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O LIXO VAI FALAR, E NUMA BOA. – As possíveis relações entre o feminismo
negro norte-americano e a obra de Lélia Gonzalez.
Renata Coutinho Ferreira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Resumo: “Historicizando” a partir da intelectual Lélia Gonzalez e de sua teoria
feminista amefricana perceber relações, redes e constelações entre esta e as
epistemologias das teóricas norte-americanas Patricia Hill-Collins, Audre Lorde e
Kimberlé Crenshaw. As próprias experiências enquanto mulheres negras - na América
Latina e na realidade brasileira e nos Estados Unidos - nos apresenta muito sobre a
interseccionalidade presente em suas epistemologias Pretendo observar de forma um
pouco sucinta como se dão essas quebras a partir de novas epistemes florescendo em
diversos espaços e em períodos diferentes. Visando proporcionar um debate amplo,
entre, e através de teorias feministas amefricanas, a fim de pensar num movimento
para descolonizar teorias feministas e a própria história.
Palavras-chave: Feminismo amefricano; Lélia Gonzalez; Feminismo negro norte-
americano.
Introdução
Quantas autoras tu leu durante toda tua formação acadêmica? Quantas
autoras negras tu leu? Quantas autoras indígenas ou não-brancas tu lestes? Estavam
elas presentes em bibliografias das disciplinas obrigatórias ou eletivas/optativas?
Existe alguma razão para que não as utilizemos em nossos estudos? Essas mulheres
existem? Para quem? Desde o princípio da graduação em história estes
questionamentos se demonstraram presentes para mim. Nunca soube muito bem como
respondê-los, e não sei se terão respostas. Partindo destas prerrogativas presentes,
busquei entender como e através de quais campos os estudos das sujeitas e suas
identidades provocam assertivas nos âmbitos epistemológicos. Como as influências e
práticas sociais chegaram às suas teorias?
Em um primeiro momento, fiz análises referentes a uma intelectual negra,
feminista e brasileira Lélia Gonzalez, e seu amplo trabalho acadêmico e prático nessa
2
área. Analisei alguns trabalhos, de bastante destaque em sua trajetória, que revelam a
importância e a influência de seus escritos teóricos militantes1. Procurei observar e
estabelecer relações entre as concepções do feminismo amefricano de Lélia Gonzalez e
algumas teóricas do feminismo negro norte-americano. Pensando em lógicas de
articulação do conhecimento em redes intelectuais, que se formam a partir dos estudos e
práticas semelhantes em locais e temporalidades diferentes.
Posteriormente, procurei discutir e argumentar questões as quais três intelectuais
afroamericanas propõem-se em seus respectivos trabalhos, sendo elas Patricia Hill-
Collins, Audre Lorde e Kimberlé Crenshaw. As três autoras apresentam pontos de vista
convergentes a partir da noção de interseccionalidade, com o objetivo de difundir e
ampliar essas noções. Pretendo desenvolver uma discussão, que não encerra em si,
sobre as teorias de feministas que perpassam o pós-colonial através da noção
diaspórica presente também nos Estados Unidos. Buscando também observar como
essas teorias feministas compreenderam-se2. Dito isto, espero que a leitura seja
proveitosa e que mais traga questionamentos do que evidências concretas, visto que é
importante – do meu ponto de vista – nutrir-se de dúvidas mais do que de certezas.
Quem tem medo do feminismo amefricano?
É preciso aperceber-se, quando tratamos de feminismo negro, as incógnitas
que tal tema carrega consigo. Observar para além das desigualdades que envolverão
falar de raça e gênero, e atentar para as condições em que ambos os critérios teriam, de
fato, emergido como categorias/veículos/vetores de opressão. Escolhi alguns trabalhos
da intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez3 para esboçar análises e inter-relações
possíveis através destas redes intelectuais. Pretendo observar como e o que a obra de
Lélia representam a partir das epistemes desenvolvidas por ela; para pensar mais
adiante, em qual medida os conhecimentos teóricos de Lélia conversam com os
escritos das intelectuais feministas afroamericanas; seria possível traçar interconexões
entre o que norte-americanas expõem e o contexto brasileiro apresentado por Lélia?4
1 Acredito que não seja possível separar a militância prática e a vivência, daquilo que produzimos dentro
da academia. 2 Pois, durante a minha formação não tive muito contato com as teorias afroamericanas de gênero e
feminismo. Nem as norte-americanas e muito menos as brasileiras. Meu conhecimento era restringido
em torno das teóricas feministas brancas europeias e norte-americanas do século XX. 3 Bacharela em filosofia, ciências e letras; licenciada em história e geografia. 4 “Ressalto o fato das relações raciais não terem permanecido estáticas nas duas sociedades. Em cada qual
elas se desenvolveram de um modo diferente ao longo do tempo, configurando, assim, formas distintas
de desigualdades para os descendentes de africanos, como ocorreu também em outras ex-sociedades
escravistas. Nas diferenças entre Brasil e EUA, as heranças culturais e históricas acrescidas das
3
Primeiramente é necessário compreender o contexto do qual a autora fala. No
âmbito territorial é preciso entender como as atribuições sociais e políticas acabam
estipulando as regras do jogo de opressões no Brasil. Sabemos então que a identidade
nacional brasileira, a fim de obter ampla aceitação, foi criada a partir do mito das três
raças5. E com essa problemática, no contexto de intelectuais como Gilberto Freyre6 e
Nina Rodrigues, o racismo cultural no Brasil constituiu-se. As críticas ao racismo
biológico eram bem comuns dentro dessa conjuntura intelectual. Sendo assim, as
questões culturais associadas à raça foram uma reposta e tentativa de barrar com o
racismo biológico, entretanto, acabaram criando o racismo cultural. Antropólogos,
sociólogos e historiadores buscaram teorizar sobre a identidade do negro na sociedade
brasileira, a partir de generalizações que instituíram estereótipos, que auxiliam a
estruturar a ideia mítica de que no Brasil temos uma democracia racial, e que, a sua
maneira, fazem com que essas ideias permaneçam no imaginário popular até o
presente7 momento. Portanto, a questão racial no Brasil é algo que foi moldado
através da cultura, fornecendo fortes pilares para constituir racismo institucional8,
que vincula o poder e os aparatos policiais à promoção do genocídio9da população
negra.
Deste modo, a importância de utilizar Lélia como fonte neste trabalho, partiu
diferenças econômicas e sociais possuem grande relevância. Porém, isso não invalida os pontos de
semelhanças, na medida em que, as duas sociedades possuíram uma experiência colonial e
escravista.” (BARRETO. 2005, p. 15.). 5 Popularmente entendido como a constituição do “ser brasileiro” a partir da mistura de três raças a
indígena, a africana e a europeia, neste caso a portuguesa. Conceito muito utilizado no início do século
XX, devido à necessidade de constituir uma identidade nacional. Marca a relação da sociologia,
através de Gilberto Freyre, com crítica ao racismo biológico e a construção do racismo cultural. 6 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. – 51ª ed. rev. – São Paulo: Global, 2006. 727 p. 7 Porém, é possível perceber também a enorme mudança que tem ocorrido no cenário político-social do
Brasil. As questões raciais tem ganhado destaque ao serem debatidas cada vez mais como, por
exemplo, casos de injúria racial têm sido alvos de grande veiculação midiática e promovidos amplas
discussões com sociedade. No âmbito da educação superior tivemos avanço devido à política das Cotas
Raciais, Lei 12.711/12; no ensino básico, através da Lei 10.639/03 e sua posterior alteração com a Lei
11.645/08, que prevê a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira. As
Leis podem ser conferidas nos seguintes links de acesso: 12.711/12:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm; 10.639/03:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm; 11.645/08:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. 8 Temos exemplos relevantíssimos a esse respeito como, por exemplo, o assassinato brutal de Cláudia
Silva Ferreira; o desaparecimento de Amarildo Dias de Souza; a prisão de Rafael Braga. A título de
curiosidade, existe uma música chamada “Delação premiada” escrita e interpretada por Mc Carol de
Niterói, onde ela expõe um pouco sobre este assunto. 9 Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: um processo de um racismo mascarado. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
4
também das prerrogativas abordadas anteriormente na introdução. A trajetória10
profissional de Lélia percorre diversas universidades e escolas em que lecionou,
como: a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Gama
Filho (UGF), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o Colégio Santo
Inácio e o Colégio Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CAP-
UERJ). Como militante política e intelectual Lélia desempenhou papel importante,
durante a ditadura, promovia reuniões com alunos e amigos a fim de discutirem
filosofia. Teve participação importante no Movimento Negro e carreira política no
Partido dos Trabalhadores (PT) e mais tarde no Partido Democrático Trabalhista
(PDT). Em 1994 Lélia assume a Direção de Sociologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio. Porém, no mesmo ano, aos 59 anos, Lélia morre vítima de um infarto
no miocárdio.
A autora foi fundamental na criação e ampliação do movimento negro11
contemporâneo, como também pautou a importância de entender as questões raciais
no Brasil12. Trabalha com a ideia de branqueamento13, como uma das mais eficazes
expressões ideológicas do racismo na América Latina. Para Lélia era necessário que a
população negra “tome consciência de seu papel de sujeito da própria história e da
sua importância na construção não só deste país, como na de muitos outros das
Américas.” 14.
É relevante notar também que Lélia, até metade dos anos 80, teria sido a
militante acadêmica negra que mais participou de seminários e congressos
internacionais dentro e fora15 do Brasil. “E com ela aprendemos outros modos de
pensar a diáspora africana, sintetizada em sua proposta da categoria amefricanidade
10 Lélia graduou-se em História e Geografia em 1958, em Filosofia no ano de 1962 na antiga
Universidade do Estado da Guanabara, que atualmente é a conhecida como Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Em relação aos estudos, Lélia menciona nos seus depoimentos que esse foi
o espaço de realização do processo de lavagem cerebral racista. “(...) vocês podem imaginar como eu
me sentia na aula de história quando a professora dizia que o negro era servil e o índio indolente! Logo
eu, filha de pai negro e mãe índia!”. (BARRETO. 2005, p. 20.). 11 A partir disso, outras entidades que tidas como culturais, tiveram de posicionar-se perante as questões
da sociedade racializada brasileira. Com o tempo Lélia foi afastando-se do MNU, e ficando próxima
dos setores políticos
– fora do movimento negro – porque ela temia a guetização da população
negra brasileira. 12 Entendendo que a cultura brasileira é massivamente afro-brasileira. 13 “O “tornar-se negra” anuncia um processo social de construção de identidades, de resistência política,
pois reside na recusa de se deixar definir pelo olhar do outro e no rompimento com o embranquecimento;
significa a autodefinição, a valorização e a recuperação da história e do legado cultural negro, traduzindo
um posicionamento político de estar no mundo para exercer o papel de protagonista de um devir histórico
comprometido com o enfrentamento do racismo.”. (CARDOSO. 2014, p. 973.). 14 GONZALEZ. 1986, apud BAIRROS. 2000, p. 4. 15 Esteve presente nos Estados Unidos, Caribe diversos países de África, América Central e Europa.
5
para definir a experiência comum dos negros nas Américas.”. 16 Separei algumas
citações, as quais achei relevantes para o objetivo da pesquisa, e através delas
desenvolver uma espécie de rede de conhecimento em conjunto, partindo de Lélia e as
intelectuais negras norte-americanas.
A partir da noção de amefricanidade a autora cria uma nova epistemologia ao
conceber o conhecimento por meio dos saberes das sociedades africanas e indígenas.
Isto é, descoloniza o saber, na medida em que experiências de mulheres africanas e
indígenas são o que formam a concepção filosófica de amefricanidade. Lélia utiliza
esta significação a fim de questionar o próprio conceito existente de identidade latino-
americana – que foi disseminado por meio do domínio imperialista, em grande parte
estadunidense. Que acabou ocasionando no apagamento de mulheres negras
enquanto sujeitas, pois aglutinou diversas subjetividades divergentes e também
convergentes em um conceito essencialista. A partir dessa observação, Lélia nos
apresenta sua categoria de ladinoamefricanidade.
Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-
cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, da
ordem do inconsciente, não vem a ser o que geralmente afirma: um país
cujas formações, do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas.
[...] Nesse contexto, todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e os
“pardos” do IBGE) são ladinoamefricanos. [...] Enquanto denegação de
nossa latidoamefricanidade, o racismo “à brasileira” se volta justamente
contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros), ao
mesmo tempo que diz não ter o que fazer (“democracia racial” brasileira).
(GONZALEZ. 1988, p. 69.).
No trecho é perceptível a justificativa que a autora nos apresenta ao discorrer
sobre ladinoamefricanidade, utilizando-se das conjunturas históricas e psicanalíticas
para dar base a tal episteme. Essa conceitualização é bem importante para
compreendermos a ligação entre as teorias feministas afrodiaspóricas/amefricanas de
Lélia e das norte-americanas. No próprio termo ladinoamefricanidade é possível
observar as intersecções que atravessam o território brasileiro, e a própria população,
em termos de formação cultural étnico-racial.
Ou seja, aquilo que chamo de “pretoguês” e que nada mais é do que marca
da africanização do português falado o Brasil (nunca esquecendo que o
colonizador chamava os escravos de “pretos” e de “crioulos”, os nascidos
no Brasil), é facilmente constatável sobretudo no espanhol da região
caribenha. (GONZALEZ. 1988, p. 70.).
16 BARRIOS. 2000, p. 6.
6
Com acepções pontuais a autora aponta para a necessidade de notar, a grande
parcela de contribuição africana para a construção da cultura ladinoamefricana, e,
portanto, da brasileira. Traz seus argumentos a partir da noção linguística dos idiomas
que foram assimilados e transformados pelos colonizados. E a dificuldade em
reconhecer tal fato, devido à lógica perversa de branqueamento. Lélia aborda a
colonização em termos históricos na formação da Améfrica. As questões a cerca da
própria concepção de América fizeram Lélia pensar sobre a formação cultural do
nosso continente, e o quanto o imperialismo estadunidense criou uma noção de que
América é algo que corresponde e nos remete aos Estados Unidos da América. Nas
palavras da autora “Para além de seu caráter geográfico, a categoria de
Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural
(adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é
afrocentrada [...]”. (GONZALEZ. 1988, p. 76.).
[...] Portanto, a Améfrica, enquanto sistema etnogeográfico de referência, é
uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos,
inspirados em modelos africanos. [...] Ontem como hoje, amefricanos
oriundos dos mais diferentes países têm desempenhado um papel crucial na
elaboração dessa Amefricanidade que identifica, na Diáspora, uma
experiência histórica comum que exige ser devidamente conhecida e
cuidadosamente pesquisada. (GONZALEZ. 1988, p. 76.).
No destaque a este trecho é notável a relevância da diáspora africana para as
concepções de Lélia. Ela apresenta o contexto pelo qual os termos
Améfrica/amefricano surgem e a razão para isto. Ligando sua concepção com
afrocentrity, pan-africanismo e negritude. Na citação a seguir Lélia defende a
utilização destes termos:
Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais
democrático, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais
coerente, identificar-nos como amefricanos: de Cuba, do Haiti, do Brasil, da
República Dominicana, dos Estados Unidos e de todos os outros países do
continente. (GONZALEZ. 1988, p. 79.).
Podemos notar que o Brasil possui uma sociedade racializada, isto é, relações
sociais e assujeitamentos em que raça e etnia desempenham papel fundamental. E esta
afirmativa é concebida desde antes da abolição, faz parte do imaginário representativo
de teorizar e entender o Outro. Como Lélia propõe “o modo mais sutilmente
paternalista é exatamente aquele que atribui o caráter de “discurso emocional” à
7
verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído.” (GONZALEZ. 1979,
p. 16.).
O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de
sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos:
“domésticas” ou “mulatas”. O termo “doméstica” abrange uma série de
atividades que marcam seu “lugar natural”: empregada doméstica,
merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar,
etc.. Já o termo “mulata” implica na forma mais sofisticada de reificação:
ela é nomeada “produto de exportação”, ou seja, objeto a ser consumido
pelos turistas e pelos nacionais burgueses. (GONZÁLEZ. 1979, p. 16.).
Representações de mulata, doméstica e mãe preta são alguns dos “papéis”
que já foram desempenhados e designados por/para mulheres negras no contexto17
brasileiro. A conexão entre o Brasil escravocrata e o Brasil pós-abolição, é
determinada pela transição de tomada de posições por parte da população negra que
vive em conflitos próprios e perante a sociedade. Pois, não havia um “lugar” em que a
população negra, antes da escravização estivesse representada. A própria noção de
“ser humano” lhe é arrancada, em prol da disseminação de um enfoque ocidental
hegemônico que definia o “ser universal” (homem, branco, cisgênero e heterossexual).
Sendo assim, Lélia entende que:
Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade
brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma
indagação via psicanálise. [...] por que o negro é isso que a lógica da
dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar?
[...] Exatamente porque temos sido falados, infantilizados [...], que neste
trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa
boa. (GONZÁLEZ. 1984, p. 225.).
A iniciativa domesticadora, a transformação em corpos dóceis e, como Lélia
define no trecho acima, como infas – a posição colonizadora ocidental de ação para
desqualificar as próprias identidades reivindicadas pela população negra – são as
alternativas de silenciamento e invisibilização de uma consciência social permeada
pelo racismo. Mecanismos ideológicos como o branqueamento também são
17 “Os estereótipos referentes às mulheres negras representam as distinções de gênero codificadas pelo
racismo através de diferentes discursos, e a sua historicidade é passível de ser apreendida pela
investigação. Lélia Gonzalez propõe a investigação desses estereótipos negativos para visibilizar o
impacto da violência dessas representações negativas das mulheres negras na sociedade brasileira são
decorrentes da articulação entre racismo e o sexismo e se manifestaram de diversas formas.”
(CARDOSO. 2014, p. 975.).
8
recorrentes na escrita de Lélia18a fim de entender como isto funciona.
A autora contribui para o entendimento de que apenas olhando para si, e seus
assujeitamentos, experiências vividas, será possível a apreensão e compartilhamento
para semelhantes dessa consciência sistemática e interseccional das prerrogativas
discriminatórias. Como é possível observar “[...] essa característica de Lélia se liga a
uma prática das narrativas do feminismo negro, a utilização de exemplos pessoais
para exemplificar as teorias.”. (BARRETO. 2005, p. 33-34.).
No momento em que fala de alguma coisa, negando-a, ele se revela como
desconhecimento de si mesmo. Nessa perspectiva, ele pouco teria a dizer
sobre essa mulher negra, seu homem, seus irmãos e seus filhos, de que
vínhamos falando. Exatamente porque ele lhes nega o estatuto de sujeito
humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de saber.
(GONZALEZ. 1984, p. 231-232.).
Nestes trechos, Lélia aprofunda a noção de neurose cultural brasileira, ou seja,
modos de promover comportamentos visando o esquecimento. Portanto, lida com as
subjetividades de forma asséptica que objetifica os corpos, esses que necessitam de
um olhar atento perante as questões que lhes atravessam e são atravessadas. A
compreensão dessas opressões sistemáticas através do olhar atento, torna cada vez
mais evidente as imbricações que possuem, e o quanto o compartilhamento de
experiências é importante. Nesse contexto, de tomada de consciência, promove a
frente das problematizações de mulheres negras brasileiras. Contudo, é de suma
relevância compreender que o racismo codifica as relações de gênero, sem integrá-las.
Isso porque é interessante submeter certa homogeneidade ao grupo racializado. Porém,
é preciso ponderar que “a opressão, o processo de exclusão e a violência impostos pelo
racismo são diferentes para homens e mulheres, isto é, o racismo gendrado produz
experiências particulares às mulheres dos grupos racialmente submetidos.”
(CARDOSO. 2014, p. 975.).
Exatamente porque o tanto o racismo como o feminismo partem de
diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação.
Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por parte do
feminismo? [...] Da mesma forma, nós mulheres não-brancas, fomos
“faladas”, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação
que nos infantiliza. Ao impormos um lugar inferior no interior da sua
18 “[...] houve por exemplo uma fase na minha vida em que fiquei profundamente espiritualista. Era
uma forma de rejeitar o meu próprio corpo. Essa questão do branqueamento bateu forte em mim e eu
sei que bate muito forte em muitos negros também.” (BAIRROS, 1994, p. 1.).
9
hierarquia (apoiadas nas nossas condições biológicas de sexo e raça),
suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de ser
sujeitos não só do nosso próprio discurso, senão da nossa própria história.
(GONZALEZ. 1988, p. 13-14.).
Lélia propõe conexões entre as opressões de gênero e raça nesses trechos,
como anteriormente já fora demonstrado. Questionando o “esquecimento” por parte
do feminismo branco latino-americano. Ela também aponta a questão de classe como
uma das intersecções de opressão, em que fatalmente, a grande parte das mulheres
não-brancas acabam compondo o proletariado afro latino-americano.
É importante insistir que no quadro das profundas desigualdades raciais
existentes no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a
desigualdade sexual. Trata-se de uma discriminação em dobro para com
as mulheres não-brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O
duplo caráter de sua condição biológica – racial e sexual – faz com que
elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de
capitalismo patriarcal-racista dependente. (GONZALEZ. 1988, p.17.).
Com essas definições a autora nos provoca a repensar termos e epistemologias19
que regem e formulam as realidades das mulheres negras enquanto amefricanas. O
próprio uso dessa episteme já denota a relevância dessas discussões para esta pesquisa.
Por esse fato, e tantos outros, utilizados ao longo de sua explanação, fica evidente
a importância em se pensar pra além de uma lógica colonizada e imperialista, que
atende a opressões – nas formas do racismo, elitismo, sexismo e homofobia – que
categorizam e subjugam grupos de indivíduos, e seus corpos.
A interseccionalidade do feminismo negro norte-americano.
Para a autora Mercedes Jabardo Velasco, o feminismo negro no contexto
estadunidense teria surgido por intermédio de movimentos de complexa intersecção de
opressões, tais como a abolição e o sufrágio. Velasco nos concede através de seu
trabalho um pouco do que seria uma genealogia histórica do movimento feminista
negro estadunidense e da própria teoria feminista interseccional. É relevante a
observação feita pela autora, no trecho que segue:
19 “Lembramos que a validade de um conceito ou uma categoria analítica está diretamente ligada a uma
teoria. Pois é a categoria analítica que permite a análise de um determinado conjunto de fenômenos,
e faz sentido apenas no corpo de uma teoria. No caso da amefricanidade, a mesma deve ser pensada
dentro das ideologias de libertação africanas e afro-diásporicas. Especialmente ligada ao movimento de
pensadores negros terceiro- mundistas que a partir da década de 1950 [...] Elaborando uma filosofia
própria [...] A categoria de Lélia deve ser pensada nesse quadro.” (BARRETO. 2005, p. 48-49.).
10
Las feministas negras fueron, desde el principio, extraordinariamente lúcidas a la hora de posicionarse, y fuertes a la hora de estabelecer alianzas. Con los hombres de su propia “raza” em las antiguas comunidades de esclavos, con las mujeres blancas em la lucha por el sufragio femenino y, sobre todo, con todas las mujeres negras cuando el racismo contaminó el movimiento sufragista estadounidense y cuando la emancipación incorporo las diferencias de género a las comunidades negras. (JABARDO VELASCO. 2012, p. 28.). 20
Para Velasco a interseccionalidade, ao analisar a base genealógica do
feminismo negro norte americano, esteve presente desde sua origem. Ela utiliza o
discurso de Sojourner Truth21, que revolucionou e abriu espaço para que outras tantas
mulheres negras produzissem escritos sobre si e suas experiências enquanto elas
próprias nos Estados Unidos. A compreensão desse movimento de mulheres negras
nos Estados Unidos, em uma conjuntura de abolição da escravidão e sufrágio, nos
proporciona caracterizá-lo como contra hegemônico. A autora aponta para as
diferenças entre a racionalidade22 presente na escrita de mulheres brancas – que seria a
base para o feminismo branco hegemônico, posteriormente – e a oralidade e oratória
na prática das mulheres negras – nos púlpitos das igrejas. É preciso assimilar a
importância do discurso de Sojourner Truth, ao questionar a categoria universal e
hegemônica do “ser mulher”. Para Velasco “La intersección de la “raza” con el
género, que desde el sistema hegemónico construye a las mujeres negras como no-
mujeres [...] detrás de las luchas de otras ex-esclavas como Harriet Jacobs, aparece un
anhelo que pugna por re-significar el término mujer.”23.
Busquei através da leitura de “Rasgos distintivos del pensamiento feminista
negro”24, um dos capítulos de “Black Feminist Thought” obra de Patricia Hill-Collins
traduzido para o espanhol no livro “Feminismos negros. Una antología”, compreender
como o pensamento feminista negro norte americano arquiteta a si mesmo. Além de
algumas leituras que fiz de Audre Lorde e Kimberlé Crenshaw que dialogam com a
20 Tradução livre: “As feministas negras foram, desde o início, extraordinariamente lúcidas na hora de
posicionarem-se, e forte no momento de estabelecer alianças. Com os homens de sua própria “raça” nas
antigas comunidades de escravizados, com as mulheres brancas na luta pelo sufrágio feminino, e
sobretudo, com todas as mulheres negras quando o racismo contaminou o movimento sufragista
estadunidense e quando a emancipação incorporou as diferenças de gênero nas comunidades negras.”
(JABARDO VELASCO. 2012, p. 28.). 21 “Ain’t I a woman” (Eu não sou uma mulher). Discurso proferido na Convenção dos Direitos da
Mulher, em Akron nos Estados Unidos, em 1852. 22 De acordo com os pilares da razão Iluminista. 23 Tradução livre: “A intersecção de “raça” com o gênero, que desde o sistema hegemônico constitui as
mulheres negras como não-mulheres [...] através das lutas de outras ex-escravizadas como Harriet
Jacobs, aparece um anseio que luta por uma ressignificação do termo mulher. ”(JABARDO VELASCO.
2012, p. 29.). 24 HILL-COLLINS, P. Distinguishing features of black feminist thought. In: Black feminist thougt.
New York, Routledge, 2000.
11
estrutura epistemológica que Hill-Collins propõe ao longo de sua obra. A noção de
interseccionalidade será recorrente nos trabalhos dessas intelectuais negras, que
destacaram-se no cenário político, ideológico e acadêmico norte americano. Cada uma a
sua maneira, Hill-Collins como socióloga bem reconhecida perante os estudos de
gênero e feminismo; Lorde, como poeta, feminista, lésbica e ativista dos direitos civis;
e Crenshaw como advogada de direitos civis. As críticas perante o feminismo branco
hegemônico aparecem também nesse cenário caracterizado como segunda e terceira
onda feminista25na conjuntura intelectual estadunidense. Para Hill-Collins os traços
distintivos do pensamento feminista negro podem ser identificados em outros “cuerpos
de conocimiento” 26, porém as convergências entre estes traços é o que concede ao
feminismo negro estadunidense “sus contornos particulares.” 27. Collins defende que:
[...] el propósito global del pensamiento feminista estadunidense es resistir a
la opresión, tanto a sus prácticas como a las ideas que la justifican. Si las
opresiones interseccionales no existieran, este pensamiento y los
conocimentos oposicionales similares serían innecesarios. Como teoría
crítica social, el pensamiento feminista negro tiene como objetivo empoderar
a las mujeres afroamericanas en un contexto de injusticia social sostenida
por opresiones interseccionales. (HILL-COLLINS. 2012, p. 102.). 28
O empoderamento de mulheres negras estadunidenses é a razão pela qual Hill-
Collins coloca seu empenho, ao desenvolver estudos e epistemologias, para que
formas interseccionais de opressão sejam desveladas. E, consequentemente, que cada
vez menos mulheres afroamericanas sofram com injustiças sociais. Collins coloca que
as experiências vividas enquanto sujeitas de modo individual, cada uma com suas
respectivas particularidades – dentro de uma sociedade racializada, generificada,
heteronormativa e classista – para as mulheres afroamericanas estadunidenses, tais
vivências podem estimular “una conciencia distintiva com respecto a nuestras propias
25 Por este motivo não me detive em apresentar no presente trabalho outras percussoras do feminismo
negro estadunidense.
26 HILL-COLLINS, P. 2012, p. 101. 27 IDEM. 28 Tradução livre: “[…] o propósito global do pensamento feminista estadunidense é resistir a
opressão, tanto suas práticas quanto as ideias que as justificam. Sem as opressões interseccionais, o
pensamento e os conhecimentos de oposição similar não iriam existir e não seriam necessários. Como
a teoria crítica social, o pensamento feminista negro tem como objetivo empoderar as mulheres
afroamericanas em um contexto de injustiça social sustentadas por opressões interseccionais. Com isso,
essas não podem estar totalmente empoderadas, a menos que as próprias opressões interseccionais
sejam eliminadas, o pensamento feminista negro apoia princípios gerais de justiça social que
transcendem as necessidades particulares deste grupo. ” (HILL-COLLINS. 2012, p. 102.).
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experiencias y a la sociedade en general.” 29A valorização de saberes coletivos
partindo de mulheres negras afroamericanas, as vozes não mais caladas ou
invisibilizadas destas mulheres, aparecem com a devida importância no trabalho de
Hill-Collins. A promoção de ângulos de visão semelhantes em grupos historicamente
oprimidos – dentro desta constelação de interseccionalidades opressivas sistemáticas
– a partir de fatores comuns entre as/os sujeitas/os pertencentes desse grupo podem ou
não ocorrer. Contudo, a possibilidade de desenvolvimento de uma consciência de
grupo é o que almeja a autora ao visibilizar o empoderamento feminino
afroamericano. A título de ilustração e reflexão podemos observar o seguinte
trecho de Audre Lorde em seu texto “Não há hierarquias de opressão” 30.
Dentro da comunidade lésbica eu sou Negra, e dentro da comunidade Negra
eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas Negras é uma questão lésbica
e gay porque eu e centenas de outras mulheres Negras somos partes da
comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão
Negra, porque centenas de lésbicas e homens gays são Negros. (LORDE.
2009, p, 6.).
A partir desse trecho de Lorde, nos é oportuno pensar sobre a própria sujeita e
o descentramento ao qual a estrutura da individualidade catersiana e sociológica
sofre. Isto significa uma abertura para arenas – família, trabalho doméstico, o
cuidado com as crianças, etc. – as quais, no período em que aquele slogan era
proferido, seriam entendidas como “femininas”. O feminismo também
proporcionou, segundo Stuart Hall, uma ampla questão ao colocar como os sujeitos
são formados e produzidos como assujeitamentos generificados. “Isto é, ele politizou a
subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres,
mães/pais, filhos/filhas).” 31. Partindo da noção de experiências compartilhadas a fim
de promover uma consciência de grupo, de Hill-Collins, é demasiado importante
disseminarmos colocações como essa.
Crenshaw disserta, de forma expressamente material do mesmo modo, como as
intersecções de opressão atuam perante os Direitos Humanos. A autora define que
discriminações não são qualificadas apenas através do binarismo de opressões de
gênero, mas da mesma forma que outros atravessamentos perpassam as sujeitas. Sendo
assim, para ela “tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades
29 Tradução livre: “[…] uma consciência distintiva a respeito as nossas próprias experiências e da
sociedade em geral.” (HILL-COLLINS. 2012, p. 102.). 30 LORDE, A. Retirado e traduzido de: “I Am Your Sister - COLLECTED AND UNPUBLISHED
WRITINGS OF AUDRE LORDE”, Oxford University Press, 2009. 31 HALL. 2006, p. 45.
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exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem
desproporcionalmente apenas algumas mulheres.”. (CRENSHAW. 2002, p. 173.).
A autora aponta outra questão que chama de “superinclusão”, que seria tornar
problemáticas interseccionais por apenas uma solução. Crenshaw ilustra essa ideia da
seguinte forma “A superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam
um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer
tentativa de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de
discriminação possa ter exercido em tal circunstância.” 32. Portanto, baseado nessa
problemática a autora concebe o que pra ela manifesta-se como interseccionalidade, de
uma forma epistemológica mais fechada: “A interseccionalidade é uma conceituação
do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da
interação entre dois ou mais eixos da subordinação.”. (CRENSHAW. 2002, p. 177.).
Para a autora eixos de poder – tais como raça, gênero, etnia e classe –
estruturam e fundamentam âmbitos sociais, políticos e econômicos. O
entrecruzamento dos eixos de poder acaba por gerar sobrepujanças que,
consequentemente, criam tais intersecções tão complexas diante da sociedade. Há
perante os corpos, se assim pudermos compreender, atravessamentos de diversos
níveis e tipos de poderes – que produzem formas diferentes de discriminações –
divergentes, criando a possibilidade de virem a ocorrer impactos no momento em que
as opressões chocarem-se com esses corpos. Contudo, Crenshaw compartilha
possíveis soluções que visem um estudo dessas condições e das consequências que
determinadas discriminações provocam, para desnudar “aspectos chaves da
subordinação interseccional” 33.
Produzindo uma série de recomendações com fins de empoderamento e
reestruturação dos interesses de grupos de mulheres, para que não se escolha um tipo
de identidade, mas que haja sim uma análise compreendendo a complexidade que
perpassa os corpos assujeitados. E as opressões e discriminações que lhes aflige.
O empoderamento através da consciência de grupo, retomando Hill-Collins, se
demonstra necessário para fortificar e não dividir. Como podemos observar no
seguinte trecho de Audre Lorde:
32 CRENSHAW. 2002, p. 174. 33 CRENSHAW. 2002, p. 183.
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Aquelas de nós que estão fora do círculo do que essa sociedade define
como mulheres aceitáveis, aquelas de nós que foram forjadas nos
caldeirões da diferença – aquelas de nós que somos pobres, que somos
lésbicas, que somos Negras, que somos velhas – sabemos que
sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. [...] buscar um mundo no
qual todas nós possamos florescer. É aprender a tomar nossas diferenças e
torná-las forças. Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a
casa-grande. (LORDE. 1984, p.29.).
Lorde expõe a necessidade união, pra além da vida acadêmica e intelectual,
mas sim o aprendizado diário diante das muitas opressões que rasgam cada sujeita
em suas próprias identidades. O apelo ao reconhecimento das diferenças, que lhe
brindam com discriminações e pressões, ao constituir – moldar sua auto inscrição – a
partir de si e das respectivas vivências compartilhadas. Para tanto, que Collins crítica a
visão única de uma mulher negra “[...] no existe unpunto de vista homogéneo de
la mujer negra. No hay una mujer negra esencial arquetípica cuyas experiencias
sean las “normales”, normativas y por lo tanto auténticas.” 34.
Hill-Collins propõe o que entende como diáspora, a partir das prerrogativas da
escravidão, do colonialismo, do imperialismo e da migração. Sendo assim, Collins
defende que o marco diaspórico assinala um padrão distintivo de dispersão presente
nas mulheres afroamericanas, que foram forçadas – naquele período de colonialismo –
a imigração dos Estados Unidos, e consequentemente subjugadas ao sistema torpe de
escravidão.
Para isso, segundo a autora, é necessária a relação ínfima entre pensamento e
prática feminista negra, refletindo tal relação dialógica. Fica evidente a cobrança de
como o conhecimento especializado e acadêmico deve chegar às mulheres negras
estadunidenses, de forma geral. Isto, acontecendo, a partir de conexões entre as
formulações acadêmicas – político-ideológicas – e a prática das experiências – em
muitos casos de opressão e discriminação, mas também de empoderamento – aliadas.
Conclusão
É possível pensar nas ligações entre os temas trabalhados nos capítulos
anteriores, até chegarmos aqui. Como a interseccionalidade de identidades sociais e
opressões age perante a escrita das intelectuais aqui apresentadas na pesquisa, e como
34 Tradução livre: “[...] não existe um ponto de vista hegemônico da mulher negra. Não há uma mulher
negra essencial ou arquetípica cujas experiências sejam as “normais”, normativas e com isso autênticas”.
(HILL- COLLINS. 2012, p. 111.).
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tais teorias e apontamentos convergem, mesmo tratando-se de diferentes realidades.
Não há um padrão ou uma fórmula que traduza as nuances das identidades e seus
atravessamentos sociais, políticos e econômicos. O que temos são experiências
divididas, de diversas formas – teorias acadêmicas, músicas, filmes, poemas, ficções,
historiografias, etc. – e que podemos ter acesso, interpretá-las e criticá-las se
necessário.
Acredito que possamos compreender, de tudo que foi discutido até aqui, é que
o feminismo amefricano e as teorias do feminismo negro norte-americano podem
estabelecer uma relação de conexões. Com a intenção de que injustiças sociais possam
diminuir cada vez mais através do empoderamento das mulheres negras, e dos grupos
e subgrupos, que compartilham suas experiências. Proporcionando a união, cabendo
às constelações de diferenças que cada indivíduo possuí, o empoderamento entre si
e de si. 35 As representações aqui contidas são múltiplas, e diversas, interpretá-las
através da lente epistemológica foi necessário. Uma análise um pouco sucinta, devido
à brevidade do tema e do tempo de pesquisa, relativamente curto, para que pudesse
contemplar com análises mais satisfatórias. Porém, acredito que essa problemática não
encerra se em si, e oportuniza mais pesquisas que detenham, talvez com mais tempo e
material, releituras e novas concepções.
Encerro, dessa forma, o este trabalho, cabendo suas definições e oportunos
debates sobre o feminismo intelectual negro norte-americano e o feminismo amefricano,
com uma citação de Audre Lorde, que contempla um pouco do que foi aqui trabalhado:
Num mundo de possibilidade para todas nós, nossas visões pessoais
ajudam a fincar as bases de trabalho da ação política. O fracasso das
feministas acadêmicas em reconhecer a diferença como uma força crucial
é o fracasso em transcender a primeira lição patriarcal. Em nosso mundo,
dividir e conquistar tem que se tornar definir e empoderar.
(LORDE.1984, p. 30.).
35 Assim, acredito eu, que as práticas feministas deviam estabelecer-se, através das conexões entre
academia e prática, com o reconhecimento das diferenças e dos diferentes grupos que compartilham de
algumas opressões em comum, que cada grupo possa falar por si. Partindo da própria definição ocidental
de feminismo, como uma das formas de liberdade social para mulheres e homens.
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