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Agradecimentos
Agradeo, reconhecido, ao Prof. Anbal Alves e ao Prof. Manuel Pinto,
que partilharam a tarefa de orientar esta tese, fazendo-o sempre com uma generosidade,
uma competncia, um empenho e um carinho absolutamente inexcedveis.
A eles muito se deve a alegria que sinto hoje de ter caminhado este caminho at ao cabo.
Agradeo, sensibilizado, a todos e a cada um dos elementos (actuais e antigos, docentes e no-
docentes) que compem o Departamento de Cincias da Comunicao e o Instituto de Cincias Sociais da
Universidade do Minho. Foi aqui que, num tempo difcil de transio, depressa encontrei uma nova casa:
um lugar onde trabalhar mas tambm onde pousar e aconchegar o corao,
durante tantos anos oferecido a outras artes, noutras casas.
Agradeo, de um modo muito especial, a quantos tm assumido as responsabilidades
de conduo do Departamento de Cincias da Comunicao os Profs. Anbal Alves, Moiss
Martins, Manuel Pinto, Helena Sousa, Zara Coelho e que sempre se preocuparam em me proporcionar
as melhores condies para a prossecuo deste trabalho,
acompanhando-o com um interesse e um apoio nicos.
De modo tambm muito particular, alargo este agradecimento aos demais companheiros de vida e
de trabalho mais ligados rea do Jornalismo, e que, alm de excelentes profissionais
com quem sabe bem trabalhar, so amigos do peito, que acompanham,
que apoiam, que ajudam, que esto, que s nos deixam ss quando ns queremos ou precisamos:
a Felisbela Lopes, o Lus Santos, a Sandra Marinho, o Alberto S,
a Madalena Oliveira, a Sara Moutinho, a Daniela Bertocchi (esqueci algum?...).
Agradeo a tantos outros mestres e colegas da comunidade cientfica das Cincias da
Comunicao (para alm da UM) com quem tenho tido o privilgio de contactar mais de perto
e com quem tanto tenho aprendido: os Profs. Mrio Mesquita, Paquete de Oliveira,
Nlson Traquina, Antnio Fidalgo, Rogrio Santos, Estrela Serrano, Cristina Ponte, Hugo Aznar,
Xos Lpez, Beate Josephi, entre muitos mais. A eles tambm o crdito de muito do meu percurso.
Agradeo a tantos e tantos camaradas de profisso com quem fiz uma longa viagem
por dentro do jornalismo e a que, de modo mais directo ou indirecto,
sempre regresso como nestas pginas regressei.
O que fui e sou, o que fiz e fao, no se entenderia sem essa enorme rede
de partilhas e cumplicidades, temperada pelos sucessos e pelos fracassos,
pelas esperanas e pelas desiluses, pela luz e pelas sombras. Mas muita e muito intensa vida.
Por todos (e at por alguns prematuramente ausentes), nomeio o Jos Queirs.
iii
Agradeo especificamente a todas e todos os jornalistas do Pblico, do Jornal de Notcias e
do Dirio de Notcias que se dispuseram a colaborar no meu inqurito sobre a figura do Provedor do
Leitor. E agradeo igualmente aos colegas provedores ou ex-provedores que me ajudaram a compreender
melhor essa estimulante funo auto-reguladora, contribuindo para o que aqui fica escrito.
Por todos estes, evoco o Jorge Wemans.
No crculo largo que vai para alm das esferas mais especificamente profissionais, agradeo
a tantas amigas e tantos amigos do peito, que fazem parte inteira da minha vida e que, sobretudo
nestes tempos mais recentes, foram parceiros to solidrios desta absorvente lavoura.
Com msica ou sem ela, com palavras ou silncios, c pertinho ou mais l longe,
na terra ch ou na lonjura do mar, mais a rir ou a chorar,
por horas sem fim ou pela alegria breve (e a surpresa, e a saudade) de um instante,
tenho a sorte imensa de contar com elas e eles, todas, todos, tanto, sempre.
No digo nomes, no preciso. Bem hajam.
Agradeo famlia grande em que nasci e ainda maior em que cresci e creso,
famlia que me deu tudo o que me deu e me d tudo o que me d,
com o calor da gente que uns dos outros, que se ama e se quer bem.
Agradeo muito em particular minha famlia mais pequenina
com quem mais de perto fao os dias e as noites:
minha mulher, Estefnia, s minhas filhas, Sara e Mariana,
tambm ao seu marido e meu genro, Jos Mrio, hoje parte da nossa casa.
O agradecimento que lhes dou, com toda a ternura de que o meu corao capaz,
no compensa decerto o tanto tempo que neste tempo lhes roubei, os aborrecimentos,
as faltas de pacincia, o cansao, a ausncia Sem o seu apoio e ajuda, sem a sua compreenso,
sem o seu amor, sem a sua mo, sei-o bem, no teria chegado aqui.
Obrigado.
E um beijo muito, muito grande para ti, me.
Muitas das etapas intermdias desta tese de doutoramento foram desenvolvidas no mbito da
minha participao no projecto colectivo de investigao MEDIASCPIO Estudo sobre a reconfigurao do campo da comunicao e dos media em Portugal, coordenado pelo Prof. Manuel Pinto, inserido nas actividades do Centro de Estudos de Comunicao e Sociedade (CECS) do Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Minho, e financiado pela Fundao para a Cincia e Tecnologia (FCT), atravs do Programa Sapiens (POCT /COM/41888/2001).
iv
Resumo
O objectivo central da nossa investigao tentar compreender as caractersticas
especficas da profisso de jornalista, seja nos modos como ela encarada de dentro
pelos seus directos protagonistas, seja nos modos como ela olhada e julgada de fora,
pelo todo social com que interage. Trata-se de uma profisso reconhecida como tal e
institucionalizada h escassas dcadas, e mesmo assim de modos algo vagos em certos
pases. O pressuposto de que partimos o de que esta profisso foi sendo o que quis ou
pde ser, mas tambm o resultado de tenses, equilbrios e negociaes com os diversos
actores sociais com que ela, de diferentes modos em diferentes tempos e espaos, se inter-
relacionou.
Um segundo objectivo, complementar deste, compreender qual o papel particular
das questes ticas e deontolgicas na definio de uma identidade profissional dos
jornalistas, bem como os modos em que ela se pode concretizar.
Passamos em revista as mais recentes correntes tericas ligadas sociologia das
profisses, decorrentes dos paradigmas funcionalista, interaccionista e do poder.
Seguindo a sugesto interaccionista, focamos a nossa ateno mais no processo do que no
resultado da estratgia de profissionalizao dos jornalistas o seu projecto profissional
, conduzidas ao longo de anos. Discutimos ainda as controvrsias em torno do conceito
de profissionalismo, entendido ora como uma negativa ideologia de controlo (traduzida na
apropriao, em regime de monoplio e com o aval do Estado, de um segmento fechado
do mercado de trabalho e na valorizao social do grupo), ora como um positivo sistema
de valores que reclama orientar-se para um servio desinteressado comunidade.
Depois de percorrida(s) a(s) histria(s) recente(s) de construo da profisso em
diferentes pases, olhamos mais em detalhe como os jornalistas lidaram com certos traos
tradicionalmente associados aos grupos profissionais, nos domnios cognitivo, valorativo e
normativo. Especificamente, analisamos as questes relacionadas com os variados perfis
das suas associaes profissionais, com o saber e saber-fazer que lhes prprio, com a sua
responsabilidade social e com o imperativo tico que se lhes coloca.
No captulo especfico da tica, percorremos as mais importantes teorias (ticas
deontolgicas, teleolgicas, consequencialistas, utilitaristas, tica das virtudes, tica
dos afectos, tica do discurso), procurando discernir o que nelas h de semelhante e o
v
que h de diferente. Evocamos tambm as perspectivas que procuram delimitar uma
espcie de mnimo tico comum, baseado num pequeno nmero de proto-normas morais
universais, nas quais possa ter as suas razes no s uma tica de profissionais, mas uma
mais lata tica de cidados que os jornalistas tambm so.
O entendimento de que as responsabilidades ticas, numa profisso com a
influncia e impacto social do jornalismo, implicam obrigatoriamente a necessidade de
prestao de contas sociedade, leva-nos depois a analisar as modalidades concretas que
essa prestao de contas pode e deve assumir. Identificamos as vantagens da auto-
regulao dos media e dos seus profissionais (considerando-a o melhor modo de equilibrar
liberdade de expresso e de imprensa com responsabilidade), e tambm os seus limites e
fragilidades. Passamos em revista um conjunto de mecanismos e instrumentos de auto-
regulao, terminando na figura do Provedor do Leitor, que estudamos mais em detalhe,
no contexto de um inqurito de opinio junto de jornalistas de trs dirios portugueses.
Este estudo permite concluir que o balano desta funo (recente em Portugal)
genericamente positivo, embora de modos matizados conforme os jornais especficos e
conforme os nveis etrios dos jornalistas.
Tendo presentes as novas condies em que se exerce o jornalismo na era digital,
bem como os novos desafios que se colocam ao campo jornalstico, adiantamos a
hiptese de que as exigncias ticas contendo obrigatoriamente um exerccio competente
do ofcio sero cada vez mais centrais na definio de uma identidade profissional
especfica dos jornalistas. Se alguns dos seus saberes tcnicos so hoje menos
necessrios do que no passado (porque outros actores, individuais e colectivos, tambm
produzem e difundem informao no espao pblico) ou esto mais acessveis a qualquer
um fora das organizaes mediticas tradicionais, tanto mais importa que os jornalistas
aprofundem as marcas diferenciadoras do seu ofcio, recuperando (e actualizando) os
grandes objectivos que desde o incio do processo de profissionalizao apontaram como
especficos da informao jornalstica. Ou seja, a seleco, produo e difuso de
informao completa e relevante sobre a actualidade, elaborada segundo critrios de
verdade, rigor e interesse pblico, trabalhada de modo responsvel, transparente e
accountable, e permanentemente aberta tanto crtica como auto-crtica, devolvendo aos
cidados o seu papel de co-protagonistas da comunicao meditica. Esse , cremos, o
caminho necessrio para recuperarem toda a confiana do pblico, com o que tal implica
de reconhecimento e legitimao social da sua profisso em construo.
vi
Abstract
The main purpose of our research is to try to understand the specific characteristics
of the journalistic profession, both in the ways it is regarded from the inside by its direct
protagonists, and in the ways it is viewed and judged from the outside, by the social
whole with which it interacts. This is a profession only recently acknowledged as such,
and institutionalized in a rather vague form in some countries. Our departing point lies on
the presupposition that this job turned to be the profession it wanted or was allowed to be,
but it is also the result of multiple tensions, balances and negotiations with the different
social actors it dealt with, according to different places and different times.
A second purpose of our work, closely connected with the first one, is to
understand the particular role played by the ethical issues in the definition and construction
of the journalists professional identity, as well as the concrete ways in which they can be
actually (and not just rhetorically) assumed.
We review the recent theoretical approaches in the area of the sociology of
professions, mainly the ones connected with functionalism, with interactionism and with
the so-called power paradigm. Following the interactionist ideas, we focus particularly
in the process, rather than in the result, of the journalists professionalization strategy
their professional project carried out through the years. We also discuss the
controversies around the concept of professionalism, regarded either as a negative
ideology of control (leading to the monopolistic occupation of a closed share of the labour
market, allowed by the state, and to the social valuation of the professional group), or as a
positive system of values and principles, claiming to provide the community with a
relevant service, on a basis of altruism.
After looking at the recent history (or histories) of construction of the profession in
different countries, we proceed in more detail into the ways how journalists dealt with
certain traits traditionally associated to the professional groups, in the cognitive,
evaluative and normative domains. We specifically analyze the issues related to their
professional associations, to their particular knowledge and know-how, to their social
responsibility and to the ethical demands they are faced with.
In the chapter devoted to ethics, we revisit the most known theories in the field
(deontological, teleological, consequentialist and utilitarian ethics, plus discourse ethics,
vii
virtue ethics, ethics of care), trying to find out the similarities, as well as the
differences, between them. In the same line of thought, we recall several approaches
committed to identify some kind of common ethical minimum, based on a few universal
moral proto-norms in which not only professionals ethics, but a broader citizens
ethics, could be rooted.
The understanding that the ethical responsibilities, in a profession with such a
social influence as the journalism, will necessarily imply the need to be accountable to the
society, leads us to study the concrete modalities in which such accountability can take
form. We identify the advantages of media self-regulation (considered the best form of
safeguarding both freedom of speech and of the press, and their inherent responsibility), as
well as its limitations. After reviewing a set of self-regulatory mechanisms, we concentrate
on the figure of the news ombudsman, which is analyzed in a more detailed way,
especially in the context of an opinion survey made among the journalists of three
Portuguese daily newspapers. The discussion of the results of the survey suggests that this
self-regulatory mechanism (still recent in Portugal) is generally regarded in a positive
mood, although somewhat differently according to the newspapers involved, as well as to
the journalists age and professional experience.
Looking at the new conditions of the digital era in which journalism is carried on,
as well as the new challenges faced by the journalistic field as a whole, we develop the
argument that the ethical demands containing necessarily a skillful and competent work
on the job will be more and more central to the definition of a specific professional
identity for the journalists. If some of their technical requests and know-how are nowadays
not as necessary as they were in the past (because other people produce and disseminate
information in the public sphere too), or if they are more accessible to anyone outside the
traditional media organizations, then journalists should engage even more strongly in
defining the marks that make their job different and unique, thus recovering (and
updating) the main purposes of the journalistic information as it was claimed from the very
beginning of their process of professionalization. That is to say, the selection, production
and diffusion of complete and relevant information of the actuality, following criteria of
truthfulness, accuracy and public interest, treated in a responsible, transparent and
accountable way, and permanently open to criticism and self-criticism, in order to give
back to the citizens their place as active partners in the process of media communication.
This is, we believe, the way for them to regain public trust, thus helping to the needs of
social legitimization of a profession still in construction.
viii
NDICE
Introduo 1 CAPTULO I Profisso, profissionalismo e profissionalizao 13 1. Profisso: a difcil definio 14
1.1. O paradigma funcionalista 18 1.2. O paradigma interaccionista 23 1.3. Os movimentos crticos e o paradigma do poder 27
1.3.1. Johnson e a relao com o poder do Estado 29 1.3.2. Freidson e o controlo do trabalho 30 1.3.3. Larson e o projecto profissional 32 1.3.4. Os mercados de trabalho fechados 35
1.4. A abordagem sistmica de Abbott 37
2. Da profisso ao processo de profissionalizao 41 2.1. Presente e futuro do estatuto profissional 46 2.1.1. Desprofissionalizao 48 2.1.2. Proletarizao 50 2.1.3. O caso especfico dos jornalistas 54 3. Sntese conclusiva 57 CAPTULO II Jornalistas: a histria de construo de uma profisso 61
1. O princpio da diferenciao 66
2. Entre o ser e o querer existir como profisso 71 2.1. Os primrdios do novo ofcio 72 2.1.1. O primeiro jornalista em Frana 73
2.1.2. Poltica e censura em Portugal 76 2.2. O jornalismo industrializado 81
2.2.1. Frana e a liberdade de imprensa 82 2.2.2. A imprensa popular pioneira nos EUA 85 2.2.3. A nova imprensa em Portugal 88
ix
2.2.4. Espanha no mesmo passo 92 2.2.5. O jornalismo de agncia 95 2.2.6. Os pais da imprensa moderna 97 2.2.7. Os alvores da industrializao 102 2.3. Um estatuto para os jornalistas 108 2.3.1. A revoluo francesa na profisso 109 2.3.2. A legitimao por via legal 116 2.3.3. Profisso aberta, territrio fechado 120 2.3.4. Avanos e recuos do caminho portugus 123 2.3.5. Hesitaes no modelo de formao 127 2.3.6. As ambiguidades de uma identidade fluida 134 2.3.7. EUA: entre o jornalismo de estrias... 138 2.3.8. ... e o jornalismo de informao 143 2.4. Os desafios do ps-guerra e a consolidao 146 2.4.1. Propaganda e relaes pblicas 148 2.4.2. A doutrina da objectividade 151 2.4.3. A revoluo das fontes 154 2.4.4. A responsabilidade social do jornalista 156 2.5. As novas tecnologias e o alargamento do campo 159 2.5.1. A Internet e o universo digital 160 2.5.2. A crescente presso econmica 166 2.5.3. Novos desafios ticos 167
3. Sntese conclusiva 172 CAPTULO III A especificidade dos principais traos profissionais no jornalismo 175
1. Os diferentes figurinos no associativismo 182
1.1. Entre a Ordem e o Sindicato 184 1.2. Prestgio social ou capacidade de reivindicao laboral? 186 1.3. Incluir os profissionais, excluir os amadores 191
2. Em demanda de um saber prprio 195 2.1. O jornalismo como forma de conhecimento 200 2.1.1. Os media como actores culturais 204 2.1.2. A cincia da periodificao 205 2.2. O jornalismo como disciplina autnoma 207 2.2.1. Para alm da dicotomia teoria / prtica 208 2.2.2. Entre qualificao e competncia 213 2.2.3. Em favor de uma lgica de competncia 216 2.2.4. Os saberes de aco no cerne do saber profissional 221 2.2.5. Uma nova ateno ao cliente 226 2.2.6. A alternativa da prtica reflexiva 227 2.2.7. A emergncia do paradigma noticioso 230
2.2.8. Como saber o que , ou no , notcia? 240 2.2.9. A especificidade do produto-jornal 246
2.3. A formao dos jornalistas 248 2.3.1. O dilema da titulao acadmica 249 2.3.2. A diversidade de opes curriculares 250
x
2.4. O estatuto do jornalista enquanto profissional especializado 251 2.4.1.- Modos de legitimao 252
3. A responsabilidade e o ideal de servio pblico 255 3.1. Entre o servio pblico e o interesse privado 257 3.2. Presso das fontes e presso das audincias 261 3.3. A responsabilidade social dos media 263
3.3.1. A dupla lealdade do jornalista 265 3.3.2. O Estado, o Mercado e a Sociedade 267 3.3.3. Liberdade negativa e liberdade positiva 269 3.3.4. Da regulao pblica regulao social 274
4. A exigncia tica e deontolgica 277
4.1. No princpio era a tica 277 4.2. Os caminhos diversos da deontologia 279 4.3. Dvidas e hesitaes do modelo portugus 282
5. Sntese conclusiva 285 CAPTULO IV A centralidade do desafio tico e deontolgico 295
1. tica, moral, deontologia: esclarecer conceitos 296
2. Os dilemas de sempre 299
2.1. Entre o plo individual e o colectivo 300 2.2. Entre o enfoque deontolgico e o teleolgico 303
2.3. Entre convices e responsabilidade 305
3. Os debates contemporneos em tica 308 3.1. tica deontolgica, ou do dever moral 311 3.2. tica consequencialista, ou da utilidade 316 3.3. tica contratualista, ou do acordo 320
3.4. tica das virtudes, ontem e hoje 325 3.4.1. Percurso interno e condies externas 331 3.4.2. Os neo-aristotlicos, de MacIntyre a Nussbaum 334 3.4.3. O complemento de uma tica dos afectos 339
4. Habermas e a tica do discurso 344 4.1. A teoria kantiana revista e reformulada 348 4.2. A fora da razo, a importncia da vontade 352
5. Em demanda da sntese ideal 355
6. Porqu ter um comportamento tico? 361 6.1. Antes das normas, os valores 363 6.2. A hiptese das proto-normas universais 366 6.3. A responsabilidade social dos media revisitada 374
xi
7. Exigncias e procedimentos do juzo tico 381 7.1. Dominar a regra dominante 382 7.2. Explicitar o processo de deciso tica 384 7.3. Formar-se tambm para a competncia tica 386
8. Da tica deontologia profissional 388 8.1. As dvidas dos mitos fundadores do jornalismo 390 8.2. Modos de usar a deontologia 394 8.3. O contrato social como caminho de legitimao 402 8.4. Jornalistas responsveis, jornalistas imputveis 406
9. Back to basics, ou seja, back to ethics 408
10. Sntese conclusiva 414 CAPTULO V Accountability e regulao da actividade jornalstica 419
1. A questo da responsibility 421
2. A questo da accountability 425
2.1. Em busca da quadratura do crculo? 426 2.2. Tipos e nveis de accountability 429
3. De que se fala quando se fala de regulao? 437
3.1. Regulao centrada ou descentrada 438 3.2. Regulao e mercado livre das ideias 442
3.3. Uma questo tambm moral 444
4. O lugar da hetero-regulao 449 4.1. Sistemas polticos e modelos mediticos 451 4.2. Modos de interveno do Estado 460
5. A auto-regulao: papel, vantagens e limites 467 5.1. O que a auto-regulao 470 5.2. e o que a auto-regulao no 473 5.3. Entre as boas intenes e a duvidosa eficcia 476 5.4. Sanes materiais ou morais? 478 5.5. O lugar do pblico 485
6. Instrumentos e mecanismos auto-reguladores 489 6.1. Conselho de Redaco 491 6.2. Livro de Estilo 493 6.3. Estatutos de Redaco / Cdigos Internos 497 6.4. Cdigo Deontolgico 499 6.5. Conselho Deontolgico 504 6.6. Conselho de Imprensa 506 6.7. Correio dos Leitores e Tribuna Pblica 511 6.8. Crtica de Media / Metajornalismo 512 6.9. Provedor do Leitor / do Ouvinte / do Espectador 513
xii
7. Sntese conclusiva 514 CAPTULO VI O Provedor do Leitor 517
1. Origem e enquadramento 518
2. Perfil e funes 522
3. As principais controvrsias 526
3.1. Sobre a independncia 526 3.2. Sobre a autonomia 528 3.3. Sobre o papel 530 3.4. Sobre o(s) poder(es) 533
3.5. Sobre a eficcia e a utilidade 535
4. Vantagens, limitaes e riscos 537
5. Um estudo de opinio junto dos jornalistas 542 5.1. Metodologia 543 5.2. Caracterizao da amostra 545 5.3. Resultados apurados 548 5.3.1. Frequncia de leitura e grau de concordncia 548 5.3.2. Interpelaes do Provedor e respostas 551 5.3.3. Utilidade e eficcia do Provedor 552 5.3.4. Origem interna ou externa do Provedor 556 5.3.5. Definio do Provedor do Leitor 558 5.3.6. Conhecimento externo da figura do Provedor 559 5.3.7. Importncia relativa da figura do Provedor 560 5.3.8. Maiores elogios e maiores crticas 563 5.4. Discusso dos resultados 564 5.5. Apreciaes qualitativas 571
6. Sntese conclusiva 577
7. Apndice 581
Concluso 589
BIBLIOGRAFIA 625
xiii
xiv
Introduo
Introduo
O ponto de chegada deste trabalho o Provedor do Leitor uma instncia de auto-
regulao da actividade jornalstica, ainda recente entre ns, vocacionada essencialmente
para aproximar mais os media dos seus pblicos e estes daqueles. uma instncia
preocupada tambm em tornar mais transparente e compreensvel o exerccio do
jornalismo nas suas condies concretas de hoje, e empenhada em discutir, assumir e
corrigir os erros ou insuficincias do trabalho informativo nos rgos de comunicao que,
livre e voluntariamente, se dispem a tal. Ou seja, um bom exemplo de esforo reflexivo
e auto-crtico, feito de actos e no s de palavras, por parte de uma actividade (o
jornalismo) e de um grupo profissional (os jornalistas) onde desde sempre parecem ter sido
mais as posturas de arrogncia, auto-complacncia e fechamento corporativo do que as
de humildade, abertura e genuna vontade de aprender a servir melhor os cidados.
Mas no apenas ponto de chegada. Tambm ponto de partida deste trabalho o
Provedor do Leitor que eu prprio fui, durante dois anos, num jornal dirio portugus o
Pblico. Nesse perodo, pude experimentar e viver na carne as foras e as fragilidades
desta funo mediadora, digerindo a oscilao constante entre a sua aura inegavelmente
sedutora, mobilizadora para a mudana necessria, e a acumulao de pequenas
frustraes ligadas ao peso das rotinas, ao conforto do imobilismo ou vacuidade de boas
intenes que se esgotavam em si prprias.
No obstante, ser Provedor do Leitor foi, alm de tudo o mais, aceder a um
privilegiado posto de observao das prticas mediticas (tanto do lado da emisso como
do lado da recepo, que de um e de outro, bom no esquecer, se faz o processo
comunicativo), e, a partir dele, constatar de modo mais claro a existncia de um alargado
mal-estar em mltiplas vertentes: mal-estar dos leitores face a muito do que o jornal lhes
oferecia (e a muitos dos modos como os jornalistas actuavam), mal-estar dos jornalistas
face a muito do que se lhes exigia (e nas condies concretas em que era mister
responder), mal-estar de uns e outros face s teias e vielas aparentemente inexorveis em
que o sistema da comunicao social se enredava e se perdia, pagando tributo mais
sensao do que razo, mais ao sucesso de audincia do que ao rigor de reporte, mais ao
interesse privado do que ao bem pblico, mais facilidade (necessidade?) do dizer sim
1
Introduo
do que firmeza (utopia?) do dizer no. No se tratou, em boa verdade, de um constatar.
Tratou-se, sobretudo, de confirmar aquilo que, ao longo de mais de vinte anos de trabalho
profissional como jornalista, em diferentes jornais e nas mais diferentes posies
hierrquicas (desde a base incipiente e nervosa do estgio at ao topo da direco e da
administrao, passando pelos degraus intermdios do colaborador, reprter, redactor,
editor, colunista), fui vendo, ouvindo, pensando e tentando entender.
Ponto global de partida (e pano de fundo) deste trabalho , portanto, uma carreira
profissional longa e plurifacetada em que pude ir-me apercebendo, a partir de dentro
mas tambm com a ajuda de olhares diversos recolhidos de fora, dos desconfortos,
ambiguidades, contradies, dvidas e dilemas que atravessam o grupo profissional dos
jornalistas ou, melhor dizendo, os sub-grupos que nele co-existem, nem sempre na mais
harmoniosa e pacfica convivncia.
Pude aperceber-me de como a imagem que o grupo tem e procura dar de si (mais
homognea nas aparncias do que na realidade) coincide pouco com a imagem que dele
tm aqueles a quem se destina o seu trabalho os pblicos , e que, mesmo conservando
rstias de fascnio por uma profisso de que nunca esteve ausente um toque de mtico e
herico romantismo, vm acumulando motivos de desencanto e cepticismo face nua e
crua verdade de uma informao feita contedos prprios de uma lgica dominante, por
vezes quase exclusiva, de mercado frio e competitivo.
Pude aperceber-me de como essa imagem de coeso, de unidade e de um
assinalvel esprito de corpo dos jornalistas que leva alguns autores a afirmarem
mesmo que eles so uma comunidade profissional com uma forte identidade (Traquina,
2004b) parece decorrer mais do estatuto social e jurdico que conquistaram do que da
partilha efectiva, reflectida e argumentada, de um ncleo identitrio coerente e slido,
reconhecido pelos pares e reconhecvel pela sociedade. E talvez porque se confrontam
com um processo de profissionalizao que ainda no terminou, como diz Traquina
(ibidem) em complemento sua anterior afirmao, que os jornalistas do mostras de uma
forte identidade que parece, afinal, mais virtual do que real, mais fluida (Ruellan,
1993) do que consistente, remetendo-se sobretudo aos planos do simblico e do retrico e,
por isso, resistindo mal a uma confrontao aberta e despreconceituosa tanto com as ideias
como com os factos observveis no dia-a-dia.
Pude aperceber-me da progressiva dificuldade de mobilizao colectiva do grupo
profissional dos jornalistas, mesmo para as causas que lhes seriam partida mais
queridas e prementes (o aprofundamento da reflexo sobre as novas condies de exerccio
2
Introduo
do mtier, as alteraes jurdicas e regulamentares ao seu estatuto scio-laboral, as
crescentes exigncias de uma boa formao inicial e contnua, terica e prtica, a busca
empenhada de mecanismos mobilizadores e eficazes de auto-regulao ou co-regulao
nos domnios tico e deontolgico), o que, sugerindo mais uma vez algum dfice
identitrio, se explicar tambm pelas novas configuraes que vm redesenhando o
campo jornalstico tradicional:
Por um lado, os instrumentos de negociao e contratao colectiva esto hoje
muito mais confinados ao universo restrito das empresas concretas (bastante
diferenciadas nas suas filosofias, objectivos e modelos de gesto), ou mesmo,
dentro delas, relao bilateral entre empregador e empregado o que contribui
para fragmentar ainda mais um grupo profissional desde sempre repartido por
segmentos profissionais muito desiguais, e algo propenso ao individualismo
caracterstico de criadores e artistas (criadores e artistas que estiveram, bom no
esquecer, na origem longnqua deste ofcio).
Por outro lado, as evolues mais recentes no que toca s tecnologias digitais, ao
desenvolvimento do multimdia, das telecomunicaes e da Internet, com a
convergncia de meios e suportes que acarretaram, diluram as fronteiras
tradicionais em que se moldara o jornalismo (ou que o prprio jornalismo ajudara a
moldar e a fixar), aproximando e misturando os domnios da informao e da
comunicao. Tudo isto trouxe ao campo agora mais vasto e impreciso novos
protagonistas, novos processos e novos ofcios, contribuindo ainda mais, se assim
se pode dizer, para acentuar a relativa fluidez das marcas identitrias dos
jornalistas, a ponto de algumas vozes falarem j no de dfice, mas de crise de
identidade, e mesmo da necessidade de repensar a prpria definio de jornalista.
Ao longo dos ltimos anos de trabalho profissional como jornalista entretanto j
associado a uma colaborao com a universidade que haveria de me cativar para uma
dedicao exclusiva ao ensino e investigao do jornalismo pude aperceber-me, enfim,
das distncias, divergncias e incompreenses mtuas, sobre todas estas matrias, entre o
mundo dos profissionais e das empresas, e o mundo dos acadmicos e estudiosos dos
media, em geral, ou do jornalismo em particular. Mais do que divergncias e
incompreenses, ou at antes delas, era notria a quase conversa de surdos em que
frequentemente se perdiam: a dificuldade de simplesmente se ouvirem de parte a parte, de
tentarem entender o fundo e a forma das respectivas argumentaes, bem como o lugar da
3
Introduo
fala especfico de onde elas eram produzidas, de juntarem esforos e competncias para o
objectivo comum de esclarecer melhor os problemas em debate e, no seguimento,
trabalhar para os ultrapassar, tanto no nvel das teorias como no domnio das prticas. E a
questo era tanto mais sensvel quanto me parecia evidente (como hoje ainda mais parece)
que uma e outra parte teriam, com os seus instrumentos especficos e contextos de trabalho
prprios, contributos preciosos para fazer mais luz sobre as matrias que interessa
aprofundar, e do labor conjunto acabariam ambas, decerto, por retirar os seus benefcios. O
que, pode dizer-se, comea aqui e alm j a notar-se, pois alguns claros progressos neste
caminho de dilogo tm sido evidentes nos ltimos tempos.
Da conjugao de todos estes factores, e do cruzamento entre o eu-profissional e
o eu-acadmico, onde se misturaram observaes e preocupaes, prticas reais e
anlises tericas, experincias vividas e reflexes com interlocutores tanto do mundo dos
media como do mundo das universidades, nasceu a vontade de fazer este trabalho: um
trabalho sobre o jornalismo ou, dito com mais propriedade, um trabalho sobre o jornalismo
enquanto profisso e sobre os jornalistas, hoje, aqui.
O objectivo central da investigao proposta tentar compreender os contornos e
as especificidades da profisso de jornalista (uma profisso reconhecida como tal e
institucionalizada h escassas dcadas), seja nos modos como ela encarada e tratada
pelos seus directos protagonistas, seja nos modos como ela olhada e julgada pelo todo
social em que est inscrita e com que interage. O pressuposto , naturalmente, o de que a
profisso foi sendo o que quis ou pde ser, mas tambm o resultado (instvel, mutvel,
situado) de tenses, de equilbrios, de negociaes com os diversos actores sociais com
que ela, de diferentes modos em diferentes tempos e espaos, se inter-relacionou.
Pretendeu-se conhecer, identificar e analisar os elementos que, de algum modo,
concorrem para configurar uma determinada identidade profissional, mesmo sabendo que,
no caso do jornalismo, eles so declinados de maneiras algo particulares a ponto de
haver quem, luz de exclusivos critrios estruturo-funcionalistas, e tomando por
referncia o modelo tpico das profisses liberais estabelecidas, como as de mdico ou
advogado, preferisse considerar o jornalismo uma meia profisso ou uma quase
profisso. At por isso, e mesmo sem perder de vista o desejo de conhecer e caracterizar
os jornalistas nos tempos de hoje, pareceu especialmente recomendvel olhar com alguma
ateno para o passado, para os processos e estratgias que levaram progressiva
afirmao do jornalismo como uma actividade e um domnio de saber autnomo, distinto
de ofcios prximos da sua fronteira (quando no desejosos de a derrubar), e,
4
Introduo
paralelamente, afirmao dos jornalistas como autnticos profissionais e legtimos
cultores dessa actividade.
Como se sabe, este foi um percurso sinuoso e acidentado, que em rigor nem se
pode dar ainda por concludo, se que alguma vez o ser: a contradio de base entre
um perfil profissional que ora se reclama mais do artstico, ora mais do tcnico, que ora
reclama a autonomia prpria de um profissional liberal, ora se associa aos
constrangimentos laborais de um trabalhador assalariado, que ora reivindica um saber e
um saber-fazer altamente especializados, ora encara de soslaio eventuais exigncias de
titulao acadmica para aceder legalmente profisso, acompanha o jornalista
praticamente desde as origens. Se estas particularidades o diminuem como profissional,
ou se so antes os ingredientes prprios de um mtier juridicamente reconhecido e
socialmente legitimado (alm de poderosamente influente), matria que se espera ajudar
a esclarecer ao longo das pginas deste trabalho.
As tentativas de clarificao comeam, alis, logo no Captulo I, onde se passam
em revista as mais recentes correntes tericas ligadas sociologia das profisses. Indo
alm das doutrinas funcionalistas que, tradicionalmente, esgotavam a caracterizao de
uma profisso na inventariao de um conjunto de atributos ou traos que
obrigatoriamente haveria de se possuir, novas abordagens (decorrentes das perspectivas
interaccionistas) chamaram a ateno mais para o processo de construo de uma profisso
do que para o resultado. Com isso atribuam uma especial importncia e significado s
estratgias de profissionalizao prosseguidas pelos grupos ocupacionais, em tempos e
espaos histricos bem situados, com vista a obterem esse estatuto. Mais ainda, uma
corrente de estudos particularmente crtica da chamada ideologia do profissionalismo
ou do profissionalismo enquanto ideologia foi pondo em destaque, nas ltimas dcadas
do sculo XX, a questo do poder como mbil das profisses (e dos grupos que a tal
aspiravam), poder esse traduzido na apropriao, em regime de monoplio e com o aval do
Estado, de um segmento fechado do mercado de trabalho, cujo acesso se controlava e cujas
regras de conduta se auto-regulavam. Todos estes contributos tericos somados ainda
verificao e anlise de recentes tendncias no sentido de alguma desprofissionalizao ou
de proletarizao das actividades do trabalho parecem desenhar um pano de fundo mais
adequado anlise do projecto profissional dos jornalistas e das complexidades que
amide o envolveram.
O passo seguinte , pois, o mergulho no percurso histrico, desenvolvido de modo
mais sistemtico sobretudo a partir de meados do sculo XIX, que levou autonomizao
5
Introduo
da actividade do jornalismo e ao esboar de uma profisso prpria. Disso trata o Captulo
II, passando especialmente em revista os cenrios de Frana e dos Estados Unidos, onde,
de modo algo esquemtico, podemos situar as razes das duas tradies mais fortes a
poltico-literria, associada ao modelo europeu, e a informativa associada ao
modelo anglo-americano que acabaram por construir o moderno jornalismo. Uma
ateno particular , naturalmente, dada ao desenvolvimento do processo em Portugal, que
teve tambm as suas especificidades, muito decorrentes do seu contexto poltico e social.
Ao longo deste percurso vo emergindo, entretanto, os principais elementos que comum
associar ao profissionalismo, sejam os do domnio cognitivo (um saber prprio, formal,
codificado e transmissvel, e um saber-fazer especializado), sejam os do domnio
valorativo (um determinado estatuto social, um esprito de corpo traduzido em
associaes profissionais com poderes importantes), sejam os do domnio normativo (a
invocao da prestao de um servio pblico em moldes responsveis e altrustas, o
compromisso com um conjunto de valores ticos e de normas deontolgicas). Emergem de
modos diversos conforme os pases e as pocas, emergem com as suas certezas e as suas
contradies, mas neles que o grupo dos jornalistas vai procurando alicerar as bases da
sua profisso, com isso tentando obter o reconhecimento e a legitimao, tanto na esfera
jurdico-legal como no plano social.
O Captulo III retoma, assim, cada um destes elementos vez, procurando
dissec-los mais em profundidade, j para alm da envolvente histrica em que
despontaram. No domnio valorativo, aborda-se a questo do associativismo dos jornalistas
e v-se como a se manifestaram at hoje, de modo exemplar, as hesitaes e
ambiguidades de um grupo profissional dividido entre um vasto leque de pertenas
possveis. No domnio cognitivo, analisa-se com algum detalhe a questo particularmente
sensvel dos saberes prprios do jornalismo e em especial das exigncias associadas a
um saber profissional que saber de aco e que, portanto, deve ultrapassar as
dicotomias teoria/ prtica ou pensar/ fazer, traduzindo-se num modelo de competncia
que aos conhecimentos formais e s tcnicas associa tambm saberes relacionais e
comportamentos ticos. No domnio normativo, aborda-se, num primeiro momento, a
questo da responsabilidade dos jornalistas (quer na sua articulao com a simtrica
liberdade, tanto negativa como positiva, quer na sua associao ao repto mais vasto da
responsabilidade social dos media) e, num segundo momento, a exigncia tica e
deontolgica que cada vez mais se vai percebendo como ingrediente nuclear, constitutivo,
da identidade desta profisso.
6
Introduo
Porque assim parece ser como esta tese, basicamente, pretende demonstrar , o
Captulo IV integralmente dedicado temtica da tica e da deontologia. Definem-se os
conceitos (nem sempre usados com os mesmos sentidos para todos os interlocutores),
evocam-se as grandes controvrsias e passam-se em revista as principais correntes e sub-
correntes que dominam os debates contemporneos em torno da tica: as deontolgicas, as
teleolgicas, as utilitaristas, as contratualistas, a tica das virtudes, a tica do discurso,
as mais recentes tica social e tica dos afectos, todas elas trazendo, nos seus enfoques
particulares, algo de relevante reflexo de uma matria to sensvel para o jornalismo.
Referem-se, por outro lado, diversas tentativas de encontrar pontes de ligao e de sntese
entre teorias, bem como o empenho de alguns em propor um mnimo tico comum
traduzido num reduzido nmero de proto-normas morais essenciais e universais em que
todos pudessem rever-se. Antes de passar ao domnio mais especfico da deontologia
profissional dos jornalistas e dos diversos modos com que ela (mal)tratada , explica-
se a importncia da precedncia da tica sobre a deontologia (so os valores que
fundamentam e questionam as normas), bem como a vantagem de inscrever a tica dos
profissionais numa mais vasta e englobante tica de cidados que eles tambm so
com isso recolocando o pblico no centro da comunicao meditica.
Se o tema da tica e da deontologia esteve presente desde o incio, e em lugar
central, nas estratgias de reivindicao dos jornalistas a um estatuto autenticamente (e
legitimadamente) profissional, por maioria de razo parece dever estar nos tempos que
correm, quando outros elementos distintivos perderam alguma da sua fora e, em
contrapartida, o campo tradicional do jornalismo passou a conviver com outros ofcios,
perfis, processos e motivaes da rea mais lata da comunicao. Da a sugesto feita de
um back to basics, que no caso assume a forma de back to ethics e onde, afinal, os
jornalistas podem / devem ancorar o ncleo essencial e diferenciador da sua identidade
profissional. Mas, para que tal no se fique pelo simples enunciado de bons propsitos, e
para que a responsabilidade assumida nesse domnio seja traduzida em prticas, h que
prestar contas ao pblico pois precisamente no direito do pblico informao que o
jornalismo encontra a sua razo de ser e a sua legitimidade.
Este imperativo de prestao de contas (ou accountability) tratado no Captulo
V, que se debrua tambm sobre as modalidades concretas que ele pode assumir, seja no
contexto de uma hetero-regulao imposta pelo Estado actividade dos media, seja
sobretudo no contexto de uma (a vrios ttulos prefervel) auto-regulao dos jornalistas e
das empresas jornalsticas relativamente ao seu prprio trabalho. Relevando a importncia
7
Introduo
de dar corpo efectivo responsabilidade assumida sem, contudo, em algum momento pr
em risco a necessria liberdade que trave-mestra do jornalismo (e da democracia),
apontam-se as vantagens da auto-regulao, feita pelos prprios pares mas
voluntariamente alargada tambm a alguma participao pblica sem esconder os riscos
e limitaes que por vezes a tolhem , e insiste-se na importncia de que ela seja
consequente, genuna e eficaz. esta uma posio que se defende no s para obviar a
tentaes de um maior intervencionismo externo, que existem e podem medrar em
situaes de algum laxismo ou isolamento corporativo, mas sobretudo porque parece ser o
modo mais correcto de exercitar responsavelmente a liberdade de expresso em
representao do pblico e de, assim, estar nas melhores condies de servir bem o seu
direito a uma informao livre, rigorosa e eticamente conduzida.
Vrios mecanismos e instrumentos, entre mais antigos ou mais inovadores, tm
sido postos em prtica para concretizar esta vontade auto-reguladora que ,
simultaneamente, uma maneira de municiar e fortalecer o arsenal da democracia, para
usar os termos de Claude-Jean Bertrand (1999) e dos seus M*A*R*S*, ou seja, Meios de
Assegurar a Responsabilidade Social dos media e dos principais se d conta neste
trabalho. De todos, e em parte pelas razes atrs expostas, escolhe-se particularmente um:
o Provedor do Leitor. A ele se dedica o Captulo VI (e ltimo) desta tese, tomando-o
como uma espcie de estudo de caso e articulando a sua anlise, em consonncia com a
globalidade do trabalho, com o objectivo especfico de avaliar o modo como os jornalistas
se relacionam com este instrumento auto-regulador concreto, como o encaram, como o
julgam, como o aproveitam e lhe do sentido.
A metodologia seguida nesta investigao de carcter emprico sem prejuzo da
experincia concreta que acumulei nos dois anos em que exerci o cargo, e que certamente
contribuiu para a minha investigao em termos de uma espcie de observao
participante tanto informal quanto despretensiosa foi a de um inqurito de opinio ao
conjunto dos jornalistas de trs dirios portugueses que, data, tinham Provedor do Leitor.
As concluses sugerem, no essencial, que esta uma instncia de auto-regulao encarada
de modo globalmente positivo pelos jornalistas, quer no que respeita ao seu trabalho
especfico, quer no que traz de acrescento sua maior ligao e interaco com os leitores
afinal, um dos elementos principais de uma comunicao social responsvel e eticamente
exigente, porque entendida no como um fim em si prprio (ou fim para a prossecuo de
interesses particulares), mas como um meio para servir o bem pblico e reforar as
condies de participao informada e crtica dos cidados nos seus destinos colectivos.
8
Introduo
O Provedor do Leitor , ento, o ponto de chegada (e lugar de concretizao) de
um itinerrio longo e ramificado, mas que se pretendeu lgico e coerente, caminhando
progressivamente do mais global para o mais particular: as profisses em geral, o processo
histrico de profissionalizao dos jornalistas, a declinao especfica que fizeram dos
seus principais traos ou atributos profissionais, o lugar central de um desses atributos (o
desafio tico-deontolgico), as exigncias de responsabilidade e de prestao de contas
que lhe vo associadas, as modalidades concretas de auto-regulao do trabalho
jornalstico, o exemplo particular do Provedor do Leitor. Mais do que ponto de chegada,
este o elemento de fecho que procura, atravs da investigao realizada, ilustrar como
um instrumento auto-regulador pode ajudar a mobilizar os jornalistas para que coloquem
as questes ticas e deontolgicas no cerne das suas preocupaes profissionais.
A hiptese que se colocou no incio da investigao (e que se entende ter sido
confirmada, como se procurar evidenciar ao longo das pginas deste trabalho e, em
sntese, na sua concluso final) a de que a exigncia tica e deontolgica, traduzida num
compromisso irrecusvel com um conjunto de princpios e valores bsicos, bem como com
as normas de conduta que deles decorrem, um elemento nuclear da identidade
profissional dos jornalistas. E se assim pareceu ser desde os incios, quando o grupo
profissional se empenhou em definir as marcas prprias e diferenciadoras da sua
actividade do seu saber, do seu saber-que-fazer, do seu saber-fazer, do seu saber-
estar e do seu saber-ser , mais o nos tempos actuais, em que o jornalismo deixou de
ter o monoplio da pesquisa, recolha, tratamento, elaborao e difuso de informao no
espao pblico, partilhando-a hoje com uma multiplicidade de actores e de procedimentos
que se regem pelas mais variadas motivaes, interesses e propsitos. Da que a linha
separadora entre o que e no jornalismo (ou, paralelamente, entre quem ou no
jornalista) passe porventura cada vez menos por aquilo que se faz, onde se faz ou
quando se faz. Em contrapartida, passa mais, e cada vez mais passar, pelo:
como se faz com que transparncia de processos, com que regras de
conduta, com que adequado saber profissional, com que compreenso dos bens
internos da comunicao social, com que respeito pela vida, pela dignidade de
toda a pessoa humana e pela verdade;
porqu se faz com que entendimento da importncia do direito
informao, com que capacidade de interpretao do interesse pblico e
9
Introduo
correlativa capacidade de seleco da informao pertinente, com que apego
liberdade de pensamento e de expresso;
para qu se faz com que empenho na defesa da informao livre e
socialmente relevante como pedra basilar da democracia, com que crena na
importncia da autonomia dos leitores, com que desejo de servir os cidados e
contribuir para a sua participao crtica e qualificada nos destinos pblicos.
S assim os jornalistas podero reivindicar globalmente uma identidade
profissional prpria e bem definida, s assim podero ultrapassar as crescentes suspeitas e
desconfianas de que vm sendo alvo (muitas vezes com boas razes, por mais que isso
lhes doa), s assim podero estabelecer sem ambiguidades as condies para o seu
reconhecimento social e, sobretudo, para a legitimao do seu estatuto social e do
enorme poder que ele lhes coloca nas mos.
* * *
Uma vez que este trabalho se pode considerar, em alguma medida, como produto
da interseco de dois percursos profissionais o do jornalista, ao longo de mais de 20
anos, e o do acadmico e investigador, essencialmente no ltimo lustro , permito-me
terminar esta apresentao citando um trecho de Gilles Gauthier (1992: 13) sobre a relao
entre estes dois mundos, no domnio particular que aqui objecto de estudo:
efectuando abertamente e sem falsa vergonha () o trabalho terico
que os universitrios podem ser mais teis, em tica como no resto, aos jornalistas
e sociedade. A sua tarefa no , primariamente, uma tarefa de interveno
social. No perorando na praa pblica sobre a moralidade dos media nem
dando lies disso aos jornalistas que os universitrios podem desempenhar uma
funo vlida. , antes, tentando aprofundar teoricamente as questes da tica
jornalstica, em particular a questo dos seus fundamentos, que os investigadores
podem, ao lanar luz sobre as prticas dos jornalistas, dar um certo contributo
prtica do jornalismo.
H uma tenso permanente entre os jornalistas e os analistas
universitrios do jornalismo, com os primeiros lanando aos segundos uma
10
Introduo
acusao frequentemente merecida de se abstrarem do mundo real. Mas esta
tenso em boa parte benfica. Existe, de facto, um perigo no trabalho terico:
intelectualizar a realidade. E os jornalistas podem ter razo em querer trazer os
tericos para a terra. Este risco, no entanto, no deve levar a que se abdique do
exerccio da inteligncia.
Os jornalistas deixam de ter razo quando se lanam no anti-
intelectualismo. Um perigo mais grave do que a abstraco ameaa os
investigadores universitrios: o de no exercerem plena e adequadamente a sua
funo terica. Assumindo-a abertamente, eles favorecem o esclarecimento da sua
relao com os jornalistas e da sua contribuio possvel para a prtica
jornalstica.
Talvez este trabalho parea, nuns momentos, o trabalho de um velho jornalista
que tentou aproximar-se da exigncia formal e do rigor cientfico do campo acadmico em
que agora est inserido, e, noutros momentos, o trabalho de um jovem acadmico que
quis esclarecer e entender melhor os meandros prticos e concretamente situados do
campo jornalstico em que durante tantos anos esteve intensamente mergulhado.
Pode ele, no fim de contas, no ter atingido exactamente nem um nem outro
propsito ficando, afinal, prisioneiro de indefinies e hesitaes a meio caminho de
ambos. Em contrapartida, numa viso mais optimista (e porventura imodesta), pode ter
beneficiado em alguma medida dos contributos recolhidos da experincia nos dois campos
de actividade que foram coexistindo, com isso complexificando, mas tambm alargando e
enriquecendo, a abordagem de uma temtica to sensvel como esta.
No ao autor, porm, que cabe o juzo sobre se conseguiu, ou no, gerir
adequadamente esta dupla pertena.
* * * * * * * * * *
11
Introduo
12
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
I Profisso, profissionalismo e profissionalizao
Le journalisme nest pas une profession,
car ce qui constitue une profession, cest quon sy prpare et que, cette prparation termine, on lembrasse.
Or, dans le journalisme, il nexiste ni aprentissage ni diplme ni certificat.
douard CHARTON, Dictionnaire des professions et guide pour le choix dun tat, 1842
Quando o investigador francs Denis Ruellan chama a ateno, com uma
perspiccia a que no faltar tambm uma ponta de ironia, para esse hbito de
linguagem que costumava levar um jornalista a auto-denominar-se jornalista
profissional, sendo certo que nunca dizemos professor profissional, advogado
profissional ou agricultor profissional (Ruellan, 1993: 11, realces do autor), ele est a
expor, afinal, uma ambiguidade que desde h dcadas acompanha este grupo profissional
(ou grupo ocupacional, como outros prefeririam) e torna difcil a definio dos seus
contornos. O que poderia parecer uma formulao pleonstica, destinada apenas a
enfatizar o bvio, acaba por ser a traduo pblica e notria da necessidade, sentida por
grande parte dos jornalistas, de sublinharem o carcter especializado, autnomo e nobre
da actividade que exercem a ttulo permanente e remunerado alm de, habitualmente,
exclusivo. Insistir em adjectivar o jornalista de profissional pressupe que pode, de
facto ou de direito, haver jornalistas no profissionais com isso podendo significar-se
desde amadores a diletantes, passando por aprendizes, principiantes,
incompetentes o que, s por si, revelador de uma dificuldade de definio e de
delimitao nada comuns nas chamadas profisses estabelecidas, reconhecidas e
interiorizadas pela opinio pblica com base no modelo do profissional liberal (mdico,
advogado, engenheiro, arquitecto).
A dificuldade de delimitao clara do mbito de actividade dos jornalistas
enquanto profissionais caminha, como parece bvio, a par da dificuldade de definio
clara e inequvoca da sua prpria actividade: o jornalismo. E a luta (ainda muito recente,
ainda porventura inacabada) pela afirmao desta actividade como uma actividade
13
Captulo I
autnoma, especfica, cientificamente caracterizvel e merecedora de um reconhecimento
social particular, que impele os seus intrpretes a assumirem-se como profissionais, a
afirmarem-se como os nicos legtimos ocupantes deste espao e a traarem uma linha
divisria que exclua todos os no profissionais.
Pretendemos, neste primeiro captulo, situar o debate em torno da profisso de
jornalista no debate mais amplo sobre o prprio conceito de profisso e os modos diversos
como ele tem sido desenvolvido ao longo das ltimas dcadas. Pretendemos tambm,
sobretudo a partir dos novos contributos fornecidos pela sociologia das profisses (e, mais
globalmente, da sociologia do trabalho) na segunda metade do sculo XX, alargar as
vises demasiado estticas do conceito, inscrevendo-o na lgica mais dinmica e
polifacetada das estratgias de profissionalizao dos grupos ocupacionais e do sistema
de valores ou da ideologia associados ao profissionalismo. Este conjunto de perspectivas
complexifica e enriquece as abordagens baseadas apenas na anlise das profisses
enquanto conjunto de requisitos ou traos distintivos que se tem ou no se tem, e pode
ajudar a uma melhor compreenso das especificidades do ofcio jornalstico, seja nos
modos como procurou construir-se durante os dois ltimos sculos, seja nas imagens (mais
reais ou mais virtuais) que hoje procura dar de si, seja ainda nas representaes que dele
tm quantos de algum modo contactam com a sua actividade e lhe sofrem as
consequncias ou seja, todos ns, em maior ou menor grau1. Trata-se, afinal, de procurar
compreender melhor como este grupo tem tentado afirmar uma determinada identidade
profissional e como ela se articula com os novos contextos que actualmente a desafiam.
1. Profisso: a difcil definio
O estudo sistemtico das profisses, designadamente no mbito da sociologia, tem
uma tradio muito recente na Europa. Nos pases do universo anglo-saxnico, j de h
vrias dcadas se faz a distino entre professions e occupations, sendo que as primeiras
1 Dadas as caractersticas especficas deste nosso trabalho, entendemos que no se justificaria um tratamento
demasiado pormenorizado de matrias que tm sido muito dissecadas no domnio da sociologia, e em particular da sociologia do trabalho. Assim, entendemos ater-nos, nos aspectos essenciais, aos estudos realizados por Dubar & Tripier (1998) e por Rodrigues (2002) no mbito da sociologia das profisses, sem prejuzo de tentarmos complement-los, sempre que se justifique, com outros contributos da literatura especializada nesta rea.
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Profisso, profissionalismo e profissionalizao
viram at, no caso dos Estados Unidos da Amrica, definidas as suas atribuies num texto
legal o Taft Hartley Act, diploma promulgado em 1947 e que distingue juridicamente
as professions com estatuto que tm direito s associaes profissionais, das simples
occupations, cujos membros tm simplesmente o direito de aderir a sindicatos (Tripier,
apud Dubar, 1996: 186). A, o atributo de profisso est reservado, sem grandes
equvocos, s actividades que preenchem os requisitos habitualmente associados s
profisses liberais, e traduz-se na concesso, aos seus membros, de alguns direitos
particulares, como os de se constituir em associao autnoma e reconhecida, interditar o
exerccio da actividade aos no-membros, organizar a formao (Dubar, 1998: 7). Ou
seja, trata-se de uma classificao oficial que, no obstante, acaba por ter tambm
consequncias sociais e econmicas (Freidson, 1998: 53). Aos titulares de occupations,
em contrapartida, no cabem tais regalias ou reconhecimento.
No isto que sucede na generalidade dos pases europeus (e designadamente em
Frana onde desde a dcada de 70 do sculo XX comearam a desenvolver-se estudos
especificamente no domnio dos grupos profissionais2 , ou em Portugal), onde o termo
profisso sempre teve uma utilizao mais genrica, e portanto mais indefinida. Claude
Dubar e Pierre Tripier (Dubar & Tripier, 1998: 9-11) fazem uma boa sntese dos trs
principais universos de significao associados ao uso do termo profisso em francs,
mas cuja correspondncia com o termo em portugus total. Assim, ela tanto pode ser
1) qualquer coisa que se enuncia publicamente e que est ligada a crenas
poltico-religiosas ( a chamada profisso de f, o professar certas crenas
ou valores), como
2) o trabalho que se faz, na medida em que nos permite viver graas ao
rendimento que dele retiramos (esta acepo prxima da ocupao e
costuma incluir-se nos elementos bsicos de identificao de uma pessoa, a par
de nome, estado civil, naturalidade, residncia), ou finalmente como
3) conjunto de pessoas que exercem o mesmo ofcio (e o sentido, aqui,
prximo do de corporao ou de grupo profissional)3.
2 O texto de Jean-Michel Chapoulie, Sur lanalyse sociologique des groupes professionels, publicado em 1973 na
Revue Franaise de Sociologie (XIX), considerado o trabalho fundador da sociologia das profisses em Frana. 3 Acresce que, como atrs se apontava, o adjectivo profissional tambm pode ter, ele prprio, diversas conotaes,
tanto significando que se pertence a determinado grupo profissional como que se experimentado, competente ou particularmente empenhado naquilo que se faz. E esta enorme polissemia do termo acaba, como sugere Dubar (1996) por ser favorvel a todas as manipulaes simblicas.
15
Captulo I
Dubar & Tripier acrescentam, entretanto, a estes trs sentidos tradicionais um
quarto, mais recente, de profisso como funo ou como posio profissional num
organigrama (ibid.: 12).
E em paralelo com estes quatro sentidos do termo que propem tambm quatro
pontos de vista diferentes sobre a actividade do trabalho (ibid.: 12-13) subjacentes, em
seu entender, a cada um deles:
a) profisso = declarao (aponta para uma identidade profissional)
b) profisso = emprego (corresponde a uma classificao profissional)
c) profisso = ofcio (pressupe uma especializao profissional)
d) profisso = funo (significa uma posio profissional).
So pontos de vista, como dizem os autores, que dependem dos sistemas de
referncia que escolhermos, dos modos de classificao em vigor em determinados
contextos, mas tambm das valorizaes afectivas de cada um: Nem todos [estes]
pontos de vista so possveis relativamente a todas as actividades de trabalho que
denominamos, em francs, profissionais (ibid.: 13). Da que o acto aparentemente simples
de declarar ou definir a sua profisso implique, segundo os mesmos autores, um trabalho a
um tempo cognitivo, afectivo e conativo.
Olhado numa perspectiva histrica, um estudo comparativo das profisses pode,
entretanto, segundo Dubar & Tripier (ibidem), seguir trs perspectivas diversas e
complementares, cada uma fazendo luz sobre diferentes aspectos desta forma de
organizao no contexto da sociedade:
1) as profisses como formas histricas de organizao social, de categorizao
das actividades do trabalho que constituem desafios polticos, inseparveis da
questo das relaes entre o Estado e os indivduos (profisses como os
grupos intermdios tal como definidos por mile Durkheim4);
4 Durkheim desenvolveu esta questo sobretudo na obra Sobre a diviso do trabalho social (1893). Partindo da
anlise sobre o fim das corporaes que organizaram durante sculos a velha estrutura social, e considerando no ser possvel que esta organizao interna desaparea sem nada que a substitua, defendeu que um papel idntico a esse poderia e deveria, no nosso tempo, ser desempenhado em particular pelos grupos profissionais: Uma nao apenas se pode manter se se intercalar entre o Estado e os particulares toda uma srie de grupos secundrios que estejam bastante prximos dos indivduos para os atrair fortemente para a sua esfera de aco e para os arrastar, desse modo, para a torrente geral da vida social. () Os grupos profissionais esto aptos a desempenhar este papel; alis tudo a isso os conduz (Durkheim, 1893/2001: 386-387).
16
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
2) as profisses como formas histricas de realizao de si, quadros de
identificao subjectiva e de expresso de valores de ordem tica com um
significado cultural;
3) as profisses como formas histricas de coligao de actores que defendem os
seus interesses tentando assegurar e manter um mercado de trabalho fechado,
um monoplio para as suas actividades, uma clientela garantida para o seu
servio, um emprego estvel e uma remunerao elevada, um reconhecimento
da sua especializao [expertise], o que consubstancia um desafio sobretudo
econmico.
a partir destes trs tipos de desafios ou interpelaes (poltico, tico-cultural,
econmico) que Dubar & Tripier (ibid.: 14) sintetizam o triplo objecto que encontram para
a sociologia das profisses, tal como a desenvolvem: a organizao social das actividades
de trabalho, a sua significao subjectiva, e os modos de estruturao dos mercados de
trabalho.
De certo modo, a sucesso destas trs perspectivas (e da sua valorizao relativa
em cada momento histrico) que vamos tambm encontrar nas grandes abordagens
tericas da sociologia das profisses ao longo do sculo XX. Os primeiros estudos foram
dominados pelas teorias sociolgicas funcionalistas, tendendo a olhar as profisses (
imagem das profisses liberais) como um modelo superior e completo (), a que as
restantes ocupaes no conseguiam alcandorar-se (Rodrigues, 2002: viii). Num
segundo momento, o paradigma interaccionista, com origem na Escola de Chicago, que
comea a dominar as abordagens, pondo em relevo as profisses j no como modelo mas
como processo, e ressaltando no tanto as suas caractersticas ou atributos, mas as
condies concretas do seu exerccio, a partir de interaces entre os actores sociais (ibid.:
25). Num terceiro momento, h uma variedade de estudos que procuram no s uma
espcie de sntese dos dois paradigmas (funcionalista e interaccionista), como vo mais
alm, introduzindo nas abordagens as dimenses histrica e econmica (como, por
exemplo, o controlo dos mercados de trabalho), chamando a ateno sobretudo para o
poder das profisses (ibid.: 47), bem como para as estratgias dos grupos profissionais na
conquista e preservao desse poder.
Pode valer a pena analisar um pouco mais de perto estes trs tipos de abordagens,
pois tambm sua luz que tem sido debatida a questo, inicialmente enunciada, de saber
se o jornalismo ou no, e como, uma profisso, e se os jornalistas podem ser
17
Captulo I
considerados profissionais havendo que entender, ento, o que que isso
efectivamente quer dizer. Complementarmente a estas trs abordagens, referiremos ainda
uma quarta a de Andrew Abbott (1988) por se tratar de um esforo mais global de
compreenso sistmica das profisses.
1.1. - O paradigma funcionalista
no paradigma funcionalista que se inscrevem (mesmo sem explicitamente o
dizerem) as mais frequentes classificaes sobre as actividades de trabalho, nomeadamente
ao afirmarem que s pode ser considerada profisso aquela que possuir um conjunto bem
preciso de traos ou atributos. definido, assim, um ideal-tipo de profisso, sendo as
ocupaes que s satisfazem alguns desses critrios consideradas no profisso, quase-
profisso, semi-profisso, conforme os casos e os autores. H mesmo quem, com base
nesta lgica, tenha proposto escalas para medir quanto profissionalismo possuam
determinadas ocupaes (Rodrigues, 2002: 7).
A perspectiva funcionalista dominou boa parte da sociologia das profisses at
finais da dcada de 1960 (MacDonald, 1999), e nela era bem visvel, de acordo com a
generalidade dos autores, a influncia dos trabalhos de Durkheim, nos finais do sculo
XIX e incios do sculo XX:
Em Frana, Durkheim (1893) foi sem dvida o primeiro socilogo a defender uma argumentao sobre a evoluo conjunta das actividades econmicas e das formas de organizao social que desemboca numa concepo que alguns julgaro demasiado normativa dos grupos profissionais (Dubar & Tripier, 1998: 67).
Os trabalhos de Carr-Saunders e Wilson em Inglaterra, designadamente a sua obra
The Professions (1933), bem como os de Parsons nos Estados Unidos, particularmente o
seu texto inicial The Professions and the Social Structure (1939), constituem outras tantas
abordagens de uma teoria funcionalista que procura descrever e avaliar a influncia das
organizaes profissionais nas sociedades modernas e que, de acordo com Dubar & Tripier
(ibid.: 68), se poderia sintetizar em trs grandes proposies de partida, articuladas umas
nas outras:
O desenvolvimento, a restaurao e a organizao das profisses esto no cerne
do desenvolvimento das sociedades modernas,
porque elas asseguram uma funo essencial: a coeso social e moral do
sistema social,
18
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
e representam, por esse facto, uma alternativa dominao do mundo dos
negcios, do capitalismo concorrencial e da luta de classes.
Durkheim inscreve a necessidade de restaurao dos grupos profissionais no
contexto do desaparecimento progressivo, que constatou, dos grupos sociais que
funcionavam como intermedirios entre o indivduo e o Estado, e que foi responsvel por
aquilo a que chamou anomia um enfraquecimento da conscincia das normas e do
lao [lien] social (ibid.: 70), supostamente tornado um estado crnico no mundo
econmico moderno. Neste contexto, a criao e fortalecimento de grupos profissionais
bem definidos e organizados (ao contrrio das velhas corporaes), elevados categoria de
instituies pblicas, poderiam recuperar esse papel mediador, exercendo uma funo
reguladora nas questes econmicas e, simultaneamente, um poder moral capaz de
conter egosmos individuais, desenvolver a solidariedade e impedir o triunfo da lei do mais
forte. A perspectiva de Durkheim, tal como a desenvolveu em Sobre a diviso do trabalho
social (1893), era de que, no futuro, a moderna organizao social e poltica se aliceraria
numa base exclusivamente, ou quase exclusivamente, profissional. E desse novo modelo
de organizao constaria sempre, como condio essencial de uma regulao eficaz nos
planos econmico e do trabalho, a exigncia de uma conscincia moral por parte das
pessoas implicadas, um corpo de crenas comuns:
() como as realidades econmicas invadem cada vez mais todas as esferas da vida social, no prprio corao da economia que necessrio, segundo Durkheim, restabelecer as formas de regulao e de integrao morais que permitiro vencer a anomia. De onde o lugar central atribudo organizao profissional e cuja justificao essencialmente moral, pois ela constitui uma das instncias de socializao dos indivduos e a forma moderna de regulamentao contratual das actividades. Se a escola essencial para assegurar a educao moral de base, ela insuficiente para permitir a integrao concreta dos adultos em comunidades concretas que no podem ser seno profissionais, ou seja, ao mesmo tempo intermedirias entre o Estado e as famlias e enraizadas na esfera econmica que se torna preponderante na vida social (Dubar & Tripier, 1998: 72-73).
Esta defesa da restaurao dos grupos profissionais enquanto forma eminente de
regulao social foi retomada por outros autores em Inglaterra e nos Estados Unidos, mas
com alguma diferena decorrente da prpria tradio anglo-saxnica de distino entre
professions e occupations sendo, portanto, as anlises e as propostas de inspirao
durkheimiana restringidas basicamente ao primeiro grupo, e no totalidade dos actores
do mundo do trabalho.
Em Inglaterra, Carr-Saunders e Wilson fazem, no incio dos anos 1930, o que se
considera a primeira sntese histrica e sociolgica sobre as professions (), ou seja, as
actividades de servio organizadas sob a forma de associaes profissionais voluntrias e
19
Captulo I
reconhecidas legalmente (Dubar & Tripier, 1998: 74). Preocupados, segundo uma clara
lgica funcionalista, em identificar os atributos especficos das profisses, tomadas como
factos naturais (Rodrigues, 2002: 7-8), estes autores consideraram que uma profisso
emerge quando um nmero definido de pessoas comea a praticar uma tcnica fundada
sobre uma formao especializada, dando resposta a necessidades sociais (ibid.: 8).
Comeam, assim, a sistematizar-se a partir do estudo de algumas profisses j
estabelecidas, como as de advogado e de mdico os atributos essenciais que, luz do
paradigma funcionalista, compem o j referido ideal-tipo das profisses: a
especializao de servios que permitam satisfazer uma clientela, a criao de associaes
profissionais que protejam este grupo da invaso de pessoas no qualificadas e que fixem
cdigos de tica para os qualificados, e o estabelecimento de uma formao especfica,
baseada num corpo terico e num conjunto de tcnicas, permitindo a aquisio e o
desenvolvimento de uma cultura profissional prpria. Simultaneamente, vo-se
desenvolvendo debates (que acompanharo sempre o estudo das profisses) sobre a
legitimidade de um tal sistema e dos privilgios que ele acaba por proporcionar a
determinados grupos na sociedade.
O trabalho de Carr-Saunders e Wilson, situando-se tambm na perspectiva que olha
o profissionalismo como um modo de regulao a um tempo economicamente eficaz e
moralmente desejvel e que pressupe uma clara responsabilizao dos prprios
profissionais (numa lgica de service-making, em vez de profit-making), at como
condio essencial do seu reconhecimento por parte do pblico , sugeria tambm que
uma tal forma de organizao seria o futuro das sociedades modernas. Em seu entender,
permitir o acesso de cada vez mais pessoas a este mundo das professions seria a melhor
maneira de reduzir a injustia social, sendo certo que as associaes profissionais
constituiriam um elemento essencial de estabilidade social (Dubar & Tripier, 1998: 80).
Considerando as profisses instituies-chave das sociedades modernas (a par da famlia,
das igrejas e das universidades), estes autores entendiam que a sua funo especfica,
eminentemente progressista, era constituir mediaes entre os saberes puros (pure study)
e o mundo da vida quotidiana, pr em relao o saber especializado (expert knowledge) e
o controlo popular, o mundo dos negcios e a democracia moderna (ibidem).
Esta abordagem conduz, naturalmente, a uma diferena importante, aos nveis
social e moral, entre o chamado profissional e o assalariado normal, entre o que
escolhe um mundo definido pela autonomia (liberdade versus opresso) e a
responsabilidade (dignidade versus dependncia), e o que suporta um outro mundo,
20
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
marcado pela dependncia salarial e a opresso patronal (ibid.: 81). E esta distino
essencial entre profissionais e no-profissionais sugere um mundo funcional em cuja
organizao social os primeiros tm um papel determinante o que ajuda tambm a
compreender como, ao longo da histria, os mais diversos grupos ocupacionais tm
procurado ascender a essa categoria superior e modelar de profisso.
Uma terceira abordagem que se inscreve neste contexto do paradigma funcionalista
deve-se a Parsons, que desenvolveu nos EUA, a partir de 1939, um sistema terico onde os
feitos profissionais tm lugar muito relevante. Ainda de acordo com Dubar & Tripier
(1998: 82), Parsons procurou demonstrar que a actividade profissional (o professional)
que melhor caracteriza o sistema social moderno-liberal, e no, como se cr
frequentemente, a actividade comercial-financeira (o businessman) ou a actividade
administrativo-burocrtica (o funcionrio)5.
Quatro traos distintivos so apontados por Parsons para caracterizar os
profissionais tais como os entende:
1) H uma diferena entre o professional, que presta servios adequados a
pacientes ou a clientes (clients), e o businessman, que est interessado
sobretudo no seu lucro e que vende produtos a consumidores (customers);
2) A autoridade profissional baseada numa competncia tcnica num domnio
definido e particular, num campo de qualificao e de conhecimento
claramente delimitado (a sua actividade tem, portanto, uma especificidade
funcional, ao contrrio de outras com carcter mais difuso);
3) As aces profissionais tm numa neutralidade afectiva, ao contrrio das
aces tradicionais nas esferas familiares ou poltico-religiosas;
4) A actividade do profissional est orientada para a colectividade, instaurando
uma relao contratual que se distingue das relaes comerciais ou
administrativas, pois se orienta essencialmente para a satisfao de um cliente,
recorrendo a valores impessoais como o avano da cincia, o aperfeioamento
tcnico ou a competncia reconhecida juridicamente (ibid.: 83).
5 Outro importante investigador destas matrias, Eliot Freidson, recorda a novidade que foi Parsons ter
encarado e estudado as profisses como um elemento central do desenvolvimento da sociedade contempornea (Freidson, 1998: 53), nisso se distanciando claramente de outros seus contemporneos que preferiam olhar o termo profisso como simplesmente a denominao lisonjeira que se atribuam a si prprias as ocupaes em busca de estatuto (ibidem).
21
Captulo I
Analisando muito em particular a profisso de mdico, Parsons incluiu tambm,
nesse trabalho, a relao mdico-doente e o prprio doente, pois considerava que ser
doente um papel social com uma estrutura estritamente complementar da do mdico. H
uma reciprocidade de papis que permite perceber, afinal, que os traos profissionais
do mdico [tal como atrs referidos] mais no so do que imperativos funcionais da prtica
mdica institucionalizada, e sem eles o sistema no pode funcionar (ibid.: 85). Esta
instituio acaba, ento, por ter uma funo social clara, que o controlo social do
desvio: ao dirigir-se ao mdico (e j no ao feiticeiro ou ao padre, por exemplo), porque
lhe reconhece competncia para o tratar de modo eficaz e fundamentalmente
desinteressado, o doente refora a cultura legtima, reconhecendo a validade da
expertise mdica e a sua superioridade face s interpretaes profanas e aos rituais
mgicos (ibidem). Em vez de se refugiar em valores irracionais, ele consolida os
valores de racionalidade cientfica transportados pelo mdico e, nesse sentido, a prtica
mdica, enquanto processo psicoteraputico, cumpre bem, para Parsons, as mesmas
funes que os rituais mgicos ou religiosos: o restabelecimento da ordem social e
simblica, pela recuperao da sade individual (ibid.). Esta separao entre mdico e
no mdico, entre racional e no racional, retoma, assim, a separao durkheimiana
entre sagrado e profano, agora aplicada a uma civilizao que fez da cincia o
equivalente funcional da religio e do profissional o equivalente do padre deste sistema
cultural moderno.
Na perspectiva de Parsons, o papel dos profissionais exerce-se, portanto, na
relao com os clientes, e a sua reciprocidade assimtrica (conhecimento / ignorncia)
que permite a sua institucionalizao (autoridade / confiana) (Rodrigues, 2002: 9).
Partindo deste exemplo da relao mdico-doente, faz notar como a assimetria da relao
e o potencial risco de explorao so geradores de um sistema de controlo social suportado
pela ideologia e pela mstica do profissionalismo (ibidem). Esta, como atrs se viu,
comporta tanto normas sociais como valores culturais uma competncia que articula
saberes tericos (advindos de formao prpria) e prticos (ligados experincia), uma
especializao tcnica num domnio bem definido de actividade, um desinteresse ou
desprendimento na relao com o cliente , com base nas quais se legitima o papel do
profissional:
Este talvez o principal ponto de convergncia das anlises inspiradas por Parsons e enquadradas pela teoria funcionalista. Desde o incio que se identificaram fenmenos como os do
22
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
poder, dos monoplios e dos privilgios profissionais, no entanto o que considerado como essencial na compreenso e explicao da gnese e funcionamento das profisses so os mecanismos de legitimidade (integrao e controlo) social (). A sociedade concede s profisses autonomia em troca da capacidade de controlo; recompensas e prestgio em troca de competncia; monoplio atravs de licenas em troca das melhores prestaes ou servios. a sociedade que confere poder s comunidades profissionais (Rodrigues, 2002: 10-11).
1.2. - O paradigma interaccionista
Em vez de se preocupar em identificar os traos ou atributos que supostamente
caracterizariam uma profisso numa lgica de modelo , as perspectivas ligadas
corrente terica do interaccionismo simblico (associado Escola de Chicago)
privilegiaram uma lgica de processo: mais importante do que definir o que uma
profisso seria identificar as circunstncias segundo as quais as ocupaes se
transformam em profisses (Rodrigues, 2002: 16). , a este ttulo, perfeitamente
eloquente uma muito citada passagem de E. Hughes (nome que constitui a primeira e mais
saliente referncia desta abordagem interaccionista das profisses), datada de 19586:
Eu passei da falsa questo esta ocupao uma profisso? para uma mais fundamental, quais as circunstncias pelas quais as pessoas que tm uma ocupao tentam torn-la numa profisso, e a si prprias em profissionais?, e quais os passos pelos quais tentam criar uma identificao com os seus modelos de valores? (Hughes, 1958, cit. por Rodrigues, 2002: 16).
Neste nvel, o prprio estudo das profisses alargado para um quadro mais vasto
das actividades do mundo do trabalho (tericos interaccionistas estudaram profisses
muito pouco habituais, como as de ladro, msico de jazz ou pugilista), sempre com o
pressuposto de que a diviso do trabalho resulta de interaces e processos de construo
social no sendo, como pretende o funcionalismo, uma simples capacidade tcnica de
responder a necessidades sociais (Rodrigues, 2002: 15).
Para Hughes, a especificidade do trabalho dos profissionais reside j no em
atributos ou caractersticas particulares que lhe sejam inerentes, mas nas condies
concretas do seu exerccio: a existncia de uma autorizao legal e de um mandato sobre
certos saberes sagrados, a existncia de instituies que protejam o diploma dos
profissionais e mantenham esse seu mandato, a existncia de carreiras, enquanto espaos
de diferenciao / hierarquizao, mas tambm enquanto espaos de socializao (pois ao
6 A passagem retirada do livro Men and Their Work (1958), New York: The Free Press. igualmente retomada, com
data de 1963, no texto Professions (Daedalus, 92: 655-68).
23
Captulo I
mandato se associam uma filosofia e uma viso do mundo). Nesse sentido, as abordagens
interaccionistas, na esteira de Hughes, enfatizam menos a retrica profissional que procura
fazer das profisses (e s destas) uma actividade nobre, prestigiada e desinteressada, e
mais os problemas com que qualquer actividade de trabalho (ocupao) se depara no seu
processo de definio, autonomizao e valorizao.
O processo de profissionalizao , assim, entendido como uma histria
natural, um processo de afirmao de ocupaes por oposio ou afastamento dos
modos amadores de desenvolvimento da actividade (ibid.: 16), e que no se restringe
necessariamente a um escasso nmero de ocupaes. A prpria exigncia de uma
formao especializada, por regra proveniente da escola, considerada menos como um
atributo das profisses e mais como um meio, um recurso para o processo de
profissionalizao: o aumento dos nveis de qualificao fundamental nos conflitos de
disputa de reas de trabalho e respectivas fronteiras (Ruellan, 1997b) entre grupos
ocupacionais, pelo que a formao e as escolas se transformam em instituies que
atribuem licenas para trabalhar numa ocupao, assim estabelecendo a distino entre
os verdadeiros profissionais e os leigos (Rodrigues, 2002: 17). A nfase, ao contrrio da
lgica funcionalista e naturalista, sempre colocada no processo de transformao das
ocupaes, nas interaces e nos conflitos, bem como nos meios e recursos mobilizados
nesse processo. Est sempre presente, assim, uma perspectiva processual e relacional, uma
perspectiva dinmica, bem prpria do interaccionismo, e que coloca o acento tnico j no
na estrutura, mas na aco, j no no facto de que as coisas acontecem, mas no facto de
que as pessoas agem (MacDonald, 1999: 7).
Nesta abordagem, as actividades profissionais so analisadas simultaneamente
como processos subjectivamente significantes e como relaes dinmicas com os outros
(Dubar & Tripier, 1998: 95), dando relevo biografia e s interaces, valorizando as
profisses j no tanto (ou no s) como ingredientes estruturais da organizao social,
mas tambm como formas de realizao pessoal: A actividade profissional de quem quer
que seja deve ser estudada como um processo biogrfico e mesmo identitrio (ibidem).
A sntese proposta por Dubar & Tripier (ibid.: 96) aponta quatro princpios neste
ponto de vista interaccionista sobre as profisses:
1) Os grupos profissionais (entendidos como grupos ocupacionais, num sentido
mais lato do que o das profisses estabelecidas) so processos de interaces
que conduzem os membros de uma mesma actividade de trabalho a auto-
24
Profisso, profissionalismo e profissionalizao
organizar-se, a defender o seu territrio e a sua autonomia, a proteger-se da
concorrncia;
2) A vida profissional um processo biogrfico que constri as identidades ao
longo de todo o desenrolar do ciclo de vida, desde o incio do trabalho at
reforma;
3) Os