O IMAGINÁRIO DA BRANQUITUDE À LUZ DA · PDF fileafro-Ásia, 48 (2013), 77-125 77 o imaginÁrio da branquitude À luz da trajetÓria de grande otelo: raÇa, persona e estereÓtipo

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    O IMAGINRIO DA BRANQUITUDE LUZ DA TRAJETRIA DE GRANDE OTELO:

    RAA, PERSONA E ESTERETIPO EM SUAPERFOMANCE ARTSTICA*

    Luis Felipe Kojima Hirano**

    If there are forty million African Americans,then there are forty million ways to be black.

    Henry Louis Gates Jr.1

    m seus quase 70 anos de carreira, Grande Otelo atuou nos maisdiferentes projetos do cinema brasileiro. De Moleque Tio(1943) a Carnaval Atlntida (1953); de Amei um bicheiro (1953)

    a Rio Zona Norte (1957); de Macunama (1969) a Nem tudo verdade(1983). Otelo conseguiu ultrapassar as barreiras dos gneros e movi-mentos cinematogrficos, indo da comdia ao drama, das chanchadasao realismo carioca, do Cinema Novo ao Cinema Marginal.

    E

    * Este artigo produto de vrias verses que foram apresentadas em diversos congressos emque tive a oportunidade de dialogar com professores e pesquisadores a quem agradeo: Fabi-ano de Souza Gontijo, Laura Moutinho, Peter Fry, Helosa Pontes, Caroline Cotta de MelloFreitas, Helosa Buarque de Almeida, Ronaldo Almeida, Lilia Schwarcz, minha orientadora, eaos demais colegas dos ncleos Etnohistria e Numas. Tambm agradeo a Tatiana Lotierzopela interlocuo intensa e frutfera em diversos momentos da pesquisa e ao parecerista adhoc pelos comentrios e sugestes.

    ** Esse artigo se insere em minha pesquisa de Doutorado, no Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social da USP, intitulada Cinema em negro e branco: brasilidade e imaginrioracial na cinematografia brasileira, financiada pela Fapesp. O artigo tambm se vale de umasrie de informaes pesquisadas durante o meu estgio de doutorado na Universidade deHarvard, nos Estados Unidos, financiando pela Capes, sob a orientao de Nicolau Sevcenkoe Clmence Jout-Pastr, a quem agradeo pelo apoio e interlocuo profcua. E-mail:[email protected]

    1 Se h quarenta milhes de afro-americanos, ento h quarenta milhes de modos de sernegro, traduo minha, de Henry Louis Gates Jr. e Jennifer Burton, Call and Response: KeyDebates African American Studies, Nova York: Norton, 2011.

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    Ator cujo talhe corporal, a fisionomia e a cor so, em tudo, opos-tos quilo que se convencionou como padro do heri, um dos poucosna histria do cinema no Brasil que participaram de diferentes projetoscinematogrficos, s vezes opostos, e em papis centrais nas tramas dosfilmes, cravando sua imagem na memria coletiva dos brasileiros queviveram no sculo XX. Como compreender essa trajetria singular numasociedade em que os espaos destinados aos intrpretes negros na tele-viso, teatro e cinema ainda esto muito aqum do destaque dado aosbrancos? Mais do que me contentar com a simples resposta de que Gran-de Otelo constitui uma exceo que confirma a regra, penso que o iti-nerrio do ator permite analisar, em certa medida, como marcadores raciaisso mobilizados no campo cinematogrfico. Busco dialogar com asmudanas na discusso sobre a representao e o lugar do negro nasociedade brasileira, tema este que se transformou ao longo da carreirado ator e com o qual ele teve de se debater em variados momentos.2

    Em linhas breves, seu percurso se inicia com personagens queincorporam o imaginrio da democracia racial, nas chanchadas dos anos1940 e 1950, passando em seguida ao realismo carioca e aos filmes deNelson Pereira dos Santos, diretor que ir problematizar o lugar do ne-gro e da populao mais pobre na sociedade brasileira. Otelo vive ummomento de ostracismo na primeira fase do Cinema Novo, que adotacomo prerrogativa uma forma distinta de retratar a populao afrodes-cendente. Na assim chamada terceira fase desse movimento, nos finaisda dcada de 1960, ele retorna como Macunama, de Joaquim Pedro deAndrade, e abre seu leque de representaes para distintos diretores,incluindo aqueles ligados ao assim chamado Cinema Marginal. Antes,entretanto, de me aprofundar nessa trajetria, discuto os conceitos queajudam a aquilat-la melhor, levando em conta a dinmica das relaesraciais e as convenes do campo cinematogrfico.

    2 Uma discusso mais aprofundada, procuro realizar na minha tese de doutorado, em andamen-to, em que analiso mais detidamente as questes aqui propostas levando em conta tambm aperformance de Grande Otelo nos filmes.

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    Persona, esteretipo, raa e corpo naperformance cinematogrfica

    Ao lidar com o itinerrio de Grande Otelo, necessrio elucidar as va-riveis que conformam sua trajetria em termos raciais e a lgica dasconvenes do campo cinematogrfico, bem como a interseco entreeles. Nesse sentido, mobilizo ao menos trs conceitos: persona cinema-togrfica, persona memorialstica e esteretipo. Vejamos cada um de-les separadamente, para depois, analisarmos o conjunto.

    O conceito de persona cinematogrfica (ou artstica), conformedefinido por Sobral, diz respeito ao elo entre o intrprete e seus perso-nagens que, ao longo da carreira, irredutveis uns aos outros, so cola-dos a uma imagem atravs do aparato tcnico-cinematogrfico (leia-seroteirista, tcnico de som, diretor, editor), em distintas etapas do pro-cesso da produo distribuio e recepo de um filme. A personacinematogrfica constitui, assim

    uma individualidade artstica delineada pela performance na tela umavez que discriminada entre os filmes ao longo da carreira , a partirda qual descrita atravs de traos fsicos e gestos corporais [...]. Aimplicao que os personagens [de] dois [...] atores no sointercambiveis [...]. A noo de persona artstica, ento, diferencia umintrprete de outro, ou seja, um mecanismo de distino, no apenasartstica, mas tambm, e fundamentalmente social, uma vez que esta-belece uma posio para se alojar na estrutura de produo cinemato-grfica.3

    Tal conceito ganha maior clareza por meio da comparao entreo cinema e o teatro moderno: se neste, os louros so alcanados pelaversatilidade dos papis interpretados, naquele, a persona se constitui a

    3 Lus Felipe Sobral, Bogart duplo de Bogart: pistas da persona cinematogrfica de HumphreyBogart, 1941-1946 (Dissertao de Mestrado, Universidade de Estadual de Campinas, 2010),p. 62. interessante notar que embora os principais autores da histria de Hollywood utilizemo conceito de persona cinematogrfica, no h nenhuma definio deles sobre tal conceito,compreensvel apenas atravs de suas economias explicativas nos textos. Ver Thomaz Schatz,Hollywood Genres: Formulas, filmmaking, and the Studio System, Boston: McGrawHill, 1981;Tino Balio, History of the American Cinema: Grande Design (1930-1939), Los Angeles,University of California Press, 1995.

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    partir da frmula em que, a cada repetio de um mesmo tipo, fazem-sepequenas variaes. Por um lado, a estratgia evita um estranhamentomaior de parte do pblico, por outro, faz com que no se canse. Comodefine Barry King,4 no cinema h um processo de personificao entreo ator e seu papel, ao passo que no teatro, o processo de despersonifi-cao. O primeiro diz respeito ao uso de caractersticas corporais egestuais do ator para constituir um mesmo tipo idiossincrtico ao viverdiferentes personagens. Em contraposio, despersonificar se refere aomecanismo em que o intrprete se despoja de suas caractersticas maismarcantes para adentrar diversos papis, a ponto de no reconhecermoso ator por trs deles. Entretanto, trata-se mais de uma diferena de graudo que absoluta entre a atuao no teatro e no cinema. Em outras pala-vras, no cinema o intrprete representa a si mesmo, como em outrasocasies definiram Walter Benjamin5 e Paulo Emlio Salles Gomes.6

    Mas, isso no significa menor habilidade do ator de cinema.

    Como demonstra Paul Mcdonald,7 a atuao no filme diversados comportamentos cotidianos realizados por qualquer pessoa: no bastacolocar algum inexperiente para atuar numa fico ou um ator apenascom formao teatral em frente cmera, sem um treinamento prvio.Noutras palavras, ao representar a si mesmo, o ator precisa seguir deter-minados cdigos e convenes, o que requer aprendizado, pois o efeitode realidade da performance cinematogrfica se escora em atuar, semparecer que se est interpretando.8 Como tal mecanismo exige personi-ficar o personagem sua imagem e semelhana, talvez seja mais apro-priado dizer que o ator no cinema representa geralmente sua persona.

    Nesse mtier, a descontinuidade do tempo e do espao entre ainterpretao e a exibio requer uma continuidade em outro plano, que

    4 Barry King Articulating Stardom, Screen, v. 26, n. 5 (1985), pp. 27-50.5 Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, in Obras escolhi-

    das: Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1987.6 Paulo Emlio Salles Gomes, A personagem cinematogrfica, in Antonio Candido (org.), A

    personagem de fico (So Paulo: Perspectiva, 1976).7 Paul Mcdonald, Film acting, in John Hill e Pamela Church Gibson (orgs.), The Oxford

    Guide to Film Studies (Oxford: Oxford University Press, 2008).8 Parte das principais crticas, na dcada de 1930 e 1940, no Brasil, considerava exagerada a

    atuao dos atores teatrais nos filmes e, logo, diferente do que seria prprio do cinema. Ver,nesse sentido, a crtica de cinema nas revistas Cena Muda (1921-1955) e Cinearte (1926-1942).

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    se sustenta na semelhana entre o personagem e o ator na vida pblica,enquanto no teatro a continuidade temporal e espacial da interpretao,no instante do palco, exige do ator uma despersonificao para adentraro papel. Vale lembrar que tais diferenas entre performances (a do tea-tro e a do cinema) no so constantes, elas mudam com o decorrer dotempo e de acordo com o contexto.

    Vejamos, por meio de exemplos concretos, de que maneira atorescomo Grande Otelo, apesar de possurem caractersticas fsicas aparen-temente consideradas desfavorveis, conseguiram se destacar, seja nocinema, seja teatro, ou mudando de um campo a outro. Lembro as