57
1 O muro Saulo Alencastre

O muro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Livro de poesia brasileira contemporânea.

Citation preview

1

O muroSaulo Alencastre

2

Registrado na Biblioteca Nacional do BrasilISBN 978-85-908942-0-9© Saulo Alencastre 2008

<?xpacket begin='' id=''?><x:xmpmeta xmlns:x='adobe:ns:meta/'><rdf:RDF xmlns:rdf='http://www.w3.org/1999/02/22-rdf-syntax-ns#'>

<rdf:Description rdf:about=''xmlns:xapRights='http://ns.adobe.com/xap/1.0/rights/'><xapRights:Marked>True</xapRights:Marked> </rdf:Description>

<rdf:Description rdf:about=''xmlns:dc='http://purl.org/dc/elements/1.1/'><dc:rights><rdf:Alt><rdf:li xml:lang='x-default' >This work is licensed under a

Creative Commons Attribution-Non-Commercial-No Derivative Works 2.5Brazil License.</rdf:li>

</rdf:Alt></dc:rights></rdf:Description>

<rdf:Description rdf:about=''xmlns:cc='http://creativecommons.org/ns#'><cc:license rdf:resource='http://creativecommons.org/licenses/by-

nc-nd/2.5/br/'/></rdf:Description>

</rdf:RDF></x:xmpmeta><?xpacket end='r'?>

Esta obra está licenciada de acordo com:

http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/

Distribuição livre.

3

Invocação

Ó musa, a invoco nesta noite escura

Para que guie as minhas linhas imprecisas

Pelas profundas trevas infinitas

E saiba todos os astros menores

Que o universo desde dentro dos quarks.

Limpa as portas de minha percepção,

Traz-me à mente o Gênio Poético e a liberdade

Permita sentir deixar-me levar

Ver desde a teia as palavras germinar

Transcender a matéria, e andar no ar.

4

A verdade é esta, pura e somente esta:

Há uma escolha a ser feita por todo homem:

O mundo, os prazeres, toda festa;

Ou o caminho e Deus, que a alegria consomem;

Pois a purificação é dolorosa,

Solitária, difícil e tranquila,

Sabe a humanidade pecaminosa,

A deseja, a recusa e a destila,

Porém não entende o seu fim, se não sente

As delícias comuns a ela negadas;

E o homem sagrado vê clara a semente,

Porém preferiria orgias depravadas.

O erro mais ínfimo é o mais desastroso;

O desespero do escravo é glorioso.

5

O espelho branco mostra a estrada certa,

Onde o rio da vida corre mais suave

Carregando consigo a alma desperta

Até sua fonte, o princípio grave,

Para que possa brilhar incessante

Afinal, completa, e verdadeira.

Com sinceridade desconcertante,

O muro é trespassado, surge a beira;

Um movimento em falso e a realidade

Treme inteira; a alma então se obscurece,

Cai no abismo toda a profundidade,

Do equilíbrio o núcleo se desvanece.

O grito do demônio ecoa ao infinito,

Corta o céu o anjo racional do conflito.

6

Quinta. Noite.

Agora vejo da brasa a fumaça,

E a caneta desliza no papel.

Telhas transparentes, chão reluzente,

Entre os prédios da cidade, o vácuo.

Ainda o intelecto não deixa sorrir,

O tempo desconhece o pensamento.

Uma luz solitária na janela,

De novo trago, e apago o cigarro.

7

Prefiro a introspecção da solidão

À disciplina marcial mais perfeita;

Recuso o caminho da retidão:

Iníqua no caos minha alma se deita.

A minha sina, talvez escolhida,

É do domínio mental e das trevas;

A luz purificadora da vida

Suporto somente em pequenas levas.

Felicidade não busco, mas sim

Liberdade, loucura e alta consciência;

Cego persigo tenso e tolo o fim,

Desejo obter delícias pela ciência.

Dentro do erro procuro ainda acertar;

Realizaria-me por simples estar.

10.06.05

8

A alma queima quando a visão clareia,

Pelo mundo as energias guiam o corpo;

O ente incompleto sozinho vagueia

Limitado ao seu pensamento torpo.

O céu escurece sobre a areia da praia,

O bêbado ao lado já se levanta,

As luzes se acendem, que a noite caia

Inspirando a desilusão que canta.

O silêncio insinuante da cidade

Ouve os sonhos dos paranóicos loucos,

Lamentos noturnos pela metade,

E dos cães do inferno latidos roucos.

Sentidos enganam razões despertas

Perdidos em estradas encobertas.

14-20.04.04

9

O branco céu não me deixa enxergar,

Meus olhos cegados silentes dóem.

A chuva insistente cai sem cessar,

E os minutos normais se autodestróem.

A preguiça prende os corpos ao chão

Enquanto as idéias se perdem no espaço

E, tragada pela televisão,

A mente bóia boçalmente no baço.

Vozes vizinhas conversam contentes,

Mesmo encharcadas de medo da morte.

O dia se esvai do outro lado das lentes,

A escuridão já vem fechar o corte.

Por toda a terra a água flui sem fronteiras,

O som repousa dentro das madeiras.

10

Vibrações cerebrais se espalham no éter,

O centro fica cada vez mais perto.

Meia-noite no domínio de Deméter,

A lua cheia míngua, e vôo no céu aberto.

Motos cortam as sombras da cidade,

Zumbis insones assistem tevê.

A hipocrisia namora a caridade,

Ventos têm espíritos à mercê.

Dez mil línguas vêem o mundo inferior,

Suicida-se o rei sentado em seu harém,

A hora chama os danados ao torpor,

Padres católicos dizem amém.

O louco e o sábio se encontram na ponte

Que fez um filósofo de Caronte.

30.03.05

11

Ser desprezível de água, carbono & ar,

Pretendes a guerra o jogo a ordem artes?

Deixa as palavras & a música soar,

Recolhe do vento tuas próprias partes.

És esse corpo imundo e impermanente,

Certo é ao barro da terra voltarás:

Desperta a tua humanidade dormente,

E de olhos fechados enxergarás.

Perdes-te em pensamentos infrutíferos,

Esqueces tuas origens ancestrais;

Entre os elétrons consomes soníferos,

Derramas teu sangue em versos banais.

Satisfeito com a tua decadência

Deitas na noite escura da tua ausência.

16.06.05

12

Caverna

I

Envolto sozinho em sua própria aura estelar,

O muro, sem fim à esquerda nem à direita,

A sua base em sólida fusão com a terra,

Sobe seguro ao céu.

Atrás vivem gigantes, quimeras, dragões,

Demônios, anjos, fadas,

Gênios, répteis, insetos, loucos, rãs, anões,

Em harmonioso caos.

O palácio da sabedoria temem todos,

Morada incerta dos quietos magos anciãos,

Estudantes cansados de uma única frase:

Conhece-te a ti mesmo.

II

Deste lado, neste populoso deserto,

Cegos perdidos só julgam as aparências,

Imersos instáveis na inconstante ignorância,

Entre o medo e a esperança.

Esquecem as verdades universais do outro,

Perdem suas vidas em pensamentos abstratos,

Lamentando a impotente humildade dos homens

Em boçal desperdício.

Assim, o tempo inútil

É levado livre da escolha pelo vento,

Sem saber porque toda gente necessita

Novas pedras sagradas.

13

Domingo

Quando poderei pausar

Livre respirar silêncio?

A paciência evaporou

De meus poros da cabeça.

14

Sentado à sombra de meu Deus, medito,

Seguro dos meus passos no Caminho,

Sinto meu espírito no peito aflito,

E observo o rio mover mavioso o moinho;

Vai moendo o trigo para os pães do inverno.

Em vão gira a inútil roda da história,

Vigilante deste conjunto externo,

Esmagando cada individual glória.

O meio-dia reúne a família faminta,

Que mesmo mudando continua igual;

Caio e levanto-me não importa o que sinta,

Tal é a vida no inferno tropical.

Para a travessia, o teletransporte;

Morrerei sem nunca ter sido forte.

17.06.05

15

Estado de espírito é pura química,

Sensações corpóreas da alma falácia,

Comunicação de massa por mímica,

Silêncio escutado em toda a galáxia,

Malditos atrapalham meditar.

Futuro & passado medem o espaço,

A verdade é sincero acreditar,

Definições metálicas forjam aço,

A inspiração perde-se na memória.

A certeza aplaca a melancolia,

A paciência instável aguarda a glória,

Maior é o prazer da sabedoria.

Segredos seduzem velhas cegueiras,

Mentiras conquistam belas rameiras.

16

A beleza da tristeza não paga

O sofrimento da melancolia;

A solidão da noite escura alaga,

Difícil degustada, delicia.

A mente molécula no éter flui,

Livre de devaneios clara flutua,

A nau segue certo, seu rumo bui,

A loira se deita na cama, nua.

Por neurônios trafegam pensamentos

Em sinapses de escala intergaláctica,

Egoísmos sinceros movem momentos,

Imagens na mídia psicossomática.

Doce madrugada se rasga ao meio

Para muito além do belo e do feio.

17

Desce a água na noite da solidão,

O fogo consome a alma do viajante;

Se acalma no silêncio o coração,

Mal sorri para si o esquecido infante.

Pelas ruas perambulam os perdidos,

Nas casas escondem-se os contratados,

Nos hospitais descansam os feridos,

Nas urnas depositam-se os cremados.

A espada inquieta aguarda a luta justa,

A viola canta suas dores ao vento;

O tostão do mendigo muito custa,

O passo do amor é sempre o mais lento.

Caranguejos invadem a praia inteira,

Beleza & loucura deitam-se à beira.

16.09.05

18

A rendição incondicional liberta

A alma das correntes da realidade;

A escolha o olho da mente desperta,

O tempo perdido rasga a cidade.

O amor se oculta atrás de muitas máscaras,

A vida implora por sua plenitude;

Do envoltório profundo caem as lascas,

O poeta morre na sua juventude.

Surpresas tranquilas preenchem os dias,

A percepção se abre mais e mais;

Bonecos plásticos procuram guias,

Dançam no limbo os amantes virtuais.

Preso no muro o herói espera o processo,

A sapiência, o silêncio, o sucesso.

19.09.05

19

A paciência a tranquilidade atinge,

Pela noite sem fim a busca segue;

O vento depara com a esfinge,

O controle da mente a Deus é entregue.

O esforço se desperdiça no espaço,

A renúncia mais não pode tardar;

À distância fortalece-se o laço,

A força se acumula sem cessar.

O grande silêncio já se aproxima;

O amor foge de sua visão do céu,

O medo da modernidade mima,

A tola filosofia tece o véu.

O fogo interior se esconde no escuro,

Espíritos livres quebram o muro.

26.10.05

20

A maldição da poesia me atormenta,

A mente se perde na tempestade;

A frustração desolada se senta,

O amor mais alto morre na vaidade.

O mundo se esvai entre os dedos da mão,

A fé derrotada se rende à vida,

A música colore a solidão,

As sombras abraçam minha querida.

O tempo beija a calma sob o sol

Urbano; o caos incendeia os desejos;

Meu nome é esquecido no meio do rol

Dos infinitos escravos e ensejos.

O frio da modernidade corrói,

O medo do desconhecido dói.

05.11.05

21

A morte de minha mãe me liberta,

O apego ao sofrimento e à ilusão finda.

Retomo então sozinho a estrada certa,

Sigo a estrela, dourada flor mais linda,

Desperto com o beijo da manhã.

Olho a cara mutilada no espelho:

O desafio é manter a mente sã

Descendo ao fundo da toca do coelho.

O sol nasce rosa e brilha amarelo,

Mal empurro a pedra, montanha acima;

Com as luzes apagadas faz-se o elo,

Perco todo o propósito da rima.

Continuo jogando com o meu vício,

Toco violão à beira do precipício.

22

Neste buraco do inferno esquecido

Por Deus eu me sento e medito, só,

Como durante toda a minha vida,

Até que esta carne retorne ao pó:

Danço com o demônio sob o luar,

Sento-me à beira do abismo em silêncio,

Entrego-me e mergulho sem medo ao mar,

O torto destino deixo à clemência.

A androginia cerebral trovejante

Segue a destruir barreiras e fronteiras,

Aglutinando qualquer ser mutante,

Avançando invisível por trincheiras.

Ando pela ponte apalpando o muro,

Enxergo muito mais claro no escuro.

02.01.06

23

Procuro transcender a própria prática,

Abstraí-la, incorporá-la e esquecê-la,

Caminhar sempre além da vida fática,

E seguir firme a luz da minha estrela;

Subir ao topo do divino monte,

Purificar a alma completamente,

Contemplar calmo o distante horizonte,

Dissolver na plenitude da mente:

Conhecer e realizar a unidade,

Romper com a percepção sensorial;

Viver desperto e atento a realidade—

Representar o papel principal.

Desespero da humana natureza,

Ainda fico entre a beleza e a fraqueza.

15.01.06

24

Sim, eu sou uma pedra, uma rocha,

Uma montanha: caminho no vento

E sofro por trazer acesa a tocha.

Em meio à escuridão do mundo me sento,

Observo os dias de sol, as tempestades,

As nuvens, o frio, o calor e as aves,

Nos castelos me curvo às majestades.

Removo um a um todos os entraves,

Afogo em minha própria estupidez,

Da civilização filho patético

Que sou, desprezo toda a sensatez,

Queimo no inferno do pensamento ético.

Venço a razão, destruo a dúvida cruel,

Livre no espaço cavalgo o corcel.

14.01.06

25

Serafins Artificiais

Nós não temos voz alguma no mundo,

Ninguém nos escuta ou escutará,

E mesmo se houvessem vozes e ouvidos,

Nós não temos mais nada o que dizer.

Nossa fala é vã, infantil, inútil,

Somos loucos, vagabundos, otários:

Ocupamo-nos do espírito humano,

Não nos preocupamos com o mercado.

Criamos os nossos próprios deuses, oh!

Navegamos com precisão e controle,

Corremos junto do tempo perdido,

Vivemos a solidão coletiva,

Temos a televisão como guia.

Contamos os grãos de areia da praia inteira,

Dançamos debaixo dos holofotes,

Cuspimos na cara da nossa sorte,

Derrubamos enfim todas barreiras.

19.01.06

26

A beleza da tristeza ainda encanta,

E a solidão é a melhor mulher do mundo,

Dedicada e fiel, pura, quieta, santa,

Companheira do caminho profundo,

Acolhe, livre de qualquer demanda,

E vela o fogo da sabedoria.

Calma compõe sua invisível guirlanda

Usa um vestido negro de alegria,

Doce sorri levemente, em paz,

Atenta a tudo, amiga da morte,

Estende exato o silêncio mordaz,

Abraça forte a verdadeira sorte.

Contudo a carne cedo ou tarde grita,

O cérebro no mar de idiotas frita.

13.03.06

27

Vinha o garoto de oito anos andando tranquila e distraidamente

pela silenciosa rua deserta da cidade numa tarde de quinta-feira

quando deu com a cara no muro. Machucou-se, mas ainda não

conseguia enxergá-lo; intrigado, olhou para os lados, pensativo,

olhou para a frente e seguiu, dando novamente com a cara no

muro. Confuso, novamente olhou para os lados e para a frente

e seguiu e deu com a cara no muro. Irritado, sem entender o

que lhe acontecia, pôs-se a dar socos no ar, até que feriu a mão.

Curioso e mais confuso, apalpou o muro, assustou-se, olhou

para o esfolado nas juntas de seus dedos com a mão, voltou a

apalpar e assim sentiu-o, sólido e intransponível, ali.

21.04.06

28

Pássaros e pessoas passam na mata,

Os trabalhadores na obra gargalham,

Moleques no centro fumam na lata,

Horas quietas as costas estraçalham.

A noite cai devagar e nublada,

A poesia atrapalha a concentração,

Entre sonhos e árvores surge u'a fada,

Debaixo da pele explode o vulcão.

Os versos bastardos dormem tranquilos,

Tem início a jornada mais sutil,

Mísseis nucleares aguardam nos silos,

O vampiro levanta em seu covil.

A natureza do mundo é a guerra;

A mulher finalmente sai da terra.

30.06.06

29

A cura para a doença da ilusão do ego

E a visão perfeita do olho da mente

Vêm da vontade individual do cego

E do difícil trabalho que sente

A impermanência universal em si

E senta na eternidade anterior.

Na loucura o homem-máquina sorri,

Os sinos tocam do lado exterior;

No meio da jornada o viajante deita

Cansado de pescar bolhas na espuma;

Livre atravessa a fenda mais estreita,

E mergulha na piscina de plumas.

O esforço preso no intelecto chora,

A dor da reação nunca vai-se embora.

04.07.06

30

A ave voa solitária ao pôr-do-sol,

Singrando o céu perfeitamente puro,

Satisfeita no silêncio rumo ao atol.

As luzes se acendem do olhar obscuro,

A trilha infinita desaparece

No oceano das percepções e paixões;

De amor verdadeiro a vida carece.

A apoteose afasta as assombrações,

Efêmera, dissipa e abaixo volta,

Completando a força sob a lua cheia,

A solidez aparente se solta.

Muito além das galáxias flui nas veias:

O ciclo das mutações continua,

Toda beleza se revela crua.

08.07.06

31

Vaga-lumes abaixo da janela

Piscam no campo da chuva noturna,

No palco dança em plena graça a bela,

Frente ao altar onde repousa em paz a urna.

Pessoas andam abaixo da janela

No verde campo da manhã nublada,

No chão apagada a pensativa vela,

No salão vazio o vento mostra a estrada.

Atrás das árvores se estende a serra,

Nuvens vão e vêm entre elas de lá a cá,

Gotas d’água das folhas caem na terra,

O inseto pela janela entra e está.

O muro mantém-se incomensurável,

A outra margem do rio é só imaginável.

04.11.06

32

Nozes, vozes, professores e amores,

Silêncio sublime da solidão.

Fogo dissipa sombras e rumores,

Melancolia sorria fria ao coração.

Com sua mágoa a mãe agarra o filho ingrato,

Ansiedade, distância de si em si,

Dúvidas mutantes compõem um fato,

Tempestades vão e vêm entre aqui e ali.

Verdes árvores vivas no concreto,

Céu cinza reflete asfalto e metais.

Recolhe-se torto todavia o feto,

Corpos estranhos recusam sinais.

Arcanjos guardam o portão invisível,

Profetas pintam o sonho indizível.

09.12.06

33

Num só golpe rasgo o tempo do mundo,

Vôo na realidade da eternidade,

Mergulhando em mim cada vez mais fundo:

Conhecendo-me, conheço a verdade.

A poesia alivia a dor da natureza

E distancia o ser da libertação,

Entrelaçada à grosseira beleza,

Trai a sutileza da concentração.

A posição do poeta é muito baixa,

Preso a palavras perde-se o profeta;

Sabedoria embrulhada em uma caixa,

Delicia-se no bom banquete o asceta.

Canoas levam índios pela floresta,

O nobre guerreiro dispara a besta.

16.12.06

34

Cadeiras, lápis e anzóis.

Sete centímetros dentro da areia.

Suor, calor do Sol e do chão.

Microorganismos flutuando no ar.

Pessoas caminhando pelas ruas apressadas,

ansiosas por consumir mais um ano.

Montanhas de plástico nos cantos.

Nuvens esparsas na noite pouco estrelada.

Quadrado vermelho, círculo negro.

Setecentos homens-bomba no palácio.

Poeira, papel e moedas.

Raiva, desgosto, cegueira, pobreza.

Vassouras varrendo calçadas, vizinhos

tagarelando, pássaros cantando,

um carro estacionando e buzinando.

Três almofadas e um violão sem cordas.

Rolos de fita magnética estendida

pelo quarto.

Lixo orgânico e moscas.

Monolito rochoso sobre a grama.

Ventos, peixes e mulheres.

20.12.06

35

Senhor, é impossível conhecer Vossos mistérios todos,

Está além da capacidade humana admirar e perscrutar

Todas Vossas infinitas obras e as de Vossos filhos, meus irmãos;

Peço-vos ajudai-me a parar, a livrar-me de tudo,

A enxergar claramente Vossos sinais e a seguir os passos

designados para mim.

Amém.

07.01.07

36

A cidade ecoa pela noite escura,

Vapores perturbam a percepção,

Sais negros corróem a fruta madura,

Amarram-se as mãos da concentração.

Exaure a máquina do pensamento,

Esbarra a atenção no tempo do mundo,

A ação fragmenta momento em momento:

Geme à beira da estrada o moribundo,

Espíritos flutuam à superfície,

O muro parece quase palpável;

O homem navega no mar da estultície,

A calmaria desce ao vício sociável.

Solidão profunda da paz sagrada,

Pela estúrdia coletiva ofuscada

14.01.07

37

A propriedade—raiz dos males do homem,

Legitimação sórdida do apego,

Por que em jogos de guerra se consomem

Privando-se do natural sossego

Os espíritos caídos e perdidos—

Provém antes da sede por controle

Advinda da loucura dos sentidos;

Vil conceito extende-se a toda prole,

Sustenta firme o muro inabalável.

Preso pelas próprias criações mentais,

Crente no roubo ilusório execrável,

O ser humano desce sempre mais.

As fronteiras nacionais se desfazem

Para que os relógios mundiais se atrasem

25.03.07

38

Com todos esforços exauridos,

A esperança da manhã enfim é morta;

No Inferno caminho desiludido,

Silente adentro a tão temida porta.

Baixo a cabeça, aceito o destino,

Contra os demônios não mais luto em vão;

Pela madrugada dobram os sinos,

Sigo preso à roda da geração.

O vento sopra sobre os corpos frios

Ao longo da seca trilha de poeira,

Montanhas de vermes correm em rios,

Zumbis macilentos vagueiam pela eira.

Ira & orgulho ferem o fundo do peito,

O velho repousa triste em seu leito.

03.04.07

39

Poemas perdidos somem do outro lado,

Para sempre esquecidos nesta terra.

O homem segue o caminho amaldiçoado:

Através dos tempos por ilusões erra,

Obcecado por sua ansiedade, prende-se;

Deslumbrado pelas próprias criações,

À estreiteza da visão menor rende-se,

Evitando o espaço real nas ações.

O julgamento da dor & prazer

É o limite da percepção comum,

Observar sem reagir nem se envolver

Conduz ao sublime retorno até o um.

A sociedade repousa na treva,

A natureza a solidão releva.

25.04.07

40

Bela & pálida à luz do alvo luar

Ela passeia suave em silêncio triste;

Sozinha em seu preciso caminhar,

Tão linda em seu vestido de lemiste.

Na noite escura busca a perfeição,

Entre sonhos & espelhos se conhece,

Por ruas frias desertas leva a imensidão,

Percebe o desespero de uma prece.

Seu rosto sublime sorri brilhando,

Naquela alegria fugaz resignada,

Sua forma feita vai vaporizando,

Suas centelhas deixam a via estrelada.

Se houvesse maravilha maior na vida

A própria dor já não seria sentida.

13.05.07

41

Do outro lado do muro vagueia o poeta,

Buscando a si mesmo no labirinto.

Qual será o monstro postado na reta,

Que recusa a enxergar, sem fé, faminto?

A máscara é forjada dia após dia,

Até o momento em que será quebrada,

Revertendo o sentido da magia,

Revelando a forma mais pura abençoada.

A doença do planeta é a humanidade,

Deslumbrada com suas próprias criações,

Pelo ar propaga a radioatividade,

A realidade é apenas vibrações.

A ansiedade repousa no futuro,

O passado lamenta no escuro.

27.05.07

42

Rombo

Fixo

No Céu

No Universo

Princípio do Caos

Ponto de partida sublime

Do qual todas as frequências são manifestadas

Convergente e divergente entre o potencial subjacente e a energia perceptível

Portal original da vida e da morte e ponte transcendente da unidade à multiplicidade em ambas as direçõesMagnífico elo perfeito do eterno retorno fonte perene do infinito quádruplo: aquém além para dentro e para fora fim existencial último e primordial das percepções elétricasVazio de onde saem e em que cessam as sensações que ocultam a realidade meta-energética: chave fabulosa da inexprimível anulação abismal compreensiva total: poço inesgotável inexplicável ininteligível devorador inalocável em representações indicativas simbólicas

...

43

—Um ano-luz, por obséquio.

—Sinto, senhor, está em falta.

—Ora rapaz, não brinque comigo que não tenho tempo a perder.

—É verdade senhor, o último foi vendido ontem. Agora só na semana que vem.

—Mas que falta de sorte! Como voltarei para casa de mãos abanando?

—Os minutos estão a preço de ocasião, talvez quebrem o galho por ora.

—Hmm... e as horas, como estão?

—Um tantomagras, nesta safra.

—Pois então veja-me uma hora e três caixas de minutos. Pagarei com cheque pré-

datado.

—É pra já, senhor.

10.07.07/28.07.08

44

Bosta

junta

mosca.

45

Sujo a melancolia com palavras vãs;

O triste vazio da condição humana,

Eterno & impermanente, faz-se sentir mais uma vez.

Sopro-o, paro, torno-me máquina:

Abraço o espírito da época & danço na imaginação

Em meio à multidão universal solitária, desesperada, satisfeita, inconstante,

Quebro minha própria razão—inútil empecilho—

E detenho-me nas barreiras individuais da presença,

Ferido a cada encontro (a sobrevivência há que fortalecer).

Mas a noite escura é infinita, ou até a morte,

Nesta existência não compreenderei, apenas agirei:

Que as gerações futuras tratem de limpar as cinzas da civilização,

Ou acabem logo de se suicidar: mas que deixem os satélites fotográficos ligados

Para registrar o crescimento vegetal sobre as ruínas & as novas espécies animais.

Não! Explodir o planeta desde o núcleo, espetáculo para o sistema solar:

O serviço há que ser bem-feito—profissional.

12.08.07

46

Amálgama

Permaneço no Inferno por tempo indeterminado,

Afundo na lama da depressão, desanimado,

Arrasto-me penosamente pelos dias sombrios,

Trabalho sozinho na caverna dos ventos frios;

Abraço a tarefa, dedico-me à lapidação,

Busco humildade: tola esperança de redenção.

Minh’alma se perde no desalento do deserto,

O destino desaparece, nebuloso e incerto.

Retiro-me do patético drama enfraquecido,

Recolho-me no silêncio mortal, ensandecido;

Vasculho o labirinto de espelhos de mãos atadas,

Das profundezas do desespero ecoam as risadas.

Vultos noturnos acalentam gemidos, lamentos,

Agonia e êxtase torturam os aflitos sedentos,

Espectros e carcaças gritam suas dores cruciantes:

Carnes destroçadas vivas por unhas lancinantes.

O animal preso chora,

A vontade o devora,

Eternidade é agora;

O desejo é divino,

Retumbante soa o sino,

Perfeito é o desatino.

24.08.07

47

Peça em uma cena

Entra correndo pela esquerda um vulto gritando. Sai

pela direita. Entra correndo pela direita um vulto gritando. Sai

pela esquerda. O fluxo aumenta e mais e mais vultos entram e

saem gritando e berrando. Alguns carregam baldes de madeira

cheios de tinta negra que jogam uns nos outros. Entre os gritos

de desespero e loucura, contituídos de vogais ou sílabas simples,

começam-se a distinguir frases:

—O Império caiu!

—Não há mais Império!

—A liberdade real é somente das próprias paixões!

—Diálogos são ilusões!

—Interlocutores não passam de faces diversas da mesma e

única coisa!

—Vida longa ao Imperador do Caos!

Alguns atores detêm-se no centro para pronunciar as frases e

continuam a correr para o outro lado. O vaivém e a gritaria são

constantes. Alguns estão encharcados de tinta negra até o rosto.

Usam togas e mantos brancos, negros e marrons.

— Tremam de medo entre as dobras do cérebro!

— O livre-arbítrio escolhe o destino!

—A individualidade é a radicalização das barreiras!

—Mas quem és tu? (param dois, um de preto e um de branco, a

dialogar)

—Teu destruidor e redentor.

—Não passas de uma projeção de minha mente.

—Engana-te, somos ambos manifestações da mente universal

(sai o de branco, para outro, de marrom, em seu lugar)

—O que buscas? (pergunta o que chegou)

—Nada: apenas vivo o mistério.

48

Gritos cada vez mais fortes e crescentes, até ficarem

insuportáveis. Cessam.

—O oceano do acaso é navegado pelo homem científico.

—A luz da razão guia a humanidade?

—Para o buraco dos limites e das medidas.

—Fecha os olhos.

—Esqueça.

—O que?

—Tu me diz.

—Se dissesse, saberia.

—Pois o homem raciocina para aprimorar seu conforto e

condições de sobrevivência?

Gritos recomeçam.

—Saliva é desespero da fome infinita!

Fecham-se as cortinas em meio aos berros.

49

Manhã cinza, melancolia abafada,

Tempo de silicone torturante;

Tristeza crônica, petrificada,

Violenta, lodosa, embalsamante.

Solidão mortal, palpável, escura;

Prisão de deveres, a sociedade,

Jogo maldito; desolação pura

Da enclausurada humana liberdade.

Sensação sombria, lúgubre pesar,

Modorra profunda, plúmbica, grave,

Vácuo oculto aquoso do não-lugar;

Imobilidade boçal no entrave.

Mormaço fresco, suave, vaporoso,

Rosto sujo, cansado, desgostoso.

15.10.07

50

Para o pensamento a distância é nada

Mas se os passos na terra são contados

A Mente, percebida e contemplada,

Ofusca tais conceitos enraizados --

Sombras referenciais da humanidade

Emaranhada em criações culturais.

Floresce então a aurora da eternidade

Por entre os ciclos dos dos ritmos primais,

Permeando assim os átomos invisíveis

E toda matéria tangível bruta,

Reletindo em infinitos factíveis

O caos sublime que tudo perscruta.

Ondas viscerais se espalham pelo éter

Um coração ecoa, vacilante em fé.

10.12.07

51

A certeza da decisão ilumina

A noite escura em sua hora mais profunda,

A vontade então constrói e forma a sina,

A verdade de vida o ser inunda,

E toda pequenez é ultrapassada.

Falta pouco para o degrau seguinte,

E a senda entra em sua parte mais cerrada:

Agora a prova final é o requinte,

A dominação cosmopolitana ---

Um impacto na mente coletiva

Da pobre selva de concreto urbana,

Cega e presa na razão destrutiva.

O jogo humano já não tem mais graça,

O senso comum também já não ameaça.

07.02.08

52

Peregrinação mística

No auge da era científica

Aurora do despertar;

Pelos caminhos tecnológicos

O presente e a plenitude

Borbulham nas células

Entre terra e céu

Seguindo o respirar.

10.03.08

53

Animais correm sobre o asfalto quente,

Suando enquanto passam luzes elétricas,

Todo peso da vida a carne sente

Do cérebro preso em convenções métricas.

Sombras competem pelo chão arredio,

Mato e gordura mesclam no vapor

Em luto do sublime desafio

Que se esvai no coração do calor.

O encanto das palavras é pequeno,

O silêncio tudo preenche e contém,

Qualquer pensamento é o grande veneno,

A cessão é o movimento pr’o além.

Ansiedade, o motor da cultura,

A humanidade na noite perdura.

10.03.08

54

Abandono a terra e os laços da alma,

Deixo o abismo me engolir.

A arte do suicida é sua ausência,

Mais forte que qualquer presença.

O sol irradia pela manhã,

Livre para abraçar o futuro:

Sentado na cadeira de balanço,

O louco segue seu caminho até o mundo.

O rei declara a anarquia

E ordena sua própria decapitação.

10.03.08

55

E o tempo passa e o trabalho consome,

Embota, esgota, derrota e ainda

A aurora não raia, apesar da fome,

E a noite escura não mostra que finda.

A lentidão estática da verdade

Desespera o homem moderno, veloz,

Fixado na cultura da ansiedade,

Do consumo, e da eficiência atroz:

Enquanto polui e destrói corpo e mente,

Condena a solidão e seu próprio ser,

E no frenesi perde-se o presente,

A vida, a razão e o maior poder.

O labirinto recusa-se a ver:

A saída, então, prefere esquecer!

29.06.08

56

O viajante olha imóvel sem pestanejar,

No deserto, delirando, a areia brilhar.

Hesita, receoso, temendo por sua vida,

Compreende, mas vacila à estrada tão comprida.

Talvez não haja mais difícil tarefa humana

Que atravessar o muro e a percepção mundana:

Faina constante ininterrupta nas vias certas,

Tanto nos sonhos quanto nas horas despertas,

Dissipando, atemporal, cada camada,

Até o mergulho completo eterno no nada.

Caminho obscuro, mas uma vez iniciado

Sabe-se não haver volta ou escolha para o fado:

Ou desenvolver o potencial verdadeiro,

Ou permanecer estagnado no atoleiro.

A natureza animal e racional pesa,

A consciência sutil tênue a trilha retesa.

30.06.08

57

A unidade de corpo e mente se afigura em momentos,

Poucos, esparsos, curtos, fugazes, mínimos, enfim;

Todavia pontuam e iluminam o lodo modorrento

Da ignorância, miséria e animosidade marginal.

Sobrevivo, assim, desperdiçando meu potencial

Pelas brechas insidiosas da estúpida sociedade,

Procurando o equilíbrio perfeito entre o mundo e a verdade.

Vejo as pessoas perdidas, agitadas, cegas, debatendo-se,

Só tentando preencher seu vazio, devorando, em vão,

Sensação, poesia, música, comida, televisão,

Falando, falando, falando, ininterruptamente,

Ancoradas na auto-imagem de horizonte limitado,

Mascarando e se negando a encarar seu desespero.

Porém, ainda sou demais sensível às alheias influências,

Arrasto-me na noite escura; caio com larga frequência.

28.07.08