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FICHA TÉCNICA Título: O Nome da Morte Autor: Klester Cavalcanti Copyright © Klester Cavalcanti, 2006 Edição portuguesa publicada por acordo com The Ella Sher Literary Agency e Villas-Boas & Moss Literary Agency & Consultancy Versão portuguesa © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Adaptação do texto à versão portuguesa: Maria das Mercês Peixoto Revisão: Caligrama — Produção Editorial/Editorial Presença Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, agosto, 2018 Depósito legal n. o 443 289/18 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

O Nome da Morte Autor: Klester Cavalcanti Como eu quase ia dizendo, antes de ser interrompido por mim mesmo: Klester faz parte da matilha de fuçadores de boas histórias e belos personagens

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FICHA TÉCNICA

Título: O Nome da MorteAutor: Klester CavalcantiCopyright © Klester Cavalcanti, 2006Edição portuguesa publicada por acordo com The Ella Sher Literary Agency e Villas-Boas & Moss Literary Agency & ConsultancyVersão portuguesa © Editorial Presença, Lisboa, 2018Adaptação do texto à versão portuguesa: Maria das Mercês PeixotoRevisão: Caligrama — Produção Editorial/Editorial PresençaCapa: Sofia Ramos/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, agosto, 2018Depósito legal n.o 443 289/18

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 -132 [email protected]

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SUMÁRIO

Prefácio .................................................................................... 13

Nota do Autor ......................................................................... 16

O primeiro serviço ................................................................... 21

A caminho da Guerrilha do Araguaia ....................................... 41

A captura de José Genoino ....................................................... 57

A segunda morte ...................................................................... 91

Génese de pistoleiro ................................................................. 118

487 mortes catalogadas ............................................................ 140

O descanso do matador ............................................................ 173

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PREFÁCIO

UM LIBELO CONTRA A SÍNDROME DA FRIGIDEZ EDITORIAL (SFE)

Geneton Moraes Neto*

Qualquer médico recém-formado é capaz de dar o diagnóstico: o primeiro sintoma é uma leve taquicardia. O segundo é um reflexo muscular — quase involuntário — que faz as sobrance-lhas ficarem parcialmente arqueadas. O terceiro é o movimento compulsivo das mãos em busca de uma caneta ou um gravador. Pronto. Não há margem de erro: o ser bípede que exibe esses sin-tomas quando se encontra com um personagem interessante é um repórter de verdade.

Se tiver a mania brasileira de se autoexaminar, o jornalista Kles-ter Cavalcanti deve ter notado tais sintomas no próprio corpo no momento em que descobriu o personagem principal deste livro. Porque Klester é um repórter de verdade, desde sempre (aviso aos navegantes: o homem que matou centenas de pessoas é uma dessas figuras inacreditáveis que fazem do Brasil um colorido catálogo de espantos. Ah, a imbatível vocação brasileira para produzir pontos de exclamação em série...).

* Geneton Moraes Neto é jornalista e repórter desde 1972. Autor de livros--reportagem como Dossiê Brasília: os segredos dos presidentes e Dossiê Moscou, sobre a primeira eleição presidencial realizada na Rússia depois do fim da União Soviética.

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Como eu quase ia dizendo, antes de ser interrompido por mim mesmo: Klester faz parte da matilha de fuçadores de boas histórias e belos personagens. Matilha? Sim: repórteres podem ser chamados de matilha, sem ofensa, porque são (ou deveriam ser) como cães que passam o tempo todo fuçando o terreno em busca de uma caça suculenta, geralmente escondida sob a superfície visível a olho nu. O resultado da investida: a descoberta de histórias e per-sonagens capazes de saciar a fome de novidades que move e anima as redações.

O matador que atraiu as atenções do repórter Klester é um exemplo de uma caçada bem-sucedida. Depois de seguir uma pista, obtida durante a apuração de outra reportagem, o jornalista loca-lizou o personagem agora retratado em livro. Mas, antes de tornar pública a saga sangrenta desse brasileiro, Klester teve de se dedicar a um trabalho de convencimento que se arrastou por sete anos. Reportagem é paciência.

Jornalistas que, ao contrário de Klester Cavalcanti, não apresen-tam as reações fisiológicas típicas de um repórter podem mudar de atividade. Não farão falta à profissão, porque devem ter sido con-taminados há tempos pela Síndrome da Frigidez Editorial (SFE).

O que diabos é SFE? Pretendo, em breve, enviar um ofício à Organização Mundial de Saúde para anunciar a descoberta dessa desgraça: a SFE é, comprovadamente, provocada por um vírus que invade o sistema nervoso de jornalistas entediados, especialistas na triste tarefa de extinguir o fogo dos repórteres. É gente que, em geral, prefere as delícias do ar condicionado. Repórter que é repórter faz a opção preferencial pela rua.

O que fazem os jornalistas que se deixam atacar pelo vírus da SFE? De tanto lidar com o extraordinário, perdem a capacidade de se comover diante de uma boa história ou de dar um imaginário soco de vibração no ar quando o repórter chega à redação com uma novidade debaixo do braço. Terminam jogando no lixo histórias e personagens que, com toda certeza, o público gostaria de conhecer. Mas não conhece. Já se disse que o melhor jornal é aquele que vai para a lata de lixo. Verdade. A culpa é da Síndrome da Frigidez Editorial.

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O antídoto para este mal é a adrenalina que faz um repórter como Klester embrenhar-se no coração do Brasil em busca de his-tórias como a deste brasileiro que exercita o dedo indicador no gati-lho de uma arma. Klester já é diplomado em Brasil: os dois anos em que atuou como correspondente da revista Veja na Ama zónia valeram como um curso intensivo de situações extraordinárias.

Aqui, ele não se limita a reproduzir as palavras do personagem: a partir do que ouviu — e de diversos documentos que conseguiu amealhar —, faz um trabalho de reconstituição de cenas, diálogos, paisagens, gestos, sensações, num dedicado exercício de arqueo-logia jornalística.

Espantos de todos os calibres povoam as páginas deste livro. Quer saber qual pode ser o preço de uma vida? Algo como 30 qui-los de arroz, 20 de feijão, 10 de café, 10 de açúcar, 5 de queijo, 10 latas de óleo e 12 garrafas de cachaça.

Quer saber quais são os mandamentos do matador? O primeiro é: não matar uma mulher grávida. O segundo: não roubar bens da vítima. O terceiro: não matar outros pistoleiros. O quarto: não deixar o pagamento para depois. O quinto: não matar a vítima enquanto ela estiver dormindo.

Não quero estragar as surpresas. Paro por aqui. Passo a palavra ao narrador. Histórias como esta — que Klester Cavalcanti recons-titui — fazem a alegria íntima dos repórteres. São dramáticas? São. São violentas? São. São chocantes? São. O País Tropical é assim, crianças. O chamado «Brasil profundo» não é para amadores. Mas é prato cheio para repórteres.

Quer ver?

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O PRIMEIRO SERVIÇO

Já havia cerca de três horas, Júlio Santana estava à espreita do pescador Antônio Martins, em plena selva amazónica, na divisa do Maranhão com o norte de Goiás — atual Estado do Tocantins, fundado em outubro de 1988. O calor era intenso. Mas Júlio sentia um frio estranho e um embrulho no estômago. Encolhido entre árvores seculares, algumas com mais de 40 metros de altura, ele mantinha o pescador sob a mira de sua espingarda. Da mata, Júlio podia ver Antônio sentado na sua canoa, que flutuava num braço do rio Tocantins. Sabia perfeitamente o que fazer. «É só dar um balaço no coração. E fim de papo», pensava. Para um garoto que acabara de completar 17 anos e que nunca tinha dado um tiro numa pessoa, no entanto, a tarefa não parecia tão simples.

Com 1,76 m de altura e 65 quilos, Júlio era magro, tinha o rosto ainda imberbe, nariz largo, lábios finos e cabelos crespos, escuros. A pele morena realçava os olhos castanho -claros. Naquela tarde de 7 de agosto de 1971, ele tentava fazer o que seu tio, o policial militar Cícero Santana, lhe ordenara na noite anterior: «Mire no coração e imagine que você vai atirar num animal, numa caça.» Mas atirar num homem causava incómoda estranheza ao rapaz. Não era como matar pacas, queixadas, macacos e veados, como Júlio estava acos-tumado a fazer para ter comida em casa. Perturbado diante daquela insólita situação, sentou -se no solo ainda húmido da chuva da noite anterior. Colocou a espingarda entre as pernas e, com as costas apoia-das numa castanheira, pensou em como chegara até ali.

Tudo havia começado dois dias antes. Por volta das 5 horas da tarde, Júlio retornava da mata. Depois de quase quatro horas de

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caçada, voltava para casa trazendo, nos ombros, um jovem veado. A carne do animal serviria para alimentar a família durante pelo menos uma semana. O rapaz estava orgulhoso. Tinha matado o bicho com um único tiro, certeiro, na fronte. Júlio morava com os pais — seu Jorge, 43 anos, e dona Marina, 38 — e os dois irmãos mais novos — Pedro, 14, e Paulo, 11. A família vivia numa casa de madeira de uma comunidade ribeirinha, fincada às margens do rio Tocantins, no município de Porto Franco, sudoeste do Mara-nhão. No início dos anos 1970, a região era totalmente isolada e cercada de florestas virgens, e Porto Franco tinha cerca de 2 mil habitantes — hoje, o município tem 18 mil moradores.

A casa não tinha divisões internas. O fogão a lenha ficava à frente e à esquerda de quem entrava. Uma tábua atravessada no chão separava o fogão e os utensílios da cozinha — três panelas, alguns talheres, dois facões e cinco copos de vidro — de um móvel de madeira cons-truído por seu Jorge e que fazia as vezes de guarda -roupa. Não havia mesa nem cadeiras. Energia elétrica ainda não chegara àquelas bandas — até hoje, muitas comunidades da região não têm acesso à energia. Havia cinco redes, que estavam sempre armadas e nas quais dormiam os integrantes da família. Júlio tinha, ainda, um irmão mais velho, Joaquim, 21, que havia deixado a casa dos pais aos 18 anos e viajado para São Luís, a capital maranhense, onde acreditava conseguir uma vida melhor. A família jamais voltou a ter notícias do primogénito.

Antes mesmo de chegar a casa na volta da caçada, Júlio notou, amarrada a um tronco, a voadeira — canoa de alumínio, movida a motor — do tio Cícero. À época com 31 anos, Cícero Santana havia crescido naquela mesma região. Ao completar 15 anos, foi tentar a vida em Imperatriz, também no Maranhão. Certo dia, apareceu em Porto Franco vestido de soldado e dizendo que tinha entrado para a Polícia Militar. Era o orgulho da família. Cícero adorava caçar, pescar, andar pela mata. Foi com ele que Júlio apren-deu a atirar. Aos 11 anos, o garoto já conseguia acertar um animal «do outro lado do rio», a uma distância de cerca de 100 metros. As muitas horas que passavam juntos percorrendo a selva, trei-nando tiro, caçando, pescando e nadando pelas águas barrentas do rio Tocantins produziram uma amizade forte e admirada por todos.

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Ao ver a voadeira do tio, Júlio sacudiu o veado nos ombros e apressou o passo. Fazia duas semanas que Cícero não visitava a família. Era comum, ao menos uma vez por mês, o policial militar passar alguns dias descansando na casa de Júlio. Antes de entrar, o rapaz largou o animal na porta. Correu em direção ao tio, orgulhoso.

— Tio, vem ver o bicho que eu peguei. É um veado novinho. Matei com um balaço na cabeça, como o senhor me ensinou. Deve ter uma carne deliciosa — disse Júlio.

— Muito bem, rapaz — respondeu Cícero, sorrindo para o irmão, seu Jorge. — Vamos ver esse bicho — disse ele, abraçando o sobrinho.

Naquela noite, a lua cheia deixava a floresta totalmente ilumi-nada. A luz da lua refletia -se no rio Tocantins, dando a impressão de estar amanhecendo. Durante o jantar — peixe frito, com arroz e farinha de mandioca —, Cícero comentou a respeito da pre-sença de militares de São Paulo, de Brasília e do Pará na região que vai de Porto Franco a Marabá, no sudeste do Pará. As pequenas cidades da área estavam repletas de homens do Exército.

— Eles dizem que estão à procura dos comunistas que estão escondidos nas matas do rio Araguaia e por aqui também — disse o policial militar.

— Por aqui, não se fala em outra coisa — comentou seu Jorge, o pai de Júlio. Já o garoto não demonstrava a menor preocupação em entender o assunto em discussão.

— Os homens do Exército falam que esses comunistas querem desmantelar o Brasil e que a gente não pode deixar isso aconte-cer. O Exército está até convocando o povo da região para ajudar nessa guerra.

— E o povo vai ajudar como, Cícero? — perguntou dona Marina ao cunhado.

— Eu tenho um amigo que é delegado de Xambioá (cidade do norte do Tocantins, às margens do rio Araguaia). Ele disse que o Exército precisa de gente que conheça muito bem as matas dessa região, para servir de guia nas operações na selva, e de gente que saiba atirar, para ajudar na caça aos comunistas — respondeu Cícero.

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Ao ouvir a resposta do tio, Júlio, que até então não se interessara pela conversa, manifestou -se:

— Eu sei atirar e conheço a selva todinha. O senhor me leva para esse trabalho, tio? — pediu o rapaz.

— Para de falar besteira, menino! Está pensando que isso é brincadeira? — disse dona Marina, de forma severa, repreendendo o filho.

Para aplacar o calor adurente, Cícero e Júlio saíram para dar um passeio de voadeira, logo após o jantar. Eram pouco mais de 7 horas da noite. Pegaram um braço do Tocantins e, vinte minutos depois, pararam a voadeira numa praia de uns 100 metros de extensão, no cora ção da selva. Tiraram a roupa e entraram na água morna. Conse guiam ouvir a algaravia da bicharada dentro da selva. Tucanos e araras não paravam de gritar. Ouviram até o esturrar de uma onça. Acostumados com a vida na Amazónia, sabiam que não precisavam de se preocupar com a fera. Uma onça jamais entraria no rio para atacar uma pessoa. Muito menos na floresta amazónica, onde um pre-dador daquele porte não teria dificuldades em encontrar alimento.

Cícero apanhou a garrafa de cachaça que trouxera no barco e ofe-receu a Júlio. «Não beba demais, para não ficar bêbado. Não quero que a sua mãe venha me dar lição de moral de novo», disse Cícero, que já havia sido repreendido várias vezes por dona Marina, por oferecer bebida ao sobrinho. Mas Júlio gostava de cachaça. Desde garoto, aprendeu a apreciar a bebida com o tio. Não conse-guia gostar do sabor da cerveja. Mas não dispensava uma cachaça. Os dois ficaram conversando, dentro d’água, por mais de uma hora. Os assuntos dominantes eram futebol, caçadas e mulheres. Cícero era o único da família a quem Júlio já havia contado sobre o namoro que estava tendo com Ritinha, uma menina de 14 anos, pele morena, olhos grandes e boca carnuda, que morava numa vila a uma hora de canoa a remo da casa de Júlio. O romance pueril começara havia dois meses.

— Ela é linda, tio — disse o garoto.— E tem o corpo bonito também?— Nem me fale. Ritinha tem umas pernas e uma bunda que

me deixam doidinho.

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— Vocês já fizeram?— Fizeram o quê, tio?— Você sabe, Julão — disse Cícero, referindo -se ao sobrinho

pelo apelido que lhe havia dado, devido ao quase 1,80 m do rapaz. Ninguém mais chamava Júlio assim.

— Não, tio. A gente ainda não fez, não — respondeu o garoto, com um sorriso sem graça. — Mas só não fez porque ela não dei-xou. Eu já tentei duas vezes. Ela deixa eu pegar nos peitinhos, na bunda. Mas quando estou chegando lá, Ritinha tira a minha mão e diz que ainda é cedo.

— Muito bem. Continua tentando, que uma hora dessas ela abre as pernas.

Júlio lembra-se de não ter gostado da forma como o tio falou da menina. Mesmo assim, achou engraçado e ficou mais confiante de que, cedo ou tarde, perderia a virgindade com Ritinha. Ainda estavam na água quando Cícero disse estar sentindo frio.

— Está doente, tio? Um calor dos infernos desse e o senhor vem dizer que está com frio! — disse o rapaz.

— Acho que já estamos na água há muito tempo, Julão. Vamos voltar para a areia.

Saíram da água e retornaram para a praia. Cícero, mesmo depois de se enxugar com a própria camisa, continuava reclamando do frio. Disse estar sentindo, também, dor de cabeça. «Acho que esse banho me fez mal. Vamos voltar para casa.» Quando chegaram, Cícero foi direto para a rede. Seu Jorge e os outros dois filhos — Pedro e Paulo — já dormiam. Dona Marina, que estava deitada numa rede ao lado da do marido, levantou -se. A primeira coisa que fez foi cheirar a boca do filho. Não sentiu o cheiro da cachaça. Mas sabia que Júlio e Cícero haviam bebido. Ambos tinham mas-cado gengibre, para espantar o odor da aguardente. E dona Marina sabia que mascar gengibre, à noite, depois de um passeio de barco, só tinha uma função.

— Vocês disfarçaram o bafo de cachaça com o gengibre, não é? Pensam que me enganam? — disse ela. — Pelo menos, você não parece estar bêbado, como ficou da outra vez — falou, dirigindo -se ao filho.

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— Só tomei dois goles, mãe — disse Júlio, que era sempre muito respeitoso com os pais.

— É. Mas parece que o seu tio bebeu o resto da garrafa. Não consegue nem ficar em pé.

— Não é isso, não, mãe. Ele está passando mal. Disse que está com dor de cabeça e com frio.

Dona Marina aproximou -se do cunhado, que gemia e reclamava de dores por todo o corpo. Ela pousou a palma da mão direita na testa de Cícero. Deixou a mão escorregar pelo rosto, até chegar ao pescoço. Certamente, ele estava com febre alta.

— Onde está doendo, Cícero? — perguntou dona Marina.— No corpo todo, Marina. No corpo todo — respondeu ele.Dona Marina cobriu o cunhado com dois lençóis — o dela e

o de Júlio —, colocou um pedaço de pano ensopado de cachaça sobre a testa dele e decretou: «Isso é malária.» Cícero ouvia, preo-cupado, mas não tinha forças para pronunciar uma palavra sequer. Dona Marina voltou para a rede e deixou Júlio com a responsa-bilidade de ficar de olho no tio. «Se ele piorar, me chame», disse ela. O garoto passou o resto da noite ao lado de Cícero, que não parava de gemer. No meio da madrugada, Júlio adormeceu sentado no chão de madeira, apoiado à rede na qual o tio estava deitado.

Às 7 horas da manhã, já todos estavam acordados. Cícero perma-necia na rede, reclamando da febre e de dores no corpo. Disse estar se sentindo enjoado. A família tomou o café da manhã — pão, mandioca e peixe frito, com café. Seu Jorge levou um pão e um copo de café para Cícero. Ele não queria comer, mas o irmão o obri-gou. Cícero acreditava ter contraído malária numa de suas viagens a trabalho, pelos rincões da selva. Agora, não havia nada a fazer, a não ser esperar os sintomas da doença passarem — até hoje, não há remédio contra a malária. Dona Marina tratava o veado que Júlio caçara no dia anterior. Seu Jorge havia saído para pescar algo para o almoço. E Pedro e Paulo tinham ido, na canoa a remo, para a escola pública da comunidade: uma casa de madeira, erguida numa vila, a 30 minutos de barco da casa da família. Na escola, ensinava -se até à 4.a série, que Júlio concluíra aos 14 anos. Com Cícero doente, ele sentia -se obrigado a permanecer ao lado do tio.

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Os dois estavam sozinhos em casa. Naquele momento, Cícero iniciou uma conversa que jamais deixaria de atormentar a cabeça de Júlio. Deitado numa rede, ao lado do tio, o garoto reclamava do intenso calor daquela manhã quando Cícero disse:

— Julão, preciso que você faça algo muito sério e impor-tante para mim. Mas você não pode contar a ninguém. Nem para os seus pais nem para os seus irmãos. E nem para Ritinha. Para nin-guém mesmo.

— Pode falar, tio.— Isso é muito sério, Julão.— Êita, tio! Já disse. Pode falar. Pode confiar em mim.— Eu sei que posso confiar em você. É por isso que você é a

única pessoa a quem eu posso pedir isso.— Que agonia danada! Fala logo, tio.Primeiramente, Cícero fez uma revelação que deixou Júlio sur-

preso e assustado. Para aumentar seus ganhos, conciliava o trabalho na Polícia Militar com uma atividade pouco usual. Era matador de aluguer. Tinha entrado para o mundo da pistolagem havia quase dois anos. Júlio não quis acreditar no que ouvia. O tio que ele tanto amava era um assassino. Um homem que matava pessoas por dinheiro. Ele ouvia tudo aquilo com os olhos arregalados e o coração acelerado. Chegou a pensar que o tio estivesse brincando ou delirando sob o efeito da febre. Mas Cícero falava com tanta frieza e segurança que não deixava dúvidas. Era tudo verdade. Mais inusitada ainda era a maneira pela qual Cícero entrara para a bandidagem.

Ele contou a Júlio que, certa vez, em outubro de 1969, durante uma operação da PM, o batalhão do qual fazia parte prendeu três homens suspeitos de serem os executores de quatro trabalhadores rurais nas redondezas do município de São Francisco do Brejão, no oeste do Maranhão. Para o espanto de Cícero, que havia entrado para a PM dois anos antes, um dos suspeitos era um conhecido seu, Arnaldo da Silva, que vendia frutas em Imperatriz. Quando per-guntou a Arnaldo porque se tinha ele metido no negócio da pistolagem, Cícero ouviu algo que despertou o seu interesse. Os mandantes dos assassinatos pagavam cerca de mil cruzeiros

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ao pistoleiro — mais de quatro vezes o valor do salário mínimo da época, que era de 225 cruzeiros. Era mais do que o dobro do que Cícero recebia por um mês de trabalho na PM.

— O senhor virou bandido por causa de dinheiro, tio? — per-guntou, atordoado, Júlio.

— Eu não sou bandido, rapaz. E se eu não fizer esse trabalho, com certeza vai aparecer gente para fazer. Ou seja, o infeliz vai morrer de qualquer jeito. Assim, pelo menos eu ganho um dinheiro a mais.

— Mas o senhor é policial! Como é que o senhor pode ser poli-cial e bandido ao mesmo tempo?

— Júlio, eu já falei: eu não sou bandido. E é graças a esses serviços, que eu faço por fora, que consigo dinheiro para comprar algumas coisas. Você acha que eu comprei a minha voadeira com motor com que dinheiro?

As palavras saíam da boca de Cícero entrecortadas. A respira-ção estava pesada, lenta. A conversa prosseguiu. Cícero reiniciou dizendo que estava ali a trabalho. Havia viajado de Imperatriz para Porto Franco — uma distância de 97 quilómetros — não apenas para rever o irmão e o sobrinho. Tinha sido contratado para matar um pescador da região. A vítima seria Antônio Martins, 38 anos, nascido em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará. De ascen-dência gaúcha, o pescador era conhecido como Amarelo — a razão do apelido eram o cabelo loiro e a pele clara. Antônio costumava contar, gabando -se, que fugira de São Geraldo do Araguaia depois de ter assassinado, a facadas, o homem com quem sua namorada o traía. Todos na região o conheciam por essa história. Inclusive Júlio. O que o deixava ainda mais aterrorizado.

— O senhor vai matar Amarelo, tio? — indagou o rapaz, com a fala ofegante e levantando -se da rede.

— Senta, Júlio. Para quê essa agonia?— Para quê essa agonia? O senhor está doido? Só pode ser, tio.

O senhor vai matar Amarelo e quer que eu fique calmo? — conti-nuou Júlio, andando pela sala de pouco mais de 6 metros quadrados.

— Fala baixo, menino. Você quer que sua mãe escute nossa conversa?

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— Mãe está lá na frente, na margem do rio, limpando o veado. Não dá para ela ouvir.

— Se você continuar falando alto desse jeito, ela vai ouvir, sim. Senta aí na rede e fica calmo. Eu não vou matar Amarelo. Não tenho forças nem para levantar da rede, quanto mais para matar aquele safado.

— Ainda bem — disse Júlio, voltando a deitar -se na rede.O garoto ainda se ajeitava na rede em movimento, quando

Cícero soltou uma frase que pareceu explodir na sua cabeça.— Quem vai matar Amarelo é você.Júlio ficou mudo. Sentiu a alma gelar. Não sabia o que pen-

sar. Não sabia o que dizer. Lembra-se que o tio continuou a falar. Mas as palavras não entravam nos seus ouvidos. Desviou o olhar para a porta dos fundos da casa. A floresta brilhava sob o sol incle-mente. Seus olhos acurados e acostumados a longas caçadas na selva enxergaram uma preguiça agarrada a uma árvore. O pelo cinza do animal destacava -se no meio da vegetação esverdeada. Chegou a sentir inveja da vida tranquila que o bicho parecia levar. Colocou a perna esquerda para fora da rede e, com um leve empurrão no chão de madeira, começou a balançar -se. Ouvia o ranger da rede, como se de música se tratasse, e mantinha os olhos fixos na pre-guiça. Tentava imaginar como seria bom viver como um animal selvagem quando Cícero interrompeu bruscamente o balançar da rede, agarrando -a com a mão direita.

— Você está ouvindo o que eu estou dizendo, Júlio?— Nem quero ouvir — respondeu o garoto e ameaçou levantar-

-se da rede.Cícero segurou -o pelo braço. Disse que entendia a reação de

Júlio. Um menino bom como ele não poderia aceitar a ideia de matar uma pessoa. Cícero falou até que sentia orgulho pelo facto de o sobrinho demonstrar tanto repúdio pelo seu pedido. Mas a situação era muito mais complexa do que Júlio poderia imaginar. Cícero havia sido contratado para matar Amarelo. E já tinha recebido 700 cruzeiros como parte do pagamento. Além do dinheiro, ele ganharia pelo serviço 30 quilos de arroz, 20 de feijão, 10 de café, 10 de açúcar, 5 de queijo, 10 latas de óleo e 12 garrafas

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de cachaça. A parte do pagamento em alimentos e cachaça resultou de um acordo entre Cícero e o homem que o contratara para matar Amarelo: Marcos Lima, outro conhecido de Júlio. Aos 36 anos, Lima exercia uma profissão ainda hoje muito comum e importante nas comunidades ribeirinhas da Amazónia. Ele era um regatão, cujo trabalho consiste em revender, a bordo de um barco, produtos industrializados aos moradores das áreas mais isoladas. Como não possuía os mil reais que Cícero pediu para matar Amarelo, Lima sugeriu pagar parte do serviço com alimentos que vendia na região.

— E toda essa comida vai ficar aqui, na sua casa — disse Cícero a Júlio. — Só vou levar para mim a cachaça e o queijo.

— Tio, eu não quero saber de nada disso. Eu não vou matar ninguém. Até agora, não consigo acreditar que o senhor está me pedindo um negócio desse. Quer que eu vire um assassino como o senhor? Deus me livre.

— Você não vai virar um assassino, Julão — disse Cícero, de forma carinhosa e pegando no braço do sobrinho. — Você vai fazer só esse trabalho e nunca mais vai precisar se meter numa confu-são dessas.

— Eu não quero fazer isso, tio. Eu não quero.— Eu sei. E acho isso ótimo. Mas se você não fizer o serviço,

quem vai acabar morrendo sou eu.— Porquê?— Porque Lima já me pagou, Julão. E nesse negócio é assim.

Depois que a gente recebe o dinheiro, tem de fazer o serviço. Senão, quem acaba sendo assassinado é o próprio pistoleiro. Você quer que eu morra?

— Claro que não, tio!— Então, faça o que estou pedindo.O tempo passava, e a conversa não evoluía. Cícero tentava con-

vencer o sobrinho de que ele tinha de matar Amarelo. E Júlio se negava veementemente a fazê -lo. Mas a insistência de Cícero foi tamanha que, em certo momento, o rapaz cogitou a possibilidade de atender ao pedido do tio.

— Se fosse para matar um estranho, eu até pensava em fazer o que senhor está pedindo. Mas Amarelo vive pescando por aqui.

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