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O equivocrata (uma reta de vista) Raul Fiker PRESSÕES DE VIAGEM (aqui, não marginal, mas paralelo) "… ficar no tempo e no espaço!… Grande coisa! (literalmente, por exemplo) … coisa grande … sempre a mesma coisa… O Real morreu! Viva o Real" A tradição registra que Chang SNC, fundador e vítima profissional de dinastias chinesas na jurisdição do plexo solar, autoconspirador, não compareceu à coroação do Real (traje à rigor) por tomá-lo por calhorda, porque o Real não tem imaginação suficiente para não existir. As saudades, a nostalgia, são uma agradável sensação, mesclada de ansiedade e tristeza em doses adequadas, que advêm do fato de que escapamos do passado. Na terrível perseguição, fizemos a curva brusca para o aqui-agora e o passado seguiu reto, terminando por ficar encurralado na memória, que é a região para onde o aqui-agora dirige-se à toda velocidade com a postura do elefante quando pressente a morte e se dirige para o cemitério dos elefantes. Posteriormente, há uma espécie de sensação de alívio por termos escapado de ser esmagados pelas patas desses animais moribundos com os quais cruzamos neste percurso irremediável que aqui tento infringir através de metáforas. E o futuro, sr. Administrador? De onde vêm esses elefantes com os quais cruzamos enquanto eles vem em nosso encalço? A linguagem, uma família de fantasmas, as obras de construção da memória-labirinto-camuflagem-armadilha dela mesma. Mais um despistamento do Instantâneo? Só o possível tem possibilidades, ele é viciado nisto. Enquanto que a História é o parque de diversões do Ser: trem-fantasma, palácio do riso, roda gigante, montanha russa, túnel do amor, tiro ao alvo. Janeiro de 1826, uma noite na ópera. Os Irmãos Marx e Durango Kid compõem o Ministério da Noite e desferem pontapés heróicos contra as terríveis paredes externas do manicômio judiciário de Oklahoma, em São Paulo, no coração do lixo cósmico cuja antiga partilha favoreceu visivelmente o Brasil. (Há um contrato. Na prisão você entrega o seu espaço e recebe tempo em troca. Como prisioneiro, ao receber sua ração de sol, você pode observar as sentinelas nos muros, presas também, aos uniformes, aos salários, ao terror e à bestialidade da responsabilidade do dinheiro.) Umas relações lógicas que não interessam mais sequer aos ascensoristas, por exemplo (e com este calor, e em elevadores de grades de ferro – o apto. de Mme. Winnykamen na Rue de la Santé - " PRIÈRE DE FERMER LES PORTES DOUCEMENT ET COMPLETEMENT" num 1968 de quatro números que vem ao caso, senhores). O breque da História está agora numa empresa denominada URSS onde a rentabilidade dos empreendimentos está ligada a uma ética bizantina ao invés de protestante como em outras empresas de traficantes de praga emocional. Se este breque não estivesse lá, estaria num outro lugar qualquer, e às vezes pessoas sentiriam raiva de um lugar qualquer, raiva delas, pessoas, lugar qualquer. E estas relações lógicas, e as psicopatologias com suas relações lógicas ainda mais bravas e peçonhentas. Esta porra toda. E é difícil sentir, sr. Administrador, em breve não se sentirá sequer medo e ainda isto não vai adiantar nada (nem aqui nem na China, para quem se interessa por isto e vai ao zoológico, onde é proibido dar amendoins ao futuro, inclusive porque ele não está lá - ainda (o futuro, sr. Administrador, ainda não) - e eu vou tomando notas e paralelamente faço uma porção de coisas, aqui e na China). O minuto § foi um amor. Lá estavam estas relações lógicas que aporrinham até os oligofrenicos, a História, cheiros de água de colônia; eu amava que nem um louco e me machucava para valer, tratava qualquer contingência com um carinho desvairado, e nestas ocasiões sou um terrível fetichista de todos os detalhes e contemporâneo da minha memória, tudo isto quase explodindo, e explodindo mesmo, rebaixando o bom e velho minuto § à maravilha de eternidade. Aí estão esses momentos, sr. Administrador (por exemplo), e estas relações lógicas sobretudo agora, sem cheiro nenhum, como numa eternidade barata de segunda mão. (O sr. – por exemplo – gosta de música? E faz ela fora dela?). DIE GEBURT DER TRAGODIE AUS DEM GEIST DER MUSIK, a namorada daquele cara que não tinha estrutura suficiente para ficar louco do lado de fora do hospício, ou tinha tanta que

O equivocrata - Raul Fiker

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Fiker, o equivocrata

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O equivocrata (uma reta de vista)

Raul Fiker

PRESSÕES DE VIAGEM (aqui, não marginal, mas paralelo)

"… ficar no tempo e no espaço!… Grande coisa! (literalmente, por exemplo) … coisa grande … sempre

a mesma coisa… O Real morreu! Viva o Real"

A tradição registra que Chang SNC, fundador e vítima profissional de dinastias chinesas najurisdição do plexo solar, autoconspirador, não compareceu à coroação do Real (traje à rigor)por tomá-lo por calhorda, porque o Real não tem imaginação suficiente para não existir.

As saudades, a nostalgia, são uma agradável sensação, mesclada de ansiedade e tristeza em doses adequadas, que advêm do fato de que escapamos do passado. Na terrível perseguição, fizemos a curva brusca para o aqui-agora e o passado seguiu reto, terminando por ficar encurralado na memória, que é a região para onde o aqui-agora dirige-se à toda velocidade com a postura do elefante quando pressente a morte e se dirige para o cemitério dos elefantes. Posteriormente, há uma espécie de sensação de alívio por termos escapado

de ser esmagados pelas patas desses animais moribundos com os quais cruzamos neste percurso irremediávelque aqui tento infringir através de metáforas. E o futuro, sr. Administrador? De onde vêm esses elefantes com os quais cruzamos enquanto eles vem em nosso encalço? A linguagem, uma família de fantasmas, as obras de construção da memória-labirinto-camuflagem-armadilha dela mesma.

Mais um despistamento do Instantâneo?

Só o possível tem possibilidades, ele é viciado nisto. Enquanto que a História é o parque de diversões do Ser: trem-fantasma, palácio do riso, roda gigante, montanha russa, túnel do amor, tiro ao alvo.

Janeiro de 1826, uma noite na ópera. Os Irmãos Marx e Durango Kid compõem o Ministério da Noite e desferem pontapés heróicos contra as terríveis paredes externas do manicômio judiciário de Oklahoma, em SãoPaulo, no coração do lixo cósmico cuja antiga partilha favoreceu visivelmente o Brasil.

(Há um contrato. Na prisão você entrega o seu espaço e recebe tempo em troca. Como prisioneiro, ao receber sua ração de sol, você pode observar as sentinelas nos muros, presas também, aos uniformes, aos salários, ao terror e à bestialidade da responsabilidade do dinheiro.)

Umas relações lógicas que não interessam mais sequer aos ascensoristas, por exemplo (e com este calor, e emelevadores de grades de ferro – o apto. de Mme. Winnykamen na Rue de la Santé - "PRIÈRE DE FERMER LES PORTES

DOUCEMENT ET COMPLETEMENT" num 1968 de quatro números que vem ao caso, senhores). O breque da História está agora numa empresa denominada URSS onde a rentabilidade dos empreendimentos está ligada a uma éticabizantina ao invés de protestante como em outras empresas de traficantes de praga emocional. Se este breque não estivesse lá, estaria num outro lugar qualquer, e às vezes pessoas sentiriam raiva de um lugar qualquer, raiva delas, pessoas, lugar qualquer. E estas relações lógicas, e as psicopatologias com suas relações lógicas ainda mais bravas e peçonhentas. Esta porra toda. E é difícil sentir, sr. Administrador, em breve não se sentirá sequer medo e ainda isto não vai adiantar nada (nem aqui nem na China, para quem se interessa por isto e vai ao zoológico, onde é proibido dar amendoins ao futuro, inclusive porque ele não está lá - ainda (o futuro, sr. Administrador, ainda não) - e eu vou tomando notas e paralelamente faço uma porção de coisas, aqui e na China). O minuto § foi um amor. Lá estavam estas relações lógicas que aporrinham até os oligofrenicos, a História, cheiros de água de colônia; eu amava que nem um louco e me machucava para valer, tratava qualquercontingência com um carinho desvairado, e nestas ocasiões sou um terrível fetichista de todos os detalhes e contemporâneo da minha memória, tudo isto quase explodindo, e explodindo mesmo, rebaixando o bom e velhominuto § à maravilha de eternidade. Aí estão esses momentos, sr. Administrador (por exemplo), e estas relações lógicas sobretudo agora, sem cheiro nenhum, como numa eternidade barata de segunda mão. (O sr. – por exemplo – gosta de música? E faz ela fora dela?). DIE GEBURT DER TRAGODIE AUS DEM GEIST DER MUSIK, a namorada daquele cara que não tinha estrutura suficiente para ficar louco do lado de fora do hospício, ou tinha tanta que

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tanto faz. "Fazer o diabo", "mover um processo", são expressões promissoras quando sofrem infinitos deslocamentos de conotação. Um universo, e todo mundo fazendo tudo. E estas relações lógicas (olha, velho, isto inclui o fato de – por exemplo – o ser humano ter dois braços, enxergar com os olhos, freqüentar o princípiode realidade e mesmo poder ficar de cabeça para baixo dependendo de sua habilidade). Obs.: A esquizo-paranóia não é mais interessante que a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, é só outra variação do tema. O sr. por acaso é delirante? Toma LSD? Gosta de intimidade com o Real? Ou prefere Zola, Robbe-Grillet, arquivos, escrúpulos absurdos com garantia de cinco mil anos & assistência técnica gratuita, remunerada e paga? Ou talvez seja do gênero que gosta de brincar de esconde-esconde (como tudo & todos, aliás). Eu particularmente aprecio e respeito prestidigitadores, de qualquer tradição e ideologia, ascendentes ou decadentes segundo o ponto de vista do observador (e é aí que o prestidigitador desperta admiração).

Existem inumeráveis coisas ótimas, praticamente tudo.

Este universo é inquebrável, impossível fazer algo sério. Ah, e às vezes é muito rápido. Qualquer um perde a conta (qualquer um SÓ pode perder a conta; na Aritmética qualquer um pode estar no 18, no 7985 43385, no um, e sempre o mesmo, por exemplo). Não é nada disto, ainda que seja. Eu estou sentindo muito, sinto muito. Não consigo sentir, sr. Administrador (por exemplo).

O trágico. Música aleatória (mas é música e não o aleatório). A condição da possibilidade é a impossibilidade. Oque existe consiste em não poder existir, e demonstrar a impossibilidade da existência de algo é demonstrar sua existência. O Inviável é sempre a matéria prima. A linguagem. Tensão, relação, fantasmas.

O diagnóstico condenou (o real, por exemplo) à absolvição. Desloucado, expulso à força da camisa de força, ele é finalmente externado.

Os níveis de organização da matéria não estão em compartimentos estanques, eles são compartimentos estanques. A consciência é o "funcionamento" do nível de organização da matéria "homem". A chamada "lei da Gravidade", por exemplo, é o "funcionamento" de outro nível do real que leva este nome quando se "naturaliza" (aqui no sentido jurídico) na consciência. Homem está para matéria em geral assim como consciência está paraLei da gravidade, por exemplo. Os fantasmas. E a Patrulha Sensorial.

Ir buscar a Metantropologia e ficar com o saco cheio, se arrastando pelos cantos do século. Não há quem não torça para que nosso século mude de assunto, ainda que alguns afirmem que o assunto de que trata o século XX é mudar de assunto (ainda estes apreciariam uma mudança). E os que se apõem às mudanças. E o que vou fazer com tudo isto, que é quase nada? Lavo a roupa suja na farmácia, despenco encima dos meus minutos e descanso um pouco.

Assassinato pelo próprio cadáver

Se eu fosse iniciar uma narrativa, como antigamente, eu começaria exatamente como começo aqui. Mas nesta região – assim como nas outras, de outras maneiras – estas afirmações não tem um sentido muito rigoroso (…).Algo, por exemplo, está acontecendo. No ponto de intersecção de todos os limites de todas as coisas. No umbigo do Processo Mais Englobante, ou nas suas tetas, onde ele dá de mamar para todos os processos; ele, que é todos em cada curva de sua identidade. (…) pode ser qualquer coisa, mas seus lábios devem estar abertos para o beijo molhado do real (…) e eu me escolho como mediador entre a linguagem e o processo real e me proponho a cosmificar a caos a partir dos caos e a humanizar a vida a partir da vida.

Senhora, armadilha suave que estraçalha todas as células, delírio de semana passada, marca amorosa na superfície do planeta, última instância do mal-entendido, esconderijo com mil cabines individuais, sua covardia não tem peça de encaixe, é contemporânea.

Sob a incomensurável angústia entrópica do Sol, a pequena aventura humana no cenário da guerra orgânica entre o presente e o futuro, com matizes geográficas, ideológicas e psicopatológicas. Drieu de la Rochelle, Stalin, Vico, Ginsberg, uma furtiva homenagem à equipe de filmagem de "King Kong", Cromwell, Robespierre, Lenine. Entre uns e outros o pequeno núcleo universal de puritanos, jacobinos, bolcheviques e maoistas projetados no fundo negro das galáxias antropomorfizadas por astrólogos desesperados. As aventuras de Spartacus e Nietzsche na liga Hanseática. E sobretudo, na perspectiva microscópica, a saga relirante de ChangSNC entre a causalidade e a casualidade.

No século dedicado ao indivíduo só são liberadas atividades significativas que envolvam mais de um milhão de pessoas. Mesmo a morte vem travestida de morticínio. Sé se compra e vende no atacado, o resto é ridículo, e isto também. Sob o signo da solidão não se faz prisioneiros. Norte, sul, leste & oeste. As canhoças da

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embarcação do corsário fumegam vomitando chumbo a esmo. Debussy atravessando a rua para comprar uma bandeirinha a fim de saudar a parada comemorativa. Estão todos distraídos no umbigo do mundo. Na História, corrigir a tiros quem está errado; e é tão fácil ver quem está errado, e atirar para todos os lados; e uma saraivada de tiros no presente, e outra no futuro (se não para outra coisas, apenas para matar o tempo). As vidas ingênuas, massacradas, deslumbradas, com sua saúde obscena, devem atacar o quanto antes as oligarquias governamentais de velhos doentes que babam na camisa e soletram imbecilidades. As pessoas devem pedalar uma bicicleta meio sagrada em direção à imundície para se chocarem contra o Mostro e destruí-lo o mais rapidamente possível, cortá-lo com os cacos de suas vidas por ele estragadas. Quebrar tudo ou não tocar em nada. Matar o assassino para contrair sua doença, ou ser morto por ele. Como é difícil passar o tempo! Como as solicitações são uma só! Escolher uma posição do caleidoscópio e lutar por ela até à morte. Exige-se uma máquina de métodos para descobrir motivos em meio a uma tempestade de piparótes.

Bizâncio, 14/7/70.

Se tudo existe Deus é permitido. Os humanistas só não se deixam pegar de surpresa pelo novo clero inquisitor psiquiátrico, de resto estão na linha de fogo de uma saraivada de sustos. Acreditam (partidariamente) no pecado original que expulsou o homem de si mesmo (a linguagem, o tempo, a história). No seu universo denso e colorido, os acidentes de trânsito geralmente fatais ocorrem no cruzamento

C A S CAUSALIDADE A L I D A D E

E o avesso por ele mesmo

– Século XIX, minha senhora. Está servida?

Atravessamos (Diário de Bordo) todos os macetizinhos do vegetal enquanto íamos ao hotel de um imbecil buscar coisas antropomorfizadas, coisas domésticas. Existimos por nós e pelas coisas, perdemos metade do Tempo com esta filantropia idiota perdidos em nossos séquitos de coisas que coisificamos incansavelmente. Esta a nossa distração vital e causa mortis de si mesma. – Desista-se! – gritavamos-nos. A lua era um sol prateado cuja maquilagem eram os nossos olhares e quanto a ela não nos aborrecíamos de existi-la. Nós a cafetinizávamos em homenagem a um pragmatismo nihilista travestido de avalanche. E haviam expressões indecorosamente (se é que) humanistas tais como: "desculpe alguma coisa" & outros excessos ideológicos. Morrer de rir não passa de um sorriso, vamos adiante.

Esta a defasagem, meu amor. Esta arde é sua comigo dentro para divertir a sua carne. Desculpe a lentidão. Vamos partir para outra.

"A característica essencial do Tudo é ser o seu próprio momento", dizia o Nada (apelido de uma parte do Tudo e5ª coluna de si mesmo).

Você entra numa casa de hamburgers na esquina da avenida São João coma Conselheiro Crispiniano e encontra uma mulher estranha com as pontas da blusa amarradas na barriga, acima do umbigo. Vocês cruzam a avenida e entram no velho Hotel Municipal, onde ficam trancados num quarto durante dois meses, se amandocom fúria. No fim você sai cambaleando e vai para no "Ponto Chic", onde enche a cara de cerveja e parte para outra.

The world is the worst place of the world.

II

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"- Que quer dizer com isto?" Van Vogt

(Earth’s Last Fortress)

DESCRIÇÃO MINUCIOSA (A PEDIDOS) DE COMO UM CASAL DE AMANTES BEM INTENSIONADOS SOFRE UM ATAQUE MORTAL DE URTICÁRIE E DE COMO ELES SE COÇAM ATÉ MORRER MAIS A NARRATIVA DA FURIOSA CÓPULA DE UM QUATÍ DESENGANADO PELAS CARTOMANTES EM GERAL

COM UMA NOTA MUSICAL ATRÁS CA CATEDRAL DE DUSSELDORF

– Par ou ímpar?

O Tempo, com as pernas abertas fazendo bilú-bilú com o dedinho no clitóris e balbuciando despropósitos com sua voz pastosa. É uma puta gelada que não tem notícias do orgasmo e só fala em fazer média. E mais essa gente que já entra nos elevadores com um dedo no botão de emergência e outro no do alarme: por que não vãopelas escadas?

Pequena história do revertério da humanidade

Segundo Eliade a vivência do tempo pelo homem religioso das sociedades arcaicas e primitivas implica numa concepção cíclica, com repetições infindáveis de rituais que tornam o tempo reversível fazendo com que os rituantes sejam reportados às origens dos cosmos tornando-se contemporâneos dos deuses e fortificando-se e renascendo com um tempo novo ainda e forte. Quando o tempo é dessacralizado e esses rituais tornam-se repetições vazias, os ciclos, esvaziados de seu conteúdo sagrado, tornam-se algo terrível e desesperador, tal como se vê nas concepções cíclicas do tempo dos gregos e dos hindus. Um hindu preso no vácuo da repetição e do eterno retorno do sempre idêntico fica na dependência do kshana, "o momento favorável", uma sorte de tempo sagrado que permite a "saída do tempo".

Quase toda a movimentação perceptível entre os aglomerados de matéria orgânica dotados do acaso do fenômeno consciência no planeta Terra – a inacreditável e peculiar arruaça da facção zoológica que segundo osmitos babilônicos foi criada por Marduk com o sangue do demônio Kingu – é um chafurdar perpétuo na contingência, vasculhando-a com seus minutos e carnes na captura essencial da Necessidade. Intoxicando-se do Ser para depois curtir o revertério do Nada.

"Tudo se eqüivale. Tudo é tudo. E o único mal-entendido é que não existem mal-entendidos (vale a recíproca)".

Do pavilhão guerreiro do Suposto Verdadeiro Náufrago.

Há alguma diferença que pode mesmo ser notada entre o Oceano Pacífico e uma banheira cheia d’água, mesmo porque na segunda os critérios navegam sem conhecer o sabor da borrasca. O corsário domiciliar pode evitar o dissabor que acarreta a situação do Inventor Total: suavemente encarcerado nos limites da banheira, ele inventa somente a partir de certos dados e respectivas leis que, não extravasando as fronteiras da banheira,cabem num só golpe de vista. Mesmo em se tratando de uma banheira parcialmente misteriosa, como a História, por exemplo. No Oceano Pacífico, o corsário tem que inventar o corsário a cada fração de segundo, sem saber ao certo o que é um corsário; a Terra pode ser achatada, podem haver monstros marinhos, não há garantias: Deus não abriu a boca. DEPOIMENTOS COLHIDOS NO PRÓPRIO LOCAL, IN ILLO TEMPORE: Eu poderia ou deveria ouqueria ou apenas plantaria todos os pés de alface que me fossem possíveis plantar e paralelamente me dedicaria ao canibalismo, ou talvez fosse apenas uma questão de virar tal esquina e pronto, ou lamber os beiços da esquerda para a direita numa determinada manhã de outono de 1976 numa latitude e longitude vagamente determinada, ou mais ou menos provavelmente nada disto. Os fundadores da Dinastia Ming volatizam-se em seus respectivos fluxos enquanto se entregam com desespero à questão da precedência da fundação da Dinastia ou dos critérios que a devem nortear. Tribos terríveis, desaparecidas por ocasião de seu próprio aparecimento e dotadas de glândulas que predispunham ao livre-arbítrio em horário integral, precursoras de todos os delírios individuais posteriores ao evento da Revolução Industrial, consideravam o orgânico como um desequilíbrio do inorgânico e o fenômeno bioquímico da consciência como a doença mais terrível deste desequilíbrio e cujo sintoma principal era o Inferno.

Documentos que atestam a remota existência dos homens-fumaça batem repetidamente na tecla da solidão e insistem em descrições minuciosas da dispersão lenta e agonizante dessas criaturas pelos ares infinitos que emprincípio elas queriam (ou/e deveriam, dada à sua conformação física) preencher totalmente, talvez com o intuito de sujarem o vazio de fuligem para que o invisível ou transparente tomasse forma aos seus olhos. Seus sistemas de significados jamais saíram de sua jurisdição e somente apressaram a dissolvição em casos individuais e esporádicos cujos germes estavam igualmente divididos entre todos mas se alastravam particularmente entre os desertores (seres que habitam os desertos).

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No mais das vezes, os referenciais da banheira do corsário domiciliar refletem um caráter autopunitivo, talvez devido à maior encontrabilidade e eficácia da dor em relação à delicada tarefa de distrair do contingente, talvez devido mesmo à necessidades ligadas à autopreservação do fenômeno, que é uma de suas peculiaridades inverossímeis e básicas. Deve-se levar a Coisa adiante, e é como uma equipe atlética de Sísifos levando a pedra ou a tocha olímpica não na pista de corridas ou na encosta da montanha, mas através dos minutos diabólicos, e o topo da montanha ou a pira olímpica é Amanhã, ou Daqui a Pouco, ou mesmo Agora, o que é o mesmo. De resto há uma História, e o formato da banheira fornece as necessidades.

Exmo. Sr. Encarregado da Subcomissão da ONU em relação ao Tráfico de Ópio & Adido às Atividades de Mardukem Relação a Tiamat & Jeová Quanto aos Dez Mandamentos, venho por detrás desta na qualidade duvidosa de porta-voz de Chang SNC salientar o caráter não crítico mas apenas de observação, à guisa de entretenimento, da presente narrativa, que, cumpre-se acrescentar, nada mais faz do que repetir os processos nela focalizados, o que, aliás, já deve ter ficado patente, sobretudo neste século. Trata-se apenas de uma substituição do Método que parte de uma contestação dele, mas com os mesmos fins. Prossegue o Distanciamento, procede-se à Objetivação, confere-se continuidade ao Fenômeno, permanece o Entretenimento. E tudo levado a cabo no interior relativamente aconchegante do universo do discurso. Procede-se uma tentativa de fazer do Oceano Pacífico uma banheira, apenas com os riscos costumeiros nesta espécie de empreendimento – que são sua matéria-prima.

PARTE II

Os Sofrimentos Domiciliares do Corsário Não-Domiciliar e Vice-Versa

Análise descompromissada do redemoinho provocado pela sucção do ralo. A borrasca automática. O encontro entre o sistema nervoso central e a Farmácia Século XX. Os meios das pernas. O labirinto que não é um labirinto e a Fundação da Dinastia Ming: eu te amo.

Muitos Anos Depois

Partículas do Corsário como Inventor Total Especializado e Subvencionado com as Condições Básicas, em pesquisa, perpétua.

QUINTA-FEIRA I

O dobro. A retomada. O prosseguimento nos confins do fôlego. E não é nada disto, trata-se apenas de uma luminosidade deliciosa cuja tomada é ligada no inferno e a luz se acende no paraíso. Nada disto ainda, metáforas também. Nenhuma substância. O labirinto é uma linha reta. Na verdade minha única volúpia, agora, é dormir. E no entanto, época, eu estou explodindo nesta explosão perpétua de não explodir.

AS AVENTURAS DO INTERVALO (outra coisa)

Pois bem, senhor Bom Dia, íamos todos à secção de aceleramento provisório quando irrompeu uma nuance. Uma nuance com passos de atributo adjetificando a esmo, um verdadeiro engolir-se, veja só ("veja só" seria uma locomotiva bêbada num carrossel de intenções desvendadas a domicílio por equipes de especializadores autorizados in loco e da mesma forma vigente na forma (como se isto fosse pretexto para arruaça). Isto não nada nunca tudo. Coisa mesmo.

AS AVENTURAS DO DESUNIVERSO & AS DESVENTURAS DO UNVIERSO, UM PERCURSO INSTANTÂNEO (com a participação especial do Acaso, cujo destino é não cumprir seu destino)

qualquer coisa

Agora vamos desbrincar (à maneira do Tempo). Domesticar metáforas sem vaciná-las contra a raiva. É através de nossos animais domésticos que somos contaminados neste nível. E basta de reencarnações em açougues.

Então, hoje, eu tiro o dia para planejar minha reencarnação não como substância mas como processo. Música, jogo, ou seja lá o que for (uma expressão curiosa). Uma mudança é apreciável, sobretudo a mudança do conceito de mudança. O que der & vier (ah!) a Beterraba Ecumênica, o Lobisgeléia, o Cruzeiro do Sul disfarçado de nó de gravata, um linchamento no universo do discurso onde o contraventor é enforcado no fio dameada, toda uma burocracia amorosa. Eu me movo e o meu combustível e tudo o que não é eu (e qual a causamortis, sr. Administrador?). A periferia do centro e o centro da periferia: um ponto de vista. O Tempo é o vagabundo da Eternidade, poderia não ser, mas agora é. O especialista da espécie transformou-se em trocadilho jocoso e é esta sua especialidade, tudo que ele é é ele.

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Não te amo mais, minha assassina sagrada. Mudei de assunto.

O inanimado rides again. QUELQUECHOSERIE

Ainda grávido do momento de dar uma transcendentada

À maneira do Externo. Natureza morta ao vivo. Mais sinaizinhos para embalar o sono da vigília. Novos postconceitos:

O gosmos

a. A chistória & sua relação com o inconsciente.

recordações amáveis do presidiário amável extraídas de um epígrafe a si mesmo, trechosesparsos de anotações liliputitanicas semiesquizóides levadas a cabo em situação de cárcere. exercício d’alma.

Um eu extremamente ele procura algum ponto de vista desocupado para fins de ancoradouro destinado à modesta embarcação pirata pré-naufragada no sentido da palavra pirata em grego. Endpeleuto O’Vascanton, antigo pseudônimo irlandês, autor do texto desaparecido "O Fênix de Lábios de Gangster", recentemente encarcerado num presídio brasileiro (cf) por ter incorrido em algo pósmeditado, pede perdão à palavra com o pé direito (em letra de forma) e reincide.

Desfile de modos para a estação do nada.

Pausa refrescante-escaldante para transcrição de inestimável definição de Luis Cernuda: "O desejo é uma pergunta sem resposta".

Fragmentos patolôntico-persecutórios/matemático-verbais

Oscar Wilde y sus muchachos executarán las seguinte rumbas pitagóricas…

conteúdo latente do discurso onirico-pedagógico do promotor da vara criminal: o crime sempre volta ao local do criminoso.

Lembranças amnésico-inesquecíveis. Inquérito aberto na memória.

Etc.

Sinais de equivocracia

O mundo cotidiano. Amanhã é outro dia. Deus ajuda sem alarde quem levanta tarde (isto, à guisa de uma guerrilha ética ao nível dos provérbios propagadores de virtudes famosas). Uma salva de palmas para os minutos biológicos num tempo pudico que fecha as pernas para o absoluto. Grande jogo esse! O deus Marduk como animal de estimação, mascote, cobaia; ele ajuda no jogo, ele experimenta. O texto. Vitalidade, compreensão, transcendência. Tempo, tempo, de nada.

Balé submarino das palavras. Evento despalavrado, nu. Um lance do acaso jamais abolirá o dado, na verdade ogatilho epistemológico mais rápido a oeste do ontos. 1968, 1970, velhas manias, velhas cartas endereçadas a um ivanovich qualquer.

Nos confins entrânhicos do singular, o famoso Geral. Captura doce e confusa a partir do ritmo próprio da escrita. Tema: na garimpagem idiota de um real calhorda, uma paixão imbecil (catastrófica). Projeto: Impostura a partir da qual ele deveria ser iniciado. Antigos hábitos dos que habitam parêntesis.

Sair da dor pelo lado oposto ao do analgésico. A tentativa canhestra de fundação de uma nova dimensão. Mar de impossíveis pontiagudos.

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Pessoas reduzidas às suas poucas fórmulas salva-vidas em meio ao naufrágio de rotina num caos brincalhão.

Palavras, pessoas, momentos, lugares.

Fundamentos para um tempo-de-ninguém.

Não se navega (e nem sequer se afoga) na dimensão amorosa, que é mágica, mediante a força propulsora do desempenho, que é escoteiro.

QUELQUECHOSERIE

…o pensamento anfetamínico de acender uma vela para Marx e outra para Spengler.

O homem contemporâneo é muito barulhento. Sozinho faz mais barulho que todos os seus precursores do ano de 1272, por exemplo. E é este barulho que o torna encantador (o mesmo se dava com o silêncio em relação aqueles).

E você eu quero que você saiba que eu te amo sem aviso prévio e que esta é a minha condição básica.

A guerra já estava no fim. Todos se preparavam para a próxima, na Ásia, nas portas de suas casas, em seus plexos solares.

Outubro de 1968: A – Porque você faz isto? B – Porque eu te amo! A – Você me ama! Você me ama como? B - Não sei. Quero te engolir! A – Eu não quero que você me engula!

Miss Minha Alma 1968 no enésimo movimento do meu caleidoscópio louco. A tristeza existe apenas para além do desespero, é a sua região fronteiriça com uma tranqüilidade que é a sensação mais intensa que pode habitarum corpo, filha do orgasmo com a eternidade, age sobre o movimento das marés e compõe música inaudível a partir dos anéis de Saturno, que nunca viu.

As pessoas continuam com medo (o medo é uma perversão da imaginação).

Arfando como um porco agonizante, o funcionário Abreu, homem gordo e dado a suores malcheirosos, fantasia-se com caretas inigualáveis enquanto trepa em sua esposa velha e peluda no leito de agonia onde ela nada mais faz do que peidar há dezoito meses. Os esforços do funcionário são consideráveis: ele joga sua bunda para trás e sua barriga para a frente, uma das mãos agarrada ao lençol encardido e a outra com os dedos divididos entre a boca e as narinas de sua senhora, que vomita com verdadeiro desgosto enquanto reúne dadospara alguma fantasia sórdida que a faça gozar rápida e eficazmente sem nada ficar devendo ao cônjuge. Ao sentir a proximidade do orgasmo, o funcionário Abreu despenca da cama e quebra oito dentes. Ele acaba por denunciar sua esposa à polícia e atualmente é visto durante a tarde entregue aos seus negócios na rua XV de Novembro, onde o vi ainda ontem, parcialmente tranqüilo.

"E um pensamento continuou a surgir-lhe no espírito. Que espécie de política nacional e internacional poderialevar um grupo de fanáticos religiosos a chicotear um dos seus membros por causa de uma guerra atômica?"

(The House That Stood Still) Van Vogt

Finalmente consegui obter os meios, agora faltam-me apenas os fins. Uma semana-laboratório, como todas as outras, com todos os seus maravilhosos minutos peçonhentos, uns atrás dos outros, incapturáveis e indesejáveis (ou então a razão é outra: em 1937 um intrépido escocês aprisionou silenciosamente um minuto que passava pela sua jurisdição; considerado contraventor em segunda instância, foi entregue ao minuto-prisioneiro como hóspede de seu núcleo, onde foi amaldiçoado com a Exata Noção do Tempo).

Seis de junho de 1968,

ao meio-dia e meio, hora local, chega a Paris a arma encomendada pela minha assassina para a realização do crime.

Antalogia poética de Dimitri Otropiev

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Eu te amo, eu te amo, eu te amo.

Incursão-excursão ao universo do discurso. Não há vítimas a lamentar. Não se lamenta vítimas, óão se lamenta. Não.

Nós nos conhecemos, finalmente, em 1926, por acaso, numa cidadezinha do centro-sul dos Estados Unidos. Ninguém sabia no que tudo aquilo ia dar. O meu céu da boca, seus lábios vaginais, nossas gargalhadas amorosas.

Em seguida, mas antes também, a tentativa de criar um mundo. Aqui se estabeleceriam pequenas leis estranhas que terminariam por determinar a infra-estrutura, metamorfoseando-se rapidamente em necessidades.

Sucede que nenhum dos nossos conceitos está de acordo com o umbigo das coisas, e assim não passam de instrumentos operacionais até certo ponto úteis na tarefa de manter e prolongar algo que não se sabe ao certo o que é. Temos acesso a uma insignificante partícula do processo, se é que se trata de um processo. Todo o conhecimento é uma antropomorfização sofisticada. Diariamente, em todas as partes do mundo, legiões de pessoas desertam dessa região criada por um delirante acordo implícito e tomam rumo ignorado. Não se sabe ainda se elas representam algum perigo para as demais. Teme-se que sim, e isto significa apenas que são estas pessoas que estão realmente ameaçadas.

1969. Um bando de desesperados reunidos em local secreto deliberou que a atual divisão do Tempo e tudo queela acarreta será modificada por motivo de higiene.

Roteiro inturístico de bizâncio para náufragos exaltados

Entrada e/ou saída do labirinto. Antes do labirinto ou não, saber se é ou não um labirinto: o labirinto. Milhares deanos para se ilhar com significados frágeis no cerne do nada (ou do tudo). Um momento dividido arbitrariamenteem milhões e bilhões de anos, uma divisão ilusória que pode ir até o infinito ou ao fim. Um momento esmiuçado.Vasculhando o momento, saracoteando sobre ele, a ilusão de que ele participa desta dança louca, fingindo simultaneidade total.

…O paisagismo ideológico. A melantropia. Primeira tesura. O som do mar é um mar de sons. Ouça o pôr do som, meu amor, antes que seus ouvidos sejam aleijados pelas notícias. Tudo muito antigo, desde agora. O varal onde a civilização foi posta para secar. O antigo Endpeleuto O’ Vascanton, precursor de si mesmo, como todo mundo. O velho Endpeleuto batendo seu velho record.

E mais:

Uma rosa-dos-ventos desfolhada que possui cauda e boca, inaugurando um canto do açougue do real, onde háuma balança de três pesos.

Tirar segundos do tempo (devido a uma explosão demográfica dos mesmos) e transferi-los para as quinzenas (onde há território eleático desocupado). O mês de fevereiro, facínora instantâneo, vai ao açougue do tempo pedir um dia: "Ah!… Desta vez me dê uma Sexta-feira!"

Biografia da ano de 1968

Ontem perdi mais um pouco de identidade, ainda tenho um pouco de medo (pretendo guardá-lo para alguma emergência).

HOMENAGEM A M., PRECIOSO FÊNIX. Uma vocação para personagem num estágio onde personagens não servem mais sequer para o serem. Mito dessacralizado e procurado pela polícia. Obsessiva, tranqüila, um ridículo zig-zag circular. Um dos melhores níveis de organização da matéria tendendo para o Inanimado. Sacrificada diariamente em período integral no templo do tempo para aplacar a ira do passado. Café da manhã de fantasmas. E mais uma porção de coisas incríveis que não servem para nada mas são muito importantes para tudo isto.

Prezado sr. Liu Shao Shi,

há vários anos acompanho seu lamentável caso através do meu. Ainda ontem – sic est mundi – errei brutalmente assim como anteontem. O mais provável é que se trate de um erro só, etc. etc. Não há de ser nada.

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Endpeleuto O’ Vascanton, em seus escritos de 1965, a propósito da literatura, ou mais propriamente de suas tentativas literárias, tem uma passagem onde coloca o escrever como "querer dar a vida a cadáveres irremediavelmente apodrecidos utilizando-se da morte mesma".

As causas da primeira guerra mundial vistas por elas mesmas

I

"Será que terei que fazer tudo de novo?" (declaração recente de Sisífo e Ray Coniff)

Desde ontem os parisienses começaram a se comportar como os óculos de Mme. Tilykaset, quando ela vinha da Cracóvia e M. Cazablonka ia para a Cracóvia e ela casou-se com seu caralho válido por 120 meses, separando-se ambos após o segundo pane e deixando de acréscimo do processo uma maquinazinha movida à sopa de abóbora com a marca Tolbiac Cazablonka, inconfundível ponto vivo de mal-entendidos entre a vagina cartesiana Tilykaset e o seguinte fornecedor de pretextos para a continuação de seu deselegante e desinteressante passeiozinho pela existência. Mas agora que a maior parte dos parisienses comporta-se como os óculos de Mme. Tilyka set se comportavam no caminho da Cracóvia, com Cazablonka, locomotivas capotadas e alucinações surgidas da sucessiva repressão da urina, Mme., com os mesmos óculos acrescidos de mais alguns graus, é observada (neste exato momento) por dois personagens que irrompem uniformizados edenotam serem pouco afeitos ao tipo de relacionamento que transparece nas palavras do primeiro deles, que está um passo à frente do outro e é menos gordo apresentando ainda assim bastante textura e que explica à Mme. Tilykaset que há uma gangrena no pescoço dela, um palmo exatamente abaixo dos óculos, e que sua cabeça deverá ser amputada sem perda de tempo. Ainda que ouvindo suas palavras, Mme. não encontra potencial de inquietação para abrangê-las, pois sobretudo encontra-se inquieta com relação ao segundo personagem, mais gordo, com os lábios rasgados pelos próprios dentes, sangrando constantemente, e que a rodeia forçando uma expressão de exuberância maléfica em seu rosto parcialmente devorado pelas moscas e pelos titãs noturnos subreptícios a mando de seu avô alquimista. "C’est le monsieur le taxidermiste", informa secamente e irado por não encontrar as repercussões desejadas de seu diagnóstico o primeiro personagem, Erwin Malakoff, talvez. "Bon jour, Mme.", cantarola o taxidermista, com seus olhos de esquilo que ele empalhou em 1958 brilhando embaixo de suas sobrancelhas desiguais (a da esquerda é art-nouveau, a da direita lembra um incêndio num liqüidificador, a conjunção perfeita entre ambas ele adquiriu num gigantesco naufrágio de mexicanos numa banheira negra, poucos anos antes de associar-se a Malakoff, que nessa época era apenas seu vizinho). E ela não sabe, apesar da longa militância no PCF e das longas horas entregues materializadas às dezenas de privadas nas quais sentava enquanto ligava os fatos e desligava os neurônios, que a cabeça era um velho pretexto e que somente seus joelhos despertavam paixões violentas e não cartesianas, e que o que eles realmente buscavam – Malakoff e seus instrumentos sangrentos, e o taxidermista lascivo – eram os seus joelhos: o esquerdo, protegido por Tolbiac Cazablonka. Incidente biológico produzido com a automática colaboração do antigo Cazablonka da Cracóvia, e o direito, patrimônio de novo proprietário, M. Gaston L’Arret du Disque, que tinha entre suas posses, além do joelho, umas dezesseis opiniões a respeito de umas nove coisas e sabia excitar Mme. Tilykaset satisfatoriamente, contando piadas obscenas com sotaque de turco e caretas aprendidas quando era assassino na Bélgica e matava à faca, com os esgares apropriados. E eis Mme.Tilykaset, toda menstruada, emergindo como uma forma fantasmagórica de dentro de um vidro de ketchup. Ela perfuma suas postulas esfregando-as contra incensos hindus que queimam lentamente. O taxidermista fixa seu olho oculto (mera apoteose da convergência de seus dois olhos durante qualquer êxtase barato de masturbadorocidental) nos joelhos de Mme. Tilykaset, agora parecidos com o PCF, irresponsável por eles e por toda a demaiscarne, mas embasador das joelheilhas vermelhas presas nos tornozelos de madame com o intuito de

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assemelharem seus joelhos ao PCF, e à calúnia, e ao assopro do aniversariante tuberculoso que apaga 229 velinhas com jatos de sangue, e à merda secreta contida pelo general simpatizante, e ao meteoro que ninguém viu. Os joelhos de Mme. Tilykaset são absolutamente desgraciosos e chegam a ser sórdicos; Gaston L’Arret du Disque não os considera como zonas erógenas, assim como Cazablonka anteriormente, o que transforma o taxidermista em precursor. Mas Mme. pode deixar o taxidermista desconcertado, e ainda jogá-lo contra Malakoff, o vizinho, salvando assim também sua cabeça, sua gangrena, seu amante – um anão amputado oculto no armário, na geladeira, no bidê e em sua bolsa verde onde se encontram também lembranças de Lourdes, lenços marcados com o batom de Stalin e saquinhos de traição em pó, para adoçar o leite coagulado que ela extrai de seus seios cancerosos para embebedar crianças cegas que arranham suas janelas e seus ossos, dia e noite, há dezessete anos, desde o primeiro olhar enraivecido até o último gesto amoroso de uma anta afogada em seu cio amazônico numa jaula na Prússia em 1715, durante o Incêndio, antes e além de Kant e dos monstros herbívoros pré-históricos que cultivavam a carência de dentes com lamúrios musicais que atravessaram as épocas e destronaram onze papas medievais quando já não podiam castrar amantes enlouquecidos, e então silenciaram e foram substituídos pelo saxofone. Madame, abruptamente, apalpa os ovos de Malakoff, expostos desde o início e manipulados constantemente por pessoas vindas de longe, com orientações políticas diversas e visões de mundo incongruentes. No taxidermista, o ciúme nasce no umbigo e percorre todas as fibras de seu corpo como ondas elétricas, na boca produz serpentina colorida que ele envia prontamente para Londres, para sua cunhada que as coleciona, Mme. Coopération Pharmaceutique Française talvez, uma mulher jovem e coberta de tentáculos utilizados para semear o terror a partir dos bueiros da grande metrópole. É nela que o taxidermista pensa quando arranca um artelho do próprio pé e avança brandindo-o ameaçador em direção aos joelhos PCF de Mme. Tilykaset, já farta dos ovos de Erwin Malakoff e por isto chorando lágrimas que lambuzam sua gangrena provocando um forte odor de frutas exóticas que desperta ereções ocasionalmente inexplicáveis nos cômodos próximos. Agora ela está alheia ao furor com que o taxidermista esfrega o artelho ensangüentado contra seu joelho direito, o de Gaston L’Arret du Disque. Gaston está ausente, na cozinha, no metrô, no Sol queimando os pelos, na cadeira elétrica, tomando milk-shake, e os três náufragos da inundação de vísceras evitam fazer concessões uns aos outros – não colaboram, apesar de não se boicotarem. Malakoff é vizinho e associado do taxidermista. A cunhada do taxidermista foi morrer em Londres. Gaston L’Arret du Disque, zoófilo, apaixonou-se certa vez por Mme. Tilykaset, durante um mal-entendido, numa praia de pedras. Tolbiac, antes facilmente manipulável (Cazablonka introduzia na sua bunda enquanto ele penetrava Mme.) continua crescendo e reivindicando aposentos. Cazablonka enloqueceu na Floresta Negra, com o pâncreas à flor da pele. Madame trancou-se atrás de um NÃO histérico. O PCF apodrece no pequeno WC da História, com cancro duro. Começam a aparecer pontinhos nos anéis de Saturno, e o Tempo,de óculos escuros e mãos ao alto, passa rasteiras que dão tombos pesados em quem passeia sozinho no inferno.

II

"Estou em Bruxelas, no coração parado do Sistema Solar, num quarto cheio de circos, - onde o trapezistadespenca sobre o palhaço, - e de montanhas-russas cujas descidas, por serem infinitamente mais longas que

as subidas, obrigam a construção a estender-se até o inferno. O tanque da nave está nas últimas reservas,apenas com o combustível suficiente para sempre".

(de um folheto distribuído semanalmente no Senado venezuelano)

Não pense que a coisa é como você está pensando, ela é o Deus de Santo Agostinho, mas é de carne, de carne moída. E tudo isto não cria criaria talvez criasse conflito ou mal-entendido ou vácuo algum e não sei porque estou escrevendo isto e por isto algo deve estar errado e muito certo de repente e você sabe que há uma maneira de pôr o dentro para fora que eu precisava escrever também um pouco e que nunca mais escrevonada e que não tenho mais sequer medo de escrever e que isto não é muito perigoso nem ridículo e se fosse não era. Fumaça saindo pelos poros. O peito explodindo junto com a explosão. E tudo o que é delirante e intenso e violentamente humano de céu e inferno e morte e salto triplo e carga de cavalaria e nó no arco-íris o beiso de rinoceronte e os gestos descontraídos e maravilhosos da Bela Adormecida no Açougue. Vou morrer aqui de repente durante dez anos, e esfregando sangue no rosto como pintura de guerra e prosperidade visceral. O almirante Gustavo Sec ou à L’Eeau delira com hipotenusas machucadas que soçobram na parte esquerda de seu projeto principal e descontraí-se facilmente enquanto as pessoas com a mesma idade cultivamsobrancelhas que proliferam no leito carroçável da Rue Monge, onde paraplégicos endemoniados juntam-se embandos e correm uns atrás dos outros enunciando mentiras aristotélicas de quarenta anos atrás na secreta esperança de ascender rapidamente ao generalato cosmogônico, opondo-se desta forma, irremediavelmente, à grande proposição amorosa, que escaparia entre seus dedos sem que ninguém percebesse ao longe o ligeiro eúmido apertão nas tripas de alguém irado e que cuspiria cores correspondentes a notas musicais ainda não

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executadas e a morte não seria nada diante da grande alegria bi-humana de se destruir em cacos caleidoscópicos numa calçada verde de avenida de teia de aranha possivelmente calculada com uma extremidade daqui por diante inevitavelmente vestigial e alucinada. Então, não restando alternativas na conexão14 BIS e PÃO DE MEL DA CARNE, no último despenhadeiro, com rochas gritando vida para vegetais lascivos e pares de borboletas desenfreadas com suas cores de larva destruída, seres desprovidos da enfermidade 926 falarão coisas que incomodarão profundamente a Grande Orquestra do Tango Vespertino Ocidental, em todas as margens do Atlântico, até então uma árvore de ossos embranquecidos com maquilagem bíblica e assassina cuja lâmina se chama a si própria de Tempo e cujos propósitos passam permanentemente desapercebidos por pequenas ruelas onde todos estão de costas para a História quando ela tira a roupa e abre a grande boceta de alguma transição mesmo para os naufragados de menos de quinze dias com seus olhares santificados pela apatia do calvário semanal da bicicleta cristã entre os olhares intransponíveis de bactérias fugitivas que passamuma de cada vez, cuidadosamente, cada vez mais, até que não reste senão um cancro no lugar da lua pingando pús na pequena noite ocidental, a que se inicia para uns depois do jantar e para as motocicletas durante a orgia em que velhos amam crianças aos gritos de SOMOS ANTIGOS MORCEGOS! ou MAIS VIDA AO ALPINISTA 821!(que entregou sua veia aos carrapatos e demoliu antigos conceitos vigentes nas farmácias de Lisboa, sustentáculos inesquecíveis de um compromisso com a solidão sem perceber que gente é para entrar dentro e ficar lá, amando e esfolando a vida, inutilizando lentamente a rosca do parafuso, apontando o lápis até o toco para escrever mais, e que é necessário acabar-se como um sabonete, percorrendo a pele e penetrando os poros, as vezes silenciosamente, para sempre.

III

"Nada ainda. Novamente nada". (dito por um dos soldados que incendiaram Joana D’arc)

Incêndio no posto de salva-vidas. "Obrigado", dizem os mortos enquanto cavocam a terra com seus dedos secos e olhos sem brilho. É uma tarefa para muitos minutos, sobretudo para um deles, que abre a armadura e caminha para o bosque mastigando uma catástrofe com o canto da boca enquanto crianças musicalizadas brincam de vulcão em camas que se quebram ao primeiro sinal. Em algum leito disposto às pressas pode-se pedalar um pesadelo trazido de maca para a vigília com a violência de um tiroteio no útero. Dançamos sempre como se dançava antes dos musicais da Metro, entre javalis alucinatórios e tonéis de mostarda com a forma de criaturas giratórias que gritam e gritam. Ainda ontem deitei com um século de pegajosidade média, era uma negra de olhos de frutas com promessas impossíveis e fios de arame. Sua atividade consistia em fazer com queseus olhos apodrecessem enquanto frutas e ela dissolvia-se negra com ópio e tentativas desesperadas provocando grandes levantes amorosos nas costas da Polinésia e revoluções complementares em satélites artificiais movidos a lágrimas de hiena em redor de um dos planetas que ainda mantinham sua esfericidade interrompida pelas marcas de estranhas e comunicativas mordidas. Levava também a cabo grandes catástrofesque se beijavam na boca através de relâmpagos e deslocamentos de massas com ruído de tambores e relógios. Transportei minha língua ao Alaska para encontrar a sua vulva, assim como ela comeu meus olhos emSaturno com um pé em Mercúrio e outro balançando e roçando cometas e avenidas asfaltadas que atravessam galáxias disfarçadas de requerimentos eletrônicos. Fizemos delirantes manipulações fetichistas com o Tempo mancomunado coma roupa de baixo. Numa ménage à trois com a História fomos bilhões e bilhões que se acoplaram em enormes pirâmides humanas dispostas desordenadamente no interior do delírio de um louco quese afoga lentamente em sua própria baba. Fomos causa remota de um olhar desesperado e de um incêndio incalculável em florestas e cidades vinte e cinco mil anos depois, com o corpo humano disposto já de forma a não ser queimado mas afogado pelo fogo. Brincamos, enfim, de morrer juntos, fazendo cócegas mutuamente para não encontrar a morte destruindo os maxilares numa tempestade de bocejos intermediários.

Prezado senhor de Todo o Seu Tempo & Espaço, venho por detrás desta salientar algumas saliências em relação a uma relação relativa. Pois relatando o relacionamento entre uma relação relacional e uma relação relativista apenas relaremos no relato para só então relacioná-lo com o relatório. Diríamos que é apenas mais um caso de Inépcia IV. Mas no entanto não. Populações inteiras sucumbem à loucura entre uma vogal e uma consoante de alguma palavra perdida nos confins prosaicos de algum provérbio, o que por si só clama por providências proverbiais, se tanto. Neste meio tempo, psiques berram como euzinhos desegados. É o fim do meio, exatamente – por assim dizer – no meio do fim. E o que Mais, senhores? – Tudo também, & mais alguma coisa (ou algo).

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Poucos metros além dos esconderijos tudo é extraordinariamente intenso e perigoso.

A. e B. deixaram seu aposento para dar uma volta no quarteirão. Na terceira esquina do mesmo surge C, cuja maneira de coçar o joelho fascina irremediavelmente B, cuja vida até então era uma entrega total à A, que a partir deste momento toma conhecimento de nuances de fragilidade do sistema nervoso humano.

E ninguém é suficientemente forte para chegar a compreender visceralmente que esta força consiste em se tornar totalmente vulnerável, num ponto em que um simples arranhão é um ferimento mortal.

Impressões de Edward Hopper, do próprio às suas supostas vítimas

"I am always like a tiger I am ready to jump…"

Bessie Smith

Immanuel Kant, já com um bigode de mosqueteiro e extremado em seu gesticular feminino, no centro da Prússia, sapateando delicadamente sobre um canteiro de gerânios, está sobremaneira atento aos informes relativos a recentes descobertas no campo da zoologia que lhe são minuciosamente transmitidas pelo "crooner"Joe Primrose num de seus melhores momentos. A cena se é que se trata de algo assim – atrai a curiosidade (discreta) dos habitantes da região, comumente preocupados com intrincadíssimos problemas fronteiriços a ponto de deixarem definitivamente de amarrar os cordões de seus sapatos. Durante a preciosa troca de informações, Kant e Primrose estão atentos em relação a Edward Hopper, que oculto por trás de uns arbustos prussianos observa-os cuidadosamente, pensando em imobilizá-los, constantemente ciente de sua condição devariável.

A propósito do farsante, vítima no universo do discurso da conotação pejorativa da palavra que o designa. Ele pode ser autêntico na inautenticidade e isto é um requinte da dimensão humana. A dimensão humana mesma é um requinte.

O método Stalinlawsky aplicado ao teatro rebolado

A ferramenta. A linguagem é a Quinta coluna do absurdo na dimensão humana. Infiltração perfeita com nuancesde chantagem. O pacto de não-agressão se dá nas entrelinhas do universo do discurso e não é respeitado por nenhuma das partes. Missão secreta: a linguagem como fortificação humana contra o absurdo penetra o território deste último e dele participa. Repentinamente percebe-se que houve a invasão; desde o início, para escapar do incêndio, o homenzinho voltou contra si um lança-chamas de sua própria fabricação.

Senhoras e senhores, com suas alcunhas oficiais e infecções sorridentes, morrendo vivos na defesa do século XVIII, antigo personagem de discussões tediosas e bílis de tiroteiros. Eu me recuso a antropomorfizar qualquer um de vocês, e ainda os chamo de senhoras e senhores. O sr. é a favor ou contra a pena de morte, isto é indiferente, o importante é que o sr. casou e fodeu sua mulher com ela em decúbito dorsal, num dia fértil, dandoorigem ao serviço militar e ao ato institucional nº 19.

Amar a humanidade é uma manifestação de coprolagnia. Três bilhões de pessoas não têm nada a ver com gente.

Anteontem eu apunhalei o pescoço do tigre por debaixo da mesa, isto devido ao seu olhar amistoso que dizia "vou te estraçalhar carinhosamente". Este foi o meu erro. O punhal penetrou superficialmente a carótida e o tigre ensangüentado se pôs em meu encalço; eu havia abandonado a arma enterrada em seu pescoço ao sentiro primeiro jorro de seu sangue quente e pegajoso em minhas mãos, e agora ele me perseguia com a faca balançando numa chuva de sangue, ainda com o mesmo olhar acrescido de um "por que você fez isto?"

No início era um minúsculo tigre muito carinhoso e parece que nossas vidas estavam intimamente entrelaçadas.Mas eu virei-me por alguns segundos para observar umas imperfeições na parede e quando me voltei ele atingira proporções descomunais e propunha-se a me devorar, sem que eu pudesse culpá-lo, pois era impossível que ele deixasse de tentá-lo e estava mesmo já conformado com isso sem que a ternura anterior

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houvesse desaparecido. Por algum motivo que me escapa, eu tinha que impedi-lo, isto também era irreversível. Foi então que mandei buscar a faca enquanto meus braços cobertos profusamente de pelos (nessa ocasião eu era uma espécie relativamente poderosa de símio) seguravam firmemente o pescoço da fera e nossos olhos se fitavam explicitando todo o absurdo de nossa situação, o que me levou finalmente à decisão de executá-lo por debaixo da mesa, sem olhar.

Mas me parece que esta perseguição não tem fim. O que narrei até aqui foram elocubrações que me surgiram durante ela, pois tenho quase a certeza de que sempre houve a perseguição. Às vezes tenho a impressão de que um de nós ganhou alguns milímetros sobre o outro, mas ou isto não passa de uma impressão ou a diferença é logo em seguida anulada. Às vezes eu também chego a me perguntar – devido à simetria de nossa situação – quem é verdadeiramente o perseguidor, se é que se trata realmente de uma perseguição.

No salão nobre (em forma de funil) da Sociedade dos Amigos das Águas & Esgotos, 1954, Segunda Etapa, logoao amanhecer, como se pode ver a olho nu na fotografia, o terceiro a contar da esquerda para a direita, na quinta fila, de pé, núncio apostólico de um antigo antipapa polinésio junto ao infra-governo binário cuidadosamente elaborado num rincão mongol do Império Russo, queixa-se amargamente de concepção de Tempo vigente ao nível da Dimensão Humana, da Dinastia Ming à Tordesilhas, por todos os lados menos por um que é quele que leva ao continente. Criaturas odiosas e repulsivas acorrem de todos os lados até porem-se ao alcance de suas palavras, que é quando adotam uma postura de tranqüilidade incompreensível que leva os que chegaram antes do desgosto profundo e ao vômito abundante, como se estes não tivessem chegado pelas mesmas vias e adotado a mesma postura (o que deixa bem claro o quão é efêmera a atitude dos recém-chegados, ao menos que – e alguns contam com isto, o que é suficiente – haja, não se sabe como nem porque,uma inexplicável ruptura no processo todo que introduza um novo leit-motiv na já insuportavelmente asquerosa sala de espetáculos).

Nenhum deles poderia pensar em pedir mais de uma quarta-feira, e na verdade isto nunca ocorreu a nenhum deles e em particular ao conferencista, que apenas cumpre ordens.

1969 & a conquista da lua

Um cansaço dificilmente observável na superfície deste planeta de homens tão laboriosos. Entre um bocejo e outro a polícia chega na Lua. O domingo é preenchido pelo aborrecidíssimo espetáculo de um humanista pescando um bagre: ele joga o bagre na calçada, chuta-o, humilha-o, cobre-o de injúrias e facadas. Nesta alturajá não é mais necessário que alguém chegue à Lua, basta a Demonstração do bagre, e o Ministério da Justiça, e os Cigarros Mentolados, e a Indústria Automobilística, e o Conceito do Eterno Retorno do Sempre Idêntico, a Imagem de Deus, a Gripe Asmática, as Implicações do Hímen. Somos a espécie que mais se diverte entre toda a fauna terrestre. Temos o Céu, o Inferno e o Mercúrio Cromo.

PROCURA-SE AUTO CONSUMIDOR PARA CONTRA-REFORMA

DE CÍRCULO VICIOSO

ALUGA-SE SER EXALTADO PARA BRINCADERIAS DE

MAU GOSTO PEDE-SE DESCULPAS POR TERCEIROS

A IMPORTÂNCIA DE. As coisas não são importantes, ao menos à maneira do universo do discurso, com seus gracejos lógicos. De qualquer forma, todos continuam se comportando como se tivessem algo a perder; nesta brincadeira os minutos são importantíssimos e passam a não valer nada. Algumas reclamações.

A tradução do passado: eu o perdi. Minha memória já não para de gritar.

A existência de uma época caracterizada pelo anti-herói é a prova da perversão da seleção natural ao nível da dimensão humana. Há um desequilíbrio, e o inferno é um lugar refrescante e tranqüilo onde só você é queimado e suplicado. O inferno, onde se brinca de brincar.

A América do Sul em 1970. As cuecas encardidas dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Trata-se de uma espécie de carnaval bem comportado num rolo de arame farpado. As vantagens do sistema de iniciativa privadaem relação ao stalinismo consistem na maravilha de uma pluralidade de stalins. Um universo de vítimas é deplorável com seu cheiro insuportável de covardia; a vítima é sempre o seu próprio carrasco, devido ao seu

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medo de ser ainda mais vítima.

The game named gambler

Partindo de uma impossibilidade para momentos, extremamente luminosos frutos de terríveis escavações feitascom as pontas dos dedos. O corsário não quer a rendição de sua presa, o preço do brilho de seus olhos é muitoais alto. Em alto mar, durante qualquer borrasca, a escolha da necessidade entre a contingência é aleatória.

Míssil intervalístico

Endpeleuto. Nem suficientemente louco nem suficientemente lúcido. Tentando se distrair, ou procurando ficar atento (o que seria uma forma sofisticada de distração). Escrever. Isto não é coisa que se escreva. Os "malditos" da literatura do século passado certamente eram felizes como uma tribo primitiva ou arcaica, inclusive Rimbaud. Os que se desesperam na literatura contemporânea não deixam também de estar salvos: o desespero, depois de um banho de abecedários, é um tranqüilizante. Kafka, Beckett, essa série de filhos mimados do absurdo. É divertido mentir a verdade, é uma espécie de astrologia instantânea. E de novo mesmo somente novas interpretações do velho. Variações sobre um mesmo tema, que é uma variação. Quanto ao mistério, ele é tão misterioso que é como se não fosse. Será que este piano só tem uma técia? Revelar o que? Ou é um caso de prestidigitação?

Ou tudo ou nada. E isto já é uma terceira alternativa.

A contingência, e não o trágico. O tempo, e não o absurdo. E não há mais enredo. Cada personagem é substituída por uma pessoa entregue à miserável (maravilhosa?) travessia dos minutos. Proust faliu e o Real voltou ao poder, multifacetado e filho da puta (como em Proust).

"Incrível! É insuportável mesmo!" O tom de voz era de surpresa e de espectador. Os Profissionais do Insuportável, dopados, chorando pela tristeza perdida, arranhando as portas fechadas da História.

Para Leon Trotsky também, as coisas não deram certo. Leon Trotsky é o nome de uma tentativa, havendo também um indivíduo com este nome – o que de certa forma indica por que as coisas não deram certo. Ainda não se sabe exatamente o que é "dar certo", há apenas alucinações a respeito.

O corsário, absolutamente encurralado na vistoria ansiosa dos esconderijos. Está em estado de tensão, se tenta relaxar adormece. Tudo muito novo e ele nem sequer envelhece. Não morre enquanto está vivo e não enloquece enquanto não enloquece. Está muito tenso.

Voltaremos ao assunto com mais palavras.

Aqui. Um bocejo cercado de úlceras e enfartos por todos os lados menos por um que é aquele que leva a um bocejo cercado de úlceras e enfartos por todos os lados menos por um que é uma questão de tempo a ser preenchido desde que começaram a achar que tempo é uma coisa ou um processo que existe e que nossas relações com ele são simples e sinceras consistindo em que nós o preenchemos (com merda, com isto, com a vida) e ele nos mata, vampiro eterno instantâneo, e isto é tudo que consigo fazer agora, sobre isto, nada, escrevendo mais um requerimento ou um mandato de segurança pedindo o sagrado de volta, em qualquer esconderijo doce, na História, na arte, no amor, na Lúcia, em mim, na memória, na trapaça, no psicanalista, no mito, no abecedário, que tampa precariamente os enormes rombos no dique que segura a indiferença furiosa do vácuo.

A única gravata borboleta holofótica da obra de Juan Miró

A propósito dos propósitos do texto logo no início do mesmo daria margem a fracassos insuportáveis no campo das letras, cada vez mais pesadas e sem sentido, o que não é justo. Justo seria a narrativa narrar-se a si mesma, através de suas aventuras e desventuras abecedais enquanto discurso.

Hábito

"…sem coragem para acabar nem força para prosseguir". S. Beckett

I

Acho que devo iniciar tudo isto (que talvez eu possa delimitar e explicitar mais adiante, mas provavelmente – e decerto – não o farei, por motivos que apenas a totalidade da empreitada pode apresentar) introduzindo o rato

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que encontrei nos jardins da Biblioteca Municipal e as circunstâncias em que o encontrei, sobretudo – malgrado o rato, ele mesmo, possuir maior carga de importância do que as circunstâncias nas quais decorreu nosso encontro – circunstâncias sobremaneira penosas, cuja pena é dividida proporcionalmente entre o rato e eu (proporcionalmente, digo, em relação ao sofrimento físico do rato em questão e ao mal-estar angustioso que mecausou o supracitado sofrimento) – uma vez que são estas circunstâncias que introduzirão de certo modo o ratoe salientarão certos aspectos seus que eu considero fundamentais, assim como, de entrada, caracterizarão aspectos de minhas relações com o rato, vindas à superfície exatamente por meio destas circunstâncias que decerto modo são extremas. Assim, devo iniciar afirmando que, estando de passagem (é o que posso afirmar de momento, pois é normal eu estar de passagem, sendo tudo o que faço, apesar de afirmações posteriores poderem insinuar outras atividades minhas que já aqui asseguro serem secundárias e desprovidas da importância – importância para a narrativa, não para mim enquanto eu e muito menos para qualquer das pessoas ou objetos com as quais mantenho qualquer tipo de relação – que reveste a minha atitude – a única – de estar de passagem) pelos jardins da Biblioteca Municipal, deparei-me com algo que eu chamaria de cena, não fossem certas implicações que não o permitem, tais como meu envolvimento – que recuso-me a chamar participação – e que me foi extremamente dolorosa. À distância de um canteiro – e aqui devo talvez esboçar a primeira tentativa de descrição da cidade onde se encontram tais fatos, pois referindo-se a esta cidade, que daqui em diante chamarei a Cidade, os fatos, longe de acontecerem, encontram-se já nos seus lugares, completos, acabados, fechados em si mesmos e totalmente invulneráveis a qualquer ameaça de desenvolvimento temporal ou espacial. Assim, os seres que se encontram dentro dos limites da Cidade, podem ser, ao primeiro contato, para facilitar o contato, divididos em três grandes grupos, que são os habitantes, isto é,aqueles cuja característica fundamental é preencherem a Cidade com seus corpos, recebendo em troca uma impecável catalogação através de números que lhes são conferidos um tanto arbitrariamente, uma vez que o critério adotado para a numeração corresponde às datas de nascimento. Quando sucede algo a um habitante (dentro, é evidente, dos limites do acontecer tal como ele é possível na Cidade) este é levado – não é bem este o termo – à categoria de personagem. Um personagem é um componente do segundo grande grupo, já menor do que o primeiro, mas que segundo os habitantes tomados em separado, o que é difícil, um por um, é o maior e o único núcleo que dada a sua densidade poderia ser chamado de grupo, pois cada habitante julga-se uma personagem e todos eles iniciam suas conversas com um "- certa vez…", que antecipa mesmos os cumprimentos de praxe, que são dados no meio da narrativa, distraidamente, pois a narrativa é o ápice do hipotético acontecimento e assim não pode nunca ser tomada como parte de uma conversa, sendo a conversa tida como a única atividade invulnerável a acontecimentos. Assim, os habitantes evitam dialogar, passando a narrar diretamente, sem passar pelas praxes do diálogo, tais como os cumprimentos. As personagens comportam-se identicamente aos habitantes, com um pouco mais de furor nas atividades acima descritas, e é talvez isto o que os diferencie, no plano da observação, dos habitantes. O terceiro grupo, ínfimo diante dos dois primeiros (segundo as opiniões), é composto de pessoas. Assim como a imensa maioria, eu nunca as vi, o que me impede de entrar em considerações a respeito, mas sabe-se que o meio mas eficiente e mais empregado para um habitante transformar-se numa personagem é dirigir suas forças – ou pelo menos tornar a todos cientes disto – no sentido de tornar-se uma pessoa, apesar de poucos – ou ninguém – saberem exatamente quais são as características deste terceiro e último grupo de cuja existência física chega-se a duvidar. Malgrado parecer ociosa, esta descrição do recheio da Cidade é importante para os fins a que me dirijo introduzindo o rato no universo do discurso. Assim, à distância de um canteiro do lugar onde eu me encontrava, meus olhos encontraram uma figura da qual guardo uma lembrança imprecisa, talvez, o que é mais provável, pelo fato da própria figura ser imprecisa e da qual eu só poderia afirmar tratar-se de um homem magro, vestindo (neste casosendo vestido, pois lembro-me de ter tido a impressão de estar diante de alguém que ao sentar-se para comer éimediatamente comido pela comida) um terno branco, e de expressão desagradável, sobrancelhas polpudas, descabelado (cabelos negros e empastados de brilhantina, ou tinta, ou pixe, ou cuspe) e que no momento dedicava-se a espremer um enorme rato com sua mão direita, o que me fez mergulhar em profundo pânico, fazendo mesmo com que meu coração disparasse e eu fosse invadido por uma terrível tremedeira, devido, talvez, principalmente, à expressão do rato, que era humana – por causa de seus olhos (que me olhavam, fazendo com que eu passasse a amar o rato) enormes, de cor indefinida, com um prolongamento para baixo a se aproximarem do focinho como se fossem expandir-se pelo rosto (rosto) ocupando-ototalmente – característica de olhos que só olham fixamente, e que portanto sãopassíveis de infinitas interpretações às quais o intérprete estará indissoluvelmente ligadopela força invencível das mais atraentes promessas falsas. Eu, covarde e só, observava,atravessando pela fúria e pelo medo. Sou dos que buscam a partilha, toda a carga émaior do que as minhas forças, divido o perigo, a desgraça, o prazer, o medo, a ação e aúnica morte cuja idéia não me arranca suores é a morte bem dividida, o que me tornanum adepto das guerras, dos cataclismas e das epidemias. E é a necessidade dapartilha a única motivação desta minha empreitada em que busco apreender alguns

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aspectos das minhas relações com o rato e espalhá-los entre os que me rodeiam. Desta forma despertei a revolta e a ira de alguém muito forte que joguei contra o atormentador fazendo com que este desaparecesse do meu campo de visão (evitei presenciar o decorrer do processo pelo qual meu sócio e irmão e aliado e companheiro de trela – o que realmente puxa o veículo enquanto eu apenas movo as patas com medo de que se o fizer o veículo virá sobre mim – afugentou o atormentador do rato que eu havia começado a amar). Tampouco vi – e se o vi não me recordo – o desaparecimento do aliado. Restou o rato e a minha tarefa.

II

Não se trata exatamente de uma tarefa, mas de algo que, fora dos limites da Cidade, seria considerado como uma proposição de vida; entretanto, aqui, a vida, tomada em toda sua extensão, no decorrer de todas as sutilezas do aparelho respiratório, é tomada como entretenimento (sendo o entretenimento algo um tanto difícil de explicitar, mas que por analogia com a existência vigente fora dos limites da Cidade poderia-se definir como o equivalente que aqui temos do que eles, os de fora, denominam vida, e simultaneamente o paralelo do que entre eles é tido por um entretenimento) e assim, a própria palavra tarefa torna-se um tanto pesada, mas é, talvez sem dúvida, a mais apropriada para englobar o conjunto de minhas atividades em relação ao rato e em relação às minhas relações com o rato, que é do que tanto aqui tratar. Pois o rato, ao ser espremido, espirrou para fora todos os líquidos que encontravam-se em seu corpo, num jato intermitente onde o sangue confundia-se com a urina, com o suor, e sobretudo com o equivalente da bílis encontrável no organismo do rato; tudo isto saíra pelo seu focinho, compondo o aspecto mais lamentável de todo o processo, e deixando o rato, assim como o recolhi, perfeitamente seco. Seu corpo tornara-se extremamente fino, adotando uma forma cilíndrica semelhante à do lápis, à exceção de sua cabeça, que, talvez surpreendentemente, mantivera-se intacta, assim como a expressão que doravante seria meu cativeiro (se é permitido falar-se aqui de cativeiro, uma vez que o espírito da Cidade a isto se opõe, oferecendo (impondo) outra espécie de cativeiro que não esta relativa a uma expressão e à ligação por ela gerada, e que, ademais, comportaria qualquer nome que não o de cativeiro). Deste modo, após ligar minha vida aos resquícios de vida de rato por liames que aqui, lançando mão de uma generalização indecentemente fácil, chamo de amor, vi-me, repentinamente, lançado na empreitada de empregar o resto de meus dias e noites à reconstituição do rato, o que seria o que aqui denomino tarefa – minha tarefa (malgrado ela não ser necessariamente minha, como tudo o mais) – nascida, indiscutivelmente, das afinidades entre a invocação do olhar do rato e a minha predisposição a esta modalidade de invocação, quetalvez seja a minha característica preponderante.

III

Tenho-o diante de mim, como sempre o esteve. A posição é a mesma de ontem, e dos dias e noites anteriores –que são em número suficiente para formar um rastro no tempo que pode ser tomado como rastro – um estreito cilindro dobrado ao meio quase a ponto de formar um ângulo reto, tendo na extremidade superior o rosto cheio e amargo, caracterizado pelos dois enormes olhos que sempre me olharam tanto quanto eu sempre os olhei, olhando e sendo olhados como olhos, trazendo portanto todos os significados possíveis em se tratando de um olhar, cujas probabilidades alcançam o infinito – daquele olhar, particularmente, considerando-se que à parte o focinho, ainda levemente notado, era tudo o que restava de um corpo e de um rosto do qual mesmo antes fora o ponto polarizador. Entretemo-nos, o rato e eu. Após os desânimos, ansiedades, angústias e desilusões dos primeiros tempos tudo foi-se tornando cada vez mais fácil, e agora o é sobremaneira, o que introduz uma ponta de angústia em nossas relações, ma apenas uma pequena ponta. Ele piora constantemente, nunca até à morte ou à perda dos sentidos, mas sempre progressivamente, o que noto pela sua cor, um misto de amarelo e roxo que revezam-se pelas zonas do corpo e que desbotam aceleradamente, estando já num ponto em que um observador recém-chegado, não familiarizado aos sintomas do rato tanto quanto eu, que o hábito há muito, não discerniria duas cores, mas, longe disto, perceberia apenas um vago bege, um pouco manchado da mesma cor um pouco mais escura (ou escurecida) em determinadas partes, notadamente em redor dos olhos, que, malgrado profundamente enfraquecidos, mantêm ainda a expressão que me diz respeito, que é de apelo desesperado, promessa e intimação. Por outro lado, meus esforços em reconstituí-lo são proporcionais à sua piora, o que faz com que eu não mais durma ou saia daqui, onde o rato está defronte a mim, para ir ao jardim da Biblioteca Municipal, como o fazia outrora, para procurar um rato, talvez, ou algo que não fosse um rato, mascom a certeza de achar apenas um destes pequenos e sórdidos animais extremamente amorosos. Assim, tanto ele como eu, sabemos que a melhora não sobreviverá, tampouco a morte, ou ainda uma diminuição – por ligeira que seja – na progressiva piora de seu estado. Mas isto, esta certeza, não faz com que seu olhar revista-se de outro significado que não este que lhe confiro agora e que é o mesmo que lhe conferi quando de nosso primeiro e decisivo encontro, assim como, ainda, faz com que eu cogite de abandonar ou diminuir meus esforços no sentido de reconstituí-lo, introduzindo, como eu faço daquele dia para cá, líquidos pela sua boca incessantemente, dia e noite, líquidos que não sei mais de onde vêm, e que talvez venham de mim, desde o

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início, e para sempre.

Mundo

"Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!" Dante

I

E entre o vigésimo e o vigésimo-primeiro andar, com o ronco que significa a desistência da máquina, o elevadorimobiliza-se e São Simeão Estilita vê-se subitamente encarcerado em caráter definitivo. Não denota surpresa nem irritação, ou antes, é o homem vestido com um terno branco cujas barras das calças um pouco curtas impedem-no de sentir-se totalmente seguro (mas ele faz estranhas associações que o levam a Aquiles e sente-se plenamente justificado), com os pés firmemente sobrepostos a um tapete de borracha, que por encontrar-se preso num elevador experimenta levemente tais emoções. Mas este pouco tem a ver com S. Simeão, que por detrás de um rosto fino e anguloso parcialmente protegido por um geométrico cavanhaque, transporta a incomensurável magnitude de milhares de intenções destinadas a dar-lhe uma dimensão tal que dificilmente seria abrangida por um homem magro que veste um terno branco e no momento em que se encontra trancado no elevador tem como preocupação imediata (e portanto única) o acesso ao vigésimo-nono andar, onde necessita tratar de assuntos relativos à sua pessoa. São Simeão Estilita, pelo contrário, sente-se inapelavelmente perdido, falta-lhe o ar; mas assim já se encontrava ao entrar no elevador, e antes ainda, ao dirigir-se para o prédio agarrado a um pequeno papel coberto com um endereço, e muito antes, quando muito jovem ainda, descobrira a terceira pessoa do singular e todas as suas prerrogativas. Assim, São Simeão não vive o inesperado, nem ao menos um novo aspecto de uma tragicidade que talvez lhe agrade. O Estilita vive momentos realmente terríveis, seu medo reveste a tudo com tal intensidade que ele sente profundamente sua existência, ou pelo menos assim pensa.

II

Passados talvez dez minutos, já o Estilita considera sua situação como surgida junto com sua existência. Foi dentro daquele elevador que ele sempre esteve e ali passará o resto de seus dias. E as paredes de madeira envernizada, com suas nódeas obcecantes, sempre foram a sua paisagem. E as frestas da porta, que levam aovigésimo e ao vigésimo-primeiro andar, onde se escondem olhares terríveis com seus juízos implacáveis, sempre foram os seus temores e as suas motivações. São Simeão Estilita está encarcerado, esta é a sua proteção, e é dela que nasce sua extrema vulnerabilidade.

III

Defronte ao santo está o painel de botões, e entre os botões, impondo-se ao olhar do Estilita como uma provocação, está o botão vermelho de emergência. Mas a tragédia de São Simeão Estilita é demasiadamente grandiosa – é uma tragédia, basta dizer – para que o simples calcar com um dedo uma pequena rodelinha de plástico possa pulverizá-lo. Assim considera o Estilita a alternativa do botão de emergência, e suas relações com ele variam entre o espanto e a raiva. Nada anseia o santo com tanta intensidade como sair de seu cárcere,é demasiadamente penosa a limitação num espaço de menos de um metro e meio num elevador de tão pequenas proporções como é aquele no qual se encontra encerrado Simeão. Não há ar suficiente, nem liberdade de movimentos, afora a solidão, que é terrível, e os olhares silenciosos que espreitam inexoravelmente esperando pela menor atitude menos digna do santo para então condená-lo, e para isto é suficiente uma expressão qualquer, um muxoxo, talvez, ou a introdução de um dedo numa das narinas, ou uma lágrima, com certeza. E o santo move-se com extrema prudência, nem mesmo seus pensamentos parecem estar a salvo, e diante disto seu estômago comprime-se e ele deixa-se percorrer por calafrios e dominar por tensões insuportáveis. E é esta sua situação até o fim de sua vida; diante disto como seria possível – ou mesmoapenas verossível (o verossível não existe para o protagonista de uma tragédia) que um gesto tão pequeno, como é o de calcar um botão, pudesse literalmente salvá-lo? Por outro lado esta é uma perspectiva mesmo desabonadora e odiosa. Pois uma facilidade destas só pode diminuir, rebaixar até o ínfimo, a tragédia de São Simeão Estilita, e sobretudo ele é o homem que vive uma tragédia, talvez não pudesse vir a ser outra coisa qualquer, tudo é insignificante diante da tragédia – da sua tragédia, particularmente – e é ela que o coloca num plano todo especial. Confere-lhe, sobretudo, importância. Isto sim, pensa o santo, é imprescindível. Quanto ao homem de terno branco, apenas preso num elevador, este não hesitaria em calcar o botão. São Simeão Estilita não pode ser este homem. Assim, talvez sem percebê-lo, o santo odeia o botão.

IV

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E é necessário algo de grandioso diante dos olhares que espreitam pelas frestas. Estes olhares são componentes fundamentais da tragédia do Estilita. Se eles, por um lado, são ameaça constante, por outro, maisimportante talvez, são o veículo da consagração de São Simeão Estilita. Desta forma, o santo dá início à sua obra: uma imensa coluna – isto os impressionará sobremaneira, e também ao santo – no topo da qual ele se instalará após a árdua construção. Árdua, porque os materiais usados na empreitada consistem em fragmentos do elevador e dele. São Simeão Estilita.