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RODRIGO PELAIS BANHOZ
O DIREITO COMUM E O PODER RÉGIO NO REINADO DE AFONSO II: AS LEIS GERAIS DE 1211 NA ORGANIZAÇÃO DA PLURALIDADE DE
FONTES DO DIREITO ENTRE O INÍCIO DO SÉCULO XI E DO SÉCULO XIII
Monografia apresentada como requisito parcial à
conclusão do curso de História, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal
do Paraná.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fátima Regina Fernandes
CURITIBA 2001
ii
Dedico essa pesquisa à Camila, de quem o amor e a amizade constituem fonte eterna de entusiasmo e inspiração.
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que de algum modo contribuíram para a realização
desse trabalho. A algumas delas, contudo, devo especial gratidão:
Ao professor Renan Friguetto, por ter me incentivado, desde o início da
graduação, a cultivar e desenvolver meu interesse pelo estudo sobre a Idade Média.
A minha orientadora, Fátima Regina Fernandes, em quem vi depositada toda
minha confiança. A qualidade e a seriedade de seu trabalho representam a pedra
angular dessa pesquisa que, sem sua amizade e nossas sempre produtivas discussões,
não haveria se edificado sobre bases tão sólidas.
A meus pais, Edison e Janete, e a meu irmão, Fábio, pelo carinho sempre
cultivado em nossa família, e por seu apoio incondicional no aprimoramento de meus
estudos.
Agradeço, também, aos Doutores Luis Edson e Rosana Fachin, a quem devo
pelo precioso incentivo. Sou-lhes imensamente grato pelo apoio que me deram e pela
credibilidade que desde cedo atribuíram ao meu trabalho.
Finalmente, quero demonstrar minha gratidão aos grandes amigos que fiz ao
longo desses anos de estudo, que vêem a somar aos já referidos; os grupos de estudo e
as reflexões que fizemos juntos auxiliou-me sobremaneira em minha formação
acadêmica. Nomeadamente: Adriana, Júlia, Maria Helena, Helder, Malú, Olga,
Dejalma, Rosângela, Márcio, Simone e Alexandre. A eles minha eterna amizade.
iv
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................1
1 TEORIA DOS DOIS GLÁDIOS: ESTRUTURA CONCEPTUAL DAS
TEORIAS MEDIEVAIS SOBRE O PODER.......................................................4
1.1 A CONCEPÇÃO UNITÁRIA DE SOCIEDADE NA FILOSOFIA PATRÍSITICA
E SUAS IMPLICAÇÕES NA ACEPÇÃO DE PODER NO PERÍODO
MEDIEVAL.............................................................................................................5
1.2 HINCMAR DE REIMS...........................................................................................8
1.3 CONCEITOS BASILARES DA TEORIA DOS DOIS PODERES......................10
1.4 A QUERELA DAS INVESTIDURAS..................................................................11
1.4.1 Contextualização do evento................................................................................11
1.4.2 A presença da teoria dos dois poderes na argumentação dos atores históricos
diretamente ligados à Querela das Investiduras.................................................14
2 O DIREITO LEGISLADO E AS NASCENTES INSTITUIÇÕES.................. 20
2.1 O CONCEITO DE LEI NO PERÍODO MEDIEVAL E SUAS IMPLICAÇÕES
NA ATIVIDADE LEGISLATIVA E NO EXERCÍCIO DO PODER DOS DOIS
GLÁDIOS..............................................................................................................21
2.2 ATIVIDADE LEGISLATIVA DA IGREJA.........................................................25
2.2.1 O Direito Romano como aporte à legislação eclesiástica..................................28
2.3 ATIVIDADE LEGISLATIVA DO IMPÉRIO......................................................32
2.3.1 O Direito Romano como aporte à legislação imperial.......................................33
2.4 DIREITO COMUM...............................................................................................34
3 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO RÉGIO PORTUGUÊS: AS LEIS GERAIS
DE 1211...................................................................................................................37
3.1 AS LEIS GERAIS DE 1211: APRESENTAÇÃO DA FONTE ...........................40
3.2 FIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO NAS RELAÇÕES TRAVADAS NO
INTERIOR DO REINO.........................................................................................42
3.3 FIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO NAS RELAÇÕES TRAVADAS NO ÂMBITO
EXTERNO AO REINO.........................................................................................46
v
CONCLUSÃO.............................................................................................................50
REFERÊNCIAS..........................................................................................................53
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho faz uma análise da construção do Direito Régio no reino
de Portugal, no início do século XIII, durante o reinado de Afonso II.
Não se trata, portanto, propriamente de um estudo que tem como objetivo
exaurir a análise da História do Direito português no período em questão, pois muito
pouco se debruçou sobre a análise dos costumes e das normas que compunham o
denominado Direito Comum.
Tratou antes da construção de um Direito pelo poder régio, manifestada pela
elaboração de Leis Gerais, inserido numa dinâmica política em que era apenas um
dentre os vários focos de poder existentes no reino.
Para tanto, a análise primou pela contextualização histórica em que surgiu essa
manifestação jurídica do poder régio, e vislumbrou nas querelas entre Império e
Papado, no século XI, bem como na estruturação teórica do poder promovida por essas
duas instituições, o pano de fundo em que fora forjado o Direito Régio. Compreende-
se, portanto, a formulação jurídica promovida por Afonso II quando inserida nas
concepções teóricas acerca do poder, bem como na contextualização política que
abrange os séculos XI e meado do século XIII.
Desse modo, o primeiro capítulo analisou a teoria dos dois poderes, que faria
parte da principal construção teórica medieval acerca do poder. Essa análise, por sua
vez, não foi exaustiva. Apenas alguns textos medievais que contemplam essa teoria
foram analisados.
O objetivo foi o de extrair desses textos os elementos conceptuais basilares
constitutivos das teorias acerca do poder no período medieval, para promover a
discussão sobre as disputas pelo poder entre Papado e Império no início do século XI.
Essa disputa, conhecida como Querela das Investiduras, originou-se de uma
tentativa do pontífice em organizar internamente a Igreja e consolidar o poder
espiritual face o poder temporal.
2
A análise desse evento histórico foi feita tendo por base fontes históricas do
período que retratam seus principais momentos, tais como a Dictatus Papae, e as
cartas trocadas pelo Imperador Henrique IV e o Papa Gregório VII.
Resultou dessa querela, a construção de um Direito específico por parte da
Igreja e do Império, na regulamentação das matérias de caráter espiritual e temporal.
Tal Direito pautou-se, essencialmente, na legislação das autoridades investidas nesses
poderes.
A Europa Ocidental Cristã, portanto, assistiu à construção de um Direito
universal, que se pretendia válido para toda a Cristandade, bem como tencionava
constituir-se na principal fonte do direito dos diversos reinos cristãos. Surge, pois, o
denominado Direito Comum, um sistema jurídico composto por dois conjuntos de
normas destinados a regrar as matérias de caráter espiritual e temporal.
O Direito Comum foi construído à semelhança da teoria dos dois poderes, no
intuito de concretizar juridicamente o exercício do poder dos dois gládios. Para o
empreendimento de tal análise, utilizou-se vasta bibliografia referente ao assunto.
O terceiro capítulo tratou especificamente da construção jurídica promovida
por Afonso II, no início de seu reinado.
Para tanto, a fonte analisada refere-se à primeira significativa manifestação
dos reis portugueses no empreendimento da atividade legislativa. Trata-se de um
conjunto de leis régias gerais elaboradas por Afonso II, em 1211, constantes de uma
compilação de leis medievais levada a cabo entre os séculos XIV e XV: o Livro das
Leis e das Posturas.
A análise dessa fonte legislativa, contudo, adotou uma perspectiva que deve
ser explicitada. O presente trabalho preocupou-se em analisar a intenção régia
subjacente ao surgimento das Leis Gerais. Isso significa dizer que em momento algum
mensurou-se o grau efetivo de importância dessas leis no conjunto de fontes do direito
presentes no reino de Portugal.
Finalmente, cabe reiterar que a clivagem operada nesse trabalho evidencia o
caráter parcial de sua abordagem, reconhecendo que a análise da efetividade dessas
leis é necessária para uma maior compreensão do Direito português no reinado de
3
Afonso II. Contudo tal análise exige que se recorra a um conjunto muito amplo de
fontes históricas que não necessariamente constituem menção direta ao Direito,
considerado enquanto norma jurídica positivada.
Por essas razões, dado o caráter monográfico da presente pesquisa, optou-se
por reduzir o campo de análise a fim de compreender apenas a intenção de Afonso II
na construção do Direito português.
É certo que tal opção acabou por produzir um conhecimento parcial acerca do
objeto da pesquisa, mas em nenhum momento a proposta era a de exaurir o tema. O
presente trabalho, portanto, é um primeiro passo no esforço de compreender o Direito
no período medieval. Parcial, incompleto, certamente, mas também necessário.
4
1 TEORIA DOS DOIS GLÁDIOS: ESTRUTURA CONCEPTUAL DAS
TEORIAS MEDIEVAIS SOBRE O PODER
Compreender as relações entre as fontes do direito constitutivas da formulação
jurídica promovida pelo poder régio em 1211 é referir-se a uma estrutura conceptual
subjacente às preocupações dos teóricos medievos desde pelo menos o ano de 494: a
“teoria dos dois gládios do poder”, o espiritual e o temporal.
Isso porque a legislação régia de 1211 formula, em dois de seus dispositivos –
analisados no terceiro capítulo – alguns critérios de compatibilização das normas jurídicas
em momentos de conflito normativo entre as leis emanadas do poder espiritual e do poder
temporal.
Desse modo, face à constatação de pelo menos duas origens distintas da norma
jurídica nesse conjunto de leis do início do século XIII, faz-se necessário o estudo da
origem da concepção bipartida do poder de governar, no intuito de colher elementos
formativos do quadro de disputa política entre o Papado e o Sacro Império Romano
Germânico, que marcará a Europa no período da Baixa Idade Média, bem como na
intenção de delimitar a acepção de direito comum que também se fará presente durante e
além desse período.
Far-se-á, doravante, um estudo que delineará uma estrutura conceptual acerca do
poder que esteve presente na formulação dos teóricos em boa parte do período medieval.
Dos textos medievais analisados extrair-se-á apenas algumas categorias conceptuais que
formam a viga teórica sobre a qual as teorias medievais acerca do poder se estruturaram,
para, posteriormente, promover uma interpretação sobre a formulação desses dois
dispositivos legais emanados do poder régio de acordo com sua historicidade.
5
1.1 A CONCEPÇÃO UNITÁRIA DE SOCIEDADE NA FILOSOFIA PATRÍSTICA
E SUAS IMPLICAÇÕES NA ACEPÇÃO DE PODER NO PERÍODO MEDIEVAL
Cabe analisar, brevemente, os alicerces do pensamento político medieval para se
compreender a estruturação conceptual acerca do poder promovida a partir de Gelásio I.
Assim, tal como procede VILANI, faz-se necessário perceber a perspectiva escatológica,
holística e hierárquica do mundo, na qual a acepção acerca do poder está inserida.
Desse modo, VILANI aponta a transformação acerca do tempo histórico na
filosofia cristã como aporte significativo na construção do pensamento político medieval.
Trata-se da construção de uma temporalidade dotada de um sentido linear, construído a
partir de um suposto fim para o qual a humanidade deveria caminhar. Diferente, portanto,
da acepção cíclica sobre o tempo, elaborada pelos gregos. A humanidade deveria seguir à
espelho dos acontecimentos bíblicos, ou seja, do Gênese ao Juízo Final.
A construção dessa temporalidade, ainda, traz no bojo a expressão de uma moral
religiosa em pleno desenvolvimento, pois o marco teológico do distanciamento da
humanidade em relação à perfeição divina, é o pecado original. A partir desse marco, a
humanidade deveria caminhar para a reconciliação da harmonia entre os seres humanos e
a Verdade divina.
Santo Agostinho fora o teórico que melhor sintetizou e organizou tal acepção
acerca do mundo. Para o Bispo de Hipona, o homem estaria dividido entre a percepção e
ação de acordo com a palavra divina, e as vicissitudes oriundas de sua vivência num
mundo imperfeito, governado pelos humanos. Na subjetividade do homem, estaria ele
entre a Cidade Terrena e a Cidade de Deus.1
Desse sentido histórico a que os homens estariam vinculados resulta “...a
subordinação da ordem mundana aos valores transcendentais e absolutos”2. A
1 TRUYOL Y SERRA, A. História da filosofia do direito e do estado. Portugal : Coleção
Estudo Geral, 1985. p. 2 VILANI, Maria Cristina Seixas. Origens medievais da democracia moderna. Belo Horizonte:
Inédita, 1999. p.
6
comunidade humana deveria ser ordenada de acordo com a vontade divina, que
dispõem cada coisa no seu lugar no mundo terreno, e atribui a condução desse conjunto a
alguns homens.
Tal como afirma VILANI, não há nenhum indício na argumentação de Santo
Agostinho de que este identifica as duas cidades com as instituições Império e Igreja, mas
o Bispo estipulou uma ordem unitária do mundo, baseada na hierarquia do poder que
deixou marcas incontestáveis no pensamento político medieval.
É na figura de Gelásio I que se encontra uma das primeiras e mais importantes
teorias acerca do poder na Idade Média. Baseando-se nas premissas já estipuladas pelo
Doutor de Hipona, Gelásio I disserta acerca da existência de dois poderes e suas relações
num mundo unificado pelos princípios cristãos.
Data do ano de 494, a carta enviada pelo então Papa, Gelásio I, ao imperador
bizantino, Anastácio I, na qual estão definidas as relações entre os poderes temporal e
espiritual.
Primeiramente, o Papa delineou a existência de dois poderes delegados, por Deus,
aos homens, no intuito de legitimar o governo da Cidade dos Homens:
Suplico à Vossa Piedade que não considere arrogância a obediência aos princípios divinos. Que esteja longe, vos suplico, de um imperador romano considerar injúria a verdade comunicada à sua consciência, pois são dois, imperador augusto, os poderes com os quais se governa, principalmente, este mundo: a sagrada autoridade dos pontífices e o poder dos reis, ...
Seguidamente, estipulou a relação entre esses poderes:
...e desses dois poderes é mais importante o dos sacerdotes, pois têm de prestar contas, também, diante do divino juiz dos governantes dos homens. Bem sabe, clementíssimo filho, que embora por vossa dignidade seja o primeiro de todos os homens e o imperador do mundo, abaixa piedosamente a cabeça diante dos representantes da religião e lhes suplica aquilo que é indispensável para a vossa salvação; na administração dos sacramentos e na disposição das coisas sagradas reconhece que deve submeter vosso governo e não ser vós aquele que governa, e assim, nas coisas da religião, deve submeter-se a seu julgamento e não querer que eles se submetam ao vosso, pois no que se refere ao governo da administração pública, os mesmos sacerdotes, sabendo que a autoridade vos foi concedida por disposição divina, obedecem às
7
vossas leis para que não pareça que nas coisas materiais se opõem às leis; de que modo vós deveis obedecer àqueles para os quais foi destinada a administração dos divinos mistérios?3
Desse modo, vê-se a teoria dualista do poder tomar corpo no escrito de Gelásio I
no período da História da Filosofia denominado patrístico, em que prepondera uma
concepção unitária de sociedade cristã.4
Note-se que o fundamento do poder, sua origem, é o mesmo para os dois poderes,
ou seja, ambos receberam seus respectivos gládios diretamente de Deus, não havendo
nenhum intermediário nessa relação, portanto, nenhuma relação hierárquica entre os
poderes. Cada qual deveria, pois, atuar no âmbito de suas atribuições, e ambos não apenas
deveriam respeitar as atribuições alheias, como submeterem-se, nas matérias específicas,
ao outro gládio.
De acordo com a argumentação de Gelásio I, a relação hierárquica entre os dois
poderes não existe, pois uma vez que não há compatibilidade de matérias regradas por
esses dois gládios, não há conflito de competências. Existe hierarquia apenas quando a
ação de um dos dois gládios está no âmbito da matéria regrada pelo outro gládio: nesse
caso, a decisão preponderante cabe ao gládio que detém competência para regrar tal
matéria. Não se inferi de tal divisão de poderes e de matérias que a definição do que era
ou não matéria de competência de um ou outro poder era pacífica, ou seja, não havia um
rol de matérias que correspondesse à competência dos poderes, precisando os objetos
sobre os quais deveria recair a norma jurídica emanada do poder espiritual e do poder
temporal.
Partilhando de opiniões de autores como TRUYOL SERRA e FERNANDES5,
têm-se na teoria gelasiana dos poderes o esboço de uma estrutura de poder medieval que
3 PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da idade média: textos e testemunhas.
São Paulo: Editora UNESP, 2000. p.121-122. 4 TRUYOL Y SERRA, p. 227. 5 FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à legislação medieval portuguesa de Afonso III.
Curitiba: Juruá, 2000. p.
8
encontrou formulações diversas nos anos subseqüentes, servindo de pilar teórico para
as disputas de poder entre o governo laico e o clerical.
Tamanha a pertinência de tal teoria para a compreensão do direito medieval e
para o pensamento político do período que se constata a sua influência na formação de um
gênero literário denominado “espelhos de príncipes”, “cuja tradição se perpetuará até ao
Barroco, com base no modelo do príncipe cristão da Cidade de Deus de Santo
Agostinho”6, tendo por principal representante o arcebispo de Reims, de 806-82,
Hincmar, formulador da mais significativa teoria das duas espadas, no período carolíngio.
1.2 HINCMAR DE REIMS
Arcebispo de Reims, Hincmar ( ca. 806-82 ) fora importante personagem da
história do Império Carolíngio, participando ativamente, no reinado de Carlos, o Calvo,
das lutas internas e partilhas de herança que assolavam o reino.
Na qualidade de braço secular de Carlos, participará como mediador do momento
histórico conhecido como a partilha de Verdun, em 843; papel este que o destacará como
mentor espiritual durante toda a sua vida, tal como destaca PEDRERO-SÁNCHEZ.7
No ano de 881, em participação no concílio de Fismes, Hincmar elaborou nítida
distinção entre o poder espiritual e o temporal, retratada no documento intitulado Capitula
Synodo.
A idéia que norteia a distinção é a de que apenas Cristo reuniu em si a titularidade
desses dois poderes, apenas Cristo fora sacerdote e rei simultaneamente. Após a sua
morte, a titularidade dos poderes recai em dois governantes distintos, incumbidos, cada
qual, de governar os assuntos de sua competência:
Na verdade, são diferentes o poder dos reis e a autoridade dos pontífices. Um pertence ao ofício
sacerdotal, o outro, ao ministério real. Como se lê nas Sagradas Escrituras: o mundo é regido por dois poderes: a autoridade do pontífice e o poder real. Somente Nosso Senhor Jesus Cristo pode
6 TRUYOL Y SERRA, 228. 7 PEDRERO-SÁNCHEZ, 300.
9
ser ao mesmo tempo rei e sacerdote. Depois da Encarnação, Ressureição e Ascensão ao céu, nenhum rei atreveu-se a usurpar a dignidade de pontífice nem nenhum pontífice o poder real já que suas atuações foram separadas por Cristo, de maneira que os reis cristãos necessitam dos pontífices para sua vida eterna e os pontífices se servem em seus assuntos temporais das disposições reais. Dessa forma, a atuação espiritual deve se ver preservada do temporal e aquele que serve a Deus não deve imiscuir-se nos assuntos temporais, e, ao contrário, não deve parecer que preside aos assuntos divinos aquele que está implicado nos assuntos temporais.8
Note-se que Hincmar enfatizou a comunhão e a complementaridade entre os dois
poderes, embora os considerasse perfeitamente distintos. O texto não faz alusão a
nenhuma espécie de hierarquia entre esses dois poderes até o trecho acima transcrito,
entretanto o trecho final é reservado para ressaltar a importância maior do poder espiritual
e até mesmo caracterizá-lo como força legitimadora do poder temporal.
Já na teoria de Gelásio I não há uma nítida intenção de promover um discurso que
firmasse a preponderância do poder espiritual sobre o temporal, pois ele apenas
argumenta que cada poder é supremo no interior de sua área de atuação. Ver-se-á, na
transcrição de um trecho da Capitula Synodo, que Hincmar enfatiza a consagração como
prerrogativa exclusiva do poder espiritual, que o legitima como intermediário no processo
de delegação do poder temporal por Deus:
A dignidade dos pontífices é superior à dos reis porque os reis são consagrados em seu poder real pelos pontífices e os pontífices não podem ser consagrados pelos reis. Além disso, a carga dos sacerdotes é mais pesada que a dos reis, pois devem dar conta perante o juízo divino inclusive das pessoas dos reis. E em assuntos temporais é tão pesada a carga dos reis como a dos sacerdotes, pois este trabalho lhes foi imposto para honra, defesa e tranqüilidade da Santa Igreja, de seus reitores e ministros, pelo rei dos reis. E como lemos nas Sagradas Escrituras (Deut. XVII), quando os sacerdotes ungiam os reis para o governo do reino e colocavam em sua cabeça o diadema, punham em suas mãos as leis para que aprendessem como deviam reger a seus súditos e honrar aos sacerdotes. Na História Sagrada se lê que o rei Osias atreveu-se a queimar incenso, que era função própria dos sacerdotes e não do rei, e por isso foi atacado pela lepra, expulso do templo pelos sacerdotes e esteve recluso em sua casa até sua morte.9
Desse modo, Hincmar de Reims não apenas reforçou a teoria gelasiana,
apregoando a existência de dois poderes distintos que se complementam, mas afirma de
8 Ibid., 122-123.
10
maneira categórica a proeminência do poder espiritual face ao temporal, pois a figura
da consagração representava o poder de delegação do qual estava imbuído o poder
espiritual, ou seja, este era quem sancionava o governante dotado do poder temporal. Não
se trata de acaso a existência do principal instrumento jurídico de controle do poder
espiritual frente ao temporal: a excomunhão, que desobriga a obediência dos súditos ao
rei, retirando-lhe sua legitimidade para governar os assuntos temporais. Estipula-se, em
certa medida, um limite máximo da atuação régia: sua atuação nos assuntos espirituais, ou
atuação sua no campo temporal da qual resultasse pecado.
Embora haja essas peculiaridades da argumentação de Gelásio I e de Hincmar de
Reims, pode-se delinear alguns elementos conceptuais que estão subjacentes as teorias
por eles formuladas
1.3 CONCEITOS BASILARES DA TEORIA DOS DOIS PODERES
Da formulação da teoria gelasiana, em 494, decorreu a estipulação de uma
estrutura conceptual da noção de poder que norteou diversas outras surgidas no período
medieval. As idéias de Hincmar são testemunhas de tal ocorrência, no que pese a sua
posição no Império Carolíngio e os termos nos quais são formuladas.
O presente estudo não se pautou na análise exaustiva do contexto histórico em
que essas duas teorias nasceram, mas apenas no seu legado às posteriores formulações
teóricas acerca do poder. Assim, extraem-se delas dois elementos conceptuais basilares do
pensamento medieval acerca do poder que estão presentes em inúmeras outras teorias de
mesma orientação: primeiramente, a noção de existência de dois poderes, espiritual e
temporal, e, por último, a relação ao mesmo tempo horizontal e hierárquica entre eles.
Relação horizontal porque são dois poderes de mesma origem e dotados de tarefa
distinta no governo da Cidade dos Homens: não há aqui nenhuma valoração absoluta de
qual poder é mais importante que o outro (isso varia de acordo com a teoria analisada);
9 Ibid.,123.
11
são, portanto, dois poderes com tarefas distintas mas que convergem na medida em
que expressam uma visão divinizada do mundo, de uma sociedade unitária que depende
do equilíbrio entre esses dois poderes, de sua harmonia.
Faz-se mister a reiteração de que os elementos acima apontados estão presentes
nas concepções posteriores acerca do poder, sendo absorvidos de acordo com o lugar
ocupado nas relações políticas pelo agente histórico que com eles dialoga.
A teoria dos dois poderes dará ensejo, ainda, à argumentação de supremacia de
um ou outro poder num momento histórico em que o conflito entre o Papado e o Sacro
Império Romano Germânico se torna acentuado. Fora no intuito de ora legitimar o poder
do pontífice, ora do imperador, que essa teoria foi resgatada e novamente esculpida pelos
partícipes desse momento histórico, conhecido como a Querela das Investiduras.
1.4 A QUERELA DAS INVESTIDURAS
Embora a teoria dos dois poderes tenha figurado como importante reflexão no
ordenamento da idéia de poder no período da Alta Idade Média, foi no período posterior,
ou seja, no início da Baixa Idade Média que foi resgatada com maior intensidade, na
medida em que o Papado começou a firmar-se preponderantemente face às outras Sés
cristãs, bem como frente ao Sacro Império Romano Germânico.
1.4.1 Contextualização do evento
A Querela das Investiduras, como ficou conhecido o momento histórico em que a
Igreja iniciou forte tendência unificadora da sua organização interna, bem como promove
a firmação de sua autonomia face ao Império, ocorreu no início do século XI, e teve como
principais protagonistas o então Papa, Gregório VII, e o Imperador Henrique IV.
12
Compreender a Querela das Investiduras demanda a análise de seu contexto
histórico; isto é dizer, deve ser compreendida no bojo da denominada Reforma
Gregoriana.
A Reforma Gregoriana, por sua vez, fora fruto de um descontentamento acerca
dos moldes em que a Igreja se encaixava a vários séculos. Embebida no mundo temporal,
era-lhe partícipe em demasia, pois cultuava relações que não eram propriamente
espirituais.
Em seu seio ocorriam situações que iam de encontro à orientação do Evangelho:
constituíam-se em pecados nos quais seus membros incorriam reiteradamente. São eles,
tais como pontuam KNOWLES E OBOLENSKY10, a simonia e o nicolaísmo.
A simonia era a valoração pecuniária dos dons sobrenaturais nos quais estavam
investidos os agentes eclesiásticos, ou dos bens da Igreja, em outras palavras, era a
alienação de cargos e bens eclesiásticos aos laicos. O nicolaísmo, por sua vez, era a
inobservância, pelos clérigos, dos princípios dogmáticos da Castidade e do Celibato.
Notório o problema que acarretava à Igreja a prática da simonia, pois a posse de
terras concentradas em sua Instituição dava-lhe prestígio e poder junto à sociedade
medieval; a alienação de cargos, por sua vez, fazia adentrar ao corpo clerical leigos que
não possuíam um interesse propriamente espiritual no exercício de sua função, reforçando
a presença de pessoas que potencialmente serviriam de apoio numa querela entre Igreja e
Império. A inobservância dos princípios já elencados, ainda, acarretava sérios problemas
no bom andamento da concentração fundiária dos feudos, por meio do direito sucessório.
Carecia o Papado, portanto, de uma organização mais eficaz para a promoção de
uma unidade institucional cristã, por meio da existência de ação disciplinar de papas
livres e munidos de verdadeira autoridade.
Em sua relação com o Império, fundamental era a promoção de sua autonomia.
Direito costumeiro do Imperador era o de eleger os bispos e os Papas. Ora, um grupo que
10 KNOWLES, D; OBOLENSKY,D. Nova história da igreja. Rio de Janeiro: Vozes Ltda, 1974.
p.184. v.2: A idade média.
13
quer firmar-se como um corpo autônomo não poderia permitir que seus dirigentes
fossem nomeados por uma figura estranha ao exercício da função eclesiástica: não
poderia legitimar o detentor do poder espiritual, aquele investido pelo poder temporal.
O movimento reformista gregoriano, portanto, tinha dois fundamentais objetivos:
a unidade interna da Igreja e sua autonomia face ao Império. Diante desse contexto,
brevemente relatado, é que se deve compreender a Querela das Investiduras.
No Papado do pontífice anterior à Gregório VII, Alexandre II, no qual se
combatia veementemente a prática da simonia, esta tinha reaparecido com forte
intensidade na Germânia, sob a regência da Imperatriz Inês, na menoridade de Henrique
IV.11
Ao assumir o Papado, Gregório VII demostrou desde o início forte intenção “em
afirmar os poderes supremos e a autoridade de direito divino da Sé romana”12.
Encontrando resistência à sua proibição da prática da simonia e da incontinência, tomou
medidas drásticas, no sínodo da Quaresma de 1075, “proibindo receber abadias ou
bispados das mãos de leigos”13, reconhecendo essas nomeações apenas quando não
fossem simoníacas: precisamente o que não ocorria na Germânia.
Em 1075, o Papa divulgou um documento que passou para a História como uma
das mais importantes formulações teóricas acerca dos termos em que deveriam coexistir
os dois poderes, firmando-se como fiel demonstração da autonomia e da autoridade do
pontífice máximo do Papado: a Dictatus Papae.
O fato que gerou a querela entre Gregório VII e Henrique IV, contudo, ocorreu
após a divulgação da Dictatus Papae, e fora relativo ao bispado de Milão. Após a
nomeação de Tedaldo por Henrique IV, contrariando os apelos dos bispos e do Papa para
a nomeação de Atto, o imperador convocou uma assembléia em Worms, e junto aos seus
11Tal como afirmam KNOWLES Y OBOLENSKY: “Mas na Germânia a simonia tinha
reaparecido com toda a força, durante a regência da imperatriz Inês, na minoridade de Henrique IV. Bispados e abadias eram postosà venda no palácio real, e todas as nomeações de bispos na Germânia eram feitas em nome do rei. Alexandre II não opôs uma resistência clara.” Ibid., 188.
12 Id. 13 Ibid.,189.
14
conselheiros e aos bispos contrários à Gregório VII enviou uma carta ao Papa
desqualificando-o como representante máximo do Pontificado:
Henrique, rei não por usurpação, mas pela piedosa ordenação de Deus, a Hildebrando, agora não mais Papa, mas falso monge: Vós mereceis uma saudação como esta por causa da confusão que haveis causado; por quererdes, deixando intocadas as ordens da Igreja, fazê-la participante da dúvida ao invés da honra, da maldição ao invés da benção.14
Isto custou-lhe a excomunhão, e em decorrência o imperador fora destituído de
sua autoridade temporal e os súditos libertados de seu dever para com o imperador:
...A mim é dado por tua graça o poder de ligar e desligar no Céu e sobre a Terra.
Portanto, confiando neste direito, e pela honra e defesa de tua Igreja, em nome de Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho, e Espírito Santo, pelo teu poder e autoridade, eu deponho o rei Henrique, filho do imperador Henrique, que se rebelou contra a tua Igreja com audácia inaudita, do governo sobre todo o reino da Alemanha e Itália, e desobrigo todos os homens cristãos da fidelidade que juraram ou possam jurar a ele, e proíbo qualquer um de servi-lo como rei.15
Apesar do pedido de perdão feito por Henrique IV, posteriormente, e sua
concessão pelo Papa, as querelas entre Império e Papado atravessaram séculos
encontrando ainda no século XIV sua mais forte expressão na irresignação de Bonifácio
VIII, que culminou no cisma do ocidente.
1.4.2 A presença da teoria dos dois gládios na argumentação dos atores históricos
diretamente ligados à Querela das Investiduras
Além do desenrolar factual da Querela das Investiduras, importa a transcrição e
análise dos principais documentos nela elaborados, no intuito de se compreender de que
forma a teoria gelasiana foi abordada, e se foi abordada.
14 PEDRERO-SÁNCHEZ, 129. 15 Ibid., 131 - 132
15
Para tanto, serão utilizados os seguintes documentos: Dictatus Papae, de
1075, a carta de Henrique IV a Gregório VII, de 1076, e o documento relativo à deposição
de Henrique IV por Gregório VII.
O primeiro deles, o decreto intitulado Dictatus Papae, traz no bojo uma série de
27 medidas impositivas, guardando em si um sentido intrínseco: a firmação da autoridade
pontifícia e a centralização interna das relações travadas no interior do Papado.
Em relação à centralização interna destacam-se as medidas assim enumeradas: 4,
16, 17, 18, 19, 20. Dentre essas, uma toma relevo:
4 Que um enviado seu, ainda que seja inferior em grau, tem preeminência sobre todos os bispos em um concílio e pode pronunciar sentença de deposição contra eles16.
Por meio desse dispositivo, o Papa Gregório VII estipulou o grau máximo da
hierarquia eclesiástica, pois pode um seu delegado subverter a hierarquia para intervir em
seu nome, proferindo sentença superior a qualquer outra emanada dos demais clérigos: a
autoridade última é ele.
No que se refere, propriamente, à relação do Papado com o Império há
inicialmente a estipulação da idéia de que o legado romano da universalidade pode apenas
ser legitimamente encontrado na Igreja Romana:
1 Que só a Igreja Romana foi fundada por Deus
2 Que, portanto, só o pontífice romano tem direito de chamar-se universal
Note-se que a universalidade do Império Romano tinha por base a possibilidade
de aplicabilidade do direito romano a todo o território conquistado (o direito romano era
aplicado mesmo quando não incidia sobre algumas regiões conquistadas, pois tal
possibilidade de abstenção de aplicabilidade da norma jurídica romana era possibilitada
16 Ibid., 128.
16
pelo direito romano, por meio do reconhecimento da existência de outro corpo
jurídico que se poderia preservar)17.
A universalidade requisitada pelo pontífice tem por base a cristandade. Assim a
instituição fundada por Deus fora a Igreja Romana, que por interpretar e dogmatizar a
palavra divina, arrogava a si a titularidade de universal.
Dois outros dispositivos dizem respeito à firmação da unidade institucional cristã
e da autonomia dessa instituição face ao Império. São especialmente dirigidos à
contenção das investiduras laicas:
3 Que só ele pode depor ou estabelecer bispos
13 Que lhe é lícito, segundo a necessidade, trasladar os bispos de sede a sede18
A teoria dos dois gládios do poder está implícita a esses dispositivos normativos,
pois o Papa nada mais fez que delimitar as matérias de competência do poder espiritual e
do temporal. Num momento histórico em que a eleição dos bispos e a distribuição dos
mesmos no espaço organizativo cristão era uma prerrogativa dos governantes laicos,
fundamentos no costume. Aqui houve um conflito de competências, pois tanto um quanto
outro poder se julgava legitimado para regrar tal matéria.
Por fim, cabe salientar dois outros dispositivos normativos relativos à firmação da
superioridade do poder espiritual:
20 Que ninguém ouse condenar quem apele à Santa Sé;
27 Que o pontífice pode liberar os súditos da fidelidade a um monarca iníquo19
No primeiro deles, nota-se que havia uma preocupação por parte do Papa em
firmar seu poder de julgar face aos demais tribunais laicos, legitimando a Santa Sé como
17 Id. 18 Id. 19 Ibid., 128 - 129
17
espaço judicial intocável em relação ao julgamento das questões referentes às
matérias de sua competência.
Já o segundo é ainda mais sugestivo, pois estipula o direito do pontífice de
destituir o rei de sua função. Ora, não só o poder espiritual era quem conferia – de acordo
com a teoria de Hincmar – legitimidade ao temporal, devido ao fato de ser por meio dele
que o governante laico se via revestido do poder temporal - essa é a idéia que circunda a
noção de sagração - mas teria ainda a prerrogativa de extinguir o exercício de tal poder
por um rei ou imperador qualquer. È certo que tais medidas visavam a justificação da
supremacia do poder espiritual face ao temporal, estruturando-se na nos conceitos
basilares sobre o poder, que estão esboçados na teoria gelasiana.
Henrique IV, por sua vez, diante da possibilidade de ver algumas de suas
atribuições usurpadas pelo Papa, reagiu recusando-se a reconhecer Gregório VII como
Papa, utilizando-se da mesma estrutura conceptual gelasiana da qual lançara mão o Papa
na defesa das prerrogativas do pontífice:
Mas vós interpretastes nossa humildade como medo, e então ficastes encorajado a investir mesmo contra o poder real, a nós outorgado por Deus. Ousastes ameaçar, tomar a realeza de nossas mãos, como se nós a tivéssemos recebido de vós, como se a realeza e o império estivessem em vossas mãos e não nas de Deus.20
Nesse trecho da carta que enviou à Gregório VII, em 1076, fica evidente a
concepção de Henrique IV de que existem dois poderes que governam a Cidade dos
Homens, e que a origem de ambos é divina. Destaca-se, contudo, que ele se recusou a
conceber o Papa como intermediário na relação de delegação do poder temporal
promovida por Deus em nome dos reis e imperadores, considerando a pretensão do
pontífice ilegítima, tal qual se nota em sua argumentação:
Vós atingistes também a mim que, embora sem merecê-lo, fui sagrado rei entre os escolhidos. Este erro fizeste-o comigo, pois com a tradição que os santos padres nos ensinaram, devo ser
20 Ibid., 130.
18
julgado somente por Deus e não serei deposto por nenhum crime que não seja – que isto não ocorra – o de desviar-me da Fé.21
Não menos utilizada foi a teoria dos dois gládios na carta de deposição de
Henrique IV:
Entretanto, por teu favor, não por quaisquer artimanhas minhas, creio que é e foi tua vontade que o povo cristão, especialmente confiado a ti, deva render obediência a mim, teu representante especialmente constituído. A mim é dado por tua graça o poder de ligar e desligar no Céu e sobre a Terra.22
Ao ser atacado por Henrique IV na legitimidade de seu pontificado, Gregório VII
tratou de firmar a idéia de que fora legitimamente investido no poder espiritual por Deus,
e que tal poder possuía a prerrogativa de abençoar o detentor do gládio temporal, bem
como o direito de depô-lo.
Nota-se, portanto, que a teoria gelasiana acerca do poder fora largamente
utilizada na defesa da autonomia e da singularidade dessas duas grandes instituições, bem
como em suas tentativas de sobreporem-se umas sobre as outras. Figura, pois, como um
princípio norteador da sistematização da idéia de poder no período medieval, o qual
esteve presente na organização jurídica interna às instituições, bem como na definição de
sua especificidade e autonomia no quadro das relações travadas entre as instituições.
Tal teoria foi largamente utilizada, ainda, em períodos posteriores ao ora
analisado, pois figurou como importante elemento de reflexão para as pretensões de
Bonifácio VIII, no ano ?, bem como esteve presente nas formulações dos teóricos
defensores do poder espiritual (guelfos) e do poder temporal (guibelinos), tais como
Marsílio de Pádua e Dante Aliguiere.
Embora de peso discutível no seio das relações políticas anteriores à Querela das
Investiduras, foi quando teve sua formulação na teoria gelasiana e um tênue
aprimoramento na teoria de Hincmar de Reims.
21 Id. 22 Ibid., 131.
19
A Querela das Investiduras,entretanto, deu-lhe um vigor antes não visto.
Serviu como premissa às argumentações do Imperador e do Papa, e, principalmente,
como princípio organizativo dessas duas instituições, que passaram a emitir normas
jurídicas, sob forma legal, no intuito de promover uma coesão interna e de construir sua
singularidade institucional no amplo quadro de relações políticas que tinham lugar na
Europa Ocidental Cristã.
O direito legislado, portanto, passa a constituir-se como principal instrumento de
organização institucional, estruturando suas regras a partir das premissas fornecidas pela
teoria das duas glebas. O direito, assim, passa a assumir um papel fundamental no
exercício desses dois poderes; dentro desse contexto pode-se perceber as motivações que
levaram inúmeros medievos a aprimorarem o direito por meio do estudo do direito
romano, direito este que será assimilado tanto pelo Papado quanto pelo Império.
20
2 O DIREITO LEGISLADO E AS NASCENTES INSTITUIÇÕES
Pode-se dizer que o início do século XII, marcado pela Querela das Investiduras,
foi o período em que o Papado e o Império iniciaram grande esforço no tocante à
construção de sólidas instituições políticas, dotadas de singularidade e de prerrogativas
específicas relativas ao exercício do poder que lhes correspondia.
Compreensível, portanto, o esforço de Gregório VII no intuito de organizar
internamente uma hierarquia de poder, cujo pico era precisamente o pontífice máximo da
Igreja, chamando para si a prerrogativa de legislar acerca das questões atinentes ao poder
espiritual.
Como já se viu, não foi apenas necessário firmar-se como autoridade máxima no
interior da Igreja, pois o Papado era partícipe da concepção patrística unitária de
sociedade, a qual contemplava a existência de poderes harmônicos e complementares no
seio da cristandade. Assim, era preciso dialogar com a existência do poder temporal e, em
especial, com concretas intervenções deste no âmbito de competência do poder espiritual.
Estipular regras que pretendessem salvaguardar o bom exercício do poder espiritual,
portanto, era imprescindível, especialmente no tocante ao relacionamento entre os
poderes.
Gregório VII, contudo, não apenas criou regras de proteção à competência do
poder espiritual, como procurou hierarquizar a relação entre os dois poderes, arrogando-se
o direito de ser titular da prerrogativa de destituir a autoridade temporal de seu legado
divino, quebrando, assim, o equilíbrio gelasiano, e colocando o poder temporal sob a
tutela do poder espiritual. De acordo com esse pontífice, a autoridade não recebia
diretamente o gládio temporal de Deus, mas sua legitimidade estava à autoridade do
pontífice.
Não menos significativa foi a resposta de Henrique IV, que procurou, desde logo,
retomar a teoria gelasiana do poder no intuito de salvaguardar o exercício do poder
temporal face ao espiritual, reclamando o restabelecimento do equilíbrio gelasiano, e
21
firmando a idéia de ser a autoridade temporal destituída de qualquer submissão ao
pontífice nas questões relativas a sua competência.
Importante notar que esse esforço de delimitar os parâmetros de atuação desses
dois poderes impulsionou o uso do direito legislado, como forma de organização
institucional, tomando essa forma de expressão do direito importância renovada, pois
embora presente em momentos anteriores no período medieval , não tivera difusão
semelhante a que teve depois da Querela das Investiduras.
Não se infere dessa afirmação, entretanto, que a renovada adoção dessa fonte de
direito tenha sobrepujado o costume, que, de acordo com os vários registros constantes da
historiografia jurídica, permaneceu sendo a principal fonte de direito desse período.
Ver-se-á, doravante, um tênue esboço acerca da intensificação do uso do direito
legislado pelo Papado e pelo Império, o qual fora realizado a partir do levantamento das
fontes históricas de direito nas principais obras de historiografia jurídica portuguesa.
2.1 O CONCEITO DE LEI NO PERÍODO MEDIEVAL E SUAS IMPLICAÇÕES NA
ATIVIDADE LEGISLATIVA E NO EXERCÍCIO DO PODER DOS DOIS
GLÁDIOS
Convém antes analisar, contudo, como essa especial forma de expressão do
direito, a lei, era compreendida pelos contemporâneos. Tal investigação demanda a
percepção de que as autoridades espiritual e a temporal estavam atreladas à concepção
unitária de sociedade elaborada pela filosofia patrística, bem como à construção
ideológica de um direito natural, que fora recebida da Antigüidade Clássica e modificada
pelos filósofos do cristianismo.
Trata-se de verificar de que forma o uso do direito legislado encontrava amparo e
justificativa nas doutrinas cristãs para uma compreensão mais específica do significado da
lei, e, principalmente, do ato de legislar.
22
A concepção agostiniana do direito, embora elaborada no princípio da Idade
Média, era ainda significativo aporte teórico para as autoridades no século XII. A
importância crescente da legislação no exercício do poder espiritual e temporal após a
Querela das Investiduras não apenas se infere da análise quantitativa das leis, como
também do espaço a ela legado nas obras de outro ícone do pensamento cristão, São
Tomás de Aquino.
O período de que trata esse estudo, contudo, não contempla aquele em que foram
formuladas as obras desse importante pensador cristão, pois suas idéias devem ser
compreendidas a partir da análise do conturbado século XIV. Isso levou o presente estudo
monográfico a cingir-se à obra agostiniana, embora o século XII e o XIII levem no bojo
os germes do quadro político trecentista, no qual viveu São Tomás.
Assim, para Santo Agostinho, existia uma noção de justiça suprema, de acordo
com os valores oriundos da palavra revelada. Nesse sentido, coexistiam três espécies de
lei: a divina, a natural e a humana.
A primeira dentre elas era oriunda da vontade divina, portadora de idéias
imutáveis: são “...os modelos eternos das coisas na mente divina”1. A lei natural, por sua
vez, seria a manifestação da Lei eterna na consciência humana, de modo que cada ser
humano fosse capaz de distinguir o bem do mal.
A lei humana, por sua vez, seria uma derivação da lei natural. Como tal, seria
portadora dos valores imutáveis impostos pela Lei eterna, mas sua configuração, seu teor,
poderia modificar-se, tal como a Lei natural, que traria no bojo comandos diferentes de
acordo a situação a regrar. Nesse tocante, TRUYOL elaborou um exemplo: “A legislação
pode modificar-se, à semelhança, por exemplo, do que acontece com o regímen alimentar,
que a medicina altera consoante se trate de pessoa sã ou doente.” Destaca-se, contudo,
que embora possa a Lei diferenciar-se não se altera sua finalidade: a de conduzir o ser
humano à Salvação, a de preservar e impor os valores cristãos.
1 TRUYOL Y SERRA, A. História da filosofia do direito e do estado. Portugal : Coleção
Estudo Geral, 1985. p. 216.
23
Assim, vê-se uma concepção de direito natural dialogar com outra, a de direito
positivado, ou seja, embora exista um direito imutável, expressado pelos valores cristãos
intrínsecos à lei divina, há um direito mutável, elaborado ao sabor das concretas relações
humanas. Não há incompatibilidade entre esses dois direitos, mas complementaridade,
pois a lei humana muda porque versa acerca de coisas mutáveis, coisas essas suscetíveis
de serem conduzidas a um valor universal. No exemplo de TRUYOL esse valor é a vida,
porém duas regras aparentemente contraditórias surgem para regrar a manutenção desse
valor. Regra-se diferentemente o ato de alimentar, consoante se trate de pessoa sã ou
doente, porém as duas regras têm um só objetivo, o de saciar a fome para a manutenção
da vida.
Importante notar que a Salvação pode ser alcançada individualmente pelo ser
humano, por meio de sua liberdade, de sua vontade de praticar atos em consonância ou
não com os princípios cristãos Nesse sentido, VILANI diz que Santo Agostinho não
ignorou a importância da coletividade, e a relevância das instituições políticas no
processo de condução da humanidade, pois a expressão jurídica dessas instituições
permitia ao ser humano conhecer mais precisamente o bem e o mal. Desse modo,
justifica-se a legitimidade dos representantes do poder espiritual e do temporal na
condução da humanidade à Salvação.
A lei, de acordo com a acepção das teorias cristãs, portanto, seria a expressão da
intervenção das autoridades no curso das relações sociais espontâneas, no intuito de
mediar os conflitos entre os homens de maneira a adequá-los a valores ditados pela
religião. Seria, portanto, não apenas a expressão das autoridades, mas a expressão legível
de um direito natural à semelhança do direito divino. Essa intervenção, por sua vez, pode
ser realizada por meio de uma norma jurídica elaborada pelas autoridades, de cunho
inovador, principiológico e genérico, ou meramente ser resultado de uma adoção de
normas costumeiras no seio do direito emanado dessas autoridades, ou seja, o legislador
não cria a Lei, mas deriva de sua vontade a validade e imposição dessa norma jurídica.
24
Legislar significa conduzir o Direito em uma direção, no caso ao cumprimento da
doutrina cristã.
Compreender a receptividade do costume como conteúdo de uma norma jurídica
com força de lei no período medieval demanda a percepção de que o final do Império
Romano fora marcado pelas invasões germânicas, por povos que traziam outra concepção
do direito.
Destaca-se, dentre as características do direito das tribos germânicas, a
proeminência do costume como fonte de direito, a qual fora adotada, largamente, pelos
reinos feudais na Idade Média.
O costume, nas palavras de ASCENSÃO, é dotado de dois elementos: o uso e a
convicção de obrigatoriedade:
Um uso é simplesmente uma prática social reiterada. A afirmação de sua existência resulta de uma mera observação de facto. E daqui logo podemos concluir que há usos que não interessam ao direito, pois certamente há práticas sociais que não têm valor jurídico... Fala-se normalmente na opinio juris vel nessecitatis, querendo-se significar que os membros daquele circulo social devem ter a consciência, mais ou menos difusa, de que deve ser assim, de que há uma obrigatoriedade naquela prática, de tal modo que não deriva só da cortesia ou da rotina.2
O período medieval fora marcado, indubitavelmente, pela adoção do costume
como principal fonte do direito, tal como a tradição jurídica das tribos germânicas.
O a intensificação do uso do direito legislado denota clara intenção de
intervenção por parte das autoridades no direito vigente, modificando-o e conduzindo-o a
determinados fins. Legitimados estavam para legislar, portanto, as autoridades, contudo
esse ato estava atrelado à condução dos homens à Salvação.
A atividade legislativa posterior à Querela das Investiduras, contudo, é marcada
menos pela formulação de normas legais principiológicas, que por aquelas surgidas da
homologação ou proibição de determinada norma costumeira.
2 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1978. p. 219.
25
Vê-se, portanto, que a atenção voltada ao direito legislado dá-se pela crescente
firmação da autonomia e singularidade das nascentes instituições revestidas dos poderes
espiritual e temporal.
2.2 ATIVIDADE LEGISLATIVA DA IGREJA
Vislumbra-se no início do século XI, portanto, um movimento de resgate da
atividade legislativa por parte do Papado, no intuito de construir um discurso jurídico
capaz de tornar legível a legitimação do poder espiritual de que era revestido, destacando
ainda mais sua singularidade, especificidade, e proeminência face ao poder temporal. Vê-
se, pois, um significativo esforço do pontífice máximo em organizar hierarquicamente a
Igreja, e de se conceber no pico da relação hierárquica entre os poderes espiritual e
temporal. São os primeiros traços da organização institucional da Igreja.
Não data do século XI, contudo, o uso do direito legislado pela Igreja, pois sua
organização primitiva já contemplava essa forma de expressão do direito como
fundamental fonte de direito eclesiástico. Desse modo, têm lugar as leis nos concílios
ecúmenicos, nacionais e provinciais, contudo a lei não havia assumido as características
que lhe dará Gregório VII, em especial o cunho de norma de direito genérica. Embora tais
leis possuíssem alcance restrito às questões levantadas nos concílios, tomando a
conotação de uma responsa a uma questão controvertida, não deixavam de constituir-se
em fruto de atividade legislativa, posto delas emanarem normas jurídicas intencionais,
modificando, por vezes, o direito vigente.
Em Portugal, tais concílios tiveram lugar antes mesmo da formação do Condado
portucalense, e constituíram importante fonte do direito português no período de
formação do Estado Português visto serem ainda realizados em meados do século XII, tal
como aponta CAETANO:
26
Na Península tiveram grande relevo, sob a monarquia visigótica, os concílios nacionais de Toledo, cuja legislação abrangeu matérias eclesiásticas e civis, muitas vezes designada na Idade Média por lex toletana. Houve importantíssimos concílios em Braga, nos séculos V a VII, sobretudo durante o reino dos suevos. Após a Reconsquista tiveram no nosso território grande projecção as deliberações dos concílios nacionais de Leão (1017, 1020 e 1091) e de Coiança (1050).3 A Dictatus Papae inova ao submeter as inúmeras decisões normativas emanadas
desses concílios à concordância do pontífice máximo, tal como se nota no sétimo
dispositivo normativo desse decreto papal:
4 Que um enviado seu, ainda que seja inferior em grau, tem preeminência sobre todos os bispos em um concílio e pode pronunciar sentença de deposição contra eles4
Não menos inovador era o dispositivo de número sete da Dictatus Papae, o qual
atribui ao pontífice a prerrogativa exclusiva de promulgar leis inovadoras, destituindo os
concílios de tal tarefa e verticalizando a validade da norma legal:
7 Que só a ele é lícito promulgar novas leis de acordo com as necessidades do tempo, reunir novas congregações, converter em abadia um canoninato e vice-versa, dividir um bispado rico e unir vários pobres.5
A generalidade da norma jurídica legal emanada do pontífice encontra-se
normatizada em dois dos dispositivos da Dictatus Papae: no já citado número 2, no qual o
Papa se arroga a titularidade de universal – entenda-se universal a Cristandade, e nos
também já citados dispositivos de número quatro e sete, nos quais coloca a validade da
norma jurídica sujeita a sua promulgação, bem como coloca a interpretação da norma
jurídica pelo pontíce, ou por um seu enviado, acima da interpretação dada pelos concílios.
3 CAETANO, Marcello. História do direito português. Fontes: direito público (1140 – 1495).
Lisboa: Editorial Verbo, [19--]. p. 242. 4 PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da idade média: textos e testemunhas.
São Paulo: Editora UNESP, 2000. p.128. 5 Id.
27
Esse esforço em verticalizar a validação do direito pelo pontífice traz no bojo a
preocupação acerca da diversidade normativa da estrutura primitiva da Igreja, sendo
necessário a elaboração de critérios únicos de validação da norma jurídica eclesiástica no
intuito de padronizar o direito eclesiástico, ou pelo menos transformá-lo num conjunto de
normas o qual era possível ao pontífice conhecer, bem como às pessoas às quais ele se
aplicava.
Antes mesmo desse renovado interesse pela organização do direito eclesiástico
algumas compilações de Direito Canônico tiveram lugar nesse período, destacando-se a
Capitula Martini, de S. Martinho de Braga, e a Collectio Hispana, atribuída ao Santo
Isidoro de Sevilha, contudo tais compilações eram parciais, abrangendo um número
praticamente insignificante do direito eclesiástico em vigor.
Foi entre os anos de 1139 e 1150 – portanto, num momento posterior à Querela
das Investiduras - que foi feita a compilação de maior importância no período.
Empreendida por um monge de Bolonha, chamado Graciano, tratava-se de uma
compilação universal, denominada, vulgarmente Decretum Gratiani, composto de fontes
eclesiásticas de diferentes origens, mas principalmente de decisões de concílios e
decretais.
Não obstante a presença significativa de fontes de direito eclesiástico de natureza
legal anteriores ao Decreto de Graciano, fora com sua formulação que se dotou o direito
eclesiástico, mais intensamente, de um conjunto de normas legais que poderiam ser mais
facilmente aplicadas às pessoas que a elas estavam submetidas, portanto, à Europa
Ocidental cristã.
O surgimento dessa compilação, portanto, atesta a tendência ininterrupta da Igreja
em utilizar-se de um direito organizado no exercício do poder espiritual, seja interna ou
externamente à Igreja. Organizar o direito eclesiástico era necessário, em especial após o
crescente número de decretais que tivera lugar após a Reforma Gregoriana:
28
A obra e o ensino de Graciano iniciaram e facilitaram a ascensão do direito canônico a partir do século XII, mas isto fora causado acima de tudo por uma verdadeira explosão da legislação eclesiástica, que já começara na época de Graciano. Esta legislação incluía os cânones dos concílios, mas era feita sobretudo de decretais pontifícias. Enaquanto nenhuma decretal fora promulgada entre 891 d.C. e meados do século XI (o começo da Reforma Gregoriana), já havia quase duas mil no período que vai do pontificado de Alexandre III (1159 –81) ao de Gregório IX (1227 – 41).6
Vê-se, pois, que embora a atividade legislativa estivesse latente ao exercício do
poder espiritual, em meio às decisões decorrentes dos concílios, tivera maior força a partir
da Reforma Gregoriana, constituindo fonte de vital importância no ulterior
desenvolvimento do Direito Canônico.
Note-se que as decretais eram fruto da vontade imperativa do pontífice máximo
da Igreja, enquanto as resoluções dos concílios ecúmenicos eram orientações normativas
eclesiásticas dispersas, ou seja, emanadas dos diversos bispados constitutivos da
organização da Igreja primitiva.
Desse modo, pode-se perceber os efeitos da centralização interna promovida pela
Reforma Gregoriana, e suas implicações no direito eclesiástico: o Direito Canônico não
mais exprimia um conjunto de soluções jurídicas para o caso concreto transformadas em
lei, mas também e principalmente de princípios normativos que emanavam do poder do
pontífice.
2.2.1 O Direito Romano como aporte à legislação eclesiástica
O renascimento do Direito Romano fora, indubitavelmente, um dos principais
acontecimentos do início do século XII. Trata-se do reencontro com os principais textos
jurídicos romanos, do qual resultou um intenso movimento intelectual entorno do seu
estudo e de seu aprimoramento.
6 COENAGEN, R.C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. 88 – 89.
29
O presente trabalho optou por abordar esse acontecimento pela primeira vez
apenas nessa seção para valer-se de uma estratégia narrativa que tenciona minimizar o
alto relevo que fora dado ao Direito Romano no período medieval, especialmente por
ocasião de seu renascimento, abordando-o tal como se compreende ter sido seu lugar no
conjunto de fontes de direito, do início do século XII até meado do século XIII.
Apesar da profunda relevância do direito romano no período medieval, não se
pode olvidar que esse período histórico possuiu uma dinâmica política e uma estruturação
jurídico-normativa que não permite reduzir a sua história jurídica à história do direito
romano.
Não se perde de vista, portanto, a abordagem histórica até agora delineada, que
situou o direito baixo-medieval como fruto de uma construção conceptual acerca do poder
iniciada em Santo Agostinho e Gelásio I, bem como resultado da afirmação da
singularidade institucional do Império e do Papado na Querela das Investiduras por meio
do aprimoramento do aparato jurídico, o que incluiu a intensificação da atividade
legislativa por parte do pontífice e do imperador, bem como a organização que lhe
sobreveio do direito eclesiástico disperso em resolução de concílios regionais e decretais,
tal como se apresenta a compilação de Graciano.
O Direito Romano, embora não de todo perdido por ocasião das invasões
germânicas7, deve ser compreendido no contexto de aprimoramento do direito levado a
cabo desde a Reforma Gregoriana.
Suas qualidades eram inúmeras aos olhos dos baixo-medievos, seja por ser fruto
de uma centralização do poder imperial na história dos romanos, seja por ser um conjunto
de inúmeras normas jurídicas distribuídas sistematicamente num todo coeso e coerente,
bem como por ter sido o resultado de uma larga experiência jurídica romana.
7 Embora o Direito Romano não tenha deixado de estar presente na península Ibérica, bem como em
boa parte da Europa Ocidental, manteve-se mais ou menos intacto na região hoje conhecida como Itália, porém na região peninsular referida não teve mais do que sua preservação diluída na cultura jurídica costumeira.
30
Desse modo, trata-se de delinear, por um lado, a manutenção do Direito Romano
após a derrocada do Império Romano, e por outro, perceber a especificidade do
movimento intelectual do início do século XII.
Assim, mesmo quando em plena vigência no Império Romano, o direito pouco
pôde transpassar os limites da adaptabilidade de suas normas às províncias a que se
aplicavam, sendo necessário, dado as diferenças culturais entre o povo romano, que o
elaborou, e os povos das províncias a que era aplicado, uma constante interpretação, que
fazia da norma romana inteligível àqueles povos. Isto gerou, inevitavelmente, uma
deformação no Direito Romano propriamente dito, gerando uma acepção que não lhe
correspondia perfeitamente, o denominado Direito Romano Vulgar.
Ainda com as invasões bárbaras, e a vigência do direito costumeiro, do qual regra
principal era a da personalidade das leis, os visigodos fizeram uma compilação do Direito
Romano em 506, sob ordens do rei Alarico II, com a finalidade de atribuir aos romanos
que no reino visigodo demandassem aplicação do direito, a aplicabilidade do direito do
povo de sua origem. Surge, então, a Lex Romana Wisigothorum, uma compilação de
parcela do direito romano, abrangendo tanto normas de Direito Público quanto de
Privado.
Afora essa existência relativa, ou seja, de menção direta ao Direito Romano pelo
direito vigente nos reinos, sobreviveu o direito romano como orientação normativa diluída
nas normas costumeiras, o que torna difícil sua caracterização como tal, mesmo para os
contemporâneos.
Desse modo, no início do século XII, quando se fala em renascimento do Direito
Romano trata-se da recuperação intensa de textos jurídicos romanos, de seu estudo e
sistematização.
Foi em Bolonha, na Itália, que se iniciou esse movimento intelectual, tendo na
figura de Irnério, entre 1111 e 1125 o seu precursor, inaugurando uma escola cujo
primeiro método desenvolvido para o estudo dos textos fora a glosa; denominada,
portanto, de escola dos glosadores. O estudo acerca do Direito Romano, contudo,
31
encontrou fervorosos adeptos mesmo entre os humanistas, do século XVI, sendo ainda
precedidos pelos comentadores, na metade do século XIII.
O Direito Romano passara, desde seu renascimento, a significar aprimoramento
do aparato jurídico. Influenciou sobremaneira a formação do Direito Canônico, bem como
o direito oriundo do Sacro Império Romano Germânico e o direito dos diversos reinos que
compunham a Cristandade.
O Decreto de Graciano, para além de uma compilação de normas jurídicas
eclesiásticas, continha a disposição e um estudo sistemático das mesmas, aos moldes de
um Corpus. Lembre-se que tal obra não fora fruto de uma atividade política de Graciano,
senão foi apresentada como um estudo na Escola de Bolonha.
Durante o período de intensa produção legislativa dos pontífices, com a emissão
de decretais, várias coleções sistemáticas dessas fontes de direito legislado surgiram,
destacando-se, no ano de 1230, o Líber decretalium extra Decreta vagantium, uma
coletânea de constituições e decretais promulgadas desde a formulação do Decreto de
Graciano, pelo Capelão de Gregório IX, Ramón de Peñaforte.
Em torno do Decreto e da Líber Extra surgiram vários estudos doutrinários,
destacando-se os realizados por Johannes Teutonicus em relação ao Decreto e os estudos
de Vicentius Hispanus acerca da Líber Extra.
Outras decretais surgiram após essas coleções, sendo coligidas, principalmente,
por Bonifácio VIII e Clemente V, respectivamente, a Líber Sextus e as Constitutiones
Clementinae.
Finalmente, no século XV, todas as coleções oficiais de decretais foram reunidas
em um grande Corpus de normas jurídicas eclesiásticas, o Corpus iuris canonici.
O Direito Canônico, portanto, desde a intensificação da legislação eclesiástica,
bem como do estudo do Direito Romano, constituiu um sólido corpo de normas jurídicas
que versavam acerca de sua organização interna, assim como de questões relativas ao
poder espiritual, externas à organização institucional.
32
2.3 ATIVIDADE LEGISLATIVA DO IMPÉRIO
A par do crescente interesse do Pontífice em legislar e aprimorar o direito
eclesiástico, encontra-se o imperador, também preocupado em desenvolver o direito para
um exercício mais eficaz do poder temporal. Devido ao grande período que abrange a
Idade Média, bem como sua incessante retomada de algumas concepções políticas
romanas, faz-se necessário delimitar a noção de Império que sobre a qual ora o trabalho se
debruça.
O Império envolvido na Querela das Investiduras fora o denominado Sacro
Império Romano Germânico, o qual já se teve oportunidade de referir que não possuía um
poder de fato sobre grande extensão territorial européia.
A Querela entra Papado e Império, do qual resulta uma retomada da teoria
gelasiana do poder, tendeu a reforçar a singularidade e a autonomia dos dois poderes,
temporal e espiritual, por vezes provocando uma cisão artificial entre Império e Igreja.
Note-se que a retomada da acepção de Império pelas autoridades eclesiásticas e
temporais tendia a conceber o Império como que dotado de uma universalidade composta
de vários elementos. Tanto o poder espiritual, quanto o poder temporal eram partícipes
dessa universalidade, complementando-se, incumbidos, cada qual em seu terreno, da
condução da humanidade à Salvação.
É certo que a firmação do poder temporal, do poder imperial, tivera um
correspondente real na figura do Sacro Império Romano Germânico, o que concorre para
uma idéia errônea acerca do Direito Romano que, embora seja concebido como o direito
do Império, o é por alusão ao Império Romano, onde surgiu. Assim, pode o Direito
Romano ser compreendido como o direito específico do Império Romano, bem como o
direito estudado e desenvolvido pelos juristas imperiais para a estruturação do direito
imperial (referente ao Sacro Império Romano Germânico).
Mesmo com essas ressalvas, pode-se apontar algumas formulações normativas de
cunho legal em algumas manifestações imperiais durante a Idade Média, corroborando
33
idéia paralela àquela com a qual se analisou a formação do direito legislado do Papado, ou
seja, a de que existiram leis imperiais anteriores à Reforma Gregoriana, porém não
partícipes do contexto no qual se renovou o interesse do Império pelo direito legislado,
após a Querela das Investiduras.
Assim, tem-se uma significativa atividade legislativa no Império Carolíngeo, com
a promulgação de inúmeras Capitulares, e em especial o Líber Augustalis, promulgado
em 1231 por Frederico II, bem como as Siete Partidas, uma compilação de Direito
Romano feita no reinado de Afonso X de Castela.
Serão as constituições fredericianas grande palco de debate no esforço dos
historiadores do direito em identificar as possíveis fontes de direito de determinadas leis
gerais emanadas do poder régio. Tal interesse só vem a corroborar a tese que procura
identificar o Direito Romano com o Direito do Sacro Império Romano Germânico, que
dotado de universalidade, supostamente faria incidir a aplicação de suas normas nas
disposições legais régias.
2.3.1 O Direito Romano como aporte à legislação imperial
Tal como ocorrera com a legislação eclesiástica, tivera a lei imperial grande
influência do Direito Romano, mas esse não apenas influenciara nas leis imperiais, como
servia de norma legal de aplicação direta pelo poder temporal do Sacro Império Romano
Germânico, embora concorresse à formulação de vários estatutos, no final do Século XII
e início do XIII que tratassem do direito feudal, especialmente acerca do Direito Penal.
Do estudo do Direito Romano, a partir do início do século XII, surgiu o Corpus
iuris civili, composto por um conjunto de três compilações, baseadas no Código, no
Digesto, e nas Institutas, que embora constituído por essas três compilações datadas do
Império Romano sob o governo de Justiniano, sofrera substancial alteração em sua
estrutura original quando de sua sistematização no período medieval.
34
Desse modo, a atividade legislativa do Sacro Império Romano Germânico fora
não apenas influenciada pelo Direito Romano, mas fez de suas normas jurídicas as
normas legais do Império. Reforça-se, pois, que no sentido estrito, o Direito Romano
significava o direito legislado e coligido do Sacro Império Romano Germânico, porém em
sentido lato, significava o conjunto de normas jurídicas atreladas ao exercício do poder
temporal, o que incluía a aproximação do Direito Romano dos demais reinos europeus,
num movimento que ficou conhecido como recepção do Direito Romano.
2.4 DIREITO COMUM
O Direito Comum é uma expressão muito utilizada pelos historiadores do direito
no sentido de indicar um fenômeno normativo surgido no início do século XII que se
desenvolverá largamente nos séculos subseqüentes, muito embora sua importância tenha
entrado em declínio já mesmo no século XIV.
Tal expressão, contudo, carrega alguns sentidos que concorrem para caracterizá-
lo ora a partir de critérios emanados da analise literal dos textos justinianeus, promovida
pela escola dos glosadores, ora por critérios oriundos da leitura dos contemporâneos face
ao fenômeno dualista do poder medieval, bem como do direito, que seguia sua estrutura.
Convém ao presente trabalho, pois, partilhar do belíssimo estudo acerca do conceito de
Direito Comum realizado por MARQUES, o qual estabelece com precisão os sentidos
que tal expressão poderia ter aos olhos de seus contemporâneos.
Antes, entretanto, figura importante elemento de reflexão uma análise do sentido
que dá CAETANO à expressão, no intuito de averiguar em que sentido a adota,
problematizando-o face aos sentidos determinados por MARQUES.
CAETANO, assim, aponta para um sentido literal da expressão Direito Comum
em sua obra intitulada História do Direito Português, ao assim dissertar:
35
O Direito Canônico, sobretudo desde que a legislação pontifícia passa a ser a sua fonte principal e que se tornam conhecidas as grandes compilações, a partir de Graciano, é o primeiro Direito Comum a toda a Cristandade. Mas os licenciados por Bolonha e pelas outras grandes universidades européias dentro em pouco levam aos quatro cantos da Cristandade a notícia desse Direito, perfeitamente elaborado, alicerçado na razão, na natureza humana e numa riquíssima experiência ecumênica que é o Direito Romano justinianeu.8
Do sentido extraído desse trecho da obra de Caetano, tem-se o Direito Comum
significando um conjunto de normas jurídicas eclesiásticas universais de aplicabilidade a
toda a Cristandade, no tocante à organização interna da Igreja, bem como à
regulamentação das matérias de competência do poder espiritual externas à instituição; ou
seja, em relação a um direito marcado pela especificidade regional – resoluções
normativas dos diversos concílios - surge um Direito de vigência e validade que, no
âmbito da cristandade, não conhece fronteiras.
O autor aponta para o primeiro Direito que assumiu tal conotação, o Direito
Canônico, a partir da formulação das inúmeras compilações de normas jurídicas
eclesiásticas, aos moldes daquelas aqui já retratadas.
Posteriormente, retrata o conhecimento das diversas regiões européias acerca do
Direito Romano, colocando-o a par do Direito Canônico, na qualidade de norma jurídica
vigente e de validade para toda a Cristandade.
Desse trecho da obra de CAETANO, portanto, extrai-se que a expressão Direito
Comum refere-se a um conjunto de normas de validade e aplicabilidade comum a toda a
Cristandade.
MARQUES, entretanto, retrata muito bem o assunto ao afirmar que o conceito
de Direito Comum é equívoco, porque se presta a inúmeras interpretações:
Em suma, o conceito de ius commune é um conceito equívoco e pode assumir conteúdos diversos. O direito comum, stricto sensu, designa o direito romano; este é o seu núcleo fundamental. Lato senso, refere-se ao utrumque ius, a um sistema único de normas universais constituído pelo direito romano e pelo direito canônico. Sensu latíssimo, compreende, para além destes direitos, também a literatura jurídica e a jurisprudência que se foram acumulando à sua volta, assim como o direito feudal recebido no Corpus Iuris (Libri Feudorum). Fora desse
8 CAETANO, 338.
36
contexto, recorre-se à expressão ‘direito comum’ para designar o direito geral do reino em contraposição ao direito local.9
Desses três significados extraídos por MARQUES, adotar-se-á, doravante, o que
expressa com maior clareza a reprodução jurídica da estrutura política da Cristandade, ou
seja, a acepção que presta à expressão Direito Comum o sentido de ser um conjunto de
normas jurídicas universais composto pelo Direito Canônico e pelo Direito Romano: o
utrumque ius.
Assim, adota-se em parte o conceito de CAETANO, embora não se conhecerá por
comum o direito emanado apenas da Igreja, ou apenas do Império, somente por conceder-
lhes o caráter de validade universal face à Cristandade. O Direito Comum, pois,
compreende-se pela coexistência de dois sistemas de direito, emanados das duas grandes
instituições que, juntos, constituirão as principais fontes de Direito para a formulação do
Direito Régio, o qual se analisará doravante.
9 MARQUES, Mário Reis. História do direito português medieval e moderno. Figueira da
Foz: Reproset, 1997. p. 14.
37
3 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO RÉGIO PORTUGUÊS: AS LEIS GERAIS
DE 1211
Esse capítulo é dedicado à análise da formação do direito régio português no
início do século XIII. Cabe, contudo, retomar algumas idéias construídas nos capítulos
anteriores, a fim de melhor explicitar o lugar da análise feita adiante no conjunto do
presente texto.
Assim, o primeiro capítulo ocupou-se da estrutura conceptual do poder na
Idade Média. Viu-se que a concepção patrística acerca do mundo forneceu os pilares
sobre os quais iria se assentar a teoria gelasiana do poder. Desse modo, foi possível a
formulação teórica que dominou grande parte dos textos medievais dedicados à análise
dessa questão: a unidade do mundo, na acepção patrística, é oriunda do cristianismo,
de uma origem comum de todos os povos, do poder originário de Deus.
A teoria gelasiana, portanto, delineou a diversidade no interior da unidade
cristã, ou seja, distinguiu dois poderes (espiritual e temporal) no seio da Cidade
Terrena, derivados da autoridade primordial (Deus). A unidade pela qual se primou
não apenas se sustentava na origem divina do poder, como também no equilíbrio
existente entre os dois gládios, na complementaridade necessária entre eles; os dois
poderes, pois, juntos deveriam atuar no intuito de auxiliar a humanidade a alcançar a
Salvação.
A análise da teoria dos dois poderes foi necessária, tão-somente, para a
compreensão do contexto histórico (Reforma Gregoriana e Querela das Investiduras)
que deu origem ao denominado Direito Comum. Eis a razão do segundo capítulo.
Na querela entre Gregório VII e Henrique IV, nota-se que a teoria gelasiana
fora insistentemente referendada. Na argumentação do então pontífice e do imperador,
tomou relevo a preocupação de ambos em firmar a autonomia de seu poder. Esse
movimento não ficou a cargo apenas de formulações abstratas, mas tomou corpo na
intensificação do uso da legislação no exercício do poder do qual essas autoridades
estavam investidas.
38
A lei, portanto, fornecia os elementos necessários às pretensões do Papa e do
Imperador: era um meio pelo qual essas autoridades atestavam a validade do direito,
pelo qual intervinham diretamente no direito, moldando-o conforme seus interesses e
possibilidades. Uma fonte de direito legítima na acepção cristã de direito, da qual
passaram a usufruir com mais intensidade.
O direito institucional começou a tomar forma, portanto, delineando-se dois
conjuntos de normas, ligados, respectivamente, às autoridades que detinham os dois
gládios. Um direito oriundo do Papa, e outro do Imperador. Lembre-se, contudo, que
esses dois poderes apesar de distintos, são complementares. A essa idéia está ligado o
Direito Comum, e só assim se justifica a vigência de dois conjuntos de normas
jurídicas distintos a uma mesma comunidade. Esse era o direito da cristandade,
construído à semelhança das autoridades legitimadas por Deus ao governo da
humanidade.
O direito na baixa idade média, entretanto, não se resumia ao Direito Comum,
embora dialogasse com ele incessantemente. Outra fonte do direito disputava-lhe o
lugar, e figurava, indubitavelmente, como a mais importante dentre elas: o costume.
Não se deve olvidar que o período medieval foi marcado pela existência de um
poder descentralizado. Viu-se que mesmo no interior da Igreja a realidade era essa: o
Papado como uma dentre outras Sés da Igreja, bem como o Papado diluído em
bispados, cujo poder de decisão e autonomia era indiscutível.
Nesse contexto, a legislação foi importante não apenas para delimitar a ação
do poder temporal, mas para diminuir o grau de descentralização do poder no interior
da Igreja, centralizando na figura do Papa o poder exclusivo de alterar o direito.
Essa descentralização foi fruto do esfacelamento do Império Romano, e dos
vínculos de feudalidade que se formaram no interior da Europa Ocidental cristã. O
poder tinha como principal palco os vínculos de vassalidade, que não raro atribuíam ao
vassalo poderes de autogestão da justiça e da administração local de seus feudos.
Para o direito, esse quadro político não poderia provocar outra situação, senão
a de haver um conjunto de normas jurídicas diferente e específico para cada feudo que,
39
embora manipulado e controlado pelos senhores, estava assentado na tradição de cada
localidade.
O direito nos senhorios jurisdicionais, portanto, nascia, predominantemente,
do costume. Assim também ocorria com os nascentes Concelhos, que construíam seu
direito com base no costume local, e o firmavam nos Forais.
O rei medieval, pois, era partícipe desse contexto histórico e sensível a ele. Por
um lado, na qualidade de governante, partilhava das mudanças ocorridas com a
Reforma Gregoriana e com a Querela das Investiduras, nutrindo anseios de firmar
também sua autoridade, dotando seu poder de singularidade, autonomia, e
superioridade em relações aos demais poderes. Por outro lado, estava ligado
profundamente aos laços de vassalidade que constituíam a ossatura da política
medieval, o que lhe tolhia as intenções de centralização.
Pode-se distinguir, assim, dois campos de atuação do rei na tentativa de dotar
o poder régio de autonomia e superioridade: o campo externo ao reino, constituído
pelas relações do rei com as autoridades eclesiástica e imperial, e o campo interno ao
reino, no qual o rei travava relações políticas com os senhorios jurisdicionais e os
Concelhos.
Tal divisão não deve ser tomada com muito rigor, pois nem sempre as querelas
entre rei e Igreja dava-se num conflito direto daquele com o Papa, mas com um bispo
que no reino habitava. Figura como importante construção teórica, contudo, para se
compreender essas relações travadas pelo rei do ponto de vista jurídico.
Uma vez concebido o rei nesse quadro de relações políticas, pode-se
compreender a construção por ele empreendida do direito régio. A presente pesquisa
cingir-se-á ao estudo dessa construção em Portugal, embora destaque que o estudo
comparativo dos demais reinos componentes da Europa Ocidental cristã seja
necessário para uma melhor compreensão do direito da Baixa Idade Média.
Assim, analisar-se-á, doravante, a construção do direito régio no reinado de
Afonso II, Rei de Portugal, entre os anos de 1211 e 1223, focando, em especial, a
formulação de um conjunto de Leis Gerais no início de seu reinado.
40
Cabe destacar, ainda, uma outra clivagem no interior desse tema, qual seja a
de analisar brevemente as intenções de Afonso II, ao formular essas leis, nas relações
travadas no interior do reino, e privilegiar a análise das intenções régias no tocante às
relações externas travadas por esse rei.
Finalmente, faz-se necessário explicitar que o presente trabalho analisará
apenas a intenção régia na formulação dessas leis. Isto é dizer que não serão analisadas
questões como a mensuração do peso efetivo dessas leis no quadro plural de fontes do
direito no reino português, tampouco serão feitas considerações acerca da
aplicabilidade efetiva e da eficácia dessas normas jurídicas no seio da sociedade
portuguesa. Reconhece-se que o estudo que optasse por essas perspectivas de análise,
deveria contemplar não apenas documentos históricos que fizessem menção direta ao
direito, tais como os documentos legais, mas deveria ampliar o quadro de fontes a fim
de aproximar-se de outros sistemas de valores que não o estritamente legal.
3.1 AS LEIS GERAIS DE 1211: APRESENTAÇÃO DA FONTE
Em 1633 foi descoberta uma compilação de leis medievais entre o lixo, na
Torre do Tombo, por um escrivão de nome Jorge da Cunha, tal como consta de uma
nota, localizada no guarda volume, feita por seu próprio punho. Tal compilação é
chamada Livro das Leis e das Posturas.
Aos historiadores contemporâneos parece consensual o intervalo em que fora
formulada: entre os séculos XIV e XV, tendo em vista ter sido escrito, em sua quase
totalidade, em letra gótica datada desse período.
Não era raro o empreendimento de compilações de fontes do direito no
período mencionado, já que o manuseio dessas leis escritas esbarrava na dificuldade de
sua publicação. Desse modo, uma vez que havia uma pluralidade de normas jurídicas
em relação à qual o jurista poderia recorrer, no intuito de reclamar sua aplicabilidade,
necessário era que tivesse conhecimento das mesmas para que pudesse ser evocada e
estudada uma determinada norma.
41
Não se sabe ao certo o autor dessa compilação, nem sequer os motivos que o
levaram a empreender essa tarefa. Tal como argumenta SILVA1, na introdução à
publicação do Livro das Leis e das Posturas, a interpretação que parecia consolidada
na historiografia, de que a compilação na verdade foi um trabalho prévio à formulação
das Ordenações Afonsinas, leva no bojo algumas imprecisões e contradições que lhe
retiram o crédito. Uma delas é a incompatibilidade de datas entre a publicação de
determinada lei em numa e noutra compilação, bem como a existência de datação de
uma lei nas Ordenações Afonsinas que não se encontra datada no Livro das Leis e das
Posturas.
Embora tal compilação contemple cópias de leis gerais emitidas pelos reis
Afonso III, D.Dinis, D. Afonso IV e Afonso II, interessa destacar um conjunto de 23
Leis Gerais dentre outras constantes do Livro, atribuído ao último dos monarcas
mencionados. Isso porque, de acordo com os documentos legislativos conhecidos,
datados de períodos posteriores à formação do Condado Portucalense, foi o primeiro
conjunto de Leis de maior expressividade no reino português, e o pioneiro em cunhar
esses dispositivos normativos legais, emanados do poder régio, de generalidade.
Parece consolidado, na historiografia, que o seu surgimento está no bojo de
um processo de centralização do poder régio, empreendido no reinado de Afonso II.
Aspecto da centralização este, que encontra respaldo em outras ações desse rei no
sentido de controlar os abusos ao poder régio, tais como as Inquirições e as
Confirmações régias. Analisa-se seu reinado, portanto, como um todo, no qual a
legislação, as Inquirições e Confirmações régias, bem como as querelas com o Papado
por conta do não cumprimento do testamento de seu pai, constróem a idéia de que foi
um governo marcado pela firmação do poder régio, dotado de um poder independente
e acima de todos os demais.
Ver-se-á, doravante, que o aparecimento das Leis Gerais de 1211 deve ser
compreendido como um meio de organização do poder régio em relação aos demais
poderes que com ele competiam. Assim, cindir-se-á duas frentes de atuação desse
1 UNIVERSIDADE DE LISBOA. Faculdade de Direito. Livro das Leis e das Posturas.
Lisboa, 1971. p. V – XIV.
42
poder régio, cuja finalidade foi a de salvaguardar sua autoridade. Trata-se de
analisarmos sua atuação no âmbito interno ao reino, no qual o Rei terá que lidar com a
realidade de um direito estruturado no privilégio e mantido pelo costume, enfrentando
os obstáculos levantados pelo direito costumeiro citadino e dos senhorios
jurisdicionais; bem como, no âmbito externo, no qual figura como uma terceira
instituição a se consolidar: ao lado do Sacerdócio e do Imperium, o Regna. Nesse
último âmbito, seu direito dialogará com a estrutura jurídica do Direito Comum.
3.2 FIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO NAS RELAÇÕES TRAVADAS NO
INTERIOR DO REINO
O reinado de Afonso II foi marcado por várias medidas que visavam a
centralização do poder na figura do rei. A historiografia portuguesa que se ocupa de tal
análise, destaca a criação das Leis Gerais de 1211, o processo de Inquirições e o de
Confirmações régias como as principais dentre elas. O presente trabalho, entretanto,
analisará apenas a criação de Leis Gerais no início desse reinado.
O primeiro problema que se coloca é a opção de Afonso II em fazer uso de um
modo específico de expressão do direito no exercício de seu poder: a lei. Isso porque o
rei era partícipe de um quadro de descentralização política no qual a forma de direito
predominante era o costume, expresso no interior dos senhorios jurisdicionais e dos
Concelhos.
O direito no interior do reino, portanto, não era uniforme. O direito surgia das
condutas reiteradas no interior de uma comunidade, e era aplicado por juizes
escolhidos por essa comunidade, não guardando, necessariamente, nenhum vínculo
com o poder régio. O rei, em meio aos diversos costumes, era uma figura que atuava
como mediador de uma querela qualquer, mas no intuito de decidi-la conforme os bons
costumes.
Deve-se submeter essa atuação régia, contudo, às dificuldades oriundas da
organização do espaço no reino medieval português. Embora árbitro maior na
mediação dos conflitos sociais, a atuação régia se via limitada pela impossibilidade de
43
o rei estar presente nas diversas regiões do reino, em tempo hábil para a solução desses
conflitos. Lembre-se o quão precárias eram as estradas e os meios de locomoção2.
Assim, o rei não era a instância última de justiça à qual se recorria para a
solução dos conflitos sociais, por meio de suas decisões, pautadas na aplicação do
direito que julgasse correto (conforme a principal fonte do direito: o costume).
Com as Leis Gerais de 1211, Afonso II pretendia diminuir a distância entre o
Rei e a solução concreta desses conflitos nas diversas regiões do reino. Era necessário
que o poder de julgar não ficasse a cargo tão-somente dos juizes dos senhorios
jurisdicionais e dos Concelhos. Para tanto, emite a seguinte lei:
01 - NO ano primeyro que Reynou o muj nobre Rey de Portugal Dom Affonso o ssegundo
filho do muyto alto Rey Dom Sancho e da Raynha Dona Doçe e neto do gram Rey Dom
affonso dauandicto em Cojnbra fez cortes en as quaaes com Consselho de Dom Pedro
Eleyto de bragaa e de todos os bispos do Reyno e dos homens de Relegiom e dos Ricos
homens e dos seus uassalos Estabeleceo Jujzes conuem a ssaber que o Reyno e todos que em
el morasem fosem per ele Regudos e senpre Julgados per ele e per todos seus ssucçessores e
aguardam assy. E todos seus sucçessores que sse algûa cousa uissem de coReger ou dader
ou de mjinguar em estes Jujzes que o coRegessem...3
Estabeleceu, pois, juizes régios que na sua ausência ficariam incumbidos de
julgar as querelas que surgissem, conforme o direito vigente. Viu-se, contudo, que o
direito vigente no reino de Portugal é constituído por uma pluralidade de fontes do
direito que impedia sua caracterização plena e exata. Afonso II, então, delimita quais
as normas jurídicas que devem ser observadas:
...¶ Outrosy estabeleçeo que as sas laeys sseiam guardadas e os dereytos da sancta Egreia
de Roma. Conuem a ssaber que sse forem fectas ou estabeleçudas contra eles ou contra a
sancta Egreia que nom ualham nem tenham.4
2 CAETANO, Marcello. História do direito português. 2.ed. Lisboa: Verbo, [19--]. p. 310. 3 Ibid., p. 9. 4 Id.
44
Trata-se da reprodução jurídica da teoria dos dois poderes (Direito Comum),
constituindo-se em norma de direito que delimita as normas jurídicas que deveriam ser
observadas e aplicadas. Por conseguinte, Afonso II delimita quais as fontes de direito
válidas na construção do direito no interior do reino: as leis régias e as leis da Igreja.
Pode-se imaginar a agressão que tais medidas causaram na autonomia do
poder dos senhores feudais, e na autogestão dos Concelhos.
Instituir juizes reais significava dizer que toda e qualquer decisão tomada no
reino de Portugal deveria passar pelo crivo do rei, seja diretamente, por meio de
recurso à autoridade real, seja indiretamente, na decisão isolada desses juizes que
representavam a vontade real.
Já no tocante às fontes de direito validadas pelo rei, pode-se notar a não
referência ao costume. A esse respeito deve-se fazer algumas ressalvas, já que a
referência expressa à lei não veio de fato a substituir o costume como fonte do direito,
tampouco ocupar-lhe seu lugar de primazia.
As Leis Gerais de 1211 não possuem a característica de ser um conjunto
exaustivo das normas jurídicas válidas no interior do reino português. Lembre-se o
quão numerosas e diversas eram essas normas. Não se trata, portanto, da tentativa do
rei em colocar esse conjunto de 23 leis como o único válido em todo o reino
português, mas antes de firmar sua autoridade, ressaltando sua prerrogativa exclusiva
de ditar o direito, seja criando-o, seja homologando o direito vigente.
Essas Leis Gerais são constituídas de normas jurídicas oriundas do já
consolidado Direito Comum, mas também da homologação ou proibição de um
costume vigente. Afonso II, pois, não derrogou todo o direito costumeiro em prol de
sua legislação, mas passou a assimilar o costume dando-lhe força de lei. O Direito
válido no reino, portanto, era o Direito sancionado pelo Rei.
Essa prerrogativa de validar o Direito estava associada à prerrogativa de criar
o Direito. Tal afirmação pode ser corroborada pela análise de outra lei constante desses
conjunto de Leis Gerais:
2 – Como ElRey manda aos seus alcaydes que nom leuem nemjgalha do que uenderem
45
Maao costume dantjgo soya seer assy em Cojnbra como en todalas vilas da nossa
estremadura come en todalas partes do Reyno que assi nos come aqueles que de nos tijnham
terras ou alcaydarias leuauam de todalas cousas de comer que uedessem a terça parte E
esto he gram dano e perJujzo dos mezquinhos./ A qual cousa pera todo senpre
estabeleçemos que nom ualha ¶ Estabeleçemos que os nossos (1) oueençaaes nem aqueles
que as nossas terras ou alcaydarias teuerem nom leuem as cousas sobredictas segundo o
costume sobredicto Mais conprem sas cousas segundo dereyta estimaçom assy como as
conprarem os vezinhos...5
Nessa lei não apenas Afonso II proibiu uma prática costumeira, como instituiu
um modelo correto de comportamento que deveria ser observado no futuro, no lugar
do costume danoso. Assim, a Lei possuía a característica de ser uma fonte do direito
criada a partir da vontade régia, como forma de expressão da vontade de uma
autoridade devidamente legitimada no exercício dessa prerrogativa de poder.
Desse modo, a atividade régia de ditar o direito não ficou reduzida à
observância dos costumes por aqueles que a eles estavam submetidos, mas apresentava
fortes indícios de querer intervir no direito, modificando-o.
O Direito Régio, portanto, possuía várias fontes: o Direito Comum e o Direito
costumeiro, mas pretendia-se a fonte primeira do Direito no reino português, ao lado
do Direito da Igreja.
Conclui-se, portanto, que o surgimento das Leis Gerais de 1211 significou a
construção de um Direito Régio, pelo Rei, capaz de sobrepor-se às demais fontes do
Direito no interior do Reino, o que leva a concluir pela manifestação do poder régio no
sentido de centralizar o poder no interior do reino, sobrepondo-se aos demais focos de
poder que competiam com ele. Trata-se, nesse âmbito de atuação régia, da intenção do
Rei em possuir a supremacia do poder face aos senhorios jurisdicionais e os
Concelhos.
5 Ibid., 9-10.
46
3.3 FIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO NAS RELAÇÕES TRAVADAS NO ÂMBITO
EXTERNO AO REINO.
Não eram apenas os diversos focos de poder no interior do reino português que
tolhiam a consolidação do poder régio como um poder autônomo e supremo. Afonso II
haveria de dialogar com as teorias medievais acerca do poder que então eram
construídas pelos juristas entorno da figura do Papa e do Imperador.
A Lei Geral numero 1, no segundo parágrafo6, estipula quais as normas
jurídicas que deveriam ser observadas no reino: as leis régias e as leis da Santa Igreja.
Trata-se da reprodução de um sistema de poder então vigente, e de um sistema jurídico
construído entorno dele: a teoria dos dois poderes e o Direito Comum.
Viu-se, contudo, que ambos se referem a duas instituições específicas: Império
e Igreja. A teoria dos dois poderes circunscreve o poder do Imperador e o poder do
Papa, e o Direito Comum se refere a dois conjuntos de normas jurídicas emanadas
dessas autoridades. Como compreender, então, a estipulação de Afonso II de um
sistema jurídico composto por dois conjuntos de normas emanados da Igreja e do Rei?
Trata-se da recepção do chamado Direito Comum, uma vez que este se refere a um
conjunto de normas imperiais e não reais?
MARQUES faz a distinção de três períodos históricos em que o Direito
Comum assumiria diversos papéis enquanto fonte de direito:
Divisa-se no “Direito Comum” uma perda progressiva de protagonismo. Numa primeira fase
(séculos XII e XIII), o direito comum sobrepõe-se a todas as outras fontes concorrentes. É
este o período do “direito comum absoluto”. Os séculos XIV e XV conhecem a afirmação
dos iura propria. Neste contexto, o direito comum, num claro recuo, assume o papel de
ordenamento jurídico supletivo. É o “período do direito comum subsidiário”. Por fim, numa
terceira fase, que vai do século XVI ao século XVIII, o ius commune deixa de ser o
“ordenamento objectivo do Império universal”. Submergindo perante a lógica jurídica do
6 Ver citação do segundo parágrafo da lei número 1 da legislação de Afonso II na página 43.
47
Estado soberano e absoluto, subsiste como reserva estratégica do direito central. É o
“período do direito comum particular”.7
Do ponto de vista da existência de um Império universal, composto por dois
poderes complementares, o Direito Comum seria o Direito da cristandade, e deveria
ser válido e aplicado em todo o território cristão europeu ocidental.
A idéia de Império universal, contudo, esbarrava no efetivo exercício do poder
do Papa e do Imperador no seio da Cristandade. Os diversos reinos que a constituíam
adotavam como principal fonte do direito o Direito Comum?
Um estudo quantitativo, concernente aos diversos reinos europeus, poderia
aproximar-se de uma resposta mais precisa a essa pergunta, entretanto alguns
obstáculos podem ser formulados a uma possível resposta afirmativa, mesmo não se
tendo feito tal estudo.
Em primeiro lugar, a consolidação do costume como principal fonte do direito
parece fornecer, por si só, uma idéia do imenso obstáculo que existia no tocante à
aplicação desse conjunto de normas do Império universal. Por fim, se a pretensão de
supremacia do Direito Comum tocava a autonomia dos diversos focos de poder
existentes no interior do reino, não é difícil imaginar que o poder real se via ameaçado
por essa intervenção jurídica imperial em seus domínios.
A presença do Sacro Império Romano Germânico na Península Ibérica não
constituía de fato uma ameaça ao poder régio, mas uma peculiaridade da Península
Ibérica pode reforçar a idéia de que o Império poderia fornecer alguma influência na
formulação jurídica levada a cabo por Afonso II.
Trata-se da pretensão do Rei de Leão, Afonso VI, em meados do século XI, de
buscar “...a integração dessas várias unidades políticas sob a sua égide, recorrendo à
idéia de Império e ao conceito feudal de vassalagem.”8 Pretensão essa que, embora não
tenha se consolidado, atravessou seu reinado fazendo parte das pretensões de Afonso
VII.
7 MARQUES, Mário Reis. História do direito português medieval e moderno. Figueira da Foz:
Reproset, 1997. p. 14. 8 CAETANO, 133.
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No período em questão, Portugal não era mais que uma concessão de Afonso
VI a D. Teresa, sua filha ilegítima, e ao nobre D. Henrique. Desse modo, não poderia a
pretensão leonesa de intitular-se Império peninsular encontrar resistência em Portugal.
De qualquer forma, a idéia de Império parecia ser a de um foco de poder que
se sobrepunha aos demais poderes régios europeus. Embora não tenha havido
nenhuma tentativa de imposição imperial no reinado de Afonso II, a idéia de Império
estava presente na Península Ibérica.
A construção jurídica promovida por Afonso II, pois, não se referindo ao
conjunto de normas jurídicas imperiais não é uma resposta a uma intervenção imperial
no curso do exercício do poder régio, mas uma apropriação régia da dignidade
imperial enquanto representante da autoridade investida pelo poder temporal.
Isto é dizer que o Rei português dialoga com as concepções de poder e as
construções jurídicas de sua época, e procura firmar sua autoridade como autônoma no
quadro das instituições primordiais da Cristandade. O Rei, portanto, assume o lugar do
Imperador na detenção do gládio temporal, firmando-se como autoridade que recebe
diretamente o poder de Deus, e que está devidamente legitimada a exercê-lo.
O exercício desse poder, como já se teve oportunidade de analisar no segundo
capítulo, passava pela prerrogativa da autoridade em intervir no direito, modificando-
o, por meio da atividade legislativa. O poder régio não era, pois, um poder
subordinado, ou derivado do poder imperial, mas era a própria manifestação do poder
temporal no reino português.
Afonso II utiliza-se, portanto, da teoria dos dois poderes e do já consolidado
Direito Comum para manifestar a singularidade e fixar as prerrogativas do poder régio:
o Rei era o detentor do gládio temporal no interior do reino português, cabendo-lhe
reger as questões temporais.
Dessas considerações não se presume que o Rei declara seu poder sobre o
poder espiritual, mas o coloca a par desse poder, tal qual é considerado pela Igreja o
lugar do poder temporal. O Rei declara sua autonomia para o governo das coisas
temporais, e não sua superioridade sobre o gládio espiritual, deixando as coisas
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espirituais ao governo da autoridade competente, conforme as normas que dela
emanam.
Desse modo, conclui-se que a mera existência de um conjunto de normas
legais emanadas do poder régio não concorre para corroborar a idéia de centralização
do poder régio, por meio da negação da interferência da autoridade papal.
A superioridade do poder espiritual reside na possibilidade de aplicar a pena
de excomunhão, e de destituir os súditos da obediência face ao Rei. Em nenhum
momento, na redação das Leis Gerais de 1211, Afonso II nega ao Papa tal
prerrogativa, sequer impede que o Direito por ele ditado seja guardado no reino de
Portugal.
Afonso II pretendeu firmar-se como a autoridade temporal suprema em seu
Reino, e daí decorre uma legislação que pretendia sobrepor-se ao costume dos
senhorios jurisdicionais e dos Concelhos, e não sobrepor sua autoridade ao do Papa.
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CONCLUSÃO
O presente trabalho ocupou-se da análise da intenção de centralização régia,
no reinado de Afonso II, por meio da formulação de Leis Gerais no início de seu
reinado.
Tal perspectiva carrega no bojo alguns limites, os quais convém assinalar a
fim de evidenciar o caráter parcial das conclusões a que se chegou. Afinal, a presente
pesquisa tem caráter monográfico, constituindo-se em parte menor de um estudo quiçá
vindouro.
Assim, duas considerações fundamentais devem ser traçadas: a primeira,
concernente à análise da intenção régia, e a última no tocante ao isolamento dado a um
aspecto dessa centralização: a legislação régia.
Analisar a intenção régia é, basicamente, traçar um esboço do contexto
ideológico-político no qual estava inserido Afonso II. Significa reconstruir os
elementos de seu período histórico que possivelmente lhe motivaram a levar a cabo a
tarefa de legislar, no exercício de seu poder temporal.. Construiu-se, pois, um discurso
histórico que invariavelmente privilegiou a ação conscientemente dirigida de um
agente histórico.
Certamente, a análise da economia e da cultura portuguesa no reinado de
Afonso II lançaria novas questões para a compreensão do direito português medieval,
e das ações de Afonso II, no intuito de moldá-lo mais entorno da figura régia.
Essa perspectiva, implica também na análise apenas da intenção de Afonso II,
o que significa dizer que não se mensurou em momento algum a aplicabilidade dessas
normas nas diversas regiões que compunham o reino de Portugal, e o peso delas na
aplicação efetiva do direito régio legislado no quadro plural de fontes do direito
característico do período.
No tocante a segunda consideração tecida, o presente trabalho apresenta
limites não menos importantes. Isolar a análise das Leis Gerais de 1211 é recusar uma
explicação total da centralização do poder régio. Isto é dizer que embora outras
medidas tenham sido tomadas no intuito de centralizar o poder nas mãos do Rei, às
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Leis Gerais deve-se dar um contorno mais preciso dessa contribuição prestada ao
poder régio.
De acordo com essa perspectiva, identificaram-se dois âmbitos de atuação
régia no intuito de firmar o poder régio face aos demais poderes que lhe eram
concorrentes: as relações do Rei travadas no âmbitos externo e interno ao reino.
Enfrentando o problema da centralização régia no reinado de Afonso II dessa
maneira, e considerando a tentativa do Rei em impor um Direito que de si emanava
como meio de se sobrepor aos demais poderes políticos, pôde-se chegar a algumas
considerações à guisa de conclusão.
Entende-se que a formulação das Leis Gerais de 1211 foi uma precoce
declaração de superioridade do poder régio face aos poderes que lhe concorriam no
interior do Reino, notadamente marcados pelos privilégios que impediam uma ação
régia no interior de determinada comunidade (senhorios jurisdicionais e Concelhos).
Isso porque a legislação era um meio jurídico capaz de permitir que o Rei interferisse
nessas áreas em que o direito costumeiro não estava de acordo com a vontade régia.
Para consolidar o Direito Régio, Afonso II estipulou que as normas jurídicas
legais de 1211, em conjunto com as leis da Santa Igreja, formavam o Direito Comum
que haveria de ser observado no reino de Portugal. Desse modo, tencionou sobrepor a
norma régia a qualquer outra norma costumeira que viesse a dispor em sentido
contrário.
A utilização da noção de Direito Comum, contudo, não concorre para a
conclusão de que se tratava de uma precoce declaração de superioridade do poder
temporal face ao espiritual. A mera existência dessas Leis Gerais não pressupõe uma
recusa do poder temporal em acatar as normas eclesiásticas, mas apenas a firmação
régia da autonomia de seu poder em reger as questões concernentes às coisas
temporais.
Finalmente, não se quer produzir a idéia de que o poder régio convivia
harmonicamente com o poder espiritual no período do reinado de Afonso II, pois
outros momentos e questões presentes em seu reinado atestam precisamente o
contrário. Contudo, o texto jurídico com o qual se trabalhou não figura, seguramente,
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como um fator que reforce a idéia de declaração de superioridade do poder temporal
frente ao espiritual.
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