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O ENSINO MUSICAL NAS INSTITUIÇÕES DE FORMAÇÃO
MILITAR E TÉCNICO-PROFISSIONAL: EXPERIÊNCIAS NO ÂMBITO DO
EXÉRCITO E DA MARINHA ENTRE MEADOS DO SÉCULO XIX E INÍCIO
DO SÉCULO XX.
Anderson de Rieti Santa Clara dos Santos
Mestrando PPGH-UFF/DPHDM
1. Introdução
O presente texto visa a apresentar reflexões acerca da atuação de conjuntos
musicais formados dentro de instituições incumbidas da preparação para o ofício
profissional-militar de crianças e jovens na Armada e Exército brasileiros entre as
décadas de 1840 e 1910.
Como parte da pesquisa em curso1, o discorrido aqui é parte do que se pode
prescrutar nas fontes, basicamente periódicos e documentação normativa e
administrativa produzida por aquelas forças armadas, utilizadas para identificar práticas
musicais por parte de militares em instituições formadoras e concentradoras desses
indivíduos. Importa destacar que a imprensa do período em lide tipografa em suas
páginas diversas atividades nos mais variados espaços (festas cívicas, religiosas,
burlescas, etc.) nas quais se observam inúmeros conjuntos musicais de tais institutos.
Percorreremos pelas experiências de ensino musical, tanto no Marinha como
no Exército no recorte temporal estabelecido. Aqui nos restringiremos às companhias de
aprendizes artífices no Arsenal de Guerra (Exército), e no de Marinha da Corte. Se no
caso do Exército, as experiências musicalizadoras já ocorriam no âmbito das bandas
formadas nos corpos correspondentes às armas (infantaria, cavalaria e artilharia), na
Marinha a instituição do ensino de música ocorrerá de modo mais sistemático no
Arsenal de Marinha da Corte. No entanto, a experiência do Exército tem paralelo na
Marinha, tendo em vista o público-alvo: os menores aprendizes. Tal reflexão estará
1 Esta é uma pesquisa desenvolvida dentro do Mestrado em andamento no Programa de Pós-
Graduação em História na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da Profª Drª. Larissa Viana,
a quem expresso meus agradecimentos pela orientação em curso.
baseada na discussão sobre recrutamento no âmbito dessas duas forças armadas, já que
diz muito a respeito dos propósitos do estabelecimento do ensino e das atividades
musicais nas escolas de aprendizes, com a música exercendo uma função de possibilitar
maior controle sobre esses aprendizes, mas também de fontes de rendimento, razão pela
qual a atividade desses grupos será intensa dentro e fora da caserna. Acerca disso, e por
fim, serão expostos alguns casos em que se observa o movimento de extensão da prática
musical desses conjuntos, desta vez, nos espaços privados e públicos além da caserna e
navios. Nesse movimento será possível compreender como tais conjuntos compõem
uma passagem sonora urbana bem heterogênea.
Para os propósitos desse trabalho, optou-se pelas experiências de ensino e
atividade musicais dentro das escolas e companhias de aprendizes, artífices ou
marinheiros/militares, embora essas não fossem as únicas. No entanto, a escolha sobre
esse público específico se deve ao fato de que embora estivessem envolvidos na
engrenagem que alimentava o esforço bélico estatal desde crianças, a música era um
importante apelo de convencimento junto à própria criança, aos pais que devotavam
seus filhos ao Estado, à rede de agentes públicos que as entregavam a esses espaços e
aos formadores de opinião como aos canais de imprensa e seus articulistas e editores
para que pudessem veicular notícias acerca dessas atividades. Mais ainda: uma maneira
como todos esses mediadores e intermediários2 davam um significado ainda mais
expressivo a uma música que alcançava um público tão peculiar, como o da tenra idade.
2. Aprendizes artífices, marinheiros , artilheiros e militares: o lugar do ensino
musical na formação de crianças e jovens nas instituições militares previsto na
legislação do século XIX
Assim, no intuito de se refletir acerca da existência e as atividades musicais
“tocadas” por esses conjuntos específicos, relembra-se aqui que se trata dos grupos
formados em escolas e companhias de aprendizes cujo público-alvo era justamente
aqueles sujeitos para os quais o Estado exerceu o papel de mantê-los em preparo com o
intuito de que em determinado momento de suas vidas estivessem prontos para atuar
2 Ao fazer essas reflexões sobre essa rede de mediadores e intermediários para atividades como as
musicais dentro dessas escolas e companhias de aprendizes, penso no desenvolvido no campo das
Ciências Sociais em França a partir de LATOUR (2012)
nos arsenais, nos reparos e construção de material bélico e naval, nos navios, regimentos
e, por fim último, compondo o front de guerra. Quando se trata de tenra idade não é
exagero: eram crianças entre 9 e 16 anos de idade em média – por vezes um pouco mais
-, pobres, algumas das quais órfãs. Eram parte da solução do esforço estatal de
solucionar um problema antigo e que remonta a tempos anteriores à emancipação do
Brasil: o recrutamento (NASCIMENTO, 2008); (SANTOS, 2016). Assim, uma vez
mantidas nesses espaços, essas crianças eram alçadas a expectativas as mais diversas
para que logo pudessem atuar a serviço do Estado, mesmo que isso significasse o
rompimento de laços outros, entre os quais os do seio familiar. A música concorria por
certo, e em condições não tão simétricas, com outras atividades consideradas essenciais.
No entanto, a aparição desses grupos em vários eventos festivos nas diversas cidades e
vilas de províncias do Brasil, demonstra que não se trata de um mero detalhe na vida
dessas crianças uma vez aquarteladas.
A escolha deste estudo sobre as crianças nessas escolas e companhias de
aprendizes tem também o intuito de estabelecer uma diferença muito específica na
experiência do ensino musical nos corpos do Exército e Marinha. Fernando Bínder
(2006), enumera, no âmbito das companhias pertencentes a corpos regulares no Exército
– portanto, com o ingresso diferente do que ocorre com as crianças que entram nessas
companhias e escolas de aprendizes – três maneiras pelas quais um soldado se tornava
músico: 1) por contrato, que exercia suas atividades por tempo determinado; 2) como
músico, que, uma vez alistado/recrutado, entrava nas graduações existentes de músico,
recebendo patente (mestre de música, músico de 1ª classe, músico de 2ª classe e músico
de 3ª classe; e, 3) o soldado que aprendia música dentro das companhias regulares –
diferente das de aprendizes, vale frisar – com o respectivo mestre de música, e conforme
sua aptidão, era considerado membro da banda. (p.105-106). O que ocorreu nas
companhias e escolas de aprendizes foi diverso disso.
No caso da Marinha, por exemplo, com a criação das Companhias de
Aprendizes Marinheiros, a primeira criada em 1843, era admitido que entre os 200
aprendizes previstos, uma vez distribuídos nas companhias formadas dentro de uma
Companhia de Aprendiz, dois deles poderiam ser respectivamente escolhidos para tocar
pífaro e tambor. Considero este processo como um dos primeiros dentro da experiência
musicalizadora, uma vez que estes teriam que aprender tais ofícios com um sujeito que
possuía a graduação de tambor-mor. Assim, tambor-mor, e os aprendizes escolhidos
para o pífaro e o tambor formavam um terno que contribuía para os exercícios de
marcha e evoluções militares, já que ao aprendiz marinheiro caberia também o
aprendizado em evoluções próprias de infantaria, para o caso de desembarque, em uma
situação de conflito, por exemplo. (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO, 1843: p. 113-
115).
No entanto, uma outra experiência musicalizadora, desta vez contando
formalmente com um professor designado para tanto, era prevista no âmbito da
administração do Exército, mas especificamente para as Companhias de Aprendizes
Menores dos Arsenais de Guerra. Com a sua existência configurada desde 1818, em
aproveitamento de uma estrutura pregressa e curiosamente eclesiástica (Seminário de
São Joaquim) (CASTRO, 2016 p. 6), com foco em dar assistência a menores órfãos e/ou
desvalidos, foi por ocasião de uma nova organização dada pelo Regulamento anexo ao
Decreto de 3 de Janeiro de 1842 que se constituía um novo segmento a ser objeto de
instrução dos aprendizes, juntamente a de primeiras letras e desenho linear: a música
instrumental. (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO, 1842: p. 1). Se bem entendido, o
instrumental aqui não confere redundância ao tipo de instrução de música, mas sim o
que difere da música por solfejo, ou vocal, a aplicada ao conjunto de instrumentos ao
que hoje se poderia bem considerar como timbrística ou orquestração. Em suma,
tratava-se de adequar os aprendizes ao que já era a formação instrumental das bandas
formadas nesses estabelecimentos militares: instrumentos de sopro, como flauta e
clarineta, percussão, a exemplo das caixas e tambores, e a posterior absorção dos metais
(saxofone, trompete, pistão, etc.).
A adoção do ensino musical de maneira semelhante à da Companhia de
Aprendizes Menores dos Arsenais de Guerra foi a medida tomada pelos administradores
na Marinha, no momento em que um novo regulamento foi dado pelo Decreto nº 2.615,
de 21 de julho de 1860 para a reorganização das Companhias de Aprendizes Artífices
dos Arsenais de Marinha da Corte – antes designada Companhia de Aprendizes
Menores -, da Bahia e de Pernambuco. Através desse diploma, previa-se um mestre de
música e, no artigo 9º, as competências atribuídas a esse profissional, entre as quais a
instrução de “rudimentos de música, solfejos, regras de acompanhar, etc, segundo as
forças e idade de cada um” (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO, 1860: p. 334). Isso
posto, a expectativa por parte dos administradores navais era de que o processo de
iniciação musical fosse possibilitado pela instrução do mestre de música aos aprendizes,
introduzindo-os à linguagem musical a partir dos métodos de solfejo, por exemplo.3
Mesmo com tal iniciativa, seria equivocado dizer que teria sido essa
experiência a primeira dentro dessa própria Companhia de Aprendizes Artífices dos
Arsenais de Marinha. Antes ainda, em 1854, já se tinham notícias da organização de um
conjunto musical dentro do Arsenal da Corte, mesmo antes da própria concepção de
uma companhia em termos formais, como era a Companhia de Aprendizes Menores
cuja configuração foi dada pelo Aviso de 16 de setembro de 1857 – portanto, cerca de
três anos antes da reorganização que dava-lhe nova designação, Aprendizes Artífices. O
Arsenal de Marinha da Corte seria o espaço de um evento com a presença desse
conjunto musical, como noticia o Diário de Notícias de 2 de abril de 1854:
no dia 25 do mês passado, aniversario do juramento da constituição do
Império, tocou pela primeira vez, no arsenal de marinha da corte, a música
dos menores do arsenal, que se havia formado ha quatro meses, e hoje pelas 9
horas da manhã toca no mosteiro de S. Bento. Louvores sejam dados ao mui
digno inspetor do arsenal, e capitão de fragata, comandante da fragata
Príncipe, onde aqueles menores se acham aquartelados (COMUNICADOS,
1854: p. 1).
Esse conjunto musical teve a sua formação com um contingente aquartelado
graças à prática já estabelecida no Arsenal de Marinha da Corte em concentrar crianças
3 Segundo Henrique Autran Dourado, a técnica de solfejo, que inicialmente teria se desenvolvido
a partir de exercícios vocais construídos sobre escalas e arpejos, não associados a textos, esteve
posteriormente vinculados ao adestramento da técnica e percepção musicais, tais como a solmização,
iniciadas ainda no século XI por Guido D’Arezzo, sobre o hino de São João (2008: p. 309-310). No
entanto, tal técnica passou por uma série de significações e ressignificações e a sua difusão ao longo da história da prática musical no Ocidente deveu-se a uma série de mediadores, intelectuais no âmbito da
Filosofia (Jean-Jacques Rousseau), da música (John Curwey, Robert Schumann, Zoltán Kodály, entre
outros). É possível mesmo que tal difusão se deva a convergência entre tendências e métodos distintos.
(DAUPHIN, 2015) No Brasil, a difusão do solfejo esteve ligada a mediadores específicos, como os
jesuítas, mestres de solfa em Seminários para formação de padres, mestres de capela em catedrais e
demais mestres de música que atuavam em outros espaços, de forma independente ou em demais espaços
institucionalizados. (BINDER & CASTAGNA, 1996). Intenciono com o curso da pesquisa identificar
possíveis intercâmbios de métodos e tratados que possam ter servido aos mestres de música nos Corpos e
nas Escolas de Aprendizes na Marinha.
órfãs e desvalidas desde 1837, pelo menos de maneira formal e autorizada, a partir da
Decisão Nº 366de 27 de julho daquele ano, para que ali pudessem aprender “ofícios e
artes, a que as suas inclinações os chamarem” (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO,
1837: p. 279).
Os conjuntos musicais formados no âmbito das companhias de aprendizes
artífices, tanto na Marinha como no Exército, continuariam atuando pelo resto de todo o
século XIX, até que o ofício da música fosse realocado para outros tipos de companhias
voltadas para a formação de contingentes para a atividade bélica e naval direta, como os
aprendizes marinheiros e aprendizes militares.
Antes ainda de abordarmos sobre esses dois tipos de companhias e a atividade
musical dentro delas, cumpre mencionar também os depósitos de aprendizes artilheiros,
formados no contexto do esforço de guerra, como foi o caso da Guerra da Tríplice
Aliança contra o governo paraguaio (1864-1870), embora a preparação deles não tivesse
como foco direto a guerra em si, já que se trata de um regulamento de 1867, isto é após
mais de dois anos iniciada, e também porque previa três classes para que o aprendiz
pudesse se preparar, ou seja, três anos. Ainda que não se possa descartar a possibilidade
de preparação para o conflito diretamente, mas para que os aprendizes pudessem
compor os corpos de artilharia e também as baterias das fortalezas, o que chama a
atenção uma vez mais é o público para o qual se dirigiam os administradores do
Exército com os depósitos: a idade de 12 a 19 anos prevista para o aprendiz, conforme
as instruções dadas pela Decisão de 21 de Março de 1867, no parágrafo 2º do artigo 4º.
Tal idade estava associada aos prerrequisitos que acompanham esse público-alvo na
força permanentemente no século XIX: órfãos ou desvalidos, ou apresentados por pais e
tutores mediante prêmio. Além disso, eram admitidos aqueles que fossem recrutados e
que tivessem menos de 19 anos – algo que não previsto nas companhias de aprendizes
artífices tanto na Marinha como no Exército, pelo menos formalmente – e os que
passavam pelas próprias companhias de aprendizes artífices e concluíam os cursos com
menos de 19 anos de idade, ou não obtinham aproveitamento para prosseguir como
aprendizes artífices nos Arsenais de Guerra (artigo 2º). (COLEÇÃO DAS LEIS DO
IMPÉRIO, 1867: p. 121-122). Vê-se, a partir desse caso, que era possível a passagem de
crianças entre companhias e depósitos distintos, algo que também ocorria na Marinha,
principalmente quando os aprendizes artifices não obtinham aproveitamento em suas
companhias e eram realocados nas companhias de aprendizes marinheiros.
O que interessa ao presente texto é que, uma vez mais, o ensino de música era
previsto em uma unidade com essa característica, Com professores a serem escolhidos
pelo próprio comandante de um depósito, a aula de música dada por aqueles eram
acompanhadas pelos aprendizes artilheiros que “para isso mostrarem, vocação, e forem
julgados aptos pelo Comandante do deposito; não ficando por isso dispensados de
seguir os demais estudos, e de fazer os respectivos exames” (artigo 38, parágrafo 7º) (p.
128).
Ainda percorrendo pelas companhias e escolas de aprendizes dentro do
Exército e Marinha, observado o público-alvo infantil, importa ainda mencionar as
companhias de aprendizes militares formadas no âmbito do Exército a partir de 1875,
cinco anos após o encerramento daa Guerra da Tríplice Aliança, quatro anos após a Lei
nº 2.040 de 28 de Setembro de 1871 – conhecida Lei do Ventre Livre - e um ano depois
da Lei nº 2.556, a Lei do Sorteio Militar. Tal legislação teoricamente se dedicava a
extinguir o recrutamento forçado efetuado de longa data no Brasil – desde 1822, se
considerarmos a emancipação política , e que mesmo com a instituição do voluntariado
mediante prêmio em 1855 4, era a principal forma de arregimentar indivíduos para
comporem os contingentes de ambas as forças armadas. No entanto, as formas de
recrutamento arbitrárias não cessariam com tal diploma, ainda mais porque o público a
ser recrutado pelas juntas nas paróquias e a rede de agentes estatais formada para efetuar
tal recrutamento (juízes de paz, delegados, promotores públicos, etc) estava restrito à
população tida como ociosa – estavam fora latifundiários, comerciantes, caixeiros,
bacharéis, estudantes de instituições de ensino superior, etc. Daí porque
compreendermos essas companhias voltadas para esse público mais como efetivação do
controle social para evitar a formação de um contingente de ociosos nos termos, vilas e
cidades nas províncias. E tal controle se dava em idade cada vez mais tenra, uma vez
que o público dessas companhias de aprendizes militares era com idade de 7 a 12 anos,
conforme artigo 1º do decreto Nº 6304, de 12 de setembro de 1876, o qual
4 Uma percepção crítica com relação a instituição do voluntariado mediante prêmio na Armada
Nacional pelo decreto nº 1.591 de 15 de abril de 1855 pode ser vista em Nascimento (2008), Castro
(2013) e Santos (2016).
regulamentava as companhias em Minas Gerais e Goiás. Era previsto o preenchimento
dessas companhias por órfãos e desvalidos os quais poderiam ser remetidos por
“autoridade competente”, filhos de praças do Exército ou da Armada, filhos de pessoas
indigentes e “destituídas de meios de alimentá-los e educá-los”, e os ingênuos conforme
a própria Lei do Ventre Livre – algo que ainda precisa ser explorado pelos historiadores.
(artigo 31).
Quanto ao ensino de música vale a pena seguir o artigo 39 do decreto nº 6.304:
Art. 39. A aula de música será frequentada, somente e sem prejuízo do ensino
das outras matérias, pelos menores que mostrarem aptidão e vocação para
esta arte. Nesta aula ensinar-se-ha:
§ 1º Solfejo e canto.
§ 2º O toque de instrumentos mettalicos de sopro, do sistema – Saxe – dos
tres generos: soprano, tenor e baixo; de modo que os discipulos possam
ensaiar e executar peças concertantes, como meio de distracção e
entretenimento nos dias e horas de descanso (COLEÇÃO DAS LEIS DO
IMPÉRIO, 1876: p. 958)
Pelo menos até o início do século XX, essas duas companhias de aprendizes
militares vão compor a estrutura de ensino do Exército, com a continuação do ensino de
música para os aprendizes.
No caso do ensino de música nas Companhias de Aprendizes Marinheiro –
depois Escolas, com o regime republicano – o que se observa é que o ensino de música
pode ter sido mais uma conduta do próprio comandante da companhia, posto que até o
momento não localizei legislação/normativa específica sobre a instituição de tal oficio.
No entanto, isso não pode ser indicativo da ausência de atividade musical, em vista das
notícias que dão conta de tal prática em várias províncias no país, da presença de nomes
de mestres de música em escolas de aprendizes dados pelas edições dos almanaques
compilados pela administração naval, pelo menos entre a última década do século XIX e
início do XX, e as discussões no âmbito da própria administração da pasta para a
reorganização das escolas na década de 1880.
As bases propostas pelo Conselho Naval para a reorganização das companhias
de aprendizes-marinheiros e do Corpo de Imperiais Marinheiros como resposta à
consulta nº 4642, concluída em 29 de agosto de 1882 e publicada na edição da Revista
Marítima Brasileira do mesmo ano, traz no item nº 17 que “No quartel, haverá também
aulas de primeiras letras, de frequência obrigada para todos os analfabetos, de música
para aqueles que mostrarem aptidão para esta arte” (REVISTA MARÍTIMA
BRASILEIRA, 1882: p. 608), reconhecendo a importância da prática musical com base
nas experiências anteriores, em especial o caso dos menores aprendizes do Arsenal de
Marinha da Corte.
Assim, é possível dizer a partir da documentação normativa e administrativa
produzida pelo Estado, em especial pela Marinha e Exército, como havia uma
preocupação por parte dos gestores em ocupar as crianças órfãs, desvalidas, pobres, em
sua maioria negras, com o ensino de música, na medida em que os mantém sob sua
guarda e controle, para que depois elas sejam responsáveis pela própria guarda do
Estado, dando-nos uma mostra de como o ensino musical ocorria em outros espaços que
não os consagrados, como o Imperial Conservatório de Música fundado na década de
1840. A música era, portanto, um instrumento não só para controle, mas mas introduzir
esses sujeitos numa linguagem musical referenciada numa matriz europeia, mas com
contornos nacionalistas. Isso fica bem visível – e podemos tecer uma “imaginação
sonora” - da construção desses contornos por ocasião da apresentação desses jovens
nesses conjuntos musicais nos diversos espaços dos termos, vilas e cidades.
3. Lugares da prática musical: espaços festivos, ensino musical e formação dos
aprendizes.
Evidentemente, não seria possível alcançar todas as apresentações das bandas
de músicas das companhias/escolas de aprendizes artífices, militares e marinheiros entre
meados do século XIX até o início do século XX, quando a constituição dos quadros de
músicos nas forças armadas acabam por tornar as atividades musicais desses aprendizes
menos frequentes, pelo menos nos espaços públicos. Assim, para trazer alguns casos
em que há essas apresentações desses conjuntos musicais, gostaria de delimitá-las a três
tipos de ocasiões em que eram bastante comuns tais concertos. Os eventos festivos
cívicos, as festas religiosas, as festas burlescas, as apresentações em praças e coretos, e,
por fim, os espaços privados. Mesmo reconhecendo que os casos aqui apresentados são
pouquíssimos para representar em quantidade razoável cada um desses espaços, a
escolhas de alguns deles permitirão uma visualização de uma paisagem sonora
característica desse período.
No âmbito das comemorações cívicas, um desses eventos foi o que ocorreu em
alusão ao forçamento da passagem de Humaitá em fevereiro de 1868, durante a Guerra
da Tríplice Aliança, levada a cabo pelos aliados Brasil, Argentina e Uruguai, ação
considerada importante por parte dos beligerantes contra as forças sob o comando do
governante paraguaio Francisco Solano López, já que a presença dos exércitos aliados
em território paraguaio já não encontravam um obstáculo considerado inexpugnável.
Para comemorar o evento, entre os diversos festejos cívicos, um que logo ocorreu após
a passagem foi o realizado no centro da Corte e em bairros adjacentes, em 4 de março
de 1868. O Jornal do Comércio trazia em suas páginas tal evento:
REGOZIJO PÚBLICO – Tem sido entusiásticas e extraordinárias as
demonstrações de regozijo, nesta corte, pelos feitos brilhantes da esquadra e
do exército, no dia 19 de Fevereiro último.
Além da oficialidade dos batalhões da guarda nacional que anteontem
percorreu a cidade, precedida pelas respectivas bandas de música, também a
da marinha, reunida aos empregados civis da repartição, organizou uma
solene manifestação, que tornou-se ainda mais importante pelas pessoas
gradas que nela tomaram parte. (...)
‘Seguia-se na frente a banda de música dos aprendizes menores, logo
depois a companhia dos aspirantes com uma bandeira, e sucessivamente, na
ordem que indicamos, as bandeiras aliadas, argentina, e oriental, ao lado da
brasileira, sustentadas por empregados da secretaria e da contadoria, e mais
de duzentos cidadãos, entre os quais se notava o conselheiro diretor geral da
secretaria de marinha, diretoria de secção contador, oficiais generais e
superiores da armada, médicos, capelão, etc., da repartição da marinha.
‘Formavam alas 100 artífices militares
‘Uma girandola de foguetes indicou o momento da partida, e durante todo o
seu longo trajeto esta sociedade fez elevar aos ares quantidades deles
Mais adiante, ao transcrever no jornal o que havia chegado às mãos dos
editores acerca do evento, narravam que o cortejo havia percorrido uma série de locais
próximos ao Centro, como os bairros da Lapa e da Glória, compareceu à frente da casa
dos ministros da Guerra e da Marinha, o Theatro Lyrico, no qual contou com a presença
da família imperial e assim a festividade continuou até à tarde daquele dia, quando
as músicas dos menores dos arsenais de guerra e de marinha, aquela
precedida do Sr. general Caldwell e seus ajudantes, e seguida do corpo de
inválidos , com seu comandante e oficiais, percorreram no meio de vivas
algumas ruas, e bem assim diversas sociedades particulares. (JORNAL DO
COMÉRCIO, 1868, p. 1).
Importante ressaltar que junto a bandas de outros batalhões e enquanto o
cortejo desfilava pelas ruas da corte, as músicas – que na época era o termo que
significava os conjuntos musicais – dos aprendizes dos arsenais de Guerra e de Marinha
da Corte formavam essa paisagem sonora que compunha os logradouros públicos.
Se os festejos cívicos ocorriam em comemoração a triunfos obtidos em guerras
como a da Tríplice Aliança, eram realizados também para celebrar as transformações
porque passavam as urbes distribuídas pelas províncias – ainda que as transformações
nem sempre fossem bem sucedidas.
Foi o caso dos festejos realizados por ocasião da ligação de cabos elétricos
(parece tratar-se mais dos telegráficos do que elétrico, mas esse foi o termo empregado
à época) submarinos do continente europeu para Belém do Pará trazidos pelo vapor
inglês Hooper, em 25 de agosto de 1873. Houve honras de recepção ao presidente da
respectiva província, que, às 2:30 da tarde, a bordo de outro vapor, o Manaus, este em
direção ao Hooper para que o presidente da província recebesse a tripulação inglesa, foi
recebido pela banda de música dos Aprendizes Artífices do Arsenal de Marinha do Pará.
Curioso pois o Decreto nº 2.615 de 1860 não previa esse tipo de conjunto musical no
Arsenal de Marinha do Pará, apenas no da Corte. (JORNAL DO PARÁ, 1873: p. 1).
Assim, para não descredibilizarmos o editorialista do Jornal do Pará que compunha a
notícia, mas também compreendendo a profusão de companhias de aprendizes como as
de artífices e também de marinheiros, poderia ser que essa banda fosse mesmo de
aprendizes artífices. Mas, ao tocar em um navio – possivelmente da Marinha de Guerra
– cumpria a banda os ritos previstos desde a expedição do Aviso de 17 de Fevereiro de
1847, o qual ordenava que aos Presidentes de uma província eram devidas as honras
com continências e presença de banda de música, tambores ou cornetas. (COLEÇÃO
DAS LEIS DO IMPÉRIO, 1847: p. 26). Mas a banda não só recebeu o presidente da
província com as honras devidas, como também junto com a banda do 11º de infantaria,
esta a bordo de outro vapor, o Amazonas, tocavam “lindas peças”. Mais tarde, às 4
horas, quando o presidente embarcava no Hooper, mais uma vez ressoavam os seus
instrumentos os músicos do Arsenal do Pará, desta vez tocando o Hino Nacional. E mais
tarde ainda, à noite, já no largo do Palácio, mais uma vez alternadamente com a banda
do 11º de infantaria, tocavam na presença de “grande reunião de povo e d’onde subiram
ao ar grandes girandolas de foguetes”. (JORNAL DO PARÁ, 1873: p. 1).
Com esse evento, pode-se notar como que uma mesma banda destinava-se a
cumprir ritos cerimonialísticos, ao mesmo tempo em que apresentava um repertório –
que poderia não só ser de músicas militares como dobrados – e, evidentemente, o
símbolo pátrio, como o Hino Nacional. Bem, é verdade que o evento havia de ser
frustrado pela não condução dos cabos submarinos pelo tal vapor Hooper e sim outro, o
Queat-North, em outra ocasião que se seguiu a essa. Mas, respeitando o esforço do
narrador em descrever os sentimentos traduzidos em semblantes felizes dos presentes,
não havia como “deixar de louvar o espontâneo entusiasmo com que a população desta
capital abrilhantou a bela festa, que ligeiramente deixamos descrita nestas linhas.” (p.
1).
A presença de bandas em espaços públicos, como se pode ver com os
aprendizes do Arsenal do Pará não se restringia a momentos específicos. Em algumas
cidades passou a compor a paisagem sonora com mais frequência e já há algum tempo.
Tal como a banda de música dos aprendizes menores do Arsenal de Guerra, um dos
primeiros conjuntos musicais formados no âmbito dessas companhias como exposto
anteriormente, cuja notícia dessa presença constante era relatada pelo Correio Mercantil
em junho de 1848. Essa banda ia, segundo o dito periódico, “às tardes de todos os
domingos, continuando a deleitar as famílias que concorrem ao Passeio Público.” E o
repertório, bem além dos típicos dobrados. Tratava-se de um repertório operístico como
“ a introducção dos Puritanos, a aria final de Betly, e o final da Lucia.”. A primeira
ópera, de Vicenzo Bellini. A segunda e a terceira, de Gaetano Donizetti. Assim, o
repertório dessas bandas, descrito pelos articulistas e editorialistas de jornais traziam em
suas páginas, faz-nos pensar sobre o movimento propiciado por esses conjuntos em
interpretarem músicas de variados gêneros e em favorecer uma audiência que acessava
um repertório não só nacional como mundial, para além dos teatros nos quais somente
certos grupos sociais poderiam frequentar. Tal ecletismo de gêneros já havia sido objeto
de uma tese construída por José Ramos Tinhorão quando afirma que a explicação para a
inserção de variados gêneros musicais nos repertórios dessas bandas estava na
necessidade em agradar o público de “gosto popular”, possibilitando assim uma das
“poucas oportunidades” para que parte das populações das principais cidades brasileiras
se constituíssem em audiência de música instrumental. (TINHORÃO, 2010: p. 193-
194).
Se na rua estavam dadas as condições para que essas bandas pudessem
aparecer e proliferar, os eventos religiosos, e os templos de maneira geral, eram mais
um desses cenários de constituição dessas sonoridades vindas da caserna. Assim, além
de exemplos similares ao já exposto sobre os meninos do Arsenal de Marinha da Corte
em 1854, de outra província, desta vez Pernambuco, far-se-ia saber sobre a presença de
banda de música dos Aprendizes Marinheiros nos festejos em homenagem ao Senhor
dos Passos em outubro de 1899, tal como o noticiado pelo Jornal do Recife: Com a
pompa dos anos anteriores realizou-se, anteontem na matriz do Corpo Santo, a festa do
Senhor dos Passos. Assim, “grande foi a afluência de espectadores ao templo que
ostentava bonita decoração. A orquestra, regida pelo exímio professor Soares Rosas,
executou com a máxima correção todas as peças sacras. Em todos os atos fez-se ouvir a
banda de música dos Aprendizes Marinheiros.” (JORNAL DO RECIFE, 1899: p. 2). A
música dos aprendizes fazia-se ouvir, assim, associada não só a um repertório religioso
mas a interpretação e performance especificamente religiosa.
E os aprendizes marinheiros em Pernambuco não se restringiam só ao
repertório sacro. O lado “profano” também ressoava de seus instrumentos. Foi o que nos
fez saber o Diário de Pernambuco no fevereiro de 1906, no ensaio realizado em um
clube carnavalesco, os Vasculhadores no dia 2. Assim,
Começou a diversão às 5 horas da tarde, terminando às 7 da noite. No logar
onde foi marcada a festa achavam-se cerca de 300 pessoas à espera da música
dos aprendizes marinheiros, que foi contratada para o clube. Depois do
ensaio os respectivos sócios incorporados, saíram em passeata até a rua
Marquês do Herval, acompanhando o préstito a referida banda de música.”
(DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1906: p. 2).
Dessa vez, a performance agora estava voltada ao burlesco e a todas as
matrizes em termos de execução, técnicas, interpretação, performance e gestos
característicos dos gêneros musicais tocados nesses eventos nos quais os músicos
envidavam seus esforços.
Como já alertado não se teria como explorar outras apresentações das bandas
dos aprendizes artífices ou marinheiros tanto do Exército como da Marinha, uma vez
que ocorreram em inúmeras ocasiões. Mas, pela variedade mesmo, podemos constatar
que: 1) a atuação dessas bandas em espaços diversos além dos arsenais e instalações que
abrigavam as companhias, permite compreender que o ensino musical também se
efetivava pela prática fora da caserna; 2) o repertório variado executado por esses
conjuntos, possibilita observá-los como mediadores culturais que constituem uma
audiência bem diversa mas que ligadas pelos timbres característicos dos instrumentos
utilizados por esses sujeitos; 3) mesmo sendo possível identificar um repertório próprio
do que se poderia chamar de uma “música militar”, com subgêneros típicos como
marchas e dobrados, melhor seria tratar de uma música pratica por militares, vide a
incorporação de tantos outros gêneros bem diverso do tipicamente militar, o que
possibilita também que a partir de então esses grupos sejam tratados no âmbito de uma
historiografia da música não como um subgrupo, mas por terem um papel importante na
difusão musical; e, por fim 4) a formação desses militares não se restringiam às suas
atividades diretamente envolvidas no esforço de guerra, ainda que essa tenha sido a
expectativa capital por parte dos administradores das forças e de outros agentes estatais
e mesmo da sociedade. O envolvimento que terão com aspectos alheios à dimensão
estritamente militar, permite compreendê-los como sujeitos que, embora submetidos ao
controle social, sobretudo pela orfandade, pobreza e questões raciais aí envolvidas – não
tem como não nos lembrarmos da absorção dos ingênuos nas companhias de aprendizes
militares prevista a partir de 1876, como exemplo - , ao se aproximarem de uma
sociedade que os controla, formam-se como indivíduos que pensam e atuam nela com o
produto da elaboração de sua mais instigante e intrínseca linguagem: a musical.
Fontes
Periódicos:
Hemeroteca Digital: disponível em <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>
COMUNICADOS. Diário do Rio de Janeiro, 2 de abril de 1854, nº 91, p. 2. Acesso
em 12 de ago. 2018.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Domingo, 4 de fevereiro de 1906, p. 2. Acesso em 8 de
out. 2019.
REVISTA MARÍTIMA BRASILEIRA. Consulta nº 4642. in vol. 3. Rio de Janeiro:
Lombaerts & C. - Editores., Julho 1882. p. 608. Acesso em 20 de abr. 2019.
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de 1879, nº 3, ano I. Rio de Janeiro. p. 1-2. Acesso em: 20 de set. 2014.
JORNAL DO COMÉRCIO . 4 de março de 1868. pg. 1 Acesso em 8 de out. 2019.
JORNAL DO PARÁ .27 de agosto de 1873. p. 1-2 Acesso em 8 de out. 2019.
JORNAL DO RECIFE. 24 de Outubro de 1899. p. 2. Acesso em 8 de out. 2019.
Legislação:
Coleção das Leis do Império: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/doimperio/colecao6.html
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Decreto nº 304 – de 2 de junho de 1843. Parte 2.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Regulamento nº 113 – de 3 de janeiro de 1842.
Parte 2.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Decreto nº 2.615 – de 21 de julho de 1860 .
Parte 2.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Decisão n.366 – marinha – em 27 de julho de
1837. Parte 3.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Decisão de 21 de março de 1867. Parte 3.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Decreto nº 6304 – de 12 de setembro de 1876 .
Parte 2.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO. Aviso de 17 de fevereiro de 1847. Parte 3.
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