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Escola Superior de Desenho Industrial Análise da Informação Prof. Daniel Portugal 4º Ano – 25 de Novembro de 2015 Carolina Menezes e Daniel Rocha Número de palavras: 1.535 Feitiço do Tempo O filme escolhido para este trabalho chama-se Groundhog Day. Foi escrito e dirigido por Harold Ramis e lançado em 1993. Traduzido para o português como Feitiço do Tempo, o filme tem como personagem principal o jornalista Phil Connors, interpretado por Bill Murray. Phil é um meteorologista que trabalha para uma emissora de televisão em Pittsburg, nos Estados Unidos, e foi incumbido da tarefa de cobrir o feriado americano do Dia da Marmota, no qual todo ano milhares de pessoas se reúnem em torno de um animal que, segundo a tradição, informará por mais quanto tempo irá perdurar o inverno. É o quarto ano consecutivo que Phil vai à Punxsutawney, na Pennsylvania, e não consegue esconder sua frustração. Só quer acabar logo com a matéria para poder voltar para casa. No entanto, acorda no dia seguinte no quarto do hotel onde está hospedado para descobrir que é o Dia da Marmota novamente e que está preso num loop temporal inexplicável, no qual vive e revive o dia 2 de fevereiro. Aos poucos, Phil começa a se acostumar com o fato de que está preso no que se pode chamar de limbo no espaço-tempo. Para compreender o que se passa na sua cabeça, é preciso entender que o tempo “alheio” ao de Phil se encontra em um loop com duração de 24 horas, que volta para o início do mesmo dia em vez de progredir para o próximo. Entretanto, o tempo “pessoal” dele é contínuo, o que o torna capaz de lembrar detalhes dos dias que se repetiram. Essa exclusividade temporal permite que ele se utilize de sua onipresença divina para brincar com a realidade à sua volta. A primeira reação de Phil é usar isso ao seu favor, relembrando acontecimentos do dia anterior para manipular e instigar os demais personagens a gostarem dele. Com seus super poderes, lembra de fatos que descobriu ao longo dos dias sobre Rita, sua colega de profissão (com quem gostaria de ter um relacionamento), implantando falsas memórias em sua mente, levando-a a pensar que Phil é um homem simpático e educado, algo que na realidade não é. Apesar de tentar inúmeras vezes, não consegue fazer com que Rita se apaixone por ele.

O Feitiço Do Tempo e Freud

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Filosofia, Freud e o Feitiço do Tempo

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Page 1: O Feitiço Do Tempo e Freud

Escola Superior de Desenho IndustrialAnálise da InformaçãoProf. Daniel Portugal4º Ano – 25 de Novembro de 2015

Carolina Menezes e Daniel RochaNúmero de palavras: 1.535

Feitiço do Tempo

O filme escolhido para este trabalho chama-se Groundhog Day. Foi escrito e dirigido por Harold Ramis e lançado em 1993. Traduzido para o português como Feitiço do Tempo, o filme tem como personagem principal o jornalista Phil Connors, interpretado por Bill Murray. Phil é um meteorologista que trabalha para uma emissora de televisão em Pittsburg, nos Estados Unidos, e foi incumbido da tarefa de cobrir o feriado americano do Dia da Marmota, no qual todo ano milhares de pessoas se reúnem em torno de um animal que, segundo a tradição, informará por mais quanto tempo irá perdurar o inverno.

É o quarto ano consecutivo que Phil vai à Punxsutawney, na Pennsylvania, e não consegue esconder sua frustração. Só quer acabar logo com a matéria para poder voltar para casa. No entanto, acorda no dia seguinte no quarto do hotel onde está hospedado para descobrir que é o Dia da Marmota novamente e que está preso num loop temporal inexplicável, no qual vive e revive o dia 2 de fevereiro.

Aos poucos, Phil começa a se acostumar com o fato de que está preso no que se pode chamar de limbo no espaço-tempo. Para compreender o que se passa na sua cabeça, é preciso entender que o tempo “alheio” ao de Phil se encontra em um loop com duração de 24 horas, que volta para o início do mesmo dia em vez de progredir para o próximo. Entretanto, o tempo “pessoal” dele é contínuo, o que o torna capaz de lembrar detalhes dos dias que se repetiram.

Essa exclusividade temporal permite que ele se utilize de sua onipresença divina para brincar com a realidade à sua volta. A primeira reação de Phil é usar isso ao seu favor, relembrando acontecimentos do dia anterior para manipular e instigar os demais personagens a gostarem dele. Com seus super poderes, lembra de fatos que descobriu ao longo dos dias sobre Rita, sua colega de profissão (com quem gostaria de ter um relacionamento), implantando falsas memórias em sua mente, levando-a a pensar que Phil é um homem simpático e educado, algo que na realidade não é. Apesar de tentar inúmeras vezes, não consegue fazer com que Rita se apaixone por ele.

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A razão para o loop temporal não é explicada no filme, mas pode ser compreendida através da aplicação das teorias da psicanálise de Sigmund Freud referentes à repressão e ressureição de memórias passadas. A teoria da nachträglichkeit, traduzida para o inglês como afterwardness, explora o modo pelo qual consideramos eventos da nossa infância como traumáticos somente quando na fase adulta.

Para Freud, um evento traumático que ocorre na vida de uma criança é reprimido para dentro do inconsciente e só é compreendido quando este mesmo indivíduo passa por situação semelhante na vida adulta. O fenômeno da “ação diferida” ou “só-depois”, como é chamado em português, descreve um modo de compreensão retardada ou atribuição retroativa de um significado traumático à eventos passados, como se uma memória fosse reescrita de acordo com uma experiência posterior.

O termo utilizado por Freud em alemão possui uma complexidade que se perde na tradução para outras línguas. Dito isso, cabe aqui um citação de Luiz Hanns, extraída de um livro no qual traduz e comenta os termos cunhados por Freud: “um termo que evoca a ideia de que o sujeito se afastou temporalmente do evento e agora, com a devida distância, reconsidera (rearranja mentalmente) o significado do evento. Em alemão nachträglich enfoca a permanência de uma conexão entre o agora e o momento de então, mantendo ambos ligados. Pode-se carregar o passado para uma nova visão, o que leva a um retorno e a um acréscimo de algo que faltava, ou então pode-se trazer, carregar do passado para o presente o evento antigo e acrescentar-lhe algo, atualizando-o.” (HANNS, Dicionário Comentado do Alemão de Freud).

Segundo Freud, o inconsciente é atemporal, o que significa que as memórias reprimidas (que se mantém inalteradas) emergem quando somos submetidos à uma experiência semelhante, permitindo que a causa do evento aconteça depois de seu efeito. Quando aplicamos a teoria freudiana ao Feitiço do Tempo, podemos deduzir que os erros cometidos por Phil no passado estavam sendo acumulados em seu inconsciente ao longo dos anos, sendo ignorados por ele no presente quando era criticado pela sua postura. Esses pensamentos inconscientes teriam então vindo à tona no Dia da Marmota, quando Phil é forçado a encarar seu passado e mudar suas atitudes.

O protagonista declara inúmeras vezes no decorrer do filme que nenhum de seus atos tem nenhuma consequência, ou seja, independente do que fizer, sempre acordará na mesma cama no mesmo dia 2 de fevereiro. Nem mesmo o suicídio - que ele tenta de infinitas maneiras - evita que ele acorde para viver o dia novamente. Um paralelo interessante pode ser feito com a definição lacaniana para o suicídio. Para Lacan, o suicídio é invariavelmente um pedido de ajuda. Nos termos do psicanalista, a tentativa de se matar é um apelo ao Grande Outro. Enquanto para algumas vítimas há um “outro” bastante específico, o caso de Phil Connors é um pouco diferente. Neste caso, o personagem estaria simplesmente apelando para o Grande Outro, ou mesmo para Deus, numa tentativa de se libertar do loop temporal. Quando descobre que nem mesmo a morte faz com o ele se liberte, Phil fica profundamente deprimido.

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Finalmente, Phil aceita seu destino. Aceita que está preso em Punxatawney para sempre. E é neste momento que passa a mudar sua conduta. Conhece todos os moradores da cidade e descobre os problemas pelos quais as pessoas estão passando naquele dia e vê como pode usar seus poderes para ajudá-las. Também aproveita para se dedicar ao seu trabalho, aprender coisas novas. Como dito anteriormente, Phil não crê que seus atos terão qualquer consequência, por isso ajuda as pessoas de forma sincera, indicando que acredita que se deve ajudar os outros sem esperar nada em troca.

Somente quando muda seu jeito de ser e para de pensar somente em si mesmo é que Phil se redime de seus atos, quebrando o “feitiço” e acordando no dia seguinte ao lado de Rita, que se apaixona pelo homem que ele se tornou. As memórias dele e das pessoas que estiveram com ele são do dia anterior, no qual Phil foi uma pessoa boa.

Groundhog Day é um filme sobre redenção, que foca na arrogância e no egoísmo do protagonista usando a viagem no tempo como uma forma simples de reescrever a sua história - ou sua memória do passado, como na teoria da ação diferida de Freud - para se redimir de seus atos. O filme sugere que a verdadeira “libertação” na forma como Phil encontrou no final, só pode ser atingida através da reflexão sobre suas experiências passadas, usando tal reflexão para mudar para suas atitudes no futuro. Através da redenção, ainda que o passado não possa ser reescrito, as nossas ações no presente podem afetar a percepção dos outros sobre o passado, o que significa afirmar que o caminho para a redenção está fortemente atrelado ao funcionamento da memória.

O elemento de viagem no tempo do filme também pode ser relacionado ao conceito de eterno retorno de Nietzsche. Em A Gaia Ciência, o filósofo alemão discursa:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”1

Embora exista algumas diferenças entre o eterno retorno de Nietzsche a forma como Phil revive o Dia da Marmota repetidamente, há também características básicas comuns entre os dois para permitir a sua comparação. Ao contrário da interpretação cristã de linearidade temporal e da eternidade que nos espera após a vida mortal na terra, Nietzsche concebeu que ao invés de passarmos para outro plano após a vida, a viveríamos de novo repetidamente. A enfâse dada ao futuro pelo cristianismo perde o seu poder e nos força a aceitar que não há recompensa ou alívio nos esperando após a morte. Da mesma forma, ao longo do filme Phil passa a aceitar a ideia de que ele

1 NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência; tradução Paulo César de Souza. — 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2012.

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não tem mais futuro. Nietzsche classifica a angústia de saber que não há nada melhor que essa vida como “o grande peso”; peso que Phil também sente ao perceber que está preso eternamente no Dia da Marmota. Após o desespero inicial no entanto, Phil decide focar no presente e procura se aperfeiçoar, atingindo um grau maior de conhecimento e auto-consciência bastante diferentes da percurso de auto-destruição no qual ele se encontrava anteriormente. É através dos desafios e da dificuldades, que Phil se torna uma pessoa melhor, um ideal do “melhoramento humano” de Nietzsche. Além disso, ao aceitar o eterno retorno, Phil aceitou também a vida ao invés de se iludir com ideias de futuro e ao se concentrar no presente e tomar a atitude certa, conseguiu escapar do seu dilema.

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Referências

Groundhog Day - IMDBhttp://www.imdb.com/title/tt0107048/?ref_=ttfc_fc_tt

Groundhog Day: Psychoanalysis and Christianity - Samuel T. Goldberg, M.D.https://goo.gl/rLM3Tg

Redemptive Time Travel in Harold Ramis’s Groundhog Dayhttps://enchantedbyfilm.wordpress.com/2014/01/10/redemptive-time-travel-in-harold-ramiss-groundhog-day-1993/

Afterwardness - Wikipediahttps://en.wikipedia.org/wiki/Afterwardsness

Nachträglichkeit: leituras sobre o tempo na metapsicologia e na clínica - Luís Maiahttp://www.cbp.org.br/nachtraglichkeit.pdf

Ação Diferidahttp://acaodiferida.blogspot.com.br/2014/03/acao-diferida.html

Groundhog Day Reviewhttp://www.screeningnotes.com/2012/12/groundhog-day-review.html

Nietzsche and Eternal Return in Groundhog Dayhttp://existentialism2015.blogspot.com.br/2015/09/nietzsche-and-eternal-return-in.html