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46 | 2017 – vol. I, nº 01
O GÊNERO LETRA DE MÚSICA (RAP) NO LIVRO DIDÁTICO
THE SPEECH GENRE (RAP MUSIC LYRICS) IN CURRENT BRAZILIAN TEXTBOOKS
Donete Simoni Rosso1
RESUMO: O rap é um estilo poético/musical contemporâneo entendido como uma forma de expressão e resistência dos segmentos juvenis da classe social trabalhadora; é uma música de contestação, que resgata e discute as situações de desigualdade social e de preconceito. Não obstante, devido a sua origem “não canônica”, é praticamente inexistente na sala de aula e nos livros didáticos atuais. Dada à importância desse suporte para os gêneros discursivos trabalhados na escola, este artigo se propõe a analisar os encaminhamentos propostos quanto ao gênero letra de música – em específico ao rap – em dois livros didáticos, corpus da pesquisa. Inicialmente são feitas considerações sobre a opção de se verificar os encaminhamentos dispensados ao gênero letra de música (rap), bem como, de forma sucinta, abordamos o conceito de gêneros discursivos a partir de Bakhtin (2003), Dolz e Schneuwly (2004) e Marcuschi (2008). Passamos, em seguida, à análise do corpus, observando se as atividades propostas para sala de aula são concebidas com a perspectiva dialógica e interacionista de linguagem, se consideram os gêneros discursivos como base para o ensino da língua e também se tais atividades confirmam a postura teórica que os autores assumem nas suas fundamentações teórico-metodológicas.
ABSTRACT: Rap is a contemporary poetic musical style understood as a form of expression and strength usually made by young people of the working class. It is a kind of music which discusses aspects like social inequality and prejudice of races and social classes. Nevertheless, its origin isn’t considered part of the ‘normal’ society life. Rap music is virtually nonexistent for many students in most part of Brazilians schools and also in current Portuguese textbooks. Given the importance of working speech genres at schools, this article analyzes solutions which explore some lyrics of Rap songs. The practice part of this study is based in two textbooks. Initially it is possible to see what is useful in this practice of develop the project that the focus are lyrics of some songs in classes as well introducing the concept of genres. The theoretical part of this search is based on Bakhtin (2003), Dolz and Schneuwly; (2004) and Marcuschi (2008). Then the last step is to observe if the analysis of the proposed activities are designed with the dialogical perspective and language interaction because it is important to consider that the genres are the base for this practice of teaching Portuguese language and it is also possible to check if the activities and exercises that were used for this search confirm with the posture theory that these authors assume in their theoretical and methodological foundations.
PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos, leitura, escrita, ensino.
KEYWORDS: speech genres, reading, writing, teaching.
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, Nível de Mestrado Profissional, Programa PROFLETRAS, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de Cascavel.
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1. INTRODUÇÃO
Este artigo procura analisar como o livro didático (LD) encaminha as propostas de
leitura, interpretação e produção escrita referentes ao gênero discursivo letra de música2,
mais especificamente referentes ao gênero musical rap – rhythm and poetry – traduzido para
ritmo e poesia.
O corpus dessa pesquisa são dois livros didáticos3 utilizados no Ensino Fundamental
na rede pública de ensino do estado do Paraná. A saber: Jornadas.port, do 9º ano e Projeto
Teláris, do 8º ano. A opção por analisar os encaminhamentos específicos relacionados ao
gênero letra de música – rap – se deu pelo fato de que tais letras são praticamente
inexistentes nos livros didáticos adotados, tanto em escolas públicas quanto particulares do
país. No entanto, acreditamos que por meio do trabalho pautado em formas estéticas
elaboradas por sujeitos historicamente silenciados e invisibilizados pela cultura hegemônica
– como os rappers – é possível incentivar o debate intercultural em sala de aula e também
incentivar os professores – possíveis leitores desse artigo – a experimentarem tal
possibilidade de abordagem pedagógica.
Desde os anos 1960, inicialmente na Jamaica, depois nos EUA, e de lá chegando ao
Brasil, nos anos 1980 – nas periferias das grandes cidades, a princípio, e no país todo
atualmente – o rap4 tem sido porta-voz das inquietações, críticas e denúncias dos jovens
negros e pobres, numa busca de (re)construção de sua identidade. Atualmente, é
compreendido como uma forma de expressão musical do jovem da periferia, uma música
de contestação que expressa as reivindicações de grande parte da sociedade com dificuldade
de acesso ao emprego e ao consumo, buscando a definição de seus territórios e seu
pertencimento à sociedade. Pode ser visto como um grito de resistência dos jovens que
solicitam perspectivas para seu futuro e condições de vida digna, em meio ao esvaziamento
de sentido contemporâneo, imposto pela sociedade de mercado.
2 As denominações do gênero discursivo como letra de música ou letra de canção serão usadas no decorrer do artigo sem diferença de sentido. 3 Foram pesquisadas 16 coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e somente três traziam letra de canção (rap) no rol de gêneros discursivos analisados. 4 O rap é uma dos elementos do hip hop. Segundo Trevisan (2012), há estudiosos que apontam que o hip hop é formado por quatro elementos: o rap (desdobrado em MC – mestre de cerimônia – e DJ – Disk jóquei), o break e o grafite. Outros defendem a existência de cinco elementos, sendo este último a sabedoria/consciência, que perpassam todos os outros e servem de base para suas manifestações. O hip hop ganha status de “movimento” porque seus integrantes têm uma clara consciência – atitude – de que são sujeitos de direitos civis, sociais e políticos no processo de construção da cidadania ativa. (SILVA, 2006).
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No que tange à utilização pedagógica de letras de rap, segundo Fonseca (2011) “não
se pode mais conceber um currículo escolar que não considere de modo radical a
diversidade presente em nossa sociedade”. A mesma autora argumenta que “o rap nacional
pode, em sala de aula, promover, não apenas alguma catarse pela possibilidade de
privilegiar identidades negadas, silenciadas na escola, mas também a politização dessas
mesmas identidades, além de “dialogar com obras consideradas canônicas” e, assim,
incentivar debates e reflexões e a leitura das mesmas (FONSECA, 2011, p. 33).
Rojo (2009) defende que a escola deve potencializar o debate intercultural, “trazendo
para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas
também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para torná-las vozes de um
diálogo, objeto de estudo e de crítica” (ROJO, 2009, p.115).
Nesse sentido, os apontamentos de Duarte (1999) comprovam que o rap tem muito
a contribuir na formação do aluno e ganha importância por ser um movimento gestado
entre os jovens: é capaz de fugir dos modelos externos, do circuito massificador dos meios
de comunicação e com isso resgatar, de forma muito significativa, as questões sociais
geradoras de exclusão. É uma forma de educação popular, por meio do uso do ritmo e da
palavra:
[O rap] discute, questiona, denuncia. Enfim, retoma uma das funções que a Literatura tem nas sociedades letradas, e o faz sem demarcar espaços de separação entre produtor “autorizado” do texto literário e o consumidor deste. Em outras palavras, o rapper torna-se o literato, no exato sentido da palavra, conquistando o direito de exprimir pela palavra (DUARTE, 1999, p.19).
Levando-se em conta essa força educativa do rap, insistimos na importância de se
“enxergar” esse gênero musical dentro dos muros escolares e com isso valorizar o “querer
dizer” dos nossos alunos. Além disso, valorizar o rap em sala de aula é investir na auto-
estima de seus produtores, pois “é uma música de origem negra, o que não significa que o
conteúdo da música deva ser unicamente nessa temática; o ritmo de estilo musical por si só
expressa sua origem” (ANDRADE, 1999, p.90).
Por tais motivos, pretendemos analisar como os LD tratam tal gênero musical
devido à relevância desse material didático na atual realidade das escolas brasileiras, sendo
este, por vezes o único suporte que o professor dispõe para trabalhar com os alunos os
textos e atividades diversas. Conhecer esse material, seus pontos positivos, negativos, suas
limitações e também refletir sobre as ideologias subjacentes nas escolhas dos gêneros e na
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forma de trabalhá-los, naquilo que dizem e naquilo que silenciam é de grande valia para que
a prática do professor seja crítica, aprofundada e coerente.
Alvo de muitas críticas, o livro didático a elas sobrevive devido a sua importância e
grande utilização por parte dos professores. Lopes (2007, p.228), ao referir-se ao livro
didático, atribui-lhe uma definição clássica, que é a “de ser uma versão didatizada do
conhecimento para fins escolares e/ou com o propósito de formação de valores”. Gérard e
Roegiers (1998, p.19) o definem como “um instrumento impresso, intencionalmente
estruturado para se inscrever num processo de aprendizagem, com o fim de melhorar a
eficácia do ensino aprendizagem do aluno”. Infere-se, com isso, quão importante é esse
suporte, pois não só transmite conteúdos e conceitos, mas ideologias e valores, uma vez
que não são neutras as escolhas dos gêneros discursivos que veicula e nem os
direcionamentos das atividades que sugere.
2. GÊNEROS DISCURSIVOS
A noção de gêneros discursivos tem base em Bakhtin (2003), que explica que cada
esfera social possui textos/enunciados de acordo com a atividade da comunicação humana.
Dessa forma, o sujeito – ser social que se constitui na relação com os outros – faz uso de
inúmeros gêneros discursivos para atender às necessidades dos atos interlocutivos nos
quais está envolvido:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas (...) cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 280).
Como as principais características dos “tipos relativamente estáveis de enunciados”,
Bakhtin (2003) pontua o tema, o modo composicional (estrutura) e o estilo (usos específicos da
língua), classificando-os também como primários (simples) e secundários (complexos).
A concepção de linguagem presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998)
de Língua Portuguesa fundamenta-se na interação de seus interlocutores, coadunando-se
com a concepção defendida por Bakhtin (2003). Tal documento assinala:
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A linguagem, por realizar-se na interação verbal dos interlocutores, não pode ser compreendida sem que se considere o seu vínculo com a situação concreta de produção. É no interior do funcionamento da linguagem que é possível compreender o modo desse funcionamento. Produzindo linguagem, aprende-se linguagem (BRASIL, 1998, p. 22).
No Estado do Paraná, o documento norteador do ensino de Língua Portuguesa é as
Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná de Língua Portuguesa (PARANÁ, 2008). O
ensino da língua é pautado na concepção dialógica da linguagem, tomando os gêneros
discursivos como norte e o Discurso como Prática social como seu conteúdo estruturante:
O aprimoramento da competência linguística do aluno acontecerá com maior propriedade se lhe for dado conhecer, nas práticas de leitura, escrita e oralidade, o caráter dinâmico dos gêneros discursivos. O trânsito pelas diferentes esferas de comunicação possibilitará ao educando uma inserção social mais produtiva no sentido de poder formular seu próprio discurso e interferir na sociedade em que está inserido (PARANÁ, 2008, p. 53).
É, portanto, por meio dos gêneros do discurso que ocorre a interação em um
espaço social, entre indivíduos – sujeitos que produzem textos escritos em situações reais
ou, na sala de aula, mais próximas do real que for possível – para um interlocutor também
responsivo.
Sobre os gêneros discursivos, Dolz e Schneuwly (2004, p.64) pontuam que se são
“um ponto de comparação que situa as práticas de linguagem. Eles abrem uma porta de
entrada para estas últimas, que evita que delas se tenha uma imagem fragmentária no
momento de sua apropriação”.
Para se evitar, então, a “prática fragmentária” citada acima, o ensino com base nos
gêneros discursivos tem sido defendido por muitos teóricos, conforme já foi assinalado.
Marcuschi (2008) também defende tal direcionamento, enfatizando que ter domínio dos
mesmos é ter poder social:
Desde que nos constituímos como seres sociais nos achamos envolvidos em uma máquina sociodiscursiva. E um dos instrumentos mais poderosos dessa máquina são os gêneros textuais, sendo que seu domínio e manipulação depende boa parte de nossa inserção social e de nosso poder social. (MARCUSCHI, 2008, p. 162)
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Se um dos mais poderosos instrumentos da “máquina sociodiscursiva” é os gêneros
discursivos – e se a inserção social a eles está determinada – o enfoque do ensino da língua
em sala de aula não pode ser outro senão os gêneros discursivos em todos os seus aspectos.
3. ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS
Compreendida a importância do trabalho pedagógico voltado aos gêneros
discursivos para a formação de um aluno socialmente participativo e crítico, passamos às
análises dos LD e das concepções de linguagem que cada um deles defende, para, em
seguida, verificar se nas propostas de trabalho as concepções apresentadas realmente se
efetivam.
3.1. LD JORNADAS.PORT
O primeiro livro a ser analisado é Jornadas.port (2012) do 9º ano do Ensino
Fundamental, elaborado por Dileta Delmanto e Laiz B. de Carvalho. Teoricamente, as
autoras tomam como base de seus encaminhamentos os PCNs do Ensino Fundamental
(BRASIL, 1998), Marcuschi (2008), Soares (2012), Bagno (2017), Dolz e Schneuwly (2004),
Bakhtin (2011), Vygotsky (2007), Koch (2009), Citelli (2008), entre outros. Nesse contexto
teórico, a língua é compreendida como uma atividade sociointerativa “que rompe com as
correntes que tratam a língua como um fenômeno separado do universo social e histórico
(DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 5). Ou seja, a língua não é apenas um conjunto de
regras gramaticais para ser ensinado, apesar de sistemática e ordenada: é uma prática de
interação social. Nas palavras das autoras:
Assim, saber utilizar a linguagem pressupõe fazê-lo adequando-se às variadas situações de comunicação, construindo e atribuindo sentido a partir das relações que se mantém com o tema, com o interlocutor, com os conhecimentos prévios e com o contexto social em que ocorre a interlocução (DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 5)
Os gêneros discursivos, nessa perspectiva, são a base do trabalho proposto pelas
autoras. Os gêneros trabalhados no 9°ano são o conto – fantástico, de terror e de humor –
folheto de divulgação (folder), relatório escolar, letra de música – samba enredo e rap –
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artigo de opinião, poema, roteiro de cinema e roteiro de propaganda para a TV, editorial,
charge e cartum.
Dentre as contribuições que as autoras mencionam para o trabalho com enfoque
nos gêneros discursivos, enfatizam que: é uma prática fundamental na aquisição e na
ampliação do letramento exigido para a vida em sociedade; desenvolve também a
competência linguística do aluno, pois explora aspectos tanto da organização textual quanto
do contexto de produção; permite ao aluno compreender os aspectos sócio-históricos dos
gêneros estudados; torna o texto o objeto do trabalho do professor; permite que o aluno
perceba que o mesmo tema pode ser abordado de diferentes formas em diferentes gêneros;
considera o papel do suporte, dos objetivos, da seleção dos níveis de linguagem e da
representação do interlocutor na elaboração do gênero e permite orientações seguras aos
professores para propostas de produção textual e avaliação dos mesmos.
Deve ser ressaltado que nem todas as seções dos três LD em questão serão aqui
analisadas, visto que o interesse é somente pelos encaminhamentos quanto ao gênero
musical rap, tanto de leitura quanto de escrita. Dessa forma, será fonte de análise
unicamente a segunda parte da unidade quatro do livro Jornadas. port.
A subseção Antes de ler introduz a leitura de cada unidade com questões de
sondagem do conhecimento prévio dos alunos sobre o gênero discursivo que será
trabalhado ou sobre o assunto abordado, além de buscar despertar o interesse pela leitura,
propor antecipações ou formulação de hipóteses.
A exploração dos textos propriamente dita acontece em três subseções: a) Nas linhas
do texto: comparação e localização de informações explícitas no texto; b) Nas entrelinhas do
texto: inferenciação, formulação de hipóteses, identificação o tema, compreensão global do
texto; c) Além das linhas do texto: posicionamento crítico, estético e ideológico do aluno por
meio da leitura.
Essas subseções, no parecer das autoras, buscam englobar atividades de construção
e reconstrução de sentidos do texto pelo aluno, o que “advém da concepção de que a
leitura é uma construção que envolve tanto o produtor do texto quanto o leitor”
(DELMANTO; CARVALHO, 2012, p. 20).
De forma ampla, o livro é composto por oito unidades, com várias seções,
subseções e boxes. A unidade quatro – Caaanta, meu povo! – traz o gênero discursivo letra de
música para estudo, explorando dois estilos musicais: a primeira parte, mais detalhada,
trabalha com letra de samba-enredo e a segunda, complementar, com letra de rap.
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Na abordagem à letra de rap, na seção Antes de ler há algumas perguntas
“provocadoras”, que sondam o conhecimento do aluno sobre o assunto. Essas questões
favorecem as antecipações, a formulação de hipóteses e ativam o conhecimento prévio do
aluno. Em seguida, aparece um parágrafo em que a finalidade do gênero musical rap é
explicitada. Em seguida, o livro traz a letra, na íntegra, de Us guerreiro, de Rappin’Hood.
Sugere a leitura, mas não a audição da mesma, tarefa fácil em época tecnológica como a
nossa. Mas o livro não aponta esse direcionamento.
A seguir, na seção Exploração do texto, a letra do rap é analisada. Como tal letra não é
o principal texto da unidade, não é explorada nas subseções citadas acima, o que acontece
somente com o texto principal. São propostas oito questões de análise da leitura5, das quais
se observa que:
Duas questões têm foco no leitor, que possibilitam ao aluno fazer
inferências e levantar hipóteses.
Duas questões têm foco no autor/rapper, que permitem a extrapolação do
texto, fazendo relações com outras realidades ou com o cotidiano.
Três têm foco no texto, propiciando a localização de informação e análises
sobre opções de linguagem referentes ao gênero, além de favorecer a
compreensão das finalidades do texto;
Uma tem foco na interação autor/texto/leitor, em que é preciso fazer
5Para compreender as análises a seguir, é preciso ater-se aos focos de leitura nas diferentes concepções de linguagem. A leitura, na concepção de linguagem sociointeracionista (dialógica) tem como base a interação autor/leitor/texto. Koch e Elias (2010) explicam que os leitores, nessa concepção, são sujeitos ativos, responsivos: ao mesmo tempo em que constroem o texto, são por ele construídos, na interação texto-sujeitos. O significado do texto é obtido por meio das informações da página impressa – o texto propriamente dito – aliado à mobilização de uma gama de conhecimentos de mundo do leitor. Desse tipo de leitura espera-se que o leitor compare, reflita concorde, discorde, complemente e amplie os significados do texto. As outras diferentes concepções de linguagem e de leitura existentes não respondem a essas expectativas; Vejamos: Segundo Koch e Elias (2010), na concepção de linguagem como representação do pensamento o texto é a representação lógica do pensamento do autor, é um produto acabado. Cabe ao leitor, passivamente, “captar” aquilo que o autor quis dizer. A leitura é a captação e assimilação dessas idéias, sem considerar as experiências e os conhecimentos do leitor. O foco é, pois, o autor e suas intenções. Outra concepção de linguagem toma a língua como uma estrutura, como um código de comunicação. O texto é o produto onde a codificação se realiza e ao leitor cabe decifrá-lo. Para isso, basta que domine o código utilizado, ou seja, que leia o texto, decodifique-o. A leitura tem o foco no texto, nas suas palavras e estruturas. A leitura parafrástica e mecânica encaixa-se nessa concepção. Para Menegassi e Angelo (2010), na concepção cognitiva de linguagem o foco está no leitor, que constrói o sentido do texto por meio dos conhecimentos prévios que possui. Ler é atribuir sentido ao texto, e isso acontece por meio de quatro estratégias: seleção, antecipação, inferência e verificação.
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associações entre o texto, a realidade que o rodeia e seu conhecimento de
mundo.
Na seção Do texto para o cotidiano aparecem informações sobre o contexto social que
envolve o rap, seu surgimento e objetivos, além de fornecer dados sobre os outros
elementos do hip hop: o grafite e a dança de rua. Duas questões com foco no leitor abordam
esse aspecto, um dos mais importantes relacionados ao gênero.
As informações quanto à intenção, o público alvo, a organização composicional e a
linguagem do rap aparecem sistematizadas num quadro, resumidamente. Outras
informações importantes são trazidas em pequenos boxes, como por exemplo, sua origem,
informações sobre o autor/rapper e sobre a importância social do hip hop como movimento
social, sendo o rap uma de suas vertentes.
A proposta de produção escrita da unidade traz a criação da letra de rap: É orientada
com o seguinte comando: Siga as orientações e crie a letra de um rap para ser apresentado à classe. A
letra também poderá ser publicada no jornal da classe no final do ano. A seguir, aparecem outras
orientações, em três passos: Planejando o texto; Avaliação e reescrita e apresentação:
Segundo Costa-Hubes (2013), os comandos da produção escrita que compreendem a
linguagem como forma de interação devem contemplar orientações quanto ao gênero,
finalidade, seus interlocutores, suporte, circulação e posição social do sujeito autor. Nas
orientações para a produção textual desse LD, vemos que definem o gênero do texto a ser
produzido, também garantem a circulação e orientam quanto ao formato composicional e
aos possíveis temas, o que pode ser considerado um bom comando para a produção
textual.
3.2. LD PROJETO TELÁRIS
O segundo livro a ser analisado é Projeto Teláris (2013), do 8º ano, elaborado por
Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi. Tais autoras apontam como
referência teórica Kleiman e Moraes (1995), Bakhtin (1997), Rojo (2000), Dolz e Schneuwly
(2004). O ensino da língua é considerado na perspectiva do letramento a partir de Kleiman
(1995) e tem os gêneros textuais6 como eixo norteador da organização dos conteúdos:
6 As autoras ora usam a expressão gênero textual, ora gênero do discurso, sem diferenciação de conceito.
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A abordagem focada nos diversos gêneros do discurso favorece o desenvolvimento da percepção de que, no mundo das linguagens, a produção de sentidos é sempre contextualizada, em circunstâncias específicas de comunicação e carregada de intenções (BORGATTO; BERTIN; MARCHEZI, 2013, p. 5)
Como argumentação para tomarem os gêneros como base dos encaminhamentos,
as autoras mencionam que tal procedimento permite determinar o que deve ser buscado
num texto, e que para isso se usa tanto a mobilização de conhecimentos anteriores
referentes àquele gênero como a antecipação, atividade facilitadora da leitura. Além disso, o
estudo da língua com base em gêneros discursivos situa e contextualiza de forma clara os
aspectos a serem analisados, como as escolhas de linguagem, para que se concretizem as
intenções do autor.
Os gêneros da esfera literária são tratados com maior ênfase pelas autoras;
justificam tal postura pelo fato de que a literatura se constitui “num tipo de conhecimento
específico, que deve ser trabalhado em suas especificidades artísticas, de fruição estética, de
estilo e de escolhas de linguagem” (BORGATTO; BERTIN; MARCHEZI, 2013, p. 7) e
ainda porque os textos literários fazem parte do universo cultural letrado ao qual o aluno
precisa se apropriar.
Além disso, assinalam as autoras, que os textos literários possibilitam uma leitura
enriquecedora, que provoca produção de sentidos mais intensa, a inferência, a percepção de
subtendidos, a interpretação e a compreensão dos jogos de palavras e as escolhas de
linguagem que constroem estilos.
O livro é composto por quatro unidades, sendo que em cada uma há dois capítulos.
Cada capítulo organiza-se em torno de um gênero principal. Os gêneros estudados no 8º
ano são: mito, romance, texto expositivo7, algumas formas de organizar a informação
(resumos e esquemas), texto de divulgação científica, texto de opinião, anúncio publicitário,
texto teatral, letra de canção – onde se encaixa a letra de rap.
O capítulo oito tem como enfoque o gênero letra de canção. Na página
introdutória, traz explicações sobre as origens das primeiras canções, sobre sua importância
na vida da humanidade e sobre alguns temas nelas retratados.
A letra de rap é a segunda letra apresentada; A primeira letra do capítulo é Vilarejo,
de Marisa Monte. Ao propor a letra de rap, inicialmente aborda as origens do gênero
7 O LD em questão traz o texto Consumismo, do livro IstoÉ tudo: o livro do conhecimento. São Paulo, [s/d] e classifica-o como um texto expositivo. Parece haver, neste caso, uma confusão teórica entre gênero discursivo e tipologia textual.
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musical, que são destacadas em um fragmento de texto adaptado do site da Wikipédia. Em
seguida, o LD apresenta a letra do rap Tempestade, de Gabriel o Pensador, na íntegra.
Aparece também uma pequena biografia do autor/rapper.
Na seção Interpretação do texto há 13 questões que sobre a letra de rap. Dessas
questões, verifica-se que:
Três questões têm foco no texto;
Três questões têm foco no leitor;
Três questões têm foco na interação autor/texto/leitor;
Quatro questões têm foco no discurso, explorando diferentes sentidos dos
versos e relações de intertextualidade;
Na seção Linguagem e construção do texto são trabalhadas as rimas, repetição de sons,
de palavras, jogos de palavras e trocadilhos, mas as características específicas do gênero
musical – a linguagem coloquial, as letras longas, a linguagem ácida e direta, o uso de
refrão, a crítica ou denúncia social – não são abordadas. Também não há encaminhamentos
para levar o aluno a pensar sobre o contexto de produção, os possíveis interlocutores e o
suporte, assim como não há proposta de produção de texto escrita no final do capítulo.
Contudo, um aspecto positivo a ser observado é que o livro propõe a audição das
letras de canção trabalhadas, dando importância ao ritmo, percebendo-o como um dos
componentes do gênero musical, uma vez que este também é repleto de sentidos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após essa breve incursão para investigar como a letra de canção – gênero musical
rap – é tratada nos livros didáticos, algumas considerações são dignas de nota. Inicialmente,
o que se constatou é que os dois livros analisados abordam a letra de rap como
complemento, não como principal texto da unidade e o encaminhamento a ele dispensado
é complementar ao do texto principal: é mais sucinto, não abrange questões importantes
para a compreensão do gênero em suas particularidades.
Jornadas.port, contudo, dispensa à letra de rap maior atenção, pois encaminha
atividade de produção textual e explora várias de suas características de tema, estilo e forma
composicional. Todavia, também nesse LD constata-se que algumas informações são
exploradas superficialmente, por meio de rápidos comentários, o que talvez, não garanta
realmente a compreensão de certos aspectos por parte do aluno, como a questão do refrão,
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da linguagem, dos temas – características marcantes das letras de rap. A complexidade da
sociedade que originou esse gênero musical como meio de protesto e denúncia das classes
trabalhadoras e excluídas, em específico os negros, seus temas de resistência, a linguagem
ácida e às vezes agressiva são aspectos abordados superficialmente nos livros. Aqui cabe o
trabalho do professor para ampliar e aprofundar a abordagem com pesquisas em outras
fontes e atividades mais aprofundadas.
Outro fato que merece reflexão é que o livro Projeto Teláris traz a letra de Gabriel o
pensador. Notadamente, ele é um grande cantor de rap, mas não é o mais representativo
desse gênero poético/musical no Brasil. E falta-lhe a questão do pertencimento ao falar do
racismo, por exemplo. Suas letras falam sobre o negro e sobre o preconceito do ponto de
vista do branco, diferente do Rappin’Hood, citado no livro Jornadas.port por exemplo, que
fala do ponto de vista do negro e do pobre da periferia: o eu enunciador é assumidamente
negro e busca preservar a cultura, como sujeito, numa atitude compromissada8, segundo o
que assinala Proença Filho (2004). E isso é importante ser analisado ao se trabalhar o
gênero rap em sala de aula, mesmo que o livro didático silencie sobre tais abordagens.
E, para finalizar, constatou-se também que os encaminhamentos teórico-
metodológicos dos dois LD são muito semelhantes, inclusive no aporte teórico que os
fundamenta. Ambos compreendem a linguagem como forma de interação e os gêneros
discursivos com essência para as aulas de língua portuguesa. No entanto, nas propostas de
atividades pode-se perceber que nem todas as concepções defendidas teoricamente se
concretizam e, mais uma vez, o livro Jornadas.port se sobressai, pois coloca em prática, de
forma mais comprometida, pelo menos no que diz respeito aos encaminhamentos
referentes ao gênero letra de canção –Ra – àquilo que se propõe na parte teórica.
Não obstante, o fato de trazer letra de rap no rol dos gêneros a serem trabalhados
demonstra que os dois LD estão atentos aos novos gêneros discursivos que surgem nas
práticas sociais desse início de século e que estão levando tal debate para a sala de aula, o
que é um fator positivo para abordagens da interculturalidade, faltando, porém, maior
aprofundamento, conforme foi mencionado nas análises.
8Proença Filho (2004) aborda a trajetória do negro na nossa literatura e enfatiza que foi tratado, por séculos, como objeto, contudo, recentemente tem assumido papel de sujeito, ou seja, a fala/visão do próprio negro é resgatada, na busca de vencer estereótipos e acabar com o preconceito, explícito ou velado, em defesa de sua identidade cultural. Ou seja, de um lado tem-se a literatura sobre o negro e de outro, a literatura do negro. E, segundo o autor, essa dicotomia se comprova a partir de dois posicionamentos que marcaram essa trajetória: a condição do negro como objeto, numa visão distanciada, e como sujeito numa atitude compromissada.
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