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O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA POÉTICA André Luís Borges de Oliveira Rio de Janeiro Outubro de 2017

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O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA

POEacuteTICA

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA POEacuteTICA

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

DEDICATOacuteRIA

Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia

Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da

Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria

Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos

respectivamente

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas

gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma

obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro

tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e

da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de

enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute

conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo

Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute

pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois

verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de

sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-

me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos

O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece

automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal

tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o

movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir

uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares

um presente inesperado

Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical

do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam

respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo

de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de

matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o

porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos

Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos

sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa

tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas

que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor

opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo

acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser

e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque

corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar

com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda

amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para

os homens para a cultura pensamento e agradecimento

Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar

e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um

pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se

encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o

centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro

irradiador

O Misteacuterio mora

Girando na roda o homem danccedila e ignora

Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo

de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1

Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute

a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a

respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino

que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando

possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees

Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o

iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo

parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa

filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico

a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha

com a verdade em sua multiplicidade e concretude

Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda

com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado

a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha

esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma

1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows

significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem

que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se

tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte

Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute

nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro

lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me

ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado

pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A

terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte

sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz

Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute

aquele da partida

A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma

espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos

de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer

mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a

mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo

eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade

ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido

Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente

um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente

diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo

que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui

Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer

escrever

Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez

anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter

de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-

se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua

quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas

balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo

Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na

histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro

Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por

isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser

testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de

paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O

que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos

passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que

qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma

Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro

Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila

que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que

compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo

Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo

Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa

mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as

personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras

desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda

eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns

rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo

lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de

aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar

subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a

gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e

nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a

obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio

fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo

reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta

figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador

Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus

pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito

Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo

e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar

a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias

heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta

reaprender a viver depois disso Obrigado

Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na

minha Defesa

Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida

Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon

Amanda Falconi Jessica Natarelli

Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento

Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira

Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso

Caio Cruz Priscila Loureiro

Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa

Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho

Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz

Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa

Giovanna Giffoni

E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho

Allan Charles Marcus Caetano

Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas

Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira

Carla Rodriguez Mariana Rodrigues

Daniel Forain Nicole de Oliveira

Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso

Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos

Felipe Copque Rodrigo Wentzel

Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute

Fernando Sampaio Taynaacute Rosa

Flaacutevio Chame Thiago Pereira

Gabriel Torres Vanise Dutra

Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan

Guiomar Borges Yasmin Motta

Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram

Liacutevia Egger Demais professores que me formaram

Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram

Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram

EPIacuteGRAFE

Aacutervore genealoacutegica

A mais frondosa aacutervore da cidade

Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio

Seu viccedilo traz de longe uma saudade

Que a bruma envolve toda em misteacuterio

A seiva lembra sangue escurecido

Sangue que me sangra jaacute esquecido

Do pai do pai do pai (um fruto antigo)

Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo

Comer a carne doce recolhida nesse horto

Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)

Que restou de um ancestral

Thayrine Kleinsorgen

RESUMO

O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica

Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade

originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes

da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco

importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie

diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e

consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino

Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem

do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute

relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e

da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e

poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos

adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras

estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do

que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute

sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto

recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para

uma poeacutetico-filosofia

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

ABSTRACT

The teaching of philosophy from a poetic perspective

Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity

with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a

discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and

objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so

one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of

transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy

could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character

which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet

and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge

between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to

return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain

moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what

constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a

restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question

in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22

112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42

122 A ideia e o ser 43

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57

21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60

221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80

25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96

31 Linguagem e limite 101

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106

33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118

352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150

15

Introduccedilatildeo

Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais

diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar

Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta

claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um

modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um

conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees

E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores

o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e

competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e

consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo

natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria

noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta

Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela

funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a

educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante

pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a

fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte

delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a

educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que

ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles

Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o

seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio

o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido

quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa

vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia

Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora

eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu

mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do

Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo

16

peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo

de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina

mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc

Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como

cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa

margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg

62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil

capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo

para por precauccedilatildeo posterior usufruto

Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na

confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a

um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e

aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no

fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na

mensagem

Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer

qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do

sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda

assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo

O artista inconfessaacutevel

Fazer o que seja eacute inuacutetil

Natildeo fazer nada eacute inuacutetil

Mas entre fazer e natildeo fazer

mais vale o inuacutetil do fazer

Mas natildeo fazer para esquecer

que eacute inuacutetil nunca o esquecer

Mas fazer o inuacutetil sabendo

que ele eacute inuacutetil e bem sabendo

que eacute inuacutetil e que seu sentido

natildeo seraacute sequer pressentido

fazer porque ele eacute mais difiacutecil

do que natildeo fazer e dificil-

mente se poderaacute dizer

com mais desdeacutem ou entatildeo dizer

mais direto ao leitor Ningueacutem

que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)

17

Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula

confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os

dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela

corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave

toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um

conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao

sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria

difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas

Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois

como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente

ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de

passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra

Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que

brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que

aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma

traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois

ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos

singulares

Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos

defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava

estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que

delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo

Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua

inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no

real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na

banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra

como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu

Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho

aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por

assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso

significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a

fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso

18

A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre

outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a

indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum

acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo

menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e

consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar

Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses

somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada

presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou

salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por

cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo

de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em

sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia

Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico

hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o

controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem

poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute

conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo

fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas

mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou

verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro

Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter

credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo

Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria

o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da

verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas

agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio

vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar

Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real

Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a

verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no

ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade

19

demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser

solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do

pensamento cientiacutefico

Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento

de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das

manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria

o ser representado e por isso deveria conduziria os homens

Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma

natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a

sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo

ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a

poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da

ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves

graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor

originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades

Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo

possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem

medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado

sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um

rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa

medida estaacute inseparaacutevel

Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no

que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes

datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas

essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem

concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem

poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees

abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo

e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento

20

1 Pensando a Educaccedilatildeo

11 O ensino decide por dizer

O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho

natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente

a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se

se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se

corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que

natildeo temos controle

Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os

esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute

aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma

concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido

pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento

Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta

inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute

necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma

pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa

mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se

adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo

execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da

histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas

exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o

significado de ensino

Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em

determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim

fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no

poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a

paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos

programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O

conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que

21

foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que

deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de

dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por

outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os

homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)

Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o

convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma

festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar

sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila

ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele

evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas

A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso

sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite

seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre

dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca

de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O

ensino decide por dizer O que ele diz

Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura

e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que

tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele

Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento

ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos

pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido

Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel

portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute

possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total

incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste

trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre

condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer

Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um

saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-

signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do

latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua

22

vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo

caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com

marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo

(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2

Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em

algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila

De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash

por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que

ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres

111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc

Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar

sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo

delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem

distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser

em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute

constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo

A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino

debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias

de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1

Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno

de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem

semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da

composiccedilatildeo insigne + -itussup2

A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo

formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash

2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To

adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []

23

traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo

explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente

visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE

1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5

Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos

que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos

que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo

do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos

fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o

vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)

Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em

portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se

assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a

uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim

fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)

nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto

forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω

ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889

Οἶδα)8 respectivamente ver e saber

Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave

primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos

que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas

e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel

enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel

compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se

4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em

27 set 2016 7 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233

0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3

Ddagt Acesso em 27 set 2016

24

fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu

mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A

experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que

natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender

seu ensinamento concreto

Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser

uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta

que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido

toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos

foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL

2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)

O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e

dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas

calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo

em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja

a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo

Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo

estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer

apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma

multiplicidade de limitaccedilotildees

Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta

Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos

Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes

E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila

Nem aqui vinhas

Brinca na poeira brinca

Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos

Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la

Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar

O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo

sujas

Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo

Sabes que te cabe na matildeo

Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior

Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006

paacutegs 42-43)

25

No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma

cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver

imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que

distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo

do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da

presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que

conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a

pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de

geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra

nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar

O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou

representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de

ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra

poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial

esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo

da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto

palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque

de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra

poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007

paacuteg 43 ndash grifos no original)

O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com

pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que

pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse

conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica

muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel

(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de

manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela

experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo

No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-

se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado

essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos

portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor

Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como

sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer

26

crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e

restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse

modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja

esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave

minha portardquo

112 Um saber que rasga

Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος

faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento

Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta

dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo

acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que

transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou

intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a

sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en

lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)

Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg

970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram

incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O

signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a

impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel

de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos

sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo

estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou

movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-

1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum

Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra

essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a

concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua

27

simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos

homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo

seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao

simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela

coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER

1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9

Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de

ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de

emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute

representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta

quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude

de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado

transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que

isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita

concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o

agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo

categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto

e conhecido do fazer

Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte

da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento

de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos

apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam

respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia

humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais

andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se

transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute

uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo

o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda

O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o

concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das

9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen

28

coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo

eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo

Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute

sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a

singularidade dos caminhos

Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a

Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no

discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute

a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define

explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas

natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora

em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve

Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo

poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O

camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria

obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a

mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013

paacutegs 27-28)

Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto

eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste

sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a

propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a

verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se

capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel

Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a

ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel

O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a

isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um

esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia

confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes

estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo

eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos

fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo

agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito

Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco

+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma

29

experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado

etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo

-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e

que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE

1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco

1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar

recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte

remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar

atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento

fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo

etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968

paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10

A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny

(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem

e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que

se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da

etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento

posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que

rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um

saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees

sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras

da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura

brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste

mesmo saber

sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim

secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim

sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca

entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage

(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11

10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from

to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water

air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in

ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip

abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo

if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage

30

Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg

56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o

proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas

aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave

opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz

Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da

experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que

demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade

seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra

forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz

diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no

que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada

um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas

que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites

[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12

Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio

A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13

Na janela a neve cai

Prolongado soa o sino da tarde

Para muitos a mesa estaacute posta

E a casa bem servida

Alguns viandantes da erracircncia

Chegam ateacute a porta por veredas escuras

Da seiva bruta da terra

Surge dourada a aacutervore dos dons

O viandante chega quieto

A dor petrificou a soleira

Aiacute brilha em pura claridade

Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de

Cavalcante Schuback)14

12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und

das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden

bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte

die Schwelle

Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein

31

Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave

certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz

versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva

em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com

cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como

descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra

singularmente em portuguecircs

O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como

o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no

dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute

soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e

traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica

estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa

Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a

soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto

a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo

teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz

uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute

soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar

categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a

unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa

Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os

diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se

mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som

sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e

w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som

continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro

terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente

Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua

quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma

pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez

32

constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude

Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para

coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde

haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar

A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos

Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de

vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra

que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho

tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond

retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer

agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor

A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria

mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade

A linguagem fala

O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar

Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER

2003 paacuteg 26)

Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia

de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as

distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre

afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006

paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar

no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo

seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera

informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo

ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda

Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que

ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que

o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de

aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber

do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender

nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia

quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)

33

113 Natildeo ensinar e a ciecircncia

Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com

as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo

ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o

pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis

sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento

impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o

conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute

compreendido

Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar

Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as

variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico

cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do

processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o

ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito

Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino

serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o

cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o

desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta

procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou

mais por menos tempo o que costuma coincidir

Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode

permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-

se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade

se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas

eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao

sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma

aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo

34

de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos

ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL

SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15

Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo

Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o

real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a

verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido

observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto

esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός

ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16

Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία

como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que

ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute

originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17

O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta

era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos

habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia

com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e

diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras

15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves

embassy mission Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri

2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2

Fa2gt Acesso em 14 set 2016

Cf Θεά Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2

F1gt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὁράω Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra

2Fwgt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὤρα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2

Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh

2Fqeia Acesso em 14 set 2016

35

animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses

seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A

verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir

Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta

Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras

a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de

valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs

1-2)

Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era

possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que

remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser

possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo

possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo

apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que

natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora

Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a

demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto

tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave

lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo

significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe

[]

Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos

se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e

vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela

orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo

satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo

que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE

2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)

Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar

cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do

mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de

que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos

conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida

o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute

ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo

36

de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo

claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel

A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico

objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse

lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O

importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do

desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo

(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)

Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar

o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar

para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e

desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar

a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas

metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma

vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico

ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias

discerniacuteveis fossem

Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar

conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser

ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no

sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro

do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua

plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se

aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave

plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se

inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos

referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se

respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa

concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do

nada e do ente de origem e de plenitude

Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito

ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino

seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo

maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave

37

disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito

a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas

vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg

9 ndash traduccedilatildeo livre)18

Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila

fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe

que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los

literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania

mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg

157)

Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma

dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo

homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a

irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na

e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo

(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens

que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da

vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que

natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que

natildeo permite adoraccedilotildees alheias

A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser

inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na

estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este

papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de

tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)

Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas

categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances

apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu

destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular

18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la

experiencia de la infancia

38

114 O jogo do poeta e da infacircncia

Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo

natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao

contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo

ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade

apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade

Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de

profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais

que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este

vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite

funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos

caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma

cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se

Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem

que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza

nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante

mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave

margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo

suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)

A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar

as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade

isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico

do pensamento e do ensino aqui propostos

Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar

os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e

pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de

controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado

mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os

alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo

39

logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a

necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos

Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina

com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute

neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o

converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz

nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus

educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19

Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia

em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade

cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo

contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente

construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo

(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos

sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas

A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho

natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria

uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de

produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial

para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)

Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como

educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que

satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes

para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar

Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que

decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um

instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee

e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece

diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento

19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender

a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su

alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz

nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores

40

remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo

chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo

Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo

entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e

levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui

vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes

de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de

vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem

quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico

O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de

idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno

literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute

problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos

com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento

que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos

ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa

inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo

(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo

do poeta e da infacircncia

12 A tradiccedilatildeo

41

Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra

disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem

ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de

compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho

na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de

atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo

Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas

gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o

sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados

de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de

valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua

ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)

Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e

criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se

costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo

Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e

educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com

a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um

relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que

determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino

Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo

o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural

e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim

faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras

de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade

cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve

ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave

reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo

Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se

transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo

para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos

receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg

226)

42

121 Quando o poeacutetico repousa esquecido

Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder

compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar

num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de

ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a

induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita

alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do

primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo

(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar

um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se

Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos

houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da

autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta

seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se

suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior

foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que

despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade

O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza

natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada

apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela

autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg

245-246)

Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-

a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter

sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a

partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado

43

Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar

movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido

Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a

simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela

manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar

do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o

seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda

natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no

original)

Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as

coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento

do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o

poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo

nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra

tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito

O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua

concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma

dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo

de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das

vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar

(JARDIM 2005 paacuteg 33)

122 A ideia e o ser

Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana

das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa

a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa

O Universo natildeo eacute uma ideia minha

A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha

44

A noite natildeo anoitece pelos meus olhos

A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um

estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de

pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite

no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo

mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que

a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa

todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem

que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer

O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico

imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia

indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo

mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza

uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da

planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre

(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)

Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia

ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A

pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara

que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo

quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito

do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo

(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro

Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque

realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova

flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute

jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo

Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo

eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)

20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more

45

Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa

sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)

Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo

se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos

relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre

alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar

a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa

limitaccedilatildeo conceitual a ela

Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das

estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a

realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que

nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram

reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se

corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade

que o fulgor das estrelas poderia ter

A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus

nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar

ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma

manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser

superado basta termos mais conhecimentos a respeito

mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites

natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser

limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute

sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []

mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros

Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36

37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um

nuacutemero maior

mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois

acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia

mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

46

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o

compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O

homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser

diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma

infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a

ser o homem

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo

Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma

concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o

modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos

traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem

entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre

tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia

linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido

proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo

(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de

significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua

ignora ou desconhece

Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma

consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro

Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio

processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz

legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)

Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash

conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015

47

Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira

(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar

entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se

mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do

significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento

adiante perpetuando um saber

Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega

transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se

tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens

etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino

b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo

(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo

para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao

seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada

do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno

do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra

Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com

o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por

sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de

entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma

pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das

forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute

mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo

livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25

21 Disponiacutevel em

lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16

set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2

The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional

knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a

position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)

48

Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz

de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez

que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o

verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por

cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes

surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs

falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma

tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972

paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de

passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo

A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo

complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O

primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma

doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a

utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27

De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um

deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda

entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que

ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso

em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois

entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a

entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo

Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa

simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que

faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta

Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um

atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um

comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)

26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead

etc) c to grant (legal possession use etc)

49

A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo

Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta

Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua

dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo

natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os

percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo

entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido

por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com

a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do

tracircnsito das experiecircncias de mundo

A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo

Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel

Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo

entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na

Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O

que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []

(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo

A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para

os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e

especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-

se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho

aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees

O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra

Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna

jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente

pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de

novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de

palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)

Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de

auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no

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aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda

fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora

pela via popular de traditio

Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se

outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra

traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina

em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e

acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada

como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e

empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015

Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo

Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se

em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela

traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva

rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-

que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela

tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a

mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta

talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares

Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e

consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram

uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas

pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram

tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE

1998 paacuteg 18)

Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser

uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante

aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o

caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta

eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de

tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a

28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016

51

oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela

tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova

Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo

sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se

dispotildee

Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um

comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da

malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam

esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo

do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo

ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo

(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade

prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO

1832 paacuteg 1057)

A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao

portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo

ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo

he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na

formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e

traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-

Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam

com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o

sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da

mensagem

Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de

mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em

narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a

mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real

propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que

permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte

suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer

pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente

52

o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa

adiante em sua possibilidade de autenticidade

125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo

A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor

da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A

histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra

Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que

vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia

Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para

reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua

vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em

determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o

restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com

sua experiecircncia de mundo

Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o

linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute

cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades

embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e

resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso

corriqueiro das fontes propulsoras do nomear

No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que

pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior

parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala

que passou

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido

de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude

do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg

12)

53

Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo

destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma

entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa

deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo

(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave

casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE

VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a

particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta

noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de

cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)

6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL

Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de

surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a

sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila

traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30

Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma

conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se

pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas

culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo

leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso

seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e

realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente

contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em

ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua

interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional

O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de

problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a

alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo

eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os

30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set

2016

54

homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE

1998 paacuteg 85)

Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros

receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante

notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se

enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua

funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute

puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas

agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela

circunstacircncia especiacutefica

Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa

agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de

persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um

uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega

da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade

Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio

Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo

desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela

comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em

amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo

Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela

o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute

tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as

palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que

a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades

regionais

A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO

TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai

nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando

precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona

31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set

2016

55

a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo

(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua

que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias

origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser

encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo

simultaneamente

Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de

popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo

extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua

constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO

2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde

e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)

respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash

ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo

no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como

quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos

fazendo-o seu por instantes

126 Os mutirotildees do homem

Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham

experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma

famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu

para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo

livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina

nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo

Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no

tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um

32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the

kill and served it to fellow-members who came to assist him

56

trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do

caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem

da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue

Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a

qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete

sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos

com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa

como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo

isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam

contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas

Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca

geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as

mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade

e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa

A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de

continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e

temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)

57

2 Pensando a Filosofia

21 A filosofia como resposta

Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo

dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace

Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona

com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o

ensino

Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido

na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega

meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso

porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas

respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila

em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando

um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de

compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989

paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33

Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos

afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo

(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a

problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a

respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao

inominado enveredando pelo inominaacutevel

[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um

coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo

tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo

da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos

sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e

tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se

33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie

58

chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um

outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)

Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro

e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja

dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas

desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances

do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida

a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma

disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo

(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)

Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee

uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos

acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute

pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos

conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)

A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer

contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma

para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente

tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto

haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o

mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela

serve

Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo

bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute

mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio

tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no

vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das

vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo

(BRASIL 2000 paacuteg 44)

O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da

importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres

questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica

59

torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa

mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio

Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar

prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar

a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do

conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no

percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado

Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer

precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que

recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou

necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento

efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo

ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam

fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com

a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)

Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de

reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um

contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas

e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes

debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar

responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso

eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que

o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que

se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)

34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS

Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F

dutosgt Acesso em 11 mai 2017

60

22 Filosofia inteligecircncia e entendimento

Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute

determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em

variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais

da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados

encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia

Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem

que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a

princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo

eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico

e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem

cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo

Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio

de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado

filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto

que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo

de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando

positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por

meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro

seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo

baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)

A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO

2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados

outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia

platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo

natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em

confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e

pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine

61

Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre

perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador

delas

Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua

atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do

perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa

individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem

com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo

livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)

Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o

iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa

disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute

golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia

geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos

seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos

elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)

definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica

lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36

estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a

intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se

a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura

e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no

esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam

parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo

livre)37

ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα

παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ

ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον

35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute

une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em

lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo

Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro

campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these

four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second

assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion

considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of

truth and realityrdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017

62

αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας

ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38

Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da

influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada

de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς

[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον

[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser

assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39

Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO

1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da

filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia

lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e

medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser

primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente

satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro

segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem

se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e

terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42

38 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note

The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could

hardly be thus described Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2

Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2

Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι

δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ

εἰς εἴδη Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017

63

Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por

razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim

de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo

anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes

o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado

Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no

tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada

incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo

Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de

modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo

ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 71)43

Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que

na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]

pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao

longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz

a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta

contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus

membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a

palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de

qual sentido adotar neste ou naquele contexto

Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a

responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo

Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo

de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta

para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a

43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg

70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ

Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά

με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-

alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017

64

palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute

qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente

vaacutelido

Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de

Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma

conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes

sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras

e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras

veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute

estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo

Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece

direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado

pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina

soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato

metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia

paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto

de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor

satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas

Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que

pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da

disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)

O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute

ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo

aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata

tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo

todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do

real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma

palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do

conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito

A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal

homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A

essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento

ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade

apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-

diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg

235)

65

Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira

quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer

como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e

simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra

possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo

princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος

marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando

pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez

adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47

Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental

da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no

real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang

war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos

paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete

grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra

atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora

Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal

rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O

elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal

racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo

referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem

que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia

(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)

Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον

remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais

provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ

λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como

ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem

46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt

Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A

section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017

66

dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme

sugere Andrew Glynn (2015)51

Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις

enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade

mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem

ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo

engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940

Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse

material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse

Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica

a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia

Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este

percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo

estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal

ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a

destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente

a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse

viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos

A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees

enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio

universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro

lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que

o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais

submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice

funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental

(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)

50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1

999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-

animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F

xw1gt Acesso em 08 jul 2017

67

Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias

entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre

διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre

(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo

intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo

διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o

lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao

menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida

que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada

Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς

τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo

como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os

princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder

caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz

uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de

pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da

filosofia embora discernindo ambas entre si

Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma

da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a

duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs

dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos

em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se

portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por

missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo

fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg

XXXI)

Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto

somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos

Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de

imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel

Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os

53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017

68

meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute

sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa

Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a

impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma

ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares

estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta

a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca

houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta

facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males

aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar

Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo

e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o

chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora

lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs

natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola

Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A

terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais

Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda

significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava

o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento

encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo

tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza

E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria

motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer

mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta

pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)

Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje

e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por

ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno

vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais

entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para

convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno

do periacuteodo de influecircncia homeacuterica

Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford

(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender

contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da

poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia

69

na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais

do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um

comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era

a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores

dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta

transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental

da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo

esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as

Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um

grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)

Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e

sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos

problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas

apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas

respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees

e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia

transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo

necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo

Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais

recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o

exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)

A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos

conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico

dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das

finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave

filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico

conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir

valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)

Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no

conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no

Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente

opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de

conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio

absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)

Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a

filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute

rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca

70

da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se

confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita

coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas

e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen

auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)

Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo

para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso

as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes

questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o

pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a

relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com

a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)

Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais

propriedade a imagem-questatildeo colocada

Patmos54

Estaacute proacuteximo

E difiacutecil de agarrar o deus

Onde contudo haacute perigo cresce

O que salva tambeacutem

Agraves escuras vivem

As aacuteguias e destemidas partem

As filhas dos Alpes sobre o abismo

Em singelas feitas pontes

Por isso juntas laacute estatildeo em torno

Do cimo do tempo e as mais amadas

Perto vivem esmorecendo nas

Mais separadas montanhas

Entatildeo daacute pura aacutegua

Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos

Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55

54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a

revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em

lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern

wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten

Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf

Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn

und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em

27 mai 2017

71

Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se

relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas

representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode

veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas

representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens

De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme

Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem

poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo

(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)

A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos

surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao

lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa

espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta

essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as

sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no

mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se

reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no

decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por

essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute

Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos

preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da

literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde

vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado

como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos

teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)

Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de

trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela

histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua

irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e

o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na

qual convivem filosofia e poesia

72

221 Ciecircncia e intelecto

Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da

Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda

entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas

uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash

traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην

καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν

ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo

descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta

subdivisatildeo de νοῦς

Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o

caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de

ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e

faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma

declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento

noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59

Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo

possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica

argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo

deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio

ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα

56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth

conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth

2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2

Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017

73

Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo

distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel

entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse

simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo

Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo

filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo

Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-

se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente

aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona

no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica

[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de

ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda

intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a

si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-

querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)

23 Crenccedila e conjectura

Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos

de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos

referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos

ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A

referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema

Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente

se velava na histoacuteria do Ocidente

Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que

laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das

sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e

calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas

coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas

Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as

quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia

74

Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se

este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ

mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e

imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido

Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma

declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como

a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela

palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua

inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute

creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra

Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a

filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada

para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da

etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se

no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com

as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia

praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se

achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse

realmente vecirc-las

Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]

a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita

apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ

φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos

lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a

εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve

ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63

60 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F

stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO

1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal

como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in

visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510

A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)

so that πίστις should not be confined to the objects of sight

75

Figura 1 ndash As quatro influecircncias

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo

aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa

forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas

tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um

precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias

Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence

independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel

ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das

experiecircncias concretas

Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na

sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo

(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute

ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio

das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente

(ZARADER 1998 paacuteg 210)

Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema

ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso

com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra

arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de

sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra

em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a

64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko

2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017

76

partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a

crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo

contexto em que ocorre

Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte

oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia

e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica

apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades

provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades

universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um

matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash

traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε

πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES

1894)66

Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse

dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de

questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o

convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de

contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade

de acabamento

Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []

de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma

fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma

estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute

construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []

[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam

objetos de toda espeacutecie []

[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo

agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)

65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand

strict demonstration from an orator Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017

77

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser

reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser

caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as

sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave

forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem

antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de

tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)

Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία

como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc

(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento

Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo

67 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi

2Fagt Acesso em 20 mai 2017

78

atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo

existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos

Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse

desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem

possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes

ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os

olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais

pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu

plenamente sua visatildeo

A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos

muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da

sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno

mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de

argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar

teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso

caso filoacutesofo

Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por

reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos

Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse

mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo

Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou

natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve

descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para

casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68

Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo

intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo

intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar

muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo

natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por

68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em

lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017

79

ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos

Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes

circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses

provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo

Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele

relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou

melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no

texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL

SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo

lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e

duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido

sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM

1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento

Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de

apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na

alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que

vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo

uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois

a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera

suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes

No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις

afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas

representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os

procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa

69 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo

gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and

doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state

of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato

2Fsgt Acesso em 04 jun 2017

80

ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das

finalidades imediatas

Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por

apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram

compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do

intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς

haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal

logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter

superior para a filosofia platocircnica

Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos

Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior

duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa

filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber

fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute

derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute

mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo

ser

Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que

esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e

de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la

enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO

1949 paacuteg 17)

24 Filosofia e opiniatildeo

Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se

apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta

tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser

Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um

saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero

racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto

81

A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de

sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-

estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o

outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que

determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio

rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia

a partir de uma perspectiva poeacutetica

Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas

de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como

exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria

convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo

arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim

pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa

Duas estradas divergiam num bosque em setembro

E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias

E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro

olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia

ateacute onde ela dobrava na descida e sumia

Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta

e fosse talvez a mais atraente

pois estava coberta de grama precisando ser gasta

embora aqueles que passaram na frente

tivessem gasto ambas quase igualmente

E ambas que aquela manhatilde igualmente fez

cobertas por folhas pegada alguma a manchar

Oh deixei a primeira para outra vez

Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar

duvidei se iria algum dia voltar

Devo estar contando isso com a alma cortada

Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa

divergiam em um bosque duas estradas

e eu escolhi a menos viajada

e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar

Ramos)72

72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I

stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other

as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though

as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on

to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and

82

Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser

filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que

natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees

favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de

se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata

das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para

cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio

de que nem todos chegam a fazer filosofia

Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do

mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos

mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo

conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente

de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns

natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais

Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem

com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda

de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico

canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio

intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo

coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e

admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas

Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo

sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e

surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem

a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc

e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria

hierarquizante e excludente criada pelo intelecto

ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made

all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-

americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017

83

Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou

de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de

selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos

educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute

nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado

preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute

uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim

pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73

Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo

e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo

(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa

transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a

despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o

comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas

filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade

de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso

ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos

agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva

As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam

ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo

questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se

na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977

paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz

com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas

soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades

de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar

enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)

Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores

seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as

73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de

dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han

trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo

no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho

propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por

lo que seraacuten

84

questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo

posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela

opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se

apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais

variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual

no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar

a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade

O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de

pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)

Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira

de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo

ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia

ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)

Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com

preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas

Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois

estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num

pseudoquestionamento que oculta uma certeza

Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica

Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a

leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com

historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no

portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive

remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena

Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam

verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem

mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo

toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira

com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)

Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para

a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja

dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o

85

finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido

canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente

coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento

A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao

questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e

ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por

uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por

exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu

patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua

realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como

oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima

Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame

debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da

filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial

A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo

de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem

de peacute agrave tormenta

O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva

uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER

1977a paacuteg 324)

25 Diaacutelogo e filosofia

No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos

contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso

porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem

a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro

Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees

Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e

controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser

frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado

apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo

tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor

86

encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco

pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real

Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro

determinaram que as coisas assim se passassem pois eles

sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila

Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo

hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg

457)74

Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder

agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas

acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com

este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se

apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a

uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO

2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente

tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo

soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira

semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo

nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta

que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente

que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da

questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os

posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo

entre as partes

Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se

aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido

a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um

percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela

Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave

identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois

74 Livro XXII linhas 301-304

87

elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se

aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda

diferentes

Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue

radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel

categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e

da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta

nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia

e mudanccedila

Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser

aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca

assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro

quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio

movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem

num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a

dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)

Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num

movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos

devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A

filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para

que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida

literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia

natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias

Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo

progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um

Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de

cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes

discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo

que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a

diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade

O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo

tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no

questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo

88

pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia

sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois

arduamente conceituaacutevel

Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem

forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu

sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como

tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou

natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel

com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas

nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute

uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo

entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76

O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio

reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele

natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve

ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo

partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute

medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem

O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a

instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se

por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo

acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do

mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute

a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo

se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)

Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua

manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos

pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o

75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη

89

inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio

Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute

para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro

fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que

vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos

fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver

Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida

segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se

debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do

sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do

estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia

apenas um sonho nebuloso e fugaz

Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel

dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa

escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao

menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e

com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte

Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo

algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal

ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando

de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com

as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II

Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria

facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis

obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois

casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que

78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg

92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-

Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio

90

lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO

1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81

Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade

desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um

diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos

seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva

sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991

paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um

diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel

falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente

se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel

Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua

toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees

tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas

agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que

uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo

posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto

da filosofia em geral

Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos

upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que

versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava

escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio

acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []

Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas

que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda

sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele

passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono

para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse

por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)

Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante

de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου

81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so

verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur

gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem

remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em

lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017

91

conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud

KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao

Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos

mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador

natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio

ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o

sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando

satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83

Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos

ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo

agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser

algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do

soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e

dormir

Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais

nobre para a alma suportar os dardos

e arremessos do fado sempre adverso

ou armar-se contra um mar de desventuras

e dar-lhes fim tentando resistir-lhes

Morrer dormir mais nada Imaginar

que um sono potildee remate aos sofrimentos

do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos

que constituem a natural heranccedila

da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se

Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)

Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite

posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o

entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo

a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a

questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo

perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com

83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά

ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)

92

visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta

dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84

Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe

como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a

vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou

desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente

e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa

em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida

que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver

morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma

maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais

Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-

istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute

incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto

correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a

inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo

mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia

a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa

Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer

Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse

caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos

da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o

homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista

manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso

torna-se presente a todos

Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos

das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia

84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων

ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς

μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)

93

exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo

do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio

viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse

embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral

vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se

deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ

(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar

querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de

uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se

desvencilhar totalmente disso

Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute

convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por

imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do

certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo

da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos

convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa

vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar

O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta

definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a

matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos

olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada

responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade

Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de

batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes

volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa

e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia

de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto

86 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3

Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo

(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)

94

eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer

isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho

Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um

seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento

50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio

ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo

ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de

complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia

pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida

sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja

qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele

natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo

Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais

simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um

[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o

mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se

revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]

dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido

de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em

sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee

constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)

Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal

necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas

com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse

somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem

haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer

possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo

houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo

minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira

ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer

Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O

que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo

e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade

95

se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash

Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo

satildeo outros quinhentos

96

3 Pensando a Linguagem

O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres

nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco

zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres

cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade

Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma

ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua

histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos

seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo

em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc

De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta

a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger

(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der

Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira

de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da

existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui

nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase

sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana

Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come

e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe

precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os

demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem

que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do

homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente

ele pode ser

Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo

ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se

a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer

posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se

atentar aos modos de ser

97

Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais

consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em

sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob

pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa

Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto

dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente

O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua

vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir

fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar

uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute

Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o

paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute

encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo

dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala

natildeo precisa calar

Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os

demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem

existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de

fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se

atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na

causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem

Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade

no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o

homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se

complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro

(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono

dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala

perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)

O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc

se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave

medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo

somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore

98

Retoacuterica 1

Cantam os paacutessaros cantam

Sem saber o que cantam

Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89

Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega

que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem

na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz

o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente

Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que

corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a

existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que

eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado

compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave

escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias

Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute

o possiacutevel

De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela

natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento

sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem

significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que

concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος

Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela

O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas

decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta

atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem

sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de

respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta

correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e

89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta

99

doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na

instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai

A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-

se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o

homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo

livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora

funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar

sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas

interpretando experienciando tornando-as de fato obra

Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate

Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter

o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los

no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada

um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra

a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)

Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por

completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como

tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem

colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se

ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso

precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e

pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder

acontece

A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta

Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme

Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa

interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou

enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue

90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und

Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung

100

de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram

distintamente a noacutes

De cajado

rutilante

eremita

do profundo

vai a lesma

cada instante

recriando

nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)

No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade

Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade

opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave

ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees

sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer

para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por

aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos

arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos

perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do

profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)

Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e

deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso

eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que

se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo

aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute

desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele

que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre

os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar

como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO

AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)

Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do

λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o

tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a

91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von

Arnim conforme nota do original

101

desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede

o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda

que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade

Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se

deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente

ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive

logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo

convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a

alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador

estivessem ateacute em outras dimensotildees

Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a

como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de

confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος

retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de

luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam

acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em

sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o

ponto fora da curva

31 Linguagem e limite

Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria

natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo

Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo

o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre

foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um

tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras

inquietando os homens

Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo

impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em

102

estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do

status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue

a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein

Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute

ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo

(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do

aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto

Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se

debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso

pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que

antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida

Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433

GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY

Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim

(GLARE 1968 paacuteg 537)

Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a

Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1

repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da

funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das

palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale

agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai

Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com

o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos

satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais

pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles

92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-

binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain

mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2

Fknumigt Acesso em 05 ago 2017

103

encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um

juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95

Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por

tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de

importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter

solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET

2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos

confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade

seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do

sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com

todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97

Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica

conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do

empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o

trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los

quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos

alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico

pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras

sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na

nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que

algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente

relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante

natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra

O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso

estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante

mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a

95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du

droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces

religieuses et juridiques qui en reacutesultent

104

situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo

aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando

Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer

filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo

com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por

estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela

cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e

consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]

significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo

livre)98

Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva

por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra

Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg

692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de

enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do

problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica

filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute

sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele

Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda

partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um

caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para

remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e

uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado

entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro

em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar

natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho

A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente

natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no

mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro

98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt

105

era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma

alternativa ocorre a cisatildeo do mundo

Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral

marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o

caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte

de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz

sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro

natildeo se encerra nele natildeo necessariamente

Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de

somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a

mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade

de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro

de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo

O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas

diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno

Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do

ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos

e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias

suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da

queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar

O inuacutetil

Disse Hui Tzu a Chuang Tzu

mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade

Replicou-lhe Chuang Tzu

mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade

Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil

Por exemplo a terra eacute larga e vasta

Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza

Apenas poucas polegadas

Sobre as quais se manteacutem de peacute

Suponhamos agora que vocecirc tire

Tudo o que ele realmente natildeo usa

De modo que ao redor de seus peacutes

Um golfo se abra

E ele fica de peacute no vazio

Sem nada de soacutelido

Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute

Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando

106

Disse Hui Tzu

mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade

Concluiu Chuang Tzu

mdash Isto prova

A absoluta necessidade

De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)

Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua

correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra

em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a

profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um

pensamento raso

A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco

diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a

mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa

mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem

somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o

ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem

Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma

atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na

duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo

e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees

da vida

Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos

quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou

menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a

isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no

aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo

107

Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e

destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna

devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace

pelo qual fomos formados a crer e compreender

Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos

Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o

comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes

com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente

livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no

assunto

Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo

fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser

seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga

universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de

Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o

Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em

detrimentos de outras circunstacircncias e localidades

A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de

sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada

vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal

comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar

natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial

a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente

Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas

instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de

diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a

seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo

estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias

concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos

Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo

capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens

sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com

108

os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles

possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las

A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os

males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste

mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios

dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos

comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito

de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se

dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de

tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila

Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu

sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este

acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa

lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens

planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males

disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo

produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas

proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas

por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores

de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus

descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos

sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973

paacutegs 115-116)

Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo

pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel

saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito

Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do

ser a perambular o natildeo ser

Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja

nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja

compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos

simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso

A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo

Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o

Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia

Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma

sombra do Natildeo-Ser

Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava

pegar mas nada pegava

Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto

mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo

Posso compreender a ausecircncia do Ser

Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada

109

Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute

Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)

Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que

percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem

iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute

ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece

eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente

do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele

Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado

por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato

compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso

eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com

as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que

acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado

respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma

farsa sem trageacutedia

Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da

abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria

muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo

Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao

conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um

arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse

procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da

lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal

mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um

animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de

valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um

uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem

levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)

A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser

fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia

sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades

isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela

produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se

adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado

110

Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na

nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e

sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra

modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo

social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem

comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se

instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo

Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos

pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a

maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a

confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e

com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi

abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua

dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo

Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber

Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica

a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que

nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a

agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela

eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)

33 O limite da resposta

Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da

seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees

a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora

o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser

transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os

conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela

111

responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o

mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber

A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se

amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e

abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a

oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a

tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)

Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide

respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por

mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas

vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso

modela-se sentidos agrave existecircncia

A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel

a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras

palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta

que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo

modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto

verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa

mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a

dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por

modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com

ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as

melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o

maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto

a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos

varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou

na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do

princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor

mdash Exactamente

mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por

justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO

1987 paacutegs 472-473)

Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado

se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a

99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de

Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo

112

pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor

administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a

dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A

imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos

problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua

escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica

Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais

controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer

o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem

tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos

referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo

definitivamente mas um postar-se a

Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do

ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos

tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia

preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel

e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber

que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e

adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila

Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute

uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante

da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os

seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro

ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)

Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade

natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos

a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao

contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas

caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como

para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do

questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute

ser O que eacute quem eacute quem

113

Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute

ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma

resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que

estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece

tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante

Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser

mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo

tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos

que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo

e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que

existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em

identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo

pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que

eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira

da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista

esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes

conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras

(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)

O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que

possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo

traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem

disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a

fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades

quanto encerra-as

Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as

possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber

ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo

114

escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da

vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite

De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de

fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas

necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute

como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave

primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento

caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa

Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila

alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira

infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo

limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no

desdobrar e no responder

A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando

ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos

como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que

perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo

ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir

seraacute de menor importacircncia

Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua

finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que

eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo

Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa

que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de

tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse

presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a

coisa que existe natildeo se esgota nela

Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos

haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a

menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave

vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse

modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave

115

multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo

se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute

pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de

como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador

e constituidor

34 A resposta do limite

Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta

pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca

jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do

pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos

o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos

A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual

nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho

de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim

cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no

mundo

Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo

enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do

tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o

impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse

sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo

(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist

alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo

que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees

Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como

cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve

ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para

realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o

mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo

116

Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas

aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem

das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca

inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na

borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e

definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta

Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs

Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos

relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma

resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou

determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em

nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de

respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o

sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der

Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)

Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade

de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na

carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de

muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de

alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente

conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de

ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute

Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a

totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias

do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades

Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo

imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute

verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e

vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos

encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e

permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como

quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso

117

Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o

pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores

inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo

como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo

livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos

sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias

uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o

tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim

basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim

De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita

ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar

explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e

liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e

liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg

9)

Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa

perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou

jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi

frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma

medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim

para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado

Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo

dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que

dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de

postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em

concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do

tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para

100 Leisure rest ease Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh

2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of

being able to begin ndash must be created

118

ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua

renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102

Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra

no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser

assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem

doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora

natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o

limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser

Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o

haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria

vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o

pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o

profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo

permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns

opiniotildees fechadas respostas banais natildeo

O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a

existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas

tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-

se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer

pensador pode crer

35 Dois lados da mesma moeda

351 A resposta que natildeo soluciona

102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to

figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results

119

Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas

que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)

a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que

natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter

inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo

compra natildeo vende fiduacutecias

Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e

diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua

singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A

resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a

princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que

ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de

ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a

ladainha o carpido ou seja o rito

Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute

substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num

uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia

da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado

feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula

re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS

2009b)

Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela

partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os

verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY

Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs

1082-1083)

Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que

muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar

cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e

103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017

120

estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar

algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila

(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais

fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as

palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi

colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de

solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade

A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de

desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres

Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por

sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute

estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs

sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do

cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere

como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo

situada

A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de

adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que

podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute

ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute

fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade

vigente

Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma

profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos

dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o

termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua

vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os

usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do

sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo

tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar

as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg

75)

121

Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave

proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta

que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo

fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete

ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem

Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa

nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos

Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum

em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais

variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo

do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem

tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder

mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas

experiecircncias

Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio

significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar

profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar

Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado

como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido

significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo

da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um

equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou

daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto

que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees

devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de

profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente

em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)

352 Temor sagrado

Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o

entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um

paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos

anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta

no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor

122

como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se

em sua instacircncia sagrada e profana

Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu

o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave

origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes

significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo

lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste

dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido

restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD

Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104

As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se

aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-

se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares

concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino

Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora

cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns

exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua

doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus

convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)

Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela

sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus

filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo

controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo

demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a

saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda

de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade

[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do

inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo

interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de

identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu

foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo

imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)

104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017

123

Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem

almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos

chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo

das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico

sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias

preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-

agouro

Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida

atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-

lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos

isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos

descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus

da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status

quo

Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute

pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito

de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no

dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto

dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo

de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)

Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos

reconhecemos no que nos transformamos

Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo

que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou

errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante

erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos

como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais

ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel

pensar o contraacuterio

124

Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma

existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis

negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da

notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os

demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo

soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de

um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente

acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de

comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de

paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real

[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele

proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente

a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados

especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode

ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees

diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos

homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa

qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve

permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente

contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse

motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)

Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando

as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute

sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de

Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os

indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas

misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de

infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em

suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes

o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo

(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com

o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel

105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente

humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc

125

Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para

muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade

ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se

afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o

que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o

duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente

nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo

estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar

contemporaneamente

1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser

sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash

embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus

cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua

ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD

Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD

Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em

determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e

perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees

visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109

353 O que responde o sagrado

Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma

tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos

106 Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc

h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of

superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the

Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in

their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua

also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible

representations Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017

126

o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa

histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua

ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo

como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que

seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute

possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de

misteacuterio perene

Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob

a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral

principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na

ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006

paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)

o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa

concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo

1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente

infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente

apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou

condiccedilotildees

2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees

vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110

Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e

misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila

brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum

ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada

acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela

criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees

Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg

51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o

artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma

110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle

following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions

2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=

gt Acesso em 07 set 2017

127

arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte

do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no

ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes

sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite

fundador do nome o ancestral ainda presente

O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio

diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o

incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites

desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se

uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o

tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar

abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM

2000 paacuteg 420)

O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado

Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do

limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem

traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para

manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor

uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana

do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero

esgotamento e enclausuramento do possiacutevel

O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra

ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da

Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua

extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo

(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)

Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de

como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para

poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites

provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores

Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia

que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne

128

cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD

2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita

com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do

controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer

um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e

adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser

rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude

cegueira paralisia ou morte

Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar

a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade

de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se

do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo

podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter

Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano

Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave

etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo

Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha

muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)

Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute

em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder

Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1

Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar

uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado

de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre

casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e

cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos

na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela

Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao

questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o

111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a

assurance of

129

questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto

gregaacuteria e fundadora dos limites

[] Eacute deus desconhecido

Ele aparece como ceacuteu Acredito mais

que sejam assim Eacute a medida dos homens

Cheio de meacuteritos mas poeticamente

o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs

256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112

Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o

aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma

adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua

desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua

plenitude

Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido

parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o

compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de

beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer

libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o

santo que a cultura popular tanto conhece

Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave

terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta

em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem

da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra

que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado

que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que

eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer

no tempo

112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas

istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)

[hellip] make libations Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2

Fndwgt Acesso em 08 set 2017

130

O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O

que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental

do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio

na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao

banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico

131

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou

o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que

se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma

coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse

vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio

de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta

ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg

257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute

preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas

mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo

tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar

as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente

Fiz de mim o que natildeo soube

E o que podia fazer de mim natildeo o fiz

O dominoacute que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me

Quando quis tirar a maacutescara

Estava pegada agrave cara

Quando a tirei e me vi ao espelho

Jaacute tinha envelhecido

Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado

Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio

Como um catildeo tolerado pela gerecircncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg

124)

Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e

encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de

ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas

criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia

mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que

diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e

tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz

132

Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua

existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como

improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura

deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio

a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos

investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas

partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas

tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma

loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica

Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute

e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo

essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham

que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs

aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o

ensino e para o pensamento

Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas

seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser

eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela

ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria

Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que

exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por

aiacute vai

Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia

o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a

noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia

de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo

cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo

que ainda sangra

Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com

conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso

modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores

nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo

133

Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro

empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades

Vocecirc eacute o herdeiro

Filhos satildeo os herdeiros

pois pais morrem

Filhos ficam e floram

Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114

Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao

ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que

estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino

eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo

inquiridora que sabe e natildeo sabe

Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico

precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico

eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de

avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no

caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para

passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno

sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas

ainda natildeo eacute tradicional

Mar Portuguez

Oacute mar salgado quanto do teu sal

Satildeo lagrimas de Portugal

Por te cruzarmos quantas matildees choraram

Quantos filhos em vatildeo resaram

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso oacute mar

Valeu a pena Tudo vale a pena

Se a alma natildeo eacute pequena

Quem quer passar aleacutem do Bojador

Tem que passar aleacutem da dor

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu

Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)

114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der

Erbe

134

O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo

e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por

meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado

pelas questotildees que nos interpelam

Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no

tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar

prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de

confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves

demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra

acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais

como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute

do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido

e ao ensino o cuidado esperado

Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas

dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo

conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do

conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados

numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de

eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de

categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis

por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo

Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem

traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus

praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das

opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a

contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do

subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal

foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos

ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos

A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro

Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico

A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente

135

contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave

vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o

equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos

Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes

a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A

questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o

ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida

Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de

ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado

primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e

precisava ter um nome

A palavra

Prodiacutegio distante e louco

Minha margem agrave sua eacute pouco

Aguardei ateacute a parda Parca

E encontrei o nome em sua marca ndash

Eu pude atecirc-lo com teso

Para brilhar e luzir preso

Ansiei por bom vindouro

Com fraacutegil e raro tesouro

Toda via Ela me dizia

mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia

Eis que escorre entre meus dedos

E agrave paacutetria dou enganos ledos

Triste entatildeo soube abdicar

mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash

traduccedilatildeo livre)115

Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com

o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de

115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die

graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und

glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie

suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann

Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort

gebricht

136

morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a

linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham

novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura

poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento

do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute

a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico

137

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APEcircNDICE

TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

151

RESUMO

Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas

Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de

filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio

com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte

de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade

Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio

de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens

em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com

isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco

Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem

Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do

demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo

apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

152

ABSTRACT

Three poetic-philosophical experiences

Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy

with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a

classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is

exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is

discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third

movement carried out both with children and with young people in pairs a person is

blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to

control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear

the unique existence that each child young and even adult have Their inventive

questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and

accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

153

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165

Figura 2 ndash A morte 166

154

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 155

Quando a vida nos diz natildeo 157

Objetivo geral 157

Objetivo especiacutefico 157

Proposta para a atividade 158

Fluxograma 160

Relato da experiecircncia 161

Reflexatildeo com a experiecircncia 169

Exerciacutecios de ser crianccedila 171

Objetivo geral 171

Objetivo especiacutefico 171

Proposta para a atividade 171

Fluxograma 174

Relato da experiecircncia 174

Reflexatildeo com a experiecircncia 177

A cegueira da visatildeo 178

Objetivo geral 178

Objetivo especiacutefico 178

Proposta para a atividade 178

Fluxograma 180

Relato da experiecircncia 180

Reflexatildeo com a experiecircncia 183

Consideraccedilotildees finais 186

Referecircncias 188

155

Apresentaccedilatildeo

A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do

Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais

especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim

da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa

do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor

Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem

se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade

diante do mundo

O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel

na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos

contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da

direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar

os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na

escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias

filosoacuteficas

Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem

sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos

Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos

que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se

restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute

sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia

dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis

pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas

filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos

116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor

recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se

naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo

passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando

156

Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se

refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui

nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital

eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula

tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma

praacutetica proacutepria e singular

A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se

estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada

mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-

estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por

reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de

conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo

de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a

ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu

meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da

turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias

comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar

em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

157

Quando a vida nos diz natildeo

Objetivo geral

A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir

conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo

perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas

filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e

experiecircncias comuns da idade

Objetivo especiacutefico

Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton

Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que

conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um

acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do

homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade

de controlar a vida

Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de

um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse

deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem

de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o

desdobramento filosoacutefico apropriado

158

Proposta para a atividade

Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos

de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para

trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio

agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve

prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um

questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou

estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma

simples chamada pode servir de chamariz para esse instante

Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa

ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como

um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-

se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam

o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem

Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra

conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute

lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria

requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem

sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade

eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo

Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte

de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se

que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da

turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por

isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem

detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo

O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos

pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio

da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos

os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade

159

Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem

chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute

interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo

embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em

psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio

Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as

opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada

um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais

podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao

professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder

esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula

Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute

lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro

seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e

os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os

alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito

pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do

homem com a realidade reforccedilando o argumento

Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo

encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do

ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo

e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados

descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um

tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma

interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o

que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve

explanaccedilatildeo

A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a

responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas

prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi

traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia

160

de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais

breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser

Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa

ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no

filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja

essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam

vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos

expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores

Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem

resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de

controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo

que assim o faccedila

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa

palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado

na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos

3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito

poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos

4 Exibir o curta ndash 25 minutos

5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa

6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se

correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme

responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos

161

8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos

9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou

um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim

desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais

Relato da experiecircncia

Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se

gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem

demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a

depender da turma

Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o

cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma

coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a

relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte

pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte

uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra

cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele

gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo

Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a

morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias

Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no

limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se

mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo

ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda

tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o

principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de

quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo

acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a

162

novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas

ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan

Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo

contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo

uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente

quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim

todos teriam o direito de falar se quisessem

Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)

teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto

[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para

que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma

pudesse viver

A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje

o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu

respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as

pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi

porque o corpo foi costurado

Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave

experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As

colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais

praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural

foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito

de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real

se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis

Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim

de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou

dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha

acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com

o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou

soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma

como ficaria o corpo

163

Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com

os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na

501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido

Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa

turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte

Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que

sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos

remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro

a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e

uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator

decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar

Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que

o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato

de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute

tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo

XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios

e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina

com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela

Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas

crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem

experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma

forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida

que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)

Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado

associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez

tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um

pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma

essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele

podia se machucar natildeo eacute Alex

117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees

164

O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte

e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas

natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate

gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave

noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha

sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502

E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o

pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam

Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu

Vanise mdash A morte fica perto da pessoa

Julia mdash Eu acho que sim no momento certo

Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o

cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um

cheiro deixou um rastro

Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o

carro

Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em

seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que

ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder

sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo

influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema

Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos

mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse

aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova

demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy

confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque

supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido

165

Figura 3 ndash Calvin e Haroldo

Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005

Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo

tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a

aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um

trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu

da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como

na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente

Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice

do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora

para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado

sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo

Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento

de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com

repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse

algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles

amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo

Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo

a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque

eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo

eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte

acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos

eacute proacuteximo e familiar

166

Figura 4 ndash A morte

Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009

mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via

das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da

gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma

coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)

Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para

natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade

Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e

brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar

velas aromaacuteticas)

As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a

mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas

natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas

como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da

admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto

A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se

aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo

animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por

natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius

118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato

Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma

pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos

167

Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou

Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais

focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto

enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que

vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo

A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de

compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos

uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que

faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da

imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima

da morte

Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia

ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha

alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne

apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer

com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente

Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se

processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia

menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre

a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um

caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele

sobe Eu tenho certezardquo

Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs

ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim

ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e

jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25

ceacuteus

Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute

um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no

estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a

turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto

168

entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre

noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees

Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos

membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos

prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos

fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa

mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa

ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei

ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar

de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por

que natildeo falar de outras religiotildees)

Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e

quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo

menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo

sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo

moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa

maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se

afirmar com destreza e propriedade

A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o

que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo

convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito

Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto

Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele

tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre

foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra

o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando

conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela

Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila

grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo

esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute

presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a

169

serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da

morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda

Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes

do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y

marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia

traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la

dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)

Reflexatildeo com a experiecircncia

Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem

Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos

e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita

alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria

Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada

invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar

Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do

homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse

sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a

ocidental

Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato

mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que

nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das

coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las

119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se

perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996

paacuteg 15)

170

A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas

mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa

possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha

mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder

compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos

relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus

nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas

quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto

respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais

conhecimentos a respeito

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

171

Exerciacutecios de ser crianccedila

Objetivo geral

Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto

dos demais

Objetivo especiacutefico

A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os

alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro

desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse

exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz

respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica

Proposta para a atividade

Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes

ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os

recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma

exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre

os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro

para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por

uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles

deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado

172

Exerciacutecios de ser crianccedila

No aeroporto o menino perguntou

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho

O pai ficou torto e natildeo respondeu

O menino perguntou de novo

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste

A matildee teve ternuras e pensou

Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes

da poesia

Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados

de poesia do que o bom senso

Ao sair do sufoco o pai refletiu

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianccedilas

E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)

Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor

ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um

poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um

simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os

outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos

para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por

exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute

preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma

Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo

deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha

dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio

logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi

problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a

Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a

crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)

O menino que carregava aacutegua na peneira

Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos

Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira

A matildee disse que carregar aacutegua na peneira

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmatildeos

A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua

O mesmo que criar peixes no bolso

O menino era ligado em despropoacutesitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos

173

A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do

que do cheio

Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar aacutegua na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar aacutegua na peneira

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila

monge ou mendigo ao mesmo tempo

O menino aprendeu a usar as palavras

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras

E comeccedilou a fazer peraltagens

Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando

Ponto no final na frase

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela

O menino fazia prodiacutegios

Ateacute fez uma pedra dar flor

A matildee reparava o menino com ternura

A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta

Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda

Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens

E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs

469-470)

Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute

indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade

Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica

eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira

pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram

focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A

linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou

outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como

manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira

matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo

Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo

de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute

aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que

sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que

fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos

solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para

a questatildeo

174

Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um

comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito

importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os

pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra

qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo

Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser

crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro

nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas

eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros

possiacuteveis pensamentos

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam

comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do

diaacutelogo ndash 15 minutos

4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos

Relato da experiecircncia

Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por

mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um

encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido

levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que

era ser crianccedila para eles

175

Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana

passada

Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser

crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi

muito divertido

Vanise mdash Foi

Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)

Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra

Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno

Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila

Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora

de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever

Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute

coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a

gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver

Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a

resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O

proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas

brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira

de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser

crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva

Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo

Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e

pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que

pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente

pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias

formas

Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo

soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa

Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma

brincadeira

Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser

uma brincadeira

Vanise mdash Por quecirc

Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas

escrevendo

Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar

Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser

crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali

no papel e eacute divertido

Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido

mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se

iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis

176

Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar

O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles

tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer

assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute

eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute

trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc

estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do

exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em

todo momento faz uma piada ri essas coisas

Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de

brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila

Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria

Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta

Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu

negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute

muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando

instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois

fico tocando bateria

Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser

crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com

o teu pai

Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos

na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem

me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia

A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem

bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo

crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que

brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como

crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento

Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo

necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu

pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o

filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades

precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente

somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de

vontade vale dizer mas de entrega

177

Reflexatildeo com a experiecircncia

Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais

complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou

meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de

propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias

diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial

Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e

escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem

preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de

deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em

meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto

muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira

cuidados

178

A cegueira da visatildeo

Objetivo geral

Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar

questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle

Objetivo especiacutefico

Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute

guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de

se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o

desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para

confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que

suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o

papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia

Proposta para a atividade

Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material

didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo

pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos

que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita

em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo

Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos

entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma

179

turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles

podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha

ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para

idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante

Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois

em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga

Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma

possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no

guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma

digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela

visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla

Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-

se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante

eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila

Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos

comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem

vir a contribuir com a discussatildeo

Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em

ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios

dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma

explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao

inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15

minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser

mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual

Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com

mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira

experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo

180

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15

minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos

4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos

Relato da experiecircncia

Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa

argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi

ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais

duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle

pela visatildeo

Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado

Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a

pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33

segundos

Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com

duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter

suas falas aqui colocadas

Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria

de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir

Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar

na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto

subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo

isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada

(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra

181

Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de

Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais

o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou

como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse

bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os

olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a

visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda

retomamos a atividade

Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura

para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante

eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma

moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos

[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os

pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no

banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora

Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa

enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs

forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo

quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do

estrondo

A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia

optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito

imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As

duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto

ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava

descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos

Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a

cabeccedila

Thayrine mdash Que medo

Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo

drsquoaacutegua para ela

Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se

pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas

tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar

Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se

182

repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10

segundos

Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo

e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da

discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo

professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente

e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da

explanaccedilatildeo da atividade seguinte

Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia

Patriacutecia mdash Eu gostei bastante

Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio

Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram

Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com

a funccedilatildeo de guia

Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos

dela

Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a

experiecircncia toda

Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira

Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso

Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas

Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na

Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar

Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo

Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia

enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo

Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia

Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se

estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa

Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e

poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre

Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase

derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-

se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento

distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de

conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute

sabemos para experimentar algo novo

Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria

desviado

Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente

proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute

habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc

Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa

experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado

Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma

necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se

vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve

nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou

fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno

183

Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma

alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute

conduzindo

Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa

forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento

natildeo

Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute

satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo

interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz

parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem

outro mas ambos Esse eacute o desafio

Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre

matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem

enxerga tenta guiar de alguma forma

Patriacutecia mdash Eu concordo com ela

Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de

por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos

anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio

Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final

Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado

eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute

sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo

outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc

possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente

Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe

tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de

algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se

guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do

seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu

tinha que tocar em tudo eacute diferente

Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que

por outras vias

Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do

controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a

discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao

todo foram cerca de 45 minutos

Reflexatildeo com a experiecircncia

De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade

Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que

eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra

quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)

184

temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em

detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade

eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo

XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes

Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo

E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir

Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a

razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa

ver para ser homem

O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por

esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo

traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo

grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo

(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como

o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses

Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo

Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)

reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do

que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo

corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem

Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito

de onde o homem se torna presenccedila

Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira

remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem

que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo

engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da

presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas

pelo homem atual a saber noacutes mesmos

Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que

haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se

pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que

se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas

185

a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite

da visita agrave presenccedila do outro

Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante

distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de

sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada

parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o

proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro

nossa forma de ver o mundo

O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha

para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que

danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo

Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses

estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos

salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata

Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender

ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo

poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo

valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos

ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN

2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e

recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo

devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita

(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer

186

Consideraccedilotildees finais

Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o

intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e

o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo

de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo

deste trabalho

A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou

ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua

transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que

lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do

ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes

rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais

ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser

e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser

assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse

motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial

Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos

familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se

perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez

em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos

centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre

teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob

semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por

modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar

aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo

Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a

segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o

pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o

modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada

de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente

187

no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada

de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de

se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle

Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo

existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e

consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica

de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de

como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a

recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute

resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra

e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA

1934 paacuteg 64)

188

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O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA POEacuteTICA

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

DEDICATOacuteRIA

Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia

Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da

Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria

Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos

respectivamente

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas

gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma

obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro

tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e

da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de

enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute

conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo

Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute

pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois

verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de

sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-

me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos

O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece

automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal

tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o

movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir

uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares

um presente inesperado

Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical

do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam

respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo

de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de

matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o

porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos

Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos

sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa

tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas

que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor

opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo

acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser

e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque

corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar

com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda

amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para

os homens para a cultura pensamento e agradecimento

Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar

e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um

pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se

encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o

centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro

irradiador

O Misteacuterio mora

Girando na roda o homem danccedila e ignora

Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo

de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1

Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute

a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a

respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino

que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando

possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees

Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o

iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo

parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa

filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico

a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha

com a verdade em sua multiplicidade e concretude

Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda

com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado

a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha

esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma

1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows

significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem

que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se

tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte

Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute

nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro

lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me

ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado

pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A

terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte

sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz

Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute

aquele da partida

A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma

espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos

de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer

mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a

mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo

eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade

ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido

Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente

um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente

diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo

que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui

Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer

escrever

Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez

anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter

de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-

se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua

quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas

balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo

Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na

histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro

Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por

isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser

testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de

paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O

que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos

passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que

qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma

Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro

Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila

que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que

compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo

Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo

Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa

mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as

personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras

desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda

eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns

rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo

lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de

aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar

subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a

gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e

nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a

obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio

fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo

reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta

figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador

Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus

pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito

Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo

e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar

a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias

heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta

reaprender a viver depois disso Obrigado

Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na

minha Defesa

Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida

Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon

Amanda Falconi Jessica Natarelli

Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento

Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira

Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso

Caio Cruz Priscila Loureiro

Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa

Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho

Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz

Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa

Giovanna Giffoni

E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho

Allan Charles Marcus Caetano

Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas

Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira

Carla Rodriguez Mariana Rodrigues

Daniel Forain Nicole de Oliveira

Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso

Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos

Felipe Copque Rodrigo Wentzel

Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute

Fernando Sampaio Taynaacute Rosa

Flaacutevio Chame Thiago Pereira

Gabriel Torres Vanise Dutra

Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan

Guiomar Borges Yasmin Motta

Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram

Liacutevia Egger Demais professores que me formaram

Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram

Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram

EPIacuteGRAFE

Aacutervore genealoacutegica

A mais frondosa aacutervore da cidade

Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio

Seu viccedilo traz de longe uma saudade

Que a bruma envolve toda em misteacuterio

A seiva lembra sangue escurecido

Sangue que me sangra jaacute esquecido

Do pai do pai do pai (um fruto antigo)

Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo

Comer a carne doce recolhida nesse horto

Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)

Que restou de um ancestral

Thayrine Kleinsorgen

RESUMO

O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica

Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade

originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes

da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco

importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie

diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e

consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino

Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem

do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute

relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e

da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e

poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos

adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras

estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do

que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute

sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto

recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para

uma poeacutetico-filosofia

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

ABSTRACT

The teaching of philosophy from a poetic perspective

Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity

with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a

discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and

objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so

one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of

transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy

could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character

which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet

and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge

between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to

return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain

moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what

constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a

restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question

in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22

112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42

122 A ideia e o ser 43

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57

21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60

221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80

25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96

31 Linguagem e limite 101

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106

33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118

352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150

15

Introduccedilatildeo

Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais

diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar

Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta

claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um

modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um

conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees

E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores

o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e

competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e

consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo

natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria

noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta

Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela

funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a

educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante

pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a

fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte

delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a

educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que

ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles

Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o

seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio

o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido

quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa

vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia

Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora

eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu

mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do

Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo

16

peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo

de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina

mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc

Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como

cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa

margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg

62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil

capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo

para por precauccedilatildeo posterior usufruto

Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na

confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a

um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e

aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no

fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na

mensagem

Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer

qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do

sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda

assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo

O artista inconfessaacutevel

Fazer o que seja eacute inuacutetil

Natildeo fazer nada eacute inuacutetil

Mas entre fazer e natildeo fazer

mais vale o inuacutetil do fazer

Mas natildeo fazer para esquecer

que eacute inuacutetil nunca o esquecer

Mas fazer o inuacutetil sabendo

que ele eacute inuacutetil e bem sabendo

que eacute inuacutetil e que seu sentido

natildeo seraacute sequer pressentido

fazer porque ele eacute mais difiacutecil

do que natildeo fazer e dificil-

mente se poderaacute dizer

com mais desdeacutem ou entatildeo dizer

mais direto ao leitor Ningueacutem

que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)

17

Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula

confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os

dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela

corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave

toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um

conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao

sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria

difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas

Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois

como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente

ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de

passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra

Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que

brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que

aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma

traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois

ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos

singulares

Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos

defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava

estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que

delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo

Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua

inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no

real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na

banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra

como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu

Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho

aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por

assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso

significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a

fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso

18

A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre

outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a

indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum

acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo

menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e

consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar

Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses

somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada

presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou

salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por

cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo

de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em

sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia

Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico

hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o

controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem

poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute

conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo

fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas

mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou

verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro

Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter

credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo

Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria

o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da

verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas

agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio

vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar

Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real

Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a

verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no

ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade

19

demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser

solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do

pensamento cientiacutefico

Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento

de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das

manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria

o ser representado e por isso deveria conduziria os homens

Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma

natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a

sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo

ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a

poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da

ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves

graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor

originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades

Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo

possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem

medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado

sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um

rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa

medida estaacute inseparaacutevel

Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no

que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes

datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas

essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem

concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem

poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees

abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo

e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento

20

1 Pensando a Educaccedilatildeo

11 O ensino decide por dizer

O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho

natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente

a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se

se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se

corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que

natildeo temos controle

Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os

esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute

aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma

concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido

pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento

Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta

inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute

necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma

pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa

mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se

adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo

execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da

histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas

exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o

significado de ensino

Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em

determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim

fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no

poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a

paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos

programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O

conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que

21

foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que

deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de

dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por

outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os

homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)

Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o

convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma

festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar

sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila

ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele

evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas

A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso

sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite

seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre

dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca

de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O

ensino decide por dizer O que ele diz

Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura

e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que

tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele

Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento

ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos

pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido

Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel

portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute

possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total

incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste

trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre

condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer

Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um

saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-

signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do

latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua

22

vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo

caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com

marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo

(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2

Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em

algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila

De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash

por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que

ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres

111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc

Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar

sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo

delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem

distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser

em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute

constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo

A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino

debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias

de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1

Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno

de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem

semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da

composiccedilatildeo insigne + -itussup2

A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo

formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash

2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To

adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []

23

traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo

explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente

visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE

1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5

Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos

que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos

que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo

do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos

fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o

vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)

Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em

portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se

assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a

uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim

fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)

nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto

forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω

ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889

Οἶδα)8 respectivamente ver e saber

Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave

primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos

que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas

e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel

enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel

compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se

4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em

27 set 2016 7 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233

0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3

Ddagt Acesso em 27 set 2016

24

fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu

mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A

experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que

natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender

seu ensinamento concreto

Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser

uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta

que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido

toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos

foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL

2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)

O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e

dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas

calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo

em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja

a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo

Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo

estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer

apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma

multiplicidade de limitaccedilotildees

Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta

Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos

Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes

E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila

Nem aqui vinhas

Brinca na poeira brinca

Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos

Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la

Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar

O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo

sujas

Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo

Sabes que te cabe na matildeo

Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior

Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006

paacutegs 42-43)

25

No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma

cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver

imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que

distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo

do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da

presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que

conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a

pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de

geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra

nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar

O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou

representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de

ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra

poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial

esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo

da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto

palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque

de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra

poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007

paacuteg 43 ndash grifos no original)

O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com

pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que

pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse

conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica

muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel

(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de

manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela

experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo

No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-

se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado

essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos

portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor

Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como

sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer

26

crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e

restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse

modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja

esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave

minha portardquo

112 Um saber que rasga

Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος

faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento

Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta

dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo

acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que

transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou

intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a

sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en

lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)

Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg

970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram

incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O

signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a

impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel

de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos

sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo

estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou

movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-

1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum

Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra

essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a

concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua

27

simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos

homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo

seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao

simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela

coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER

1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9

Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de

ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de

emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute

representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta

quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude

de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado

transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que

isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita

concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o

agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo

categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto

e conhecido do fazer

Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte

da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento

de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos

apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam

respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia

humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais

andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se

transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute

uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo

o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda

O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o

concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das

9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen

28

coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo

eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo

Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute

sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a

singularidade dos caminhos

Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a

Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no

discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute

a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define

explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas

natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora

em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve

Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo

poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O

camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria

obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a

mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013

paacutegs 27-28)

Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto

eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste

sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a

propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a

verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se

capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel

Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a

ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel

O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a

isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um

esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia

confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes

estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo

eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos

fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo

agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito

Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco

+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma

29

experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado

etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo

-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e

que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE

1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco

1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar

recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte

remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar

atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento

fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo

etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968

paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10

A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny

(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem

e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que

se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da

etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento

posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que

rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um

saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees

sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras

da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura

brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste

mesmo saber

sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim

secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim

sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca

entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage

(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11

10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from

to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water

air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in

ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip

abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo

if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage

30

Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg

56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o

proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas

aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave

opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz

Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da

experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que

demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade

seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra

forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz

diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no

que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada

um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas

que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites

[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12

Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio

A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13

Na janela a neve cai

Prolongado soa o sino da tarde

Para muitos a mesa estaacute posta

E a casa bem servida

Alguns viandantes da erracircncia

Chegam ateacute a porta por veredas escuras

Da seiva bruta da terra

Surge dourada a aacutervore dos dons

O viandante chega quieto

A dor petrificou a soleira

Aiacute brilha em pura claridade

Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de

Cavalcante Schuback)14

12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und

das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden

bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte

die Schwelle

Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein

31

Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave

certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz

versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva

em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com

cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como

descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra

singularmente em portuguecircs

O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como

o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no

dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute

soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e

traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica

estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa

Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a

soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto

a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo

teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz

uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute

soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar

categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a

unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa

Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os

diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se

mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som

sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e

w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som

continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro

terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente

Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua

quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma

pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez

32

constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude

Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para

coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde

haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar

A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos

Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de

vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra

que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho

tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond

retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer

agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor

A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria

mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade

A linguagem fala

O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar

Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER

2003 paacuteg 26)

Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia

de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as

distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre

afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006

paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar

no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo

seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera

informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo

ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda

Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que

ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que

o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de

aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber

do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender

nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia

quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)

33

113 Natildeo ensinar e a ciecircncia

Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com

as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo

ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o

pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis

sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento

impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o

conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute

compreendido

Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar

Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as

variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico

cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do

processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o

ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito

Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino

serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o

cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o

desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta

procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou

mais por menos tempo o que costuma coincidir

Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode

permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-

se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade

se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas

eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao

sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma

aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo

34

de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos

ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL

SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15

Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo

Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o

real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a

verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido

observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto

esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός

ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16

Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία

como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que

ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute

originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17

O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta

era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos

habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia

com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e

diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras

15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves

embassy mission Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri

2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2

Fa2gt Acesso em 14 set 2016

Cf Θεά Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2

F1gt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὁράω Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra

2Fwgt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὤρα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2

Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh

2Fqeia Acesso em 14 set 2016

35

animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses

seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A

verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir

Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta

Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras

a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de

valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs

1-2)

Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era

possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que

remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser

possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo

possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo

apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que

natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora

Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a

demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto

tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave

lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo

significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe

[]

Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos

se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e

vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela

orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo

satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo

que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE

2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)

Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar

cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do

mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de

que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos

conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida

o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute

ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo

36

de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo

claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel

A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico

objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse

lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O

importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do

desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo

(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)

Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar

o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar

para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e

desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar

a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas

metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma

vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico

ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias

discerniacuteveis fossem

Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar

conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser

ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no

sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro

do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua

plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se

aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave

plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se

inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos

referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se

respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa

concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do

nada e do ente de origem e de plenitude

Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito

ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino

seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo

maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave

37

disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito

a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas

vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg

9 ndash traduccedilatildeo livre)18

Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila

fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe

que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los

literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania

mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg

157)

Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma

dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo

homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a

irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na

e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo

(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens

que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da

vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que

natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que

natildeo permite adoraccedilotildees alheias

A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser

inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na

estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este

papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de

tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)

Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas

categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances

apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu

destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular

18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la

experiencia de la infancia

38

114 O jogo do poeta e da infacircncia

Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo

natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao

contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo

ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade

apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade

Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de

profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais

que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este

vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite

funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos

caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma

cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se

Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem

que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza

nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante

mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave

margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo

suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)

A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar

as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade

isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico

do pensamento e do ensino aqui propostos

Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar

os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e

pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de

controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado

mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os

alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo

39

logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a

necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos

Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina

com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute

neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o

converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz

nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus

educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19

Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia

em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade

cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo

contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente

construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo

(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos

sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas

A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho

natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria

uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de

produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial

para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)

Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como

educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que

satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes

para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar

Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que

decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um

instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee

e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece

diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento

19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender

a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su

alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz

nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores

40

remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo

chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo

Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo

entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e

levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui

vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes

de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de

vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem

quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico

O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de

idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno

literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute

problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos

com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento

que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos

ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa

inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo

(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo

do poeta e da infacircncia

12 A tradiccedilatildeo

41

Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra

disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem

ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de

compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho

na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de

atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo

Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas

gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o

sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados

de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de

valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua

ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)

Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e

criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se

costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo

Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e

educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com

a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um

relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que

determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino

Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo

o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural

e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim

faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras

de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade

cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve

ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave

reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo

Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se

transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo

para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos

receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg

226)

42

121 Quando o poeacutetico repousa esquecido

Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder

compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar

num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de

ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a

induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita

alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do

primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo

(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar

um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se

Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos

houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da

autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta

seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se

suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior

foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que

despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade

O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza

natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada

apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela

autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg

245-246)

Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-

a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter

sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a

partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado

43

Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar

movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido

Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a

simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela

manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar

do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o

seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda

natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no

original)

Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as

coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento

do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o

poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo

nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra

tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito

O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua

concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma

dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo

de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das

vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar

(JARDIM 2005 paacuteg 33)

122 A ideia e o ser

Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana

das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa

a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa

O Universo natildeo eacute uma ideia minha

A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha

44

A noite natildeo anoitece pelos meus olhos

A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um

estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de

pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite

no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo

mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que

a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa

todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem

que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer

O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico

imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia

indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo

mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza

uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da

planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre

(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)

Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia

ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A

pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara

que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo

quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito

do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo

(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro

Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque

realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova

flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute

jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo

Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo

eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)

20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more

45

Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa

sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)

Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo

se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos

relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre

alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar

a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa

limitaccedilatildeo conceitual a ela

Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das

estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a

realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que

nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram

reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se

corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade

que o fulgor das estrelas poderia ter

A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus

nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar

ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma

manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser

superado basta termos mais conhecimentos a respeito

mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites

natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser

limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute

sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []

mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros

Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36

37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um

nuacutemero maior

mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois

acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia

mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

46

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o

compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O

homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser

diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma

infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a

ser o homem

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo

Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma

concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o

modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos

traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem

entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre

tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia

linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido

proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo

(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de

significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua

ignora ou desconhece

Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma

consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro

Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio

processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz

legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)

Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash

conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015

47

Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira

(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar

entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se

mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do

significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento

adiante perpetuando um saber

Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega

transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se

tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens

etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino

b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo

(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo

para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao

seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada

do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno

do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra

Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com

o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por

sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de

entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma

pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das

forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute

mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo

livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25

21 Disponiacutevel em

lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16

set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2

The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional

knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a

position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)

48

Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz

de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez

que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o

verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por

cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes

surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs

falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma

tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972

paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de

passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo

A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo

complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O

primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma

doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a

utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27

De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um

deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda

entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que

ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso

em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois

entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a

entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo

Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa

simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que

faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta

Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um

atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um

comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)

26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead

etc) c to grant (legal possession use etc)

49

A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo

Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta

Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua

dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo

natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os

percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo

entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido

por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com

a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do

tracircnsito das experiecircncias de mundo

A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo

Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel

Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo

entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na

Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O

que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []

(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo

A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para

os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e

especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-

se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho

aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees

O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra

Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna

jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente

pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de

novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de

palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)

Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de

auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no

50

aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda

fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora

pela via popular de traditio

Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se

outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra

traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina

em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e

acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada

como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e

empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015

Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo

Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se

em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela

traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva

rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-

que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela

tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a

mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta

talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares

Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e

consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram

uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas

pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram

tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE

1998 paacuteg 18)

Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser

uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante

aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o

caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta

eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de

tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a

28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016

51

oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela

tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova

Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo

sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se

dispotildee

Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um

comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da

malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam

esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo

do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo

ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo

(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade

prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO

1832 paacuteg 1057)

A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao

portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo

ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo

he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na

formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e

traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-

Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam

com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o

sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da

mensagem

Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de

mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em

narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a

mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real

propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que

permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte

suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer

pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente

52

o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa

adiante em sua possibilidade de autenticidade

125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo

A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor

da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A

histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra

Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que

vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia

Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para

reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua

vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em

determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o

restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com

sua experiecircncia de mundo

Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o

linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute

cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades

embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e

resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso

corriqueiro das fontes propulsoras do nomear

No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que

pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior

parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala

que passou

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido

de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude

do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg

12)

53

Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo

destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma

entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa

deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo

(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave

casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE

VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a

particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta

noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de

cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)

6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL

Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de

surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a

sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila

traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30

Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma

conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se

pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas

culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo

leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso

seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e

realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente

contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em

ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua

interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional

O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de

problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a

alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo

eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os

30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set

2016

54

homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE

1998 paacuteg 85)

Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros

receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante

notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se

enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua

funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute

puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas

agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela

circunstacircncia especiacutefica

Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa

agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de

persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um

uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega

da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade

Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio

Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo

desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela

comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em

amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo

Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela

o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute

tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as

palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que

a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades

regionais

A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO

TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai

nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando

precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona

31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set

2016

55

a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo

(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua

que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias

origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser

encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo

simultaneamente

Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de

popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo

extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua

constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO

2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde

e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)

respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash

ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo

no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como

quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos

fazendo-o seu por instantes

126 Os mutirotildees do homem

Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham

experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma

famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu

para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo

livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina

nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo

Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no

tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um

32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the

kill and served it to fellow-members who came to assist him

56

trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do

caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem

da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue

Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a

qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete

sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos

com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa

como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo

isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam

contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas

Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca

geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as

mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade

e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa

A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de

continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e

temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)

57

2 Pensando a Filosofia

21 A filosofia como resposta

Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo

dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace

Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona

com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o

ensino

Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido

na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega

meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso

porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas

respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila

em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando

um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de

compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989

paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33

Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos

afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo

(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a

problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a

respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao

inominado enveredando pelo inominaacutevel

[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um

coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo

tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo

da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos

sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e

tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se

33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie

58

chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um

outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)

Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro

e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja

dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas

desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances

do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida

a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma

disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo

(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)

Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee

uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos

acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute

pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos

conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)

A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer

contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma

para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente

tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto

haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o

mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela

serve

Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo

bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute

mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio

tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no

vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das

vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo

(BRASIL 2000 paacuteg 44)

O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da

importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres

questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica

59

torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa

mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio

Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar

prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar

a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do

conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no

percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado

Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer

precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que

recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou

necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento

efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo

ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam

fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com

a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)

Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de

reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um

contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas

e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes

debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar

responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso

eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que

o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que

se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)

34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS

Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F

dutosgt Acesso em 11 mai 2017

60

22 Filosofia inteligecircncia e entendimento

Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute

determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em

variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais

da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados

encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia

Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem

que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a

princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo

eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico

e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem

cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo

Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio

de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado

filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto

que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo

de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando

positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por

meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro

seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo

baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)

A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO

2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados

outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia

platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo

natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em

confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e

pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine

61

Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre

perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador

delas

Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua

atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do

perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa

individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem

com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo

livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)

Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o

iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa

disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute

golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia

geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos

seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos

elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)

definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica

lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36

estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a

intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se

a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura

e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no

esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam

parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo

livre)37

ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα

παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ

ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον

35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute

une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em

lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo

Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro

campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these

four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second

assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion

considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of

truth and realityrdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017

62

αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας

ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38

Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da

influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada

de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς

[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον

[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser

assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39

Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO

1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da

filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia

lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e

medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser

primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente

satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro

segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem

se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e

terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42

38 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note

The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could

hardly be thus described Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2

Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2

Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι

δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ

εἰς εἴδη Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017

63

Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por

razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim

de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo

anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes

o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado

Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no

tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada

incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo

Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de

modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo

ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 71)43

Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que

na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]

pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao

longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz

a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta

contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus

membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a

palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de

qual sentido adotar neste ou naquele contexto

Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a

responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo

Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo

de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta

para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a

43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg

70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ

Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά

με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-

alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017

64

palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute

qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente

vaacutelido

Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de

Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma

conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes

sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras

e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras

veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute

estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo

Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece

direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado

pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina

soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato

metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia

paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto

de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor

satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas

Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que

pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da

disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)

O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute

ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo

aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata

tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo

todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do

real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma

palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do

conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito

A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal

homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A

essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento

ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade

apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-

diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg

235)

65

Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira

quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer

como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e

simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra

possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo

princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος

marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando

pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez

adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47

Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental

da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no

real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang

war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos

paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete

grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra

atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora

Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal

rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O

elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal

racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo

referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem

que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia

(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)

Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον

remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais

provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ

λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como

ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem

46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt

Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A

section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017

66

dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme

sugere Andrew Glynn (2015)51

Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις

enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade

mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem

ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo

engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940

Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse

material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse

Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica

a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia

Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este

percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo

estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal

ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a

destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente

a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse

viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos

A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees

enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio

universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro

lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que

o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais

submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice

funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental

(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)

50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1

999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-

animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F

xw1gt Acesso em 08 jul 2017

67

Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias

entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre

διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre

(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo

intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo

διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o

lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao

menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida

que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada

Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς

τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo

como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os

princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder

caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz

uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de

pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da

filosofia embora discernindo ambas entre si

Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma

da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a

duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs

dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos

em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se

portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por

missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo

fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg

XXXI)

Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto

somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos

Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de

imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel

Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os

53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017

68

meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute

sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa

Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a

impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma

ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares

estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta

a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca

houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta

facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males

aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar

Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo

e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o

chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora

lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs

natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola

Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A

terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais

Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda

significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava

o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento

encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo

tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza

E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria

motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer

mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta

pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)

Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje

e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por

ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno

vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais

entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para

convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno

do periacuteodo de influecircncia homeacuterica

Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford

(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender

contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da

poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia

69

na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais

do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um

comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era

a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores

dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta

transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental

da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo

esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as

Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um

grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)

Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e

sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos

problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas

apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas

respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees

e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia

transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo

necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo

Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais

recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o

exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)

A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos

conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico

dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das

finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave

filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico

conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir

valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)

Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no

conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no

Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente

opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de

conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio

absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)

Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a

filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute

rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca

70

da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se

confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita

coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas

e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen

auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)

Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo

para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso

as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes

questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o

pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a

relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com

a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)

Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais

propriedade a imagem-questatildeo colocada

Patmos54

Estaacute proacuteximo

E difiacutecil de agarrar o deus

Onde contudo haacute perigo cresce

O que salva tambeacutem

Agraves escuras vivem

As aacuteguias e destemidas partem

As filhas dos Alpes sobre o abismo

Em singelas feitas pontes

Por isso juntas laacute estatildeo em torno

Do cimo do tempo e as mais amadas

Perto vivem esmorecendo nas

Mais separadas montanhas

Entatildeo daacute pura aacutegua

Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos

Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55

54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a

revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em

lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern

wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten

Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf

Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn

und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em

27 mai 2017

71

Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se

relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas

representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode

veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas

representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens

De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme

Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem

poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo

(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)

A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos

surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao

lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa

espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta

essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as

sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no

mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se

reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no

decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por

essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute

Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos

preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da

literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde

vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado

como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos

teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)

Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de

trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela

histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua

irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e

o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na

qual convivem filosofia e poesia

72

221 Ciecircncia e intelecto

Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da

Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda

entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas

uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash

traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην

καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν

ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo

descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta

subdivisatildeo de νοῦς

Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o

caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de

ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e

faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma

declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento

noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59

Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo

possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica

argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo

deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio

ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα

56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth

conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth

2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2

Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017

73

Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo

distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel

entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse

simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo

Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo

filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo

Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-

se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente

aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona

no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica

[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de

ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda

intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a

si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-

querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)

23 Crenccedila e conjectura

Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos

de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos

referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos

ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A

referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema

Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente

se velava na histoacuteria do Ocidente

Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que

laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das

sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e

calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas

coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas

Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as

quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia

74

Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se

este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ

mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e

imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido

Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma

declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como

a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela

palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua

inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute

creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra

Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a

filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada

para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da

etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se

no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com

as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia

praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se

achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse

realmente vecirc-las

Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]

a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita

apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ

φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos

lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a

εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve

ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63

60 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F

stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO

1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal

como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in

visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510

A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)

so that πίστις should not be confined to the objects of sight

75

Figura 1 ndash As quatro influecircncias

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo

aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa

forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas

tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um

precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias

Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence

independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel

ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das

experiecircncias concretas

Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na

sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo

(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute

ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio

das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente

(ZARADER 1998 paacuteg 210)

Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema

ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso

com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra

arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de

sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra

em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a

64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko

2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017

76

partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a

crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo

contexto em que ocorre

Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte

oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia

e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica

apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades

provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades

universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um

matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash

traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε

πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES

1894)66

Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse

dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de

questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o

convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de

contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade

de acabamento

Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []

de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma

fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma

estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute

construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []

[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam

objetos de toda espeacutecie []

[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo

agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)

65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand

strict demonstration from an orator Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017

77

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser

reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser

caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as

sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave

forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem

antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de

tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)

Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία

como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc

(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento

Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo

67 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi

2Fagt Acesso em 20 mai 2017

78

atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo

existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos

Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse

desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem

possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes

ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os

olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais

pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu

plenamente sua visatildeo

A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos

muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da

sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno

mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de

argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar

teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso

caso filoacutesofo

Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por

reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos

Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse

mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo

Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou

natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve

descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para

casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68

Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo

intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo

intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar

muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo

natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por

68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em

lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017

79

ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos

Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes

circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses

provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo

Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele

relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou

melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no

texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL

SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo

lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e

duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido

sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM

1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento

Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de

apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na

alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que

vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo

uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois

a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera

suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes

No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις

afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas

representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os

procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa

69 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo

gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and

doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state

of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato

2Fsgt Acesso em 04 jun 2017

80

ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das

finalidades imediatas

Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por

apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram

compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do

intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς

haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal

logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter

superior para a filosofia platocircnica

Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos

Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior

duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa

filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber

fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute

derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute

mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo

ser

Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que

esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e

de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la

enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO

1949 paacuteg 17)

24 Filosofia e opiniatildeo

Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se

apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta

tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser

Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um

saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero

racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto

81

A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de

sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-

estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o

outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que

determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio

rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia

a partir de uma perspectiva poeacutetica

Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas

de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como

exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria

convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo

arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim

pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa

Duas estradas divergiam num bosque em setembro

E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias

E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro

olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia

ateacute onde ela dobrava na descida e sumia

Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta

e fosse talvez a mais atraente

pois estava coberta de grama precisando ser gasta

embora aqueles que passaram na frente

tivessem gasto ambas quase igualmente

E ambas que aquela manhatilde igualmente fez

cobertas por folhas pegada alguma a manchar

Oh deixei a primeira para outra vez

Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar

duvidei se iria algum dia voltar

Devo estar contando isso com a alma cortada

Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa

divergiam em um bosque duas estradas

e eu escolhi a menos viajada

e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar

Ramos)72

72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I

stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other

as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though

as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on

to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and

82

Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser

filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que

natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees

favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de

se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata

das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para

cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio

de que nem todos chegam a fazer filosofia

Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do

mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos

mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo

conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente

de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns

natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais

Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem

com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda

de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico

canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio

intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo

coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e

admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas

Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo

sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e

surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem

a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc

e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria

hierarquizante e excludente criada pelo intelecto

ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made

all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-

americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017

83

Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou

de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de

selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos

educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute

nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado

preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute

uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim

pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73

Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo

e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo

(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa

transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a

despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o

comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas

filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade

de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso

ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos

agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva

As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam

ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo

questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se

na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977

paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz

com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas

soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades

de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar

enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)

Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores

seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as

73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de

dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han

trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo

no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho

propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por

lo que seraacuten

84

questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo

posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela

opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se

apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais

variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual

no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar

a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade

O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de

pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)

Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira

de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo

ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia

ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)

Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com

preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas

Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois

estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num

pseudoquestionamento que oculta uma certeza

Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica

Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a

leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com

historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no

portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive

remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena

Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam

verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem

mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo

toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira

com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)

Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para

a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja

dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o

85

finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido

canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente

coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento

A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao

questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e

ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por

uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por

exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu

patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua

realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como

oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima

Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame

debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da

filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial

A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo

de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem

de peacute agrave tormenta

O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva

uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER

1977a paacuteg 324)

25 Diaacutelogo e filosofia

No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos

contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso

porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem

a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro

Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees

Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e

controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser

frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado

apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo

tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor

86

encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco

pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real

Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro

determinaram que as coisas assim se passassem pois eles

sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila

Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo

hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg

457)74

Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder

agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas

acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com

este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se

apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a

uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO

2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente

tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo

soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira

semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo

nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta

que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente

que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da

questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os

posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo

entre as partes

Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se

aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido

a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um

percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela

Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave

identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois

74 Livro XXII linhas 301-304

87

elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se

aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda

diferentes

Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue

radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel

categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e

da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta

nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia

e mudanccedila

Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser

aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca

assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro

quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio

movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem

num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a

dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)

Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num

movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos

devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A

filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para

que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida

literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia

natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias

Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo

progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um

Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de

cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes

discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo

que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a

diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade

O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo

tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no

questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo

88

pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia

sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois

arduamente conceituaacutevel

Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem

forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu

sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como

tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou

natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel

com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas

nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute

uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo

entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76

O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio

reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele

natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve

ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo

partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute

medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem

O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a

instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se

por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo

acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do

mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute

a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo

se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)

Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua

manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos

pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o

75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη

89

inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio

Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute

para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro

fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que

vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos

fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver

Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida

segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se

debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do

sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do

estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia

apenas um sonho nebuloso e fugaz

Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel

dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa

escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao

menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e

com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte

Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo

algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal

ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando

de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com

as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II

Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria

facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis

obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois

casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que

78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg

92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-

Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio

90

lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO

1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81

Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade

desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um

diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos

seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva

sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991

paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um

diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel

falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente

se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel

Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua

toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees

tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas

agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que

uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo

posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto

da filosofia em geral

Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos

upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que

versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava

escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio

acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []

Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas

que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda

sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele

passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono

para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse

por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)

Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante

de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου

81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so

verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur

gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem

remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em

lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017

91

conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud

KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao

Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos

mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador

natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio

ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o

sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando

satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83

Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos

ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo

agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser

algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do

soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e

dormir

Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais

nobre para a alma suportar os dardos

e arremessos do fado sempre adverso

ou armar-se contra um mar de desventuras

e dar-lhes fim tentando resistir-lhes

Morrer dormir mais nada Imaginar

que um sono potildee remate aos sofrimentos

do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos

que constituem a natural heranccedila

da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se

Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)

Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite

posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o

entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo

a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a

questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo

perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com

83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά

ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)

92

visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta

dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84

Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe

como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a

vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou

desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente

e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa

em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida

que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver

morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma

maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais

Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-

istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute

incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto

correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a

inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo

mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia

a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa

Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer

Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse

caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos

da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o

homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista

manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso

torna-se presente a todos

Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos

das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia

84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων

ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς

μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)

93

exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo

do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio

viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse

embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral

vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se

deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ

(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar

querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de

uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se

desvencilhar totalmente disso

Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute

convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por

imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do

certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo

da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos

convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa

vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar

O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta

definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a

matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos

olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada

responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade

Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de

batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes

volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa

e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia

de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto

86 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3

Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo

(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)

94

eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer

isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho

Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um

seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento

50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio

ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo

ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de

complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia

pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida

sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja

qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele

natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo

Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais

simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um

[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o

mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se

revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]

dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido

de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em

sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee

constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)

Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal

necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas

com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse

somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem

haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer

possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo

houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo

minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira

ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer

Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O

que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo

e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade

95

se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash

Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo

satildeo outros quinhentos

96

3 Pensando a Linguagem

O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres

nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco

zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres

cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade

Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma

ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua

histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos

seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo

em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc

De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta

a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger

(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der

Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira

de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da

existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui

nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase

sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana

Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come

e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe

precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os

demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem

que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do

homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente

ele pode ser

Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo

ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se

a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer

posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se

atentar aos modos de ser

97

Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais

consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em

sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob

pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa

Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto

dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente

O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua

vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir

fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar

uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute

Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o

paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute

encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo

dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala

natildeo precisa calar

Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os

demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem

existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de

fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se

atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na

causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem

Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade

no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o

homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se

complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro

(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono

dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala

perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)

O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc

se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave

medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo

somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore

98

Retoacuterica 1

Cantam os paacutessaros cantam

Sem saber o que cantam

Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89

Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega

que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem

na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz

o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente

Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que

corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a

existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que

eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado

compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave

escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias

Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute

o possiacutevel

De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela

natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento

sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem

significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que

concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος

Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela

O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas

decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta

atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem

sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de

respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta

correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e

89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta

99

doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na

instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai

A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-

se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o

homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo

livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora

funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar

sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas

interpretando experienciando tornando-as de fato obra

Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate

Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter

o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los

no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada

um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra

a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)

Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por

completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como

tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem

colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se

ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso

precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e

pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder

acontece

A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta

Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme

Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa

interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou

enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue

90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und

Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung

100

de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram

distintamente a noacutes

De cajado

rutilante

eremita

do profundo

vai a lesma

cada instante

recriando

nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)

No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade

Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade

opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave

ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees

sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer

para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por

aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos

arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos

perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do

profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)

Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e

deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso

eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que

se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo

aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute

desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele

que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre

os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar

como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO

AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)

Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do

λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o

tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a

91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von

Arnim conforme nota do original

101

desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede

o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda

que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade

Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se

deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente

ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive

logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo

convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a

alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador

estivessem ateacute em outras dimensotildees

Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a

como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de

confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος

retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de

luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam

acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em

sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o

ponto fora da curva

31 Linguagem e limite

Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria

natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo

Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo

o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre

foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um

tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras

inquietando os homens

Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo

impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em

102

estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do

status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue

a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein

Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute

ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo

(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do

aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto

Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se

debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso

pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que

antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida

Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433

GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY

Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim

(GLARE 1968 paacuteg 537)

Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a

Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1

repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da

funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das

palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale

agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai

Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com

o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos

satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais

pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles

92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-

binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain

mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2

Fknumigt Acesso em 05 ago 2017

103

encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um

juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95

Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por

tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de

importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter

solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET

2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos

confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade

seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do

sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com

todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97

Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica

conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do

empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o

trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los

quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos

alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico

pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras

sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na

nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que

algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente

relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante

natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra

O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso

estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante

mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a

95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du

droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces

religieuses et juridiques qui en reacutesultent

104

situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo

aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando

Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer

filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo

com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por

estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela

cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e

consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]

significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo

livre)98

Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva

por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra

Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg

692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de

enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do

problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica

filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute

sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele

Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda

partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um

caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para

remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e

uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado

entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro

em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar

natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho

A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente

natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no

mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro

98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt

105

era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma

alternativa ocorre a cisatildeo do mundo

Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral

marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o

caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte

de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz

sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro

natildeo se encerra nele natildeo necessariamente

Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de

somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a

mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade

de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro

de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo

O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas

diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno

Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do

ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos

e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias

suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da

queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar

O inuacutetil

Disse Hui Tzu a Chuang Tzu

mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade

Replicou-lhe Chuang Tzu

mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade

Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil

Por exemplo a terra eacute larga e vasta

Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza

Apenas poucas polegadas

Sobre as quais se manteacutem de peacute

Suponhamos agora que vocecirc tire

Tudo o que ele realmente natildeo usa

De modo que ao redor de seus peacutes

Um golfo se abra

E ele fica de peacute no vazio

Sem nada de soacutelido

Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute

Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando

106

Disse Hui Tzu

mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade

Concluiu Chuang Tzu

mdash Isto prova

A absoluta necessidade

De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)

Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua

correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra

em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a

profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um

pensamento raso

A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco

diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a

mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa

mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem

somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o

ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem

Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma

atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na

duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo

e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees

da vida

Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos

quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou

menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a

isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no

aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo

107

Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e

destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna

devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace

pelo qual fomos formados a crer e compreender

Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos

Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o

comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes

com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente

livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no

assunto

Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo

fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser

seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga

universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de

Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o

Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em

detrimentos de outras circunstacircncias e localidades

A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de

sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada

vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal

comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar

natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial

a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente

Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas

instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de

diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a

seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo

estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias

concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos

Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo

capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens

sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com

108

os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles

possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las

A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os

males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste

mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios

dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos

comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito

de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se

dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de

tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila

Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu

sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este

acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa

lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens

planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males

disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo

produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas

proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas

por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores

de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus

descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos

sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973

paacutegs 115-116)

Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo

pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel

saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito

Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do

ser a perambular o natildeo ser

Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja

nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja

compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos

simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso

A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo

Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o

Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia

Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma

sombra do Natildeo-Ser

Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava

pegar mas nada pegava

Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto

mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo

Posso compreender a ausecircncia do Ser

Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada

109

Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute

Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)

Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que

percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem

iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute

ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece

eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente

do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele

Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado

por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato

compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso

eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com

as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que

acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado

respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma

farsa sem trageacutedia

Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da

abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria

muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo

Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao

conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um

arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse

procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da

lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal

mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um

animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de

valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um

uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem

levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)

A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser

fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia

sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades

isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela

produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se

adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado

110

Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na

nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e

sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra

modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo

social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem

comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se

instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo

Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos

pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a

maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a

confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e

com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi

abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua

dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo

Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber

Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica

a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que

nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a

agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela

eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)

33 O limite da resposta

Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da

seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees

a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora

o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser

transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os

conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela

111

responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o

mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber

A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se

amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e

abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a

oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a

tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)

Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide

respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por

mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas

vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso

modela-se sentidos agrave existecircncia

A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel

a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras

palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta

que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo

modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto

verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa

mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a

dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por

modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com

ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as

melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o

maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto

a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos

varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou

na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do

princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor

mdash Exactamente

mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por

justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO

1987 paacutegs 472-473)

Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado

se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a

99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de

Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo

112

pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor

administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a

dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A

imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos

problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua

escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica

Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais

controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer

o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem

tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos

referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo

definitivamente mas um postar-se a

Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do

ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos

tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia

preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel

e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber

que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e

adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila

Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute

uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante

da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os

seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro

ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)

Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade

natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos

a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao

contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas

caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como

para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do

questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute

ser O que eacute quem eacute quem

113

Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute

ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma

resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que

estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece

tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante

Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser

mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo

tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos

que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo

e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que

existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em

identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo

pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que

eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira

da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista

esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes

conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras

(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)

O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que

possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo

traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem

disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a

fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades

quanto encerra-as

Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as

possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber

ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo

114

escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da

vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite

De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de

fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas

necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute

como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave

primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento

caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa

Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila

alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira

infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo

limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no

desdobrar e no responder

A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando

ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos

como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que

perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo

ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir

seraacute de menor importacircncia

Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua

finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que

eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo

Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa

que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de

tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse

presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a

coisa que existe natildeo se esgota nela

Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos

haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a

menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave

vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse

modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave

115

multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo

se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute

pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de

como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador

e constituidor

34 A resposta do limite

Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta

pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca

jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do

pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos

o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos

A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual

nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho

de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim

cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no

mundo

Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo

enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do

tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o

impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse

sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo

(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist

alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo

que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees

Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como

cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve

ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para

realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o

mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo

116

Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas

aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem

das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca

inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na

borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e

definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta

Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs

Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos

relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma

resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou

determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em

nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de

respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o

sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der

Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)

Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade

de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na

carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de

muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de

alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente

conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de

ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute

Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a

totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias

do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades

Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo

imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute

verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e

vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos

encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e

permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como

quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso

117

Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o

pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores

inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo

como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo

livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos

sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias

uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o

tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim

basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim

De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita

ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar

explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e

liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e

liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg

9)

Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa

perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou

jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi

frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma

medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim

para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado

Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo

dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que

dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de

postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em

concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do

tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para

100 Leisure rest ease Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh

2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of

being able to begin ndash must be created

118

ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua

renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102

Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra

no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser

assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem

doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora

natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o

limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser

Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o

haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria

vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o

pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o

profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo

permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns

opiniotildees fechadas respostas banais natildeo

O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a

existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas

tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-

se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer

pensador pode crer

35 Dois lados da mesma moeda

351 A resposta que natildeo soluciona

102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to

figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results

119

Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas

que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)

a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que

natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter

inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo

compra natildeo vende fiduacutecias

Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e

diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua

singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A

resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a

princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que

ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de

ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a

ladainha o carpido ou seja o rito

Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute

substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num

uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia

da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado

feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula

re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS

2009b)

Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela

partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os

verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY

Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs

1082-1083)

Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que

muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar

cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e

103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017

120

estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar

algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila

(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais

fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as

palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi

colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de

solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade

A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de

desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres

Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por

sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute

estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs

sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do

cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere

como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo

situada

A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de

adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que

podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute

ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute

fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade

vigente

Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma

profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos

dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o

termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua

vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os

usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do

sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo

tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar

as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg

75)

121

Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave

proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta

que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo

fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete

ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem

Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa

nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos

Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum

em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais

variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo

do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem

tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder

mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas

experiecircncias

Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio

significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar

profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar

Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado

como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido

significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo

da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um

equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou

daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto

que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees

devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de

profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente

em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)

352 Temor sagrado

Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o

entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um

paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos

anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta

no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor

122

como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se

em sua instacircncia sagrada e profana

Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu

o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave

origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes

significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo

lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste

dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido

restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD

Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104

As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se

aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-

se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares

concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino

Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora

cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns

exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua

doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus

convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)

Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela

sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus

filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo

controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo

demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a

saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda

de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade

[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do

inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo

interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de

identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu

foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo

imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)

104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017

123

Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem

almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos

chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo

das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico

sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias

preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-

agouro

Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida

atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-

lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos

isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos

descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus

da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status

quo

Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute

pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito

de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no

dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto

dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo

de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)

Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos

reconhecemos no que nos transformamos

Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo

que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou

errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante

erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos

como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais

ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel

pensar o contraacuterio

124

Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma

existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis

negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da

notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os

demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo

soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de

um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente

acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de

comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de

paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real

[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele

proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente

a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados

especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode

ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees

diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos

homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa

qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve

permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente

contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse

motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)

Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando

as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute

sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de

Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os

indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas

misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de

infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em

suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes

o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo

(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com

o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel

105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente

humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc

125

Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para

muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade

ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se

afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o

que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o

duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente

nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo

estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar

contemporaneamente

1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser

sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash

embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus

cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua

ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD

Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD

Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em

determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e

perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees

visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109

353 O que responde o sagrado

Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma

tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos

106 Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc

h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of

superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the

Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in

their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua

also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible

representations Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017

126

o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa

histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua

ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo

como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que

seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute

possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de

misteacuterio perene

Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob

a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral

principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na

ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006

paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)

o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa

concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo

1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente

infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente

apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou

condiccedilotildees

2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees

vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110

Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e

misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila

brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum

ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada

acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela

criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees

Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg

51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o

artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma

110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle

following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions

2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=

gt Acesso em 07 set 2017

127

arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte

do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no

ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes

sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite

fundador do nome o ancestral ainda presente

O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio

diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o

incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites

desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se

uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o

tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar

abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM

2000 paacuteg 420)

O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado

Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do

limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem

traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para

manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor

uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana

do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero

esgotamento e enclausuramento do possiacutevel

O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra

ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da

Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua

extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo

(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)

Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de

como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para

poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites

provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores

Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia

que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne

128

cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD

2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita

com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do

controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer

um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e

adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser

rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude

cegueira paralisia ou morte

Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar

a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade

de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se

do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo

podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter

Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano

Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave

etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo

Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha

muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)

Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute

em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder

Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1

Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar

uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado

de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre

casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e

cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos

na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela

Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao

questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o

111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a

assurance of

129

questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto

gregaacuteria e fundadora dos limites

[] Eacute deus desconhecido

Ele aparece como ceacuteu Acredito mais

que sejam assim Eacute a medida dos homens

Cheio de meacuteritos mas poeticamente

o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs

256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112

Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o

aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma

adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua

desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua

plenitude

Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido

parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o

compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de

beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer

libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o

santo que a cultura popular tanto conhece

Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave

terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta

em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem

da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra

que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado

que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que

eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer

no tempo

112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas

istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)

[hellip] make libations Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2

Fndwgt Acesso em 08 set 2017

130

O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O

que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental

do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio

na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao

banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico

131

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou

o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que

se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma

coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse

vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio

de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta

ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg

257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute

preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas

mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo

tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar

as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente

Fiz de mim o que natildeo soube

E o que podia fazer de mim natildeo o fiz

O dominoacute que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me

Quando quis tirar a maacutescara

Estava pegada agrave cara

Quando a tirei e me vi ao espelho

Jaacute tinha envelhecido

Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado

Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio

Como um catildeo tolerado pela gerecircncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg

124)

Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e

encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de

ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas

criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia

mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que

diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e

tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz

132

Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua

existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como

improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura

deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio

a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos

investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas

partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas

tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma

loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica

Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute

e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo

essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham

que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs

aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o

ensino e para o pensamento

Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas

seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser

eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela

ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria

Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que

exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por

aiacute vai

Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia

o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a

noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia

de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo

cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo

que ainda sangra

Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com

conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso

modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores

nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo

133

Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro

empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades

Vocecirc eacute o herdeiro

Filhos satildeo os herdeiros

pois pais morrem

Filhos ficam e floram

Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114

Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao

ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que

estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino

eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo

inquiridora que sabe e natildeo sabe

Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico

precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico

eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de

avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no

caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para

passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno

sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas

ainda natildeo eacute tradicional

Mar Portuguez

Oacute mar salgado quanto do teu sal

Satildeo lagrimas de Portugal

Por te cruzarmos quantas matildees choraram

Quantos filhos em vatildeo resaram

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso oacute mar

Valeu a pena Tudo vale a pena

Se a alma natildeo eacute pequena

Quem quer passar aleacutem do Bojador

Tem que passar aleacutem da dor

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu

Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)

114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der

Erbe

134

O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo

e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por

meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado

pelas questotildees que nos interpelam

Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no

tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar

prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de

confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves

demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra

acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais

como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute

do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido

e ao ensino o cuidado esperado

Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas

dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo

conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do

conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados

numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de

eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de

categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis

por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo

Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem

traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus

praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das

opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a

contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do

subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal

foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos

ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos

A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro

Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico

A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente

135

contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave

vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o

equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos

Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes

a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A

questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o

ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida

Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de

ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado

primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e

precisava ter um nome

A palavra

Prodiacutegio distante e louco

Minha margem agrave sua eacute pouco

Aguardei ateacute a parda Parca

E encontrei o nome em sua marca ndash

Eu pude atecirc-lo com teso

Para brilhar e luzir preso

Ansiei por bom vindouro

Com fraacutegil e raro tesouro

Toda via Ela me dizia

mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia

Eis que escorre entre meus dedos

E agrave paacutetria dou enganos ledos

Triste entatildeo soube abdicar

mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash

traduccedilatildeo livre)115

Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com

o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de

115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die

graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und

glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie

suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann

Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort

gebricht

136

morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a

linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham

novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura

poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento

do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute

a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico

137

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APEcircNDICE

TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

151

RESUMO

Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas

Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de

filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio

com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte

de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade

Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio

de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens

em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com

isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco

Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem

Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do

demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo

apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

152

ABSTRACT

Three poetic-philosophical experiences

Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy

with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a

classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is

exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is

discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third

movement carried out both with children and with young people in pairs a person is

blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to

control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear

the unique existence that each child young and even adult have Their inventive

questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and

accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

153

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165

Figura 2 ndash A morte 166

154

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 155

Quando a vida nos diz natildeo 157

Objetivo geral 157

Objetivo especiacutefico 157

Proposta para a atividade 158

Fluxograma 160

Relato da experiecircncia 161

Reflexatildeo com a experiecircncia 169

Exerciacutecios de ser crianccedila 171

Objetivo geral 171

Objetivo especiacutefico 171

Proposta para a atividade 171

Fluxograma 174

Relato da experiecircncia 174

Reflexatildeo com a experiecircncia 177

A cegueira da visatildeo 178

Objetivo geral 178

Objetivo especiacutefico 178

Proposta para a atividade 178

Fluxograma 180

Relato da experiecircncia 180

Reflexatildeo com a experiecircncia 183

Consideraccedilotildees finais 186

Referecircncias 188

155

Apresentaccedilatildeo

A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do

Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais

especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim

da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa

do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor

Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem

se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade

diante do mundo

O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel

na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos

contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da

direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar

os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na

escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias

filosoacuteficas

Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem

sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos

Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos

que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se

restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute

sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia

dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis

pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas

filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos

116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor

recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se

naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo

passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando

156

Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se

refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui

nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital

eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula

tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma

praacutetica proacutepria e singular

A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se

estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada

mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-

estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por

reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de

conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo

de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a

ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu

meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da

turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias

comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar

em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

157

Quando a vida nos diz natildeo

Objetivo geral

A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir

conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo

perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas

filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e

experiecircncias comuns da idade

Objetivo especiacutefico

Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton

Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que

conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um

acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do

homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade

de controlar a vida

Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de

um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse

deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem

de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o

desdobramento filosoacutefico apropriado

158

Proposta para a atividade

Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos

de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para

trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio

agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve

prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um

questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou

estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma

simples chamada pode servir de chamariz para esse instante

Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa

ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como

um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-

se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam

o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem

Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra

conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute

lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria

requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem

sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade

eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo

Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte

de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se

que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da

turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por

isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem

detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo

O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos

pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio

da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos

os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade

159

Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem

chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute

interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo

embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em

psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio

Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as

opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada

um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais

podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao

professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder

esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula

Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute

lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro

seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e

os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os

alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito

pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do

homem com a realidade reforccedilando o argumento

Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo

encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do

ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo

e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados

descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um

tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma

interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o

que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve

explanaccedilatildeo

A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a

responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas

prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi

traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia

160

de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais

breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser

Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa

ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no

filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja

essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam

vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos

expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores

Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem

resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de

controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo

que assim o faccedila

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa

palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado

na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos

3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito

poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos

4 Exibir o curta ndash 25 minutos

5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa

6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se

correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme

responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos

161

8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos

9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou

um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim

desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais

Relato da experiecircncia

Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se

gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem

demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a

depender da turma

Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o

cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma

coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a

relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte

pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte

uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra

cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele

gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo

Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a

morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias

Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no

limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se

mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo

ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda

tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o

principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de

quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo

acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a

162

novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas

ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan

Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo

contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo

uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente

quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim

todos teriam o direito de falar se quisessem

Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)

teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto

[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para

que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma

pudesse viver

A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje

o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu

respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as

pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi

porque o corpo foi costurado

Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave

experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As

colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais

praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural

foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito

de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real

se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis

Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim

de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou

dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha

acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com

o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou

soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma

como ficaria o corpo

163

Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com

os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na

501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido

Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa

turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte

Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que

sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos

remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro

a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e

uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator

decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar

Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que

o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato

de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute

tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo

XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios

e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina

com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela

Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas

crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem

experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma

forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida

que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)

Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado

associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez

tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um

pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma

essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele

podia se machucar natildeo eacute Alex

117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees

164

O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte

e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas

natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate

gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave

noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha

sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502

E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o

pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam

Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu

Vanise mdash A morte fica perto da pessoa

Julia mdash Eu acho que sim no momento certo

Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o

cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um

cheiro deixou um rastro

Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o

carro

Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em

seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que

ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder

sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo

influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema

Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos

mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse

aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova

demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy

confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque

supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido

165

Figura 3 ndash Calvin e Haroldo

Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005

Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo

tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a

aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um

trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu

da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como

na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente

Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice

do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora

para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado

sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo

Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento

de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com

repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse

algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles

amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo

Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo

a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque

eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo

eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte

acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos

eacute proacuteximo e familiar

166

Figura 4 ndash A morte

Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009

mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via

das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da

gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma

coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)

Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para

natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade

Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e

brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar

velas aromaacuteticas)

As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a

mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas

natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas

como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da

admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto

A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se

aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo

animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por

natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius

118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato

Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma

pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos

167

Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou

Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais

focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto

enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que

vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo

A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de

compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos

uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que

faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da

imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima

da morte

Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia

ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha

alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne

apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer

com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente

Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se

processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia

menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre

a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um

caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele

sobe Eu tenho certezardquo

Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs

ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim

ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e

jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25

ceacuteus

Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute

um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no

estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a

turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto

168

entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre

noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees

Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos

membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos

prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos

fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa

mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa

ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei

ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar

de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por

que natildeo falar de outras religiotildees)

Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e

quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo

menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo

sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo

moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa

maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se

afirmar com destreza e propriedade

A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o

que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo

convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito

Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto

Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele

tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre

foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra

o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando

conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela

Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila

grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo

esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute

presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a

169

serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da

morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda

Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes

do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y

marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia

traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la

dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)

Reflexatildeo com a experiecircncia

Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem

Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos

e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita

alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria

Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada

invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar

Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do

homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse

sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a

ocidental

Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato

mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que

nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das

coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las

119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se

perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996

paacuteg 15)

170

A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas

mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa

possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha

mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder

compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos

relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus

nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas

quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto

respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais

conhecimentos a respeito

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

171

Exerciacutecios de ser crianccedila

Objetivo geral

Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto

dos demais

Objetivo especiacutefico

A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os

alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro

desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse

exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz

respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica

Proposta para a atividade

Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes

ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os

recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma

exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre

os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro

para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por

uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles

deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado

172

Exerciacutecios de ser crianccedila

No aeroporto o menino perguntou

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho

O pai ficou torto e natildeo respondeu

O menino perguntou de novo

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste

A matildee teve ternuras e pensou

Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes

da poesia

Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados

de poesia do que o bom senso

Ao sair do sufoco o pai refletiu

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianccedilas

E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)

Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor

ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um

poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um

simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os

outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos

para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por

exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute

preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma

Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo

deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha

dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio

logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi

problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a

Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a

crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)

O menino que carregava aacutegua na peneira

Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos

Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira

A matildee disse que carregar aacutegua na peneira

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmatildeos

A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua

O mesmo que criar peixes no bolso

O menino era ligado em despropoacutesitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos

173

A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do

que do cheio

Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar aacutegua na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar aacutegua na peneira

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila

monge ou mendigo ao mesmo tempo

O menino aprendeu a usar as palavras

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras

E comeccedilou a fazer peraltagens

Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando

Ponto no final na frase

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela

O menino fazia prodiacutegios

Ateacute fez uma pedra dar flor

A matildee reparava o menino com ternura

A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta

Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda

Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens

E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs

469-470)

Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute

indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade

Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica

eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira

pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram

focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A

linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou

outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como

manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira

matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo

Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo

de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute

aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que

sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que

fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos

solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para

a questatildeo

174

Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um

comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito

importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os

pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra

qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo

Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser

crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro

nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas

eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros

possiacuteveis pensamentos

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam

comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do

diaacutelogo ndash 15 minutos

4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos

Relato da experiecircncia

Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por

mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um

encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido

levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que

era ser crianccedila para eles

175

Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana

passada

Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser

crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi

muito divertido

Vanise mdash Foi

Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)

Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra

Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno

Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila

Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora

de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever

Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute

coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a

gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver

Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a

resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O

proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas

brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira

de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser

crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva

Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo

Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e

pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que

pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente

pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias

formas

Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo

soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa

Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma

brincadeira

Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser

uma brincadeira

Vanise mdash Por quecirc

Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas

escrevendo

Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar

Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser

crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali

no papel e eacute divertido

Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido

mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se

iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis

176

Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar

O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles

tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer

assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute

eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute

trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc

estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do

exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em

todo momento faz uma piada ri essas coisas

Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de

brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila

Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria

Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta

Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu

negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute

muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando

instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois

fico tocando bateria

Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser

crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com

o teu pai

Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos

na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem

me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia

A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem

bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo

crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que

brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como

crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento

Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo

necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu

pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o

filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades

precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente

somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de

vontade vale dizer mas de entrega

177

Reflexatildeo com a experiecircncia

Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais

complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou

meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de

propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias

diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial

Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e

escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem

preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de

deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em

meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto

muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira

cuidados

178

A cegueira da visatildeo

Objetivo geral

Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar

questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle

Objetivo especiacutefico

Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute

guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de

se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o

desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para

confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que

suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o

papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia

Proposta para a atividade

Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material

didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo

pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos

que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita

em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo

Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos

entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma

179

turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles

podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha

ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para

idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante

Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois

em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga

Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma

possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no

guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma

digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela

visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla

Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-

se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante

eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila

Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos

comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem

vir a contribuir com a discussatildeo

Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em

ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios

dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma

explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao

inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15

minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser

mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual

Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com

mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira

experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo

180

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15

minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos

4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos

Relato da experiecircncia

Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa

argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi

ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais

duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle

pela visatildeo

Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado

Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a

pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33

segundos

Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com

duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter

suas falas aqui colocadas

Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria

de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir

Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar

na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto

subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo

isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada

(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra

181

Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de

Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais

o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou

como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse

bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os

olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a

visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda

retomamos a atividade

Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura

para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante

eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma

moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos

[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os

pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no

banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora

Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa

enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs

forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo

quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do

estrondo

A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia

optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito

imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As

duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto

ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava

descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos

Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a

cabeccedila

Thayrine mdash Que medo

Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo

drsquoaacutegua para ela

Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se

pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas

tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar

Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se

182

repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10

segundos

Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo

e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da

discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo

professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente

e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da

explanaccedilatildeo da atividade seguinte

Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia

Patriacutecia mdash Eu gostei bastante

Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio

Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram

Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com

a funccedilatildeo de guia

Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos

dela

Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a

experiecircncia toda

Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira

Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso

Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas

Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na

Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar

Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo

Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia

enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo

Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia

Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se

estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa

Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e

poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre

Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase

derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-

se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento

distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de

conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute

sabemos para experimentar algo novo

Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria

desviado

Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente

proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute

habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc

Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa

experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado

Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma

necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se

vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve

nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou

fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno

183

Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma

alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute

conduzindo

Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa

forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento

natildeo

Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute

satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo

interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz

parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem

outro mas ambos Esse eacute o desafio

Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre

matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem

enxerga tenta guiar de alguma forma

Patriacutecia mdash Eu concordo com ela

Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de

por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos

anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio

Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final

Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado

eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute

sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo

outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc

possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente

Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe

tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de

algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se

guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do

seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu

tinha que tocar em tudo eacute diferente

Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que

por outras vias

Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do

controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a

discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao

todo foram cerca de 45 minutos

Reflexatildeo com a experiecircncia

De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade

Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que

eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra

quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)

184

temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em

detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade

eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo

XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes

Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo

E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir

Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a

razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa

ver para ser homem

O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por

esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo

traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo

grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo

(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como

o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses

Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo

Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)

reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do

que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo

corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem

Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito

de onde o homem se torna presenccedila

Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira

remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem

que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo

engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da

presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas

pelo homem atual a saber noacutes mesmos

Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que

haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se

pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que

se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas

185

a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite

da visita agrave presenccedila do outro

Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante

distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de

sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada

parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o

proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro

nossa forma de ver o mundo

O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha

para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que

danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo

Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses

estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos

salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata

Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender

ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo

poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo

valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos

ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN

2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e

recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo

devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita

(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer

186

Consideraccedilotildees finais

Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o

intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e

o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo

de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo

deste trabalho

A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou

ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua

transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que

lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do

ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes

rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais

ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser

e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser

assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse

motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial

Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos

familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se

perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez

em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos

centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre

teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob

semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por

modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar

aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo

Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a

segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o

pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o

modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada

de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente

187

no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada

de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de

se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle

Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo

existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e

consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica

de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de

como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a

recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute

resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra

e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA

1934 paacuteg 64)

188

Referecircncias

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HAVELOCK Eric A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturais

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DEDICATOacuteRIA

Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia

Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da

Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria

Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos

respectivamente

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas

gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma

obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro

tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e

da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de

enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute

conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo

Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute

pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois

verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de

sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-

me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos

O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece

automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal

tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o

movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir

uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares

um presente inesperado

Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical

do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam

respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo

de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de

matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o

porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos

Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos

sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa

tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas

que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor

opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo

acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser

e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque

corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar

com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda

amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para

os homens para a cultura pensamento e agradecimento

Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar

e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um

pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se

encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o

centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro

irradiador

O Misteacuterio mora

Girando na roda o homem danccedila e ignora

Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo

de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1

Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute

a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a

respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino

que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando

possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees

Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o

iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo

parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa

filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico

a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha

com a verdade em sua multiplicidade e concretude

Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda

com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado

a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha

esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma

1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows

significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem

que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se

tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte

Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute

nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro

lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me

ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado

pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A

terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte

sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz

Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute

aquele da partida

A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma

espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos

de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer

mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a

mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo

eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade

ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido

Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente

um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente

diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo

que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui

Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer

escrever

Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez

anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter

de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-

se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua

quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas

balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo

Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na

histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro

Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por

isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser

testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de

paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O

que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos

passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que

qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma

Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro

Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila

que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que

compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo

Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo

Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa

mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as

personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras

desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda

eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns

rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo

lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de

aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar

subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a

gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e

nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a

obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio

fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo

reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta

figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador

Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus

pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito

Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo

e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar

a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias

heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta

reaprender a viver depois disso Obrigado

Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na

minha Defesa

Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida

Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon

Amanda Falconi Jessica Natarelli

Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento

Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira

Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso

Caio Cruz Priscila Loureiro

Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa

Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho

Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz

Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa

Giovanna Giffoni

E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho

Allan Charles Marcus Caetano

Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas

Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira

Carla Rodriguez Mariana Rodrigues

Daniel Forain Nicole de Oliveira

Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso

Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos

Felipe Copque Rodrigo Wentzel

Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute

Fernando Sampaio Taynaacute Rosa

Flaacutevio Chame Thiago Pereira

Gabriel Torres Vanise Dutra

Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan

Guiomar Borges Yasmin Motta

Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram

Liacutevia Egger Demais professores que me formaram

Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram

Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram

EPIacuteGRAFE

Aacutervore genealoacutegica

A mais frondosa aacutervore da cidade

Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio

Seu viccedilo traz de longe uma saudade

Que a bruma envolve toda em misteacuterio

A seiva lembra sangue escurecido

Sangue que me sangra jaacute esquecido

Do pai do pai do pai (um fruto antigo)

Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo

Comer a carne doce recolhida nesse horto

Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)

Que restou de um ancestral

Thayrine Kleinsorgen

RESUMO

O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica

Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade

originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes

da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco

importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie

diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e

consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino

Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem

do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute

relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e

da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e

poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos

adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras

estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do

que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute

sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto

recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para

uma poeacutetico-filosofia

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

ABSTRACT

The teaching of philosophy from a poetic perspective

Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity

with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a

discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and

objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so

one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of

transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy

could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character

which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet

and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge

between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to

return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain

moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what

constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a

restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question

in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22

112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42

122 A ideia e o ser 43

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57

21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60

221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80

25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96

31 Linguagem e limite 101

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106

33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118

352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150

15

Introduccedilatildeo

Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais

diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar

Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta

claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um

modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um

conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees

E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores

o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e

competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e

consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo

natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria

noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta

Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela

funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a

educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante

pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a

fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte

delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a

educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que

ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles

Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o

seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio

o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido

quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa

vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia

Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora

eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu

mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do

Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo

16

peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo

de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina

mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc

Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como

cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa

margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg

62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil

capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo

para por precauccedilatildeo posterior usufruto

Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na

confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a

um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e

aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no

fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na

mensagem

Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer

qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do

sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda

assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo

O artista inconfessaacutevel

Fazer o que seja eacute inuacutetil

Natildeo fazer nada eacute inuacutetil

Mas entre fazer e natildeo fazer

mais vale o inuacutetil do fazer

Mas natildeo fazer para esquecer

que eacute inuacutetil nunca o esquecer

Mas fazer o inuacutetil sabendo

que ele eacute inuacutetil e bem sabendo

que eacute inuacutetil e que seu sentido

natildeo seraacute sequer pressentido

fazer porque ele eacute mais difiacutecil

do que natildeo fazer e dificil-

mente se poderaacute dizer

com mais desdeacutem ou entatildeo dizer

mais direto ao leitor Ningueacutem

que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)

17

Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula

confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os

dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela

corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave

toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um

conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao

sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria

difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas

Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois

como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente

ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de

passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra

Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que

brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que

aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma

traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois

ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos

singulares

Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos

defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava

estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que

delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo

Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua

inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no

real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na

banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra

como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu

Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho

aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por

assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso

significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a

fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso

18

A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre

outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a

indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum

acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo

menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e

consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar

Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses

somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada

presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou

salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por

cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo

de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em

sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia

Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico

hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o

controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem

poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute

conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo

fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas

mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou

verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro

Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter

credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo

Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria

o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da

verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas

agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio

vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar

Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real

Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a

verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no

ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade

19

demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser

solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do

pensamento cientiacutefico

Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento

de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das

manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria

o ser representado e por isso deveria conduziria os homens

Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma

natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a

sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo

ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a

poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da

ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves

graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor

originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades

Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo

possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem

medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado

sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um

rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa

medida estaacute inseparaacutevel

Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no

que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes

datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas

essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem

concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem

poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees

abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo

e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento

20

1 Pensando a Educaccedilatildeo

11 O ensino decide por dizer

O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho

natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente

a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se

se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se

corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que

natildeo temos controle

Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os

esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute

aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma

concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido

pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento

Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta

inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute

necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma

pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa

mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se

adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo

execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da

histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas

exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o

significado de ensino

Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em

determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim

fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no

poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a

paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos

programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O

conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que

21

foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que

deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de

dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por

outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os

homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)

Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o

convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma

festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar

sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila

ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele

evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas

A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso

sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite

seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre

dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca

de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O

ensino decide por dizer O que ele diz

Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura

e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que

tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele

Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento

ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos

pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido

Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel

portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute

possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total

incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste

trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre

condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer

Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um

saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-

signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do

latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua

22

vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo

caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com

marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo

(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2

Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em

algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila

De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash

por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que

ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres

111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc

Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar

sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo

delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem

distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser

em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute

constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo

A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino

debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias

de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1

Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno

de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem

semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da

composiccedilatildeo insigne + -itussup2

A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo

formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash

2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To

adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []

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traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo

explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente

visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE

1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5

Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos

que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos

que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo

do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos

fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o

vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)

Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em

portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se

assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a

uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim

fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)

nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto

forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω

ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889

Οἶδα)8 respectivamente ver e saber

Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave

primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos

que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas

e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel

enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel

compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se

4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em

27 set 2016 7 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233

0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3

Ddagt Acesso em 27 set 2016

24

fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu

mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A

experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que

natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender

seu ensinamento concreto

Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser

uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta

que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido

toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos

foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL

2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)

O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e

dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas

calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo

em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja

a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo

Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo

estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer

apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma

multiplicidade de limitaccedilotildees

Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta

Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos

Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes

E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila

Nem aqui vinhas

Brinca na poeira brinca

Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos

Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la

Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar

O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo

sujas

Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo

Sabes que te cabe na matildeo

Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior

Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006

paacutegs 42-43)

25

No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma

cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver

imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que

distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo

do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da

presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que

conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a

pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de

geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra

nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar

O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou

representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de

ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra

poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial

esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo

da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto

palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque

de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra

poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007

paacuteg 43 ndash grifos no original)

O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com

pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que

pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse

conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica

muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel

(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de

manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela

experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo

No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-

se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado

essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos

portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor

Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como

sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer

26

crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e

restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse

modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja

esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave

minha portardquo

112 Um saber que rasga

Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος

faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento

Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta

dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo

acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que

transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou

intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a

sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en

lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)

Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg

970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram

incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O

signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a

impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel

de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos

sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo

estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou

movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-

1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum

Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra

essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a

concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua

27

simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos

homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo

seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao

simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela

coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER

1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9

Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de

ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de

emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute

representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta

quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude

de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado

transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que

isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita

concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o

agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo

categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto

e conhecido do fazer

Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte

da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento

de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos

apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam

respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia

humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais

andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se

transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute

uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo

o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda

O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o

concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das

9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen

28

coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo

eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo

Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute

sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a

singularidade dos caminhos

Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a

Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no

discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute

a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define

explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas

natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora

em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve

Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo

poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O

camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria

obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a

mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013

paacutegs 27-28)

Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto

eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste

sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a

propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a

verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se

capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel

Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a

ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel

O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a

isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um

esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia

confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes

estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo

eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos

fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo

agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito

Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco

+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma

29

experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado

etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo

-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e

que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE

1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco

1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar

recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte

remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar

atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento

fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo

etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968

paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10

A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny

(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem

e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que

se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da

etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento

posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que

rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um

saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees

sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras

da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura

brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste

mesmo saber

sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim

secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim

sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca

entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage

(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11

10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from

to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water

air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in

ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip

abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo

if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage

30

Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg

56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o

proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas

aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave

opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz

Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da

experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que

demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade

seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra

forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz

diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no

que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada

um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas

que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites

[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12

Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio

A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13

Na janela a neve cai

Prolongado soa o sino da tarde

Para muitos a mesa estaacute posta

E a casa bem servida

Alguns viandantes da erracircncia

Chegam ateacute a porta por veredas escuras

Da seiva bruta da terra

Surge dourada a aacutervore dos dons

O viandante chega quieto

A dor petrificou a soleira

Aiacute brilha em pura claridade

Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de

Cavalcante Schuback)14

12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und

das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden

bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte

die Schwelle

Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein

31

Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave

certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz

versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva

em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com

cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como

descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra

singularmente em portuguecircs

O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como

o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no

dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute

soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e

traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica

estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa

Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a

soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto

a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo

teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz

uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute

soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar

categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a

unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa

Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os

diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se

mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som

sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e

w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som

continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro

terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente

Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua

quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma

pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez

32

constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude

Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para

coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde

haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar

A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos

Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de

vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra

que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho

tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond

retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer

agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor

A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria

mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade

A linguagem fala

O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar

Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER

2003 paacuteg 26)

Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia

de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as

distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre

afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006

paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar

no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo

seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera

informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo

ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda

Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que

ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que

o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de

aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber

do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender

nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia

quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)

33

113 Natildeo ensinar e a ciecircncia

Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com

as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo

ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o

pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis

sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento

impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o

conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute

compreendido

Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar

Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as

variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico

cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do

processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o

ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito

Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino

serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o

cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o

desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta

procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou

mais por menos tempo o que costuma coincidir

Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode

permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-

se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade

se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas

eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao

sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma

aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo

34

de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos

ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL

SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15

Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo

Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o

real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a

verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido

observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto

esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός

ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16

Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία

como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que

ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute

originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17

O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta

era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos

habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia

com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e

diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras

15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves

embassy mission Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri

2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2

Fa2gt Acesso em 14 set 2016

Cf Θεά Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2

F1gt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὁράω Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra

2Fwgt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὤρα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2

Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh

2Fqeia Acesso em 14 set 2016

35

animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses

seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A

verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir

Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta

Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras

a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de

valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs

1-2)

Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era

possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que

remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser

possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo

possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo

apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que

natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora

Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a

demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto

tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave

lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo

significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe

[]

Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos

se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e

vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela

orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo

satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo

que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE

2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)

Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar

cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do

mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de

que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos

conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida

o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute

ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo

36

de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo

claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel

A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico

objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse

lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O

importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do

desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo

(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)

Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar

o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar

para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e

desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar

a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas

metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma

vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico

ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias

discerniacuteveis fossem

Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar

conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser

ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no

sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro

do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua

plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se

aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave

plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se

inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos

referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se

respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa

concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do

nada e do ente de origem e de plenitude

Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito

ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino

seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo

maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave

37

disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito

a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas

vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg

9 ndash traduccedilatildeo livre)18

Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila

fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe

que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los

literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania

mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg

157)

Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma

dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo

homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a

irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na

e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo

(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens

que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da

vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que

natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que

natildeo permite adoraccedilotildees alheias

A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser

inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na

estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este

papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de

tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)

Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas

categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances

apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu

destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular

18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la

experiencia de la infancia

38

114 O jogo do poeta e da infacircncia

Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo

natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao

contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo

ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade

apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade

Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de

profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais

que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este

vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite

funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos

caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma

cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se

Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem

que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza

nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante

mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave

margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo

suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)

A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar

as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade

isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico

do pensamento e do ensino aqui propostos

Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar

os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e

pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de

controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado

mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os

alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo

39

logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a

necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos

Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina

com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute

neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o

converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz

nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus

educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19

Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia

em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade

cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo

contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente

construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo

(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos

sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas

A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho

natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria

uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de

produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial

para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)

Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como

educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que

satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes

para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar

Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que

decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um

instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee

e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece

diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento

19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender

a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su

alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz

nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores

40

remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo

chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo

Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo

entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e

levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui

vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes

de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de

vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem

quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico

O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de

idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno

literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute

problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos

com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento

que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos

ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa

inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo

(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo

do poeta e da infacircncia

12 A tradiccedilatildeo

41

Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra

disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem

ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de

compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho

na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de

atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo

Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas

gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o

sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados

de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de

valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua

ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)

Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e

criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se

costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo

Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e

educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com

a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um

relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que

determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino

Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo

o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural

e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim

faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras

de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade

cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve

ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave

reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo

Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se

transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo

para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos

receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg

226)

42

121 Quando o poeacutetico repousa esquecido

Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder

compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar

num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de

ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a

induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita

alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do

primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo

(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar

um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se

Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos

houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da

autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta

seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se

suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior

foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que

despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade

O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza

natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada

apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela

autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg

245-246)

Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-

a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter

sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a

partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado

43

Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar

movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido

Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a

simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela

manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar

do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o

seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda

natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no

original)

Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as

coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento

do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o

poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo

nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra

tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito

O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua

concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma

dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo

de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das

vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar

(JARDIM 2005 paacuteg 33)

122 A ideia e o ser

Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana

das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa

a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa

O Universo natildeo eacute uma ideia minha

A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha

44

A noite natildeo anoitece pelos meus olhos

A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um

estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de

pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite

no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo

mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que

a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa

todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem

que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer

O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico

imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia

indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo

mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza

uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da

planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre

(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)

Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia

ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A

pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara

que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo

quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito

do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo

(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro

Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque

realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova

flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute

jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo

Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo

eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)

20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more

45

Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa

sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)

Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo

se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos

relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre

alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar

a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa

limitaccedilatildeo conceitual a ela

Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das

estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a

realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que

nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram

reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se

corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade

que o fulgor das estrelas poderia ter

A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus

nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar

ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma

manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser

superado basta termos mais conhecimentos a respeito

mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites

natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser

limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute

sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []

mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros

Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36

37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um

nuacutemero maior

mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois

acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia

mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

46

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o

compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O

homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser

diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma

infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a

ser o homem

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo

Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma

concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o

modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos

traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem

entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre

tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia

linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido

proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo

(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de

significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua

ignora ou desconhece

Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma

consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro

Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio

processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz

legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)

Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash

conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015

47

Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira

(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar

entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se

mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do

significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento

adiante perpetuando um saber

Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega

transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se

tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens

etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino

b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo

(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo

para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao

seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada

do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno

do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra

Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com

o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por

sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de

entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma

pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das

forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute

mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo

livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25

21 Disponiacutevel em

lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16

set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2

The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional

knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a

position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)

48

Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz

de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez

que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o

verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por

cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes

surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs

falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma

tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972

paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de

passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo

A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo

complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O

primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma

doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a

utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27

De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um

deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda

entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que

ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso

em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois

entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a

entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo

Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa

simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que

faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta

Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um

atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um

comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)

26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead

etc) c to grant (legal possession use etc)

49

A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo

Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta

Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua

dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo

natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os

percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo

entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido

por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com

a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do

tracircnsito das experiecircncias de mundo

A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo

Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel

Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo

entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na

Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O

que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []

(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo

A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para

os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e

especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-

se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho

aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees

O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra

Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna

jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente

pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de

novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de

palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)

Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de

auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no

50

aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda

fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora

pela via popular de traditio

Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se

outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra

traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina

em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e

acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada

como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e

empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015

Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo

Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se

em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela

traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva

rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-

que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela

tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a

mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta

talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares

Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e

consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram

uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas

pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram

tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE

1998 paacuteg 18)

Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser

uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante

aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o

caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta

eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de

tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a

28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016

51

oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela

tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova

Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo

sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se

dispotildee

Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um

comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da

malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam

esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo

do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo

ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo

(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade

prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO

1832 paacuteg 1057)

A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao

portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo

ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo

he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na

formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e

traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-

Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam

com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o

sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da

mensagem

Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de

mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em

narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a

mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real

propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que

permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte

suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer

pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente

52

o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa

adiante em sua possibilidade de autenticidade

125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo

A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor

da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A

histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra

Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que

vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia

Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para

reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua

vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em

determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o

restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com

sua experiecircncia de mundo

Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o

linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute

cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades

embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e

resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso

corriqueiro das fontes propulsoras do nomear

No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que

pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior

parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala

que passou

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido

de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude

do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg

12)

53

Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo

destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma

entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa

deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo

(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave

casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE

VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a

particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta

noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de

cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)

6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL

Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de

surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a

sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila

traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30

Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma

conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se

pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas

culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo

leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso

seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e

realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente

contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em

ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua

interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional

O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de

problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a

alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo

eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os

30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set

2016

54

homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE

1998 paacuteg 85)

Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros

receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante

notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se

enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua

funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute

puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas

agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela

circunstacircncia especiacutefica

Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa

agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de

persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um

uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega

da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade

Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio

Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo

desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela

comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em

amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo

Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela

o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute

tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as

palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que

a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades

regionais

A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO

TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai

nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando

precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona

31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set

2016

55

a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo

(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua

que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias

origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser

encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo

simultaneamente

Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de

popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo

extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua

constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO

2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde

e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)

respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash

ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo

no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como

quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos

fazendo-o seu por instantes

126 Os mutirotildees do homem

Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham

experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma

famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu

para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo

livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina

nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo

Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no

tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um

32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the

kill and served it to fellow-members who came to assist him

56

trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do

caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem

da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue

Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a

qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete

sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos

com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa

como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo

isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam

contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas

Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca

geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as

mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade

e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa

A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de

continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e

temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)

57

2 Pensando a Filosofia

21 A filosofia como resposta

Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo

dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace

Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona

com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o

ensino

Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido

na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega

meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso

porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas

respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila

em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando

um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de

compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989

paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33

Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos

afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo

(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a

problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a

respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao

inominado enveredando pelo inominaacutevel

[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um

coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo

tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo

da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos

sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e

tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se

33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie

58

chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um

outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)

Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro

e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja

dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas

desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances

do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida

a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma

disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo

(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)

Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee

uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos

acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute

pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos

conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)

A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer

contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma

para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente

tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto

haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o

mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela

serve

Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo

bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute

mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio

tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no

vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das

vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo

(BRASIL 2000 paacuteg 44)

O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da

importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres

questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica

59

torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa

mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio

Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar

prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar

a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do

conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no

percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado

Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer

precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que

recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou

necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento

efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo

ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam

fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com

a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)

Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de

reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um

contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas

e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes

debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar

responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso

eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que

o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que

se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)

34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS

Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F

dutosgt Acesso em 11 mai 2017

60

22 Filosofia inteligecircncia e entendimento

Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute

determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em

variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais

da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados

encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia

Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem

que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a

princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo

eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico

e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem

cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo

Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio

de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado

filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto

que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo

de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando

positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por

meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro

seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo

baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)

A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO

2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados

outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia

platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo

natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em

confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e

pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine

61

Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre

perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador

delas

Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua

atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do

perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa

individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem

com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo

livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)

Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o

iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa

disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute

golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia

geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos

seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos

elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)

definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica

lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36

estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a

intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se

a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura

e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no

esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam

parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo

livre)37

ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα

παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ

ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον

35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute

une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em

lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo

Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro

campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these

four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second

assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion

considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of

truth and realityrdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017

62

αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας

ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38

Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da

influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada

de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς

[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον

[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser

assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39

Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO

1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da

filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia

lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e

medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser

primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente

satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro

segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem

se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e

terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42

38 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note

The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could

hardly be thus described Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2

Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2

Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι

δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ

εἰς εἴδη Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017

63

Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por

razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim

de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo

anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes

o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado

Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no

tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada

incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo

Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de

modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo

ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 71)43

Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que

na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]

pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao

longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz

a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta

contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus

membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a

palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de

qual sentido adotar neste ou naquele contexto

Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a

responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo

Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo

de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta

para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a

43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg

70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ

Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά

με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-

alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017

64

palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute

qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente

vaacutelido

Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de

Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma

conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes

sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras

e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras

veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute

estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo

Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece

direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado

pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina

soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato

metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia

paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto

de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor

satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas

Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que

pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da

disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)

O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute

ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo

aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata

tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo

todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do

real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma

palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do

conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito

A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal

homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A

essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento

ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade

apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-

diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg

235)

65

Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira

quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer

como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e

simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra

possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo

princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος

marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando

pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez

adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47

Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental

da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no

real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang

war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos

paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete

grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra

atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora

Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal

rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O

elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal

racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo

referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem

que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia

(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)

Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον

remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais

provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ

λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como

ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem

46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt

Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A

section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017

66

dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme

sugere Andrew Glynn (2015)51

Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις

enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade

mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem

ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo

engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940

Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse

material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse

Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica

a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia

Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este

percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo

estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal

ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a

destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente

a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse

viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos

A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees

enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio

universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro

lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que

o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais

submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice

funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental

(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)

50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1

999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-

animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F

xw1gt Acesso em 08 jul 2017

67

Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias

entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre

διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre

(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo

intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo

διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o

lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao

menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida

que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada

Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς

τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo

como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os

princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder

caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz

uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de

pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da

filosofia embora discernindo ambas entre si

Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma

da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a

duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs

dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos

em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se

portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por

missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo

fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg

XXXI)

Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto

somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos

Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de

imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel

Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os

53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017

68

meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute

sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa

Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a

impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma

ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares

estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta

a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca

houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta

facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males

aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar

Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo

e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o

chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora

lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs

natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola

Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A

terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais

Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda

significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava

o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento

encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo

tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza

E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria

motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer

mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta

pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)

Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje

e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por

ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno

vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais

entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para

convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno

do periacuteodo de influecircncia homeacuterica

Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford

(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender

contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da

poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia

69

na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais

do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um

comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era

a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores

dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta

transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental

da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo

esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as

Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um

grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)

Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e

sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos

problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas

apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas

respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees

e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia

transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo

necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo

Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais

recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o

exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)

A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos

conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico

dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das

finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave

filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico

conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir

valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)

Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no

conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no

Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente

opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de

conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio

absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)

Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a

filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute

rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca

70

da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se

confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita

coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas

e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen

auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)

Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo

para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso

as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes

questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o

pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a

relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com

a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)

Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais

propriedade a imagem-questatildeo colocada

Patmos54

Estaacute proacuteximo

E difiacutecil de agarrar o deus

Onde contudo haacute perigo cresce

O que salva tambeacutem

Agraves escuras vivem

As aacuteguias e destemidas partem

As filhas dos Alpes sobre o abismo

Em singelas feitas pontes

Por isso juntas laacute estatildeo em torno

Do cimo do tempo e as mais amadas

Perto vivem esmorecendo nas

Mais separadas montanhas

Entatildeo daacute pura aacutegua

Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos

Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55

54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a

revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em

lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern

wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten

Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf

Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn

und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em

27 mai 2017

71

Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se

relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas

representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode

veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas

representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens

De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme

Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem

poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo

(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)

A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos

surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao

lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa

espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta

essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as

sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no

mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se

reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no

decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por

essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute

Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos

preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da

literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde

vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado

como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos

teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)

Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de

trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela

histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua

irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e

o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na

qual convivem filosofia e poesia

72

221 Ciecircncia e intelecto

Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da

Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda

entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas

uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash

traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην

καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν

ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo

descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta

subdivisatildeo de νοῦς

Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o

caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de

ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e

faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma

declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento

noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59

Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo

possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica

argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo

deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio

ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα

56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth

conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth

2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2

Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017

73

Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo

distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel

entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse

simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo

Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo

filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo

Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-

se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente

aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona

no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica

[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de

ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda

intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a

si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-

querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)

23 Crenccedila e conjectura

Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos

de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos

referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos

ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A

referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema

Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente

se velava na histoacuteria do Ocidente

Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que

laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das

sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e

calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas

coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas

Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as

quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia

74

Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se

este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ

mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e

imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido

Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma

declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como

a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela

palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua

inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute

creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra

Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a

filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada

para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da

etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se

no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com

as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia

praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se

achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse

realmente vecirc-las

Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]

a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita

apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ

φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos

lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a

εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve

ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63

60 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F

stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO

1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal

como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in

visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510

A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)

so that πίστις should not be confined to the objects of sight

75

Figura 1 ndash As quatro influecircncias

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo

aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa

forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas

tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um

precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias

Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence

independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel

ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das

experiecircncias concretas

Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na

sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo

(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute

ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio

das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente

(ZARADER 1998 paacuteg 210)

Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema

ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso

com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra

arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de

sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra

em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a

64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko

2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017

76

partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a

crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo

contexto em que ocorre

Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte

oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia

e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica

apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades

provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades

universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um

matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash

traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε

πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES

1894)66

Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse

dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de

questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o

convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de

contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade

de acabamento

Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []

de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma

fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma

estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute

construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []

[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam

objetos de toda espeacutecie []

[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo

agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)

65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand

strict demonstration from an orator Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017

77

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser

reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser

caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as

sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave

forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem

antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de

tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)

Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία

como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc

(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento

Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo

67 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi

2Fagt Acesso em 20 mai 2017

78

atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo

existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos

Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse

desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem

possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes

ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os

olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais

pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu

plenamente sua visatildeo

A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos

muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da

sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno

mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de

argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar

teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso

caso filoacutesofo

Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por

reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos

Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse

mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo

Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou

natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve

descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para

casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68

Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo

intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo

intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar

muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo

natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por

68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em

lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017

79

ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos

Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes

circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses

provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo

Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele

relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou

melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no

texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL

SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo

lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e

duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido

sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM

1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento

Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de

apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na

alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que

vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo

uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois

a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera

suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes

No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις

afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas

representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os

procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa

69 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo

gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and

doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state

of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato

2Fsgt Acesso em 04 jun 2017

80

ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das

finalidades imediatas

Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por

apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram

compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do

intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς

haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal

logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter

superior para a filosofia platocircnica

Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos

Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior

duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa

filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber

fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute

derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute

mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo

ser

Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que

esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e

de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la

enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO

1949 paacuteg 17)

24 Filosofia e opiniatildeo

Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se

apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta

tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser

Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um

saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero

racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto

81

A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de

sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-

estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o

outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que

determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio

rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia

a partir de uma perspectiva poeacutetica

Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas

de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como

exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria

convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo

arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim

pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa

Duas estradas divergiam num bosque em setembro

E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias

E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro

olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia

ateacute onde ela dobrava na descida e sumia

Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta

e fosse talvez a mais atraente

pois estava coberta de grama precisando ser gasta

embora aqueles que passaram na frente

tivessem gasto ambas quase igualmente

E ambas que aquela manhatilde igualmente fez

cobertas por folhas pegada alguma a manchar

Oh deixei a primeira para outra vez

Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar

duvidei se iria algum dia voltar

Devo estar contando isso com a alma cortada

Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa

divergiam em um bosque duas estradas

e eu escolhi a menos viajada

e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar

Ramos)72

72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I

stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other

as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though

as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on

to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and

82

Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser

filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que

natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees

favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de

se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata

das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para

cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio

de que nem todos chegam a fazer filosofia

Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do

mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos

mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo

conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente

de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns

natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais

Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem

com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda

de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico

canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio

intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo

coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e

admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas

Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo

sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e

surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem

a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc

e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria

hierarquizante e excludente criada pelo intelecto

ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made

all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-

americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017

83

Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou

de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de

selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos

educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute

nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado

preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute

uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim

pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73

Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo

e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo

(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa

transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a

despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o

comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas

filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade

de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso

ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos

agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva

As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam

ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo

questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se

na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977

paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz

com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas

soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades

de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar

enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)

Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores

seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as

73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de

dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han

trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo

no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho

propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por

lo que seraacuten

84

questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo

posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela

opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se

apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais

variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual

no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar

a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade

O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de

pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)

Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira

de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo

ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia

ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)

Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com

preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas

Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois

estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num

pseudoquestionamento que oculta uma certeza

Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica

Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a

leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com

historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no

portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive

remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena

Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam

verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem

mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo

toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira

com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)

Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para

a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja

dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o

85

finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido

canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente

coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento

A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao

questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e

ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por

uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por

exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu

patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua

realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como

oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima

Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame

debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da

filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial

A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo

de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem

de peacute agrave tormenta

O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva

uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER

1977a paacuteg 324)

25 Diaacutelogo e filosofia

No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos

contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso

porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem

a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro

Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees

Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e

controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser

frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado

apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo

tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor

86

encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco

pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real

Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro

determinaram que as coisas assim se passassem pois eles

sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila

Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo

hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg

457)74

Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder

agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas

acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com

este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se

apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a

uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO

2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente

tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo

soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira

semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo

nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta

que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente

que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da

questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os

posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo

entre as partes

Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se

aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido

a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um

percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela

Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave

identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois

74 Livro XXII linhas 301-304

87

elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se

aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda

diferentes

Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue

radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel

categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e

da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta

nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia

e mudanccedila

Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser

aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca

assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro

quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio

movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem

num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a

dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)

Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num

movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos

devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A

filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para

que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida

literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia

natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias

Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo

progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um

Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de

cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes

discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo

que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a

diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade

O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo

tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no

questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo

88

pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia

sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois

arduamente conceituaacutevel

Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem

forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu

sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como

tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou

natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel

com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas

nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute

uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo

entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76

O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio

reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele

natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve

ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo

partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute

medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem

O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a

instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se

por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo

acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do

mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute

a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo

se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)

Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua

manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos

pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o

75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη

89

inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio

Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute

para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro

fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que

vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos

fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver

Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida

segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se

debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do

sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do

estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia

apenas um sonho nebuloso e fugaz

Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel

dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa

escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao

menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e

com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte

Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo

algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal

ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando

de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com

as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II

Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria

facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis

obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois

casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que

78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg

92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-

Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio

90

lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO

1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81

Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade

desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um

diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos

seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva

sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991

paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um

diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel

falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente

se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel

Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua

toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees

tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas

agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que

uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo

posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto

da filosofia em geral

Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos

upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que

versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava

escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio

acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []

Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas

que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda

sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele

passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono

para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse

por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)

Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante

de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου

81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so

verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur

gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem

remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em

lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017

91

conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud

KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao

Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos

mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador

natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio

ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o

sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando

satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83

Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos

ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo

agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser

algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do

soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e

dormir

Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais

nobre para a alma suportar os dardos

e arremessos do fado sempre adverso

ou armar-se contra um mar de desventuras

e dar-lhes fim tentando resistir-lhes

Morrer dormir mais nada Imaginar

que um sono potildee remate aos sofrimentos

do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos

que constituem a natural heranccedila

da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se

Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)

Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite

posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o

entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo

a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a

questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo

perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com

83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά

ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)

92

visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta

dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84

Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe

como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a

vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou

desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente

e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa

em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida

que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver

morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma

maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais

Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-

istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute

incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto

correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a

inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo

mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia

a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa

Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer

Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse

caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos

da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o

homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista

manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso

torna-se presente a todos

Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos

das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia

84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων

ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς

μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)

93

exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo

do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio

viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse

embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral

vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se

deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ

(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar

querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de

uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se

desvencilhar totalmente disso

Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute

convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por

imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do

certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo

da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos

convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa

vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar

O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta

definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a

matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos

olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada

responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade

Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de

batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes

volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa

e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia

de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto

86 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3

Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo

(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)

94

eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer

isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho

Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um

seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento

50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio

ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo

ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de

complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia

pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida

sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja

qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele

natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo

Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais

simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um

[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o

mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se

revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]

dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido

de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em

sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee

constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)

Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal

necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas

com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse

somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem

haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer

possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo

houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo

minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira

ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer

Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O

que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo

e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade

95

se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash

Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo

satildeo outros quinhentos

96

3 Pensando a Linguagem

O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres

nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco

zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres

cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade

Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma

ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua

histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos

seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo

em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc

De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta

a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger

(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der

Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira

de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da

existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui

nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase

sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana

Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come

e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe

precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os

demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem

que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do

homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente

ele pode ser

Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo

ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se

a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer

posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se

atentar aos modos de ser

97

Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais

consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em

sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob

pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa

Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto

dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente

O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua

vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir

fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar

uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute

Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o

paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute

encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo

dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala

natildeo precisa calar

Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os

demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem

existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de

fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se

atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na

causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem

Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade

no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o

homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se

complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro

(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono

dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala

perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)

O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc

se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave

medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo

somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore

98

Retoacuterica 1

Cantam os paacutessaros cantam

Sem saber o que cantam

Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89

Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega

que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem

na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz

o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente

Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que

corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a

existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que

eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado

compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave

escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias

Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute

o possiacutevel

De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela

natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento

sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem

significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que

concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος

Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela

O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas

decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta

atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem

sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de

respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta

correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e

89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta

99

doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na

instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai

A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-

se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o

homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo

livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora

funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar

sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas

interpretando experienciando tornando-as de fato obra

Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate

Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter

o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los

no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada

um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra

a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)

Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por

completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como

tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem

colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se

ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso

precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e

pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder

acontece

A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta

Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme

Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa

interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou

enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue

90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und

Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung

100

de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram

distintamente a noacutes

De cajado

rutilante

eremita

do profundo

vai a lesma

cada instante

recriando

nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)

No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade

Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade

opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave

ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees

sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer

para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por

aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos

arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos

perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do

profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)

Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e

deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso

eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que

se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo

aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute

desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele

que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre

os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar

como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO

AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)

Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do

λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o

tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a

91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von

Arnim conforme nota do original

101

desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede

o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda

que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade

Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se

deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente

ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive

logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo

convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a

alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador

estivessem ateacute em outras dimensotildees

Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a

como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de

confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος

retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de

luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam

acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em

sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o

ponto fora da curva

31 Linguagem e limite

Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria

natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo

Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo

o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre

foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um

tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras

inquietando os homens

Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo

impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em

102

estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do

status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue

a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein

Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute

ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo

(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do

aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto

Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se

debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso

pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que

antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida

Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433

GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY

Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim

(GLARE 1968 paacuteg 537)

Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a

Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1

repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da

funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das

palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale

agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai

Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com

o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos

satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais

pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles

92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-

binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain

mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2

Fknumigt Acesso em 05 ago 2017

103

encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um

juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95

Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por

tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de

importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter

solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET

2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos

confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade

seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do

sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com

todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97

Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica

conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do

empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o

trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los

quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos

alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico

pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras

sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na

nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que

algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente

relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante

natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra

O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso

estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante

mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a

95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du

droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces

religieuses et juridiques qui en reacutesultent

104

situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo

aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando

Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer

filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo

com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por

estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela

cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e

consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]

significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo

livre)98

Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva

por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra

Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg

692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de

enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do

problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica

filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute

sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele

Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda

partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um

caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para

remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e

uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado

entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro

em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar

natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho

A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente

natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no

mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro

98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt

105

era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma

alternativa ocorre a cisatildeo do mundo

Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral

marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o

caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte

de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz

sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro

natildeo se encerra nele natildeo necessariamente

Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de

somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a

mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade

de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro

de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo

O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas

diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno

Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do

ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos

e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias

suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da

queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar

O inuacutetil

Disse Hui Tzu a Chuang Tzu

mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade

Replicou-lhe Chuang Tzu

mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade

Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil

Por exemplo a terra eacute larga e vasta

Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza

Apenas poucas polegadas

Sobre as quais se manteacutem de peacute

Suponhamos agora que vocecirc tire

Tudo o que ele realmente natildeo usa

De modo que ao redor de seus peacutes

Um golfo se abra

E ele fica de peacute no vazio

Sem nada de soacutelido

Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute

Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando

106

Disse Hui Tzu

mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade

Concluiu Chuang Tzu

mdash Isto prova

A absoluta necessidade

De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)

Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua

correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra

em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a

profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um

pensamento raso

A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco

diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a

mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa

mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem

somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o

ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem

Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma

atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na

duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo

e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees

da vida

Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos

quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou

menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a

isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no

aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo

107

Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e

destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna

devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace

pelo qual fomos formados a crer e compreender

Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos

Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o

comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes

com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente

livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no

assunto

Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo

fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser

seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga

universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de

Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o

Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em

detrimentos de outras circunstacircncias e localidades

A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de

sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada

vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal

comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar

natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial

a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente

Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas

instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de

diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a

seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo

estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias

concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos

Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo

capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens

sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com

108

os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles

possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las

A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os

males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste

mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios

dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos

comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito

de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se

dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de

tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila

Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu

sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este

acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa

lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens

planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males

disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo

produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas

proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas

por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores

de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus

descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos

sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973

paacutegs 115-116)

Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo

pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel

saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito

Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do

ser a perambular o natildeo ser

Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja

nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja

compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos

simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso

A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo

Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o

Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia

Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma

sombra do Natildeo-Ser

Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava

pegar mas nada pegava

Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto

mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo

Posso compreender a ausecircncia do Ser

Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada

109

Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute

Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)

Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que

percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem

iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute

ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece

eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente

do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele

Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado

por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato

compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso

eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com

as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que

acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado

respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma

farsa sem trageacutedia

Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da

abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria

muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo

Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao

conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um

arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse

procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da

lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal

mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um

animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de

valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um

uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem

levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)

A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser

fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia

sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades

isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela

produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se

adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado

110

Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na

nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e

sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra

modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo

social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem

comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se

instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo

Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos

pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a

maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a

confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e

com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi

abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua

dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo

Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber

Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica

a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que

nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a

agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela

eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)

33 O limite da resposta

Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da

seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees

a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora

o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser

transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os

conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela

111

responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o

mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber

A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se

amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e

abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a

oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a

tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)

Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide

respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por

mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas

vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso

modela-se sentidos agrave existecircncia

A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel

a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras

palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta

que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo

modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto

verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa

mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a

dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por

modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com

ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as

melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o

maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto

a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos

varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou

na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do

princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor

mdash Exactamente

mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por

justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO

1987 paacutegs 472-473)

Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado

se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a

99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de

Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo

112

pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor

administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a

dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A

imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos

problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua

escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica

Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais

controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer

o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem

tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos

referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo

definitivamente mas um postar-se a

Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do

ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos

tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia

preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel

e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber

que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e

adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila

Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute

uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante

da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os

seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro

ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)

Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade

natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos

a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao

contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas

caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como

para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do

questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute

ser O que eacute quem eacute quem

113

Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute

ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma

resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que

estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece

tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante

Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser

mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo

tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos

que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo

e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que

existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em

identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo

pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que

eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira

da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista

esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes

conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras

(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)

O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que

possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo

traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem

disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a

fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades

quanto encerra-as

Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as

possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber

ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo

114

escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da

vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite

De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de

fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas

necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute

como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave

primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento

caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa

Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila

alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira

infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo

limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no

desdobrar e no responder

A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando

ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos

como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que

perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo

ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir

seraacute de menor importacircncia

Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua

finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que

eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo

Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa

que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de

tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse

presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a

coisa que existe natildeo se esgota nela

Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos

haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a

menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave

vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse

modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave

115

multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo

se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute

pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de

como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador

e constituidor

34 A resposta do limite

Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta

pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca

jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do

pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos

o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos

A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual

nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho

de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim

cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no

mundo

Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo

enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do

tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o

impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse

sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo

(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist

alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo

que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees

Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como

cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve

ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para

realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o

mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo

116

Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas

aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem

das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca

inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na

borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e

definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta

Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs

Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos

relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma

resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou

determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em

nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de

respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o

sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der

Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)

Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade

de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na

carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de

muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de

alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente

conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de

ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute

Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a

totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias

do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades

Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo

imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute

verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e

vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos

encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e

permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como

quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso

117

Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o

pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores

inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo

como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo

livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos

sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias

uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o

tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim

basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim

De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita

ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar

explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e

liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e

liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg

9)

Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa

perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou

jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi

frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma

medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim

para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado

Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo

dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que

dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de

postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em

concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do

tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para

100 Leisure rest ease Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh

2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of

being able to begin ndash must be created

118

ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua

renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102

Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra

no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser

assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem

doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora

natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o

limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser

Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o

haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria

vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o

pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o

profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo

permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns

opiniotildees fechadas respostas banais natildeo

O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a

existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas

tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-

se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer

pensador pode crer

35 Dois lados da mesma moeda

351 A resposta que natildeo soluciona

102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to

figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results

119

Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas

que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)

a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que

natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter

inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo

compra natildeo vende fiduacutecias

Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e

diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua

singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A

resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a

princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que

ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de

ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a

ladainha o carpido ou seja o rito

Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute

substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num

uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia

da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado

feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula

re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS

2009b)

Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela

partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os

verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY

Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs

1082-1083)

Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que

muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar

cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e

103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017

120

estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar

algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila

(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais

fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as

palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi

colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de

solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade

A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de

desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres

Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por

sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute

estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs

sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do

cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere

como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo

situada

A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de

adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que

podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute

ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute

fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade

vigente

Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma

profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos

dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o

termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua

vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os

usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do

sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo

tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar

as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg

75)

121

Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave

proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta

que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo

fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete

ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem

Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa

nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos

Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum

em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais

variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo

do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem

tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder

mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas

experiecircncias

Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio

significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar

profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar

Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado

como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido

significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo

da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um

equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou

daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto

que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees

devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de

profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente

em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)

352 Temor sagrado

Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o

entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um

paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos

anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta

no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor

122

como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se

em sua instacircncia sagrada e profana

Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu

o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave

origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes

significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo

lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste

dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido

restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD

Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104

As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se

aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-

se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares

concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino

Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora

cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns

exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua

doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus

convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)

Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela

sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus

filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo

controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo

demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a

saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda

de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade

[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do

inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo

interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de

identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu

foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo

imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)

104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017

123

Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem

almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos

chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo

das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico

sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias

preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-

agouro

Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida

atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-

lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos

isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos

descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus

da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status

quo

Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute

pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito

de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no

dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto

dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo

de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)

Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos

reconhecemos no que nos transformamos

Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo

que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou

errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante

erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos

como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais

ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel

pensar o contraacuterio

124

Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma

existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis

negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da

notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os

demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo

soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de

um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente

acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de

comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de

paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real

[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele

proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente

a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados

especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode

ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees

diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos

homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa

qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve

permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente

contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse

motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)

Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando

as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute

sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de

Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os

indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas

misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de

infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em

suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes

o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo

(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com

o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel

105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente

humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc

125

Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para

muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade

ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se

afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o

que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o

duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente

nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo

estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar

contemporaneamente

1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser

sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash

embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus

cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua

ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD

Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD

Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em

determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e

perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees

visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109

353 O que responde o sagrado

Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma

tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos

106 Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc

h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of

superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the

Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in

their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua

also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible

representations Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017

126

o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa

histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua

ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo

como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que

seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute

possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de

misteacuterio perene

Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob

a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral

principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na

ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006

paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)

o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa

concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo

1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente

infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente

apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou

condiccedilotildees

2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees

vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110

Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e

misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila

brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum

ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada

acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela

criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees

Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg

51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o

artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma

110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle

following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions

2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=

gt Acesso em 07 set 2017

127

arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte

do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no

ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes

sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite

fundador do nome o ancestral ainda presente

O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio

diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o

incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites

desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se

uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o

tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar

abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM

2000 paacuteg 420)

O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado

Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do

limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem

traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para

manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor

uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana

do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero

esgotamento e enclausuramento do possiacutevel

O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra

ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da

Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua

extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo

(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)

Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de

como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para

poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites

provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores

Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia

que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne

128

cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD

2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita

com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do

controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer

um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e

adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser

rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude

cegueira paralisia ou morte

Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar

a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade

de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se

do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo

podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter

Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano

Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave

etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo

Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha

muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)

Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute

em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder

Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1

Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar

uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado

de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre

casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e

cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos

na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela

Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao

questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o

111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a

assurance of

129

questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto

gregaacuteria e fundadora dos limites

[] Eacute deus desconhecido

Ele aparece como ceacuteu Acredito mais

que sejam assim Eacute a medida dos homens

Cheio de meacuteritos mas poeticamente

o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs

256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112

Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o

aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma

adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua

desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua

plenitude

Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido

parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o

compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de

beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer

libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o

santo que a cultura popular tanto conhece

Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave

terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta

em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem

da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra

que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado

que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que

eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer

no tempo

112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas

istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)

[hellip] make libations Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2

Fndwgt Acesso em 08 set 2017

130

O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O

que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental

do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio

na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao

banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico

131

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou

o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que

se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma

coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse

vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio

de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta

ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg

257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute

preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas

mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo

tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar

as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente

Fiz de mim o que natildeo soube

E o que podia fazer de mim natildeo o fiz

O dominoacute que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me

Quando quis tirar a maacutescara

Estava pegada agrave cara

Quando a tirei e me vi ao espelho

Jaacute tinha envelhecido

Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado

Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio

Como um catildeo tolerado pela gerecircncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg

124)

Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e

encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de

ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas

criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia

mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que

diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e

tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz

132

Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua

existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como

improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura

deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio

a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos

investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas

partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas

tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma

loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica

Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute

e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo

essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham

que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs

aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o

ensino e para o pensamento

Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas

seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser

eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela

ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria

Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que

exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por

aiacute vai

Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia

o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a

noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia

de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo

cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo

que ainda sangra

Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com

conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso

modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores

nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo

133

Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro

empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades

Vocecirc eacute o herdeiro

Filhos satildeo os herdeiros

pois pais morrem

Filhos ficam e floram

Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114

Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao

ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que

estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino

eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo

inquiridora que sabe e natildeo sabe

Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico

precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico

eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de

avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no

caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para

passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno

sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas

ainda natildeo eacute tradicional

Mar Portuguez

Oacute mar salgado quanto do teu sal

Satildeo lagrimas de Portugal

Por te cruzarmos quantas matildees choraram

Quantos filhos em vatildeo resaram

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso oacute mar

Valeu a pena Tudo vale a pena

Se a alma natildeo eacute pequena

Quem quer passar aleacutem do Bojador

Tem que passar aleacutem da dor

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu

Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)

114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der

Erbe

134

O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo

e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por

meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado

pelas questotildees que nos interpelam

Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no

tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar

prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de

confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves

demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra

acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais

como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute

do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido

e ao ensino o cuidado esperado

Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas

dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo

conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do

conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados

numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de

eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de

categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis

por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo

Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem

traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus

praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das

opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a

contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do

subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal

foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos

ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos

A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro

Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico

A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente

135

contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave

vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o

equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos

Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes

a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A

questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o

ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida

Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de

ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado

primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e

precisava ter um nome

A palavra

Prodiacutegio distante e louco

Minha margem agrave sua eacute pouco

Aguardei ateacute a parda Parca

E encontrei o nome em sua marca ndash

Eu pude atecirc-lo com teso

Para brilhar e luzir preso

Ansiei por bom vindouro

Com fraacutegil e raro tesouro

Toda via Ela me dizia

mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia

Eis que escorre entre meus dedos

E agrave paacutetria dou enganos ledos

Triste entatildeo soube abdicar

mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash

traduccedilatildeo livre)115

Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com

o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de

115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die

graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und

glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie

suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann

Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort

gebricht

136

morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a

linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham

novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura

poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento

do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute

a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico

137

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APEcircNDICE

TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

151

RESUMO

Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas

Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de

filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio

com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte

de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade

Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio

de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens

em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com

isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco

Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem

Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do

demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo

apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

152

ABSTRACT

Three poetic-philosophical experiences

Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy

with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a

classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is

exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is

discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third

movement carried out both with children and with young people in pairs a person is

blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to

control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear

the unique existence that each child young and even adult have Their inventive

questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and

accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

153

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165

Figura 2 ndash A morte 166

154

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 155

Quando a vida nos diz natildeo 157

Objetivo geral 157

Objetivo especiacutefico 157

Proposta para a atividade 158

Fluxograma 160

Relato da experiecircncia 161

Reflexatildeo com a experiecircncia 169

Exerciacutecios de ser crianccedila 171

Objetivo geral 171

Objetivo especiacutefico 171

Proposta para a atividade 171

Fluxograma 174

Relato da experiecircncia 174

Reflexatildeo com a experiecircncia 177

A cegueira da visatildeo 178

Objetivo geral 178

Objetivo especiacutefico 178

Proposta para a atividade 178

Fluxograma 180

Relato da experiecircncia 180

Reflexatildeo com a experiecircncia 183

Consideraccedilotildees finais 186

Referecircncias 188

155

Apresentaccedilatildeo

A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do

Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais

especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim

da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa

do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor

Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem

se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade

diante do mundo

O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel

na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos

contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da

direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar

os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na

escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias

filosoacuteficas

Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem

sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos

Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos

que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se

restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute

sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia

dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis

pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas

filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos

116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor

recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se

naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo

passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando

156

Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se

refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui

nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital

eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula

tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma

praacutetica proacutepria e singular

A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se

estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada

mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-

estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por

reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de

conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo

de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a

ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu

meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da

turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias

comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar

em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

157

Quando a vida nos diz natildeo

Objetivo geral

A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir

conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo

perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas

filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e

experiecircncias comuns da idade

Objetivo especiacutefico

Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton

Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que

conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um

acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do

homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade

de controlar a vida

Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de

um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse

deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem

de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o

desdobramento filosoacutefico apropriado

158

Proposta para a atividade

Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos

de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para

trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio

agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve

prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um

questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou

estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma

simples chamada pode servir de chamariz para esse instante

Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa

ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como

um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-

se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam

o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem

Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra

conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute

lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria

requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem

sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade

eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo

Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte

de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se

que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da

turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por

isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem

detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo

O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos

pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio

da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos

os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade

159

Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem

chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute

interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo

embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em

psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio

Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as

opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada

um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais

podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao

professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder

esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula

Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute

lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro

seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e

os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os

alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito

pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do

homem com a realidade reforccedilando o argumento

Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo

encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do

ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo

e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados

descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um

tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma

interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o

que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve

explanaccedilatildeo

A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a

responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas

prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi

traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia

160

de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais

breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser

Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa

ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no

filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja

essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam

vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos

expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores

Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem

resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de

controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo

que assim o faccedila

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa

palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado

na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos

3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito

poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos

4 Exibir o curta ndash 25 minutos

5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa

6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se

correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme

responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos

161

8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos

9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou

um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim

desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais

Relato da experiecircncia

Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se

gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem

demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a

depender da turma

Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o

cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma

coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a

relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte

pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte

uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra

cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele

gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo

Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a

morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias

Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no

limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se

mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo

ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda

tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o

principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de

quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo

acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a

162

novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas

ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan

Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo

contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo

uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente

quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim

todos teriam o direito de falar se quisessem

Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)

teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto

[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para

que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma

pudesse viver

A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje

o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu

respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as

pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi

porque o corpo foi costurado

Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave

experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As

colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais

praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural

foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito

de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real

se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis

Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim

de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou

dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha

acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com

o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou

soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma

como ficaria o corpo

163

Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com

os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na

501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido

Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa

turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte

Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que

sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos

remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro

a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e

uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator

decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar

Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que

o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato

de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute

tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo

XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios

e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina

com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela

Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas

crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem

experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma

forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida

que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)

Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado

associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez

tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um

pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma

essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele

podia se machucar natildeo eacute Alex

117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees

164

O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte

e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas

natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate

gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave

noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha

sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502

E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o

pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam

Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu

Vanise mdash A morte fica perto da pessoa

Julia mdash Eu acho que sim no momento certo

Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o

cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um

cheiro deixou um rastro

Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o

carro

Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em

seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que

ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder

sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo

influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema

Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos

mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse

aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova

demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy

confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque

supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido

165

Figura 3 ndash Calvin e Haroldo

Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005

Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo

tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a

aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um

trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu

da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como

na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente

Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice

do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora

para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado

sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo

Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento

de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com

repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse

algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles

amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo

Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo

a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque

eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo

eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte

acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos

eacute proacuteximo e familiar

166

Figura 4 ndash A morte

Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009

mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via

das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da

gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma

coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)

Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para

natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade

Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e

brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar

velas aromaacuteticas)

As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a

mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas

natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas

como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da

admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto

A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se

aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo

animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por

natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius

118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato

Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma

pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos

167

Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou

Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais

focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto

enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que

vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo

A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de

compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos

uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que

faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da

imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima

da morte

Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia

ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha

alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne

apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer

com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente

Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se

processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia

menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre

a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um

caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele

sobe Eu tenho certezardquo

Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs

ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim

ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e

jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25

ceacuteus

Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute

um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no

estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a

turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto

168

entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre

noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees

Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos

membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos

prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos

fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa

mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa

ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei

ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar

de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por

que natildeo falar de outras religiotildees)

Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e

quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo

menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo

sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo

moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa

maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se

afirmar com destreza e propriedade

A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o

que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo

convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito

Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto

Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele

tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre

foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra

o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando

conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela

Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila

grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo

esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute

presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a

169

serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da

morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda

Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes

do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y

marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia

traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la

dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)

Reflexatildeo com a experiecircncia

Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem

Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos

e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita

alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria

Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada

invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar

Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do

homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse

sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a

ocidental

Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato

mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que

nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das

coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las

119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se

perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996

paacuteg 15)

170

A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas

mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa

possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha

mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder

compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos

relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus

nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas

quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto

respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais

conhecimentos a respeito

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

171

Exerciacutecios de ser crianccedila

Objetivo geral

Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto

dos demais

Objetivo especiacutefico

A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os

alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro

desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse

exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz

respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica

Proposta para a atividade

Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes

ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os

recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma

exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre

os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro

para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por

uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles

deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado

172

Exerciacutecios de ser crianccedila

No aeroporto o menino perguntou

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho

O pai ficou torto e natildeo respondeu

O menino perguntou de novo

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste

A matildee teve ternuras e pensou

Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes

da poesia

Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados

de poesia do que o bom senso

Ao sair do sufoco o pai refletiu

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianccedilas

E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)

Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor

ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um

poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um

simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os

outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos

para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por

exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute

preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma

Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo

deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha

dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio

logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi

problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a

Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a

crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)

O menino que carregava aacutegua na peneira

Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos

Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira

A matildee disse que carregar aacutegua na peneira

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmatildeos

A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua

O mesmo que criar peixes no bolso

O menino era ligado em despropoacutesitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos

173

A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do

que do cheio

Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar aacutegua na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar aacutegua na peneira

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila

monge ou mendigo ao mesmo tempo

O menino aprendeu a usar as palavras

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras

E comeccedilou a fazer peraltagens

Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando

Ponto no final na frase

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela

O menino fazia prodiacutegios

Ateacute fez uma pedra dar flor

A matildee reparava o menino com ternura

A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta

Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda

Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens

E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs

469-470)

Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute

indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade

Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica

eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira

pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram

focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A

linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou

outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como

manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira

matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo

Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo

de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute

aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que

sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que

fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos

solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para

a questatildeo

174

Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um

comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito

importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os

pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra

qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo

Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser

crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro

nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas

eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros

possiacuteveis pensamentos

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam

comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do

diaacutelogo ndash 15 minutos

4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos

Relato da experiecircncia

Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por

mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um

encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido

levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que

era ser crianccedila para eles

175

Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana

passada

Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser

crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi

muito divertido

Vanise mdash Foi

Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)

Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra

Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno

Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila

Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora

de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever

Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute

coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a

gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver

Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a

resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O

proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas

brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira

de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser

crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva

Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo

Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e

pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que

pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente

pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias

formas

Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo

soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa

Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma

brincadeira

Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser

uma brincadeira

Vanise mdash Por quecirc

Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas

escrevendo

Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar

Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser

crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali

no papel e eacute divertido

Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido

mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se

iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis

176

Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar

O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles

tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer

assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute

eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute

trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc

estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do

exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em

todo momento faz uma piada ri essas coisas

Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de

brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila

Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria

Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta

Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu

negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute

muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando

instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois

fico tocando bateria

Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser

crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com

o teu pai

Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos

na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem

me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia

A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem

bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo

crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que

brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como

crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento

Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo

necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu

pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o

filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades

precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente

somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de

vontade vale dizer mas de entrega

177

Reflexatildeo com a experiecircncia

Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais

complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou

meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de

propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias

diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial

Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e

escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem

preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de

deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em

meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto

muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira

cuidados

178

A cegueira da visatildeo

Objetivo geral

Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar

questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle

Objetivo especiacutefico

Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute

guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de

se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o

desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para

confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que

suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o

papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia

Proposta para a atividade

Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material

didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo

pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos

que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita

em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo

Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos

entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma

179

turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles

podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha

ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para

idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante

Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois

em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga

Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma

possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no

guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma

digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela

visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla

Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-

se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante

eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila

Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos

comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem

vir a contribuir com a discussatildeo

Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em

ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios

dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma

explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao

inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15

minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser

mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual

Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com

mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira

experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo

180

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15

minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos

4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos

Relato da experiecircncia

Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa

argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi

ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais

duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle

pela visatildeo

Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado

Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a

pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33

segundos

Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com

duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter

suas falas aqui colocadas

Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria

de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir

Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar

na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto

subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo

isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada

(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra

181

Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de

Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais

o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou

como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse

bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os

olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a

visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda

retomamos a atividade

Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura

para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante

eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma

moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos

[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os

pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no

banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora

Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa

enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs

forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo

quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do

estrondo

A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia

optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito

imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As

duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto

ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava

descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos

Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a

cabeccedila

Thayrine mdash Que medo

Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo

drsquoaacutegua para ela

Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se

pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas

tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar

Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se

182

repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10

segundos

Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo

e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da

discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo

professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente

e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da

explanaccedilatildeo da atividade seguinte

Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia

Patriacutecia mdash Eu gostei bastante

Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio

Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram

Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com

a funccedilatildeo de guia

Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos

dela

Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a

experiecircncia toda

Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira

Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso

Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas

Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na

Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar

Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo

Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia

enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo

Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia

Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se

estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa

Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e

poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre

Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase

derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-

se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento

distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de

conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute

sabemos para experimentar algo novo

Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria

desviado

Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente

proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute

habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc

Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa

experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado

Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma

necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se

vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve

nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou

fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno

183

Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma

alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute

conduzindo

Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa

forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento

natildeo

Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute

satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo

interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz

parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem

outro mas ambos Esse eacute o desafio

Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre

matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem

enxerga tenta guiar de alguma forma

Patriacutecia mdash Eu concordo com ela

Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de

por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos

anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio

Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final

Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado

eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute

sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo

outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc

possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente

Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe

tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de

algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se

guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do

seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu

tinha que tocar em tudo eacute diferente

Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que

por outras vias

Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do

controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a

discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao

todo foram cerca de 45 minutos

Reflexatildeo com a experiecircncia

De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade

Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que

eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra

quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)

184

temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em

detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade

eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo

XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes

Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo

E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir

Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a

razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa

ver para ser homem

O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por

esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo

traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo

grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo

(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como

o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses

Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo

Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)

reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do

que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo

corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem

Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito

de onde o homem se torna presenccedila

Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira

remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem

que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo

engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da

presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas

pelo homem atual a saber noacutes mesmos

Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que

haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se

pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que

se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas

185

a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite

da visita agrave presenccedila do outro

Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante

distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de

sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada

parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o

proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro

nossa forma de ver o mundo

O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha

para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que

danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo

Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses

estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos

salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata

Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender

ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo

poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo

valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos

ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN

2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e

recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo

devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita

(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer

186

Consideraccedilotildees finais

Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o

intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e

o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo

de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo

deste trabalho

A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou

ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua

transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que

lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do

ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes

rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais

ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser

e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser

assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse

motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial

Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos

familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se

perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez

em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos

centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre

teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob

semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por

modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar

aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo

Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a

segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o

pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o

modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada

de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente

187

no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada

de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de

se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle

Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo

existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e

consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica

de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de

como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a

recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute

resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra

e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA

1934 paacuteg 64)

188

Referecircncias

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Page 4: O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA …dippg.cefet-rj.br/ppfen/attachments/article/81/18_André Luís Borges... · Girando na roda o homem dança e ignora, Mas o Mistério

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas

gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma

obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro

tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e

da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de

enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute

conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo

Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute

pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois

verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de

sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-

me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos

O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece

automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal

tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o

movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir

uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares

um presente inesperado

Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical

do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam

respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo

de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de

matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o

porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos

Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos

sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa

tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas

que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor

opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo

acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser

e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque

corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar

com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda

amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para

os homens para a cultura pensamento e agradecimento

Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar

e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um

pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se

encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o

centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro

irradiador

O Misteacuterio mora

Girando na roda o homem danccedila e ignora

Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo

de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1

Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute

a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a

respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino

que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando

possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees

Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o

iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo

parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa

filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico

a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha

com a verdade em sua multiplicidade e concretude

Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda

com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado

a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha

esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma

1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows

significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem

que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se

tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte

Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute

nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro

lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me

ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado

pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A

terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte

sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz

Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute

aquele da partida

A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma

espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos

de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer

mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a

mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo

eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade

ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido

Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente

um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente

diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo

que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui

Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer

escrever

Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez

anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter

de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-

se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua

quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas

balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo

Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na

histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro

Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por

isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser

testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de

paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O

que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos

passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que

qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma

Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro

Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila

que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que

compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo

Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo

Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa

mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as

personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras

desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda

eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns

rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo

lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de

aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar

subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a

gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e

nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a

obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio

fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo

reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta

figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador

Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus

pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito

Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo

e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar

a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias

heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta

reaprender a viver depois disso Obrigado

Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na

minha Defesa

Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida

Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon

Amanda Falconi Jessica Natarelli

Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento

Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira

Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso

Caio Cruz Priscila Loureiro

Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa

Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho

Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz

Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa

Giovanna Giffoni

E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho

Allan Charles Marcus Caetano

Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas

Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira

Carla Rodriguez Mariana Rodrigues

Daniel Forain Nicole de Oliveira

Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso

Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos

Felipe Copque Rodrigo Wentzel

Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute

Fernando Sampaio Taynaacute Rosa

Flaacutevio Chame Thiago Pereira

Gabriel Torres Vanise Dutra

Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan

Guiomar Borges Yasmin Motta

Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram

Liacutevia Egger Demais professores que me formaram

Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram

Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram

EPIacuteGRAFE

Aacutervore genealoacutegica

A mais frondosa aacutervore da cidade

Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio

Seu viccedilo traz de longe uma saudade

Que a bruma envolve toda em misteacuterio

A seiva lembra sangue escurecido

Sangue que me sangra jaacute esquecido

Do pai do pai do pai (um fruto antigo)

Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo

Comer a carne doce recolhida nesse horto

Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)

Que restou de um ancestral

Thayrine Kleinsorgen

RESUMO

O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica

Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade

originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes

da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco

importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie

diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e

consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino

Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem

do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute

relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e

da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e

poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos

adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras

estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do

que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute

sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto

recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para

uma poeacutetico-filosofia

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

ABSTRACT

The teaching of philosophy from a poetic perspective

Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity

with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a

discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and

objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so

one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of

transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy

could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character

which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet

and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge

between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to

return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain

moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what

constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a

restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question

in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22

112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42

122 A ideia e o ser 43

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57

21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60

221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80

25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96

31 Linguagem e limite 101

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106

33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118

352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150

15

Introduccedilatildeo

Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais

diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar

Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta

claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um

modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um

conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees

E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores

o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e

competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e

consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo

natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria

noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta

Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela

funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a

educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante

pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a

fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte

delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a

educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que

ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles

Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o

seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio

o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido

quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa

vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia

Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora

eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu

mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do

Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo

16

peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo

de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina

mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc

Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como

cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa

margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg

62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil

capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo

para por precauccedilatildeo posterior usufruto

Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na

confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a

um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e

aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no

fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na

mensagem

Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer

qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do

sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda

assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo

O artista inconfessaacutevel

Fazer o que seja eacute inuacutetil

Natildeo fazer nada eacute inuacutetil

Mas entre fazer e natildeo fazer

mais vale o inuacutetil do fazer

Mas natildeo fazer para esquecer

que eacute inuacutetil nunca o esquecer

Mas fazer o inuacutetil sabendo

que ele eacute inuacutetil e bem sabendo

que eacute inuacutetil e que seu sentido

natildeo seraacute sequer pressentido

fazer porque ele eacute mais difiacutecil

do que natildeo fazer e dificil-

mente se poderaacute dizer

com mais desdeacutem ou entatildeo dizer

mais direto ao leitor Ningueacutem

que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)

17

Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula

confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os

dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela

corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave

toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um

conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao

sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria

difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas

Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois

como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente

ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de

passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra

Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que

brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que

aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma

traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois

ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos

singulares

Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos

defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava

estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que

delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo

Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua

inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no

real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na

banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra

como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu

Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho

aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por

assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso

significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a

fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso

18

A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre

outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a

indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum

acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo

menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e

consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar

Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses

somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada

presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou

salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por

cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo

de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em

sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia

Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico

hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o

controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem

poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute

conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo

fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas

mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou

verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro

Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter

credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo

Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria

o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da

verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas

agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio

vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar

Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real

Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a

verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no

ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade

19

demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser

solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do

pensamento cientiacutefico

Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento

de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das

manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria

o ser representado e por isso deveria conduziria os homens

Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma

natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a

sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo

ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a

poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da

ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves

graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor

originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades

Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo

possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem

medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado

sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um

rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa

medida estaacute inseparaacutevel

Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no

que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes

datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas

essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem

concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem

poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees

abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo

e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento

20

1 Pensando a Educaccedilatildeo

11 O ensino decide por dizer

O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho

natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente

a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se

se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se

corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que

natildeo temos controle

Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os

esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute

aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma

concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido

pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento

Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta

inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute

necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma

pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa

mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se

adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo

execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da

histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas

exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o

significado de ensino

Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em

determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim

fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no

poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a

paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos

programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O

conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que

21

foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que

deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de

dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por

outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os

homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)

Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o

convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma

festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar

sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila

ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele

evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas

A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso

sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite

seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre

dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca

de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O

ensino decide por dizer O que ele diz

Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura

e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que

tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele

Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento

ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos

pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido

Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel

portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute

possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total

incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste

trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre

condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer

Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um

saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-

signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do

latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua

22

vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo

caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com

marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo

(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2

Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em

algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila

De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash

por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que

ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres

111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc

Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar

sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo

delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem

distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser

em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute

constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo

A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino

debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias

de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1

Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno

de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem

semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da

composiccedilatildeo insigne + -itussup2

A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo

formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash

2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To

adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []

23

traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo

explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente

visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE

1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5

Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos

que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos

que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo

do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos

fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o

vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)

Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em

portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se

assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a

uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim

fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)

nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto

forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω

ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889

Οἶδα)8 respectivamente ver e saber

Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave

primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos

que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas

e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel

enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel

compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se

4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em

27 set 2016 7 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233

0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3

Ddagt Acesso em 27 set 2016

24

fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu

mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A

experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que

natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender

seu ensinamento concreto

Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser

uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta

que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido

toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos

foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL

2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)

O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e

dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas

calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo

em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja

a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo

Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo

estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer

apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma

multiplicidade de limitaccedilotildees

Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta

Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos

Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes

E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila

Nem aqui vinhas

Brinca na poeira brinca

Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos

Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la

Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar

O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo

sujas

Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo

Sabes que te cabe na matildeo

Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior

Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006

paacutegs 42-43)

25

No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma

cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver

imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que

distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo

do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da

presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que

conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a

pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de

geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra

nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar

O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou

representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de

ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra

poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial

esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo

da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto

palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque

de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra

poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007

paacuteg 43 ndash grifos no original)

O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com

pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que

pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse

conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica

muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel

(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de

manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela

experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo

No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-

se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado

essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos

portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor

Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como

sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer

26

crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e

restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse

modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja

esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave

minha portardquo

112 Um saber que rasga

Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος

faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento

Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta

dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo

acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que

transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou

intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a

sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en

lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)

Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg

970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram

incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O

signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a

impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel

de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos

sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo

estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou

movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-

1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum

Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra

essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a

concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua

27

simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos

homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo

seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao

simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela

coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER

1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9

Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de

ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de

emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute

representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta

quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude

de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado

transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que

isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita

concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o

agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo

categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto

e conhecido do fazer

Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte

da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento

de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos

apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam

respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia

humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais

andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se

transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute

uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo

o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda

O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o

concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das

9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen

28

coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo

eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo

Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute

sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a

singularidade dos caminhos

Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a

Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no

discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute

a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define

explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas

natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora

em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve

Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo

poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O

camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria

obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a

mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013

paacutegs 27-28)

Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto

eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste

sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a

propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a

verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se

capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel

Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a

ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel

O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a

isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um

esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia

confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes

estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo

eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos

fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo

agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito

Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco

+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma

29

experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado

etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo

-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e

que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE

1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco

1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar

recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte

remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar

atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento

fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo

etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968

paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10

A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny

(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem

e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que

se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da

etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento

posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que

rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um

saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees

sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras

da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura

brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste

mesmo saber

sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim

secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim

sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca

entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage

(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11

10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from

to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water

air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in

ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip

abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo

if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage

30

Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg

56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o

proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas

aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave

opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz

Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da

experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que

demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade

seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra

forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz

diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no

que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada

um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas

que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites

[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12

Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio

A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13

Na janela a neve cai

Prolongado soa o sino da tarde

Para muitos a mesa estaacute posta

E a casa bem servida

Alguns viandantes da erracircncia

Chegam ateacute a porta por veredas escuras

Da seiva bruta da terra

Surge dourada a aacutervore dos dons

O viandante chega quieto

A dor petrificou a soleira

Aiacute brilha em pura claridade

Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de

Cavalcante Schuback)14

12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und

das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden

bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte

die Schwelle

Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein

31

Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave

certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz

versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva

em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com

cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como

descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra

singularmente em portuguecircs

O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como

o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no

dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute

soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e

traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica

estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa

Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a

soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto

a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo

teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz

uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute

soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar

categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a

unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa

Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os

diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se

mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som

sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e

w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som

continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro

terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente

Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua

quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma

pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez

32

constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude

Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para

coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde

haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar

A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos

Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de

vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra

que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho

tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond

retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer

agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor

A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria

mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade

A linguagem fala

O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar

Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER

2003 paacuteg 26)

Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia

de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as

distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre

afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006

paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar

no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo

seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera

informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo

ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda

Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que

ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que

o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de

aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber

do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender

nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia

quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)

33

113 Natildeo ensinar e a ciecircncia

Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com

as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo

ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o

pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis

sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento

impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o

conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute

compreendido

Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar

Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as

variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico

cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do

processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o

ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito

Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino

serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o

cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o

desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta

procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou

mais por menos tempo o que costuma coincidir

Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode

permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-

se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade

se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas

eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao

sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma

aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo

34

de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos

ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL

SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15

Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo

Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o

real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a

verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido

observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto

esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός

ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16

Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία

como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que

ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute

originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17

O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta

era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos

habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia

com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e

diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras

15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves

embassy mission Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri

2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2

Fa2gt Acesso em 14 set 2016

Cf Θεά Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2

F1gt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὁράω Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra

2Fwgt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὤρα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2

Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh

2Fqeia Acesso em 14 set 2016

35

animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses

seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A

verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir

Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta

Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras

a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de

valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs

1-2)

Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era

possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que

remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser

possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo

possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo

apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que

natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora

Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a

demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto

tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave

lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo

significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe

[]

Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos

se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e

vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela

orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo

satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo

que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE

2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)

Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar

cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do

mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de

que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos

conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida

o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute

ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo

36

de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo

claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel

A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico

objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse

lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O

importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do

desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo

(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)

Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar

o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar

para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e

desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar

a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas

metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma

vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico

ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias

discerniacuteveis fossem

Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar

conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser

ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no

sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro

do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua

plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se

aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave

plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se

inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos

referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se

respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa

concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do

nada e do ente de origem e de plenitude

Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito

ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino

seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo

maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave

37

disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito

a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas

vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg

9 ndash traduccedilatildeo livre)18

Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila

fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe

que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los

literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania

mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg

157)

Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma

dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo

homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a

irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na

e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo

(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens

que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da

vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que

natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que

natildeo permite adoraccedilotildees alheias

A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser

inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na

estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este

papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de

tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)

Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas

categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances

apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu

destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular

18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la

experiencia de la infancia

38

114 O jogo do poeta e da infacircncia

Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo

natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao

contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo

ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade

apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade

Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de

profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais

que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este

vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite

funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos

caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma

cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se

Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem

que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza

nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante

mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave

margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo

suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)

A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar

as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade

isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico

do pensamento e do ensino aqui propostos

Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar

os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e

pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de

controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado

mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os

alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo

39

logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a

necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos

Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina

com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute

neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o

converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz

nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus

educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19

Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia

em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade

cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo

contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente

construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo

(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos

sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas

A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho

natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria

uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de

produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial

para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)

Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como

educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que

satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes

para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar

Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que

decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um

instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee

e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece

diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento

19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender

a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su

alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz

nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores

40

remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo

chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo

Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo

entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e

levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui

vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes

de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de

vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem

quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico

O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de

idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno

literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute

problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos

com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento

que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos

ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa

inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo

(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo

do poeta e da infacircncia

12 A tradiccedilatildeo

41

Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra

disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem

ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de

compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho

na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de

atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo

Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas

gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o

sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados

de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de

valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua

ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)

Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e

criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se

costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo

Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e

educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com

a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um

relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que

determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino

Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo

o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural

e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim

faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras

de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade

cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve

ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave

reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo

Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se

transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo

para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos

receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg

226)

42

121 Quando o poeacutetico repousa esquecido

Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder

compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar

num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de

ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a

induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita

alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do

primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo

(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar

um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se

Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos

houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da

autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta

seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se

suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior

foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que

despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade

O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza

natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada

apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela

autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg

245-246)

Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-

a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter

sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a

partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado

43

Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar

movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido

Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a

simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela

manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar

do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o

seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda

natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no

original)

Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as

coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento

do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o

poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo

nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra

tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito

O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua

concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma

dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo

de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das

vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar

(JARDIM 2005 paacuteg 33)

122 A ideia e o ser

Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana

das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa

a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa

O Universo natildeo eacute uma ideia minha

A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha

44

A noite natildeo anoitece pelos meus olhos

A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um

estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de

pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite

no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo

mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que

a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa

todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem

que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer

O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico

imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia

indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo

mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza

uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da

planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre

(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)

Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia

ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A

pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara

que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo

quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito

do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo

(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro

Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque

realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova

flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute

jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo

Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo

eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)

20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more

45

Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa

sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)

Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo

se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos

relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre

alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar

a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa

limitaccedilatildeo conceitual a ela

Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das

estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a

realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que

nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram

reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se

corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade

que o fulgor das estrelas poderia ter

A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus

nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar

ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma

manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser

superado basta termos mais conhecimentos a respeito

mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites

natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser

limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute

sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []

mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros

Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36

37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um

nuacutemero maior

mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois

acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia

mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

46

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o

compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O

homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser

diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma

infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a

ser o homem

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo

Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma

concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o

modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos

traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem

entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre

tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia

linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido

proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo

(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de

significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua

ignora ou desconhece

Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma

consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro

Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio

processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz

legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)

Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash

conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015

47

Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira

(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar

entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se

mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do

significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento

adiante perpetuando um saber

Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega

transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se

tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens

etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino

b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo

(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo

para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao

seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada

do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno

do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra

Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com

o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por

sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de

entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma

pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das

forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute

mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo

livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25

21 Disponiacutevel em

lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16

set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2

The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional

knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a

position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)

48

Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz

de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez

que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o

verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por

cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes

surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs

falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma

tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972

paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de

passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo

A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo

complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O

primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma

doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a

utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27

De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um

deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda

entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que

ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso

em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois

entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a

entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo

Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa

simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que

faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta

Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um

atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um

comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)

26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead

etc) c to grant (legal possession use etc)

49

A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo

Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta

Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua

dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo

natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os

percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo

entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido

por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com

a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do

tracircnsito das experiecircncias de mundo

A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo

Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel

Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo

entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na

Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O

que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []

(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo

A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para

os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e

especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-

se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho

aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees

O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra

Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna

jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente

pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de

novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de

palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)

Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de

auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no

50

aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda

fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora

pela via popular de traditio

Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se

outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra

traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina

em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e

acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada

como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e

empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015

Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo

Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se

em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela

traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva

rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-

que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela

tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a

mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta

talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares

Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e

consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram

uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas

pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram

tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE

1998 paacuteg 18)

Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser

uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante

aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o

caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta

eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de

tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a

28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016

51

oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela

tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova

Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo

sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se

dispotildee

Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um

comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da

malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam

esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo

do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo

ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo

(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade

prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO

1832 paacuteg 1057)

A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao

portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo

ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo

he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na

formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e

traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-

Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam

com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o

sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da

mensagem

Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de

mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em

narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a

mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real

propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que

permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte

suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer

pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente

52

o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa

adiante em sua possibilidade de autenticidade

125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo

A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor

da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A

histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra

Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que

vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia

Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para

reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua

vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em

determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o

restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com

sua experiecircncia de mundo

Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o

linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute

cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades

embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e

resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso

corriqueiro das fontes propulsoras do nomear

No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que

pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior

parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala

que passou

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido

de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude

do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg

12)

53

Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo

destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma

entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa

deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo

(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave

casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE

VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a

particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta

noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de

cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)

6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL

Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de

surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a

sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila

traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30

Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma

conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se

pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas

culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo

leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso

seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e

realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente

contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em

ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua

interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional

O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de

problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a

alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo

eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os

30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set

2016

54

homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE

1998 paacuteg 85)

Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros

receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante

notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se

enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua

funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute

puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas

agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela

circunstacircncia especiacutefica

Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa

agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de

persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um

uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega

da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade

Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio

Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo

desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela

comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em

amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo

Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela

o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute

tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as

palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que

a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades

regionais

A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO

TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai

nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando

precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona

31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set

2016

55

a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo

(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua

que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias

origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser

encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo

simultaneamente

Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de

popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo

extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua

constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO

2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde

e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)

respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash

ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo

no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como

quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos

fazendo-o seu por instantes

126 Os mutirotildees do homem

Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham

experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma

famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu

para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo

livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina

nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo

Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no

tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um

32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the

kill and served it to fellow-members who came to assist him

56

trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do

caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem

da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue

Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a

qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete

sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos

com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa

como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo

isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam

contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas

Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca

geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as

mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade

e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa

A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de

continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e

temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)

57

2 Pensando a Filosofia

21 A filosofia como resposta

Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo

dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace

Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona

com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o

ensino

Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido

na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega

meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso

porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas

respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila

em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando

um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de

compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989

paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33

Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos

afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo

(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a

problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a

respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao

inominado enveredando pelo inominaacutevel

[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um

coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo

tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo

da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos

sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e

tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se

33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie

58

chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um

outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)

Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro

e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja

dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas

desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances

do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida

a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma

disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo

(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)

Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee

uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos

acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute

pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos

conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)

A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer

contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma

para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente

tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto

haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o

mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela

serve

Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo

bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute

mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio

tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no

vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das

vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo

(BRASIL 2000 paacuteg 44)

O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da

importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres

questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica

59

torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa

mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio

Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar

prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar

a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do

conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no

percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado

Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer

precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que

recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou

necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento

efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo

ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam

fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com

a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)

Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de

reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um

contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas

e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes

debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar

responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso

eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que

o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que

se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)

34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS

Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F

dutosgt Acesso em 11 mai 2017

60

22 Filosofia inteligecircncia e entendimento

Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute

determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em

variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais

da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados

encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia

Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem

que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a

princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo

eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico

e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem

cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo

Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio

de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado

filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto

que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo

de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando

positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por

meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro

seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo

baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)

A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO

2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados

outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia

platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo

natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em

confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e

pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine

61

Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre

perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador

delas

Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua

atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do

perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa

individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem

com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo

livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)

Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o

iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa

disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute

golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia

geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos

seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos

elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)

definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica

lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36

estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a

intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se

a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura

e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no

esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam

parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo

livre)37

ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα

παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ

ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον

35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute

une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em

lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo

Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro

campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these

four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second

assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion

considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of

truth and realityrdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017

62

αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας

ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38

Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da

influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada

de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς

[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον

[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser

assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39

Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO

1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da

filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia

lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e

medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser

primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente

satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro

segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem

se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e

terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42

38 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note

The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could

hardly be thus described Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2

Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2

Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι

δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ

εἰς εἴδη Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017

63

Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por

razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim

de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo

anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes

o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado

Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no

tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada

incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo

Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de

modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo

ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 71)43

Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que

na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]

pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao

longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz

a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta

contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus

membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a

palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de

qual sentido adotar neste ou naquele contexto

Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a

responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo

Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo

de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta

para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a

43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg

70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ

Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά

με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-

alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017

64

palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute

qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente

vaacutelido

Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de

Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma

conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes

sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras

e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras

veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute

estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo

Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece

direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado

pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina

soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato

metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia

paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto

de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor

satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas

Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que

pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da

disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)

O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute

ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo

aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata

tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo

todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do

real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma

palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do

conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito

A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal

homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A

essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento

ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade

apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-

diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg

235)

65

Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira

quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer

como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e

simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra

possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo

princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος

marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando

pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez

adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47

Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental

da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no

real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang

war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos

paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete

grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra

atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora

Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal

rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O

elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal

racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo

referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem

que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia

(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)

Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον

remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais

provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ

λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como

ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem

46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt

Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A

section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017

66

dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme

sugere Andrew Glynn (2015)51

Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις

enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade

mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem

ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo

engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940

Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse

material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse

Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica

a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia

Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este

percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo

estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal

ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a

destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente

a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse

viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos

A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees

enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio

universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro

lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que

o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais

submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice

funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental

(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)

50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1

999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-

animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F

xw1gt Acesso em 08 jul 2017

67

Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias

entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre

διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre

(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo

intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo

διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o

lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao

menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida

que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada

Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς

τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo

como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os

princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder

caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz

uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de

pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da

filosofia embora discernindo ambas entre si

Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma

da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a

duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs

dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos

em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se

portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por

missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo

fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg

XXXI)

Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto

somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos

Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de

imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel

Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os

53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017

68

meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute

sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa

Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a

impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma

ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares

estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta

a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca

houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta

facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males

aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar

Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo

e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o

chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora

lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs

natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola

Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A

terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais

Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda

significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava

o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento

encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo

tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza

E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria

motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer

mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta

pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)

Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje

e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por

ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno

vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais

entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para

convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno

do periacuteodo de influecircncia homeacuterica

Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford

(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender

contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da

poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia

69

na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais

do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um

comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era

a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores

dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta

transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental

da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo

esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as

Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um

grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)

Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e

sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos

problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas

apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas

respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees

e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia

transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo

necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo

Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais

recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o

exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)

A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos

conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico

dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das

finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave

filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico

conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir

valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)

Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no

conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no

Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente

opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de

conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio

absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)

Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a

filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute

rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca

70

da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se

confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita

coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas

e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen

auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)

Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo

para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso

as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes

questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o

pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a

relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com

a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)

Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais

propriedade a imagem-questatildeo colocada

Patmos54

Estaacute proacuteximo

E difiacutecil de agarrar o deus

Onde contudo haacute perigo cresce

O que salva tambeacutem

Agraves escuras vivem

As aacuteguias e destemidas partem

As filhas dos Alpes sobre o abismo

Em singelas feitas pontes

Por isso juntas laacute estatildeo em torno

Do cimo do tempo e as mais amadas

Perto vivem esmorecendo nas

Mais separadas montanhas

Entatildeo daacute pura aacutegua

Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos

Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55

54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a

revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em

lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern

wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten

Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf

Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn

und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em

27 mai 2017

71

Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se

relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas

representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode

veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas

representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens

De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme

Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem

poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo

(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)

A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos

surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao

lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa

espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta

essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as

sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no

mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se

reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no

decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por

essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute

Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos

preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da

literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde

vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado

como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos

teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)

Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de

trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela

histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua

irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e

o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na

qual convivem filosofia e poesia

72

221 Ciecircncia e intelecto

Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da

Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda

entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas

uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash

traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην

καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν

ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo

descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta

subdivisatildeo de νοῦς

Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o

caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de

ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e

faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma

declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento

noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59

Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo

possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica

argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo

deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio

ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα

56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth

conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth

2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2

Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017

73

Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo

distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel

entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse

simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo

Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo

filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo

Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-

se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente

aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona

no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica

[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de

ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda

intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a

si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-

querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)

23 Crenccedila e conjectura

Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos

de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos

referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos

ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A

referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema

Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente

se velava na histoacuteria do Ocidente

Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que

laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das

sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e

calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas

coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas

Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as

quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia

74

Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se

este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ

mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e

imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido

Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma

declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como

a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela

palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua

inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute

creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra

Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a

filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada

para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da

etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se

no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com

as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia

praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se

achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse

realmente vecirc-las

Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]

a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita

apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ

φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos

lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a

εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve

ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63

60 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F

stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO

1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal

como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in

visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510

A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)

so that πίστις should not be confined to the objects of sight

75

Figura 1 ndash As quatro influecircncias

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo

aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa

forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas

tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um

precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias

Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence

independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel

ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das

experiecircncias concretas

Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na

sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo

(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute

ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio

das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente

(ZARADER 1998 paacuteg 210)

Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema

ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso

com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra

arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de

sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra

em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a

64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko

2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017

76

partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a

crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo

contexto em que ocorre

Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte

oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia

e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica

apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades

provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades

universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um

matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash

traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε

πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES

1894)66

Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse

dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de

questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o

convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de

contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade

de acabamento

Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []

de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma

fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma

estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute

construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []

[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam

objetos de toda espeacutecie []

[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo

agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)

65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand

strict demonstration from an orator Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017

77

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser

reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser

caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as

sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave

forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem

antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de

tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)

Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία

como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc

(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento

Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo

67 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi

2Fagt Acesso em 20 mai 2017

78

atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo

existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos

Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse

desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem

possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes

ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os

olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais

pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu

plenamente sua visatildeo

A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos

muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da

sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno

mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de

argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar

teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso

caso filoacutesofo

Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por

reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos

Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse

mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo

Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou

natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve

descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para

casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68

Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo

intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo

intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar

muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo

natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por

68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em

lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017

79

ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos

Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes

circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses

provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo

Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele

relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou

melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no

texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL

SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo

lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e

duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido

sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM

1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento

Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de

apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na

alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que

vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo

uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois

a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera

suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes

No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις

afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas

representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os

procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa

69 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo

gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and

doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state

of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato

2Fsgt Acesso em 04 jun 2017

80

ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das

finalidades imediatas

Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por

apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram

compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do

intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς

haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal

logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter

superior para a filosofia platocircnica

Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos

Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior

duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa

filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber

fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute

derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute

mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo

ser

Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que

esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e

de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la

enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO

1949 paacuteg 17)

24 Filosofia e opiniatildeo

Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se

apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta

tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser

Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um

saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero

racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto

81

A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de

sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-

estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o

outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que

determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio

rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia

a partir de uma perspectiva poeacutetica

Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas

de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como

exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria

convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo

arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim

pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa

Duas estradas divergiam num bosque em setembro

E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias

E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro

olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia

ateacute onde ela dobrava na descida e sumia

Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta

e fosse talvez a mais atraente

pois estava coberta de grama precisando ser gasta

embora aqueles que passaram na frente

tivessem gasto ambas quase igualmente

E ambas que aquela manhatilde igualmente fez

cobertas por folhas pegada alguma a manchar

Oh deixei a primeira para outra vez

Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar

duvidei se iria algum dia voltar

Devo estar contando isso com a alma cortada

Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa

divergiam em um bosque duas estradas

e eu escolhi a menos viajada

e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar

Ramos)72

72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I

stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other

as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though

as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on

to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and

82

Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser

filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que

natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees

favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de

se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata

das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para

cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio

de que nem todos chegam a fazer filosofia

Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do

mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos

mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo

conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente

de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns

natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais

Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem

com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda

de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico

canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio

intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo

coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e

admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas

Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo

sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e

surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem

a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc

e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria

hierarquizante e excludente criada pelo intelecto

ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made

all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-

americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017

83

Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou

de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de

selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos

educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute

nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado

preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute

uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim

pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73

Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo

e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo

(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa

transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a

despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o

comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas

filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade

de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso

ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos

agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva

As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam

ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo

questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se

na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977

paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz

com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas

soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades

de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar

enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)

Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores

seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as

73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de

dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han

trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo

no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho

propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por

lo que seraacuten

84

questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo

posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela

opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se

apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais

variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual

no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar

a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade

O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de

pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)

Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira

de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo

ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia

ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)

Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com

preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas

Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois

estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num

pseudoquestionamento que oculta uma certeza

Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica

Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a

leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com

historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no

portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive

remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena

Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam

verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem

mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo

toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira

com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)

Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para

a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja

dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o

85

finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido

canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente

coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento

A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao

questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e

ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por

uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por

exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu

patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua

realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como

oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima

Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame

debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da

filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial

A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo

de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem

de peacute agrave tormenta

O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva

uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER

1977a paacuteg 324)

25 Diaacutelogo e filosofia

No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos

contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso

porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem

a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro

Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees

Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e

controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser

frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado

apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo

tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor

86

encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco

pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real

Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro

determinaram que as coisas assim se passassem pois eles

sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila

Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo

hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg

457)74

Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder

agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas

acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com

este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se

apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a

uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO

2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente

tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo

soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira

semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo

nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta

que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente

que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da

questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os

posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo

entre as partes

Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se

aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido

a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um

percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela

Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave

identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois

74 Livro XXII linhas 301-304

87

elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se

aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda

diferentes

Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue

radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel

categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e

da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta

nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia

e mudanccedila

Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser

aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca

assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro

quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio

movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem

num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a

dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)

Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num

movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos

devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A

filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para

que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida

literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia

natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias

Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo

progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um

Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de

cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes

discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo

que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a

diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade

O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo

tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no

questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo

88

pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia

sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois

arduamente conceituaacutevel

Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem

forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu

sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como

tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou

natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel

com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas

nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute

uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo

entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76

O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio

reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele

natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve

ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo

partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute

medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem

O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a

instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se

por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo

acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do

mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute

a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo

se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)

Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua

manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos

pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o

75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη

89

inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio

Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute

para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro

fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que

vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos

fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver

Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida

segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se

debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do

sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do

estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia

apenas um sonho nebuloso e fugaz

Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel

dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa

escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao

menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e

com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte

Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo

algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal

ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando

de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com

as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II

Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria

facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis

obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois

casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que

78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg

92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-

Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio

90

lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO

1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81

Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade

desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um

diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos

seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva

sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991

paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um

diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel

falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente

se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel

Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua

toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees

tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas

agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que

uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo

posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto

da filosofia em geral

Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos

upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que

versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava

escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio

acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []

Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas

que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda

sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele

passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono

para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse

por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)

Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante

de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου

81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so

verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur

gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem

remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em

lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017

91

conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud

KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao

Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos

mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador

natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio

ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o

sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando

satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83

Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos

ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo

agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser

algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do

soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e

dormir

Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais

nobre para a alma suportar os dardos

e arremessos do fado sempre adverso

ou armar-se contra um mar de desventuras

e dar-lhes fim tentando resistir-lhes

Morrer dormir mais nada Imaginar

que um sono potildee remate aos sofrimentos

do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos

que constituem a natural heranccedila

da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se

Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)

Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite

posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o

entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo

a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a

questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo

perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com

83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά

ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)

92

visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta

dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84

Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe

como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a

vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou

desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente

e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa

em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida

que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver

morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma

maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais

Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-

istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute

incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto

correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a

inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo

mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia

a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa

Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer

Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse

caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos

da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o

homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista

manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso

torna-se presente a todos

Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos

das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia

84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων

ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς

μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)

93

exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo

do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio

viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse

embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral

vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se

deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ

(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar

querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de

uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se

desvencilhar totalmente disso

Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute

convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por

imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do

certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo

da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos

convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa

vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar

O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta

definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a

matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos

olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada

responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade

Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de

batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes

volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa

e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia

de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto

86 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3

Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo

(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)

94

eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer

isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho

Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um

seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento

50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio

ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo

ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de

complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia

pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida

sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja

qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele

natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo

Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais

simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um

[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o

mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se

revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]

dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido

de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em

sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee

constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)

Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal

necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas

com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse

somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem

haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer

possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo

houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo

minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira

ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer

Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O

que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo

e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade

95

se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash

Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo

satildeo outros quinhentos

96

3 Pensando a Linguagem

O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres

nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco

zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres

cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade

Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma

ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua

histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos

seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo

em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc

De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta

a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger

(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der

Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira

de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da

existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui

nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase

sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana

Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come

e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe

precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os

demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem

que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do

homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente

ele pode ser

Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo

ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se

a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer

posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se

atentar aos modos de ser

97

Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais

consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em

sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob

pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa

Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto

dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente

O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua

vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir

fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar

uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute

Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o

paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute

encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo

dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala

natildeo precisa calar

Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os

demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem

existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de

fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se

atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na

causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem

Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade

no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o

homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se

complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro

(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono

dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala

perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)

O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc

se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave

medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo

somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore

98

Retoacuterica 1

Cantam os paacutessaros cantam

Sem saber o que cantam

Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89

Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega

que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem

na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz

o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente

Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que

corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a

existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que

eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado

compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave

escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias

Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute

o possiacutevel

De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela

natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento

sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem

significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que

concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος

Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela

O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas

decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta

atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem

sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de

respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta

correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e

89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta

99

doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na

instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai

A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-

se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o

homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo

livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora

funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar

sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas

interpretando experienciando tornando-as de fato obra

Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate

Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter

o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los

no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada

um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra

a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)

Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por

completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como

tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem

colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se

ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso

precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e

pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder

acontece

A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta

Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme

Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa

interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou

enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue

90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und

Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung

100

de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram

distintamente a noacutes

De cajado

rutilante

eremita

do profundo

vai a lesma

cada instante

recriando

nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)

No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade

Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade

opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave

ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees

sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer

para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por

aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos

arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos

perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do

profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)

Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e

deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso

eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que

se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo

aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute

desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele

que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre

os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar

como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO

AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)

Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do

λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o

tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a

91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von

Arnim conforme nota do original

101

desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede

o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda

que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade

Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se

deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente

ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive

logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo

convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a

alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador

estivessem ateacute em outras dimensotildees

Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a

como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de

confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος

retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de

luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam

acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em

sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o

ponto fora da curva

31 Linguagem e limite

Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria

natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo

Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo

o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre

foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um

tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras

inquietando os homens

Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo

impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em

102

estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do

status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue

a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein

Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute

ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo

(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do

aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto

Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se

debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso

pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que

antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida

Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433

GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY

Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim

(GLARE 1968 paacuteg 537)

Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a

Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1

repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da

funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das

palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale

agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai

Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com

o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos

satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais

pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles

92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-

binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain

mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2

Fknumigt Acesso em 05 ago 2017

103

encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um

juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95

Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por

tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de

importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter

solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET

2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos

confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade

seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do

sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com

todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97

Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica

conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do

empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o

trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los

quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos

alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico

pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras

sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na

nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que

algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente

relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante

natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra

O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso

estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante

mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a

95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du

droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces

religieuses et juridiques qui en reacutesultent

104

situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo

aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando

Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer

filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo

com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por

estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela

cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e

consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]

significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo

livre)98

Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva

por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra

Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg

692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de

enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do

problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica

filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute

sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele

Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda

partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um

caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para

remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e

uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado

entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro

em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar

natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho

A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente

natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no

mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro

98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt

105

era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma

alternativa ocorre a cisatildeo do mundo

Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral

marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o

caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte

de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz

sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro

natildeo se encerra nele natildeo necessariamente

Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de

somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a

mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade

de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro

de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo

O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas

diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno

Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do

ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos

e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias

suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da

queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar

O inuacutetil

Disse Hui Tzu a Chuang Tzu

mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade

Replicou-lhe Chuang Tzu

mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade

Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil

Por exemplo a terra eacute larga e vasta

Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza

Apenas poucas polegadas

Sobre as quais se manteacutem de peacute

Suponhamos agora que vocecirc tire

Tudo o que ele realmente natildeo usa

De modo que ao redor de seus peacutes

Um golfo se abra

E ele fica de peacute no vazio

Sem nada de soacutelido

Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute

Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando

106

Disse Hui Tzu

mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade

Concluiu Chuang Tzu

mdash Isto prova

A absoluta necessidade

De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)

Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua

correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra

em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a

profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um

pensamento raso

A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco

diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a

mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa

mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem

somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o

ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem

Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma

atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na

duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo

e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees

da vida

Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos

quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou

menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a

isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no

aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo

107

Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e

destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna

devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace

pelo qual fomos formados a crer e compreender

Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos

Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o

comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes

com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente

livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no

assunto

Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo

fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser

seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga

universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de

Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o

Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em

detrimentos de outras circunstacircncias e localidades

A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de

sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada

vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal

comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar

natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial

a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente

Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas

instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de

diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a

seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo

estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias

concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos

Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo

capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens

sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com

108

os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles

possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las

A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os

males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste

mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios

dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos

comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito

de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se

dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de

tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila

Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu

sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este

acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa

lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens

planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males

disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo

produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas

proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas

por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores

de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus

descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos

sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973

paacutegs 115-116)

Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo

pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel

saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito

Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do

ser a perambular o natildeo ser

Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja

nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja

compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos

simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso

A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo

Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o

Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia

Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma

sombra do Natildeo-Ser

Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava

pegar mas nada pegava

Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto

mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo

Posso compreender a ausecircncia do Ser

Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada

109

Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute

Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)

Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que

percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem

iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute

ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece

eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente

do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele

Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado

por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato

compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso

eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com

as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que

acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado

respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma

farsa sem trageacutedia

Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da

abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria

muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo

Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao

conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um

arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse

procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da

lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal

mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um

animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de

valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um

uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem

levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)

A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser

fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia

sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades

isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela

produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se

adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado

110

Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na

nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e

sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra

modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo

social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem

comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se

instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo

Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos

pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a

maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a

confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e

com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi

abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua

dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo

Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber

Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica

a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que

nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a

agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela

eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)

33 O limite da resposta

Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da

seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees

a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora

o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser

transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os

conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela

111

responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o

mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber

A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se

amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e

abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a

oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a

tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)

Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide

respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por

mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas

vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso

modela-se sentidos agrave existecircncia

A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel

a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras

palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta

que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo

modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto

verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa

mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a

dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por

modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com

ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as

melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o

maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto

a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos

varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou

na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do

princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor

mdash Exactamente

mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por

justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO

1987 paacutegs 472-473)

Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado

se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a

99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de

Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo

112

pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor

administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a

dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A

imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos

problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua

escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica

Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais

controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer

o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem

tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos

referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo

definitivamente mas um postar-se a

Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do

ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos

tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia

preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel

e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber

que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e

adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila

Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute

uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante

da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os

seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro

ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)

Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade

natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos

a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao

contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas

caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como

para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do

questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute

ser O que eacute quem eacute quem

113

Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute

ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma

resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que

estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece

tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante

Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser

mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo

tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos

que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo

e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que

existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em

identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo

pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que

eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira

da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista

esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes

conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras

(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)

O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que

possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo

traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem

disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a

fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades

quanto encerra-as

Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as

possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber

ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo

114

escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da

vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite

De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de

fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas

necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute

como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave

primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento

caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa

Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila

alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira

infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo

limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no

desdobrar e no responder

A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando

ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos

como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que

perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo

ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir

seraacute de menor importacircncia

Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua

finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que

eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo

Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa

que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de

tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse

presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a

coisa que existe natildeo se esgota nela

Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos

haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a

menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave

vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse

modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave

115

multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo

se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute

pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de

como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador

e constituidor

34 A resposta do limite

Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta

pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca

jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do

pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos

o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos

A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual

nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho

de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim

cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no

mundo

Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo

enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do

tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o

impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse

sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo

(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist

alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo

que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees

Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como

cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve

ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para

realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o

mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo

116

Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas

aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem

das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca

inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na

borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e

definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta

Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs

Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos

relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma

resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou

determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em

nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de

respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o

sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der

Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)

Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade

de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na

carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de

muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de

alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente

conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de

ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute

Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a

totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias

do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades

Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo

imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute

verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e

vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos

encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e

permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como

quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso

117

Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o

pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores

inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo

como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo

livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos

sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias

uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o

tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim

basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim

De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita

ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar

explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e

liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e

liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg

9)

Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa

perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou

jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi

frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma

medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim

para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado

Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo

dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que

dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de

postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em

concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do

tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para

100 Leisure rest ease Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh

2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of

being able to begin ndash must be created

118

ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua

renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102

Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra

no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser

assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem

doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora

natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o

limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser

Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o

haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria

vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o

pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o

profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo

permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns

opiniotildees fechadas respostas banais natildeo

O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a

existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas

tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-

se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer

pensador pode crer

35 Dois lados da mesma moeda

351 A resposta que natildeo soluciona

102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to

figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results

119

Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas

que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)

a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que

natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter

inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo

compra natildeo vende fiduacutecias

Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e

diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua

singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A

resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a

princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que

ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de

ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a

ladainha o carpido ou seja o rito

Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute

substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num

uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia

da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado

feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula

re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS

2009b)

Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela

partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os

verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY

Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs

1082-1083)

Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que

muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar

cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e

103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017

120

estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar

algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila

(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais

fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as

palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi

colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de

solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade

A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de

desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres

Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por

sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute

estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs

sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do

cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere

como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo

situada

A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de

adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que

podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute

ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute

fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade

vigente

Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma

profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos

dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o

termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua

vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os

usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do

sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo

tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar

as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg

75)

121

Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave

proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta

que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo

fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete

ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem

Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa

nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos

Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum

em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais

variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo

do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem

tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder

mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas

experiecircncias

Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio

significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar

profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar

Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado

como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido

significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo

da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um

equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou

daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto

que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees

devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de

profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente

em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)

352 Temor sagrado

Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o

entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um

paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos

anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta

no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor

122

como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se

em sua instacircncia sagrada e profana

Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu

o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave

origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes

significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo

lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste

dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido

restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD

Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104

As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se

aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-

se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares

concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino

Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora

cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns

exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua

doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus

convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)

Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela

sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus

filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo

controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo

demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a

saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda

de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade

[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do

inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo

interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de

identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu

foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo

imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)

104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017

123

Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem

almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos

chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo

das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico

sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias

preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-

agouro

Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida

atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-

lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos

isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos

descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus

da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status

quo

Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute

pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito

de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no

dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto

dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo

de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)

Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos

reconhecemos no que nos transformamos

Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo

que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou

errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante

erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos

como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais

ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel

pensar o contraacuterio

124

Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma

existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis

negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da

notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os

demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo

soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de

um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente

acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de

comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de

paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real

[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele

proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente

a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados

especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode

ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees

diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos

homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa

qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve

permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente

contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse

motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)

Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando

as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute

sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de

Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os

indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas

misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de

infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em

suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes

o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo

(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com

o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel

105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente

humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc

125

Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para

muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade

ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se

afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o

que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o

duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente

nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo

estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar

contemporaneamente

1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser

sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash

embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus

cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua

ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD

Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD

Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em

determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e

perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees

visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109

353 O que responde o sagrado

Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma

tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos

106 Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc

h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of

superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the

Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in

their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua

also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible

representations Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017

126

o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa

histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua

ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo

como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que

seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute

possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de

misteacuterio perene

Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob

a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral

principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na

ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006

paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)

o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa

concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo

1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente

infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente

apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou

condiccedilotildees

2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees

vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110

Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e

misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila

brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum

ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada

acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela

criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees

Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg

51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o

artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma

110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle

following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions

2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=

gt Acesso em 07 set 2017

127

arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte

do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no

ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes

sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite

fundador do nome o ancestral ainda presente

O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio

diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o

incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites

desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se

uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o

tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar

abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM

2000 paacuteg 420)

O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado

Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do

limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem

traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para

manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor

uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana

do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero

esgotamento e enclausuramento do possiacutevel

O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra

ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da

Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua

extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo

(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)

Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de

como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para

poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites

provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores

Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia

que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne

128

cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD

2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita

com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do

controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer

um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e

adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser

rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude

cegueira paralisia ou morte

Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar

a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade

de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se

do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo

podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter

Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano

Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave

etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo

Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha

muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)

Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute

em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder

Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1

Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar

uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado

de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre

casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e

cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos

na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela

Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao

questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o

111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a

assurance of

129

questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto

gregaacuteria e fundadora dos limites

[] Eacute deus desconhecido

Ele aparece como ceacuteu Acredito mais

que sejam assim Eacute a medida dos homens

Cheio de meacuteritos mas poeticamente

o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs

256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112

Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o

aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma

adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua

desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua

plenitude

Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido

parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o

compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de

beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer

libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o

santo que a cultura popular tanto conhece

Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave

terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta

em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem

da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra

que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado

que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que

eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer

no tempo

112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas

istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)

[hellip] make libations Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2

Fndwgt Acesso em 08 set 2017

130

O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O

que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental

do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio

na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao

banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico

131

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou

o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que

se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma

coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse

vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio

de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta

ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg

257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute

preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas

mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo

tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar

as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente

Fiz de mim o que natildeo soube

E o que podia fazer de mim natildeo o fiz

O dominoacute que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me

Quando quis tirar a maacutescara

Estava pegada agrave cara

Quando a tirei e me vi ao espelho

Jaacute tinha envelhecido

Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado

Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio

Como um catildeo tolerado pela gerecircncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg

124)

Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e

encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de

ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas

criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia

mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que

diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e

tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz

132

Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua

existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como

improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura

deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio

a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos

investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas

partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas

tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma

loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica

Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute

e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo

essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham

que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs

aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o

ensino e para o pensamento

Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas

seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser

eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela

ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria

Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que

exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por

aiacute vai

Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia

o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a

noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia

de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo

cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo

que ainda sangra

Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com

conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso

modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores

nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo

133

Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro

empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades

Vocecirc eacute o herdeiro

Filhos satildeo os herdeiros

pois pais morrem

Filhos ficam e floram

Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114

Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao

ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que

estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino

eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo

inquiridora que sabe e natildeo sabe

Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico

precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico

eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de

avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no

caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para

passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno

sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas

ainda natildeo eacute tradicional

Mar Portuguez

Oacute mar salgado quanto do teu sal

Satildeo lagrimas de Portugal

Por te cruzarmos quantas matildees choraram

Quantos filhos em vatildeo resaram

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso oacute mar

Valeu a pena Tudo vale a pena

Se a alma natildeo eacute pequena

Quem quer passar aleacutem do Bojador

Tem que passar aleacutem da dor

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu

Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)

114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der

Erbe

134

O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo

e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por

meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado

pelas questotildees que nos interpelam

Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no

tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar

prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de

confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves

demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra

acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais

como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute

do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido

e ao ensino o cuidado esperado

Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas

dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo

conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do

conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados

numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de

eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de

categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis

por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo

Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem

traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus

praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das

opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a

contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do

subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal

foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos

ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos

A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro

Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico

A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente

135

contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave

vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o

equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos

Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes

a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A

questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o

ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida

Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de

ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado

primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e

precisava ter um nome

A palavra

Prodiacutegio distante e louco

Minha margem agrave sua eacute pouco

Aguardei ateacute a parda Parca

E encontrei o nome em sua marca ndash

Eu pude atecirc-lo com teso

Para brilhar e luzir preso

Ansiei por bom vindouro

Com fraacutegil e raro tesouro

Toda via Ela me dizia

mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia

Eis que escorre entre meus dedos

E agrave paacutetria dou enganos ledos

Triste entatildeo soube abdicar

mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash

traduccedilatildeo livre)115

Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com

o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de

115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die

graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und

glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie

suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann

Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort

gebricht

136

morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a

linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham

novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura

poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento

do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute

a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico

137

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150

APEcircNDICE

TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

151

RESUMO

Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas

Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de

filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio

com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte

de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade

Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio

de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens

em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com

isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco

Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem

Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do

demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo

apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

152

ABSTRACT

Three poetic-philosophical experiences

Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy

with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a

classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is

exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is

discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third

movement carried out both with children and with young people in pairs a person is

blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to

control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear

the unique existence that each child young and even adult have Their inventive

questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and

accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

153

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165

Figura 2 ndash A morte 166

154

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 155

Quando a vida nos diz natildeo 157

Objetivo geral 157

Objetivo especiacutefico 157

Proposta para a atividade 158

Fluxograma 160

Relato da experiecircncia 161

Reflexatildeo com a experiecircncia 169

Exerciacutecios de ser crianccedila 171

Objetivo geral 171

Objetivo especiacutefico 171

Proposta para a atividade 171

Fluxograma 174

Relato da experiecircncia 174

Reflexatildeo com a experiecircncia 177

A cegueira da visatildeo 178

Objetivo geral 178

Objetivo especiacutefico 178

Proposta para a atividade 178

Fluxograma 180

Relato da experiecircncia 180

Reflexatildeo com a experiecircncia 183

Consideraccedilotildees finais 186

Referecircncias 188

155

Apresentaccedilatildeo

A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do

Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais

especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim

da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa

do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor

Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem

se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade

diante do mundo

O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel

na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos

contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da

direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar

os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na

escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias

filosoacuteficas

Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem

sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos

Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos

que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se

restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute

sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia

dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis

pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas

filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos

116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor

recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se

naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo

passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando

156

Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se

refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui

nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital

eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula

tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma

praacutetica proacutepria e singular

A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se

estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada

mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-

estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por

reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de

conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo

de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a

ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu

meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da

turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias

comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar

em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

157

Quando a vida nos diz natildeo

Objetivo geral

A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir

conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo

perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas

filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e

experiecircncias comuns da idade

Objetivo especiacutefico

Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton

Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que

conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um

acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do

homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade

de controlar a vida

Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de

um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse

deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem

de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o

desdobramento filosoacutefico apropriado

158

Proposta para a atividade

Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos

de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para

trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio

agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve

prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um

questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou

estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma

simples chamada pode servir de chamariz para esse instante

Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa

ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como

um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-

se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam

o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem

Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra

conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute

lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria

requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem

sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade

eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo

Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte

de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se

que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da

turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por

isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem

detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo

O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos

pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio

da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos

os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade

159

Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem

chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute

interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo

embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em

psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio

Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as

opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada

um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais

podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao

professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder

esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula

Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute

lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro

seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e

os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os

alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito

pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do

homem com a realidade reforccedilando o argumento

Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo

encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do

ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo

e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados

descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um

tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma

interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o

que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve

explanaccedilatildeo

A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a

responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas

prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi

traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia

160

de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais

breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser

Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa

ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no

filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja

essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam

vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos

expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores

Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem

resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de

controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo

que assim o faccedila

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa

palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado

na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos

3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito

poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos

4 Exibir o curta ndash 25 minutos

5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa

6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se

correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme

responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos

161

8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos

9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou

um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim

desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais

Relato da experiecircncia

Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se

gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem

demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a

depender da turma

Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o

cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma

coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a

relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte

pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte

uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra

cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele

gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo

Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a

morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias

Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no

limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se

mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo

ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda

tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o

principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de

quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo

acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a

162

novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas

ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan

Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo

contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo

uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente

quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim

todos teriam o direito de falar se quisessem

Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)

teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto

[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para

que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma

pudesse viver

A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje

o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu

respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as

pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi

porque o corpo foi costurado

Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave

experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As

colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais

praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural

foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito

de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real

se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis

Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim

de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou

dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha

acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com

o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou

soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma

como ficaria o corpo

163

Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com

os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na

501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido

Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa

turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte

Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que

sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos

remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro

a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e

uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator

decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar

Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que

o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato

de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute

tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo

XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios

e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina

com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela

Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas

crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem

experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma

forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida

que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)

Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado

associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez

tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um

pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma

essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele

podia se machucar natildeo eacute Alex

117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees

164

O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte

e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas

natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate

gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave

noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha

sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502

E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o

pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam

Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu

Vanise mdash A morte fica perto da pessoa

Julia mdash Eu acho que sim no momento certo

Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o

cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um

cheiro deixou um rastro

Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o

carro

Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em

seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que

ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder

sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo

influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema

Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos

mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse

aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova

demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy

confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque

supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido

165

Figura 3 ndash Calvin e Haroldo

Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005

Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo

tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a

aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um

trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu

da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como

na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente

Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice

do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora

para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado

sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo

Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento

de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com

repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse

algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles

amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo

Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo

a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque

eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo

eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte

acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos

eacute proacuteximo e familiar

166

Figura 4 ndash A morte

Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009

mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via

das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da

gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma

coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)

Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para

natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade

Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e

brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar

velas aromaacuteticas)

As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a

mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas

natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas

como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da

admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto

A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se

aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo

animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por

natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius

118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato

Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma

pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos

167

Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou

Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais

focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto

enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que

vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo

A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de

compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos

uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que

faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da

imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima

da morte

Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia

ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha

alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne

apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer

com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente

Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se

processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia

menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre

a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um

caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele

sobe Eu tenho certezardquo

Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs

ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim

ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e

jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25

ceacuteus

Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute

um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no

estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a

turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto

168

entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre

noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees

Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos

membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos

prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos

fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa

mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa

ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei

ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar

de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por

que natildeo falar de outras religiotildees)

Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e

quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo

menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo

sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo

moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa

maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se

afirmar com destreza e propriedade

A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o

que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo

convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito

Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto

Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele

tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre

foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra

o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando

conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela

Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila

grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo

esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute

presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a

169

serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da

morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda

Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes

do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y

marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia

traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la

dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)

Reflexatildeo com a experiecircncia

Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem

Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos

e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita

alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria

Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada

invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar

Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do

homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse

sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a

ocidental

Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato

mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que

nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das

coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las

119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se

perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996

paacuteg 15)

170

A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas

mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa

possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha

mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder

compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos

relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus

nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas

quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto

respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais

conhecimentos a respeito

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

171

Exerciacutecios de ser crianccedila

Objetivo geral

Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto

dos demais

Objetivo especiacutefico

A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os

alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro

desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse

exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz

respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica

Proposta para a atividade

Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes

ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os

recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma

exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre

os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro

para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por

uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles

deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado

172

Exerciacutecios de ser crianccedila

No aeroporto o menino perguntou

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho

O pai ficou torto e natildeo respondeu

O menino perguntou de novo

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste

A matildee teve ternuras e pensou

Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes

da poesia

Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados

de poesia do que o bom senso

Ao sair do sufoco o pai refletiu

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianccedilas

E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)

Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor

ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um

poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um

simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os

outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos

para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por

exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute

preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma

Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo

deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha

dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio

logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi

problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a

Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a

crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)

O menino que carregava aacutegua na peneira

Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos

Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira

A matildee disse que carregar aacutegua na peneira

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmatildeos

A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua

O mesmo que criar peixes no bolso

O menino era ligado em despropoacutesitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos

173

A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do

que do cheio

Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar aacutegua na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar aacutegua na peneira

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila

monge ou mendigo ao mesmo tempo

O menino aprendeu a usar as palavras

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras

E comeccedilou a fazer peraltagens

Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando

Ponto no final na frase

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela

O menino fazia prodiacutegios

Ateacute fez uma pedra dar flor

A matildee reparava o menino com ternura

A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta

Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda

Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens

E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs

469-470)

Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute

indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade

Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica

eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira

pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram

focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A

linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou

outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como

manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira

matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo

Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo

de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute

aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que

sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que

fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos

solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para

a questatildeo

174

Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um

comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito

importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os

pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra

qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo

Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser

crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro

nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas

eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros

possiacuteveis pensamentos

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam

comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do

diaacutelogo ndash 15 minutos

4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos

Relato da experiecircncia

Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por

mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um

encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido

levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que

era ser crianccedila para eles

175

Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana

passada

Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser

crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi

muito divertido

Vanise mdash Foi

Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)

Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra

Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno

Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila

Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora

de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever

Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute

coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a

gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver

Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a

resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O

proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas

brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira

de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser

crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva

Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo

Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e

pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que

pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente

pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias

formas

Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo

soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa

Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma

brincadeira

Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser

uma brincadeira

Vanise mdash Por quecirc

Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas

escrevendo

Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar

Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser

crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali

no papel e eacute divertido

Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido

mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se

iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis

176

Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar

O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles

tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer

assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute

eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute

trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc

estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do

exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em

todo momento faz uma piada ri essas coisas

Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de

brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila

Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria

Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta

Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu

negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute

muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando

instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois

fico tocando bateria

Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser

crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com

o teu pai

Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos

na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem

me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia

A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem

bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo

crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que

brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como

crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento

Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo

necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu

pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o

filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades

precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente

somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de

vontade vale dizer mas de entrega

177

Reflexatildeo com a experiecircncia

Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais

complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou

meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de

propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias

diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial

Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e

escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem

preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de

deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em

meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto

muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira

cuidados

178

A cegueira da visatildeo

Objetivo geral

Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar

questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle

Objetivo especiacutefico

Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute

guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de

se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o

desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para

confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que

suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o

papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia

Proposta para a atividade

Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material

didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo

pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos

que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita

em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo

Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos

entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma

179

turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles

podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha

ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para

idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante

Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois

em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga

Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma

possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no

guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma

digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela

visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla

Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-

se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante

eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila

Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos

comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem

vir a contribuir com a discussatildeo

Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em

ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios

dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma

explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao

inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15

minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser

mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual

Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com

mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira

experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo

180

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15

minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos

4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos

Relato da experiecircncia

Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa

argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi

ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais

duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle

pela visatildeo

Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado

Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a

pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33

segundos

Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com

duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter

suas falas aqui colocadas

Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria

de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir

Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar

na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto

subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo

isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada

(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra

181

Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de

Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais

o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou

como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse

bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os

olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a

visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda

retomamos a atividade

Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura

para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante

eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma

moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos

[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os

pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no

banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora

Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa

enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs

forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo

quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do

estrondo

A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia

optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito

imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As

duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto

ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava

descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos

Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a

cabeccedila

Thayrine mdash Que medo

Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo

drsquoaacutegua para ela

Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se

pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas

tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar

Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se

182

repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10

segundos

Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo

e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da

discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo

professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente

e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da

explanaccedilatildeo da atividade seguinte

Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia

Patriacutecia mdash Eu gostei bastante

Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio

Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram

Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com

a funccedilatildeo de guia

Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos

dela

Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a

experiecircncia toda

Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira

Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso

Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas

Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na

Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar

Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo

Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia

enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo

Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia

Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se

estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa

Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e

poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre

Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase

derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-

se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento

distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de

conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute

sabemos para experimentar algo novo

Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria

desviado

Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente

proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute

habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc

Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa

experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado

Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma

necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se

vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve

nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou

fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno

183

Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma

alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute

conduzindo

Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa

forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento

natildeo

Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute

satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo

interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz

parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem

outro mas ambos Esse eacute o desafio

Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre

matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem

enxerga tenta guiar de alguma forma

Patriacutecia mdash Eu concordo com ela

Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de

por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos

anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio

Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final

Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado

eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute

sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo

outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc

possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente

Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe

tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de

algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se

guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do

seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu

tinha que tocar em tudo eacute diferente

Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que

por outras vias

Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do

controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a

discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao

todo foram cerca de 45 minutos

Reflexatildeo com a experiecircncia

De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade

Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que

eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra

quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)

184

temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em

detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade

eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo

XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes

Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo

E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir

Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a

razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa

ver para ser homem

O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por

esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo

traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo

grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo

(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como

o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses

Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo

Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)

reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do

que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo

corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem

Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito

de onde o homem se torna presenccedila

Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira

remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem

que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo

engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da

presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas

pelo homem atual a saber noacutes mesmos

Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que

haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se

pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que

se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas

185

a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite

da visita agrave presenccedila do outro

Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante

distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de

sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada

parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o

proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro

nossa forma de ver o mundo

O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha

para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que

danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo

Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses

estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos

salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata

Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender

ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo

poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo

valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos

ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN

2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e

recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo

devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita

(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer

186

Consideraccedilotildees finais

Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o

intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e

o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo

de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo

deste trabalho

A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou

ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua

transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que

lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do

ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes

rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais

ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser

e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser

assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse

motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial

Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos

familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se

perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez

em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos

centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre

teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob

semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por

modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar

aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo

Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a

segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o

pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o

modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada

de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente

187

no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada

de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de

se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle

Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo

existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e

consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica

de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de

como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a

recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute

resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra

e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA

1934 paacuteg 64)

188

Referecircncias

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Page 5: O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA …dippg.cefet-rj.br/ppfen/attachments/article/81/18_André Luís Borges... · Girando na roda o homem dança e ignora, Mas o Mistério

e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque

corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar

com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda

amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para

os homens para a cultura pensamento e agradecimento

Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar

e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um

pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se

encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o

centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro

irradiador

O Misteacuterio mora

Girando na roda o homem danccedila e ignora

Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo

de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1

Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute

a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a

respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino

que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando

possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees

Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o

iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo

parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa

filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico

a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha

com a verdade em sua multiplicidade e concretude

Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda

com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado

a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha

esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma

1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows

significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem

que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se

tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte

Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute

nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro

lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me

ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado

pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A

terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte

sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz

Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute

aquele da partida

A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma

espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos

de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer

mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a

mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo

eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade

ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido

Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente

um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente

diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo

que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui

Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer

escrever

Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez

anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter

de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-

se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua

quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas

balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo

Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na

histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro

Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por

isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser

testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de

paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O

que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos

passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que

qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma

Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro

Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila

que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que

compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo

Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo

Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa

mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as

personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras

desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda

eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns

rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo

lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de

aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar

subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a

gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e

nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a

obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio

fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo

reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta

figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador

Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus

pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito

Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo

e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar

a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias

heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta

reaprender a viver depois disso Obrigado

Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na

minha Defesa

Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida

Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon

Amanda Falconi Jessica Natarelli

Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento

Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira

Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso

Caio Cruz Priscila Loureiro

Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa

Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho

Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz

Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa

Giovanna Giffoni

E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho

Allan Charles Marcus Caetano

Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas

Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira

Carla Rodriguez Mariana Rodrigues

Daniel Forain Nicole de Oliveira

Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso

Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos

Felipe Copque Rodrigo Wentzel

Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute

Fernando Sampaio Taynaacute Rosa

Flaacutevio Chame Thiago Pereira

Gabriel Torres Vanise Dutra

Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan

Guiomar Borges Yasmin Motta

Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram

Liacutevia Egger Demais professores que me formaram

Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram

Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram

EPIacuteGRAFE

Aacutervore genealoacutegica

A mais frondosa aacutervore da cidade

Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio

Seu viccedilo traz de longe uma saudade

Que a bruma envolve toda em misteacuterio

A seiva lembra sangue escurecido

Sangue que me sangra jaacute esquecido

Do pai do pai do pai (um fruto antigo)

Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo

Comer a carne doce recolhida nesse horto

Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)

Que restou de um ancestral

Thayrine Kleinsorgen

RESUMO

O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica

Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade

originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes

da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco

importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie

diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e

consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino

Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem

do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute

relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e

da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e

poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos

adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras

estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do

que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute

sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto

recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para

uma poeacutetico-filosofia

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

ABSTRACT

The teaching of philosophy from a poetic perspective

Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity

with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a

discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and

objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so

one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of

transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy

could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character

which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet

and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge

between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to

return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain

moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what

constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a

restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question

in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22

112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42

122 A ideia e o ser 43

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57

21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60

221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80

25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96

31 Linguagem e limite 101

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106

33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118

352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150

15

Introduccedilatildeo

Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais

diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar

Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta

claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um

modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um

conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees

E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores

o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e

competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e

consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo

natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria

noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta

Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela

funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a

educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante

pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a

fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte

delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a

educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que

ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles

Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o

seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio

o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido

quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa

vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia

Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora

eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu

mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do

Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo

16

peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo

de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina

mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc

Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como

cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa

margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg

62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil

capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo

para por precauccedilatildeo posterior usufruto

Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na

confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a

um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e

aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no

fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na

mensagem

Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer

qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do

sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda

assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo

O artista inconfessaacutevel

Fazer o que seja eacute inuacutetil

Natildeo fazer nada eacute inuacutetil

Mas entre fazer e natildeo fazer

mais vale o inuacutetil do fazer

Mas natildeo fazer para esquecer

que eacute inuacutetil nunca o esquecer

Mas fazer o inuacutetil sabendo

que ele eacute inuacutetil e bem sabendo

que eacute inuacutetil e que seu sentido

natildeo seraacute sequer pressentido

fazer porque ele eacute mais difiacutecil

do que natildeo fazer e dificil-

mente se poderaacute dizer

com mais desdeacutem ou entatildeo dizer

mais direto ao leitor Ningueacutem

que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)

17

Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula

confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os

dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela

corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave

toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um

conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao

sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria

difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas

Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois

como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente

ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de

passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra

Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que

brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que

aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma

traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois

ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos

singulares

Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos

defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava

estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que

delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo

Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua

inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no

real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na

banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra

como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu

Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho

aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por

assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso

significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a

fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso

18

A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre

outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a

indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum

acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo

menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e

consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar

Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses

somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada

presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou

salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por

cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo

de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em

sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia

Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico

hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o

controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem

poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute

conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo

fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas

mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou

verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro

Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter

credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo

Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria

o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da

verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas

agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio

vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar

Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real

Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a

verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no

ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade

19

demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser

solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do

pensamento cientiacutefico

Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento

de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das

manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria

o ser representado e por isso deveria conduziria os homens

Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma

natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a

sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo

ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a

poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da

ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves

graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor

originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades

Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo

possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem

medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado

sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um

rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa

medida estaacute inseparaacutevel

Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no

que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes

datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas

essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem

concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem

poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees

abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo

e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento

20

1 Pensando a Educaccedilatildeo

11 O ensino decide por dizer

O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho

natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente

a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se

se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se

corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que

natildeo temos controle

Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os

esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute

aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma

concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido

pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento

Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta

inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute

necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma

pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa

mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se

adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo

execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da

histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas

exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o

significado de ensino

Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em

determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim

fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no

poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a

paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos

programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O

conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que

21

foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que

deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de

dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por

outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os

homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)

Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o

convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma

festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar

sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila

ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele

evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas

A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso

sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite

seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre

dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca

de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O

ensino decide por dizer O que ele diz

Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura

e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que

tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele

Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento

ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos

pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido

Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel

portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute

possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total

incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste

trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre

condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer

Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um

saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-

signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do

latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua

22

vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo

caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com

marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo

(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2

Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em

algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila

De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash

por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que

ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres

111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc

Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar

sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo

delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem

distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser

em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute

constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo

A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino

debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias

de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1

Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno

de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem

semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da

composiccedilatildeo insigne + -itussup2

A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo

formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash

2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To

adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []

23

traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo

explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente

visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE

1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5

Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos

que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos

que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo

do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos

fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o

vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)

Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em

portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se

assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a

uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim

fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)

nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto

forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω

ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889

Οἶδα)8 respectivamente ver e saber

Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave

primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos

que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas

e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel

enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel

compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se

4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em

27 set 2016 7 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233

0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3

Ddagt Acesso em 27 set 2016

24

fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu

mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A

experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que

natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender

seu ensinamento concreto

Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser

uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta

que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido

toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos

foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL

2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)

O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e

dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas

calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo

em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja

a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo

Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo

estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer

apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma

multiplicidade de limitaccedilotildees

Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta

Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos

Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes

E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila

Nem aqui vinhas

Brinca na poeira brinca

Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos

Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la

Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar

O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo

sujas

Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo

Sabes que te cabe na matildeo

Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior

Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006

paacutegs 42-43)

25

No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma

cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver

imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que

distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo

do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da

presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que

conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a

pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de

geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra

nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar

O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou

representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de

ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra

poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial

esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo

da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto

palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque

de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra

poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007

paacuteg 43 ndash grifos no original)

O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com

pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que

pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse

conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica

muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel

(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de

manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela

experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo

No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-

se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado

essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos

portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor

Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como

sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer

26

crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e

restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse

modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja

esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave

minha portardquo

112 Um saber que rasga

Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος

faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento

Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta

dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo

acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que

transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou

intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a

sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en

lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)

Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg

970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram

incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O

signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a

impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel

de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos

sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo

estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou

movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-

1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum

Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra

essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a

concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua

27

simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos

homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo

seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao

simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela

coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER

1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9

Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de

ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de

emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute

representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta

quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude

de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado

transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que

isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita

concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o

agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo

categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto

e conhecido do fazer

Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte

da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento

de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos

apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam

respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia

humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais

andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se

transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute

uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo

o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda

O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o

concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das

9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen

28

coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo

eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo

Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute

sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a

singularidade dos caminhos

Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a

Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no

discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute

a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define

explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas

natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora

em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve

Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo

poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O

camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria

obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a

mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013

paacutegs 27-28)

Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto

eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste

sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a

propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a

verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se

capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel

Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a

ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel

O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a

isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um

esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia

confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes

estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo

eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos

fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo

agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito

Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco

+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma

29

experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado

etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo

-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e

que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE

1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco

1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar

recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte

remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar

atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento

fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo

etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968

paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10

A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny

(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem

e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que

se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da

etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento

posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que

rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um

saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees

sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras

da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura

brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste

mesmo saber

sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim

secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim

sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca

entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage

(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11

10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from

to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water

air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in

ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip

abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo

if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage

30

Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg

56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o

proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas

aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave

opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz

Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da

experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que

demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade

seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra

forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz

diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no

que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada

um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas

que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites

[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12

Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio

A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13

Na janela a neve cai

Prolongado soa o sino da tarde

Para muitos a mesa estaacute posta

E a casa bem servida

Alguns viandantes da erracircncia

Chegam ateacute a porta por veredas escuras

Da seiva bruta da terra

Surge dourada a aacutervore dos dons

O viandante chega quieto

A dor petrificou a soleira

Aiacute brilha em pura claridade

Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de

Cavalcante Schuback)14

12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und

das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden

bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte

die Schwelle

Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein

31

Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave

certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz

versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva

em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com

cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como

descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra

singularmente em portuguecircs

O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como

o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no

dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute

soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e

traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica

estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa

Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a

soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto

a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo

teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz

uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute

soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar

categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a

unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa

Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os

diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se

mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som

sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e

w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som

continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro

terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente

Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua

quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma

pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez

32

constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude

Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para

coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde

haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar

A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos

Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de

vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra

que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho

tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond

retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer

agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor

A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria

mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade

A linguagem fala

O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar

Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER

2003 paacuteg 26)

Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia

de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as

distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre

afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006

paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar

no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo

seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera

informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo

ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda

Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que

ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que

o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de

aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber

do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender

nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia

quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)

33

113 Natildeo ensinar e a ciecircncia

Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com

as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo

ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o

pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis

sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento

impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o

conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute

compreendido

Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar

Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as

variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico

cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do

processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o

ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito

Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino

serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o

cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o

desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta

procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou

mais por menos tempo o que costuma coincidir

Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode

permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-

se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade

se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas

eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao

sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma

aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo

34

de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos

ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL

SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15

Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo

Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o

real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a

verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido

observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto

esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός

ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16

Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία

como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que

ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute

originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17

O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta

era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos

habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia

com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e

diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras

15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves

embassy mission Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri

2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2

Fa2gt Acesso em 14 set 2016

Cf Θεά Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2

F1gt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὁράω Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra

2Fwgt Acesso em 14 set 2016

Cf Ὤρα Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2

Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh

2Fqeia Acesso em 14 set 2016

35

animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses

seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A

verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir

Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta

Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras

a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de

valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs

1-2)

Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era

possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que

remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser

possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo

possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo

apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que

natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora

Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a

demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto

tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave

lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo

significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe

[]

Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos

se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e

vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela

orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo

satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo

que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE

2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)

Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar

cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do

mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de

que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos

conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida

o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute

ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo

36

de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo

claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel

A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico

objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse

lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O

importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do

desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo

(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)

Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar

o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar

para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e

desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar

a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas

metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma

vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico

ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias

discerniacuteveis fossem

Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar

conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser

ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no

sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro

do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua

plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se

aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave

plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se

inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos

referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se

respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa

concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do

nada e do ente de origem e de plenitude

Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito

ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino

seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo

maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave

37

disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito

a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas

vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg

9 ndash traduccedilatildeo livre)18

Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila

fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe

que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los

literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania

mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg

157)

Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma

dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo

homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a

irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na

e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo

(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens

que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da

vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que

natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que

natildeo permite adoraccedilotildees alheias

A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser

inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na

estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este

papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de

tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)

Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas

categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances

apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu

destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular

18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la

experiencia de la infancia

38

114 O jogo do poeta e da infacircncia

Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo

natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao

contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo

ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade

apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade

Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de

profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais

que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este

vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite

funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos

caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma

cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se

Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem

que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza

nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante

mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave

margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo

suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)

A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar

as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade

isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico

do pensamento e do ensino aqui propostos

Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar

os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e

pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de

controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado

mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os

alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo

39

logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a

necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos

Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina

com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute

neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o

converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz

nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus

educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19

Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia

em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade

cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo

contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente

construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo

(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos

sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas

A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho

natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria

uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de

produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial

para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)

Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como

educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que

satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes

para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar

Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que

decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um

instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee

e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os

problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece

diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento

19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender

a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su

alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz

nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores

40

remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo

chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo

Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo

entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e

levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui

vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes

de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de

vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem

quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico

O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de

idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno

literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute

problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos

com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento

que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos

ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa

inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo

(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo

do poeta e da infacircncia

12 A tradiccedilatildeo

41

Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra

disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem

ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de

compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho

na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de

atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo

Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas

gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o

sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados

de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de

valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua

ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)

Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e

criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se

costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo

Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e

educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com

a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um

relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que

determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino

Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo

o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural

e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim

faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras

de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade

cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve

ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave

reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo

Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se

transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo

para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos

receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg

226)

42

121 Quando o poeacutetico repousa esquecido

Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder

compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar

num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de

ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a

induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita

alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do

primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo

(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar

um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se

Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos

houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da

autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta

seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se

suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior

foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que

despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade

O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza

natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada

apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela

autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg

245-246)

Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-

a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter

sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a

partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado

43

Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar

movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido

Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a

simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela

manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar

do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o

seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda

natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no

original)

Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as

coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento

do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o

poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo

nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra

tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito

O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua

concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma

dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo

de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das

vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar

(JARDIM 2005 paacuteg 33)

122 A ideia e o ser

Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana

das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa

a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa

O Universo natildeo eacute uma ideia minha

A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha

44

A noite natildeo anoitece pelos meus olhos

A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um

estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de

pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite

no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo

mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que

a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa

todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem

que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer

O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico

imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia

indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo

mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza

uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da

planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre

(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)

Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia

ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A

pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara

que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo

quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito

do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo

(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro

Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque

realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova

flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute

jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo

Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo

eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)

20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more

45

Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa

sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)

Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo

se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos

relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre

alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar

a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa

limitaccedilatildeo conceitual a ela

Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das

estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a

realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que

nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram

reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se

corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade

que o fulgor das estrelas poderia ter

A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus

nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar

ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma

manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser

superado basta termos mais conhecimentos a respeito

mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites

natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser

limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute

sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []

mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros

Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36

37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um

nuacutemero maior

mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois

acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia

mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

46

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o

compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O

homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser

diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma

infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a

ser o homem

123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo

Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma

concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o

modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos

traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem

entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre

tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia

linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido

proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo

(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de

significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua

ignora ou desconhece

Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma

consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro

Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio

processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz

legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)

Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash

conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015

47

Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira

(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar

entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se

mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do

significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento

adiante perpetuando um saber

Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega

transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se

tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens

etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino

b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo

(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo

para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao

seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada

do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno

do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra

Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com

o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por

sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de

entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma

pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das

forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute

mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo

livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25

21 Disponiacutevel em

lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16

set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2

The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional

knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a

position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)

48

Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz

de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez

que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o

verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por

cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes

surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs

falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma

tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972

paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de

passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo

A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo

complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O

primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma

doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a

utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27

De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um

deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda

entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que

ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso

em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois

entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a

entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo

Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa

simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que

faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta

Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um

atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um

comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)

26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead

etc) c to grant (legal possession use etc)

49

A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo

Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta

Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua

dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo

natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os

percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo

entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido

por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com

a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do

tracircnsito das experiecircncias de mundo

A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo

Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel

Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo

entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na

Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O

que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []

(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)

124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo

A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para

os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e

especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-

se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho

aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees

O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra

Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna

jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente

pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de

novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de

palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)

Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de

auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no

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aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda

fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora

pela via popular de traditio

Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se

outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra

traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina

em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e

acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada

como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e

empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015

Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo

Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se

em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela

traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva

rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-

que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela

tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a

mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta

talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares

Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e

consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram

uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas

pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram

tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE

1998 paacuteg 18)

Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser

uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante

aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o

caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta

eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de

tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a

28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016

51

oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela

tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova

Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo

sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se

dispotildee

Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um

comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da

malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam

esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo

do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo

ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo

(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade

prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO

1832 paacuteg 1057)

A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao

portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo

ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo

he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na

formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e

traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-

Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam

com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o

sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da

mensagem

Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de

mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em

narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a

mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real

propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que

permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte

suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer

pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente

52

o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa

adiante em sua possibilidade de autenticidade

125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo

A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor

da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A

histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra

Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que

vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia

Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para

reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua

vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em

determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o

restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com

sua experiecircncia de mundo

Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o

linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute

cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades

embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e

resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso

corriqueiro das fontes propulsoras do nomear

No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que

pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior

parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala

que passou

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em

encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido

de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude

do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg

12)

53

Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo

destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma

entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa

deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo

(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave

casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE

VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a

particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta

noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de

cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)

6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL

Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de

surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a

sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila

traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30

Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma

conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se

pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas

culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo

leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso

seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e

realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente

contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em

ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua

interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional

O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de

problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a

alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo

eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os

30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set

2016

54

homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE

1998 paacuteg 85)

Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros

receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante

notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se

enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua

funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute

puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas

agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela

circunstacircncia especiacutefica

Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa

agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de

persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um

uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega

da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade

Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio

Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo

desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela

comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em

amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo

Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela

o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute

tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as

palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que

a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades

regionais

A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO

TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai

nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando

precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona

31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set

2016

55

a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo

(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua

que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias

origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser

encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo

simultaneamente

Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de

popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo

extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua

constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO

2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde

e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)

respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash

ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo

no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como

quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos

fazendo-o seu por instantes

126 Os mutirotildees do homem

Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham

experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma

famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu

para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo

livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina

nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo

Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no

tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um

32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the

kill and served it to fellow-members who came to assist him

56

trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do

caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem

da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue

Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a

qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete

sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos

com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa

como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo

isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam

contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas

Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca

geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as

mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade

e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa

A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de

continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e

temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)

57

2 Pensando a Filosofia

21 A filosofia como resposta

Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo

dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace

Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona

com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o

ensino

Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido

na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega

meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso

porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas

respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila

em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando

um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de

compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989

paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33

Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos

afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo

(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a

problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a

respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao

inominado enveredando pelo inominaacutevel

[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um

coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo

tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo

da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos

sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e

tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se

33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie

58

chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um

outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)

Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro

e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja

dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas

desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances

do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida

a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma

disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo

(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)

Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee

uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos

acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute

pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos

conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)

A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer

contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma

para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente

tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto

haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o

mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela

serve

Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo

bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute

mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio

tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no

vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das

vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo

(BRASIL 2000 paacuteg 44)

O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da

importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres

questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica

59

torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa

mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio

Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar

prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar

a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do

conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no

percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado

Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer

precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que

recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou

necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento

efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo

ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam

fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com

a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)

Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de

reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um

contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas

e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes

debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar

responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso

eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que

o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que

se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)

34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS

Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F

dutosgt Acesso em 11 mai 2017

60

22 Filosofia inteligecircncia e entendimento

Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute

determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em

variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais

da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados

encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia

Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem

que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a

princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo

eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico

e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem

cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo

Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio

de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado

filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto

que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo

de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando

positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por

meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro

seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo

baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)

A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO

2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados

outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia

platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo

natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em

confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e

pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine

61

Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre

perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador

delas

Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua

atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do

perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa

individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem

com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo

livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)

Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o

iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa

disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute

golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia

geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos

seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos

elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)

definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica

lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36

estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a

intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se

a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura

e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no

esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam

parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo

livre)37

ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα

παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ

ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον

35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute

une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em

lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo

Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro

campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these

four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second

assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion

considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of

truth and realityrdquo Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017

62

αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας

ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38

Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da

influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada

de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς

[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον

[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser

assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39

Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave

percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO

1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da

filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia

lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e

medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser

primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente

satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro

segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem

se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e

terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42

38 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note

The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could

hardly be thus described Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2

Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2

Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι

δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ

εἰς εἴδη Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A

section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017

63

Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por

razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim

de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo

anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes

o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado

Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no

tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada

incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo

Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de

modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo

ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 71)43

Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que

na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]

pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao

longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz

a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta

contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus

membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a

palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de

qual sentido adotar neste ou naquele contexto

Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a

responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo

Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo

de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta

para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a

43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg

70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ

Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά

με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-

alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017

64

palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute

qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente

vaacutelido

Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de

Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma

conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes

sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras

e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras

veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute

estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo

Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece

direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado

pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina

soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato

metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia

paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto

de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor

satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas

Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que

pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da

disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)

O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute

ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo

aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata

tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo

todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do

real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma

palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do

conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito

A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal

homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A

essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento

ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade

apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-

diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg

235)

65

Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira

quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer

como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e

simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra

possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo

princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος

marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando

pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez

adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47

Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental

da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no

real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang

war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos

paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete

grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra

atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora

Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal

rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O

elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal

racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo

referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem

que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia

(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)

Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον

remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais

provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ

λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como

ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem

46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt

Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A

section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017

66

dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme

sugere Andrew Glynn (2015)51

Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις

enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade

mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem

ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo

engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940

Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse

material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse

Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica

a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia

Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este

percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo

estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal

ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a

destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente

a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse

viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos

A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees

enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio

universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro

lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que

o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais

submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice

funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental

(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)

50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1

999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-

animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F

xw1gt Acesso em 08 jul 2017

67

Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias

entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre

διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre

(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo

intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo

διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o

lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao

menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida

que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada

Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς

τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo

como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os

princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder

caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz

uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de

pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da

filosofia embora discernindo ambas entre si

Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma

da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a

duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs

dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos

em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se

portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por

missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo

fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg

XXXI)

Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto

somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos

Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de

imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel

Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os

53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A

section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017

68

meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute

sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa

Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a

impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma

ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares

estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta

a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca

houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta

facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males

aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar

Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo

e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o

chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora

lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs

natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola

Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A

terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais

Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda

significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava

o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento

encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo

tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza

E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria

motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer

mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta

pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos

(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)

Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje

e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por

ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno

vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais

entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para

convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno

do periacuteodo de influecircncia homeacuterica

Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford

(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender

contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da

poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia

69

na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais

do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um

comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era

a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores

dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta

transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental

da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo

esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as

Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um

grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)

Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e

sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos

problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas

apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas

respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees

e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia

transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo

necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo

Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais

recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o

exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)

A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos

conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico

dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das

finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave

filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico

conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir

valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)

Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no

conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no

Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente

opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de

conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio

absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)

Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a

filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute

rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca

70

da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se

confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita

coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas

e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen

auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)

Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo

para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso

as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes

questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o

pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a

relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com

a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)

Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais

propriedade a imagem-questatildeo colocada

Patmos54

Estaacute proacuteximo

E difiacutecil de agarrar o deus

Onde contudo haacute perigo cresce

O que salva tambeacutem

Agraves escuras vivem

As aacuteguias e destemidas partem

As filhas dos Alpes sobre o abismo

Em singelas feitas pontes

Por isso juntas laacute estatildeo em torno

Do cimo do tempo e as mais amadas

Perto vivem esmorecendo nas

Mais separadas montanhas

Entatildeo daacute pura aacutegua

Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos

Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55

54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a

revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em

lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern

wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten

Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf

Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn

und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em

27 mai 2017

71

Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se

relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas

representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode

veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas

representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens

De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme

Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem

poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo

(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)

A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos

surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao

lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa

espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta

essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as

sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no

mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se

reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no

decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por

essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute

Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos

preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da

literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde

vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado

como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos

teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)

Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de

trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela

histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua

irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e

o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na

qual convivem filosofia e poesia

72

221 Ciecircncia e intelecto

Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da

Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda

entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas

uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash

traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην

καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν

ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo

descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta

subdivisatildeo de νοῦς

Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o

caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de

ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e

faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma

declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento

noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59

Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo

possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica

argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo

deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio

ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα

56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth

conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection

Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A

section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth

2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2

Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017

73

Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo

distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel

entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse

simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo

Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo

filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo

Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-

se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente

aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona

no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica

[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de

ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda

intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a

si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-

querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)

23 Crenccedila e conjectura

Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos

de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos

referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos

ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A

referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema

Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente

se velava na histoacuteria do Ocidente

Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que

laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das

sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e

calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas

coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas

Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as

quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia

74

Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se

este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ

mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e

imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido

Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma

declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como

a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela

palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua

inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute

creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra

Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a

filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada

para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da

etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se

no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com

as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia

praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se

achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse

realmente vecirc-las

Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]

a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita

apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ

φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos

lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a

εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve

ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63

60 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F

stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO

1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal

como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in

visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510

A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)

so that πίστις should not be confined to the objects of sight

75

Figura 1 ndash As quatro influecircncias

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo

aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa

forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas

tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um

precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias

Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence

independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel

ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das

experiecircncias concretas

Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na

sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo

(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute

ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio

das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente

(ZARADER 1998 paacuteg 210)

Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema

ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso

com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra

arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de

sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra

em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a

64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko

2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017

76

partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a

crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo

contexto em que ocorre

Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte

oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia

e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica

apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades

provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades

universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um

matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash

traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε

πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES

1894)66

Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse

dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de

questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o

convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de

contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade

de acabamento

Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []

de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma

fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma

estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute

construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []

[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam

objetos de toda espeacutecie []

[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo

agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)

65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand

strict demonstration from an orator Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page

3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017

77

Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna

Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929

Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser

reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser

caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as

sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave

forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem

antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de

tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)

Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία

como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc

(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento

Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo

67 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi

2Fagt Acesso em 20 mai 2017

78

atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo

existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos

Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse

desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem

possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes

ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os

olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg

318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais

pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu

plenamente sua visatildeo

A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos

muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da

sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno

mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de

argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar

teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso

caso filoacutesofo

Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por

reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos

Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse

mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo

Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou

natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve

descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para

casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68

Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo

intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo

intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar

muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo

natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por

68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em

lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017

79

ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos

Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes

circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses

provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo

Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele

relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou

melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no

texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL

SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo

lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e

duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido

sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM

1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento

Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de

apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na

alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que

vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo

uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois

a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera

suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes

No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις

afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas

representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os

procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa

69 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo

gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and

doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state

of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A

section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato

2Fsgt Acesso em 04 jun 2017

80

ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das

finalidades imediatas

Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por

apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram

compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do

intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς

haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal

logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter

superior para a filosofia platocircnica

Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos

Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior

duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa

filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber

fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute

derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute

mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo

ser

Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que

esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e

de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la

enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO

1949 paacuteg 17)

24 Filosofia e opiniatildeo

Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se

apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta

tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser

Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um

saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero

racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto

81

A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de

sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-

estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o

outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que

determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio

rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia

a partir de uma perspectiva poeacutetica

Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas

de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como

exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria

convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo

arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim

pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa

Duas estradas divergiam num bosque em setembro

E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias

E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro

olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia

ateacute onde ela dobrava na descida e sumia

Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta

e fosse talvez a mais atraente

pois estava coberta de grama precisando ser gasta

embora aqueles que passaram na frente

tivessem gasto ambas quase igualmente

E ambas que aquela manhatilde igualmente fez

cobertas por folhas pegada alguma a manchar

Oh deixei a primeira para outra vez

Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar

duvidei se iria algum dia voltar

Devo estar contando isso com a alma cortada

Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa

divergiam em um bosque duas estradas

e eu escolhi a menos viajada

e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar

Ramos)72

72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I

stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other

as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though

as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay

In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on

to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and

82

Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser

filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que

natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees

favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de

se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata

das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para

cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio

de que nem todos chegam a fazer filosofia

Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do

mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos

mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo

conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente

de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns

natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais

Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem

com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda

de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico

canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio

intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo

coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e

admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas

Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo

sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e

surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem

a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc

e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria

hierarquizante e excludente criada pelo intelecto

ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made

all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-

americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017

83

Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou

de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de

selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos

educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute

nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado

preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute

uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim

pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73

Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo

e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo

(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa

transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a

despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o

comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas

filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade

de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso

ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos

agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva

As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam

ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo

questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se

na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977

paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz

com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas

soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades

de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar

enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)

Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores

seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as

73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de

dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han

trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo

no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho

propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por

lo que seraacuten

84

questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo

posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela

opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se

apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais

variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual

no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar

a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade

O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de

pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)

Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira

de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo

ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia

ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)

Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com

preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas

Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois

estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num

pseudoquestionamento que oculta uma certeza

Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica

Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a

leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com

historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no

portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive

remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena

Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam

verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem

mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo

toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira

com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)

Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para

a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja

dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o

85

finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido

canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente

coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento

A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao

questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e

ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por

uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por

exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu

patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua

realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como

oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima

Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame

debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da

filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial

A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo

de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem

de peacute agrave tormenta

O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva

uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER

1977a paacuteg 324)

25 Diaacutelogo e filosofia

No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos

contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso

porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem

a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro

Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees

Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e

controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser

frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado

apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo

tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor

86

encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco

pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real

Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro

determinaram que as coisas assim se passassem pois eles

sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila

Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo

hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg

457)74

Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder

agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas

acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com

este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se

apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a

uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO

2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente

tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo

Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo

soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira

semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo

nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta

que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente

que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da

questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os

posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo

entre as partes

Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se

aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido

a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um

percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela

Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave

identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois

74 Livro XXII linhas 301-304

87

elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se

aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda

diferentes

Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue

radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel

categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e

da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta

nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia

e mudanccedila

Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser

aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca

assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro

quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio

movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem

num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a

dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)

Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num

movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos

devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A

filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para

que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida

literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia

natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias

Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo

progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um

Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de

cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes

discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo

que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a

diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade

O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo

tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no

questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo

88

pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia

sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois

arduamente conceituaacutevel

Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem

forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu

sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como

tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou

natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO

1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel

com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas

nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute

uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo

entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76

O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio

reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele

natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve

ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo

partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute

medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem

O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a

instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se

por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo

acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do

mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute

a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo

se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)

Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua

manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos

pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o

75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη

89

inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio

Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute

para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro

fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que

vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos

fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver

Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida

segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se

debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do

sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do

estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia

apenas um sonho nebuloso e fugaz

Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel

dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa

escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao

menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e

com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte

Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo

algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal

ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando

de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com

as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II

Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria

facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis

obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois

casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que

78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg

92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-

Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio

90

lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO

1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81

Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade

desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um

diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos

seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva

sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991

paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um

diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel

falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente

se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel

Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua

toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees

tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas

agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que

uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo

posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto

da filosofia em geral

Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos

upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que

versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava

escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio

acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []

Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas

que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda

sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele

passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono

para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse

por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)

Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante

de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου

81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so

verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur

gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem

remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em

lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017

91

conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud

KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao

Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos

mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador

natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio

ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o

sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando

satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83

Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos

ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo

agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser

algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do

soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e

dormir

Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais

nobre para a alma suportar os dardos

e arremessos do fado sempre adverso

ou armar-se contra um mar de desventuras

e dar-lhes fim tentando resistir-lhes

Morrer dormir mais nada Imaginar

que um sono potildee remate aos sofrimentos

do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos

que constituem a natural heranccedila

da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se

Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)

Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite

posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o

entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo

a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a

questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo

perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com

83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά

ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)

92

visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta

dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84

Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe

como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a

vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou

desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente

e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa

em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida

que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver

morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma

maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais

Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-

istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute

incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto

correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a

inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo

mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia

a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa

Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer

Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse

caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos

da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL

SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o

homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista

manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso

torna-se presente a todos

Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos

das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia

84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων

ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς

μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)

93

exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo

do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio

viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse

embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral

vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se

deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ

(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar

querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de

uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se

desvencilhar totalmente disso

Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute

convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991

paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por

imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do

certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo

da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos

convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa

vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar

O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta

definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a

matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos

olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada

responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade

Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de

batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes

volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa

e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia

de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto

86 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3

Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo

(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)

94

eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer

isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho

Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um

seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento

50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio

ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo

ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de

complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia

pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida

sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja

qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele

natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo

Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais

simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um

[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o

mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se

revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]

dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido

de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em

sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee

constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)

Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal

necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas

com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse

somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem

haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer

possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo

houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo

minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira

ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer

Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O

que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo

e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade

95

se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash

Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo

satildeo outros quinhentos

96

3 Pensando a Linguagem

O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres

nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco

zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres

cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade

Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma

ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua

histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos

seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo

em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc

De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta

a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger

(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der

Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira

de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da

existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui

nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase

sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana

Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come

e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe

precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os

demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem

que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do

homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente

ele pode ser

Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo

ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se

a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer

posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se

atentar aos modos de ser

97

Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais

consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em

sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob

pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa

Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto

dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente

O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua

vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir

fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar

uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute

Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o

paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute

encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo

dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala

natildeo precisa calar

Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os

demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem

existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de

fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se

atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na

causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem

Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade

no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o

homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se

complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro

(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono

dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala

perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)

O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc

se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave

medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo

somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore

98

Retoacuterica 1

Cantam os paacutessaros cantam

Sem saber o que cantam

Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89

Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega

que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem

na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz

o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente

Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que

corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a

existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que

eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado

compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave

escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias

Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute

o possiacutevel

De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela

natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento

sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem

significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que

concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo

(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος

Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela

O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas

decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta

atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem

sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de

respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta

correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e

89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta

99

doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na

instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai

A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-

se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o

homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo

livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora

funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar

sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas

interpretando experienciando tornando-as de fato obra

Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate

Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter

o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los

no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada

um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra

a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)

Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por

completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como

tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem

colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se

ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso

precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e

pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder

acontece

A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta

Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme

Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo

(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa

interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou

enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue

90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und

Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung

100

de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram

distintamente a noacutes

De cajado

rutilante

eremita

do profundo

vai a lesma

cada instante

recriando

nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)

No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade

Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade

opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave

ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees

sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer

para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por

aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos

arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos

perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do

profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)

Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e

deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso

eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que

se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo

aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute

desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele

que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre

os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar

como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO

AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)

Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do

λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o

tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a

91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von

Arnim conforme nota do original

101

desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede

o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda

que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade

Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se

deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente

ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive

logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo

convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a

alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador

estivessem ateacute em outras dimensotildees

Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a

como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de

confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος

retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de

luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam

acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em

sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o

ponto fora da curva

31 Linguagem e limite

Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria

natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo

Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo

o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre

foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um

tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras

inquietando os homens

Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo

impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em

102

estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do

status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue

a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein

Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute

ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo

(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do

aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto

Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se

debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso

pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que

antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida

Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433

GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY

Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim

(GLARE 1968 paacuteg 537)

Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a

Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1

repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da

funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das

palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale

agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai

Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com

o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos

satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais

pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles

92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-

binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain

mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2

Fknumigt Acesso em 05 ago 2017

103

encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um

juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95

Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por

tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de

importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter

solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET

2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos

confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade

seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do

sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com

todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97

Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica

conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do

empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o

trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los

quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos

alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico

pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras

sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na

nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que

algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente

relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante

natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra

O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso

estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante

mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a

95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du

droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces

religieuses et juridiques qui en reacutesultent

104

situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo

aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando

Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer

filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo

com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por

estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela

cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e

consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]

significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo

livre)98

Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva

por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra

Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg

692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de

enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do

problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica

filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute

sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele

Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda

partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um

caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para

remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e

uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado

entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro

em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar

natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho

A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente

natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no

mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro

98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt

105

era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma

alternativa ocorre a cisatildeo do mundo

Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral

marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o

caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte

de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz

sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro

natildeo se encerra nele natildeo necessariamente

Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de

somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a

mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade

de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro

de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo

O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas

diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno

Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do

ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos

e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias

suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da

queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar

O inuacutetil

Disse Hui Tzu a Chuang Tzu

mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade

Replicou-lhe Chuang Tzu

mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade

Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil

Por exemplo a terra eacute larga e vasta

Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza

Apenas poucas polegadas

Sobre as quais se manteacutem de peacute

Suponhamos agora que vocecirc tire

Tudo o que ele realmente natildeo usa

De modo que ao redor de seus peacutes

Um golfo se abra

E ele fica de peacute no vazio

Sem nada de soacutelido

Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute

Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando

106

Disse Hui Tzu

mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade

Concluiu Chuang Tzu

mdash Isto prova

A absoluta necessidade

De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)

Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua

correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra

em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a

profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um

pensamento raso

A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco

diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a

mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa

mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem

somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o

ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora

32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem

Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma

atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na

duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo

e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees

da vida

Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos

quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou

menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a

isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no

aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo

107

Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e

destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna

devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace

pelo qual fomos formados a crer e compreender

Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos

Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o

comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes

com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente

livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no

assunto

Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo

fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser

seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga

universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de

Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o

Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em

detrimentos de outras circunstacircncias e localidades

A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de

sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada

vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal

comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar

natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial

a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente

Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas

instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de

diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a

seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo

estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias

concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos

Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo

capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens

sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com

108

os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles

possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las

A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os

males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste

mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios

dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos

comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito

de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se

dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de

tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila

Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu

sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este

acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa

lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens

planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males

disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo

produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas

proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas

por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores

de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus

descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos

sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973

paacutegs 115-116)

Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo

pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel

saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito

Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do

ser a perambular o natildeo ser

Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja

nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja

compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos

simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso

A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo

Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o

Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia

Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma

sombra do Natildeo-Ser

Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava

pegar mas nada pegava

Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto

mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo

Posso compreender a ausecircncia do Ser

Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada

109

Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute

Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)

Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que

percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem

iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute

ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece

eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente

do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele

Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado

por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato

compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso

eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com

as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que

acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado

respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma

farsa sem trageacutedia

Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da

abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria

muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo

Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao

conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um

arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse

procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da

lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal

mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um

animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de

valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um

uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem

levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)

A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser

fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia

sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades

isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela

produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se

adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado

110

Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na

nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e

sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra

modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo

social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem

comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se

instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo

Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos

pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a

maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a

confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e

com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi

abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua

dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo

Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber

Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica

a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que

nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a

agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela

eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)

33 O limite da resposta

Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da

seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees

a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora

o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser

transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os

conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela

111

responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o

mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber

A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se

amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e

abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a

oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a

tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)

Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide

respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por

mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas

vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso

modela-se sentidos agrave existecircncia

A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel

a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras

palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta

que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo

modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto

verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa

mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a

dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por

modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com

ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as

melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o

maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto

a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos

varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou

na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do

princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor

mdash Exactamente

mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por

justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO

1987 paacutegs 472-473)

Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado

se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a

99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de

Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo

112

pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor

administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a

dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A

imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos

problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua

escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica

Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais

controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer

o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem

tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos

referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo

definitivamente mas um postar-se a

Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do

ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos

tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia

preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel

e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber

que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e

adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila

Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute

uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante

da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os

seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro

ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)

Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade

natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos

a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao

contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas

caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como

para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do

questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute

ser O que eacute quem eacute quem

113

Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute

ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma

resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que

estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece

tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante

Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser

mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo

tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos

que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo

e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que

existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em

identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo

pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir

εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que

eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira

da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista

esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes

conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras

(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)

O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que

possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo

traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem

disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a

fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades

quanto encerra-as

Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as

possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber

ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo

114

escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da

vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite

De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de

fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas

necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute

como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave

primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento

caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa

Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila

alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira

infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo

limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no

desdobrar e no responder

A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando

ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos

como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que

perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo

ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir

seraacute de menor importacircncia

Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua

finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que

eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo

Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa

que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de

tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse

presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a

coisa que existe natildeo se esgota nela

Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos

haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a

menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave

vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse

modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave

115

multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo

se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute

pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de

como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador

e constituidor

34 A resposta do limite

Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta

pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca

jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do

pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos

o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos

A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual

nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho

de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim

cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no

mundo

Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo

enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do

tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o

impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse

sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo

(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist

alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo

que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees

Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como

cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve

ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para

realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o

mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo

116

Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas

aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem

das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca

inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na

borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e

definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta

Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs

Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos

relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma

resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou

determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em

nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de

respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o

sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der

Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)

Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade

de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na

carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de

muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de

alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente

conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de

ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute

Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a

totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias

do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades

Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo

imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute

verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e

vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos

encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e

permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como

quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso

117

Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o

pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores

inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo

como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo

livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos

sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias

uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o

tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim

basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim

De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita

ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar

explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e

liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e

liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg

9)

Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa

perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou

jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi

frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma

medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim

para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado

Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo

dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que

dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de

postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em

concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do

tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para

100 Leisure rest ease Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh

2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of

being able to begin ndash must be created

118

ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua

renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo

(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102

Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra

no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser

assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem

doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora

natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o

limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser

Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o

haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria

vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o

pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o

profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo

permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns

opiniotildees fechadas respostas banais natildeo

O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a

existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas

tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-

se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer

pensador pode crer

35 Dois lados da mesma moeda

351 A resposta que natildeo soluciona

102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to

figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results

119

Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas

que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)

a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que

natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter

inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo

compra natildeo vende fiduacutecias

Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e

diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua

singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A

resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a

princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que

ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de

ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a

ladainha o carpido ou seja o rito

Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute

substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num

uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia

da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado

feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula

re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS

2009b)

Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela

partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001

paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os

verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY

Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs

1082-1083)

Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que

muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar

cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e

103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017

120

estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar

algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila

(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais

fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as

palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi

colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de

solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade

A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de

desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres

Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por

sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute

estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs

sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do

cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere

como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo

situada

A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de

adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que

podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute

ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute

fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade

vigente

Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma

profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos

dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o

termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua

vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os

usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do

sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo

tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar

as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg

75)

121

Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave

proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta

que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo

fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete

ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem

Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa

nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos

Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum

em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais

variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo

do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem

tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder

mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas

experiecircncias

Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio

significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar

profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar

Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado

como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido

significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo

da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um

equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou

daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto

que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees

devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de

profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente

em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)

352 Temor sagrado

Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o

entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um

paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos

anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta

no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor

122

como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se

em sua instacircncia sagrada e profana

Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu

o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave

origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes

significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo

lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste

dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido

restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD

Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104

As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se

aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-

se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares

concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino

Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora

cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns

exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua

doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus

convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)

Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela

sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus

filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo

controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo

demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a

saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda

de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade

[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do

inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo

interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de

identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu

foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo

imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)

104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017

123

Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem

almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos

chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo

das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico

sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias

preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-

agouro

Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida

atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-

lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos

isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos

descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus

da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status

quo

Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute

pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito

de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no

dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto

dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo

de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)

Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos

reconhecemos no que nos transformamos

Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo

que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou

errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante

erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos

como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais

ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel

pensar o contraacuterio

124

Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma

existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis

negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da

notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os

demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo

soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de

um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente

acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de

comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de

paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real

[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele

proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente

a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados

especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode

ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees

diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos

homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa

qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve

permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente

contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse

motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)

Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando

as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute

sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de

Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os

indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas

misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de

infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em

suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes

o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo

(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com

o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel

105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente

humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc

125

Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para

muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade

ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se

afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o

que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o

duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente

nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo

estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar

contemporaneamente

1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser

sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash

embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus

cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua

ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD

Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD

Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em

determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e

perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees

visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109

353 O que responde o sagrado

Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma

tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos

106 Disponiacutevel em

lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc

h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of

superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the

Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in

their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua

also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible

representations Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch

=gt Acesso em 06 set 2017

126

o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa

histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua

ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo

como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que

seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute

possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de

misteacuterio perene

Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob

a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral

principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na

ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006

paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)

o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa

concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo

1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente

infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente

apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou

condiccedilotildees

2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees

vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110

Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e

misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila

brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum

ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada

acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela

criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees

Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg

51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o

artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma

110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle

following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions

2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em

lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=

gt Acesso em 07 set 2017

127

arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte

do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no

ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes

sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite

fundador do nome o ancestral ainda presente

O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio

diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o

incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites

desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se

uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o

tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar

abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM

2000 paacuteg 420)

O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado

Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do

limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem

traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para

manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor

uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana

do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero

esgotamento e enclausuramento do possiacutevel

O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra

ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da

Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua

extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo

(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)

Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de

como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para

poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites

provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores

Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia

que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne

128

cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD

2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita

com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do

controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer

um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e

adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser

rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude

cegueira paralisia ou morte

Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar

a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade

de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se

do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo

podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter

Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano

Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave

etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo

Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha

muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)

Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute

em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder

Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1

Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar

uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado

de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre

casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e

cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos

na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela

Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao

questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o

111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a

assurance of

129

questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto

gregaacuteria e fundadora dos limites

[] Eacute deus desconhecido

Ele aparece como ceacuteu Acredito mais

que sejam assim Eacute a medida dos homens

Cheio de meacuteritos mas poeticamente

o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs

256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112

Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o

aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma

adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua

desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua

plenitude

Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido

parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o

compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de

beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer

libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o

santo que a cultura popular tanto conhece

Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave

terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta

em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem

da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra

que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado

que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que

eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer

no tempo

112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas

istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)

[hellip] make libations Disponiacutevel em

lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2

Fndwgt Acesso em 08 set 2017

130

O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O

que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental

do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio

na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao

banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico

131

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou

o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que

se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma

coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse

vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio

de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta

ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg

257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute

preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas

mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo

tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar

as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente

Fiz de mim o que natildeo soube

E o que podia fazer de mim natildeo o fiz

O dominoacute que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me

Quando quis tirar a maacutescara

Estava pegada agrave cara

Quando a tirei e me vi ao espelho

Jaacute tinha envelhecido

Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado

Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio

Como um catildeo tolerado pela gerecircncia

Por ser inofensivo

E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg

124)

Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e

encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de

ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas

criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia

mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que

diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e

tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz

132

Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua

existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como

improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura

deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio

a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos

investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas

partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas

tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma

loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica

Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute

e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo

essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham

que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs

aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o

ensino e para o pensamento

Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas

seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser

eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela

ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria

Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que

exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por

aiacute vai

Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia

o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a

noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia

de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo

cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo

que ainda sangra

Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com

conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso

modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores

nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo

133

Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro

empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades

Vocecirc eacute o herdeiro

Filhos satildeo os herdeiros

pois pais morrem

Filhos ficam e floram

Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114

Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao

ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que

estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino

eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo

inquiridora que sabe e natildeo sabe

Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico

precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico

eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de

avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no

caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para

passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno

sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas

ainda natildeo eacute tradicional

Mar Portuguez

Oacute mar salgado quanto do teu sal

Satildeo lagrimas de Portugal

Por te cruzarmos quantas matildees choraram

Quantos filhos em vatildeo resaram

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso oacute mar

Valeu a pena Tudo vale a pena

Se a alma natildeo eacute pequena

Quem quer passar aleacutem do Bojador

Tem que passar aleacutem da dor

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu

Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)

114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der

Erbe

134

O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo

e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por

meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado

pelas questotildees que nos interpelam

Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no

tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar

prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de

confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves

demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra

acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais

como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute

do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido

e ao ensino o cuidado esperado

Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas

dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo

conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do

conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados

numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de

eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de

categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis

por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo

Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem

traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus

praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das

opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a

contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do

subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal

foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos

ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos

A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro

Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico

A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente

135

contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave

vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o

equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos

Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes

a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A

questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o

ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida

Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de

ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado

primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e

precisava ter um nome

A palavra

Prodiacutegio distante e louco

Minha margem agrave sua eacute pouco

Aguardei ateacute a parda Parca

E encontrei o nome em sua marca ndash

Eu pude atecirc-lo com teso

Para brilhar e luzir preso

Ansiei por bom vindouro

Com fraacutegil e raro tesouro

Toda via Ela me dizia

mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia

Eis que escorre entre meus dedos

E agrave paacutetria dou enganos ledos

Triste entatildeo soube abdicar

mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash

traduccedilatildeo livre)115

Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com

o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de

115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die

graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und

glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie

suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann

Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort

gebricht

136

morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a

linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham

novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura

poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento

do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute

a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico

137

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TRAWNY Peter Adyton a filosofia esoteacuterica de Heidegger Rio de Janeiro Mauad X

2013

WILDE Oscar O retrato de Dorian Gray Satildeo Paulo Abril Cultural 1981

WITTGENSTEIN Ludwig Tractatus Logico-Philosophicus Inglaterra Routledge amp

Kegan Paul 1960

______ Philosophische Untersuchungen Alemanha Suhrkamp 1971

ZARADER Marlegravene Heidegger e as palavras da origem Portugal Instituto Piaget

1998

150

APEcircNDICE

TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS

Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira

Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal

de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca

CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave

obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre

Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto

Rio de Janeiro

Outubro de 2017

151

RESUMO

Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas

Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de

filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio

com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte

de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade

Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio

de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens

em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com

isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco

Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem

Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do

demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo

apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar

Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem

152

ABSTRACT

Three poetic-philosophical experiences

Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy

with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a

classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is

exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is

discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third

movement carried out both with children and with young people in pairs a person is

blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to

control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear

the unique existence that each child young and even adult have Their inventive

questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and

accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk

Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language

153

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165

Figura 2 ndash A morte 166

154

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 155

Quando a vida nos diz natildeo 157

Objetivo geral 157

Objetivo especiacutefico 157

Proposta para a atividade 158

Fluxograma 160

Relato da experiecircncia 161

Reflexatildeo com a experiecircncia 169

Exerciacutecios de ser crianccedila 171

Objetivo geral 171

Objetivo especiacutefico 171

Proposta para a atividade 171

Fluxograma 174

Relato da experiecircncia 174

Reflexatildeo com a experiecircncia 177

A cegueira da visatildeo 178

Objetivo geral 178

Objetivo especiacutefico 178

Proposta para a atividade 178

Fluxograma 180

Relato da experiecircncia 180

Reflexatildeo com a experiecircncia 183

Consideraccedilotildees finais 186

Referecircncias 188

155

Apresentaccedilatildeo

A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do

Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais

especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim

da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa

do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor

Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem

se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade

diante do mundo

O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel

na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos

contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da

direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-

graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar

os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na

escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias

filosoacuteficas

Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem

sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos

Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos

que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se

restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute

sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia

dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis

pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas

filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos

116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor

recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se

naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo

passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando

156

Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se

refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui

nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital

eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula

tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma

praacutetica proacutepria e singular

A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se

estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada

mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-

estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por

reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de

conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo

de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a

ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu

meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da

turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias

comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar

em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho

Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a

realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da

lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de

pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como

um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das

experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que

natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas

157

Quando a vida nos diz natildeo

Objetivo geral

A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir

conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo

perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas

filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e

experiecircncias comuns da idade

Objetivo especiacutefico

Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton

Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que

conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um

acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do

homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade

de controlar a vida

Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de

um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse

deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem

de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o

desdobramento filosoacutefico apropriado

158

Proposta para a atividade

Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos

de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para

trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio

agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve

prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um

questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou

estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma

simples chamada pode servir de chamariz para esse instante

Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa

ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como

um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-

se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam

o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem

Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra

conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute

lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria

requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem

sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade

eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo

Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte

de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se

que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da

turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por

isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem

detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo

O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos

pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio

da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos

os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade

159

Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem

chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute

interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo

embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em

psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio

Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as

opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada

um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais

podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao

professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder

esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula

Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute

lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro

seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e

os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os

alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito

pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do

homem com a realidade reforccedilando o argumento

Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo

encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do

ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo

e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados

descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um

tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma

interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o

que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve

explanaccedilatildeo

A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a

responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas

prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi

traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia

160

de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais

breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser

Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa

ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no

filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja

essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam

vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos

expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores

Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem

resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de

controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo

que assim o faccedila

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa

palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado

na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos

3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito

poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos

4 Exibir o curta ndash 25 minutos

5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa

6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se

correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do

ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme

responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos

161

8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos

9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou

um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim

desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais

Relato da experiecircncia

Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se

gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem

demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a

depender da turma

Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o

cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma

coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a

relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte

pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte

uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra

cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele

gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo

Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a

morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias

Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no

limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se

mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo

ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda

tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o

principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de

quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo

acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a

162

novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas

ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan

Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo

contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo

uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente

quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim

todos teriam o direito de falar se quisessem

Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)

teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto

[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para

que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma

pudesse viver

A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje

o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu

respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as

pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi

porque o corpo foi costurado

Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave

experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As

colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais

praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural

foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito

de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real

se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis

Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim

de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou

dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha

acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com

o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou

soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma

como ficaria o corpo

163

Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com

os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na

501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido

Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa

turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte

Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que

sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos

remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro

a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e

uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator

decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar

Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que

o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato

de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute

tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo

XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios

e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina

com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela

Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas

crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem

experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma

forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida

que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)

Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado

associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez

tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um

pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma

essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele

podia se machucar natildeo eacute Alex

117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees

164

O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte

e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas

natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate

gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave

noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha

sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502

E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o

pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam

Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu

Vanise mdash A morte fica perto da pessoa

Julia mdash Eu acho que sim no momento certo

Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o

cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um

cheiro deixou um rastro

Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o

carro

Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em

seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que

ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder

sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo

influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema

Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos

mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse

aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova

demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy

confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque

supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido

165

Figura 3 ndash Calvin e Haroldo

Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005

Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo

tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a

aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um

trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu

da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como

na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente

Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice

do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora

para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado

sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo

Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento

de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com

repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse

algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles

amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo

Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo

a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque

eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo

eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte

acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos

eacute proacuteximo e familiar

166

Figura 4 ndash A morte

Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009

mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via

das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da

gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma

coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)

Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para

natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade

Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e

brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar

velas aromaacuteticas)

As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a

mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas

natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas

como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da

admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto

A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se

aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo

animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por

natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius

118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato

Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma

pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos

167

Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou

Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais

focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto

enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que

vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo

A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de

compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos

uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que

faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da

imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima

da morte

Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia

ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha

alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne

apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer

com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente

Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se

processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia

menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre

a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um

caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele

sobe Eu tenho certezardquo

Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs

ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim

ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e

jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25

ceacuteus

Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute

um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no

estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a

turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto

168

entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre

noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees

Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos

membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos

prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos

fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa

mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa

ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei

ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar

de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por

que natildeo falar de outras religiotildees)

Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e

quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo

menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo

sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo

moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa

maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se

afirmar com destreza e propriedade

A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o

que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo

convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito

Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto

Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele

tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre

foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra

o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando

conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela

Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila

grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo

esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute

presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a

169

serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da

morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda

Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes

do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y

marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia

traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la

dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)

Reflexatildeo com a experiecircncia

Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem

Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos

e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita

alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria

Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada

invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar

Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do

homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse

sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a

ocidental

Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato

mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que

nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das

coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que

as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as

coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos

compreendecirc-las

119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se

perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica

fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996

paacuteg 15)

170

A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas

mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa

possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha

mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)

Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder

compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos

relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus

nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas

quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto

respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais

conhecimentos a respeito

Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como

tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de

novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma

forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia

murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos

171

Exerciacutecios de ser crianccedila

Objetivo geral

Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto

dos demais

Objetivo especiacutefico

A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os

alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro

desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse

exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz

respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica

Proposta para a atividade

Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes

ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os

recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma

exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre

os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro

para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por

uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles

deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado

172

Exerciacutecios de ser crianccedila

No aeroporto o menino perguntou

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho

O pai ficou torto e natildeo respondeu

O menino perguntou de novo

mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste

A matildee teve ternuras e pensou

Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes

da poesia

Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados

de poesia do que o bom senso

Ao sair do sufoco o pai refletiu

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianccedilas

E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)

Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor

ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um

poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um

simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os

outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos

para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por

exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute

preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma

Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo

deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha

dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio

logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi

problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a

Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a

crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)

O menino que carregava aacutegua na peneira

Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos

Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira

A matildee disse que carregar aacutegua na peneira

Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmatildeos

A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua

O mesmo que criar peixes no bolso

O menino era ligado em despropoacutesitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos

173

A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do

que do cheio

Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar aacutegua na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar aacutegua na peneira

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila

monge ou mendigo ao mesmo tempo

O menino aprendeu a usar as palavras

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras

E comeccedilou a fazer peraltagens

Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando

Ponto no final na frase

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela

O menino fazia prodiacutegios

Ateacute fez uma pedra dar flor

A matildee reparava o menino com ternura

A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta

Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda

Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens

E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs

469-470)

Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute

indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade

Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica

eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira

pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram

focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A

linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou

outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como

manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira

matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo

Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo

de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute

aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que

sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que

fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos

solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para

a questatildeo

174

Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um

comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito

importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os

pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra

qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo

Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser

crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro

nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas

eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros

possiacuteveis pensamentos

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam

comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do

diaacutelogo ndash 15 minutos

4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos

Relato da experiecircncia

Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por

mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um

encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido

levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que

era ser crianccedila para eles

175

Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana

passada

Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser

crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi

muito divertido

Vanise mdash Foi

Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)

Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra

Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno

Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila

Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora

de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever

Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute

coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a

gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver

Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a

resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O

proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas

brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira

de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser

crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva

Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo

Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e

pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que

pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente

pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias

formas

Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo

soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa

Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma

brincadeira

Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser

uma brincadeira

Vanise mdash Por quecirc

Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas

escrevendo

Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar

Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser

crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali

no papel e eacute divertido

Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido

mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se

iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis

176

Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar

O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles

tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer

assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute

eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute

trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc

estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do

exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em

todo momento faz uma piada ri essas coisas

Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de

brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila

Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria

Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta

Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu

negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute

muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando

instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois

fico tocando bateria

Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser

crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com

o teu pai

Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos

na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem

me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia

A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem

bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo

crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que

brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como

crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento

Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo

necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu

pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o

filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades

precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente

somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de

vontade vale dizer mas de entrega

177

Reflexatildeo com a experiecircncia

Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais

complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou

meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de

propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias

diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial

Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e

escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem

preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de

deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em

meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto

muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira

cuidados

178

A cegueira da visatildeo

Objetivo geral

Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar

questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle

Objetivo especiacutefico

Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute

guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de

se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o

desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para

confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que

suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o

papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia

Proposta para a atividade

Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material

didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo

pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos

que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita

em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo

Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos

entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma

179

turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles

podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha

ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para

idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante

Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois

em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga

Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma

possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no

guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma

digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela

visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla

Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-

se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante

eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila

Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos

comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem

vir a contribuir com a discussatildeo

Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em

ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios

dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma

explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao

inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15

minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser

mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual

Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com

mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira

experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo

180

Fluxograma

1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da

turma para a ela ndash 10 minutos

2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15

minutos

3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos

4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos

Relato da experiecircncia

Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa

argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi

ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais

duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle

pela visatildeo

Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado

Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a

pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33

segundos

Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com

duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter

suas falas aqui colocadas

Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria

de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir

Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar

na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto

subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo

isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada

(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra

181

Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de

Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais

o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou

como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse

bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os

olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a

visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda

retomamos a atividade

Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura

para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante

eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma

moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos

[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os

pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no

banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora

Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa

enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs

forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo

quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do

estrondo

A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia

optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito

imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As

duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto

ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava

descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos

Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a

cabeccedila

Thayrine mdash Que medo

Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo

drsquoaacutegua para ela

Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se

pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas

tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar

Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se

182

repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10

segundos

Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo

e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da

discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo

professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente

e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da

explanaccedilatildeo da atividade seguinte

Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia

Patriacutecia mdash Eu gostei bastante

Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio

Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram

Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com

a funccedilatildeo de guia

Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos

dela

Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a

experiecircncia toda

Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira

Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso

Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas

Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na

Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar

Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo

Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia

enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo

Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia

Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se

estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa

Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e

poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre

Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase

derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-

se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento

distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de

conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute

sabemos para experimentar algo novo

Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria

desviado

Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente

proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute

habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc

Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa

experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado

Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma

necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se

vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve

nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou

fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno

183

Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma

alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute

conduzindo

Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa

forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento

natildeo

Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute

satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo

interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz

parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem

outro mas ambos Esse eacute o desafio

Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre

matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem

enxerga tenta guiar de alguma forma

Patriacutecia mdash Eu concordo com ela

Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de

por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos

anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio

Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final

Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado

eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute

sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo

outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc

possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente

Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe

tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de

algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se

guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do

seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu

tinha que tocar em tudo eacute diferente

Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que

por outras vias

Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do

controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a

discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao

todo foram cerca de 45 minutos

Reflexatildeo com a experiecircncia

De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade

Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que

eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra

quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)

184

temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em

detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade

eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo

XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes

Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo

E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir

Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a

razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa

ver para ser homem

O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por

esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo

traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo

grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo

(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como

o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses

Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo

Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)

reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do

que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo

corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem

Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito

de onde o homem se torna presenccedila

Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira

remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem

que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo

engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da

presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas

pelo homem atual a saber noacutes mesmos

Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que

haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se

pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que

se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas

185

a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite

da visita agrave presenccedila do outro

Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante

distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de

sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada

parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o

proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro

nossa forma de ver o mundo

O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha

para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que

danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo

Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses

estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos

salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata

Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender

ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo

poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo

valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos

ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN

2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e

recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo

devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita

(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer

186

Consideraccedilotildees finais

Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o

intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e

o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo

de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo

deste trabalho

A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou

ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua

transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que

lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do

ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes

rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais

ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser

e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser

assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse

motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial

Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos

familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se

perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez

em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos

centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre

teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob

semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por

modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar

aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo

Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a

segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o

pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o

modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada

de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente

187

no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada

de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de

se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle

Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo

existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e

consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica

de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de

como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a

recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute

resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra

e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA

1934 paacuteg 64)

188

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