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O Negro nas capas da Folha de S.Paulo
Rodrigo Portari1
Resumo
O presente artigo faz uma análise de como o jornal Folha de S.Paulo utiliza a imagem de negros em suas primeiras páginas. Selecionando capas entre os meses de novembro de 2006 e março de 2007, é possível observar que as imagens de negros divulgadas nas primeiras páginas do jornal vêm associadas a matérias relacionadas com tragédias ou violência, criando assim um perigoso elo entre etnia e fatos considerados negativos. Além disso, é apontado que, salvo matérias de tragédias, os negros voltam a figurar na capa da Folha de S. Paulo em matérias associadas ao esporte. Assim, indicamos uma tendência que pode ou não ser comprovada em um estudo mais aprofundado do caso.
Palavras-chave: mídia, tragédia, negros, cultura, esporte.
Segundo o dicionário, a palavra diversidade significa “variedade; diferença;
dessemelhança”. Discutir a diversidade na mídia é mostrar como essas diferenças são
tratadas pelos órgãos de comunicação em massa, principalmente quando se fala em
desigualdade social. O jornalismo dentro da mídia tem a obrigação de ser fiel ao lema “a
verdade, nada mais do que a verdade”. Porém, o recepto muitas vezes esquece que toda
forma de comunicação trás consigo a posição de seu emissor, mesmo que seja
implicitamente.
No caso específico do jornal Folha de S. Paulo, considerado o maior do país,
que alcança todas as regiões do Brasil e, ainda por cima, dono de uma grande
credibilidade, podemos perceber que o negro, em suas primeiras páginas, normalmente
vem associado a notícias sobre tragédias. Desde um alagamento a um protesto, ou
mesmo um crime de grande repercussão, o negro, infelizmente, tem sido associado a
notícias ruins nas capas da Folha de S. Paulo.
Sendo um jornal voltado para classes econômicas mais altas, chamadas de
classes A e B, tem-se um certo “pré” conceito em relação aos negros brasileiros em suas
edições. Salvo quando estão associados ao esporte – seja o futebol, o atletismo ou
ginástica olímpica – a aparição de negros em suas capas se dá seguido de uma
manchete, legenda ou chamada que é associada a fatos negativos.
Este fato foi notado durante o levantamento do corpus do projeto de mestrado
que desenvolvido atualmente. No estudo, voltamo-nos a matérias relacionadas
principalmente com a violência. Ao selecionar algumas primeiras páginas para o ponto
de partida do projeto, foi possível identificar que, ao longo de várias edições que
circularam entre os meses de dezembro de 2006 e março de 2007.
Observe o caso da foto estampada na capa da edição do dia 19 de dezembro de
2006.
A matéria principal do jornal é um conflito entre estudantes que tentavam
invadir a Prefeitura e policiais, que agiram para evitar o tumulto. A fotografia está
estrategicamente situada à direita da página. Apesar de não ser considerada uma área
“nobre” da primeira página – levando em consideração o ponto de entrada na página
como sendo o canto superior esquerdo (BAHIA, 1990) – os personagens centrais da
imagem (que são negros) tentam fugir da ação policial (no caso, todos de cor clara). A
abertura do texto-legenda, escrita em vermelho (cor tradicionalmente associada à
violência), diz: “Confronto”. Em seguida, completa: “Policiais militares usam spray
contra cerca de 50 estudantes que tentavam invadir a Prefeitura de São Paulo para
protestar contra aumento nas tarifas de transporte; ao fundo, membros da guarda civil
metropolitana com armas em punho”. Pode-se alegar que a foto selecionada para
publicação se deu devido à quantidade de informações sobre o fato (o que realmente
procederia). Mas resta saber o porquê de exatamente a foto com personagens negros
fugindo da opressão policial (representada por homens de cor clara) ter ganhado um
destaque de quase meia página nesta edição.
A binaridade: “claro x escuro” está culturalmente associada a “positivo x
negativo”, conforme tratam os semióticos da cultura. Par eles, na cultura humana, o
claro está associado a raízes positivas, enquanto o escuro, às negativas.. Traduzir esses
valores culturais para questões étnicas podem trazer um grande problema de preconceito
e racismo. Mesmo essa não sendo a intenção primeira das capas do jornal, indiretamente
essa situação acaba sendo identificada ao longo de suas edições.
A primeira página de um jornal faz parte do espaço urbano da cidade. Dividindo
as atenções entre prédios, carros, outdoors e outros elementos que pululam a visão das
pessoas, a capa da publicação impressa ajuda no reconhecimento do território onde
estamos. Ao mesmo tempo, a capa – considerada embalagem dos impressos – também é
composta fundamentalmente para vender. Para isso, precisa seduzir o público alvo e,
mais ainda, estabelecer um contrato de comunicação onde o leitor aceita o que lhe é
proposto e adquire o jornal. Vários elementos entram nessa “negociação”, sendo verbais
(manchetes, chamadas, legendas, texto-legenda) ou não-verbais (diagramação, fotos,
cores). Nos jornais, a confecção da primeira página e das notícias leva em consideração
a figura do leitor. O jornalista faz o recorte dos fatos de acordo com suas convicções e,
assim, vai manipulando a maneira como o mundo é retratado na publicação. Atribuir o
valor de notícia a um determinado acontecimento é função de equipes em jornais de
grande porte, tal como a Folha de S. Paulo. Assim, tudo aquilo que é considerado de
interesse do leitor, ganha destaque, principalmente, na capa. É através desta “empatia”
com o público que se consegue vender a publicação, tal como afirma Lopes:
Os “fatos” noticiados são selecionados a partir do conjunto de crenças e desejos que o jornalista representa. Na verdade, não se trata de um trabalho individual; como se sabe, o jornal-empresa moderno trabalha com equipes hierarquizadas que resselecionam e reconstroem (sic) o produto do trabalho jornalístico, decidindo o quê e como deve ser noticiado. Esse trabalho [...] consiste em uma construção social (material e simbólica), em que os emissores terão de considerar os receptores, sob pena de produzirem notícias sem qualquer anuência do público. (Lopes, 2002, p. 117)
Ainda devemos levar em conta que, como aponta Charaudeau, para transformar
um acontecimento2 em notícia são levados em consideração, principalmente, dois
critérios: um interno e outro externo. Desta forma, é feito um recorte do espaço público
a fim de dar ao leitor aquilo que ele “quer” ver. Para ele, os “critérios internos [...]
dependem da maneira pela qual as mídias constroem representações sobre o que pode
interessar ou emocionar o público”. (CHARAUDEAU, 2006, p. 138).
Já os critérios externos apontados pelo autor seriam aqueles que figuram mais
distantes do leitor e, portanto, interessaria menos ao público-alvo do jornal. E cada
notícia desta, ao ser selecionada para figurar na primeira página, é analisada
criteriosamente. Dependendo de seu grau de importância, ganhará espaços específicos
na localização (primeira página ou página interna? No alto ou no fim da página?),
tamanho e fonte utilizada em sua manchete, entre outros detalhes técnicos. Tudo isso, se
deve para criar uma ponte direta entre emissor e receptor, a fimde garantir a vendagem
da publicação. Para isso, é necessária uma aceitação do contrato de comunicação sem
qualquer tipo de ressalva.
O contrato de comunicação entre a Folha de S.Paulo e seus leitores, como
dissemos anteriormente, utiliza os negros para vender más-notícias, pelo menos nas
capas selecionadas para este trabalho. A partir daí, mesmo que inconscientemente, cria-
se uma associação entre fatos negativos e os descendentes afro-brasileiros. Corre-se o
risco até mesmo de que uma intolerância apareça deste constante uso de personagens
negros neste tipo de manchete, reforçando assim a questão do escuro estar associado
com valores negativos na nossa cultura.
Outro exemplo de como a Folha de S.Paulo se utiliza deste artifício com
freqüência nas suas capas ocorreu em 6 de janeiro. No caso, uma enchente no Rio de
Janeiro deixou centenas de famílias desabrigadas. Apesar de milhares de pessoas se
envolverem no fato, a foto de capa preferiu trazer dois negros, de costas, enfrentando a
água para levar uma cesta básica que, provavelmente, foi fruto de uma doação de
entidades de caridade. É difícil imaginar que numa comunidade onde reside um grande
número de pessoas haja somente negros que rendessem uma boa imagem da tragédia.
A chamada mais uma vez reforça o tom negativo da situação: “Chuvas matam
28 no Rio e SP”. O “chapéu” da manchete acrescenta: “Região serrana fluminense é a
mais atingida no Estado, que tem mais de 12 mil desalojados”. Apesar dos aspectos
negativos ao envolver somente negros na manchete, pode-se também levar o leitor a
uma reflexão sobre a desigualdade social. No Brasil, infelizmente, a grande massa mais
carente da é composta por afro-descendentes.
Talvez esta seja uma explicação para a constante recorrência dos negros
associado à notícias trágicas, que muitas vezes acontecem nas periferias ou em locais
freqüentados por pessoas de classes sociais mais baixas. Podemos ilustrar essa posição
editorial da Folha de S.Paulo em suas imagens de primeira página com outros
exemplos, como vemos a seguir:
Folha de S.Paulo, 6 de março de 2007
Folha de S. Paulo, 7 de março de 2007
Em todos os casos, os negros estão sendo associados à matérias envolvendo
tragédias. Em especial na edição de 7 de março de 2007, foi utilizada a batida policial
feita em um jovem de cor negra com os seguintes dizeres no texto-legenda: “Guerra
Urbana: Policiais revistam morador do complexo do Alemão (zona norte do Rio)
durante operação no loca; quatro supostos traficantes e um policial civil morreram na
ação e pelo menos nove pessoas se feriram, das quais quatro atingidas por balas
perdidas”. Apesar de não trazer informações se a pessoa que está sendo revistada pela
Polícia Militar é ou não criminoso, sua imagem acabou sendo repercutida por todo o
país. A posição do negro, mais uma vez, associada a um fato negativo (a morte de
quatro traficantes e a nove pessoas feridas). Por outro lado, a mesma imagem mostra
também a maneira ríspida de como é tratado um morador de uma favela, no caso, no
complexo do Alemão. Assim, neste caso especificamente, o negro também passa a ser
uma vítima da ação de policiais. O texto-legenda não informa se a pessoa abordada é ou
não criminosa e, por isso, sua posição de incapacidade de se defender diante de uma
arma encostada em seu queixo enquanto outro policial, aparentemente, cheira seus
dedos (esse tipo de atitude é tomada por policiais militares para identificar se a pessoa é
usuária de drogas ou não, uma vez que, dependendo do entorpecente – como maconha
ou “crack”- vestígios são encontrados nas pontas dos dedos. Entre estes, está o cheiro
característico de cada droga).
Mesmo envolvendo tantos afro-descendentes em matérias que podemos
considerar negativas, nem sempre o jornal tem esse posicionamento. Talvez uma
maneira de compensar esse hábito tomado por editores está em associar os negros a
fatos que mexem com a emoção da população. Nas primeiras páginas da Folha de
S.Paulo, os negros tendem a ganhar espaço positivo quando se relacionam ao esporte.
Nesta área, os grandes “craques”, geralmente, são negros. Pelé (no futebol), Michael
Jordan (no basquete norte-americano), Daiane dos Santos (ginástica olímpica) ou o
norte-americano Mike Tyson (boxe) são negros que se destacam e mexem com as
“emoções” de seus fãs. Sendo o futebol considerado a “paixão nacional” do povo
brasileiro, normalmente nos dias que sucedem às competições esportivas, como rodadas
dos campeonatos de futebol ou disputas de provas de atletismo, por exemplo, têm-se
negros comemorando vitórias nas primeiras páginas da Folha de S.Paulo, como
podemos ver na imagem de Ronaldinho Gaúcho, publicada em 15 de dezembro:
Folha de S. Paulo, 15 de dezembro de2006
Outro exemplo de como o esporte e o negro estão associados pode ser
encontrado na capa do dia 18 de dezembro, onde quase toda primeira página foi
dedicada a vitórias esportivas onde figuram negros em destaque:
Apesar de termos uma página inteira dedicada ao esporte, onde as figuras
centrais das imagens são negras, esse também não é um fato que se repete
corriqueiramente nas páginas deste jornal impresso.
Uma das maneiras de evitar que essa associação: “negro x tragédia” na capa do
jornal mais lido do país é trabalhar a educação o olhar para leitura crítica dos códigos
apresentados. Diferenças raciais não devem, em hipótese alguma, serem levadas em
consideração em qualquer caso. E o trabalho de conscientização da sociedade deve ser
levado a sério, a fim de se evitar, como dissemos anteriormente, um problema étnico
num país onde sua grande massa é descendente de africanos, fruto do tráfico negreiro
ocorrido na época da colonização brasileira. A educação entra como fator preponderante
nesse quesito. Se os jovens forem orientados de forma a relevarem as influências
racistas que possam ter – seja em casa, no trabalho ou ainda mesmo através da mídia – a
associação entre “problemas” e a cor da pele das pessoas poderá ser minimizada.
Este treino do olhar dos receptores não acontecerá de uma hora para outra. É
necessário que, para isso, haja um amplo trabalho de conscientização, que pode ter
como carro-chefe a própria mídia. Esta seria uma forma de atingir uma grande
quantidade de pessoas ao mesmo tempo. Mesmo assim, não se deve limitar ou mesmo
responsabilizar a mídia para treinar o olho crítico dos receptores. É necessário também
que estas questões estejam presentes nas discussões do cotidiano da população. Seja na
escola, nas universidades ou mesmo nas conversas entre amigos nos finais de semana.
Não pretendemos, aqui, neste artigo, esgotar o assunto sobre a presença dos
negros nas capas da Folha de S. Paulo. Esta é uma questão que merece um estudo mais
aprofundado e mais atento, a fim de se estabelecer de fato a maneira como o negro é
tratado pelas capas desta publicação. A amostragem utilizada por nós selecionou apenas
uma pequena fatia do ano a fim de mostrar que, pelo menos, entre os meses de
novembro de 2006 e março de 2007, a publicação, de certa forma, atrelou a imagem de
negros ao noticiário de tragédias.
Discutir o negro na mídia não é assunto inédito no país. Temos várias
publicações, dissertações e teses que apontam os problemas, preconceitos e resistências
encontradas à figura dos negros dentro do universo midiático brasileiro. Este pequeno
estudo de caso pode ser apenas um ponto de partida para observar mais atentamente a
forma como a Folha de S.Paulo, o jornal de maior circulação do país e que leva seus
exemplares até para o exterior, costuma lidar com os afro-descendentes.
Nessa mesma linha, as questões étnicas relativas à binaridade “claro” e “escuro”,
que está associada à polaridade “positivo” e “negativo”, respectivamente, já estão sendo
profundamente estudadas em trabalho do professor Dr. Luciano Guimarães, da Unesp
de Bauru. Este aprofundamento de como não se deve atribuir valores à questões étnicas
deverá ser publicado futuramente.
Apesar de apontar, neste estudo uma das tendências seguidas pelo corpus. que
vale ressaltar, é dirigido para as classes “A” e “B”, principalmente – é arriscado e
imprudente afirmamos com convicção que há preconceito ou “pré-conceitos” em
relação aos negros em suas abordagens sobre tragédias – incluímos aqui desde
enchentes a deslizamentos, acidentes, batidas policiais, crimes, e outros fatos do gênero.
Para se ter uma certeza científica deve-se ampliar este estudo, aumentando o período
selecionado para o estudo para se ter uma visão mais meticulosa do assunto. Desta
forma, também se pode perguntar se esta relação entre negro e as tragédias faz parte da
linha editorial, é uma tendência que começa a ser seguida ou se simplesmente se deu por
um pequeno período dentro da história da publicação. Porém, sugerimos que um estudo
neste sentido seja levado de forma mais aprofundada, a fim de se alertar a sociedade em
geral quanto àquilo que se está sendo vendido no jornalismo impresso.
Referências bibliográficas
BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: as técnicas do jornalismo. São Paulo: Ática, 1990. CHAREAUDAU, Patrick. O Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006. FERREIRA JUNIOR, José. Capas de Jornal: A primeira imagem e o espaço gráfico visual. São Paulo: Editora Senac, 2003. LOPES, Luís Carlos. O culto às mídias: interpretação, cultura e contratos. São Carlos: Editora Ufscar, 2004. MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda. Jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Summus, 1988. 1Jornalista, com especialização em Comunicação Multimídia, mestrando do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp-Bauru. 2 Para Charaudeau, o acontecimento é entendido como algo inesperado, que não podia ser previsto, tal como acidentes ou catástrofes, que são chamados por ele de “acontecimento-acidente”. (CHARAUDEAU, 2006, p. 138).