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O ESCRITOR COMO MITO: SIMÕES LOPES NETO E A HISTÓRIA DA
LITERATURA DO RIO GRANDE DO SUL
JOCELITO ZALLA
PPGHIS/UFRJ; CAp/UFRGS
Em sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi caracteriza o
escritor João Simões Lopes Neto (1865-1916), respectivamente, como “patriarca das
letras gaúchas” (BOSI, 1983, p. 238) e “exemplo mais feliz de prosa regionalista no
Brasil antes do Modernismo” (BOSI, 1983, p. 240). Publicado em 1970, o livro propõe
um balanço crítico da experiência literária no país, atualizando o cânone nacional e
consolidando algumas interpretações desenhadas pela historiografia literária brasileira.
A avaliação positiva, quase laudatória, da obra de Simões encontra, em relação a Bosi,
antecedentes relativamente recentes, como os estudos do crítico modernista gaúcho
Augusto Meyer e a introdução de Aurélio Buarque de Holanda à edição dupla de
Contos Gauchescos e Lendas do Sul, publicada pela renomada Editora Globo em 1949.
Mas se retrocedermos a nossa leitura da produção historiográfica especializada em
alguns anos, nos depararemos com um longo e significativo silêncio sobre o autor1,
entrecortado por breves momentos de interesse editorial e de consideração artística, que
remete mesmo à publicação de seus principais livros, na década de 1910. Naquele
momento, aliás, Simões foi considerado um escritor menor, vinculado inexoravelmente
à história local de uma Pelotas em franca decadência econômica e desprestígio político
na cena gaúcha e nacional. Mesmo na cidade sulina, o desencontro entre o autor e o
público contraria as expectativas geradas no leitor contemporâneo pela imagem
consolidada de Simões e sua inserção no cânone brasileiro.
O objetivo desta comunicação é refletir sobre o papel da crítica e da
historiografia literária rio-grandense, principalmente, na construção dessa imagem. Que
tipo de trabalho de memória foi realizado para eleger um escritor “municipal” como
“pai fundador” da literatura gaúcha? Dessa forma, serão perseguidos os modos de
1 Das quinze obras de história da literatura brasileira publicadas entre a primeira edição de Contos
Gauchescos e o volume crítico da Globo, segundo levantamento de Otto Maria Carpeaux (1951), apenas
dois abordam a obra de Simões.
2
recepção e uso do projeto intelectual de Simões Lopes Neto por algumas vertentes e
perspectivas de história da literatura na primeira metade do século 20, utilizando como
fontes manuais de literatura, balanços e comentários críticos. Duas questões guiarão a
análise do material: a) as relações autor-texto-contexto e suas implicações na
interpretação do projeto simoniano; b) a manifestação, no discurso crítico, de
propriedades do dispositivo que Michel Foucault (2013) denominou “função-autor”,
com seus desdobramentos na organização dos textos simonianos, publicados em vida e
postumamente. Os dois enfoques, a meu ver complementares, permitirão avaliar as
convivências e disputas entre perspectivas historicistas e formais de análise e crítica do
literário na produção local, além de suas inflexões na lenta construção discursiva de
Simões Lopes Neto como um literato.
* * *
O primeiro comentário já mapeado de algum livro de Simões data de 1913.
Discorrendo sobre os Contos Gauchescos, Antonio de Mariz, pseudônimo do crítico e
historiador José Paulo Ribeiro, inicia uma tradição interpretativa marcada pela
dualidade engenho/naturalidade. Reconhece no texto uma composição literária
elaborada com requinte, para além da ambição folclorista do livro2, mas nem por isso
artificial. Adjetiva a obra como “genuinamente rio-grandense”, capaz de expressar o
caráter do meio físico e sociológico do estado, “onde se vê a lagoa, o arroio, o rio, a
coxilha, o varzedo, a serra, a cidade, a vila, a aldeia, os costumes...” (MARIZ, 1988, p.
353).3 A apreensão das “tradições históricas e poéticas” do Rio Grande é guiada pelos
critérios da arte e não do folclore, daí a comparação do escritor com o pintor: “Soube,
com habilidade, manusear sua pena, transformando-a em delicado pincel, com o qual
produziu a bela coleção de ‘Contos’ com que veio enriquecer a literatura gaúcha”
(MARIZ, 1988, p. 355). Mas tal reconhecimento artístico não parece ter sido
compartilhado pela intelligentsia local, muito menos estendido às Lendas do Sul (1913),
2 O subtítulo da primeira edição do livro, de 1912, é “Folkore regional”.
3 Texto reproduzido na edição crítica de Lígia Chiappini para Contos Gauchescos, Lendas do Sul e Casos
do Romualdo. Publicado originalmente no jornal pelotense A opinião pública, em 17 de novembro de
1913.
3
último livro, em vida, de Simões. O próximo comentário, segundo a bibliografia
especializada,4 viria onze anos depois.
Em 1924, a primeira obra de história literária do estado trazia em sua seleção os
três títulos conhecidos de Simões. Como critério para a escolha dos escritores e livros
que nela figuravam, João Pinto da Silva apontava a “significação local”, em maior ou
menor grau. Para ele, a tarefa do historiador da literatura seria, então, “fixar a situação e
o valor dos leaders” (SILVA, 1924, p. IV), o que em artes significaria renovação
estética. A inclusão de Simões na obra implica certa matização da constatação de seu
pouco alcance crítico. Em um estado periférico, com reduzido público leitor e poucas
casas editoriais, a limitada circulação de seus livros também deve ser compreendida
como função desse incipiente estado das letras. É significativo que o primeiro projeto de
balanço literário, levado a cabo, aliás, na capital, tome conhecimento e confira
relevância à obra do pelotense Simões. Mas uma rápida comparação com a trajetória de
Alcides Maya, escritor gaúcho regionalista que alcançara a Academia Brasileira de
Letras em 1914, devolve a nosso autor um lugar secundário na produção local. É
justamente pelo confronto entre Simões e Maya que João Pinto da Silva introduz seus
comentários ao primeiro:
“Sem querer incidir no anacronismo antipático de um paralelo, julgo
oportuno assinalar, porém, que o gauchismo de Simões Lopes leva sobre o do
sr. Alcides Maya, para os efeitos de difusão e comunicabilidade no meio
cujas influencias múltiplas refletem, a vantagem inapreciável de ser mais
fácil, mais singelo, mais espontâneo. Está, pelo menos, mais próximo do
povo, mais em harmonia com suas origens e intuitos, por isso que não emana
de uma inteligência eminentemente especulativa de erudito e de esteta, como
a do autor das Ruinas vivas e da Tapera” (SILVA, 1924, p. 165).5
O selo da naturalidade mais uma vez estampa a obra, através de sua
proximidade, no plano da linguagem, com a cultura que “reflete”. Mas, na nova
avaliação crítica, a vantagem também é a fraqueza simoniana. No contexto parnasiano
do início do século, o ornamento vencia a espontaneidade. Fato literário que, vale dizer,
ainda conformava a crítica, mas já não se impunha com tanta força à ficção no momento
em que Silva redigia seu livro. O valor da obra de Simões pende, assim, entre a
expressividade da criação e a função de documento, ou de sua aliança: “A sua modelar
fidelidade aos motivos regionalistas não lhe vinha somente do profundo conhecimento
4 Ver ARENDT, 2004.
5 A grafia das fontes foi atualizada.
4
das nossas tradições, hábitos e costumes. Era, também, efeito natural do seu
vocabulário, da íntima, indissolúvel consonância do assunto com o estilo” (SILVA,
1924, p. 166).
No entanto, significativa parcela do comentário se fundamenta na relação entre
texto e contexto, esmaecendo, de certa forma, o engenho literário de Simões, em
comparação a Mariz. Ao Cancioneiro Guasca (1910), compêndio de quadras, canções,
versos populares recolhidos na oralidade e na bibliografia folclórica conhecida, e às
Lendas do Sul (1913), narrativas orais trabalhadas literariamente pelo autor, cabiam o
mérito de fixação da tradição e do imaginário:
“Graças a Simões Lopes, saíram, assim, da existência precária e amorfa de
confusas tradições orais, para se incorporar definitivamente, ao nosso acervo
espiritual, em relevo perene, algumas maravilhosas historietas, criações
nossas, ou por nós adaptadas ao nosso meio físico e às preferências mentais
que nos caracterizam” (SILVA, 1924, p. 167).
Mesmo aos Contos Gauchescos (1912), cuja composição marcaria a preferência
crítica desde então, o elogio da forma se alia à relação com o meio:
“Neles há poesia do melhor quilate; há riqueza de imaginação; há, sobretudo,
pormenores típicos de nossa psicologia coletiva, como, por exemplo,
habilíssimas exteriorizações do espetaculoso orgulho guasca, espécie de
narcisismo explosivo e pitoresco, que nos vem não do português, mas do
espanhol, por efeitos de contágio, através da Argentina e do Uruguai”
(SILVA, 1924, p. 168).
João Pinto da Silva não era um determinista geográfico, ao menos não de forma
ortodoxa e ingênua. Seu capítulo inicial é marcado por uma interessante apropriação do
debate francês sobre meio e cultura. La Terre et l’évolution humaine (1922), recente
livro de Lucien Febvre, as teorias do geógrafo Paul Vidal de la Blache nele mobilizadas,
além do prefácio de Henri Berr à obra, são utilizados para reorientar o enfoque analítico
local da produção cultural. O meio físico só interessaria em termos de possibilidades e
de recursos disponíveis, nunca como imposição. As discussões sobre a pampa e a
mentalidade rio-grandense importariam menos do que o contexto político de
militarização e defesa do território. É nesse sentido que Simões é compreendido como
um escritor fronteiriço, atuante em uma cultura nacionalmente defensiva, mas altamente
permeável à vida platina. Tal perspectiva intercultural se perderia após o nacionalismo
5
varguista, mas o contexto social ainda seria retomado como fator explicativo da obra de
Simões, denotando, também, as direções da crítica e da história da literatura no país.6
Em 1926, Augusto Meyer e Darcy Azambuja saudavam a redescoberta dos
Contos e das Lendas nas páginas do Correio do Povo.7 O primeiro reforçava a avaliação
de Silva: Alcides Maya seria “mais culto e mais brilhante”, mas Simões teria a força da
“fidelidade” e da “graça espontânea”. Suas descrições de cenas e tipos locais não
encontrariam concorrência no regionalismo gaúcho e, começando-se aí um trabalho de
canonização mais ampla do escritor, o lançariam “candidato ao primeiro lugar na série
de regionalistas brasileiros” (MEYER, 1926, p. 3). A força do texto se encontra,
portanto, em sua continuidade com o contexto. O mesmo aspecto de fidelidade na
representação do real é ressaltado por Azambuja sob o hoje pouco usual, para literatura
de imaginação, critério de “verdade”: “O seu livro é o Rio Grande mesmo, no seu
tempo, com os seus costumes, as suas ideias, a sua linguagem”. Mas esse “primoroso e
sóbrio realismo” é acompanhado de uma bela arquitetura, como na crítica de Mariz,
produto de uma “intuição artística verdadeiramente genial” (AZAMBUJA, 1926, p. 3).
Tal afinidade entre texto e contexto só seria possível, então, pelas mãos de um poeta da
terra, um “herói da expressão local”, nas palavras de Meyer, o que concilia, mais uma
vez, engenho e naturalidade. O autor é, portanto, uma espécie de mediação criativa entre
literatura e realidade, o que explica o orgulho sentido “pela terra que produziu criações
tão diversas e tão originais” (MEYER, 1926, p.3).
O primeiro ensaio crítico sobre a obra de Simões viria a público em 1943, como
um dos capítulos do livro Prosa dos Pagos, de Augusto Meyer. Nele, o conhecido poeta
modernista8 desenvolvia algumas das ideias do comentário de 1926: expressividade
poética e naturalidade nas descrições de cenas e tipos seriam marcas da obra de Simões,
um “manancial de poesia e verdade” (MEYER, 2002, p. 139). Mas, diferentemente de
seu comentário anterior, o novo texto dá maior destaque ao primeiro aspecto. Para
começar, a figura do narrador, Blau Nunes, ganha atenção antes não recebida: é uma
solução que resolve o problema da continuidade entre o linguajar campeiro e a
6 A abordagem contextualista será frequente na crítica e na historiografia literária acadêmicas, produzidas
no Rio Grande do Sul a partir dos anos 1970. Por limite de espaço, tal produção não será analisada aqui. 7 A primeira edição conjunta dos dois livros pela então Livraria do Globo data daquele ano.
8 Sete anos depois, Meyer receberia o Prêmio Machado de Assim, da Academia Brasileira de Letras, em
reconhecimento pelo conjunto de sua obra.
6
estilização da escrita. O acento popular dos Contos, com sua autenticidade e
espontaneidade, é produto do enfoque narrativo, em estratégia original na escrita
regionalista do país: “Talvez ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tão
profunda com o espírito dos seus pagos, a tal ponto que o próprio João Simões Lopes
Neto, o pelotense culto e de família patrícia, inteiramente se apaga na sombra de Blau, o
vaqueano” (MEYER, 2002, p. 140). Aqui há uma mudança mais profunda na orientação
da crítica literária à produção regionalista. Uma das reprimendas que começaria a pesar
sobre a obra de Acides Maya, implícita no ensaio de Meyer, é a da artificialidade do
texto, produto de um letrado que olha com curiosidade, logo pouca intimidade, para o
universo retratado. Vinte anos antes, como vimos, o artifício e a linguagem culta do
esteta denotavam a superioridade de Maya em relação a Simões. As comparações com
escritores consagrados, aliás, já não têm necessidade de aparecer. A análise dos Contos
se justifica por si só. Simões surge “por inteiro” no novo ensaio. A função-autor
principia, então, a se manifestar na avaliação estética e na organização dos textos
simonianos como “obra”. Desdobramento disso é o investimento biográfico que começa
aí a ser realizado. Pela primeira vez, uma história de vida do escritor, ainda que parcial,
é narrada junto ao comentário do texto:
“Aos treze anos, Simões Lopes viera para o Rio de Janeiro, onde se
matriculou no Colégio Abílio e mais tarde na Escola de Medicina. Por
motivo de doença, abandonou os estudos já no terceiro ano do curso,
regressando para Pelotas em 1882. Começa então a sua fase de contato
revelador com a campanha rio-grandense, em ‘entradas’ sucessivas que
dariam como fruto o Cancioneiro Guasca (1910), os Contos Gauchescos
(1912) e as Lendas do Sul (1913)” (MEYER, 2002, p. 141).
O biográfico, como elemento explicativo, antes apenas latente na asserção da
intimidade do autor com o meio, comparece em duas frentes: na consciência autoral e
na expressão da subjetividade. Pelo excerto transcrito, nota-se que a naturalidade não é
mais apenas o reflexo de uma experiência genuína com o campo, mesmo que tomado
como mediação. Há nesse comentário um letrado formado no centro do país que opera
meticulosamente sobre a matéria campesina que a província lhe oferece. O personagem-
narrador, Blau Nunes, e o aproveitamento da linguagem popular no texto, por ele
permitido, se tornam componentes literários mais sofisticados do que o ornamento
regionalista tradicional. Dessa forma, nasce na interpretação de Simões o lirismo,
aspecto que passava a ser valorizado na prosa modernista e perseguido pela poesia do
7
próprio Meyer: “Na sua identificação com as fontes da tradição oral, descobrimos o selo
da unidade psicológica, um comportamento necessário e inevitável” (MEYER, 2002, p.
143). O subjetivismo transparece, inclusive, na voz de Blau, espécie de fantoche da
consciência do autor: “...se à flor de todos os contos está a voz de Blau Nunes, no
fundo, quem lhes dá vida e sentido à forma é sempre Simões Lopes Neto. É ele a alma,
a fonte humana da sua interpretação” (MEYER, 2002, p. 150).
Augusto Meyer transforma Simões em um autor no sentido moderno do termo,
mais do que isso, se torna um autor literário. Para tanto, duas últimas operações se
fazem necessárias: transpor a barreira do local e autonomizar o discurso ficcional. Ao
contrário do que uma análise do projeto intelectual do escritor pelotense poderia indicar
– iluminando os compromissos com o civismo republicano, o nacionalismo literário, o
folclore e a memória histórica rio-grandense – o retrato da vida na campanha gaúcha se
articula com uma ambição a verdades gerais: “Dentro do quadro, o momento histórico e
a natureza, o acessório e o universal, a nota pitoresca e o substrato humano equilibram-
se como parcelas de um só todo” (MEYER, 2002, p. 144). Logo, o universal supera o
acessório, mesmo na linguagem do regionalismo: “a paisagem, a singularidade do
ambiente, a própria forma dialetal, apesar de fatores importantes na construção da obra,
não passam de um meio que empregou para exprimir as dores e alegrias humanas”
(MEYER, 2002, p. 146). O folclórico como expediente soluciona também o problema
da autonomia do literário: “Seu intuito era contribuir para a fixação do populário
gaúcho. Por fatalidade temperamental, o medíocre folclorista acabou em poeta, usada a
palavra no sentido lato, pois foi ele em essência o nosso poeta e o momento culminante
do nosso regionalismo” (MEYER, 2002, p. 143).
O texto de Meyer lança, portanto, novas bases para a crítica simoniana,
deslocando a perspectiva dos primeiros comentários do contexto para o texto e a autoria.
Em 1945, o ensaio também é publicado no primeiro número da revista Província de São
Pedro, periódico editado pela Globo, com direção do historiador e crítico Moysés
Vellinho, voltado para os debates eruditos locais e seus diálogos com o cenário cultural
nacional. Com a publicação original no Rio de Janeiro9 e a chancela da elite intelectual
9 A primeira edição é da Livraria Martins Editora. Em 1960, o livro ganha a segunda edição pela Livraria
São José; em 1980, pela Presença Edições. Todas do Rio de Janeiro. A edição consultada (quarta) é a
primeira a ser publicada em Porto Alegre, pelo Instituto Estadual do Livro.
8
rio-grandense, parece que a circulação do texto de Meyer fomenta novo interesse pela
obra de Simões. Paralelamente, o jornalista Carlos Reverbel começava no estado uma
empresa biográfica que duraria décadas. Também no ano de 1945, ele iniciava uma
série de reportagens sobre a vida do autor na Revista do Globo. Os dois projetos, crítico
e biográfico, culminam com a publicação da famosa edição conjunta dos Contos e das
Lendas, de 1949, organizada por Aurélio Buarque de Holanda, então escritor, filólogo e
professor de Português do Colégio Pedro II. Como prefácio, constava novamente o
ensaio de Meyer. Como posfácio, um texto biográfico já publicado por Reverbel. A
novidade é a introdução redigida por Holanda, também responsável pelo glossário
anexo e pela atualização da grafia: cerca de setenta páginas que inauguram a crítica
formal de Simões.
A ascensão do autor se dá, evidentemente, com a elevação do texto. O estudo
detalhado da linguagem e do estilo é, ao mesmo tempo, causa e consequência da nova
crítica: a relativa consagração de Simões justifica a empresa, a análise formal
fundamenta a avaliação positiva. Na mesma direção de Meyer, que sugerira, já em
1943, este tipo de trabalho, Holanda principia seu ensaio valorizando a “combinação da
maneira literária com a linguagem oral” em Simões, um procedimento raro na prosa
regionalista brasileira, talvez precedido apenas pela obra de Afonso Arinos. Ainda
assim, a maestria de Simões se impõe: “Sua prosa realiza o mais feliz dos
compromissos entre o à-vontade da fala do homem do campo e a melhor maneira
literária” (HOLANDA, 1950, p. 31). A originalidade simoniana lhe permitia lugar entre
os “bons regionalistas modernos”, como José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, José
Américo de Almeida e Guimarães Rosa. A pecha de “ruim” cabia a produções
regionalistas anteriores e contemporâneas10
pelo “mau” uso da linguagem, em tentativas
grotescas de simular a fala popular:
“Não se restringem a alterar a grafia das palavras naquilo em que a pronúncia
caipira diverge da pronúncia culta; vão além: alteram-na ainda quando tal
divergência não existe. Não contentes de fazer do linguajar inculto uma
caricatura do falar civilizado, ainda por cima fazem uma caricatura dessa
caricatura” (HOLANDA, 1950, p. 28).
10
Jorge Amado não escapava da condenação de Holanda.
9
Coelho Neto, paradoxalmente admirado por Simões, representaria o modelo
negativo, que, entre os escritores gaúchos, também contaminava Alcides Maya.11
Para
provar a avaliação, Holanda mobiliza recursos da gramática tradicional e da retórica
estilística, analisa a prosódia, o léxico e a sintaxe; verifica ocorrências de figuras e
estratégias de linguagem como silepse, elipse, pleonasmo, aliteração, eco, repetição e
variedade; constata riqueza de incidentes e realismo na simplicidade; assevera o lirismo
de construções e o “poder de impressionar os sentidos”, classificando o estilo de Simões
como “telúrico”.
A visada formalista da crítica simoniana se consolida nos textos que lhe foram
dedicados a partir da década de 1950. A profissionalização de parte da crítica e o
surgimento, no país, com o crescimento do público leitor e do comércio de livros, de um
“campo literário”, com regras próprias e relativa autonomia em relação aos demais
domínios da vida social,12
parece ter fomentado este tipo de abordagem. Como agente
especializado desse campo, cabe ao crítico literário, tanto quanto ao escritor, conformar
o gosto público, criando disposições de leitura que permitem o consumo dos bens
linguísticos em circulação. É aí que, segundo Bourdieu, repousa o problema do estilo,
“elaboração especial que tende a conferir ao discurso propriedades distintivas”
(BOURDIEU, 1996, p. 25), o que permite sua inclusão nesse mercado.
Em 1950, Lúcia Miguel-Pereira lançava seu Prosa de Ficção, décimo segundo
volume da História da literatura brasileira dirigida por Alvaro Lins. No capítulo
dedicado ao regionalismo, a obra de Simões desponta como a “mais sugestiva” do país,
apesar de possuir a “linguagem mais dialetal”. Como nos predecessores recentes, aí se
encontraria a força simoniana:
“A arte verbal foi praticada por Simões Lopes Neto com admirável
conhecimento – ou intuição – do seu poder. As palavras representam para ele
a um tempo sinais e coisas, eram espirituais e materiais, valendo por si,
plasticamente, e arrastando na sua esteira ‘todo tecido psicológico de uma
raça’, como disse Maritain” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 212).
O elemento biográfico comparece no texto apenas como suporte à compreensão
da forma e a análise se detém nos recursos de linguagem, do emprego de sufixos locais
e populares (troteada por trote, campito por campo, chinoca por china, entre outros) à
11
Trecho da nota 18 do ensaio: “Já Alcides Maia, este não escapou a certa inchação de estilo bem netiana
[de Coelho Neto] – o que me parece acaso a maior fraqueza de sua obra” (HOLANDA, 1950, p. 32). 12
Ver MICELI, 2001.
10
construção de imagens, “nada retóricas”, “que surgem naturalmente, exigidas pela
necessidade de suscitar uma impressão direta” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 212). A
sintonia entre o linguajar popular e a forma literária, como vimos, já não pode ser
produto do meio, mas do punho de um autor que domina a pena:
“uma das superioridades do contista reside exatamente em haver operado
essa transubstanciação literária sem perder as suas qualidades essenciais, isto
é, em haver assimilado o espírito dos nativos pagos sem se despersonalizar,
antes incorporando a sensibilidade e a linguagem popular à sua própria
natureza de intelectual e artista” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 215).
A linguagem é, também, a solução para o problema do localismo ao qual Meyer
se deparara, “porque rica de substrato humano e sólida na sua contextura”: “Não é
preciso ser gaúcho para sentir-lhe a poesia” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 211). Toda
a análise textual conflui para a asserção da originalidade simoniana, o enfoque narrativo
propiciado pela criação de Blau Nunes, e de sua superioridade em relação aos demais
regionalistas, a naturalidade da representação: “Por isso nunca se nota nele aquele
deslumbramento de civilizado diante dos primitivos, tão frequente nos regionalistas. Por
isso encontrou o justo equilíbrio entre a literatura e a vida” (MIGUEL-PEREIRA, 1950,
p. 216). Engenho e naturalidade já não podem mais ser dois critérios distintos na
observação da fatura simoniana. O segundo já não significa experiência genuína com o
contexto; antes, trata-se de produto do primeiro, do gênio criativo que, por certo tempo,
fora, injustamente, pouco valorizado.
A vitória do literato: considerações finais
Vimos, na crítica de Meyer, a ascendência do Simões literato sobre o Simões
folclorista. Este trabalho crítico, evidentemente, necessita de bases textuais fornecidas
pela matéria de avaliação. Buscando um registro fidedigno da cultura campesina no sul
do Brasil, segundo, é claro, sua interpretação, Simões tornara-se escritor. Mas
recolocado na história intelectual da Primeira República, teríamos nele um daqueles
polígrafos estudados por Sergio Miceli: “assalariado, pequeno produtor independente,
vivendo dos rendimentos que lhes propiciam as diversas modalidades de sua produção”
(MICELI, 2001, p. 54). Antes de contista, foi dramaturgo, jornalista, professor; ensaiara
11
textos, que considerava didáticos, para a formação de leitores e a iniciação na história
do Rio Grande do Sul; publicara, como vimos, uma coletânea de canções e versos da
tradição oral, segundo os padrões do folclorismo praticado no estado. É verdade que, até
as pesquisas de Reverbel, pouco se sabia, em Porto Alegre, da vida de Simões. O
suficiente, no entanto, para a construção de sua imagem pública como artista. O melhor
das letras da terra, aliás, “momento culminante do nosso regionalismo”.
Embora sem esquecer elementos do contexto e da vida do autor, o tipo de crítica
que se fazia, nas décadas de 1940 e 1950, centrava-se na análise da linguagem e do
estilo. Algo aparentemente natural para o estudo da produção letrada, mas que aponta
para fenômenos de fundo maior, como a autonomização discursiva da ficção e o
desenvolvimento do campo literário e do mercado de livros no país. Como não vincular,
no caso de Simões, o projeto crítico de Meyer, a empresa biográfica de Reverbel e o
investimento editorial da Globo? Essa articulação constrói a imagem do “patriarca”
presente no texto de Alfredo Bosi. No polo crítico, objeto perseguido nesta
comunicação, rendeu frutos nas análises formais de Holanda e Miguel-Pereira. Mesmo
em abordagens contextualistas da forma, orientadas pela profissionalização universitária
dos estudos literários, como a do próprio Bosi e a de Antonio Candido, sente-se a
ressonância dessa construção.13
Para uma genealogia completa da imagem pública atual de Simões, muitos
capítulos ainda serão necessários, e há uma vasta gama de discursos críticos que precisa
ser enfrentada, do modernismo nacionalista nas academias tradicionais às análises
literárias universitárias marxista e estruturalista, por exemplo. Mas uma última
comparação permite destacar a importância dos primeiros comentaristas na
“modernização” de Simões. Em 1950, Lúcia Miguel-Pereira anunciava a descoberta de
inéditos do escritor, como os Casos do Romualdo,14
e clamava a urgência de sua
publicação. Mas fazia uma ressalva: dificilmente poderiam “acrescentar alguma coisa
ao autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 220).
13
Como já conhecemos o primeiro, cabe um breve trecho da avaliação do segundo sobre a ficção
“qualitativamente parca, mas quantitativamente elevada” de Simões, em conferência de 1972: “Para o seu
narrador Blau Nunes, o autor tinha dois extremos possíveis: ou deformar as palavras e grafar toda a
narrativa segundo a falsa convenção fonética usual em nosso Regionalismo, de que vimos um exemplo
em Coelho Neto; ou adotar um estilo castiço registrado segundo as convenções da norma culta. Simões
Lopes Neto rejeitou totalmente o primeiro e adaptou sabiamente o segundo, conseguindo um nível muito
eficiente de estilização” (CANDIDO, 1999, p. 89). 14
Publicados pela Globo em 1952.
12
Em 2013, Luís Augusto Fischer, professor de Literatura Brasileira da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, lançava, em edição de luxo, outro original ainda inédito,
o romance de formação Terra Gaúcha.15
Segue uma das justificativas para o novo
empreendimento editorial: “De um grande escritor, como é o caso, até lista de compra
interessa, quando menos para conhecer o homem por trás da obra” (FISCHER, 2013, p.
222). Nas duas afirmações se encontra a mesma constatação: há unidade nos textos
simonianos. Para Miguel-Pereira, novos textos exporiam a mesma persona literária.
Para Fischer, neles se encontram novas oportunidades para aquela revelação. O que
temos aqui, nos dois casos, é a moderna noção de “obra”, correlata à de “autor”, sendo
aplicada à possível miríade de escritos de Simões, organizados a partir de uma
identidade psíquica e estética definida a posteriori, um “certo ser de razão”, garantido
pelo nome próprio; eis uma das propriedades do dispositivo que Foucault denominou
“função-autor”: “o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz de um
indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos sempre mais ou menos
psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos” (FOUCAULT, 2013, p. 276-277).
Portanto, procurei mostrar, neste trabalho, que há uma lenta migração da ênfase
interpretativa, na diminuta crítica de Simões da primeira metade do século 20, do
contexto para o texto, do valor documental para o valor estilístico, o que permite sua
construção como autor literário, já nos anos 1940, e a corolária recuperação de sua obra.
Evidentemente, isso não se daria se os textos simonianos não se encaixassem na
reorientação, que se verifica no período, dos critérios críticos e do gosto do consumidor
culto de ficção: do ornamento à naturalidade. Para ser um autor pleno, esta deveria ser
fruto do engenho, tanto quanto o fora aquele no domínio parnasiano. O “genuíno” é
autoral, não documental, atende à verossimilhança, não mais à verdade. 16
E o mito
simoniano do precursor não só das letras locais, mas do moderno/modernista no país,17
pode, assim, emergir.
15
Não confundir com o ensaio histórico também intitulado Terra Gaúcha, encontrado por Reverbel nos
anos 1940 e publicado pela editora Sulina em 1955. 16
“[Simões Lopes Neto] Conferiu destarte maior verossimilhança e naturalidade às suas histórias, que são
da mais pura inspiração popular; mas, tanto na criação desse ingênuo porta-voz como na forte poesia das
suas narrativas, adivinha-se a presença invisível de um autêntico escritor, capaz de transfundir-se sem
perder as suas qualidades mestras” (MIGUEL-PEREIRA, 1950, p. 216). 17
Para uma crítica do termo “pré-modernista” para qualificar os escritores da geração de 1910, em que se
encontrariam prenúncios do modernismo, ver VELLOSO, 2010.
13
Instituições e acervos consultados
Museu da Comunicação Hipólito José da Costa – Porto Alegre/RS
Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Acervo
Júlio Petersen - Porto Alegre/RS
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