72
Coleção Educação: Experiência e Sentido Jacques Rancière O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipaçào intelectual Tradução Lilian do Valle a Autêntica Belo Horizonte 2002 O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipação intelectual

O Mestre Ignorante Jacques Ranciere

Embed Size (px)

DESCRIPTION

book

Citation preview

  • ColeoEducao: Experincia e Sentido

    Jacques Rancire

    O mestre ignoranteCinco lies sobre a emancipao intelectual

    Traduo

    Lilian do Valle

    aAutnticaBelo Horizonte

    2002

    O mestre ignoranteCinco lies sobre a emancipao intelectual

  • "Le Maitre Ignorant" de Jacques RancireWord copyright Librairie Artheme Fayard, 1987

    Projeto grfico da capaJairo Alvarenga Fonseca

    (Sobre O Nalrio rie Nice (1919), Amedeo Modigliani)

    Coordenadores da coleoJorge CarraraWalter Kohan

    RevisoFnck Ramalho

    Rancire, JacquesR185m C) mestre ignorante - cinco lies sobre a emancipao

    intelectual/Jacques Rancire; traduo de Lilian do Valle-Belo Horizonte : Autntica, 2002.

    144p. (Educao: Experincia e Sentido, 1)

    ISBN 85-7526-045-6

    1. Filosofia da educao. I. Valle, Lilian do. II. Ttulo.III Srie.

    2002

    Todos os direitos no Brasil reservados pela Autntica Editora.Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida,

    seja por meios mecnicos, eletrnicos, seja via cpia xerogrficasem a autorizao prvia da editora.

    .0;al~CDU 37.01

    Autntica EditoraRua Januria, 437 - Floresta

    31110-060 - Belo Horizonte - MGPABX: (55 31) 3423 3022 - TELEVENDAS: 0800 2831322

    www.autenticaeditora.com.bre-mail autentica~rilautenticaeditora.com.br

    APRESENTAO DA COLEO

    A experincia, e no a verdade, o que d sentido escritura.Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar o que sabe-mos e no para transmitir o j sabido. Se alguma coisa nos anima aescrever a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experin-cia em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo adeixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do quevimos sendo.

    Tambm a experincia, e no a verdade, o que d sentido edu-

    cao. Educamos para transformar o que sabemos, no para transmitir oj sabido. Se alguma coisa nos anima a educar a possibilidade de que

    esse ato de educao, essa experincia em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para

    ser outra coisa para alm do que vimos sendo.

    A coleo Educao: Experincia e Sentido prope-se a tes-temunhar experincias de escrever na educao, de educar na es-critura. Essa coleo no animada por nenhum propsito revela-dor, convertedor ou doutrinrio: definitivamente, nada a revelar,ningum a converter, nenhuma doutrina a transmitir. Trata-se deapresentar uma escritura que permita que enfim nos livremos dasverdades pelas quais educamos, nas quais nos educamos. Quemsabe assim possamos ampliar nossa liberdade de pensar a educaoe de nos pensarmos a ns prprios, como educadores. O leitor po-der concluir que, se a filosofia um gesto que afirma sem conces-ses a liberdade do pensar, ento esta uma coleo de filosofia daeducao. Qui os sentidos que povoam os textos de Educao:

    Experincia e Sentido possam testemunh-Io.

    Jorge Larrosa e Walter Kohan*Coordenadores da Coleo

    * Jorge Lanosa Professor de Teoria e Histria da Educao da Universidade deBarcelona e Walter Kohan 'Professor Titular de Filosofia da Educao da UERJ.

  • NDICE

    9 Prefcio edio brasileira

    Jacques Rancire

    15 Unia aventura intelectual

    A ordem explicadora, 17 O acaso e a vontade, 21 Omestre emancipador, 25 O crculo da potncia, 27.

    31 A lio do ignorante

    A ilha do livro, 32 Calipso e o serralheiro, 36O mes-tre e Scrates, 40O poder do ignorante, 42 Os negcios decada um, 44 O cego e seu co, 49 Tudo est em tudo, 52.

    55 A razo dos iguais

    Crebros e folhas, 56 Um animal atento, 59 Uma von-tade servida por uma inteligncia, 64 O princpio da veraci-dade, 66 A razo e a lngua, 69 Eu tambm sou pintor, 74 A lio dos poetas, 76 A comunidade dos iguais, 80.

  • 83 A sociedade do desprezo

    As leis da gravidade , 84 A paixo da desigualdade, 88

    A loucura retrica, 91 Os inferiores superiores, 94 O rei

    filsofo e o povo soberano, 97 Como desrazoar razoavel-

    mente, 99 A palavra no Aventino, 104.

    107 O emancipador e suas imitaesO mtodo emancipador e o mtodo socia], 1 08 Eman-

    cipao dos homens e instruo do povo, 111 Os homens doprogresso, 114 De carneiros e homens, 118 O crculo dosprogressistas, 122 Sobre a cabea do povo, 127 O triunfodo Velho, 132 A sociedade pedagogizada, 135 Os contosda panecstica, 139 0 tmulo da emancipao, 143.

  • PREFCIO EDIO BRASILEIRA

    Qual o sentido de propor ao leitor brasileiro deste incio deterceiro milnio a histria de Joseph Jacotot seja, em aparncia, ahistria de um extravagante pedagogo francs dos incios do sculoXIX? Mas haveria, j, qualquer sentido em prop-la, quinze anosmais cedo, aos cidados da Frana apesar de tudo, supostamenteapaixonada por tudo quanto antigidade nacional?

    A histria da pedag

    ogia decerto conhece suas extravagncias. E, estas, por tantoquanto se devem prpria estranheza da relao pedaggica, foramfreqentemente mais instrutivas do que as proposies mais racionais.No entanto, no caso de Joseph Jacotot, o que est em jogo bem maisdo que apenas um artigo, entre tantos, no grande museu de curiosida-

    des pedaggicas. Pois trata-se, aqui, de uma voz solitria que, em ummomento vital da constituio dos ideais, das prticas e das institui-es que ainda governam nosso presente, ergueu-se como uma disso-nncia inaudita como uma dessas dissonncias a partir das quais nose pode mais construir qualquer harmonia da instituio pedaggica eque, portanto, preciso esquecer, para poder continuar a edificar esco-las, programas e pedagogias, mas, tambm, como uma dessas disso-nncias que, em certos momentos, talvez seja preciso escutar ainda,para que o ato de ensinar jamais perca inteiramente a conscincia dosparadoxos que lhe fornecem sentido.

    Revolucionrio na Frana de 1789, exilado nos Pases Baixosquando da restaurao da monarquia, Joseph Jacotot foi levado atomar a palavra no exato momento em que se instala toda uma lgicade pensamento que poderia ser assim resumida: acabar a revoluo,no duplo sentido da palavra: por um termo em suas desordens, reali-zando a necessria transformao das instituies e mentalidades deque foi a encarnao antecipada e fantasmtica; passar da fase dasfebres igualitrias e das desordens revolucionrias constituio deuma nova ordem de sociedades e governos que conciliasse o pro-gresso, sem o qual as sociedades perdem o el, e a ordem, sem a qualelas se precipitam de crise em crise. Quem pretende conciliar ordem

    9

  • COLPO "Eooc+rno: EXPERT NC E SE, DO"

    e progresso encontra naturalmente seu modelo em uma instituioque simboliza sua unio: a instituio pedaggica, lugar material esimblico onde o exerccio da autoridade e a submisso dos sujei-tos no tm outro objetivo alm da progresso destes sujeitos, at olimite de suas capacidades; o conhecimento das matrias do progra-ma para a maioria, a capacidade de se tornar mestre, por sua vez,para os melhores.

    Nesta perspectiva, o que deveria, portanto, arrematar a era dasrevolues era a sociedade da ordem progressiva: a ordem idntica autoridade dos que sabem sobre os que ignoram, ordem votada a redu-zir tanto quanto possvel a distncia entre os primeiros e os segundos.Na Frana dos anos 1830, isto , no pas que havia feito a experinciamais radical da Revoluo e que, assim, se acreditava chamada porexcelncia a completar esta revoluo, por meio da instituio de umaordem moderna razovel, a instruo tornava-se uma palavra de or-dem central: governo da sociedade pelos cidados instrudos e forma-o das elites, mas tambm desenvolvimento de formas de instruodestinadas a fornecer aos homens do povo conhecimentos necess-rios e suficientes para que pudessem, a seu ritmo, superar a distn-cia que os impedia de se integrarem pacificamente na ordem dassociedades fundadas sobre as luzes da cincia e do bom governo.

    Fazendo passar os conhecimentos que possui para o crebrodaqueles que os ignoram. segundo uma sbia progresso adaptadaao nvel das inteligncias limitadas, o mestre era, ao mesmo tempo,um paradigma filosfico e o agente prtico da entrada do povo nasociedade e na ordem governamental modernas. Esse paradigma podeservir para pedagogos mais ou menos rgidos, ou para liberais. Masestas diferenas no desmerecem em nada a lgica do conjunto domodelo, que atribui ao ensino a tarefa de reduzir tanto quanto poss-vel a desigualdade social. reduzindo a distncia entre os ignorantes eo saber. Foi sobre esta questo, exatamente, que Jacotot fez escutar.para seu tempo e para o nosso, sua nota absolutamente dissonante.

    Ele preveniu: a distncia que a Escola c a sociedade pedagogi-zada pretendem reduzir aquela de que vivem e que no cessam dereproduzir. Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingi-do, a partir da situao de desigualdade, de fato a posterga at oinfinito. A igualdade jamais vem aps, como resultado a ser atingi-

    10

    Prefcio

    do. Ela deve sempre ser colocada antes. A prpria desigualdadesocial j a supe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeira-mente. compreender a ordem dada e, em seguida, compreender quedeve obedec-la. Deve, portanto, serj igual a seu mestre, para sub-meter-se a ele. No h ignorante que no saiba uma infinidade decoisas, e sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todoensino deve se fundar. Instruirpode, portanto, significar duas coisasabsolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo prprioato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forar uma capacidadeque se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas asconseqncias desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se em-brutecimento e o segundo, emancipao. No alvorecer da marchatriunfal do progresso para a instruo do povo, Jacotot fez ouvir estadeclarao estarrecedora: esse progresso e essa instruo so a eter-nizao da desigualdade. Os amigos da igualdade no tm que ins-truir o povo, para aproxim-lo da igualdade, eles tm que emanciparas inteligncias, tm que obrigar a quem quer que seja a verificar aigualdade de inteligncias.

    No se trata dc uma questo de mtodo, no sentido de formasparticulares de aprendizagem, trata-se de uma questo propriamentefilosfica: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre apalavra do outro um testemunho de igualdade ou de desigualda-de. uma questo poltica: saber se o sistema de ensino tem porpressuposto unia desigualdade a ser "reduzida" , ou uma igualdade aser verificada. por isto que o discurso de Jacotot o mais atualpossvel. Se acreditei dever faz-lo ouvir ainda na Frana dos anos80, porque me pareceu que ele era o nico que poderia libertar areflexo sobre a Escola do debate interminvel entre duas grandesestratgias de "reduo das desigualdades" . De um lado, a chega-da ao poder do Partido Socialista havia inscrito na ordem do dia asproposies da sociologia progressista que a obra de Pierre Bour-dieu, em particular, encarnava. Esta obra, como se sabe, instalavano mago da desigualdade escolar a violncia simblica impostapor todas as regras tcitas do jogo cultural, que asseguram a repro-duo dos "herdeiros " e a auto-eliminao dos filhos das classespopulares. Mas ela retira dessa situao, c segundo a prpria lgi-ca do progressivismo, duas conseqncias contraditrias. Por um lado,

    t t

  • ColEDAO "EDUCAC.O: EXPERIENCInE SENTIDO "

    ela prope a reduo da desigualdade pela explicitao das regras dojogo e pela racionalizao das formas de aprendizagem. De outro,ela enuncia implicitamente a vanidade de qualquer reforma, fazendodessa violncia simblica um processo que reproduz indefinidamentesuas prprias condies de existncia. Os reformistas governamen-tais no esto, porm, muito interessados nesta duplicidade prpriaa toda pedagogia progressista. Da sociologia de Pierre Bourdieu,eles extraram, portanto, um programa que visava reduzir as desi-gualdades da Escola, reduzindo a parte que cabia grande culturalegtima, tornando-a mais convivial, mais adaptada s sociabilida-des das crianas das camadas desfavorecidas, isto , essencial-mente, dos filhos de emigrantes. Este sociologismo restrito no fa-zia, infelizmente, seno afirmar melhor o pressuposto central doprogressivismo, que determina que aquele que sabe se faa "aces-svel" aos desiguais confirmando, desta forma, a desigualdadepresente, em nome da igualdade futura.

    Eis porque ele deveria rapidamente suscitar uma reao con-trria. Na Frana, a ideologia dita republicana reagiu prontamente,denunciando esses mtodos que, adaptados aos pobres, no podemser jamais seno mtodos de pobres e que comeam por mergulharos "dominados" na situao de que se tenta retir-los. Para essa ide-ologia, o poder da igualdade residia, ao contrrio, na universalidadede um saber igualmente distribudo a todos, sem consideraes deorigem social, em uma Escola bem separada da sociedade. Entre-tanto, o saber no comporta, por si s, qualquer conseqncia igua-litria. A lgica da Escola republicana de promoo da igualdadepela distribuio do universal do saber faz-se sempre, ela prpria,prisioneira do paradigma pedaggico que reconstitui indefinidamen-te a desigualdade que pretende suprimir. A pedagogia tradicional datransmisso neutra do saber, tanto quanto as pedagogias modernistasdo saber adaptado ao estado da sociedade mantm-se de um mesmolado, em relao alternativa colocada por Jacotot. Todas as duastomam a igualdade como objetivo, isto , elas tomam a desigualdadecomo ponto de partida.

    As duas esto, sobretudo, presas no crculo da sociedade peda-gogizada. Elas atribuem Escola o poder fantasmtico de realizar aigualdade social ou, ao menos, de reduzir a "fratura social" . Mas

    12

    Prefcio

    este fantasma repousa, ele prprio, sobre uma viso da sociedade emque a desigualdade assimilada situao das crianas com retardo.As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e adiviso de classes. A instruo era, para elas, um meio de instituiralgumas mediaes entre o alto e o baixo: um meio de conceder aospobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condio ede dar a todos o sentimento de pertencer, cada um em seu lugar, auma mesma comunidade. Nossas sociedades esto muito longe destafranqueza. Elas se representam como sociedades homogneas, emque o ritmo vivo e comum da multiplicao das mercadorias e dastrocas anulou as velhas divises de classes e fez com que todos par-ticipassem das mesmas fruies e liberdades. No mais proletrios,apenas recm-chegados que ainda no entraram no ritmo da moder-nidade, ou atrasados que, ao contrrio, no souberam se adaptar saceleraes desse ritmo. A sociedade se representa, assim, como umavasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em difi-culdade a recuperar. Nestas condies, a instruo escolar cada vezmais encarregada da tarefa fantasmtica de superar a distncia entre aigualdade de condies proclamada e a desigualdade existente, cadavez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais. Masa tarefa ltima desse sobre-investimento pedaggico , finalmente, le-gitimar a viso oligrquica de uma sociedade-escola em que o governono mais do que a autoridade dos melhores da turma. A estes "me-lhores da turma" que nos governam oferecida ento, mais uma vez,a antiga alternativa: uns lhes pedem que se adaptem, atravs de umaboa pedagogia comunicativa, s inteligncias modestas e aos proble-mas cotidianos dos menos dotados que somos; outros lhes requerem,ao contrrio, administrar, a partir da distncia indispensvel a qual-quer boa progresso da classe, os interesses da comunidade.

    Era bem isto que Jacotot tinha em mente: a maneira pela qual aEscola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma outra, re-produzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitrio, emsua prpria denegao. No que ele estivesse animado pela perspec-tiva de uma revoluo social. Sua lio pessimista era, ao contrrio,que o axioma igualitrio no tem efeitos sobre a ordem social. Mes-mo que, em ltima instncia, a igualdade fundasse a desigualdade,ela no podia se atualizar seno individualmente, na emancipao

    13

  • COLEO "Eooc+~o: ERRERifNCA E SEa,IO"

    intelectual que deveria devolver a cada um a igualdade que a ordemsocial lhe havia recusado, e lhe recusaria sempre, por sua prprianatureza. Mas esse pessimismo tambm tinha seu mrito: ele marca-va a natureza paradoxal da igualdade. ao mesmo tempo princpioltimo de toda ordem social e governamental, e excluda de seu fun-cionamento "normal". Colocando a igualdade fora do alcance dospedagogos do progresso, ele a colocava, tambm, fora do alcancedas mediocridades liberais e dos debates superficiais entre aquelesque a fazem consistirem formas constitucionais e em hbitos da so-ciedade. A igualdade, ensinava Jacotot, no nem formal nem real.Ela no consiste nem no ensino uniforme de crianas da repblicanem na disponibilidade dos produtos de baixo preo nas estantes desupermercados. A igualdade fundamental e ausente, ela atual eintempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivduos e gru-pos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de veri-fca-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verifi-cao. Essa lio, ela tambm, mais do que nunca atual.

    Jacques Rancire

    Maio de 2002

    CAPTULO PRIMEIRO

    Uma aventura intelectual

    No ano de 1818, Joseph Jacotot, leitor de literatura francesana Universidade de Louvain, viveu uma aventura intelectual.

    Uma longa e movimentada carr eiradeveria, no entanto, t-lo res-guardado das surpresas: dezenove anos, comemorados em 1789. Ele,ento, ensinava Retrica em Dijon e se preparava para o ofcio deadvogado. Em 1792, havia servido como artilheiro nas tropas da Re-pblica. Em seguida, a Conveno o teve, sucessivamente, como ins-trutor na Seo das Plvoras, Secretrio do Ministro da Guerra e subs-tituto do Diretor da Escola Politcnica. De retorno a Dijon. ele haviaensinado Anlise, Ideologia e Lnguas Antigas, Matemticas Puras eTranscendentes e Direito. Em maro de 1815, a estima de seus compa-triotas o havia tornado, sua revelia, deputado. A volta dos Bourbonso conduzira ao exlio, onde obtivera da liberalidade do rei dos Pases-Baixos o posto de professor em meio perodo. Joseph Jacotot conheciaas leis da hospitalidade e contava passar, em Louvain, dias tranqilos.

    Mas o acaso decidiu outra coisa. Com efeito, ss lies do mo-desto leitor acorreram rapidamente os estudantes. E, entre aqueles quese dispuseram a delas bencliciar-se, um bom nmero ignorava o fran-cs. Joseph Jacotot, por sua vez, ignorava totalmente o holands. Noexistia, portanto, lngua na qual pudesse instru-los naquilo que lhesolicitavam. Apesar disso, ele quis responder s suas expectativas.Para tanto, era preciso estabelecer, entre eles, o lao mnimo de umacoisa comum. Ora, publicara-se em Bruxelas, naquela poca, umaedio hilnge do Telmaco: estava encontrada a coisa comum e,

    15

  • CQ!ECAC "EoVCACUO- EXPERIENCIA E SfNiIDO "

    Uma aventura intelectual

    dessa forma, Telmaco entrou na vida de Joseph Jacotot. Por meiode um intrprete, ele indicou a obra aos estudantes e lhes solicitouque aprendessem, amparados pela traduo, o texto francs. Quandoeles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhesque repetissem sem parar o que haviam aprendido e, quanto ao resto,que se contentassem em l-lo para poder narr-lo. Era uma soluode improviso, mas tambm, em pequena escala, uma experincia fi-losfica, no gosto daquelas to apreciadas no Sculo das Luzes. EJoseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do sculo passado.

    No entanto, a experincia superou suas expectativas. Ele soli-

    citara aos estudantes assim preparados que escrevessem em francso que pensavam de tudo quanto haviam lido. "Ele estava esperandopor terrveis barbarismos ou, mesmo, por uma impotncia absoluta.Como, de fato, poderiam todos esses jovens, privados de explica-es, compreender e resolver dificuldades de uma lngua nova paraeles? De toda forma, era preciso verificar at onde esse novo cami-nho, aberto por acaso, os havia conduzido e quais os resultados des-se empirismo desesperado. Mas, qual no foi sua surpresa quandodescobriu que seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviamsado to bem dessa difcil situao quanto o fariam muitos france-

    ses! No seria, pois, preciso mais do que querer, para poder? Todosos homens seriam, pois, virtualmente capazes de compreender o queoutros haviam feito e compreendido?"'

    Tal foi a revoluo que essa experincia do acaso provocou emseu esprito. At ali, ele havia acreditado no que acreditam todos osprofessores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre transmitirseus conhecimentos aos alunos, para elev-los gradativamente suaprpria cincia. Como eles, sabia que no se tratava de entupir os alu-nos de conhecimentos, fazendo-os repetir como papagaios, mas, tam-bm, que preciso evitar esses caminhos do acaso, onde se perdemos espritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessrio;e o princpio da conseqncia. Em suma, o ato essencial do mestreera explicar, destacar os elementos simples dos conhecimentos e

    ' Flix e Victor Ratier, "Enseignement universel. Emancipation intellectuelle",Journal de philosophie pansa tique, 1838, p. 155.

    harmonizar sua simplicidade de princpio com a simplicidade de fato,que caracteriza os espritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em ummesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar os espritos,levando-os, segundo uma progresso ordenada, do simples ao com-plexo. Assim progredia o aluno, na apropriao racional do saber e naformao do julgamento e do gosto. at onde sua destinao social orequeria, preparando-se para dar sua educao uso compatvel comessa destinao: ensinar, advogar ou governar para as elites; conceber,desenhar ou fabricar instrumentos e mquinas para as novas vanguar-das que se buscavam, agora, arrancar da elite do povo; fazer, na carrei-ra das cincias, novas descobertas para os espritos dotados desse g-nio particular. Sem dvida, o procedimento desses homens de cinciadivergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos. Mas no seextraa da qualquer argumento contra essa ordem. Ao contrrio, pre-ciso haver adquirido, inicialmente, uma formao slida e metdica,para dar vazo s singularidades do gnio. Post hoc, ergo propter hoc.

    Assim raciocinam todos os professores conscienciosos. Assimhavia raciocinado e agido Joseph Jacotot, em trinta anos de oficio.Porm, eis que um gro de areia vinha, fortuitamente, se introduzir naengrenagem. Ele no havia dado a seus "alunos" nenhuma explicaosobre os primeiros elementos da lngua. Ele no lhes havia explicado aortografia e as conjugaes. Sozinhos, eles haviam buscado as pala-vras francesas correspondentes quelas que conheciam, e as razes desuas desinncias. Sozinhos eles haviam aprendido acombin-Ias, parafazer, por sua vez, frases francesas: frases cuja ortografia e gramticatornavam-se cada vez mais exatas, medida em que avanavam naleitura do livro; mas, sobretudo, frases de escritores, e no de inician-tes. Seriam, pois, suprfluas as explicaes do mestre? Ou, se no oeram, para que e para quem teriam, ento, utilidade?

    A ordem explicadora

    Uma sbita iluminao tornou, assim, brutalmente ntida, noesprito de Joseph Jacotot, essa cega evidncia de todo o sistema deensino: a necessidade de explicaes. No entanto, o que haveria demais seguro do que essa evidncia? Ningum nunca sabe, de fato, o

    16

  • CO,ECAO "EDUCAO: EAFEAINCN f SErvDO"

    que compreendeu. E, para que compreenda, preciso que algumlhe tenha dado uma explicao, quea palavra do mestre tenha rompi-do o mutismo da matria ensinada.

    Essa lgica no deixa, entretanto, de comportar certa obscuri-dade. Eis, por exemplo, um livro entre as mos do aluno. Esse livro composto de um conjunto de raciocnios destinados a fazer o alunocompreender uma matria. Mas, eis que, agora, o mestre toma a pa-lavra para explicar o livro. Ele faz um conjunto de raciocnios paraexplicar o conjunto de raciocnios em que o livro se constitui. Mas,por que teria o livro necessidade de tal assistncia? Ao invs de pa-gar um explicador, o pai de familia no poderia, simplesmente, dar olivro a seu filho, no poderia este compreender, diretamente, os racio-cnios do livro? E, caso no o fizesse, por que, ento, compreenderiamelhor os raciocnios que lhe explicaro aquilo que no compreen-deu? Teriam esses ltimos uma natureza diferente? E no seria ne-cessrio, nesse caso, explicar, ainda, a forma de compreend-los?

    A lgica da explicao comporta, assim, o princpio de umaregresso ao infinito: a reduplicao das razes no tem jamais razode se deter. O que detm a regresso e concede ao sistema seu funda-mento , simplesmente, que o explicador o nicojuiz do ponto emque a explicao est, ela prpria, explicada. Ele o nicojuiz dessaquesto, em si mesma vertiginosa: teria o aluno compreendido osraciocnios que lhe ensinam a compreender os raciocnios? a queo mestre supera o pai de famlia: como poderia esse ltimo assegu-rar-se de que seu filho compreendeu os raciocnios do livro? O quefalta ao pai de famlia, o que sempre faltar ao trio que forma com acriana e o livro, essa arte singular do explicador: a arte da distn-cia. O segredo do mestre saber reconhecer a distncia entre a mat-ria ensinada e o sujeito a instruir, a distncia, tambm, entre apren-der e compreender. O explicador aquele que impe e abole adistncia, que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra.

    Esse status privilegiado da palavra no suprime a regresso aoinfinito, seno para instituir unia hierarquia paradoxal. Na ordem doexplicador, com efeito, preciso uma explicao oral para explicar aexplicao escrita. Isso supe que os raciocnios so mais claros imprimem-se melhor no esprito do aluno quando veiculados pelapalavra do mestre, que se dissipa no instante, do que no livro, onde esto

    1x

    Uma aventura intelectual

    inscritas para sempre em caracteres indelveis. Como entender esse pri-vilgio paradoxal da palavra sobre a escrita, do ouvido sobre a vista?Que relao existiria, pois, entre o poder da palavra e o do mestre?

    Mas, a esse paradoxo logo segue-se outro: as palavras que a

    criana aprende melhor, aquelas em cujo sentido ela penetra mais fa-cilmente, de que se apropria melhor para seu prprio uso, so as queaprende sem mestre explicador, antes de qualquer mestre explicador.No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o quetodos os filhos dos homens aprendem melhor o que nenhum mestrelhes pode explicar a lngua materna. Fala-se a eles, e fala-se em tornodeles. Eles escutam e retm, imitam e repetem, erram e se corrigem,acertam por acaso e recomeam por mtodo, e, em idade muito tenrapara que os explicadores possam realizar sua instruo, so capazes,quase todos qualquer que seja seu sexo, condio social e cor de pele de compreender e de falar a lngua de seus pais.

    E, ento, essa criana que aprendeu a falar por sua prpria inte-ligncia e por intermdio de mestres que no lhe explicam a lngua,comea sua instruo, propriamente dita. Tudo se passa, agora, comose ela no mais pudesse aprender com o recurso da inteligncia quelhe serviu at aqui, como se a relao autnoma entre a aprendiza-gem e a verificao lhe fosse, a partir da, estrangeira. Entre uma eoutra, uma opacidade, agora, se estabeleceu. Trata-se de compreen-

    dere essa simples palavra recobre tudo com um vu: compreender o que a criana no pode fazer sem as explicaes fornecidas, emcerta ordem progressiva, por um mestre. Mais tarde, por tantos mes-tres quanto forem as matrias a compreender. A isso se soma a estra-nha circunstncia, de que as explicaes, depois que se iniciou a erado progresso, no cessam de se aperfeioar para melhor explicar,melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, sem que ja-mais se possa verificar um aperfeioamento correspondente na ditacompreenso. Antes pelo contrrio, comea a erguer-se um triste ru-mor, que no mais deixar de se amplificar, de um contnuo declniona eficcia do sistema explicativo, a carecer, evidentemente, de novoaperfeioamento para tornar as explicaes mais fceis de serem com-preendidas por aqueles que no as compreendem...

    A revelao que acometeu Joseph Jacotot se relaciona ao se-guinte: preciso inverter a lgica do sistema explicador. A explicao

    19

  • COLECAO " EDVCASAO: NCIA SENTIDO "

    no necessria para socorrer uma incapacidade de compreender. ,ao contrrio, essa incapacidade, a fico estruturante da concepoexplicadora de mundo. o explicador que tem necessidade do inca-paz, e no o contrrio, ele que constitui o incapaz como tal. Explicaralguma coisa a algum , antes de mais nada, demonstrar-lhe que nopode compreend-la por si s. Antes de ser o ato do pedagogo, a expli-cao o mito da pedagogia, a parbola de um mundo dividido emespritos sbios e espritos ignorantes, espritos maduros e imaturos,capazes e incapazes, inteligentes e bobos. O procedimento prprio doexplicador consiste nesse duplo gesto inaugural: por um lado, ele de-creta o comeo absoluto somente agora tem incio o ato de aprender;por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem aprendidas desse vude ignorncia que ele prprio se encarrega de retirar. At ele, o peque-no homem tateou s cegas, num esforo de adivinhao. Agora, ele vaiaprender. Ele escutava palavras e as repetia. Trata-se, agora, de ler, eele no escutar as palavras, se no escuta as silabas, e as silabas, seno escuta as letras que ningum poderia faz-lo escutar, nem o livro,nem seus pais somente a palavra do mestre. O mito pedaggico,dizamos, divide o mundo em dois. Mas, deve-se dizer, mais precisa-mente, que ele divide a inteligncia em duas. H, segundo ele, umainteligncia inferior e uma inteligncia superior. A primeira registra aspercepes ao acaso, retm, interpreta e repete empiricamente, no es-treito crculo dos hbitos e das necessidades. a inteligncia da crian-cinha e do homem do povo. A segunda conhece as coisas por suasrazes, procede por mtodo, do simples ao complexo, da parte ao todo. ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos, adaptan-do-os s capacidades intelectuais do aluno, e verificar se o aluno en-tendeu o que acabou de aprender. Tal o princpio da explicao. Talser, a partir da, para Jacotot, o princpio do embrutecimento.

    Entendmo-lo bem e, para isso, afastemos as imagens feitas.O embrutecedor no o velho mestre obtuso que entope a cabea deseus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser malfico que pra-tica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Aocontrrio, exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-f que ele mais eficaz. Mais ele culto, mais se mostra evidente a ele a distan-cia que vai de seu saber ignorncia dos ignorantes. Mais ele escla-recido, e lhe parece bvia a diferena que h entre tatear s escuras e

    20

    Uma aventura intelectual

    buscar com mtodo, mais ele se aplicar em substituir pelo espritoa letra. pela clareza das explicaes a autoridade do livro. Antes dequalquer coisa, dir-se-, preciso que o aluno compreenda e, paraisso, que a ele se forneam explicaes cada vez melhores. Tal apreocupao do pedagogo esclarecido: a criana est compreenden-do? Ela no compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe, mais rigorosas em seu princpio, mais atrativas em sua forma; everificarei que ele compreendeu.

    Nobre preocupao. Infelizmente, essa pequena palavra, exa-tamente essa palavra de ordem dos esclarecidos compreender acausadora de todo o mal. ela que interrompe o movimento da ra-zo, destri sua confiana em si, expulsa-a de sua via prpria, aoquebrar em dois o mundo da inteligncia, ao instaurar a ruptura entreo animal que tateia e o pequeno cavalheiro instrudo, entre o senso-comum e a cincia. A partir do momento em que se pronuncia essapalavra de ordem da dualidade, todo aperfeioamento na maneira defazer compreender essa grande preocupao dos metodistas e dosprogressistas se torna um progresso no embrutecimento. A crianaque balbucia sob a ameaa das pancadas obedece frula, eis tudo:ela aplicar sua intelignciaem outra coisa. Aquele, contudo, que foiexplicado investir sua inteligncia em um trabalho do luto: compre-ender significa, para ele, compreender que nada compreender, a me-nos que lhe expliquem. No mais frula que ele se submete, mas hierarquia do mundo das inteligncias. Quanto ao resto, ele perma-nece to tranqilo quanto o outro: se a soluo do problema muitodifcil de buscar, ele ter a inteligncia de arregalar os olhos. O mes-tre vigilante e paciente. Ele notar quando a criana j no estiverentendendo, e a recolocar no bom caminho, por meio de uma re-explicao. Assim, a criana adquire uma nova inteligncia a dasexplicaes do mestre. Mais tarde, ela poder, por sua vez, conver-ter-se em um explicador. Ela possui os meios. Ela, no entanto, osaperfeioar: ela ser um homem do progresso.

    O acaso e a vontade

    assim que corre o mundo dos explicadores explicados. E comocorreria, tambm, para o professor Jacotot, se o acaso no o houvesse

    21

  • COLEO "buv.cAO: ExpreiErvon E SENpJo"

    colocado em presena de um fato e Joseph Jacotot pensava quetodo raciocnio deve partir dos fatos e ceder diante deles. Porm, noconcluamos, com isso, que se tratava de um materialista. Ao contr-rio: como Descartes, que provava o movimento ao andar, mas tam-bm como seu contemporneo, o muito realista e religioso Maine deBiran, ele tinha os fatos do espirito que age e que toma conscinciade sua atividade como mais seguros do que qualquer coisa material.E era bem disso que se tratava: o fato era que alguns estudantes seensinaram a falar e a escrever em francs, sem o socorro de suasexplicaes. Ele nada lhes havia transmitido de sua cincia, nadaexplicado quanto aos radicais e as flexes da lngua francesa. Elenem mesmo havia procedido maneira desses pedagogos reforma-dores que, como o preceptor do Emilio, perdem seus alunos, paramelhor gui-los e balizam astuciosamente todo um percurso comobstculos que precisam superar sozinhos. Ele os havia deixado sscom o texto de Fnelon, uma traduo nem mesmo interlinear, comoera uso nas escolas e a vontade de aprender o francs. Ele somentelhes havia dado a ordem de atravessar uma floresta cuja sada ignora-va. A necessidade o havia constrangido a deixar inteiramente de forasua inteligncia, essa inteligncia mediadora do mestre que une ainteligncia impressa nas palavras escritas quela do aprendiz. E, aomesmo tempo, ele havia suprimido essa distncia imaginria, que oprincpio do embrutecimento pedaggico. Tudo se deu, a rigor, entrea inteligncia de Fnelon, que havia querido fazer um certo uso dalngua francesa, a do tradutor, que havia querido fornecer o equiva-lente em holands, e a inteligncia dos aprendizes, quequeriam apren-der a lingua francesa. E ficou evidente que nenhuma outra intelign-cia era necessria. Sem perceber, ele os havia feito descobrir o queele prprio com eles descobria: todas as frases e, por conseguinte,todas as inteligncias que as produzem so de mesma natureza. Com-preender no mais do que traduzir, isto , fornecer o equivalente deum texto, mas no sua razo. Nada h atrs da pgina escrita, ne-nhum fundo duplo que necessite do trabalho de unia inteligncia ou-tra, a do explicador; nenhuma lingua do mestre, nenhuma lingua dalingua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razo daspalavras e frases de um texto. E disso os estudantes flamengos ha-viam fornecido a prova: para falar do Telemaco, eles no tinham

    22

    Uma aventura intelectual

    sua disposio seno as palavras do TeMmaco. Bastam, portanto, asfrases de Fnelon para compreender as frases de Fnelon e para dizero que delas se compreendeu. Aprender e compreender so duas ma-neiras de exprimir o mesmo ato de traduo. Nada h aqum dostextos, a no ser a vontade de se expressar, isto , de traduzir. Se eleshaviam compreendido a lngua ao aprender Fnelon, no era sim-plesmente pela ginstica que compara uma pgina esquerda comuma pgina direita. No a aptido de mudar de coluna que conta,mas a capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem. Seeles haviam aprendido isso com Fnelon, porque o ato de Fnelonescritor era, ele prprio, um ato de tradutor: para traduzir uma liode poltica em um relato legendrio, Fnelon havia transposto, emfrancs do seu sculo, o grego de Homero, o latim de Virglio e alingua, culta ou primitiva, de cem outros textos, do conto infantil histria erudita. Ele havia aplicado a essa dupla traduo a mesmainteligncia que eles empregavam, por sua vez, para relatar com fra-

    ses de seu livro o que pensavam desse livro.

    Mas a inteligncia que os fizera aprender o francs emTelmacoera a mesma que os havia feito aprender a lingua materna: observandoe retendo, repetindo e verificando, associando o que buscavam apren-

    der quilo que j conheciam, fazendo e refletindo sobre o que haviamfeito. Eles haviam procedido como no se deve proceder, como fazemas crianas, por adivinhao. E a questo, assim, se impunha: no se-ria necessrio inverter a ordem admitida dos valores intelectuais? Noseria esse mtodo maldito, da adivinhao, o verdadeiro movimentoda inteligncia humana que toma posse de seu prprio poder? E suaproscrio no marcaria, na verdade, a vontade de dividir em dois omundo da inteligncia? Os metodistas opem o mtodo mau, do aca-so, ao caminho da razo. Mas eles se do, antecipadamente, aquiloque querem provar. Eles supem um pequeno animal que, se chocan-

    do com as coisas, explora um mundo que ainda no capaz de ver,mas que essas coisas, precisamente, lhe ensinaro a discernir. Maso filhote de homem , antes de qualquer outra coisa, um ser depalavra. A criana que repete as palavras aprendidas e o estudanteflamengo "perdido" em seuTelmaco no se guiam pelo acaso. Todoo seu esforo, toda a sua explorao tencionada pelo seguinte:uma palavra humana lhes foi dirigida, a qual querem reconhecer e

    23

  • Co mau "EoucAAoi ExaFeiFNCwe SENT vO ''

    qual querem responder no na qualidade de alunos, ou de sbios,nias na condio de homens; como se responde a algum que vos fala,e no a quem vos examina: sob o signo da igualdade.

    O fato estava l: eles haviam aprendido sozinhos e sem mestreexplicador. Ora, o que se d uma vez sempre possvel. De resto,essa descoberta deveria ser responsvel por uma reviravolta nos prin-cpios do professor Jacotot. Mas o homem Jacotot estava mais pre-parado para reconhecer a variedade daquilo que se pode esperar deum homem. Seu pai havia sido aougueiro, antes de cuidar das con-tas de seu av, o carpinteiro que havia enviado seu neto ao colgio.Ele prprio era professor de retrica, quando escutou ecoar o apelos armas, em 1792. O voto de seus companheiros o havia feito capi-to de artilharia e ele se distinguira como um notvel artilheiro. Em1793, na Seo das Plvoras, esse latinista havia se tornado instrutorde qumica para a formao acelerada dos operrios que seriam en-viados para aplicarem todos os cantos do territrio as descobertas deFourcroy. Na casa desse mesmo Fourcroy ele havia conhecido Vau-quelin, filho de campons que se dera uma formao em qumica sescondidas de seu patro. Na Escola Politcnica, ele tinha visto che-gar jovens que comisses improvisadas haviam selecionado, com baseno duplo critrio de vivacidade de esprito e de patriotismo. E ele oshavia visto tornarem-se muito bons matemticos, menos pela matem-tica que Monge ou Lagrange lhes explicava, do que por aquela quepraticavam diante deles. Ele prprio havia, aparentemente, aproveita-do suas funes administrativas para construir uma competncia dematemtico que, mais tarde, exerceria na Universidade de Dijon. As-sim como havia acrescentado o hebraico s lnguas antigas que ensina-va e composto um Ensaio sobre a gramtica hebraica. Ele pensava s Deus sabe a razo que essa lngua tinha futuro. Enfim, ele haviaconstrudo para si, a contragosto, mas com o maior rigor, uma compe-tncia de representante do povo. Em suma, ele sabia que a vontade dosindivduos e o perigo da Ptria poderiam fazer nascer capacidadesinditas em circunstncias em que a urgncia obrigava a queimar asetapas da progresso explicativa. Ele pensava que este estado de ex-ceo, comandado pelas necessidades da Nao, em nada diferia, emseu princpio, da urgncia que rege a explorao do mundo pelacriana, ou dessa outra exigncia que rege a via singular dos sbios e

    24

    Uma aventura intelectual

    dos inventores. Por meio da experincia da criana, do sbio e dorevolucionrio, o mtodo do acaso praticado com sucesso pelos es-tudantes flamengos revelava seu segundo segredo. Esse mtodo daigualdade era, antes de mais nada, um mtodo da vontade. Podia-seaprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pelatenso de seu prprio desejo ou pelas contingncias da situao.

    O mestre emancipador

    Essas contingncias haviam tomado, na circunstncia, a formade recomendao feita por Jacotot. Disso advinha uma conseqnciacapital, no mais para os alunos, mas para o Mestre. Eles haviamaprendido sem mestre explicador, mas no sem mestre. Antes, nosabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. Noentanto, ele nada lhes havia comunicado de sua cincia. No era,portanto, a cincia do Mestre que os alunos aprendiam. Ele haviasido mestre por fora da ordem que mergulhara os alunos no crculode onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua intelignciapara deixar as deles entregues quela do livro. Assim se haviam disso-ciado as duas funes que a prtica do mestre explicador vai religar,a do sbio e a do mestre. Assim se haviam igualmente separado,liberadas uma da outra, as duas faculdades que esto em jogo no atode aprender: a inteligncia e a vontade. Entre o mestre e o aluno seestabelecera uma relao de vontade a vontade: relao de domina-o do mestre, que tivera por conseqncia uma relao inteiramentelivre da inteligncia do aluno com aquela do livro inteligncia dolivro que era, tambm, a coisa comum, o lao intelectual igualitrioentre o mestre c o aluno. Esse dispositivo permitia destrinchar ascategorias misturadas do ato pedaggico e definir exatamente o em-brutecimento explicador. H embrutecimento quando uma intelign-cia subordinada a outra inteligncia. O homem e a criana, emparticular pode ter necessidade de um mestre. quando sua vontadeno suficientemente forte para coloc-la e mant-la em seu caminho.Mas a sujeio puramente de vontade a vontade. Ela se torna embru-tecedora quando liga uma inteligncia a uma outra inteligncia. Noato de ensinar e de aprender, h duas vontades e duas inteligncias.Chamar-se- embrutecimento sua coincidncia. Na situao

    25

  • CoieCAO " EDUGrJAO- E}PEFiNCIA e SE

    experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vonta-de, a de Jacotot, e a uma inteligncia, a do livro, inteiramente distin-tas. Chamar-se- emancipao diferena conhecida e mantida entreas duas relaes, o ato de uma inteligncia que no obedece seno aela mesma, ainda que a vontade obedea a uma outra vontade.

    Essa experincia pedaggica abria, assim, uma ruptura com algica de todas as pedagogias. A prtica dos pedagogos se apia naoposio da cincia e da ignorncia. Eles se distinguem pelos meiosescolhidos para tornar sbio o ignorante: mtodos duros ou suaves,tradicionais ou modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento sepode comparar. Desse ponto de vista, poder-se-ia, numa primeira apro-ximao, comparar a rapidez dos alunos de Jacotot com a lentido dosmtodos tradicionais. Mas, na verdade, nada havia a a comparar. Oconfronto dos mtodos supe um acordo mnimo, no que se refere aosfins do ato pedaggico: transmitir os conhecimentos do mestre ao alu-no. Ora, Jacotot nada havia transmitido. O mtodo era, puramente, odo aluno. E aprender mais ou menos rapidamente o francs , em simesmo, uma coisa de pouca conseqncia. A comparao no mais seestabelecia entre mtodos, mas entre dois usos da inteligncia e entreduas concepes da ordem intelectual. Avia rpida no era a melhorpedagogia. Ela era uma outra via, a da liberdade, via que Jacotot haviaexperimentado nos exrcitos no ano Il, na fabricao das plvoras ouna instalao da Escola Politcnica: a via da liberdade respondendo urgncia do perigo, mas, tambm, confiana na capacidade intelectu-al de cada ser humano. Por detrs da relao pedaggica estabelecidaentre a ignorncia e a cincia, seria preciso reconhecer a relao filo-sfica, muito mais fundamental, entre o embrutecimento e a emancipa-o. Havia, assim, no dois, mas quatro termos em jogo. O ato deaprender podia ser reproduzido segundo quatro determinaes diver-samente combinadas: por um mestre emancipador ou por um mestreembrutecedor; por um mestre sbio ou por um mestre ignorante.

    A ltima proposio era a mais dura de suportar. Passa, ainda,a idia de que um sbio deve se dispensar de toda a explicao sobresua cincia. Mas como admitir que um ignorante possa ser causa decincia para um outro ignorante? A prpria experincia de Jacototera ambgua, no que se refere sua condio de professor de francs.Mas j que ela havia, ao menos, mostrado que no era o saber do

    26

    Urna aventura intelectual

    mestre que ensinava ao aluno, nada o impedia de ensinar outra coisaalm de seu prprio saber: ensinar o que ignorava. Joseph Jacototdedicou-se, ento, a variar as experincias, a repetir, de propsito, oque o acaso havia uma vez produzido. Ele se ps, assim, a ensinarduas matrias em que sua incompetncia era patente, a pintura e opiano. Os estudantes de Direito queriam, ainda, que lhe fosse atribu-da uma ctedra que estava livre em sua faculdade. Mas a Universi-dade de Louvain j se inquietava demais em relao a esse leitorextravagante por quem os alunos desertavam dos cursos magistrais,para espremer-se, noite, em uma sala muito pequena e apenas ilu-minada por duas velas e ouvi-lo dizer: " preciso que eu lhes ensineque nada tenho a ensinar-lhes.''2 De modo que a autoridade consulta-da respondeu no reconhecer nele ttulos que o habilitassem para talensino. Mas, poca, ele se ocupava precisamente de experimentar adistncia entre o ttulo e o ato. Ao invs, pois, de fazer em francs umcurso de direito, ele ensinou os estudantes a pleitear em holands. Eleso fizeram muito bem, mas ele continuava a ignorar o holands.

    O crculo da potncia

    A experincia pareceu suficiente a Jacotot para esclarec-lo:

    pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno;isso , que se force o aluno a usar sua prpria inteligncia. Mestre aquele que encerra uma inteligncia em um crculo arbitrrio do qualno poder sair se no se tornar til a si mesma. Para emancipar umignorante, preciso e suficiente que sejamos, ns mesmos, emanci-pados; isso . conscientes do verdadeiro poder do esprito humano.O ignorante aprender sozinho o que o mestre ignora, se o mestreacredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: crculo

    da potncia homlogo a esse crculo da impotncia que ligava oaluno ao explicador do velho mtodo (que denominaremos, a partirdaqui, simplesmente de o Velho). Mas a relao de foras bem par-ticular. O crculo da impotncia est sempre dado, ele a prpria mar-cha do mundo social, que se dissimula na evidente diferena entre a

    ' Som maire des leFons pnbllqnes dr Al. Jacobi tnr lesprincipr.r de l'enseignement nniuecel,publicado por J. S. Van de Weyer, Bruxelas, 1822, p. I.

    27

  • COLLUO "EoocACAo. EGEkENCI e S
  • COTO,' EDUGG o- ExPtRIENOA E SENTIDO

    dimenso dc sua capacidade intelectual e decidir quanto a seu uso.Os amigos da instruo asseguravam que era essa a condio de umaverdadeira liberdade. Em seguida, reconheciam dever ao povo essainstruo, e estavam prontos a brigar entre si para fixar aquela quethe deveria ser concedida. Jacotot no via que liberdade podia resul-tar, para o povo, dos deveres de seus instrutores. Ele pressentia, aocontrrio, que estava em jogo uma nova forma de embrutecimento.Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa no temque se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Eleaprender o que quiser, nada, talvez. Ele saber que pode aprenderporque a mesma inteligncia est em ao em todas as produeshumanas, que um homem sempre pode compreender a palavra de umoutro homem. O impressor de Jacotot tinha um filho que era dbilmental. Todos se preocupavam por no poder fazer nada a respeito.Jacotot lhe ensinou o hebraico, e a criana tornou-se um excelentelitgrafo. A lngua, evidente, jamais lhe serviu para nada a noser para saber o que as inteligncias mais bem dotadas e mais instru-das ainda ignoravam, e no se tratava do hebraico.

    As coisas estavam, portanto, muito claras: no se tratava a deum mtodo para instruir o povo, mas da graa a ser anunciada aospobres: eles podiam tudo o que pode um homem. Bastava anunciar.Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele proclamou que se pode ensi-nar o que se ignora e que um pai de famlia pobre e ignorante capaz,se emancipado, de fazer a educao de seus filhos sem recorrer aqualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse EnsinoUniversal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto,segundo o princpio de que todos os homens tm igual inteligncia.

    Houve comoo em Louvain, em Bruxelas e em Haia; tomou-se carruagem em Paris e Lion; da Inglaterra e da Prssia se veioescutar a boa nova, quc, depois, foi levada a So Petersburgo e aNova Orleans. A novidade chegou at o Rio de Janeiro. Durantealguns anos. a polmica instalou-se e a Repblica do saber tremeuem suas bases.

    E tudo isso porque um homem de esprito, um sbio renoma-do e um pai de famlia virtuoso havia enlouquecido, por no sabero holands.

    30

    CAPTULO SEGUNDO

    A lio do ignorante

    Desembarquemos, pois, juntamente com Telmaco, na Ilha deCalipso. Penetremos com um desses visitantes no antro do Touco: nainstituio de Mademoiselle Marcellis, em Louvain; em casa de Mon-sieur Deschuyfeleere, um curtumeiro de quem ele fez um latinista; naEscola Normal Militar de Louvain, onde o prncipe filsofo Frederickd'Orange encarregou o fundador do Ensino Universal de instruir osfuturos instrutores militares: "Imaginai recrutas sentados nos bancosescolares e sussurrando, todos ao mesmo tempo: Calipso, Calipso noetc. etc.; dois meses depois, eles sabiam ler, escrever e contar [...] Du-rante essa educao primria, ns aprendamos, um, o ingls, outro, oalemo, esse, fortificao, aquele, qumica etc. etc.

    Mas o Fundador sabe tudo isso?

    Nem um pouco, mas ns lhe explicvamos e eu vos asseguroque ele aproveitou lindamente a escola normal.

    Estou confuso: ento, todos vs sabeis qumica?

    No, mas ns aprendamos e lhe ensinvamos. Eis o EnsinoUniversal. o discpulo que faz o mestre."'

    H uma ordem na loucura, como em toda coisa. Comecemospelo comeo: Telmaco. Tudo est on tudo, diz o louco. E a malciapblica acrescenta: e tudo est no Telmaco. Pois Telmaco , aparen-temente, o livro que serve para tudo. O aluno quer aprender a ler? Quer

    Ensegrremm nt "Memel rNatGmattgaes, 2` ed., Paris, 1829, p. 50-51.

    31

  • A haro do ignorante

    aprender o ingls, ou o alemo, a arte de pleitear, ou a de combater?O louco colocar, imperturbvel, um Telmaco em suas mos e oaluno comear a repetir Calipso, Calipso no, Calipso no podia, eassim em diante, at que ele saiba o nmero prescrito de livros doTelmaco e que possa relatar os outros. De tudo que ele aprende aforma das letras, o lugar ou as terminaes das palavras, as imagens,os raciocnios, os sentimentos dos personagens, as lies de moral lhe ser pedido que fale, que diga o que ele v, o que pensa disso, oque faz com isso. Somente uma condio ser imperativa: de tudo oque disser dever demonstrar a materialidade no livro. Ser-lhe- so-licitado que faa composies e improvisaes nas mesmas condi-es: ele dever empregar as palavras e as maneiras do livro paraconstruir suas frases; dever mostrar, no livro, os fatos relacionadoscom seus raciocinios. Em suma, de tudo o que dir, o mestre deverpoder verificar a materialidade no livro.

    A ilha do livro

    O livro. Telmaco ou um outro. O acaso colocou Telmaco disposio de Jacotot, a comodidade o aconselhou a guard-lo. Tel-maco est traduzido em muitas lnguas e facilmente disponvel naslivrarias. No uma obra-prima da lngua francesa. Mas seu estilo puro, o vocabulrio variado, a moral severa. Aprende-se a mitologiae geografia. Escuta-se a, atravs da "traduo" francesa, o latim deVirglio e o grego de Homero. Trata-se, enfim, de um livro clssico,um desses em que uma lngua apresenta o essencial de suas formas ede seus poderes. Um livro que um todo; um centro ao qual se podeassociar tudo o que se aprender de novo; um crculo no interior doqual possvel compreender cada uma dessas novas coisas, encon-trar os meios de dizer o que se v, o que se pensa disso, o que se fazcom isso. Este o primeiro princpio do Ensino Universal: precisoaprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto. Para come-ar, preciso aprender qualquer coisa. O Palice diria a mesma coi-sa? O Palice, talvez, maso Velho, quanto a ele, diz: preciso apren-der tal coisa, e depois tal outra e ainda uma outra tal. Seleo,progresso, incompletude, esses so os princpios. Aprendem-se

    32

    algumas regras e alguns elementos, que so aplicados a alguns tre-chos escolhidos de leitura, alguns exerccios correspondendo aos ru-dimentos adquiridos. Em seguida, passa-se a um nvel superior: ou-tros rudimentos, outro livro, outros exerccios, outro professor... Acada etapa, cava-se o abismo da ignorncia que o professor tapa,antes de cavar um outro. Fragmentos se acrescentam, peas isoladasde um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mes-tre que elejamais atingir. O livro nunca est inteiro, a lio jamaisacabada. O mestre sempre guarda na manga um saber, isto , umaignorncia do aluno. Entendi isso, diz o aluno, satisfeito. Isso o

    que voc pensa, corr ige o mestre. Na verdade, h uma dificuldade deque, at aqui, eu o poupei. Ela ser explicada quando chegarmos lio correspondente. O que quer dizer isso? pergunta o aluno, curi-oso. Eu poderia lhe explicar, responde o mestre, mas seria prematu-

    ro: voc no entenderia. Isso lhe ser explicado no ano que vem. H

    sempre uma distncia a separar o mestre do aluno, que, para ir maisalm, sempre ressentir a necessidade de um outro mestre, de expli-caes suplementares. Assim, Aquiles triunfante passeia, em torno deTria, com o cadver de Heitor amarrado sua carruagem. A progres-so racional do saber uma mutilao indefinidamente reproduzida."Todo homem que ensinado no seno uma metade de homem."'

    No nos perguntemos se o pequeno cavalheiro instrudo sofredessa mutilao. A virtude do sistema transformar a perda em pro-veito. O pequeno cavalheiroavana. Foi-lhe ensinado algo, logo, eleaprendeu, logo, ele pode esquecer. Atrs de si escava-se, novamente,o abismo da ignorncia. Eis, no entanto, a maravilha da coisa: essaignorncia, a partir da, a dos outros. O que ele esqueceu, ele ul-trapassou. Ele no est mais em situao de soletrar e a gaguejar comoas inteligncias grosseiras e os pequeninos da turma infantil. No hpapagaios em sua escola. No se sobrecarrega a memria, forma-se a

    inteligncia. Eu compreendi, diz a criana, no sou um papagaio. Maisela esquece, mais lhe parece evidente que compreendeu. Mais ela setorna inteligente, mais pode contemplar do alto aqueles que deixoupara trs, os que permanecem na antecmara do saber, diante do livromudo, aqueles que repetem, por no serem suficientemente inteligentes

    Log?da /bne4itrnrde l' enrefgnenent nnirerrel an gnrn/1 nfnllte, Louvain, 1829, p. 6.

    33

  • COLEO " EDUCAAOI EXPERINCIA E SENTIDO"

    para compreender. Eis a virtude dos explicadores: o ser que inferiori-zaram, eles o amarram pelo mais slido dos laos ao pas do embrute-cimento: a conscincia de sua superioridade.

    Essa conscincia, de resto, no mata os bons sentimentos. Opequeno cavalheiro instrudo se comover, talvez, com a ignornciado povo e pretender trabalhar para sua instruo. Saber que a coisa difcil, diante de crebros que a rotina endureceu, ou que a falta demtodo perdeu. Mas, se ele devotado, ele saber que h um tipo deexplicaes adaptado para cada categoria, na hierarquia das inteli-gncias: ele buscar se colocar a seu nvel.

    Passemos, agora, uma outra histria. O louco o Fundador, comoo chamam seus sectrios entra em cena com seu Telmaco, um livro,uma coisa. Toma e l, diz ele ao pobre. Eu no sei ler, responde opobre. Como compreenderia eu o que est escrito no livro? Da formacomo compreendeste todas as coisas, at aqui: comparando dois fatos.Vou te relatar um fato, a primeira frase do livro: Calipso, Calipso no...Eis, agora, um segundo fato: as palavras esto escritas a. No reconhe-ces nada? A primeira palavra que te disse era Calipso, no ser tambma primeira palavra na folha? Olha bem, at que estejas certo de reconhe-c-la em meio a uma multido de outras palavras. Para tanto, ser preci-so que me digas tudo o que vs. H a signos que a mo traou sobre opapel, cujos chumbos a mo reuniu na grfica. Conta-me essa palavra.Faze-me "o relato das aventuras, isto , das idas e vindas, dos desvios,em uma palavra, dos trajetos da pena que escreveu essa palavra sobre opapel ou do buril que a gravou sobre o cobre".' Saberias tu reconhecer aa letra O que um de meus alunos serralheiro de profisso denominaa redonda, a letra L que ele chama de o esquadro? Conta-me a forma decada letra como descreverias as formas de um objeto ou lugar desconhe-cido. No digas que no podes. Tu sabes ver, tu sabes falar, tu sabesmostrar, tu podes te lembrar. O que mais preciso? Uma ateno abso-luta, para ver e rever, dizer e redizer. No procures me enganar e teenganar. Foi bem isso que viste? O que pensas disso? No s um serpensante? Ou acreditas ser apenas corpo? "O fundador Sganarelle mu-dou tudo isso [...] tens uma alma, como eu."'

    journal de Pmmtpation intellectuelle, t. III, 1835-1836, p. 15.

    ' Journd/de /'namcipation nte!/ectnel/e, t. l]I, 1835-1836, p. 380.

    34

    A lio do ignorante

    Falar-se-, em seguida. do que fala o livro: o que pensas deCalipso, da dor, de uma deusa, de uma primavera eterna? Mostra-

    me o que te faz dizer o que dizes.O livro uma fuga bloqueada: no se sabe que caminho traar o

    aluno, mas sabe-se de onde ele no sair do exerccio de sua liberda-de. Sabe-se, ainda, que o mestre no ter o direito de se manter longe,mas sua porta. O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar in-cessantemente e sempre responder trplice questo: o que vs? o quepensas disso? o que fazes com isso? E, assim, at o infinito.

    Mas esse infinito no mais um segredo do mestre, a marchado aluno. O livro, quanto a ele, est pronto e acabado. E. um todo queo aluno tem em mos, que ele pode percorrer inteiramente com umolhar. No h nada que o mestre lhe subtraia, e nada que ele possasubtrair ao olhar do mestre. O crculo abole a trapaa. E, antes de maisnada, essa grande trapaa, que a incapacidade: eu no posso, eu no

    compreendo... No h nada a compreender. Tudo est no livro. Bastarelatar a forma de cada signo, as aventuras de cada frase, a lio decada livro. preciso comear a falar. No digas que no podes. Tusabes dizer eu no posso. Diga, em seu lugar, Calipso no podia... E

    ters comeado. Ters comeado por um caminho que j conhecias eque devers, daqui por diante, seguir sem dele te afastares. No digas:eu no posso dizer. Ou, ento, aprende a diz-lo maneira de Calipso,

    ou de Telmaco, de Narval ou de Idomenia. O outro circulo j foicomeado, o da potncia. No cessars de encontrar maneiras de dizereu no posso e, cedo, poders dizer tudo.

    Viagem em um crculo. Compreende-se que as aventuras do fi-lho de Ulisses sejam, para isso, o manual, e Calipso, a primeira pala-vra. Calipso, a escondida. preciso, justamente, descobrir que nadah de escondido, no h palavras por trs das palavras, lngua que digaa verdade da lngua. Aprendem-se signos e, ainda, signos; frases e,ainda, frases. Repetem-se: frasespmntas. Decoram-se: livros inteiros.E o Velho indigna-se: eis o que significa, para vs, aprender qualquercoisa. Primeiramente, vossas crianas repetem como papagaios. Elascultivam uma s faculdade, a memria, enquanto ns exercemos a in-teligncia, o gosto e a imaginao. Vossas crianas decoram. Este vosso primeiro erro. E eis o segundo: vossas crianas no aprendem

    35

  • COIKAO " EJUCACAO: EYP3ifNCA e SFMioo"

    de cor. Dizeis que elas o fazem, mas impossvel. Os crebros huma-nos so incapazes de tal esforo de memria.

    Argumento viciado. Discurso de um crculo a um outro crculo. OVelho diz que a memria infantil incapaz de tais esforos, porque aimpotncia em geral uma palavra de ordem. Ele diz que a memriano a mesma coisa que a inteligncia ou a imaginao, porque usa aarma comum queles que pretendem reinar sobre a ignorncia: a divi-so. Ele cr que a memria fraca, porque no cr no poder da intelign-cia humana. Ele a cr inferior, porque cr em inferiores e superiores. Emsuma, seu duplo argumento , mais ou menos, o seguinte: h seres infe-riores e superiores; os inferiores no podem o que podem os superiores.

    s o que o Velho conhece. Ele tem necessidade do desigual,mas no desse desigual estabelecido pelo decreto do prncipe, senodo desigual por si s, que est em todas as mentes e em todas asfrases. Para tanto, dispe de uma arma branca, a diferena: isso no aquilo, tal coisa completamente diferente de tal outra, no sepode comparar..., a memria no inteligncia; repetir no saber;comparao no razo; h o fundo e a forma... Qualquer farinhapode ser moda no moinho da distino. O argumento pode, assim,se modernizar, tender ao cientfico e ao humanitrio: h etapas nodesenvolvimento da inteligncia; uma inteligncia infantil no ainteligncia de um adulto; preciso no sobrecarregar a intelignciada criana, seno pode-se comprometer sua sade e colocarem riscoo desenvolvimento de suas faculdades... Tudo o que o Velho pede que se lhe concedam suas negaes e diferenas: isso no , isso diferente, isso mais, isso menos. Eis o que amplamente suficien-te para erigir todos os tronos da hierarquia das inteligncias.

    Calipso e o serralheiro

    Deixemos falar o Velho. Examinemos os fatos. H uma vontadeque rege e uma inteligncia que obedece. Chamemos de ateno o atoque faz agir essa inteligncia sob a coero absoluta de uma vontade.Esse ato no diferente, quer se trate da forma de uma letra a serreconhecida, de uma frase a ser memorizada, de uma relao a estabe-lecer entre dois seres matemticos, dos elementos de um discurso a ser

    36

    A lio do ignorante

    composto. No h uma faculdade que registra, uma outra que com-preende, uma outra que julga... O serralheiro que denomina o Oderedonda e o L de esquadro j pensa por meio de relaes. E inventar

    da mesma ordem que recordar. Deixemos que os explicadores "for-mem" o "gosto" e a "imaginao" dos pequenos cavalheiros, deixe-mos que dissertem sobre o "gnio" dos criadores. Ns nos contentare-

    mos em fazer como esses criadores: como Racine, que aprendeu decor, traduziu, repetiu e imitou Eurpides, Bossuet que fez o mesmocom Tertuliano, Rousseau com Amyot, Boileau com Horcio e Juve-nal; como Demstenes, que copiou oito vezes Tucdides, Hooft, queleu cinqenta e duas vezes Tcito, Sneca, que recomenda a leiturasempre renovada de um mesmo livro, Haydn, que repetiu indefinida-mente seis sonatas de Bach, Miguelangelo, sempre ocupado em refa-zer o mesmo torso s ... A potncia no se divide. No h seno umpoder, o de ver e de dizer, de prestar ateno ao que se v e ao que se

    diz. Aprendem-se frases e, ainda, frases; descobrem-se fatos, isto ,relaes entre coisas e, ainda, outras relaes, que so de mesma natu-reza; aprende-se a combinar letras, palavras, frases, idias... No sedir que adquirimos a cincia,, que conhecemos a verdade, ou que nostomamos gnios. Saberemos, contudo, que, na ordem intelectual, po-demos tudo o que pode um homem.

    Eis o que quer dizer Tudo est em tudo: a tautologia a po-tncia. Toda a potncia da lngua est no todo de um livro. Todoconhecimento de si como inteligncia est no domnio de um livro,de um captulo, de uma frase, de uma palavra. Tudo est em tudo etudo est em Telmaco, arrebentam-se de rir os provocadores, pe-gando os discpulos de surpresa: tudo est, tambm, no primeirolivro de Telnraco? E em sua primeira palavra? As matemticas

    esto no Telmaco? E na primeira palavra de Telmaco? E o disc-pulo sente o solo desaparecer sob seus ps e chama o mestre em seusocorro: o que se deve responder?

    "Era preciso dizer que vs acreditais que todas as obras hu-manas esto na palavra Calipso, porque essa palavra uma obra dainteligncia humana. Aquele que fez a adio de fraes o mesmoser intelectual que o que fez a palavra Calipso. Este artista sabia o

    Gonod, Nowt/le exposition de la mthode de Joseph Jamtol, Paris, 1830, p. 12-13.

    37

  • Co.eCAO "EDUCAO: E.4ERIENCiA E SENTIDO "

    grego; escolheu uma palavra que si gnificaardilosa, escondida. Esteartista assemelha-se quele que imaginou os meios de escrever apalavra da qual se trata. Ele se assemelha quele que fez o papelsobre o qual se escreve, quele que emprega a pena nessa tarefa,quele que talha as penas com um canivete, quele que fez o cani-vete com o ferro, quele que forneceu o ferro a seus semelhantes,quele que fez a tinta, quele que imprimiu a palavra Calipso, queleque fez a mquina de impresso, quele que explica os efeitos detal mquina, quele que generalizou essas explicaes, quele quefez a tinta de impresso, etc. etc. etc... Todas as cincias, todas asartes, a anatomia e a dinmica etc. etc.. so frutos da mesma inteli-gncia que fez a palavra Calipso. Um filsofo, abordando uma ter-ra desconhecida, adivinhou que ela era habitada ao ver uma figurageomtrica na areia. "So passos de homem", disse. Seus camara-das acreditaram que estava louco, porque as linhas que ele lhesmostrava no se pareciam com passos. Os sbios do aperfeioadosculo XIX arregalam os olhos, abestalhados, quando se lhes mos-tra a palavra Calipso e que lhes dito: "H a dedo humano". Euaposto que o representante da escola normal francesa dir, olhandoa palavra Calipso: "Ele pode diz-lo e repeti-lo, mas isso no tem aforma de um dedo". Tudo est en, tudo."'

    Eis tudo o que est em Calipso: a potncia da inteligncia, queest presente em toda manifestao humana. A mesma inteligncia fazos nomes e os signos matemticos. A mesma inteligncia faz os signose os raciocnios. No h dois tipos de espritos. H desigualdade nasmanifestaes da inteligncia, segundo a energia mais ou menos gran-de que a vontade comunica inteligncia para descobrir e combinarrelaes novas, mas no h hierarquia de capacidade intelectual. atomada de conscincia dessa igualdade de natureza que se chama eman-cipao, e que abre o caminho para toda aventura no pas do saber.Pois se trata de ousar se aventurar, e no de aprender mais ou menosbem, ou mais ou menos rpido. O "mtodo Jacotot" no melhor, diferente. Por isso, os procedimentos colocados em prtica importampouco, neles mesmos. o Telmaco, mas poderia ser qualquer outro.Comea-se pelo texto, e no pela gramtica, pelas palavras inteiras, e

    Lugue maternelle, p. 464-465.

    38

    A lio do ignorante

    no pelas slabas. No que seja preciso aprender assim para aprendermelhor, e que o mtodo Jacotot seja o ancestral do mtodo global.De fato, vai-se mais rpido comeando por Calipso, e no por B, A,BA. Mas a rapidez no seno um efeito da potncia adquirida, uma'conseqncia do princpio emancipador. "O antigo mtodo faz co-mear pelas letras porque dirige os alunos segundo o princpio dadesigualdade intelectual e, sobretudo, da inferioridade intelectual dascrianas. Acredita que as letras so mais fceis de distinguir do queas palavras: um erro, mas, enfim, ele assim o cr. Ele cr que umainteligncia infantil no est apta seno a aprender C, A, CA, e que preciso uma inteligncia adulta, isto , superior, para aprenderCalipso.' Em suma, B, A, BA, tal como Calipso, uma bandeira:incapacidade contra capacidade. Soletrar um ato de contrio, antesde ser um meio de aprender. por isso que se poderia mudar a ordemdos procedimentos sem nada mudar quanto oposio dos princ-pios. "Um dia o Velho talvez pensar em fazer ler por palavras e,ento, talvez ns fizssemos nossos alunos soletrarem. No que resul-taria essa modificao aparentemente significativa? Nada. Nossosalunos no deixariam de ser emancipados e os do Velho no seriammenos embrutecidos [...] O Velho no embrutece seus alunos ao faz-los soletrar, mas ao dizer-lhes que no podem soletrar sozinhos; por-tanto, ele no os emanciparia, ao faz-los ler palavras inteiras, por-que teria todo o cuidado em dizer-lhes que sua jovem intelignciano pode dispensar as explicaes que ele retira de seu velho cre-bro. No , pois, o procedimento, a marcha, a maneira que emancipaou embrutece, o princpio. O princpio da desigualdade, o velhoprincpio, embrutece no importa o que se faa; o princpio da igual-dade, o princpio Jacotot, emancipa qualquer que seja o procedimen-to, o livro, o fato ao qual se aplique."'

    O problema revelar uma inteligncia a ela mesma. Qualquercoisa serve para faz-lo. Telmaco; mas pode ser uma orao ouunia cano que a criana ou o ignorante saiba de cor. H semprealguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo decomparao, ao qual possvel relacionar uma coisa nova a ser

    lonroml de Pmm);cif~a//ou intellechrelle, t. III, 1835-1836, p. 9.

    " lonrna/ de fmiwdpatmr intellechrel/e, p. 11.

    39

  • Co.ecw " EUQ1 CAO: EXPENDN(T IA SENTIDO "

    conhecida. Disso testemunha o serralheiro que arregala os olhos quan-do lhe dito que ele pode ler. Ele no conhece sequer as letras. Noentanto, se ele colocar os olhos nesse calendrio, ser que no sabe aordem dos meses e que no pode, assim, adivinhar janeiro, fevereiro,maro... Ele s sabe contar um pouco. Mas quem o impede de con-tar bem lentamente, seguindo as linhas para reconhecer escrito at oque j sabe? Ele sabe que se chama Guillaume e que o dia de seusanto padroeiro 16 de janeiro. Ele saber perfeitamente encontrar apalavra. Ele sabe que fevereiro s tem vinte e oito dias. Ele v clara-mente uma coluna que mais curta que as outras e, assim, ele reco-nhecer 28. E assim por diante. H sempre alguma coisa que o mes-tre pode lhe pedir que descubra, sobre a qual pode interrog-lo everificar o trabalho de sua inteligncia.

    O mestre e Scrates

    Com efeito, so esses os dois atos fundamentais do mestre: eleinterroga, provoca uma palavra, isto , a manifestao de uma inteli-gncia que se ignorava a si prpria, ou se descuidava. Ele verificaque o trabalho dessa inteligncia se faz com ateno, que essa pala-vra no diz qualquer coisa para se subtrair coero. Dir-se- que,para isso, preciso um mestre muito hbil e muito sbio? Ao contr-rio, a cincia do mestre sbio torna muito difcil para ele no arrui-nar o mtodo. Conhecendo as respostas, suas perguntas para elasorientam naturalmente o aluno. o segredo dos bons mestres: comsuas perguntas, eles guiam discretamente a inteligncia do aluno to discretamente, que a fazem trabalhar, mas no o suficiente paraabandon-la a si mesma. H um Scrates adormecido em cada expli-cador. E preciso admitir que o mtodo Jacotot isso , o mtodo doaluno difere radicalmente do mtodo do mestre socrtico. Por suasinterrogaes, Scrates leva o escravo de Mnon a reconhecer asverdades matemticas que nele esto. H a, talvez, um caminho parao saber, mas ele no em nada o da emancipao. Ao contrrio.Scrates deve tomar o escravo pelas mos para que esse possa reen-contrar o que est nele prprio. A demonstrao de seu saber , aomesmo tempo, a de sua impotncia: jamais ele caminhar sozinho e,

    A lio do ignorante

    alis, ningum lhe pede que caminhe, seno para ilustrar a lio domestre. Nela, Scrates interroga um escravo que est destinado apermanecer como tal.

    O socratismo , assim, uma forma aperfeioada do embruteci-mento. Como todo mestre sbio, Scrates interroga para instruir. Ora,quem quer emancipar um homem deve interrog-lo maneira doshomens e no maneira dos sbios, para instruir-se a si prprio e nopara instruir um outro. E, isto, somente o far bem aquele que, defato, no sabe mais do que seu aluno, que jamais fez a viagem antesdele, o mestre ignorante: este no poupar criana o tempo que lhefor necessrio para dar-se conta da palavra Calipso. Mas, algumpoder perguntar, o que tem ela a ver com Calipso e quando sequerela ouviria falar disso? Deixemos, ento, Calipso de lado. Mas quecriana no ouviu falar do Pai-Nosso, no sabe de cor a orao?Nesse caso, a coisa est dada e o pai de famlia pobre e ignorante,que quer ensinar seu filho a ler no estar embaraado. Ele sempreencontrar em sua vizinhana alguma pessoa atenciosa e suficiente-mente letrada, capaz de copiar para ele essa orao. Com isso, o paiou a me pode comear a instruo de seu filho, perguntando-lhe ondeest o Pai. "Se a criana atenta, ele dir que a primeira palavra queest no papel deve ser o "Pai", pois a primeira na frase. "Nosso"ser, ento, necessariamente, a segunda palavra; a criana podercomparar, distinguir, conhecer essas duas palavras e reconhec-Iasem qualquer parte."' Que pai ou me no saberia perguntar criana,s voltas com o texto da orao, o que ele v, o que com isso podefazer, ou o que disso pode dizer, ou o que pensa sobre o que disse oufez'? Faz-lo da mesma forma como interrogaria um vizinho sobre oinstrumento que tem em mos, e sobre o uso que d ao objeto? Ensi-nar o que se ignora simplesmente questionar sobre tudo que seignora. No preciso nenhuma cincia para fazer tais perguntas. Oignorante pode tudo perguntar, e somente suas questes sero, para oviajante do pas dos signos, questes verdadeiras, a exigir o exerc-cio autnomo de sua inteligncia.

    Que seja! diz o contraditor. Mas, o que faz a fora do interroga-dor faz tambm a incompetncia do verificador. Como saber ele

    ' Jwmnaldr l'mmndnation intellyduelle, t. VI, 1841-1842, p. 72.

    40 41

  • COLEO"

    EDUCAO: EXPERIENCIA E SENTIDO"

    que a criana no divaga? O pai ou a me sempre podero pedir criana: Mostra-me Pai, ou Cus. Mas como podero eles verificarse a criana indica corretamente a palavra solicitada? A dificuldades crescer medida em que a criana avana se ela avana emsua aprendizagem. O mestre e o aluno ignorantes no estariam, nessecaso, representando a fbula do cego e do paraltico?

    O poder do ignorante

    Comecemos por tranqilizar o contraditor: no se far do igno-rante o depositrio da cincia infusa, sobretudo dessa cincia dopovo que se oporia dos sbios. preciso ser sbio para julgar osresultados do trabalho, para verificar a cincia do aluno. O ignoran-te, por sua vez, far menos e mais, ao mesmo tempo. Ele no verifi-car o que o aluno descobriu, verificar se ele buscou. Ele julgar seestava atento. Ora, basta ser homem para julgar do fato do trabalho.To bem quanto o filsofo, que "reconhece" passos de homem naslinhas na areia, a me sabe ver "nos olhos, em toda a expresso deseu filho, quando ele faz um trabalho qualquer, quando ele mostrapalavras de uma frase, se ele est atento ao que faz." O que omestre ignorante deve exigir de seu aluno que ele prove que estu-dou com ateno. pouco? Vejamos, ento, tudo o que essa exi-gncia tem, para o aluno, de uma tarefa interminvel. Vejamos, tam-bm, a inteligncia que ela pode dar ao examinador ignorante:"Quem impede essa me ignorante, mas emancipada, de observar,a cada vez que pergunta onde est Pai, se a criana mostra semprea mesma palavra; quem se opor a que ela esconda essa palavra epergunte: qual a palavra que est debaixo de meu dedo? Etc. etc."

    Imagem piedosa, receita de mulheres... Esse foi o julgamentodo porta-voz oficial da tribo dos explicadores: "Pode-se ensinar o quese ignora ainda uma mxima de dona de casa."' Ao que se respon-der que a "intuio maternal" no exerce aqui nenhum privilgio

    "' Jsoma/ de fmanripntion intellectuelle, p. 73.II Idem.

    ' 2 Lorain, Rfutation de /a mthode Jacotot, Paris, 1830, p. 90.

    42

    A lio do ignorante

    domstico. O dedo que esconde a palavra Pai o mesmo que est em

    Calipso, a escondida ou a ardilosa: a marca da inteligncia humana,a mais elementar das astcias da razo humana a verdadeira, aquelaque prpria a cada um e comum a todos, essa razo que se manifes-ta exemplarmente ali, onde o saber do ignorante e a ignorncia domestre, agindo, fazem a demonstrao dos poderes da igualdade in-telectual. "O homem um animal que distingue perfeitamente bemquando aquele que fala no sabe o que diz... Essa capacidade olao que une os homens."" A prtica do mestre ignorante no umsimples expediente que permite ao pobre que no tem tempo, nemdinheiro, nem saber, instruir seus filhos. a experincia crucial quelibera os puros poderes da razo, l onde a cincia no pode mais vira seu socorro. O que um ignorante pode uma vez, todos os ignoran-tes podem sempre. Pois no h hierarquia na ignorncia. E o que osignorantes e os sbios podem, comumente, a isso que se deve cha-mar o poder do ser inteligente, como tal.

    Poder de igualdade que , ao mesmo tempo, de dualidade e decomunidade. No h inteligncia onde h uma agregao, ligadurade um esprito a outro esprito. H inteligncia ali onde cada um age,narra o que ele fez e fornece os meios de verificao da realidade desua ao. A coisa comum, situada entre as duas inteligncias, acauo dessa igualdade, e isso em um duplo sentido. Uma coisa ma-terial , antes de mais nada, "o nico ponto de comunicao entredois espritos". 14 A ponte a passagem, mas tambm a distnciamantida. A materialidade do livro mantm a igual distncia os doisespritos, enquanto a explicao anulao de um pelo outro. Mas acoisa , igualmente, uma instncia sempre disponvel de verificaomaterial: o ato do examinador ignorante de ''levar o examinado aosobjetos materiais, s frases, s palavras escritas em um livro, a umacoisa que ele possa verificar com seus sentidos." 15 O examinado estsempre sujeito a uma verificao no livro aberto, na materialidade decada palavra, na trajetria de cada signo. A coisa, o livro, exorciza a

    " (.toue cunleruel%, p. 271, e Journal de l'mnnripation in/e0ednel%, t. III, 1835-1836, p. 323.

    loomed de l'Enmircipalion intellerhrelh t. lit, 1835-1836, p. 253.I' Journal de l'mmrcipaliare inte/ler/pelle, r. III, 1835-1836, p. 259.

    43

  • COICAo " EaVCnGAO: EXPERIENCIA e SfNIIpO "

    cada vez a trapaa da incapacidade, e aquela do saber. Por isso, o mes-tre ignorante poder, eventualmente, estender sua competncia at averificao no tanto da cincia do pequeno cavalheiro instruido, masda ateno que ele d ao que diz e faz. "Vs podeis, por esse meio, atmesmo prestar servio a um de vossos vizinhos que se encontra, porcircunstncias independentes de sua vontade, forado a enviar seu fi-lho ao colgio. Se o vizinho vos pede para verificar o que sabe o pe-queno colegial, no estareis em nada embaraado com essa requisio,ainda que no tenhais estudos. O que estais aprendendo,jovem amigo,direis criana. Grego. O qu? Esopo O qu? As Fbulas Que fbula conheceis? A primeira Onde est a primeira palavra? Ei-la aqui. Passai-me vosso livro. Recitai-me a quarta palavra. Colo-cai-a por escrito. O que escrevestes no se parece com a quarta palavrado livro. Vizinho, essa criana no sabe o que diz saber. Essa umaprova de que lhe faltou ateno, quando estudava ou quando indicou oque diz saber. Aconselhai-o a estudar. Voltarei a passar, e vos direi seest aprendendo o grego, que ignoro, que sou incapaz de ler."

    assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele quesabe quanto o ignorante: verificando se ele est pesquisando conti-nuamente. Quem busca, sempre encontra. No encontra necessaria-mente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que preciso encon-trar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar coisa que jconhece. O essencial essa contnua vigilncia, essa ateno quejamais se relaxa sem que venha a se instalar a dcsrazo em queexcelem tanto aquele que sabe quanto o ignorante. O mestre aqueleque mantm o que busca em seu caminho, onde est sozinho a procu-rar e o faz incessantemente.

    Os negcios de cada um

    Mas ainda preciso, para verificar essa procura, saber o quequer dizer procurar. Esse o cerne de todo o mtodo. Para emanci-par a outrem, preciso que se tenha emancipado a si prprio. pre-ciso conhecer-se a si mesmo como viajante do esprito, semelhante a

    Journa/de l'mancpe/ionhrtelleNme/%, t. I V, 1836-1837, p. 280.

    44

    A lio do ignorante

    todos os outros viajantes, como sujeito intelectual que participa dapotncia comum dos seres intelectuais.

    Como se tem acesso a esse conhecimento de si? "Um campo-ns, um artista (pai de famlia) se emancipar intelectualmente serefletir sobre o que e o que faz na ordem social."" A coisa pare-cer simples, c mesmo simplria, para quem desconhece o peso dovelho mandamento que a filosofia, pela voz de Plato, instituiu comodestino para o arteso: No faas nada alm de teu prprio negcio,que no de pensar no que quer que seja, mas simplesmente fazeressa coisa que esgota a definio dc teu ser: se tu s sapateiro, cala-dos e crianas que sero sapateiros. No a ti que o orculo dlficorecomenda conhecer-se. E, mesmo se a divindade, brincalhona, se di-vertisse em semear na alma de teu filho um pouco do ouro do pensa-mento, raa de ouro, aos guardies da plis que incumbiria a tarefade educ-lo, para torn-lo um deles.

    bem verdade que a era do progresso pretendeu abalar a rigi-dez do velho mandamento. Com os enciclopedistas, decretou quenada mais se fizesse como rotina, nem mesmo o trabalho dos arte-sos. E sabia que no h ator social, por mais nfimo que seja, queno se constitua, ao mesmo tempo, em um ser pensante. O cidadoDestutt de Tracy relembrou, no alvorecer do novo sculo: "Todohomem que fala tem idias de ideologia, de gramtica, de lgica ede eloqncia. Todo homem que age tem princpios de moral pri-vada e de moral social. Todo ser, apenas por vegetar, desenvolvesuas noes de fsica e de clculo; e, somente pelo fato de vivercom seus semelhantes, desenvolve sua pequena coleo de fatoshistricos e sua maneira dejulg-los.""

    I mpossvel, portanto, que os sapateiros faam apenas calados que no sejam tambm, sua maneira, gramticos, moralistas efsicos. Este o primeiro problema: enquanto os artesos e os cam-poneses formarem essas noes de moral, de clculo ou de fsica,segundo a rotina de seu meio ou o acaso de seus encontros, a marcha

    Enseignrmrnl en/read I nngme maternel/e, 6` ed., Paris, 1836, p. 422.

    Destutt de Trace, Obrerra/ions sur le systme camel d'ins/n,ctan publique. Pads,ano IX.

    45

  • COLE[AO "EoucACAo E%GEFIFNOA E SENiIDO "

    racional do progresso ser duplamente contrariada: retardada pelosrotineiros e supersticiosos, ou perturbada pelo aodamento dos vio-lentos. Faz-se, portanto, necessrio que um mnimo de instruo,retirado dos princpios da razo, da cincia e do interesse geral, im-bua de noes sadias cabeas que, sem isso, as formaro falhas. Escu-sado mencionar que essa empreitada ser to mais proveitosa quantomais ela subtrair o filho do campons ou do arteso do meio naturalprodutor dessas falsas idias. No entanto, essa evidncia encontra ra-pidamente sua contradio: a criana que deve ser subtrada rotina e superstio deve, no entanto, voltar sua atividade e sua condio.E a era do progresso foi, desde sua aurora, advertida do perigo mortalque h em separar a criana do povo da condio para qual est votadae das idias relativas a essa condio. Assim, ela se esbarra com essacontradio: sabe-se, agora, que as cincias dependem todas de prin-cpios simples, que so acessveis a todos os espritos que delas de-sejarem se apropriar, desde que sigam o mtodo adequado. Mas, amesma natureza que abre a carreira das cincias a todos os espritosquer uma ordem social em que as classes estejam separadas e osindivduos conformados ao estado social que lhes destinado.

    A soluo encontrada para essa contradio a balana orde-nada da instruo e da educao, a repartio dos papis devidos aomestre-escola e ao pai de famlia. Um afugenta, pelas luzes da instru-o, as idias falsas que a criana deve a seu meio familiar; o outroafugenta, pela educao, as aspiraes extravagantes que o escolarpoderia tirar de sua jovem cincia e o traz de volta condio dosseus. O pai de famlia, incapaz de tirar de sua prtica rotineira ascondies para a instruo intelectual de seu filho, mostra-se, emtroca, todo-poderoso para lhe ensinar, pela palavra e pelo exemplo, avirtude que h em se manterem sua condio. A famlia , ao mesmotempo, fonte da incapacidade intelectual e princpio de objetividadetica. Esse duplo carter se traduz por uma dupla limitao da cons-cincia de si do arteso: a conscincia de que aquilo quefaz dependede uma cincia que no a sua, a conscincia de que aquilo que oconduz a no fazer nada, alm de seu prprio negcio.

    Digamo-lo mais simplesmente: a balana harmoniosa da ins-truo e da educao a de um duplo embrutecimento. A isso seope. exatamente, a emancipao tomada de conscincia, por parte

    46

    A Iio do ignorante

    de cada homem, de sua natureza de sujeito intelectual; frmula carte-siana da igualdade, posta ao revs: "Descartes dizia: eu penso, logosou; e esse belo pensamento do grande filsofo um dos princpiosdo Ensino Universal. Ns invertemos seu pensamento e dizemos: eusou homem, logo, penso".'" A inverso inclui o sujeito homem naigualdade do cogito. O pensamento no um atributo da substnciapensante, mas um atributo da humanidade. Para transformar o "co-nhece-te a ti mesmo" em princpio da emancipao de todo ser hu-mano, preciso fazer operar, contra o interdito platnico, uma dasetimologias da fantasia do Crtilo: o homem, o anthropos, o serque examina o que v, que se conhece nessa reflexo sobre seu ato.'"Toda a prtica do Ensino Universal se resume na questo: o que pen-sas disso? Todo seu poder est na conscincia da emancipao queela atualiza no mestre, e suscita no aluno. O pai poder emanciparseu filho, se comear por se conhecer a si prprio, isto , por exami-nar os atos intelectuais de que o sujeito, por observar a maneiracomo utiliza, nesses atos, seu poder de ser pensante.

    A conscincia da emancipao , antes de tudo, o inventriodas competncias intelectuais do ignorante. Ele conhece sua lngua.Ele sabe, igualmente, us-la para protestar contra seu estado ou parainterrogar os que sabem, ou acreditam saber, mais do que ele. Eleconhece seu ofcio, seus instrumentos e uso; ele seria capaz, se ne-cessrio, de aperfeio-los. Ele deve comear a refletir sobre essascapacidades e sobre a maneira como as adquiriu.

    Avaliemos melhor essa reflexo. No se trata de opor os saberesmanuais e do povo, a inteligncia do instrumento e do operrio, cinciadas escolas ou retrica das elites. No se trata de perguntar quem cons-truiu Tebas e suas sete portas, para reivindicar o lugar de construtores ede produtores na ordem social. Trata-se, ao contrrio, de reconhecer queno h duas inteligncias, que toda obra da arte humana a realizaodas mesmas virtualidades intelectuais. Em toda parte, trata-se de obser-var, de comparar, de combinar, de fazer e de assinalar como se fez. Emtoda parte possvel essa reflexo, essa volta sobre si mesmo, que no

    Sonmmire des /rpms pe,b/iques de Al J acolo/..., p. 23.

    Plato, Creta/o,399 c: "nico entra todos os animais, o homem foi justamentechamado e nt/Repos, porque ele examina o que viu (anatisnia baerppe)."

    47

  • COIEOAO " EDUCAO: EXPERINCIA E SENTIDO"

    a pura contemplao de uma substncia pensante, mas a ateno incon-dicionada a seus atos intelectuais, ao caminho que descrevem e 'a possi-bilidade de avanar sempre, investindo a mesma inteligncia na con-quista de novos territrios. Permanece embrutecido aquele que ope aobra das mos operrias e do povo que nos alimenta s nuvens da retri-ca. A fabricao de nuvens uma obra da arte humana que exige, nemmenos, nem mais, tanto trabalho, tanta ateno intelectual quanto a fa-bricao de calados e de maanetas. M. Lerminier, o acadmico, dis-serta sobre a incapacidade intelectual do povo. M. Lerminier um em-brutecido. Mas um embrutecido no um tolo, nem um preguioso. Eseramos embrutecidos, por nossa vez, se no reconhecssemos em suasdissertaes a mesma arte, a mesma inteligncia, o mesmo trabalho queos daqueles que transformam a madeira, a pedra ou o couro. Somente sereconhecermos o trabalho de M. Lerminier, seremos capazes de reco-nhecer a intelignciamanifestada pela obra dos mais humildes. "As cam-ponesas pobres dos arredores de Grenoble fabricam luvas; pagam-se-lhes trinta centavos a dzia. Mas, desde que se emanciparam, elas seaplicam a olhar, a estudar, a compreender uma luva bem confeccionada.Elas adivinharo o sentido de todas as frases, de todas as palavras dessaluva. Acabaro por falar to bem quanto as mulheres da cidade, queganham sete francos por dzia. Trata-se somente de aprender uma ln-gua que se fala com tesouras, agulha e linha. A questo sempre estlimitada (nas sociedades humanas) a compreender e falar uma lngua.''''

    A idealidade material da lngua refuta qualquer oposio entreraa de ouro e raa de ferro, qualquer hierarquia ainda que inverti-da entre os homens votados ao trabalho manual e os homens desti-nados ao exerccio do pensamento. Qualquer obra da lngua se com-preende e se executa da mesma maneira. por isso que o ignorantepode, assim que se conheceu a si mesmo, verificar a pesquisa de seufilho no livro que no consegue ler: mesmo no conhecendo as mat-rias que o filho estuda, se este lhe diz como est fazendo, saberreconhecer se est fazendo, ou no, obra de pesquisador. Pois elesabe o que pesquisar e no tem seno uma coisa a pedir a seu filho,que virar e revirar suas palavras e frases, como ele prprio vira erevira seus instrumentos quando pesquisa.

    " I nte(aremen! miirerreL Aftuigne, 3' ed., Paris, 1830, p. 349.

    48

    A lio do ignorante

    O livro Telmaco ou outro colocado entre d