
devem ser encarados como verdadeiras imposições constitucionais, legitimadoras,
como sustenta Canotilho, de transformações econômicas e sociais, na medida em
que estas forem necessárias para a efetivação desses direitos. A
inconstitucionalidade por omissão pode alcançar o estado quando este, por inércia,
não criar as condições materiais para a efetivação dos direitos sociais.608
Como já enfatizado, a constituição não pode ser vista apenas como
expressão mecânica da esfera do ser, conforme apontava Lassale, mas como
documento do dever ser, que norteia os rumos que a sociedade e o estado devem
tomar. Ela não pode ser o mero reflexo das condições fáticas de sua vigência,
devendo servir de horizonte utópico que guiará a sociedade em sua caminhada.
Adotar, como fez o Brasil, um modelo constitucional dirigente não significa
retirar a liberdade do legislador ou a discricionariedade do governo, prescrevendo
uma única linha de atuação para a política, mas sim, estabelecer um fundamento
605
CANOTILHO, 2001, p. 458. 606
Ibid., p. 459. 607
Ibid., p. 459-460. 608
KRELL, 2002, p. 67.
182
constitucional para a política, tornando-se sua premissa material.609 Ressalta
Canotilho que a sociedade é um palco de controvérsias políticas e de lutas de
interesses, porém essa realidade é dialética.610
Krell defende que as condições culturais, políticas e sócio-econômicas
vigentes no Brasil no início deste novo século, não apontam para uma exaltação das
teorias liberais e internacionais, mas para um desenvolvimento firme e contínuo em
direção ao estado social, preconizado pela Constituição de 1988, com todas as suas
conseqüências. Nesse processo, o poder público brasileiro tem necessariamente um
papel diverso ao da Europa unificada, onde o nível de organização e atuação da
sociedade civil é incomparavelmente mais alto611.
O processo de efetivação de uma constituição dirigente exige, ao lado da
vontade de constituição, um adequado ferramental dogmático, de maneira a que os
seus inúmeros dispositivos transcendam o texto e ganhem concretude. O
reconhecimento do caráter normativo dos princípios, por exemplo, é uma importante
arma na luta para a concretização de uma ordem constitucional principiológica, como
a brasileira, pois tiram os importantes direitos albergados nos princípios do status de
meros programas, vistos tão-somente como obrigação moral ou política, colocando-
os na posição de verdadeiros direitos. Com o reconhecimento de seu caráter
normativo, os princípios passam a ser considerados espécies do gênero norma
jurídica, pois são formulados com os mesmos modais deônticos – proibição,
obrigação e permissão – que as caracterizam.
Friedrich Müller entende a atividade jurídica, segundo Bercovici, como
sendo uma atividade política guiada por normas jurídicas. O direito, desse modo, é
uma forma particular da política. A constituição não pode, porém, abarcar para si a
totalidade do político, como fizeram alguns segmentos da teoria da constituição
dirigente, sob pena de perda de normatividade e, o que é mais grave, de ocasionar
um esvaziamento do espaço político e um agigantamento da esfera jurídica.612
Ensina Bercovici que a constituição não é exclusivamente normativa,
como queriam os normativistas, mas também política. Desse modo, as questões
609
KRELL, 2002, p. 69-70. BERCOVICI, 2003, passim. 610
CANOTILHO, op. cit., p.461. 611
KRELL, op. cit., p. 69-70. BERCOVICI, 2003, passim. 612
CANOTILHO, 2001, passim; COUTINHO, 2003, passim.
183
políticas devem ser levadas em consideração para a própria manutenção dos
fundamentos constitucionais.613
Como bem assevera Barroso, o direito tem seus próprios limites e por isso
não deve normatizar o inalcançável; ele se forma com elementos colhidos na
realidade que precisam de ressonância na esfera social. O equilíbrio entre esses
dois extremos, trabalhado no capítulo anterior, é que conduz a um ordenamento
jurídico eficaz.614 A obediência a um texto constitucional exige sempre que o mesmo
tenha respaldo na realidade fático-social existente.615
Andreas Krell adverte que tanto na Alemanha quanto no Brasil se
reconhece que promessas constitucionais exageradas mediante direitos
fundamentais sociais, sem que haja real possibilidade de sua realização, levam a
população a uma “frustração constitucional”, que coloca em descrédito a própria
constituição como sistema de normas legais vigentes, podendo abalar a confiança
dos cidadãos na ordem jurídica como um todo. Por isso Hesse afirma que a força
normativa de uma constituição depende da conexão existente entre o seu texto e as
possibilidades históricas de realização da prescrição. No entanto, certa frustração e
desconfiança causadas por essas proclamações solenes, carentes de eficácia
imediata, não autoriza os críticos da presença dos direitos sociais na constituição a
taxarem isso de uma utopia ingênua616.
Relembra Anabelle Silva que a constituição subordina as demais normas,
pois é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, servindo de
garantia para a execução de normas infraconstitucionais. Como não há dúvidas
sobre a superioridade hierárquica da constituição, importante cuidar, como
enfatizava Hesse, da construção de sua força normativa, que passa pelo
reconhecimento e condicionamento recíproco entre a constituição jurídica e a
realidade político-social. Na teoria material da constituição há a ruptura dessa
dicotomia norma e realidade, considerando-se ambas integradas. A normatividade
constitucional, portanto, é fruto da interação dialética entre a pretensão de eficácia
613
Reforça Bercovici “que a Constituição não pode ser entendida como entidade normativa independente e autônoma, sem história e temporalidade próprias. Não há uma Teoria da Constituição, mas várias Teorias da Constituição, adequadas à sua realidade concreta”. Sem entender o Estado, insiste o autor, não há como entender a Constituição. BERCOVICI, 2003, op. cit., p. 131-132. 614
Cf. BARROSO, 1996, p. 47. 615
KRELL, 2002, p. 26. 616
Ibid., p.26.
184
das normas constitucionais – elemento normativo – e as condições históricas de sua
realização – elemento fático617.
O direito constitucional não pode ignorar a relação entre normatividade e
faticidade, devendo sempre explicitar as condições sob as quais as normas
constitucionais podem adquirir maior eficácia possível, maximizando a atuação de
uma hermenêutica constitucional de viés emancipatório, tão urgente em realidades
sociais periféricas como a brasileira para se evitar aquilo que Häberle chamou de
deficit de concretização618.
Nas constituições compromissórias, ricas em direitos fundamentais, a
concretização jurisdicional é intensa, pois a integração normativa serve também para
sanar omissões legislativas lesivas. Essas omissões podem conduzir as normas
constitucionais à completa inefetividade, salvo se o cidadão puder contar com uma
decisão jurisdicional que ressalte o caráter normativo da constituição. Esse processo
pode ser, dentro do contexto de sociedade aberta de intérpretes da constituição,
mais um importante espaço de participação da sociedade na realização das políticas
públicas albergadas nos direitos fundamentais, haja vista que por meio dela o
cidadão pode se defender da não-concretização legislativa desses direitos.
No modelo constitucional brasileiro, o mandado de injunção foi a
ferramenta de cidadania criada para suplantar as omissões legislativas. Depois de
ter sido desvirtuado durante anos pela compreensão restritiva que o Supremo
Tribunal Federal fazia dele, igualando os seus efeitos aos da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão619, a nova orientação jurisprudencial da Corte,
acertadamente, retomou os delineamentos originais do instituto, por meio dos quais
o Tribunal está autorizado, diante do caso concreto, a não apenas declarar a mora
617
SILVA, 2005, p. 84-87. 618
Ibid., p. 88; HÄBERLE, Peter. A Humanidade como valor básico do Estado Constitucional. in MERLE, Jean-Christophe e MOREIRA, Luiz [Orgs.]. Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p.54. 619
Compete ao Supremo Tribunal Federal, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, por força do artigo 103, §2º, da Constituição Federal, apenas dar “ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. Um exemplo concreto de estruturação desta linha jurisprudencial restritiva no Supremo Tribunal Federal pode ser encontrado no Mandado de Injunção 168-5, do Rio Grande do Sul, julgado pelo Tribunal Plenário em 21 de Março de 1990, com Acórdão de Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, publicado no Diário da Justiça de 20 de Abril de 1990. Ficou acordado na ocasião que “O mandado de injunção nem autoriza o Judiciário a suprir a omissão legislativa ou regulamentar, editando o ato normativo omitido, nem, menos ainda, lhe permite ordenar, de imediato, ato concreto de satisfação do direito reclamado [...]”.
185
legislativa, mas também a colmatar provisoriamente a lacuna normativa enquanto se
aguarda o final da inércia do Poder Legislativo.
O exercício da atividade concretizadora pelo judiciário poderia gerar
indagações relativas à possível afronta aos princípios da soberania popular e da
separação de poderes.620 Porém, tais princípios estão preservados por meio da
defesa judicial do poder omisso e, ainda, pelo fato de terem o legislativo e o
executivo a última palavra quando divergem da concretização prolatada na decisão
jurisdicional. Como assevera Anabelle Silva, o Legislativo pode editar nova lei
regulando a matéria da maneira que considerar cabível, enquanto ao Executivo
compete traçar a implementação do direito social em questão, da forma que avaliar
viável, desde que respeitados os parâmetros mínimos fixados pela decisão
concretizadora.621
Em que pese a grande importância dessa atividade concretizadora do
judiciário no processo de efetivação dos direitos sonegados às classes espoliadas,
ressalva-se, uma vez mais, que não se quer defender aqui o fenômeno da
judicialização exacerbada do espaço político, por meio do qual a luta política é toda
canalizada para o judiciário, esvaziando-se os canais de mobilização popular. A
concretização efetiva dos direitos sociais sonegados às classes sociais exploradas
pressupõe não somente a ocupação do judiciário como arena da luta política, mas
também constante articulação popular que busque ocupar os espaços políticos
existentes na sociedade e no estado. Canotilho é categórico ao afirmar que “o bloco
constitucional dirigente não substitui a política; o que se torna é premissa material da
política”.622
Segundo Krell, há no Brasil, de um modo geral, uma resistência ao
controle judicial dos atos do poder público, que são vistos como autônomos,
discricionários e insindicáveis quanto à sua conveniência e oportunidade. O
Supremo Tribunal Federal, exagerando na “auto-restrição judicial” – judicial self-
restraint –, recusa-se em controlar a edição de medidas provisórias e, como já dito,
até bem pouco tempo atrás se recusava, em sede de mandado de injunção, a criar
620
Sobre a separação de poderes e a criação de leis, conferir: COELHO, Inocêncio Mártires. A Criação judicial do direito em face do cânone hermenêutico da autonomia do objeto e do princípio constitucional da separação de poderes. Revista de Informação Legislativa. Vol. 34, nº134, p.99-106, abr./jun. de 1997. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/227; acessado em 12 de setembro de 2006. 621
SILVA, 2005, p. 93-94; 622
CANOTILHO, 2001, p. 463.
186
normas para os casos concretos623. Percebe-se, pela análise da jurisprudência
produzida pela sua composição atual, que o Supremo tem adotado um viés ativista,
o que torna factível a expectativa de que a Corte altere, em breve, o seu
entendimento sobre o controle jurisdicional das medidas provisórias.
Reforça-se que a teoria da separação dos poderes nunca defendeu que
os três poderes estatais devessem ser incomunicáveis, mas sim, que fossem
independentes e harmônicos entre si, de maneira que a cada um fosse garantido o
controle constitucional dos demais.624
Necessário, pois, que haja uma distribuição que garanta um sistema
eficaz de freios e contrapesos, para que a separação dos poderes não signifique
uma mera ideologia que dissimule e inverta a natureza eminentemente política do
direito. Para Krell, a clássica divisão de funções do estado torna-se obsoleta quando
as leis se transformam em programas finalísticos.625
Nesse sentido, continua o citado autor, torna-se evidente que o apego
exagerado de grande parte da magistratura brasileira à teoria da separação dos
poderes é resultado de uma concepção conservadora da doutrina constitucional, que
ainda não se adaptou às exigências do moderno estado social e está devendo a
necessária atualização e re-interpretação de velhos dogmas do constitucionalismo
clássico626.
Para Anabelle Silva, o redimensionamento da relação ordem social/ordem
política agregou ao constitucionalismo novos conteúdos, englobando novos
aspectos da realidade, enfraquecendo o potencial normativo do princípio da
separação de poderes.627
O estado social628 concilia sociedade e estado por meio da concretização
de direitos fundamentais e da abertura do sistema jurídico e político, fazendo emergir
a democracia participativa dos escombros da democracia representativa.
Constroem-se a partir daí as novas bases de legitimação do judiciário, não mais a
partir da premissa da representatividade, mas sim da noção de que a judicialização
623
KRELL, 2002, p. 87. 624
Ibid., p. 89. 625
Ibid., p. 90. 626
Ibid., p. 91. 627
SILVA, 2005, p. 106-107. 628
José Afonso da Silva faz interessante classificação dos modelos estatais, tecendo aguçadas consideração sobre a conceituação do estado social. Cf: SILVA, op. cit., p.7-25.
187
de questões políticas é uma das formas de exercício democrático e de
participação.629
Krell, citando Ferraz Junior, defende que o juiz deve adotar, nessa nova
perspectiva assumida pelo estado social, uma “responsabilidade prospectiva”,
preocupada com a realização de finalidades políticas das quais não pode mais se
eximir em nome de princípios como o da legalidade e da segurança jurídica. Nessa
nova configuração o magistrado também é responsável pela implantação dos
valores fundamentais do estado social. O judiciário não pode, é claro, criar políticas
públicas, mas somente impor a execução daquelas já estabelecidas nas leis
constitucional ou ordinária. 630
Um modelo constitucional dirigente exige do judiciário uma postura
ativista, pois, segundo Canotilho, uma filosofia de ação, um “activismo”, que se dirige
à produção, reprodução e alteração da sociedade, é um elemento decisivamente
caracterizador do constitucionalismo dirigente.631
O ativismo judicial encontra legitimação na democracia participativa, pois
a intervenção do judiciário para implementação de políticas públicas sonegadas pela
inércia do executivo necessita de provocação social. As decisões dos tribunais
precisam ser justificadas, o que agrega valor à norma de decisão, por sujeitarem os
tribunais superiores a grande exposição pública e o conseqüente controle da
coletividade, conferindo-lhes maior responsabilidade diante das decisões, além de
garantir que estas não sejam tomadas com base em meras predileções dos juízes.
Bercovici afirma que “a legitimação formal de um órgão de controle de
constitucionalidade é proveniente da vontade do Poder Constituinte originário, mas a
legitimidade político-social só é obtida com a adequação da interpretação
constitucional aos princípios fundamentais”632.
No entanto, a atuação judicial cria, muitas vezes, empecilhos à tutela de
interesses da comunidade, sendo os mais comuns a desorganização, morosidade,
além da própria falta de compromisso de alguns profissionais do direito com a
efetividade da intervenção jurisdicional. 633
629
Ibid., p. 109. 630
KRELL, 2002, p. 94. 631
CANOTILHO, 2001, p.458. 632
BERCOVICI, Gilberto. Dilemas da Concretização Constitucional. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, n.2, 2004, p.110. 633
SILVA, 2005, p. 109-112.
188
A democracia não pode ser resumida apenas ao poder da maioria,
devendo significar, também, participação, tolerância e liberdade. Um judiciário
razoavelmente independente dos caprichos da maioria pode dar grande contribuição
à radicalização democrática, desde que seja capaz de preservar o sistema de
checks and balances, em face do crescimento dos poderes políticos, sujeitando-se
aos rigores técnicos e metodológicos, bem como aos controles adequados perante
outros centros de poder, típicos das sociedades contemporâneas desenvolvidas.634
A negação do positivismo dogmático e o aumento do poder de
interpretação dos juízes, criadores, no caso concreto, da norma jurídica, não
constitui necessariamente uma exagerada “politização” do judiciário, que passa
simplesmente a exercer integralmente as suas novas funções. Segundo Krell, a
própria doutrina e jurisprudência constitucional germânica não recusam uma atitude
política do judiciário, dês, é claro, que se desenvolva dentro dos limites
estabelecidos.635
Cumpre ao judiciário, neste contexto, responsabilizar-se pela coerência de
suas atitudes com os projetos de mudança social. Exige-se do juiz, num estado
constitucional como o descrito, o que Clève já explicitou alhures: responsabilidade e
criatividade.
Deve-se, sustenta Silva, atualizar o direito constitucional, de modo a evitar
a perpetuação do constitucionalismo redutor de velocidade da política, neutralizador
da mobilização social e apoiado no emprego desatualizado do princípio democrático.
Experimenta-se, com isso, a repolitização da legitimidade,636 ampliando os canais de
exercício da democracia. A repolitização cria uma nova configuração de cidadania,
na qual os cidadãos têm amplo acesso às decisões dos governantes.637
Ocorre, então, um amadurecimento do conceito de democracia
participativa, que procura se diferenciar do modelo clássico, diminuindo a esfera de
representação e aumentando a de participação. Nesse novo modelo participativo, o
político e o jurídico se fundem na constitucionalidade, cuja concretização afigura-se
como o melhor caminho para o seu aprimoramento.638
634
Ibid., p. 114. 635
KRELL, 2002, p. 95. 636
Sobre legitimidade, conferir: HABERMAS, 1997, passim; ARROYO, Juan Carlos Velasco. La Teoría Discursiva del Derecho: Sistema jurídico y democracia en Habermas. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000. 637
SILVA, 2005, p. 115-116. 638
Ibid., p.121-122.
189
Diante disso, a Constituição Federal de 1988 aparece, segundo Anabelle
Silva, como marco inicial do processo de juridicização da vida política e social no
Brasil. Questões políticas convertem-se em jurídicas, impondo aos juristas, para
trabalharem com essa nova realidade, a necessidade de uso do substrato fornecido
pela dogmática constitucional emancipatória.639
Ressalva-se, porém, em sintonia com Bercovici, que “não estamos aqui,
adotando o instrumentalismo, acreditando que é possível mudar uma sociedade
problemática, como a brasileira, apenas com dispositivos constitucionais”. Todavia,
embora a Constituição, por si só, não possa resolver os graves problemas sociais do
país, “ela permite a criação de uma política constitucional consciente e com o
objetivo de realização dos seus conteúdos”.640
Exige-se no estado contemporâneo cuidadosa leitura acerca da
redistribuição da função normativa, em razão do forte teor normativo oriundo da
atividade jurisdicional concretizadora. Ocupar os espaços abertos por essa
concretização jurisdicional é o desafio imposto ao jurista orgânico/alternativo. A
grande abertura deixada pelos dispositivos de direitos fundamentais na Constituição
brasileira, em especial os atinentes aos direitos sociais, propicia inúmeras
possibilidades de trabalho. É um espaço, sem dúvidas, em disputa.
Cabe à sociedade, aos intérpretes informais do texto constitucional, evitar
que as políticas públicas destinadas ao atendimento das demandas sociais sejam
destruídas por interpretações judiciais da constituição ainda ancoradas ao modelo
liberal, defensor radical da autonomia privada.641
Krell destaca, com Häberle, que não se pode esquecer que a constituição
de um estado não é somente texto jurídico ou regulamento normativo, mas também
expressão do seu desenvolvimento cultural, “„meio de auto-afirmação cultural de um
povo, espelho de seu patrimônio cultural e fundamento de suas esperanças.‟”642
Garantir a concretização dessa esperança e a normatividade e eficácia da
constituição não só quando ela protege as elites, mas, sobretudo, quando garante
aos espoliados o cumprimento das promessas da modernidade que lhes têm sido,
reiteradamente, sonegadas é horizonte a ser perseguido diuturnamente pelos
juristas orgânicos. Como bem assevera Roberto da Matta, em feliz citação trazida
639
Ibid., p. 204-208. 640
BERCOVICI, 2004, p. 103. 641
Ibid., p. 94. Cf. também CITTADINO, 2000, passim. 642
KRELL, 2002, p. 29.
190
por Krell, a força da lei serve aos despossuídos como esperança, como alavanca
para exprimir um futuro melhor643.
Por fim, encerra-se este derradeiro capítulo com Canotilho, para quem a
normatividade constitucional, democraticamente concretizada, é um instrumento
indispensável de uma República Constitucional, equidistante do reducionismo
judicial e do decisionismo político.
643
Ibid., p. 27.
191
CONCLUSÃO
Conclui-se, ao final deste trabalho, que o direito pode e deve ser
encarado como um importante espaço de lutas das classes sociais espoliadas em
sua busca por emancipação. Para travar esse combate visando à construção de um
novo bloco histórico, os juristas orgânicos/alternativos contam com uma poderosa
ferramenta de trabalho: a teoria constitucional.
Defendeu-se aqui que a redução do direito à condição de mero
instrumento de dominação é fruto da concepção reducionista de setores da
ortodoxia marxista, que subordinam, mecanicamente, a superestrutura à estrutura.
Por meio da utilização do referencial teórico gramsciano foi possível dar
nova nuança a essa questão. Não se pode mais tratar a superestrutura como mero
reflexo autômato da estrutura: ambas interagem dialeticamente, condicionando-se
reciprocamente, não havendo, portanto, transposição mecânica de uma esfera à
outra. Essa nova perspectiva teórica vale-se do conceito de bloco histórico delineado
por Gramsci, em função do qual se vislumbram possibilidades emancipatórias para a
esfera superestrutural e, conseqüentemente, para o direito.
Em que pese o direito venha sendo utilizado historicamente como
instrumento de dominação, numa perspectiva dialética, também pode ser usado
como ferramenta de emancipação. O desafio apresentado ao jurista crítico é o de
fazer aflorar esse segundo aspecto, potencializando as ferramentas jurídicas
transformadoras, deslocando-se, para segundo plano, o aparato meramente
opressor.
A guerra de posição, compreendida como a batalha por posições políticas
necessárias à conquista da hegemonia, foi outro conceito gramsciano empregado no
trabalho. Trava-se essa guerra, segundo Poulantzas, não apenas na sociedade civil,
mas, também, na sociedade política. No mesmo sentido, enfatizou-se que as
guerras de movimento, como a Revolução Russa, em que se vale da força para
ascender ao poder, não servem para países ocidentais ou que se ocidentalizaram,
pois há neles a presença marcante da sociedade civil. Nesses casos, a melhor
opção seria a guerra de posição.
O direito, espaço majoritariamente veiculador do pensamento
conservador, utilizado tradicionalmente como ferramenta de dominação, a partir
dessa releitura da guerra de posição delineada por Poulantzas, também pode ser
192
considerado palco desta batalha pela hegemonia emancipadora das classes
exploradas, devendo ser ocupado por aqueles que querem libertar e emancipar, sob
pena de assim não se fazendo, perpetuá-lo como mero latifúndio das classes
dominantes.
Compete ao jurista orgânico travar a guerra de posição no judiciário. Para
Gramsci, em alguma medida, todos os cidadãos são intelectuais, embora nem todos
exerçam, predominantemente, atividades intelectuais. Compromete-se o intelectual
orgânico com a implementação de um novo bloco histórico, que supere o dominante.
Nesse contexto, o jurista orgânico desponta como o intelectual orgânico que faz da
esfera jurídica a sua seara de lutas.
No direito brasileiro, o movimento do direito alternativo tem sido o grande
espaço de manifestação, articulação e atuação dos juristas orgânicos. Na verdade,
como se abordou ao longo do trabalho, a expressão movimento dos juristas
orgânicos denomina com mais apuro terminológico o movimento alternativista do
que o termo direito alternativo.
Tratou-se, brevemente, das influências, nacionais e internacionais,
sofridas pelo direito alternativo. Destacou-se, no plano externo, o uso alternativo do
direito italiano, principalmente com Ferrajoli e Barcellona, além da influência
espanhola e francesa, bem como do constitucionalismo português e alemão.
Enfatizou-se, internamente, as influências dos professores Luiz Alberto Warat,
Roberto Aguiar, Luiz Fernando Coelho, Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa
Junior, José Eduardo Faria, Juarez Cirino, entre outros.
Fez-se também um sucinto resgate histórico do direito alternativo, em
especial, de seu início, com as reuniões dos juízes gaúchos na sede campestre da
Associação de Juízes do Rio Grande do Sul; o artigo denegrindo a imagem dos
juízes orgânicos gaúchos, publicado no Jornal da Tarde, que, contrariamente ao que
se pretendia, acabou catapultando o movimento alternativista; os concorridos
congressos de direito alternativo realizados em Florianópolis; os livros alternativistas
publicados pela Editora Acadêmica.
Discordou-se daqueles que entendem que o direito alternativo “saiu de
moda”, como se o conhecimento pudesse ficar, tal qual as roupas, atrelado aos
modismos e tendências da “nova estação”. O movimento alternativo é atual,
pertinente e necessário no cenário jurídico brasileiro, pois as mazelas que ele
pretende combater continuam mais vivas do que nunca, assolando grande parte da
193
sociedade brasileira, em especial os mais pobres, em virtude de uma abordagem
reducionista do direito, albergadora tão-somente dos privilégios das elites, que se
lembra apenas dos deveres das classes espoliadas, ignorando, por completo, seus
direitos.
Foram enfrentadas, ao longo do texto, as principais críticas feitas ao
direito alternativo por seus detratores.
Concluiu-se, por exemplo, que não subsistem os argumentos que
sustentam ser o direito alternativo contrário à lei. O que se percebeu foi justamente o
contrário: pode-se considerar o alternativismo como um dos principais defensores da
normatividade constitucional, ápice da pirâmide normativa, esforçando-se,
sobremaneira, para que a lei das leis saia da condição de mera folha de papel
lassaleana e ganhe concretude. A evidência disso é tamanha que o movimento
possui uma vertente chamada positividade combativa, que tem por tarefa a luta pela
efetivação de direitos que já foram erigidos à categoria de lei, mas ainda são
sonegados pelos mandatários de plantão.
Para o direito alternativo, contudo, não se deve confundir direito com lei.
Como bem assevera Friedrich Müller, um dos autores utilizados neste trabalho: “o
texto da norma é apenas a ponta do iceberg normativo”; em outras palavras, como
dizia Drummond, “as leis não bastam, os lírios não nascem das leis”.
Também não se pode afirmar que os alternativistas defendem uma
atuação judicial despregada da lei, fomentando o que seria o livre arbítrio do juiz no
processo decisório. Salienta-se, e isso será explicitado no parágrafo seguinte, que o
direito alternativo tem propiciado grande contribuição para o controle das decisões
judiciais, auxiliando, incisivamente, no processo de contenção do arbítrio.
No que diz respeito à segurança jurídica, asseverou-se que ao invés de
aviltá-la, a alternatividade lança os alicerces para a construção de uma efetiva
segurança jurídica. Primeiro, desnuda-se a impossibilidade de neutralidade
axiológica do método jurídico e do intérprete; depois, exige-se, por meio da
motivação ideológica da sentença, que o intérprete deixe claro o motivo pelo qual
dentre as diversas possibilidades de interpretação admitidas por determinada norma
jurídica, optou-se por aquela.
Com isso, a segurança jurídica ganha outra conotação: sai da esfera do
mero fetiche liberal para ganhar contornos claros e concretos, afigurando-se agora
194
como “o direito a ter clareza a respeito das pré-compreensões desde as quais somos
julgados644.”
A única maneira, portanto, de se garantir aos cidadãos segurança jurídica
é exigindo do julgador que explicite as pré-compreensões a partir das quais tomou a
sua decisão. Os alternativistas admitem que a multiplicidade de possibilidades
decisórias é ínsita ao direito, bem como a presença das influências ideológicas do
julgador na decisão. Admite essas influências para, justamente, poder controlá-las.
Nesse contexto, a segurança jurídica não aparece mais como mero
apanágio dos ideais conservadores, que tentam barrar qualquer inovação à ordem
jurídica sob o argumento de que isso geraria insegurança, mas como aquela parcela
mínima de previsibilidade e de controle racional das possibilidades decisórias típicos
de um estado democrático e constitucional de direito.
Defendeu-se, também, que do ponto de vista da sua construção teórica,
o direito alternativo passou de “uma prática em busca de uma teoria” para a prática
de diversas teorias, inexistindo vertente teórica que, por si só, dê conta da
complexidade da atuação alternativista. Ao contrário, muitas são as fontes teóricas a
iluminar sua práxis. Dentre elas, optou-se aqui por se trabalhar com alguns
elementos da teoria constitucional, principalmente, em virtude das múltiplas
possibilidades emancipatórias latentes na Constituição Federal de 1988.
No segundo capítulo, foram trazidos à colação alguns dispositivos da
teoria constitucional que podem ser utilizados pelos juristas orgânicos como
ferramentas cotidianas de trabalho. Visando à construção de possibilidades teóricas
de viés emancipador, optou-se por se trabalhar com as chamadas teorias
concretistas de inspiração tópica, pois inserem a realidade na própria estrutura
normativa.
Valendo-se de Konrad Hesse o trabalho enfocou os elementos
necessários para assegurar força normativa à constituição de um país. Para ele, a
vontade de constituição, isto é, o desejo dos cidadãos de fazerem com que os
valores plasmados na ordem constitucional saiam da folha de papel e ganhem
concretude, é fator de elevada importância para a efetividade e normatividade
constitucionais.
644
ARRUDA JR, Edmundo Lima de e GONÇALVES, Marcus Fabiano, op. cit., p.246
195
Ao resgatar a relação dialética entre normalidade e normatividade,
anteriormente trabalhada por Heller, Hesse respondeu, um século depois, com
grande denodo, às objeções formuladas por Lassale ao acusar as constituições do
positivismo de serem meras folhas de papel, desprovidas de normatividade. Não seu
cuidou aqui, todavia, do método concretista de Hesse, pois a temática encontra-se
desenvolvida com mais profundidade e acuro na obra de Friedrich Müller.
Apresentou-se a metódica estruturante de Friedrich Müller como uma
teoria efetivamente pós-positivista do direito, em virtude de representar uma
verdadeira ruptura com os pressupostos básicos do positivismo. Para ele, o maior
equívoco do positivismo foi confundir o texto da norma com a própria norma jurídica.
O texto da norma, asseverou, é apenas a ponta do iceberg normativo. Cumpre ao
intérprete, no momento da concretização, fazer emergir a totalidade normativa.
A teoria de Müller parte de contribuições oriundas da hermenêutica
filosófica e do método tópico, às quais, contudo, faz alguns reparos, visando
compatibilizá-las com os requisitos de objetividade e racionalidade exigidos pelo
estado democrático de direito.
Preocupou-se Müller em desenvolver uma racionalidade possível para o
direito que, se de um lado, não deve ser visto como um espaço de objetividade
plena, tampouco pode ser considerado um local no qual impere a subjetividade.
Cabe à metódica estruturante fragmentar o processo de decisão judicial,
possibilitando o seu controle.
Para Müller, a norma jurídica compõem-se do programa da norma – que é
o texto da norma interpretado à luz dos métodos tradicionais de Savigny – e âmbito
da norma, que é a parcela da realidade social delimitada pelo programa da norma.
Abrem-se, com a metódica estruturante, inúmeras possibilidades de
trabalho para o jurista orgânico, em virtude de se trazer a realidade para a própria
composição da norma jurídica, principalmente, levando-se em consideração a
riqueza hermenêutica proporcionada pelo âmbito da norma dos direitos
fundamentais sociais.
Profícua análise da jurisdição constitucional brasileira foi propiciada pela
hermenêutica constitucional da sociedade aberta, desenvolvida por Peter Häberle,
enfatizando-se, em especial, que todos os que vivem sob o comando de uma
constituição têm competência para interpretá-la. A interpretação constitucional não
196
pode ser um monopólio dos titulares de funções estatais, devendo ser encarada
como uma atividade comum a todos aqueles que vivem sob a égide da constituição.
Constatou-se, também, utilizando-se como lente a teoria häberliana, certa
abertura no processo constitucional brasileiro, principalmente com a ampliação do rol
de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, a
introdução da figura do amicus curiae, bem como a possibilidade de realização de
audiências públicas para tratar de temas cuja constitucionalidade esteja sendo
apreciada pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa defesa da interpretação constitucional como atividade inerente a
todos os cidadãos possibilitou importante abertura da jurisdição constitucional. O juiz
não pode mais ser visto como a figura solipsista, que, de seu gabinete, isolado do
mundo, decide o destino das pessoas. Necessário se faz que ele se impregne de
mundanidade, abrindo-se para o diálogo com os diversos segmentos da sociedade.
Não se advoga, todavia, que o juiz deve se curvar à vontade de maiorias eventuais.
Concorda-se com Ferrajoli quando este sustenta que o papel do juiz no estado
constitucional de direito é contramajoritário, isto é, o de defensor dos direitos
fundamentais dos cidadãos contra qualquer maioria.
Valendo-se dos aportes teóricos oriundos das teorias aventadas, compete
ao jurista orgânico/alternativista a defesa da efetividade integral do texto
constitucional de 1988, por ser ele portador de inúmeras conquistas das classes
sociais espoliadas, que clamam concretização.
No último capítulo, inicialmente, reforçou-se o conceito de jurista orgânico,
derivado, como já visto, da idéia gramsciana de intelectual orgânico, que nada mais
é do que o intelectual comprometido com a superação de um determinado bloco
histórico e com a construção de um novo bloco. Nesse contexto, apresentou-se o
jurista orgânico como um jurista comprometido com a transformação do status quo e
com a construção de uma sociedade em que o ser prevaleça sobre o ter. Enfim, um
jurista aparelhado por uma dogmática jurídica de recorte emancipatório, apto a
ocupar o latifúndio improdutivo do direito, transformando-o, efetivamente, em um
espaço de emancipação.
Na seqüência, tratou-se o direito alternativo como uma prática jurídica
constituinte. Com Saavedra López e Clève, defendeu-se que a constituição é uma
arena indispensável de atuação para o jurista alternativista. Diante de uma
constituição compromissária, analítica, principiológica e dirigente como a brasileira
197
de 1988, a concretização da ordem constitucional afigura-se como um importante
horizonte de trabalho para os alternativistas.
Na atualidade, em face das já elencadas características da Constituição
vigente, a teoria constitucional consolidou-se como um referencial de primeira
grandeza para a alternatividade. Não significa afirmar, porém, que tal situação
sempre se manterá. O apego ao constitucionalismo deve ser meramente
instrumental, podendo – e devendo – esse referencial teórico perder parte da
importância de que desfruta caso deixe de atender aos interesses das lutas
emancipatórias.
Ressalva-se, ainda, que não se quer restringir as ferramentas de
intervenção do direito alternativo no universo jurídico a uma única matriz teórica, o
constitucionalismo, sob pena de dogmatizá-lo. Outras possibilidades teóricas de
atuação, nas diferentes tipologias do movimento, devem ser incessantemente
fomentadas. É essa multiplicidade que manterá sempre vivo e atual o movimento
alternativista, à margem dos modismos anteriormente mencionados.
Tema de grande relevo tratado no último capítulo diz respeito à
efetividade dos direitos fundamentais sociais. Esses direitos, também chamados de
prestacionais, por exigirem ações positivas do Estado para a sua concretização,
sempre foram alvo de inúmeras controvérsias, principalmente em virtude de estarem
sujeitos a condicionamentos fáticos. Em razão disso, alguns países optaram por não
incluí-los no texto constitucional ou inseri-los apenas de maneira pontual.
Filiou-se este trabalho à tese de que os direitos sociais são genuínos
direitos fundamentais, com todas as conseqüências jurídicas daí advindas. Não se
defendeu, contudo, ingenuamente, que eles possam ser exigidos de maneira
ilimitada, à margem da realidade econômica do Estado. Porém, de outro lado, a
limitação da chamada reserva do possível não se subordina à mera disponibilidade
orçamentária de recursos, mas, sim, às concretas condições econômicas do Estado.
A garantia de um mínimo vital, defendeu-se, é exigência para fruição dos
próprios direitos de liberdade, também chamados de direitos de primeira dimensão.
Em face disso, o Tribunal Federal alemão reconheceu inúmeros direitos sociais que
não estão previstos expressamente na Lei Fundamental, sob o argumento de serem
primordiais para o exercício dos demais direitos fundamentais.
Outro ponto que o trabalho enfocou foi a teoria da constituição dirigente. A
vigente Constituição brasileira sofreu forte influência do chamado constitucionalismo
198
dirigente, que tem em Gomes Canotilho seu maior expoente. Refutou-se, desse
modo, a concepção segundo a qual os direitos fundamentais sociais são meras
normas programáticas que servem tão-somente de norte ao legislador. Como
mencionado, os direitos sociais configuram verdadeiras normas jurídicas, cujo
descumprimento enseja a sindicabilidade jurisdicional.
Entendeu-se também que a polêmica mudança de perspectiva do próprio
Canotilho, que passou a defender um “constitucionalismo reflexivo”, abandonando a
tese da constituição dirigente, não serve para o Brasil, conforme preceitua o próprio
autor, país de modernidade tardia, valendo apenas para os países desenvolvidos da
Europa. Desse modo, a teoria da constituição dirigente continua valendo para países
nos quais as promessas da modernidade ainda não foram cumpridas. Revitaliza-se,
assim, a luta pela efetivação dos direitos sociais sonegados pelo bloco histórico
vigente.
Dentro do contexto teórico apresentado há um nítido redesenho da idéia
de tripartição das funções do estado, exigindo-se, do judiciário, participação ativa na
concretização dos direitos fundamentais. Não se pode mais considerar o juiz como a
mera “boca que diz as palavras da lei”, mas, sim, de acordo com a metódica
concretista, como o verdadeiro construtor da normatividade. Faz isso ao
correlacionar, na análise do caso concreto, programa e âmbito da norma, criando-se,
dessa maneira, a norma jurídica.
Sustentou-se que dentro do modelo constitucional vigente, faz-se
necessária certa dose de ativismo judicial. Deve, sim, o juiz concorrer ativamente
para suprir, na seara da concretização constitucional, o déficit oriundo das
demandas sociais sonegadas por ações ou omissões legislativas ou executivas.
Fará isso, no entanto, explorando as possibilidades que lhes são dadas pela esfera
de discricionariedade do próprio direito, sem descambar para a arbitrariedade. Para
que isso não ocorra, faz-se necessária a honesta utilização dos métodos, com a
motivação e fundamentação das decisões bem explicitadas.
Para que o jurista orgânico dê conta de toda a complexidade do
fenômeno jurídico no âmbito de um estado constitucional e democrático de direito,
faz-se imperioso que adote como pressupostos a responsabilidade e a criatividade,
que, potencializados por uma dogmática emancipatória, farão aflorar os valores
progressistas contidos na Constituição.
199
Na atualidade, compete ao jurista orgânico, em qualquer de suas esferas
de atuação, a defesa da efetividade integral da Constituição, sob pena de, não o
fazendo, ter-se o que Clève outrora já alertara: uma constituição normativa no que
tange à tutela dos interesses das elites e uma constituição meramente programática
no que diz respeito aos direitos das classes exploradas.
Para a construção de um pensamento jurídico crítico que vislumbre no
direito um dos campos de batalha da complexa luta em prol da efetivação dos
direitos sonegados às classes sociais exploradas, ganha relevo a noção de que a
força normativa da constituição, a força viva do próprio direito, não é algo dado, mas,
sim, que deve ser construído, cotidianamente, pelos diferentes atores sociais. O
processo histórico de conquista de direitos não termina com a simples positivação
dos mesmos; necessita-se de um passo além, em direção à sua concretização, que
pressupõe outra batalha, travada agora em termos hermenêuticos, dentro do próprio
judiciário, exigindo-se, para tal, juristas de outra estirpe, que rompam as fronteiras do
senso comum teórico há muito denunciado por Warat.
Apesar de todas as agruras e percalços para a concretização dos valores
emancipatórios contidos no texto constitucional brasileiro, conclui-se o presente
trabalho com otimismo: embora a Constituição não possa tudo, certamente pode
muito. A tarefa do jurista orgânico é justamente retirar esse “muito” que a
Constituição Federal de 1988 pode oferecer da condição de mera potencialidade,
efetivando-o concretamente.
Por derradeiro, almeja-se que este trabalho contribua, ainda que
minimamente, para fomentar o debate em torno da construção de uma dogmática
jurídica emancipatória, pedra fundamental para o resgate da dignidade normativa do
direito.
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