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Universidade Federal da Bahia ALAN BRANDÃO DE MORAIS O papel da individualidade na formação do Estado na “Filosofia do Direito” de Hegel Salvador, 2014

O papel da individualidade na formação do Estado na · Ao Professor Mauro Castelo Branco de Moura, segundo orientador deste trabalho, por acolher com paciência minhas novas e apressadas

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Page 1: O papel da individualidade na formação do Estado na · Ao Professor Mauro Castelo Branco de Moura, segundo orientador deste trabalho, por acolher com paciência minhas novas e apressadas

Universidade Federal da Bahia

ALAN BRANDÃO DE MORAIS

O papel da individualidade na formação do Estado na

“Filosofia do Direito” de Hegel

Salvador,

2014

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ALAN BRANDÃO DE MORAIS

A individualidade expressiva: A formação do Estado na “Filosofia do

Direito” de Hegel

Trabalho de Conclusão de curso apresentado junto ao curso

de graduação em Filosofia da Universidade Federal da

Bahia como requisito parcial para obtenção do título de

Licenciado em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura

Salvador,

2014

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AGRADECIMENTOS

Aos companheiros de militância estudantil, discussões e libações etílico-filosóficas: Elias, Tássio

Cristian, Hanna, Clarilton, Wagner, Douglas, Lobão, Brunão, André, Yan, Castor, Rafael,

Sérgio, Fabrício, Sandro Danilo, Rafaela, Ana Grecco, Luciana, Germano, Davi, Deusdete,

Veridiana, Tatiana.

Ao Professor Dr. José Crisóstomo de Souza, primeiro orientador deste trabalho, pela ajuda e

acolhida inicial nas duas primeiras tutorias, por me apresentar perspectivas novas nos estudos

políticos do Hegel, principalmente o livro “Hegel e a Sociedade Moderna” de Charles Taylor.

Ao Professor Mauro Castelo Branco de Moura, segundo orientador deste trabalho, por acolher

com paciência minhas novas e apressadas convicções, sem guarida no mundo acadêmico.

Ao Programa de Educação Tutorial (PET-Filosofia) pelos dois anos de experiência e

aprimoramento filosófico que me proporcionaram.

Ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (PIBID-UFBA) por abrir a

perspectiva criativa e criadora do ensino de Filosofia.

Aos membros do grupo “Poética Pragmática” do qual fiz parte por dois anos. O ambiente de

criatividade filosófica, além da sempre presente contemporaneidade do estudo filosófico muito

inspirou este trabalho, a despeito das divergências.

Aos membros do grupo de pesquisa “Marx no século XXI” que me acolheram de bom grado

como novo membro deste grupo.

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A Carol,

Companheira no amor, das utopias e das lutas da vida.

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RESUMO

Esta monografia visa deslindar a teoria hegeliana do Estado tendo como foco de análise a

atuação do individuo na formação do Estado. Em Hegel, conceitos como Vontade livre e

Sociedade civil são utilizados sistematicamente para tratar da necessária intervenção dos

indivíduos na formação e, principalmente, na legitimação da constituição e das leis do Estado

enquanto agentes reguladores da vida social. Para cumprir este objetivo, neste trabalho

faremos uma análise histórica do pensamento hegeliano, buscando contextualizar os

problemas que o motivaram a escrever a “Filosofia do Direito”, fonte primária desta

pesquisa. Logo após, partiremos para a comprovação da necessidade de sujeitos livres no

processo de espiritualização da ideia no mundo, fundamento ontológico da filosofia hegeliana,

que será o ponto de partida para a narrativa de formação do Estado, presente na “Filosofia do

Direito” e objeto do terceiro capítulo desta monografia.

Palavras – Chave: Estado, Eticidade, Subjetividade, contingência, necessidade

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SUMÁRIO

1. Introdução..............................................................................................p.07

2. Esclarecimento, Idealismo Alemão e Subjetividade...........................p.10

3. Subjetividade na Filosofia Política de Hegel.......................................p.17

3.1. A Filosofia do Espírito.................................................................p.17

3.2. Autoconsciência, Vontade Livre e Direito Abstrato....................p.19

3.3. MORALIDADE: Contradições entre Dever e Autonomia..........p.27

3.4. ETICIDADE: O Sujeito comunitário...........................................p.38

4. Considerações Finais............................................................................p. 53

5. Referências bibliográficas.....................................................................p.52

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1. INTRODUÇÃO

Considerar a filosofia política de Hegel como uma completa apologia do estado é uma

afirmativa, paradoxalmente, adequada e equivocada. Podemos afirmar como adequada na

medida em que as conclusões das suas reflexões políticas, escritas na juventude e na

maturidade, refletem um posicionamento de defesa da unificação social em detrimento de atos

morais ditos subjetivistas, egoístas perante o bem coletivo, posturas tais que potencialmente

colocariam em crise a ordem social necessária para o desenvolvimento humano. Por outro

lado, e mais marcadamente nas suas obras de maturidade, Hegel constata que o vigoroso

movimento filosófico do Esclarecimento europeu (Aufklärung) e o advento da modernidade

impuseram reformas das instituições políticas e sociais fundamentadas exatamente sobre a

liberdade subjetiva, agora mediada pela razão que torna o sujeito autônomo perante qualquer

força de ordem física ou metafísica. Falar de autonomia racional do sujeito neste período

significa afirmar a inviolável dignidade humana baseada no gozo consciente do seu livre

arbítrio orientado unicamente pelo seu próprio julgamento racional como instrumento para a

compreensão e a intervenção no mundo.

Desta forma, o Esclarecimento visava desanuviar as diversas e arbitrárias intervenções

que existiam na liberdade humana, sejam de ordem religiosa, política ou cultural. Esta

construção histórica da idéia de liberdade foi fundamental para a dessacralização do mundo, a

saber, a crítica final sobre todas as formas de explicação da realidade que não estivessem sob

a égide da razão, fator fulcral para a decadência da ideologia feudal reproduzida socialmente

pelo Antigo Regime, onde o poder era consuetudinário, arbitrário e tirânico. Em

contrapartida, a decadência do Antigo Regime abre espaço para uma profícua discussão sobre

a renovação das instituições políticas, incluindo nestas a liberdade individual e a dignidade

dos sujeitos.

Neste contexto filosoficamente excitante e socialmente conturbado que Hegel transita

da juventude para a maturidade na sua Filosofia. Entusiasta dos novos tempos que invadem a

Prússia a cavalo, não tinha condições de manter incólumes suas convicções diante de tamanha

força das tensões subjetivistas do Esclarecimento. Contudo, permaneceu ponderado com

relação a tanta euforia dos Iluministas. Admirador da unidade da Pólis grega, onde o “Eu” era

subsumido no próprio tecido da sua comunidade - onde não existia tanta diferença entre o que

eu quero e o que a Pólis deseja - Hegel percebe o caráter progressista de preservação das

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liberdades individuais como princípio moral das instituições políticas; entretanto mantinha o

ceticismo quanto ao fato da subjetividade eventualmente cindir-se do tecido social, gerando

uma ruptura entre sujeito e coletividade que, em suas consequências mais graves, retoma uma

infrutífera individualização. Como conciliar, portanto, interesses individuais e conjugação

social e política? Para resolver esse conflito, é necessário analisar as formas concretas desta

subjetividade do Esclarecimento.

O processo de subjetivação do homem com relação seu meio social é o momento no

qual o ser humano exerce e desenvolve sua autonomia, gerando as condições para

dessacralizar a experiência comunitária e definir a partir do seu próprio julgamento a

racionalidade e o sentido das instituições políticas das quais ele mesmo faz parte. É possível

notar que existe algum ponto de contato entre subjetividade e comunidade que é o sentido que

o “eu” fornece à experiência social. Não obstante, este sentido não é apenas reconhecido

como é resultante histórica de um desenvolvimento do qual este mesmo sujeito racional faz

parte. Para Hegel, especificamente, este desenvolvimento humano que gera as determinações

da experiência social faz parte do movimento de um “sujeito” mais amplo, que envolve o

mundo fornecendo-lhe racionalidade e finalidade, a saber, o Espírito. A atribuição de razão às

instituições políticas que efetivam a experiência social é apenas um momento do conjunto

mais amplo da “experiência da consciência” que parte dos aspectos mais imediatos

gradativamente alcança o saber absoluto tendo como finalidade esta subjetividade

determinada pelo Espírito. Desta forma, a unidade social e a subjetividade são preservadas,

como entes complementares na formatação do estado moderno.

Por todos estes aspectos superficialmente elencados acima, podemos suspeitar que o

tratamento dado por Hegel à questão da relação entre sujeito e estado é peculiar demais para

ser conceituada sob a égide da antinomia “Estadista” x “subjetivista”. A peculiaridade do

conceito de subjetividade em Hegel encontra-se na intrínseca vinculação com uma totalidade

que não se encerra apenas no pensamento individual, mas que parte para a sua necessária

objetivação. Sendo assim, a subjetividade não desaparece diante da grandiosidade

institucional do estado, faz parte dele como base constitutiva, apesar da tensão em defesa do

tecido social prevalecer sobre a liberdade subjetiva.

O objetivo deste trabalho, portanto, é estabelecer, seguindo a argumentação hegeliana,

qual o espaço ocupado pelo indivíduo dentro da sua Filosofia política escrita em suas linhas

maduras nas “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” obra na qual Hegel desenvolve

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suas reflexões políticas acerca das instituições efetivas do tecido social formadas a partir da

experiência dos sujeitos com a natureza e entre si.

Primeiramente vamos nos concentrar no contexto histórico-filosófico onde Hegel

escreveu a “Filosofia do Direito”, influenciado pelas últimas expressões do Esclarecimento

na filosofia e pelas consequências avassaladoras da revolução francesa na política. Seguido a

isso, vamos acompanhar a filosofia hegeliana em suas bases ontológicas descritas na

“Fenomenologia do Espírito” a fim de verificar, dentro da espiritualização da Ideia, o local

privilegiado que o estado assume e o papel dos seres racionais na espiritualização da Ideia.

Por fim, nos dedicaremos com mais propriedade ao texto central desta monografia,

transitando por toda sua extensão e verificando, em cada momento específico da “Filosofia

do direito” qual o papel dos indivíduos e da formação da subjetividade na formação do

estado, ou seja, como o conceito de subjetividade permanece e é superado em cada momento

específico da “Filosofia do Direito”. Esta última parte está dividida, de forma a garantirmos

uma análise pormenorizada da subjetividade em cada momento:

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1. ESCLARECIMENTO, IDEALISMO ALEMÃO E SUBJETIVIDADE

O final do século XVIII e o início do século XIX foi um período crucial para a

História do mundo ocidental pela irrupção das Revoluções Burguesas na Europa que

derrubaram as últimas permanências políticas e sociais do Feudalismo, destruindo “as

imagens religiosas do mundo e criando uma cultura profana” (HABERMAS, 2000) dando

início à Modernidade1. Iniciada com a Revolução Francesa em 1789, temos neste quarto de

século um conjunto de insurreições em quase todos os países da Europa que provocaram

mudanças profundas na composição política do Velho Continente, inclusive com fortes

consequências para as Américas, às vésperas das respectivas libertações nacionais das

metrópoles anglófonas, francófonas e ibéricas2. As Revoluções Burguesas da Europa do final

do século XVIII podem ser classificadas como um período de crise e derrocada plena do que

se convencionou chamar de Antigo Regime, caracterizado pelo Absolutismo monárquico na

política, pelo mercantilismo econômico baseado no acúmulo de metais preciosos no campo da

economia e pelo resquício medievo da Nobreza Feudal nas instituições políticas e na

organização da sociedade européia.

Esta crise generalizada dos paradigmas do Antigo Regime, levada às vias de fato pelo

ato revolucionário dos setores do “Terceiro estado” – hegemonizada pela burguesia - na

França em 1789, abriu caminho para novas iniciativas teóricas que encontravam relevância

histórica em erigir bases mais condizentes com os novos tempos. No campo do pensamento

político, a Razão – e a Filosofia como sua guardiã privilegiada – assume um papel central,

tanto na árdua tarefa de especulação sobre as linhas gerais de uma nova sociedade, como na

própria concepção de organização social dessa Modernidade. A Filosofia, principalmente a

linha Iluminista da Filosofia, assume o estatuto de eixo a partir do qual emanam

interpretações coerentes com a tarefa de erguer pelo pensamento a nascente sociedade

burguesa, criticando as antigas estruturas, bem como elaborando novas, fundamentadas nos

valores da nova classe insurgente – com especial destaque para a reivindicação das liberdades

1 O conceito de Modernidade, elaborado à exaustão por Jürgen Habermas no seu “Discurso filosófico da

Modernidade” será um importante fio condutor desta investigação, no que tange ao relacionamento reflexivo

entre tradições feudais e novidades burguesas, principalmente no campo da participação política. “(...) o conceito

profano de tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou: indica a época orientada para o

futuro, que está aberta ao novo que há de vir. Com isso, a cesura em que se indica o novo é deslocada para o

passado, precisamente para o começo da época moderna” (HABERMAS, p. 09/10, 2000). 2 Como exemplos temos a independência dos EUA em 1776, a independência do Haiti em 1804 e das colônias

latino-americanas.

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individuais – assumindo seu lugar de destaque, como afirma RORTY, em momentos

históricos de crise de valores.

A Filosofia só ocupa um lugar importante na cultura quando as coisas parecem

estar desmoronando – quando as crenças mais queridas estão ameaçadas. Nesses

períodos, os intelectuais oferecem sugestões acerca do que pode ser preservado e

do que deve ser descartado. Aqueles cujas sugestões provam-se mais influentes são

colocados na lista dos “grandes filósofos” 3

É digno de nota que, dentro da tradição do Esclarecimento, existe uma profusão de

elaborações filosóficas voltadas à renovação do pensamento político com o objetivo de

elaborar respostas racionais para o desafio de fornecer concretude aos novos valores políticos

da sociedade. Temos como exemplos o Contratualismo da vontade geral em Rousseau ou da

defesa da propriedade privada em Locke ou a divisão tripartite do estado, equiparados e auto-

vigilantes, de Montesquieu. Todas estas contribuições da Filosofia Iluminista formaram as

bases teóricas da luta política que se seguiu à derrocada do Antigo Regime e até hoje

influenciam o arranjo atual da sociedade civil, das instituições do estado e do Direito,

articulando e sintetizando a própria dinâmica da política contemporânea em vários sentidos.

Acompanhando de longe os acontecimentos das revoluções burguesas na Europa

estavam os alemães, que apesar de não vivenciarem na prática os desdobramentos

revolucionários, se dedicaram aos problemas filosóficos do Esclarecimento aprofundando a

formulação especulativa sobre os novos tempos. O Idealismo Alemão é uma expressão muito

particular desse entusiasmo filosófico do Esclarecimento no país teutônico, caracterizando-se

enquanto resultado teórico específico da cultura Prussiana do século XVIII. Segundo

DUDLEY, o Idealismo Alemão tem seu início em 1781 com a publicação da “Crítica da

Razão Pura” de Kant e termina com a morte de Hegel em 1831 (DUDLEY, 2013, p. 13,). O

que caracteriza essa iniciativa particular da Filosofia Iluminista é o esforço destes filósofos

em superar as limitações impostas à racionalidade e liberá-la enquanto força que impulsiona o

ser humano para a maioridade autônoma e o progresso coletivo. As limitações à força

emancipatória da Racionalidade tinham como origem a base dogmática da religião e,

principalmente, a base determinista da racionalidade presente no empirismo de David Hume4.

Segundo DUDLEY, admitir a Filosofia humeana significava abandonar os ideais

3 CRISÓSTOMO, José (org.), 2005, P.24, 2005.

4 “Hume então mostra que o empirismo conduz inelutavelmente à conclusão de que o self humano é meramente

um mecanismo complexo, produzindo desempenho comportamental na habitual resposta aos estímulos

ambientais que ele encontra. Tal self é incapaz de uma autodeterminação racional, e, portanto, incapaz de

satisfazer as modernas aspirações de autonomia política, moral e epistemológica. (Dudley, p. 24).

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emancipatórios da racionalidade, pois, se todo pensamento é previamente determinado por

uma apreensão sensível, logo não há espaço para a autonomia racional e, consequentemente,

para a maioridade do sujeito. Na esteira da necessidade de responder aos fortes argumentos de

Hume com vistas a manter a reivindicação da autonomia racional - mesmo considerando os

argumentos humeanos na fundamentação dos exageros do racionalismo puro - é que Kant

escreve a “Crítica da Razão Pura” enquanto obra de “exame crítico da própria

Racionalidade”, para que essa racionalidade seja a mais adequada possível ao advento da

Modernidade5. O Idealismo Alemão, portanto, é diretamente influenciado pela crítica de Kant

a Hume no sentido de aprofundar a crítica iniciada pelas Revoluções Burguesas às próprias

bases da racionalidade, para fundamentar a autonomia moderna sob a concepção de uma

racionalidade moderna6.

Nesse conjunto de motivações filosóficas e políticas do Esclarecimento e do Idealismo

Alemão, a Filosofia de Hegel destaca-se por ser a mais complexa e detalhada caracterização

filosófica da política dos novos tempos, incluindo nos seus argumentos a crítica do

racionalismo puro e a reivindicação da subjetividade racional e autônoma. Cumprindo, pela

própria pena, a máxima da Coruja de Minerva, Hegel consegue desenvolver uma leitura das

conquistas históricas da burguesia no campo da teoria política após o encerramento das

revoluções contra as tradições do Antigo Regime e o início do desenvolvimento do estado

burguês, sendo a principal fonte filosófica para a Ciência do Direito e para a compreensão das

instituições do estado Moderno. O seu entusiasmo com as conquistas da Revolução Francesa

tornou-o um dos mais importantes intérpretes dos efeitos reais da dominação política

burguesa, destacando principalmente o papel dos sujeitos na consolidação das instituições

políticas e na construção da legitimidade do estado. A filosofia política hegeliana é

detalhadamente explicitada na sua obra de 1820, “Princípios da Filosofia do Direito” 7.

5 A Modernidade demanda uma reavaliação das nossas crenças ordinárias e práticas visando aproximá-las às

demandas da razão, mas a negativa de Hume sobre a possibilidade de que isso ocorra deu origem à necessidade

de um exame crítico da própria racionalidade. (DUDLEY, 2013, p. 26) 6 “A filosofia precisa demonstrar que Hume falhou em estabelecer que a razão é incapaz de orientar e motivar o

comportamento humano e, portanto, que foi incapaz de estabelecer que os seres humanos não são livres. Este é

o projeto que define a Crítica da Razão Pura de Kant, cujo objetivo central é oferecer a defesa da liberdade e

da moralidade, e assim fazendo preservar a perspectiva do Iluminismo e da modernidade”. (DUDLEY 2013,

p.26) 7 Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatwissenchaft im Grundrisse. Para este

trabalho de pesquisa utilizo a tradução de Paulo Meneses (2009) publicada pela Editora Unisinos.

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Em linhas gerais, o objetivo desta obra é demonstrar a racionalidade do real8 como

base do desenvolvimento das instituições políticas, a partir da Vontade livre dos sujeitos em

coletividade. Hegel desenvolve uma exaustiva reflexão, vinculando a observação das

experiências políticas resultantes das revoluções burguesas e o desenvolvimento especulativo

do Idealismo Alemão para traçar uma narrativa que incluísse o conjunto de mediações entre o

homem e o meio natural (objetivo) e entre seres humanos (intersubjetivas), elementos estes

que, originando-se da vontade livre, se desdobram nas condições para a realização da Razão,

ou seja, o reconhecimento da racionalidade do real enquanto condição de possibilidade para a

concretização da liberdade.

Para Hegel, a liberdade é uma realidade abstrata que alcança concretude após um

longo desenvolvimento da subjetividade que, pela sua ação e pensamento livres,

compreendem quais são as determinações presentes no real objetivo e quais são as respostas

que podemos fornecer a estas determinações do real. Em outras palavras, é pela ação e

pensamento que conseguimos reconhecer e nos reconciliar com o real. Tal reconhecimento,

quando cristalizado em costumes e práticas, gera a cultura humana, histórica e situada,

enquanto reconhecimento da razão no real objetivo para fins de satisfação da vontade livre.

Este desenvolvimento alcança sua meta na instituição do estado, a sociedade organizada a

partir da Constituição – que é a síntese racional do conjunto das experiências individuais e

coletivas consolidadas na cultura. Este desenvolvimento do estado e da Constituição é parte

de um processo mais amplo da reconciliação da racionalidade do real, concretizando essa

reconciliação com o Espírito infinito em formas políticas a partir da razão.

Pensamos que este seja um ponto fundamental para compreender a Filosofia política

hegeliana, uma vez que demonstra ser uma chave de pensamento que nos auxilia a

compreender o real sentido – e a contribuição mais relevante de Hegel para a

contemporaneidade – do pensamento racional no processo de formação das comunidades

humanas de forma geral, servindo para esclarecer o papel que a vontade livre dos sujeitos

cumpre no desenvolvimento da cultura de uma determinada sociedade.

A Vontade livre do sujeito é uma faculdade que Hegel reivindica nas suas teses não

apenas pela questão moral da dignidade humana, mas como elemento fundante do sentido

8 “Pois o racional, que é sinônimo da idéia, entrando ao mesmo tempo em sua efetividade na existência externa,

surge numa riqueza infinita de formas, de fenômenos, e de configurações e reveste este núcleo com a casca

colorida, em que a consciência inicialmente se aloja, a qual apenas o Conceito atravessa afim de encontrar a

pulsação interna e sentir ainda sua batida mesma nas configurações externas” (Id. p.42. 2009).

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racional de uma eticidade mais ampla do que a moral do indivíduo; uma substância formada

por sujeitos inseridos em determinado espaço potencialmente inteligível pelo pensamento.

Para Hegel, o estado é o resultado final, o único coroamento possível para este

desenvolvimento da subjetividade na sua reconciliação com o real. O estado é a concretização

em leis e instituições da liberdade humana conquistada por meio da ação impulsionada pela

Vontade Livre.

Entretanto, cabe destacar que o estado Hegeliano representa a efetivação da liberdade

e ele também expressa o limite teleológico deste movimento poiético9. Segundo Hegel, a

formação do estado e da Constituição como afirmados no livro são manifestações do Espírito

Absoluto na medida em que são efetivações objetivas da Vontade livre dos indivíduos sob

condições determinadas de vinculação que, racionalmente articulada, desenvolvem-se em

certas formas culturais de organização social (instituições do estado) que são cristalizadas na

forma das leis (Constituição). A cristalização da cultura na forma das instituições estatais,

expressa racionalmente na forma da lei, torna o movimento de atualização da sociedade, por

meio da ação exteriorizada da, Vontade, obsoleto, uma vez que o estado, quando realizado,

representa universalmente, unicamente pela sua efetivação, todas as demandas de liberdade

reivindicadas pela Vontade humana.

“O Estado, enquanto efetividade da vontade substancial, que ele tem na

autoconsciência particular elevada à sua universalidade, é o racional em-si e

para-si. Essa unidade substancial é um autofim imóvel absoluto, em que a

liberdade chega a seu direito supremo, assim como esse fim último tem o direito

supremo frente aos singulares cuja obrigação suprema é ser membro do Estado.”

(HEGEL, p. 230, §258,2009)

Esta citação recoloca no percurso do desenvolvimento da Vontade livre o seu termo na

forma da soberania do estado perante os indivíduos particulares, nomeadamente os membros

da Sociedade civil. Em Hegel, assim como em outros autores anteriores, o estado é um

conjunto de instituições que estão acima de vontades particulares, que possui uma vontade

soberana. Entretanto, com Hegel, essa concepção adquire uma peculiar riqueza de tratamento,

pois, articula a formação desta vontade universal corporificada no estado com o próprio

desenvolvimento da subjetividade, de forma que a vontade universal seja a expressão máxima

e concreta da liberdade que o sujeito almeja de forma abstrata e incerta na sua

individualidade.

9 Utilizamos poiésis aqui no sentido de produção criativa humana, diferenciada da praxis uma vez que visa um

fim exterior a si mesmo. (CF. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco,VI, 5, 1140b 6-7)

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Com isso, pretendemos trazer para o debate contemporâneo sobre o funcionamento do

estado, as complexidades que envolvem a soberania do estado de Direito sobre as vontades

individuais, que alicerçam a sua soberania exatamente em um acesso histórico privilegiado à

ideia. Veremos no decorrer deste trabalho que, empiricamente, são as pessoas que, no

processo de transcender a individualização e formar vínculos sociais, fornecem o sentido da

existência do estado; contudo, no nível da Ideia, é o conceito do estado que fornece a razão

última para todas as ações dos indivíduos. Pretendemos explorar neste trabalho esta inversão

conceitual da relação política entre estado e indivíduo, presente na filosofia hegeliana, que a

torna um reflexo filosófico dos conflitos contemporâneos entre estado e Sociedade civil.

Senão, vejamos.

A doutrina do Direito e do estado de Hegel é ao mesmo tempo a melhor síntese sobre

a legitimidade do estado baseada na formação da Sociedade Civil, entretanto é também a

principal inspiração conceitual de um dos maiores entraves para a política democrática, a

separação entre as instituições do estado e os interesses da sociedade civil. Se o estado, em

sua efetivação, é a objetivação dos anseios da sociedade civil por liberdade para realizar seus

interesses, logo não há o que se questionar e muito menos o que se reformar nesse estado.

Nem mesmo as mudanças que se engendram continuamente na sociedade, após a efetivação

histórica do estado, inclusive na medida em que transcendem os interesses individualistas da

sociedade civil, deveriam encontrar neste estado – que deve ser a efetivação mais universal da

liberdade – algum espaço para reconhecimento. Mesmo sabendo que Hegel trata na Filosofia

do Direito do estado em sua forma conceitual e não histórica (assunto tratado na Filosofia da

História), a justificativa encontrada por Hegel para cessar o movimento histórico do conceito

servem para garantir uma eterna estabilidade que descarta o movimento histórico de qualquer

análise filosófica do contemporâneo.

O estado torna-se por um tour de force superior a todas as particularidades sociais

engendradas dentro dele após a sua efetivação, mesmo sendo ele um resultado dialético de

outro arranjo histórico de particularidades sociais. Sendo assim, os operadores do estado,

segundo a doutrina hegeliana do Direito, possuem plenos poderes, inclusive de repressão

violenta dos seus cidadãos, na medida em que estes tentam imprimir uma lógica social

diferente da representada no estado.

É a partir destas linhas gerais que pretendemos neste trabalho discutir o papel da ação

livre na construção da legitimidade do estado. Nesta monografia pretendemos aprofundar a

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análise exegética da “Filosofia do Direito” de Hegel de forma a apresentar o caminho

percorrido pela subjetividade e seu papel na formação das instituições jurídicas e do estado.

Esse trajeto será acompanhado dentro da perspectiva idealista de determinação pela ideia das

ações do sujeito, elemento ordenador desse movimento complexo e progressivo.

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3. SUBJETIVIDADE NA FILOSOFIA DO DIREITO

Antes de iniciarmos a discussão detalhada da trama conceitual que envolve a questão

da subjetividade em Hegel, faz-se necessário transitar pela sua ontologia para obtermos uma

visão mais apurada dos objetivos de Hegel com a sua Filosofia do estado. É necessário

entender que o conceito de sistema assume uma dimensão totalizante em sua obra. Não há um

ponto do pensamento hegeliano que não esteja absolutamente conectado com a sua Filosofia

do Espírito e esta intrínseca relação abre caminho para diversas interpretações e releituras da

sua Filosofia.

3.1. A Filosofia do Espírito

Segundo D’HONT (1982) a filosofia do espírito de Hegel é um “luteranismo

laicizado” baseado em três etapas nas quais estão expressas as determinações universais de

funcionamento ontológico do mundo (D’HONT, p.66/67, 1982). No primeiro momento, o

Espírito é Ser imediatamente infinito, Ser puro que antecede o campo das necessidades do

Espírito na sua corporificação; Hegel denomina este momento enquanto representação de

Deus ou do Absoluto, pois, é o ser puramente etéreo e infinito que subjaz à existência finita,

precede a natureza enquanto verdade absoluta da existência.

“Este reino é o da verdade, tal como ela existe em-si e para-si, sem

máscara nem véu. Também pode-se dizer que este conteúdo é uma

representação de Deus, tal como ele é em sua essência eterna,

anteriormente à criação da natureza e de um espírito finito”10

.

A segunda etapa do desenvolvimento geral da Filosofia do Espírito é o momento em

que Hegel elucida as manifestações corporificadas desse Espírito (Geist). O Espírito, na sua

condição efetiva, é ele mesmo considerado um Sujeito (racional e, potencialmente, livre) que

busca alcançar a consciência - de – si, a compreensão das suas próprias determinações por

meio da expressão ativa daquilo que esse Espírito é em infinita potência. Esta auto-

compreensão das múltiplas determinações finitas do Espírito em sua infinitude, a partir da

cissão do Espírito nas múltiplas formas do mundo, possibilitaria ao Espírito que alcance e

realize a sua própria liberdade uma vez que estará em contato com suas determinações11

.

Entretanto, a natureza do Absoluto é permanecer em estado de fixidez, sendo o movimento (e

10

GARAUDY apud HEGEL. Para Conhecer o Pensamento de Hegel, p.105, Ed. L&PM, 1966, Guarulhos-SP. 11

“A autoconsciência racional é a consciência racional de um eu que foi expresso na vida e, portanto, que se

tornou determinado. A plenitude da autoconsciência é alcançada quando sua expressão é reconhecida como

adequada ao eu.” (TAYLOR, p. 39. 2005).

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18

a atividade aqui incluída) atributo de entes finitos. Logo, para que o Espírito possa adquirir

consciência – de - si, torna-se necessário que a totalidade do Espírito possibilite a existência

de seres animados (animais racionais e irracionais) e inanimados (mundo natural) que

corporifiquem esse Espírito12

, tornando-se, ele mesmo, uma finitude no conjunto de entes que

constituem o Universo, fornecendo-lhe racionalidade intrínseca, como afirma TAYLOR.

“Se o Geist como sujeito deve alcançar a autoconsciência racional na liberdade,

então o universo tem de conter, antes de tudo, espíritos finitos. O Geist tem que ser

corporificado. Mas a realidade corpórea é partes extra partes, extensas no espaço

e no tempo. Portanto, para que a consciência seja, ela tem de ser situada; ela tem

de estar em algum lugar, em algum momento. Mas, se a consciência está em algum

lugar em algum momento (...) ela é finita. (TAYLOR, 2005, p. 39).

À dispersão do Espírito nas formas finitas constitutivas do universo sucede-se a

recuperação da unidade deste mesmo Espírito como atividade racional de autoconsciência, o

terceiro momento da Filosofia do Espírito. A corporificação do Espírito nas formas finitas é

um momento necessário de separação do Espírito, pois possibilita o alcance da sua

autoconsciência – da consciência sobre a especificidade da interação entre suas diversas

partes finitas que compõem a sua infinitude - pois, para Hegel, somente quando o Sujeito

racional se confronta com seu contrário é possível determinar a consciência - de – si13

.

“A noção de um espírito cósmico que teria consciência de si diretamente,

sem a oposição em relação a um objeto que é o predicamento dos espíritos

finitos, é incoerente. A vida de tal Espírito seria, no melhor dos casos, uma

vida de auto-sensação cega, não haveria nada nela que merecesse o nome

de “consciência”, muito menos de “consciência racional”. Uma visão

panteísta adequada para os românticos entusiastas da intuição, mas que

não possui relação alguma com o Geist de Hegel.” (TAYLOR, 2005, p.39)

Segue-se desta singularização do espírito que a autoconsciência, ou a busca do

Espírito por seus próprios atributos, imprescinde de seres vivos racionais que funcionem

como “veículos” para a realização expressiva da unidade reconciliadora do Espírito disperso

no mundo, por meio da atividade sensível e do pensamento racional uma vez que o objetivo

de autoconsciência do Espírito pode ser entendido enquanto a auto - compreensão deste

espírito das suas múltiplas potencialidades, aspectos que só podem ser apreendidos pela razão

voltada para realizar uma atividade expressiva.

12

“O Geist é, portanto, necessariamente corporificado em espíritos finitos. No contexto deste argumento vale o

mesmo que na tese de que o Geist retorna a si mesmo com base na oposição e na divisão; ou que sua

autoconsciência incorpora a consciência” (Ibid. p. 40). 13

“Hegel assumiu esse princípio, que faz parte da adoção geral da visão de que a consciência racional requer

separação. A consciência só é possível quando o sujeito se estabelece como contrário a um objeto”(Ibid, p.40)

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O Geist tem (...) de corporificar-se em seres finitos, em determinadas

parcelas do universo. Elas têm de ser seres vivos, pois somente os seres

vivos são capazes de atividade expressiva, de dispor de um meio externo

(...) pelo qual pode expressar um significado, e apenas seres capazes de

atividade expressiva podem corporificar o espírito. Portanto, se o Geist está

destinado a ser, o universo tem de conter eus racionais” (TAYLOR, 2005,

p.41).

Podemos perceber neste terceiro momento do movimento do Espírito o advento da

Razão enquanto a faculdade humana que possibilita a reunificação dos elementos distintos

que foram separados na encarnação do Espírito infinito nas formas da natureza (HEGEL,

1982, p. 06). Estes elementos singulares e finitos são, no âmbito do Espírito infinito,

constitutivos de uma mesma unidade possuindo cada finitude o seu simétrico oposto. Após a

“descida” do Espírito, cabe à Razão, agora circunscrita a um único ser finito – o homem -

restabelecer esta unidade perdida na dispersão do Espírito infinito, assumindo as

determinações e relações específicas dos elementos finitos em suas respectivas

particularidades. Este é o movimento de espiritualização do real onde a realização da

autoconsciência do Espírito pelo homem significa também a realização da liberdade –

reconhecimento das determinações do Espírito – para este mesmo homem.

O conceito, encarnado no homem, reconquista a natureza e restitui-a a

Ideia, processo graças ao qual se torna objetivo, se realiza como espírito.

(D’HONT, 1982, p. 67)

A partir desta brevíssima explanação sobre a Ontologia podemos concluir que I) a

razão enquanto atributo humano assume um papel de grande destaque na universalidade

hegeliana uma vez que a autoconsciência do Espírito depende agora deste ser finito inserido

em um mundo potencialmente inteligível, engendrando a sua espiritualização; II) a potencial

inteligibilidade do mundo, enquanto produto do Espírito, só pode ser alcançada por uma

atividade expressiva que envolva pensamento e ação autônomos do sujeito. É a partir dessas

conclusões que partiremos para a análise da Filosofia política hegeliana e poderemos entender

como o sujeito finito pode ser preservado dentro do processo de formação do estado.

3.2. Consciência – de - si, Vontade Livre e Direito Abstrato

De toda a argumentação ontológica de Hegel nos interessa nesse trabalho a premissa

segundo a qual a autoconsciência do Espírito infinito imprescinde de seres humanos racionais.

Segundo Hegel, é a razão humana que possibilita a reunificação desse Espírito assumindo

nessa reunificação as determinações individuais de cada ente finito e as suas específicas

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correlações dialéticas. O homem assume uma peculiaridade fundamental na Ontologia

Hegeliana, pois, é o único ser vivo que possui a capacidade de, na sua diferenciação com

relação ao mundo, deliberar racionalmente sobre as determinações objetivas desta relação, e

imprimir este pensamento no mundo sob a forma de desejo e de atividade sensível. Este

aspecto específico da humanidade, ou nas palavras hegelianas, da Ideia que se incorpora no

homem, é conceituado como a Consciência – de - si ou Autoconsciência.

Cabe aqui dedicar algum tempo para analisar o conceito da Consciência – de - si e

entendê-lo na perspectiva geral da obra hegeliana, principalmente as suas ocorrências na obra

“Fenomenologia do Espírito”. Neste livro Hegel nos oferece uma visão sistemática sobre o

movimento realizado pela Consciência para adquirir a capacidade de conhecer o mundo

exterior, enriquecendo suas próprias determinações por meio da experiência de conhecer este

mundo.

Podemos afirmar que a Consciência - de- si é, na verdade, o resultado do trajeto da

Consciência – presente no indivíduo enquanto atributo da sua racionalidade - que, no seu

processo de conhecer o mundo e a si próprio, percorre por um caminho de experiência desde o

saber fenomenal, puramente empírico, rumando ao Saber absoluto, perpassando pelos entes

corporificados do Espírito no mundo, a saber, o outro natural, o outro humano e a si mesmo,

realizando assim um processo de formação (Bildung) prática das suas próprias determinações

em consonância com a realidade espiritual. Sendo assim, a autoconsciência é um

reconhecimento do enredamento unívoco da realidade resultante da “descida” do Espírito bem

como do papel específico cumprido pelo ser humano dentro deste cenário, a saber, de ser o

veículo desta reunificação do Espírito no mundo.

Assim, o processo em direção a essa meta não pode ser detido, e não se

satisfaz com nenhuma estação precedente. O que está restrito a uma vida

natural não pode por si mesmo ir além de seu ser-aí imediato, mas é

expulso-para-fora dali por um Outro: esse ser-arrancado–para-fora é a sua

morte. Mas a consciência é para si mesma seu Conceito: por isso é o

imediatamente ir-além do limitado, e – já que este limite lhe pertence – é o

ir além de si mesma. (HEGEL, 2002, p. 76 §80)

Esta formação da Consciência se desdobra por meio de um conjunto de correções

realizadas pela própria consciência que sai de si mesma para reconhecer as qualidades e

propriedades dos objetos existentes fora de si e durante a experiência de percepção,

compreender as incorreções da atividade expressiva, retornar a si e realizar nova saída, desta

vez suprassumindo as suas limitações anteriores e desta forma conseguir galgar níveis

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superiores de relação sujeito-objeto até alcançar a unificação racional máxima que se expressa

nos conteúdos do Espírito Absoluto (Filosofia, Arte e Religião).

A Consciência, porém, através desse reconhecimento é capaz, ao mesmo

tempo, de suprassumir essa inverdade: distingue seu apreender do

verdadeiro, da inverdade de seu perceber, corrige-o. E, enquanto assume,

ela mesma, essa correção, a verdade – como verdade do perceber – recai

de certo na consciência. O comportamento dessa consciência é de tal modo

constituído que a consciência já não percebe simplesmente; senão que

também é cônscia de sua reflexão-sobre-si, e a separa da simples

apreensão. (HEGEL, 2002, p.100, §118.)

A Consciência-de-si, portanto, segundo as próprias palavras de Hegel, é o resultante do

progresso da consciência que, por meio de sua experiência perceptiva e analítica, percebe-se

também como ser consciente da sua própria evolução, enquanto ser que, mesmo finito, possui

uma propriedade distintiva e que é fundamental para a manutenção da sua autonomia com

relação ao mundo exterior, conhecendo-o e posteriormente manipulando-o.

Na “Filosofia do Direito”, este aspecto peculiar do homem assume a nomenclatura de

Vontade Livre. Este conceito, assim como todo conceito dentro da obra hegeliana, representa

uma narrativa menor que é parte integrante da narrativa maior – a saber, a narrativa do

desenvolvimento do Direito enquanto efetivação da liberdade – que envolve o caminho entre

a indeterminação infinita (Vontade Livre e Direito Abstrato) e a sua determinação finita

(Moralidade e Eticidade) que, neste caso, é a determinação da Vontade enquanto ato racional

para a satisfação de necessidades humanas individuais e coletivas.

A dialética da Vontade livre, apresentada na introdução da “Filosofia do Direito” é, de

fato, a lógica intrínseca à toda interpretação da formação do estado. Esta lógica é apresentada

em três momentos básicos que têm como eixo a realização efetiva da liberdade. Estes três

momentos são I) a Vontade individual que é infinita e “refletida dentro de si” (Vontade

singularizada); II) a negatividade desta infinitude e singularização nas determinações

exteriores e III) a vinculação dialética entxre a infinitude e as determinações exteriores na

composição dos conteúdos efetivos da vontade (vontade racional)14

.

Podemos concluir que o homem é o único ser vivo que, pelo uso da razão, pode ter

desejos, reconhecer o conteúdo dos seus desejos (“particularidade refletida dentro de si”) e

14

Cf. HEGEL. 2009, p. 59, 60. §7

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desenvolver meios práticos de satisfação destes desejos (“vinculação da negatividade consigo

mesma”), ou seja, a humanidade compartilha com o Espírito a possibilidade de alcançar uma

Consciência-de-si individual expressa por meio da atividade originada da sua vontade, que é

infinitamente livre no âmbito individual. Hegel tenta, neste conceito de Vontade livre,

articular o campo da expressividade, na intuição originária do desejo, e o campo da autonomia

moral, quando a partir do uso da razão este desejo se articula com as determinações exteriores

([...]“ enquanto é essa vinculação consigo ele é também indiferente em relação à essa

determinidade”) para desenvolver estratégias de satisfação da Vontade.

A dialética entre Desejo (determinações subjetivas) e a Satisfação (determinações

subjetivas e objetivas) coloca para esta vontade racional a questão da liberdade enquanto a

articulação entre a infinita liberdade do pensamento e o conjunto de determinações da

natureza que constituem a compreensão do campo da necessidade. A liberdade não pode mais

ser aquela abstrata uma vez que, ao tomar conhecimento das limitações impostas pelo

ambiente, o ser humano retorna a si e corrige o seu pensamento, somando conteúdos

concretos à sua vontade que antes era abstrata. Esta articulação é o que forma a Vontade

efetivamente Livre.

A vontade é a unidade desses dois momentos; - a particularidade refletida

dentro de si e por isso reconduzida à universalidade; a auto-determinação

do eu em pôr-se em um como o negativo de si mesmo, a saber, como

determinado, delimitado, e permanecer a si, ou seja, sua identidade consigo

e sua universalidade. O eu determina-se na medida em que é a vinculação

da negatividade consigo mesma; enquanto é essa vinculação consigo, ele é

também indiferente em relação à essa determinidade. – Tal é a liberdade da

vontade que constitui o seu conceito ou sua substância, seu peso. (HEGEL,

2009, p.60, §7).

O fato dos seres humanos racionais serem imbuídos de Vontade resulta, portanto, na

constante vinculação entre o indivíduo, consciente da singularidade dos conteúdos da sua

vontade, e a natureza, enquanto conjunto exterior de determinações sobre as quais serão

satisfeitas as vontades singulares mediadas pela atividade expressiva. Desta forma, a vontade

assume uma decisão perante o mundo, cindindo o que faz parte da esfera do humano

(racional) daquilo que faz parte da esfera da natureza (coisas inanimadas), consolidando a

personalidade do indivíduo.

Na personalidade reside que eu, enquanto este, sou finito e perfeitamente

determinado sob todos os aspectos (no arbítrio, no impulso e no desejo

interiores, assim como o segundo ser-aí exterior imediato), contudo sou

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simplesmente pura relação a mim e, na finitude, conheço-me enquanto o

infinito, o universal e o livre. (HEGEL, 2009, p. 79, §35)

O desenvolvimento da personalidade a partir da distensão entre indivíduo e natureza por

meio da vontade, abre espaço para a primeira esfera concreta da liberdade humana, a saber, o

Direito Abstrato. Em linhas gerais, o Direito abstrato é um direito negativo, baseado em não

ferir a liberdade da personalidade alheia, gerando apenas direitos de negação da ação

(proibições).

Pelo mesmo fundamento dessa sua abstração, a necessidade desse direito

delimita-se ao aspecto negativo de não lesar a personalidade e o que deriva

dela. Não há, por isso, senão proibições jurídicas e a forma positiva dos

imperativos jurídicos tem, por seu conteúdo último, as proibições por

fundamento (HEGEL, 2009, p. 81, §37)

O quadro do direito abstrato formado por Hegel até aqui se constitui da formação da

personalidade a partir da sua diferenciação com relação à natureza exterior a si mesma e da

consequente aquisição de direitos jurídicos de defesa dessa personalidade. Como a

individualização depende de uma natureza exterior onde essa vontade se expresse logo se

torna logicamente necessário que a personalidade tome conta de algo fora de si de forma a

tornar essa vontade interna em algo efetivo. Essa tomada da Coisa – externa, sem vontade e,

portanto, sem direitos15

- para si é o que Hegel conceitua enquanto Propriedade, esfera externa

da vontade livre.

“A pessoa tem o direito de colocar sua vontade em cada Coisa, que se torna

por isso a minha e recebe minha vontade por seu fim substancial, que ela

em si mesma não tem, por sua determinação e, por sua alma – direito de

apropriação absoluto do homem sobre todas as Coisas.” (HEGEL, 2009, p.

85, §44)

A propriedade possui um papel central na Filosofia do Direito, sendo a primeira

expressão efetivamente externa de uma liberdade que, pelo seu conceito clássico, só existe

internamente no sujeito. O indivíduo adquire direitos na medida em que se torna

autoconsciente; tal autoconsciência depende de um mundo natural sob o qual este “eu” se

confronte e se perceba enquanto diferente, naturalmente cindido, para que minha própria

liberdade se consolide. Entretanto, como esta liberdade é, de fato, o resultado de uma dialética

da vontade livre, a primeira via para a efetivação da liberdade é a via da apropriação da

natureza para satisfação desse desejo. O Direito abstrato é o direito que o ser humano possui

15

“O que é imediatamente diverso do Espírito livre é, para ele e para si, o exterior em geral – Uma Coisa, algo

de não livre, de impessoal e desprovida de qualquer direito.” (HEGEL, p. 83, §42).

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de ter uma propriedade, ou seja, o direito de manter relações de apropriação com as Coisas

inanimadas de forma a estabelecer um domínio exterior da sua liberdade.

Esta liberdade é realizada por meio do Uso da Coisa, “realização de meu carecimento

pela transformação, aniquilamento e consumo da Coisa” (HEGEL, 2009, p. 95, §59). O Uso

da coisa reflete um aspecto fundamental da relação com a natureza, um aspecto espiritual

relacionado com a correta relação entre cada esfera (Sujeito e objeto). Cada forma de

consumo da Coisa reflete um nível diferente de relação com a Natureza, refletindo uma

alteração progressiva da relação entre Homem e natureza.

“A utilização de uma coisa, na apreensão imediata, é para si uma tomada

de posse singular. Mas, na medida em que a utilização se funda em um

carecimento que perdura e é a utilização repetida de um produto que se

renova em que ela se delimita também em vista da manutenção dessa

renovação, essas circunstâncias e outras fazem dessa tomada singular

imediata um sinal de que ela deve ter a significação de uma tomada de

posse universal.”(HEGEL, 2009, p. 95, §60)

Outro aspecto inerente à propriedade é a possibilidade de alienação daquilo que cada

indivíduo se apropria. A alienação ou alheação da propriedade é simplesmente o ato de retirar

da Coisa a minha vontade, deixando-a solta na natureza novamente ou transmitindo esta Coisa

para outra Vontade.

“Eu posso me alhear da minha propriedade, pois ela é minha, na medida

em que eu coloco nela minha vontade, - de modo que, de maneira geral, eu

deixo minha Coisa enquanto sem dono (deixo-a em abandono) ou a entrego

à vontade de outro em vista da posse – mas apenas na medida em que a

Coisa é, segundo sua natureza, algo exterior” (HEGEL, 2009, p. 100, §65)

A possibilidade, dentro da esfera da alienação da propriedade, de estabelecer contato

com outra pessoa, por meio da troca de Coisas abre uma nova perspectiva dentro do Direito

abstrato, a saber, a perspectiva do Contrato enquanto a primeira relação entre personalidades.

O Contrato define uma vinculação entre Vontades que estão expressas nas Coisas as quais

estão sendo permutadas. Sendo assim, o Contrato não estabelece apenas as condições para que

cada pessoa obtenha a propriedade da outra Coisa; o Contrato representa uma vinculação

entre alienação e reapropriação da vontade um do outro, realizando uma ligação entre a

vontade de um e a vontade de outro.

“Eu não apenas posso me alhear de uma propriedade (§65), enquanto uma

Coisa exterior, porém é preciso, pelo conceito, que eu me alheie dessa

propriedade enquanto propriedade, a fim de que minha vontade seja para

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mim objetiva enquanto sendo-aí. Mas, segundo esse momento, minha

vontade enquanto alheada é ao mesmo tempo uma outra vontade. Por isso

aquilo em que essa necessidade do conceito é real é a unidade das vontades

diferentes, na qual sua diferenciação e seu caráter próprio renunciam,

assim, a si.” (HEGEL, 2009, p. 107, §74)

O Contrato, portanto, é este acordo entre duas vontades que, ao alienarem-se das suas

propriedades, estabelecem um vínculo entre os conteúdos das suas respectivas vontades. Este

vínculo constitui a dimensão do Direito em Si, ou seja, do Direito de preservação de cada

vontade como pressuposto implícito na dinâmica do contrato. Na possibilidade de acontecer

uma alienação forçada de uma propriedade alheia por parte de uma vontade não concordante

com a outra vontade, constitui-se o ilícito, compreendido como a elevação da vontade

particular a direito particular de forma unilateral, sem a concordância explícita de dois

indivíduos. Esta imposição da vontade como direito torna essa alienação apropriativa da Coisa

ilícita segundo o Direito posto pela dinâmica do Contrato.

No contrato, o direito em si é, enquanto algo posto, sua universalidade

interna, enquanto algo comum do arbítrio e da vontade particular. Esse

fenômeno do direito, em que ele e seu ser - aí essencial, a vontade

particular, concordam imediatamente (...) progride até o ilícito até a

contraposição do direito em si e da vontade particular, enquanto nela se

torna um direito particular. Mas a verdade dessa aparência é ser nula, e o

direito se restabelece através do negar essa sua negação, processo pelo

qual sua mediação, de retornar de sua negação a si, se determina como

efetivo e válido, quando inicialmente era apenas em si e algo imediato.

(HEGEL, 2009, p.115, §82)

O Ilícito, portanto, é a contraditoriedade presente no direito estabelecido a partir da

dinâmica do contrato. O cerne desta contradição é a sobreposição da vontade particular,

tomada unilateralmente como direito por uma das partes da relação intersubjetiva. Este ilícito

se realiza como não-intencional, fraude, Coação e crime propriamente dito. Para fins desta

pesquisa, concentraremos nossa análise no conceito de Crime.

A tomada violenta ou impositiva da propriedade alheia - a Coisa sobre a qual a

consciência particular atribui sua vontade considerada como direito – constitui o ato de

coação. Concretamente, este ato constitui o roubo da propriedade alheia por meio de um ato

violento, como o assalto por exemplo. Abstratamente – e é nessa dimensão que se encontra a

racionalidade do Direito – este ato configura a forçada limitação da vontade alheia a partir da

subjugação do outro, fato este que infringe o aspecto mais essencial da Vontade que é a sua

liberdade (§4). A liberdade é o princípio da vontade, determinação essencial da pessoa que só

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pode ser alienada por um ato volitivo do próprio individuo. Quando esta vontade é totalmente

subjugada, afetando a dimensão essencial da liberdade da vontade, está consolidado o Crime.

Enquanto vivo, o homem pode certamente ser subjugado, ou seja, seu

aspecto físico e qualquer aspecto exterior estão colocados sob a violência

de outro, mas a vontade livre não pode em si e para si ser coagida, a não

ser na medida em que não se retira ela mesma da exterioridade em que está

retida, ou da representação dela. Apenas pode ser coagido a algo que quer

ou se deixa coagir. (HEGEL, 2009, p.118, §91)

A liberdade só pode ser coagida por ato deliberado do indivíduo. Se esse ato não

existe, então a coação deve ser revidada a fim de que a liberdade perdida seja restabelecida.

Ao negar a vigência do Direito abstrato, do direito presente na propriedade e no contrato, o

primeiro ato visado é a vingança como forma de retomar a liberdade a partir da retaliação e

indenização direta. Sendo assim, Coação após coação, crime após crime se sucedem em uma

progressão ao infinito.

O suprassumir do crime é, nessa esfera da imediatidade do direito,

inicialmente vingança, justa quanto ao seu conteúdo, na medida em que ela

é retaliação. Mas, quanto à forma, ela é ação de uma vontade subjetiva, que

pode colocar sua infinitude em toda lesão ocorrida e, por isso, como

conseqüência, a justiça é de modo geral contingente, assim como essa

vontade também é apenas para o outro enquanto particular. (HEGEL,

2009, p. 125, §102)

Neste ponto Hegel, a partir da problematização crítica da vingança enquanto ato

indenizatório do crime sofrido começa a estabelecer os fundamentos do direito penal do

futuro estado. Estes fundamentos se encontram na exclusão do aspecto subjetivo presente na

vingança, onde é a minha vontade particular que determina o conteúdo da retaliação contra

outra vontade particular que coagiu a minha vontade. Entretanto, Hegel preserva o aspecto da

retaliação, pois compreende que o Crime só pode ser efetivamente superado quando a vontade

que realizou este ato sofre violação, abstratamente, de igual intensidade.

O Suprassumir do crime é retaliação, na medida em que é segundo seu

conceito, violação da violação, e em que o crime, segundo seu ser-aí, tem

uma extensão qualitativa e quantitativa determinada, com isso, sua negação

enquanto ser-aí, tem também tal extensão. Mas essa identidade, que

repousa sobre o conceito, não é igualdade do caráter específico, porém no

caráter sendo em si da violação – igualdade segundo o valor da mesma.

(HEGEL, 2009, p. 123, §101).

Portanto, o que Hegel propõe é a constituição de uma justiça que esteja livre dos

interesses meramente individuais, defendendo o valor abstrato do direito em si,

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principalmente a garantia da liberdade da vontade, estabelecendo penas cabíveis e objetivas

para as ilicitudes cometidas pelas vontades particulares. Esta justiça garante pela indenização

do crime, a imposição de uma igualação valorativa dos atos pelo seu caráter punitivo

(objetivo) e não pelo seu caráter vingativo (subjetivo)16

.

A exigência de que seja resolvida essa contradição é a exigência de uma

justiça libertada dos interesses e da figura subjetivos, assim como da

contingência do poder, portanto, de uma justiça que seja não vingadora,

mas punitiva. Nisso reside, primeiramente, a exigência de uma vontade que

enquanto vontade subjetiva particular queira o universal enquanto tal. Mas

esse conceito da moralidade não é apenas algo exigido, porém algo surgido

nesse próprio movimento. (HEGEL, 2009, p. 126, §103)

3.3. Moralidade: Contradições entre dever e autonomia

No parágrafo acima citado, portanto, temos a primeira ocorrência da Moralidade

dentro da Filosofia do direito de Hegel. A Moralidade surge como resultante histórica da

vinculação da personalidade com o mundo natural que, partindo das formas mais imediatas de

relação com a natureza e com as outras vontades, percebe pela sua própria experiência a

necessidade de construir alguma universalidade para resguardar com mais segurança a sua

própria particularidade. A suprassunção do crime e da contingência penal da vingança,

portanto, abre caminho para a consciência da Moralidade enquanto liberdade consciente da

vontade, ou seja, exclusão da contingência da liberdade abstrata em defesa de uma liberdade

universal do sujeito. A formação da subjetividade, portanto, é o para-si da liberdade da

vontade, ou seja, a contradição que envolve o ilícito impõe aos indivíduos que eles se tornem

sujeitos, tenham consciência dos conteúdos da sua vontade de liberdade e que este conteúdo

não esteja vinculado a uma ou outra vontade individual, mas a uma norma universal da

subjetividade que possa trazer para dentro do conceito um padrão que sirva para todas as

vontades individuais.

A segunda esfera, a moralidade, apresenta por isso no todo o aspecto real

do conceito de liberdade, e o processo dessa esfera consiste em

suprassumir, segundo essa diferença em que mergulha a vontade, que

inicialmente apenas sendo para si e que imediatamente apenas em si é

idêntica com a vontade sendo em si ou universal, e a pô-la para si como

idêntica com a vontade sendo em si. Esse movimento, segundo isso, é a

16

“O criminoso revela quanto de particular está implícito da presumida universalidade da lei, já que através do

seu ato viola interesses particulares e suscita a reação de indivíduos particulares, os quais querem vingança. De

fato, contudo, ele está protegendo vontades particulares em nome de princípios gerais, antecipando aquela que

será a posição do “ponto de vista moral” e, ao mesmo tempo, mostrando a necessidade (o princípio) que está

atrás do contingente (a norma jurídica particular)” (PINZANI in FLECK, 2011, p. 71)

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elaboração do que agora é o terreno da liberdade, a subjetividade.

(HEGEL, 2009, p. 129, §106).

A esfera da moralidade estabelece um novo parâmetro para os conteúdos da vontade.

Nesta esfera, a vontade é autodeterminada, ou seja, o direito deste sujeito é determinado pela

própria vontade que o sujeito elabora racionalmente. Neste ponto do desenvolvimento dos

sujeitos, portanto, temos que cada indivíduo diferencia-se com relação ao conceito, ou com

relação à natureza espiritual do mundo. A esfera da moralidade é a esfera na qual os sujeitos

realizam a cisão entre liberdade e mundo natural, estabelecendo para si mesmos inclusive os

parâmetros próprios do direito. Neste ponto, podemos destacar as reflexões históricas de

Hegel sobre Sócrates que servem para ilustrar o que significa vincular a sua vontade

completamente a autodeterminação individual.

A consciência alcançou este ponto na Grécia, quando em Atenas a grande

forma de Socrates, na qual a subjetividade do pensamento foi trazida para a

consciência de maneira mais definida e completa, agora apareceu. Mas

Sócrates não cresceu como um cogumelo que brota da terra, uma vez que

ele se situa em continuidade com o seu tempo, e assim não é apenas a mais

importante figura na História da filosofia – talvez a mais interessante na

filosofia da antiguidade – mas é também um personagem mundialmente

famoso.Em um ponto de viragem mental exibiu a si mesmo na forma de

pensamento filosófico. Se nós rapidamente retomarmos os períodos que já

passaram, nós encontraremos que os antigos filósofos jônicos certamente

pensavam, mas sem refletir sobre o pensamento ou definir seus produtos

como pensamentos. (...). Sócrates expressou a existência real como um

“Eu” universal, como a consciência que reside nele mesmo; mas isto é o

bem em si, o qual é livre da realidade existente, livre do consciência

sensível do indivíduo de desejo ou sentimento, livre finalmente do

pensamento especulativo teórico sobre a natureza, o qual, se é de fato

pensamento, ainda tem a forma de ser na qual eu não tenho certeza da

minha existência17

.

Podemos concluir pela leitura do trecho acima das “Lições de História da Filosofia”,

que Sócrates desponta como produto do seu contexto, enquanto ateniense e cidadão da polis

grega, revelando para a Filosofia e a cultura grega a subjetividade universal, o sujeito que se

reconhece como pensante autônomo diferenciado o “eu” universal os conteúdos da vontade

geral da pólis. Por este motivo, Hegel afirma que a Moralidade é uma esfera que é diferente

do conceito (Cf. HEGEL, 2009, §106 e anotação) que na sua trajetória irá novamente

encontrar-se com ele, dessa vez enriquecida com o reconhecimento das determinações da

subjetividade.

17

HEGEL, Lectures on the History of Philosophy,

http://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/hp/hpsocrates.htm (acessado em 04/04/2014).

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29

Retomando a ilustração socrática, Hegel deduz que a motivação da condenação à

morte de Sócrates por parte da polis ateniense fora resultante da ameaça da sua descoberta do

eu universal, no sentido de incitar o pensamento independente da vida pública, colocando,

assim, em risco a própria vida da Pólis que era pura Eticidade18

. Entretanto, sua contribuição

foi importante para evidenciar a dimensão moral, subjetiva, da Eticidade coletiva.

Em relação com o que segue, nós devemos ainda mais considerara relação

do Gênio com a forma anterior existente de decisão, e aquela na qual levou

à Sócrates. Porque o ponto de vista da mente grega era a moralidade

natural, na qual o homem ainda não havia determinado a si mesmo, e ainda

menos era o que chamamos de consciência presente, desde que as leis era,

em seus princípios fundamentais, tratadas como tradicionais, estas ultimas

agora apresentado uma aparência do ser sancionados pelos deuses. Nós

sabemos que os gregos sem dúvida tinham leis com as quais formavam seus

julgamentos, mas por outro lado, na vida privada e na vida pública,

decisões imediatas tinham que ser feitas. Mas naquele momento os gregos,

com toda a sua liberdade, não decidiram a partir da vontade subjetiva. Este

elemento, o fato de que as pessoas não tinham o poder de decisão, mas

foram determinadas sem ela, era um fator real na consciência da Grécia; e

os oráculos estavam por toda parte essencial onde os homens não

conheciam ainda a si mesmo interiormente como seres suficientemente

livres e independentes para tomarem por si mesmo a decisão como nós

fazemos. Esta liberdade subjetiva, a qual não era ainda presente emtre os

gregos, é o que nós designamos no tempo presente quando falamos de

liberdade de expressão19

.

Enquanto na Grécia antiga as condições concretas para o surgimento de uma esfera

individual independente começam a surgir, mas não estavam plenamente amadurecidas, na

modernidade é exatamente esta a esfera da liberdade, a saber, a garantia da autonomia

subjetiva em relação à substância ética20

. Por este motivo, Hegel, percebendo tal

amadurecimento na própria história, aprofunda-se na investigação da subjetividade dentro da

esfera moral, dentro deste pensamento interiorizado e auto-referenciado.

Segundo Hegel, a moralidade se subdivide em três esferas complementares: O propósito

e a culpa; a Intenção e o Bem-estar; e a Consciência moral (Cf. HEGEL, 2009, §114). Vamos

a analisar cada uma delas.

18

Este conceito hegeliano será explicitado a partir do subcapítulo 3.4 deste trabalho (p.37). 19

HEGEL, Lectures on the History of Philosophy,

http://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/hp/hpsocrates.htm (acessado em 04/04/2014). 20

“Portanto, diferentes comunidades éticas em diferentes épocas atribuíram diferentes significado à figura do

ator, do sujeito. Por isso, o individuo descrito nos Princípios só pode ser o indivíduos da modernidade

ocidental, não o ser humano tout-court; e o sujeito moral descrito na seção ‘Moralidade’ é o sujeito moral

assim como foi formando-se na tradição moderna, em particular na formulação que dele ofereceram Kant e

Fichte.” (PINZANI in FLECK. 2011, p. 76).

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30

Inicialmente, o sujeito moral se caracteriza por estabelecer autonomamente um objeto

exterior para a sua vontade, como visto anteriormente na questão da propriedade. A ação a ser

realizada pelo sujeito impõem a esta Coisa inanimada que agora é minha propriedade uma

transformação desta Coisa em vista de satisfazer alguma necessidade minha - o que constitui

o propósito da ação – e a possibilidade de desarranjo entre o propósito de transformação da

Coisa e as propriedades internas das Coisas estabelece o campo da Culpa. Sendo o resultante

essencial da minha deliberação, ele está arraigado da minha responsabilidade21

sobre os

conteúdos da transformação que aplico sobre a natureza, o que constitui a culpa (cf. §115).

Portanto, Propósito e Culpa são duas constantes do agir moral imediato e esta só pode ser

atribuída ao sujeito moral dentro dos limites do propósito da ação22

, ou seja, sobre as

consequências diretas da deliberação moral do sujeito sobre o objeto (cf. §116).

As consequências (da ação sobre a coisa) enquanto são a figura que tem

por alma o fim da ação, são o que é seu (o que pertence a ação) – mas, ao

mesmo tempo, enquanto fim posto na exterioridade, a ação é entregue a

forças exteriores, que ligam a isso algo totalmente diverso do que ela é

para si e a prolongam em consequências distantes, estranhas. É igualmente

o direito da vontade apenas imputar-se o primeiro aspecto, porque ela

apenas reside em seu propósito. (HEGEL, 2009, p. 135, §118)

Como visto no parágrafo acima, a Coisa possui um conjunto variado de

determinações, as quais o propósito que eu aplico deseja transformar determinações

específicas dessa Coisa. A singularidade da minha ação sobre a Coisa externa configura a

Intenção do sujeito enquanto aspecto universal imbuído no meu propósito abstrato, ou seja, a

ação de efetivar a transformação necessária para mim elaborada autonomamente pela minha

razão. A eleição de uma específica intervenção sobre a Coisa diante da miríade de

possibilidades que as determinações da Coisa me proporcionam, bem como a sua explicitação

compõem esta esfera da Intenção do sujeito.

Intenção contém etimologicamente a abstração de um lado, a forma da

universalidade, de outro lado, o extrair de um aspecto particular da Coisa

concreta. O esforço da justificação pela intenção é o isolar de um aspecto

singular em geral, do qual se afirma ser a essência subjetiva da ação.

(HEGEL, 2009, p. 136, §119) 21

A primeira pessoa utilizada neste trabalho tem objetivo metodológico de destacar a esfera da moralidade, em

Hegel, como a Esfera do “Eu” que se reconhece e se diferencia do mundo. Todas os desenvolvimentos dessa

esfera se remetem à uma subjetividade universal, a etapas necessárias do desenvolvimento da subjetividade

humana na modernidade. 22

“As conseqüências enquanto são a configuração imanente própria à ação, manifestam apenas sua natureza e

não são outra coisa senão ela mesma; por isso a ação não pode negá-las nem desprezá-las. Mas, inversamente

compreende-se também entre elas o que ocorre de maneira exterior e se acrescenta de maneira contingente que

em nada concerne à natureza da própria ação.” (HEGEL, 2009, §118, p. 135)

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31

O que distingue a Intenção do propósito é o fato daquela ser a expressão racional

deste, uma vez que é a singularidade do meu trato com a Coisa exterior sendo afirmado pelo

meu pensamento e minha ação autônoma enquanto resultante da minha vontade racionalmente

elaborada, ou seja, o propósito singular e explícito produzido unicamente pelo sujeito. Como

é a resultante da ação autônoma sobre a coisa, podemos afirmar, portanto que é na realização

da ação circunscrita pela intenção do sujeito que reside tacitamente a liberdade subjetiva. A

liberdade subjetiva é a resultante desta dinâmica da intenção, pois, se a interação entre Sujeito

e Coisa é uma relação entre particulares, o conteúdo da ação resultante desta relação será um

conteúdo particular de responsabilidade única e exclusiva do sujeito autônomo que a originou.

É de responsabilidade do sujeito, pois foi uma ação que visava inicialmente satisfazer uma

necessidade minha.

A qualidade universal da ação é o conteúdo múltiplo da ação em geral

reconduzido à forma simples da universalidade. Mas o sujeito refletido

dentro de si, com isso, é um particular frente à particularidade objetiva, tem

no seu fim seu próprio conteúdo particular, que é a alma determinante da

ação. O fato de que esse momento da particularidade do agente esteja

contido e realizado na ação constitui a liberdade subjetiva em sua

determinação mais concreta, o direito subjetivo de encontrar na ação a sua

satisfação. (HEGEL, 2009, p. 138, §121)

Partindo das conclusões anteriores, o valor da ação moral é o interesse e a satisfação que

ela me proporciona, ou seja, o valor é puramente egoísta (Cf. HEGEL, 2009, §122). A

intenção neste caso torna-se um meio para obtenção da finalidade maior da ação moral, a

saber, o Bem-estar ou a felicidade que posso obter a partir da minha relação com as Coisas.

Em suma, a liberdade subjetiva é efetivada pela ação, mas só adquire conteúdo na medida em

que os carecimentos do sujeito alcançam a satisfação como resultante desta atividade formal.

Mas a liberdade da subjetividade, ainda abstrata e formal, apenas tem

conteúdo ulteriormente determinado em seu ser aí subjetivo natural,

carecimentos, inclinações, paixões, opiniões, fantasias, etc. A satisfação

desse conteúdo é o bem-estar ou a felicidade em suas determinações

particulares e, na maneira universal, os fins da finitude em geral. (HEGEL,

2009, p. 139, §123)

Entretanto, mesmo imerso em sua própria cadeia de carecimentos e satisfações, o

sujeito permanece abstratamente vinculado ao conceito, uma vez que reconhece a existência

de outros seres racionais no mundo além de si mesmo. Ao alcançar o nível do Bem-Estar, o

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sujeito não pode negar-se a reconhecer que outras subjetividades diferentes de si mesmo

também estabelecem a sua própria cadeia de carecimentos, ações e satisfações a qual ele

mesmo está sujeito. Sendo assim, se considera direito seu a liberdade subjetiva de alcançar

este Bem-estar, também reconhece como direito dos outros as mesmas determinações,

podendo ocorrer uma consonância de objetivos, como também a desconformidade de

interesses (Cf. HEGEL, 2009, §125). Essa contradição se aprofunda na medida em que só

posso reconhecer o direito e a liberdade subjetiva do outro na medida em que eu também sou

um sujeito livre, logo, não existe ação que justifique no direito em-si a sobreposição de

interesses, incorrendo em ilicitude de coação da liberdade alheia.

Mas, de maneira geral, minha particularidade, assim como a do outro,

apenas é um direito na medida em que eu sou um ser livre. Por isso não

pode afirmar-se em contradição com esse seu fundamento substancial; e

uma intenção visando meu bem-estar, assim como o bem-estar do outro –

no caso em que é chamada particularmente uma intenção moral – não pode

justificar uma ação ilícita. (HEGEL, 2009, p. 141, §125).

Entretanto, investigando um pouco mais a liberdade subjetiva de Bem-estar, há uma

situação onde a interferência na liberdade do outro não incorre necessariamente em ilicitude,

segundo Hegel. Esta situação, a saber, se resume ao direito de miséria (Jus necessitatis. Cf.

HEGEL, 2009, §127) onde o sujeito compreende a existência concreta de uma violação do

direito do outro (“A particularidade dos interesses da vontade natural, reunida em sua

totalidade simples, é o ser aí pessoal enquanto vida”) 23

devido à privação dos meios para

satisfação das carências subjetivas. Desta perspectiva surgem as limitações envolvidas no

Bem-Estar subjetivo, bem como a necessidade de sua superação.

A miséria revela a finitude, e nela a contingência, tanto do direito como do

bem estar - [quer dizer], a do ser – aí abstrato da liberdade que não é a

existência de uma pessoa particular, e da esfera da vontade particular,

desprovida da universalidade do direito. (HEGEL, 2009, p. 142, §128)

O Direito e a liberdade subjetivas, salutares conquistas da modernidade, encontram na

miséria uma contradição efetiva. Reconheço que o direito e a liberdade subjetiva possuem um

conteúdo vinculado ao conceito (universal) e, ao mesmo tempo, necessitam de bases

concretas para existirem (particular), sendo esta vinculação, mesmo abstrata, entre o direito

em si e as condições objetivas para a realização do direito, o conteúdo do Bem e da

Consciência Moral.

23

HEGEL, 2009, p. 142, §127

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Os dois momentos assim integrados até a sua verdade e sua identidade, mas

que estão inicialmente numa vinculação ainda relativa de um ao outro, são

o Bem enquanto universal preenchido, determinado em si e para si, e a

consciência moral, enquanto subjetividade infinita, que se sabe dentro de si

e que determina o conteúdo dentro de si. (HEGEL, 2009, p. 142, §128)

O Bem, portanto, é o conteúdo universal que inclui a satisfação particular, mas acumula

um conteúdo necessário que abarque o conjunto de necessidades individuais, ou seja, a

“[unidade] na qual o direito abstrato e a contingência do ser-aí exterior são suprassumidos

enquanto autônomos para si, mas com isso contidos e conservados segundo sua essência”24

.

Para Hegel, o bem-estar é incoerente com a liberdade quando considerado em si mesmo pelo

seu potencial egoísmo. Este adquire validade apenas na medida em que está em conformidade

com o direito em – si, com o Bem universal. O Bem, portanto, funciona como componente

universal da vontade particularizada, sobrepondo um direito absoluto sobre o direito

particularizado de Bem - estar.

Assim, o Bem, enquanto necessidade de ser efetivo pela vontade particular

e, ao mesmo tempo, enquanto substância dessa vontade, tem o direito

absoluto contra o direito abstrato da propriedade e dos fins particulares do

bem-estar. Cada um desses momentos, na medida em que se diferencia do

Bem, apenas tem validade na medida em que lhe é conforme e subordinado.

(HEGEL, 2009, p. 143, §130)

Para fins de esclarecimento, podemos entender a relação entre bem-estar e Bem como o

imperativo que rege a ação moral dos sujeitos25

26

. Efetivamente, temos a liberdade absoluta

proporcionada pela racionalidade de realizar no mundo ações visando a nossa satisfação.

Entretanto, percebemos que a mesma liberdade que eu usufruo é compartilhada também por

outros sujeitos, morais, porque também são racionais como eu. Portanto, torna-se possível que

a minha satisfação esteja em rota de colisão com a satisfação de outrem, adentrando em uma

restrita dimensão social onde impera o homo lúpus homini. No sentido de evitar a guerra de

todos contra todos, os seres humanos, racionais para seus próprios fins, alcançam também

24

HEGEL, p. 143, §129 25

Partindo desse ponto de vista, nenhuma doutrina imanente das obrigações é possível; pode-se, na certa,

importar um material tomado de fora e por ali chegar a obrigações particulares, mas a partir dessa

determinação, enquanto falta de contradição [ou enquanto] concordância formal consigo, que não é outra coisa

do que a fixação da indeterminidade abstrata, não pode se passar à determinação de obrigações particulares,

ainda se um tal conteúdo particular entra em consideração para o agir, não reside mais nesse princípio um

critério para saber se é ou não uma obrigação. (HEGEL, p. 147, §135, anotações) 26

Este momento da esfera da moralidade guarda estreitas semelhanças com a filosofia moral Kantiana. Hegel foi

um dos maiores interpretes e críticos dessa Filosofia moral, utilizando-a explicitamente na sua filosofia do

direito na medida em que refletem as determinações individualidade, mas realizando as críticas devidas com

relação ao excessivo individualismo que impossibilita a formação de uma comunidade ética. A bibliografia

sobre a relação entre Kant e Hegel no debate da moralidade é bastante vasta; sugerimos MULLER (1998),

FLECK e RAMOS (2011) e TAYLOR (2002) entre outras contribuições ao debate.

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racionalmente a finalidade universal que permeia todas as finalidades particulares, o Bem, que

é o conteúdo reconhecido presente na vontade particular por cada sujeito. Dessa forma, um

imperativo universal pode abarcar as particularidades sem que isso seja necessariamente uma

coerção da liberdade subjetiva.

Igualmente, para a vontade subjetiva, o Bem é simplesmente essencial, e ela

apenas tem valor e dignidade na medida em que lhe está conforme em seu

discernimento e em sua intenção. Na medida em que o Bem é aqui ainda

essa idéia abstrata do Bem, assim a vontade subjetiva ainda não está posta

como admitida nele e conforme a ele; por esse motivo ela fica em uma

relação com ele e, de fato, na relação pela qual o Bem deve ser para ela o

substancial, - pela qual ela deve fazer dele um fim e levá-lo a cabo – assim

como o Bem, de seu lado, possui apenas na vontade subjetiva a mediação

pela qual entra em efetividade. (HEGEL, 2009, p. 143, §131)

Fica aqui claro, portanto, que dentro das limitações da esfera do Bem, não há

contradição entre liberdade individual e imperativo do Bem, uma vez que este Bem só fará

parte da minha ação moral na medida em que reconheço a sua necessidade27

. De fato esta

dinâmica do reconhecimento por parte do sujeito de esferas mais amplas da sua própria

liberdade será a tônica da Filosofia do Direito a partir deste ponto. O objetivo, um pouco mais

explícito a partir daqui, após traçar a constituição do sujeito moral e livre, é demonstrar, por

meio da narrativa, como o sujeito transita da esfera puramente subjetiva e consegue tornar sua

liberdade algo objetivo ou como o sujeito estabelece laços comunitários, sem abrir mão da sua

liberdade conquistada em foro íntimo.

Retomando a dinâmica do bem-estar e do Bem, é exatamente a vinculação entre a

deliberação particular com um parâmetro universal de moralidade que possibilita aos sujeitos

realizar o julgamento moral, estabelecer um conteúdo valorativo de caráter universal sobre as

ações particulares realizada pelos sujeitos no mundo.

O direito da vontade subjetiva consiste no fato de que o que ela deve

reconhecer como válido seja por ela discernido como bom e que uma ação,

enquanto fim que penetra na objetividade exterior, seja a ela imputada

como conforme ou contrária ao direito, como boa ou má, como legal ou

ilegal, segundo o conhecimento que ela tem do valor da ação nessa

objetividade. (HEGEL, 2009, p. 144, §132).

Como o sujeito reconhece, na sua ação particular, o seu conteúdo universal no sentido

de permanecer vinculado com a ideia mais geral de Bem, desenvolve-se neste sujeito uma

27

“O direito de nada reconhecer do que não distingo como sendo racional é o direito supremo do sujeito, mas é

ao mesmo tempo formal, por sua determinação subjetiva, e o direito racional enquanto direito do objetivo sobre

o sujeito permanece firmemente estabelecido frente a ele.” (HEGEL, p. 144, §132, anotações)

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concepção de dever ou obrigação, a qual deve ser cumprida no sentido de permanentemente

vincular bem-estar e Bem, uma vez que estes são duas motivações distintas e esporadicamente

contraditórias. Principalmente no momento da contradição entre vontade particular e direito

universal, o sujeito deve apegar-se dogmaticamente à obrigação uma vez que esta é a base

sobre para que a deliberação moral do sujeito se afaste dos desígnios puramente particulares

incorrendo em ação egoísta, uma vez que busca permanecer vinculado à moralidade universal

(Cf. HEGEL, 2009, §133).

A abstrata incondicionalidade da obrigação moral, que significa “realizar o direito e

cuidar do bem-estar, de seu próprio bem estar e do bem-estar em uma determinação

universal” (Cf. HEGEL, 2009, §134) colocam-na em uma esfera superior à deliberação

subjetiva, imputando aos sujeitos um código moral que é considerado em sua positividade, no

seu sentido dogmático. Neste ponto, se encaixa nas anotações do §135 onde Hegel critica a

filosofia moral kantiana, crítica que se baseia na falta da historicidade da moral humana

baseada totalmente na subjetividade apartada da natureza. Esta anotação esta que serve

também para ilustrar os passos finais da esfera da Moralidade, etapa onde Hegel irá

fundamentar as limitações desta esfera e a Eticidade como realidade efetiva da liberdade.

(...) o conhecimento da vontade apenas ganhou seu fundamento e seu ponto

de partida sólidos com a filosofia kantiana pelo pensamento de sua

autonomia infinita, quanto a manutenção do ponto de vista simplesmente

moral, que não passa para o conceito da Eticidade, rebaixa esse ganho ao

nível de um formalismo vazio e a ciência moral ao nível de um falatório

sobre a obrigação pela obrigação. Partindo desse ponto de vista, nenhuma

doutrina imanente das obrigações é possível; pode-se, na certa, importar

um material tomado de fora e por ali chegar a obrigações particulares, mas

a partir dessa determinação da obrigação, enquanto falta de contradição,

ou enquanto concordância formal consigo, que não é outra coisa do que a

fixação da indeterminidade abstrata, não se pode passar à determinação de

obrigações particulares, ainda se um tal conteúdo particular entra em

consideração para o agir, não reside mais nesse princípio um critério para

saber se é ou não uma obrigação. – Ao contrário, toda maneira de agir

ilícita ou imoral pode dessa maneira ser justificada. (HEGEL, 2009, p. 147,

Anotações §135)

Esta crítica hegeliana leva a um salto nas reflexões sobre a moralidade, salto este

relacionado com a Consciência moral enquanto rebelião do sujeito com a positividade do

dever. A Consciência moral é o momento da esfera da moralidade onde o sujeito estabelece

valores resultantes da vinculação entre a minha autoconsciência livre e o direito universal, ou

seja, é o momento em que o dever que antes era reconhecido, depois imposto, torna-se

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principio formado por mim, uma disposição efetiva do espírito. O sujeito imbuído de

Consciência moral é aquele “que deseja querer o que é bom em si e para si” (Cf. HEGEL,

2009, §137), ou seja, que estabiliza o conflito entre satisfação e Bem firmando seus próprios

princípios estáveis pelos quais a deliberação racional transitará com mais autonomia a partir

de então. Entretanto, a consciência é apenas na ideia e, portanto,

Ela é apenas o aspecto formal da atividade da vontade que, enquanto essa

vontade, não tem nenhum conteúdo próprio. Mas o sistema objetivo desses

princípios e obrigações e a reunião do saber subjetivo com esse apenas

estão ali presentes do ponto de vista da Eticidade. Aqui, no ponto de vista

formal da moralidade, a consciência moral é desprovida desse conteúdo

objetivo, é assim para si a certeza formal infinita de si mesma que

precisamente por causa disso é ao mesmo tempo enquanto certeza desse

sujeito. (HEGEL, 2009, p. 148, §137)

Portanto, a consciência moral é I) uma construção moral do sujeito em vinculação e

reconhecimento para si do dever; II) uma consciência que serve para definir os limites da

minha deliberação racional, mesmo que eu reconheça que esta ação deve levar em

consideração os efeitos da sua externalização sobre outros sujeitos e III) fruto da

reivindicação pela liberdade subjetiva, uma vez que reconheço a validade do Bem mas desejo

formular por mim mesmo o conteúdo da deliberação moral. De fato, segundo Hegel, a

Consciência moral é a moralidade imiscuída na Consciência-de-si do sujeito, expressando

junção entre o auto-reconhecimento do sujeito enquanto ser racional e enquanto ser moral

enquanto o mesmo desenvolvimento em busca do meu propósito ideal.

A consciência moral expressa a autorização absoluta da autoconsciência,

isto é, saber dentro de si e a partir de si o que é direito e obrigação e nada

reconhecer a não ser o que ela sabe como Bem, com o que ao mesmo tempo

afirma que o que ela sabe e quer é, em verdade, direito e obrigação.

(HEGEL, 2009, p. 148, §137 anotações)

A contradição que surge do advento da Consciência moral se resume ao fato de que a

sua “hipersubjetividade” é um reflexo da destruição da “determinidade do direito”, ou seja, o

sujeito passa a ser o julgador dos seus próprios atos e dos atos alheios, pois, neste ponto da

moralidade, ele domina pela sua solitária racionalidade até mesmo as concepções morais mais

elaboradas e determina autonomamente todo o conteúdo do direito moral à revelia da

racionalidade do direito (Cf. HEGEL, 2009, §138). Resultado é que a vaidade do sujeito o

coloca acima do Bem e do Mal, transplantando-o de volta para a deliberação arbitrária, dessa

vez travestida de dever moral concreto e absoluto. O resultado da Consciência moral, segundo

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as investigações hegelianas, pode ser a imposição da subjetividade como universalidade

moral.

A autoconsciência, na vaidade de todas as determinações antes vigentes e

na pura interioridade da vontade, é a possibilidade de tomar por principio

tanto o universal em si e para si como o arbitrário, a particularidade

própria acima do universal, e de realizá-la por seu agir – de ser má.

(HEGEL, 2009, p. 150, §139).

A contradição envolvida na configuração da Consciência moral exige que o Bem

universal retorne ao sujeito como aspecto antitético da autoconsciência para que o sujeito

possa suprassumir a sua vontade de forma a retomar o curso do trajeto dialético progressivo.

Segundo Hegel, a vaidade e a excessiva particularidade da Consciência Moral são as

limitações cruciais do desenvolvimento da liberdade subjetiva dentro deste momento, uma

vez que a possibilidade de confundir-se na particularidade das suas próprias deliberações é

categórica, porém, é fundamental para desenvolver nos sujeitos a necessidade de construir

autonomamente – ao invés de considerar como obrigações – os princípios morais baseados em

uma concepção de Bem mais ampla que o meu Bem – estar. Contudo, o Bem considerado em-

si também é problemático, uma vez que, como visto anteriormente, leva os sujeitos a

suprimirem a sua deliberação moral, substituindo-a pela dogmática do Dever moral.

Para Hegel, as limitações envolvidas tanto no Bem como na Consciência Moral, bem

como as suas qualidades, são elementos suficientes para determinar as propriedades do salto

na esfera do direito e da liberdade do sujeito. Considerados em si estas determinações são

abstratas, porém, quando colocadas em conjunto tornam-se complementares e alcançam

algum nível de universalidade. A elevada deliberação autônoma da Consciência Moral deve

ser o princípio a partir do qual os sujeitos realizam a sua ação e estabeleçam as propriedades

inerentes ao Bem de caráter comunitário, social, formado pela junção das diversas

consciências morais autônomas, fornecendo a partir da Consciência moral, uma concretude

histórica para o Bem. A esta nova esfera, Hegel fornece o nome de Eticidade.

Mas a integração dessas duas totalidades relativas em uma identidade

absoluta é em si já realizada, visto que justamente essa subjetividade da

pura certeza de si mesmo, que para si se dissipa em sua vaidade, é idêntica

à universalidade abstrata do Bem – com isso, a identidade concreta do Bem

e da vontade subjetiva, a verdade deles é a Eticidade (HEGEL, 2009, p.

164, §141)

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3.4. Eticidade: Sociedade Civil, Leis e estado

“A Eticidade é a idéia da liberdade enquanto Bem vivente que tem na autoconsciência

seu saber, seu querer, e pelo agir dessa, sua efetividade.” (Cf. Hegel, 2009, §142). Com esta

frase Hegel inicia a sua reflexão sobre a esfera da Eticidade, demarcando uma diferença

fundamental com relação à moralidade, a saber, a centralidade da ação e da vivência na

construção dos valores universais, vinculando o Bem subjetivo ao mundo concreto e objetivo

da experiência coletiva. Dessa forma, Hegel historiciza a construção dos valores morais,

tornando-os válidos dentro de uma comunidade que fornece sentidos a estes valores a partir

da sua própria atividade intersubjetiva. Nessa perspectiva, a Eticidade é gerada e fornece

sentido à experiência coletiva, comunitária, servindo de base para a explicitação do direito em

leis, constituição e estado.

Partindo dessa caracterização preliminar, passemos a investigar o papel que a

subjetividade cumpre dentro desta nova esfera. Vimos que a subjetividade em Hegel, assim

como para todos os seus contemporâneos do Esclarecimento, se caracteriza pela capacidade

de deliberação autônoma baseado no uso da razão resultando na liberdade individual de seguir

apenas o que o próprio sujeito julga ser o Bem. Quando Hegel investiga os desdobramentos

dessa subjetividade, alcança a conclusão de que não há formas concretas de efetivar essa

liberdade na esfera da subjetividade pura, com o risco de incorrer em particularismos

perigosos ou em universalismos abstratos e dogmáticos. Por este motivo, o suprassumir da

subjetividade moral é a Eticidade enquanto o critério moral gerado a partir da atividade

autônoma dos indivíduos em comunidade, ou seja, o Bem é substituído pelo Ético objetivo ou

substância ética.

O ético objetivo que entra em lugar do Bem abstrato pela subjetividade

enquanto forma infinita é a substância concreta. Por isso ela põe dentro de

si diferenças que são assim determinadas pelo conceito e por meio do ético

tem um conteúdo estável que é para si necessário, e um subsistir que se

eleva acima do opinar subjetivo e do bel prazer, as leis e instituições sendo

em si e para si. (HEGEL, p. 167, §144)

A substância ética, portanto substituirá o papel cumprido anteriormente pelo Bem

abstrato de servir de critério moral para o julgamento das ações humanas, com a diferença de

que esta substância é o resultado último da autonomia, uma vez que tais forças éticas regem a

vida dos indivíduos, que em contrapartida fazem parte do desenvolvimento dessas forças

éticas a partir da racionalização da atividade social. Tal esfera, portanto, configura-se como a

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maior expressão da liberdade humana, uma vez que reconhece nos objetos da substância ética

(leis, instituições, etc.) a racionalidade resultante da sua própria autonomia, diferente, por

exemplo, da atividade humana na esfera do Direito abstrato e da Moralidade.

“A autoridade das leis éticas é infinitamente mais elevada, porque as coisas

naturais apenas apresentam a racionalidade de um modo totalmente

exterior e isolado e a ocultam sob a figura da contingência”. (HEGEL,

2009, p. 168, §146 anotações)

Enquanto que a esfera da Eticidade é desenvolvida pela atividade racional e autônoma.

Sendo assim, não existe estranheza para o sujeito entre as leis éticas e a sua própria vontade,

pois elas são o “testemunho do espírito” subjetivo, da identidade entre eu e substância, já que

é pela minha atividade em vinculação com outros que a razão comunitária se desvela (Cf.

HEGEL, 2009, §147). Sendo assim, a Eticidade também forma um sistema de obrigações, de

deveres como na moralidade, diferenciando-se deste por serem obrigações racionalmente

definidas e reconhecidas pelos sujeitos como também suas, ou seja, o sentido dessas

obrigações é um sentido que eu estabeleço tendo como parâmetro a objetivação coletiva das

vontades individuais (Cf. HEGEL, 2009, §148), configurando de fato um salto na liberdade

subjetiva.

Refletida no sujeito, a eticidade se expressa como virtude e retidão, enquanto

conformidade do indivíduo com os costumes de uma sociedade. Tais valores éticos positivos

da ação do sujeito só podem ser julgados e auferidos na própria ação em situações concretas,

precisando passar pelo crivo dos costumes e dos hábitos, o conjunto de valores históricos que

um sujeito herda da sua comunidade como uma “segunda natureza” universal, parâmetro a

partir do qual o sujeito reproduzirá ou aperfeiçoará a sua ação (Cf. HEGEL, 2009, §151).

Podemos também perceber que na Eticidade existe uma dimensão reflexiva muito forte

na relação entre sujeito e substância. Os direitos que um sujeito possui ao viver dentro de uma

comunidade Ética só existem na medida em que este sujeito participa e está cônscio dos

hábitos e costumes da sua eticidade, reconhecendo-os como parâmetros morais da sua ação.

Na mesma medida, a participação na eticidade implica necessariamente em resguardar a sua

particularidade dentro de uma construção universal, pois que a eticidade nada mais é que a

subjetividade se expressando continuamente no mundo.

O direito dos indivíduos à sua particularidade está igualmente contido na

substancialidade ética, pois para a particularidade é o modo exterior

aparecendo, no qual o ético existe. (HEGEL, 2009, p. 173, §154)

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Assim, obrigação e direito subjetivo tornam-se uma unidade na esfera da eticidade.

Dentro da Eticidade, o sujeito possui obrigações na mesma medida em que possui direitos,

uma vez que a Eticidade é, de fato, o “espírito efetivo de uma família ou um povo”, ou seja,

é uma concretização objetiva e coletiva que abarca, na sua esfera, entretanto, a atividade

autônoma de cada sujeito que dela faz parte. Portanto, a Eticidade é, em larga medida, a

“objetivação de mim mesmo”, um eu que serve de potência de atualização e de concretude

da própria Eticidade, a partir da atividade mediada pelos costumes e hábitos (substância

ética). Ao mesmo tempo, o sujeito sai do seu isolamento da moralidade, colocando-se em

uma esfera maior que si mesmo, mais ampla e coletiva, onde será possível expressar

concretamente a sua liberdade nas figuras da família, sociedade civil burguesa e estado.

A Família é “o espírito ético imediato”, o primeiro momento da objetivação da vontade

onde o sujeito nasce inserido em uma unidade da comunidade humana responsável por

transmitir para este sujeito os meios necessários para a reprodução da vida. Segundo Hegel a

família;

Tem por sua determinação sua unidade sentindo-se, o amor, de modo que a

disposição de espírito é ter a autoconsciência de sua individualidade nessa

unidade enquanto essencialidade sendo em si e para si a fim de ser nela não

uma pessoa para si, porém como um membro. (HEGEL, 2009, p. 174, §158)

Vemos que a unidade comunitária da família é mediada pelo amor, um sentimento

nobre, porém pouco racional. Entretanto, neste momento, consegue suprir em primeiro lugar a

necessidade de vinculação entre sujeitos e, em segundo lugar, é o momento de aprimoramento

da autonomia inserida em uma coletividade ética.

A família é uma forma concreta da eticidade necessária, porém efêmera, que surge a

partir do casamento enquanto “unidade dos sexos naturais” baseadas no amor autoconsciente

que uma pessoa sente pela outra (cf. HEGEL, 2009, §161). O casamento, apesar de ser uma

deliberação de dois sujeitos, significa também o alienar-se deliberadamente da sua

subjetividade no sentido de formar um único sujeito, estabelecendo o primeiro laço ético (Cf.

HEGEL, 2009, §162). Esta unidade dos dois sujeitos, abstrata inicialmente pelo fato de que é

realizada pelo amor, torna-se concreta e objeto de deliberação racional efetiva a partir do

nascimento dos filhos.

A unidade do casamento, que enquanto substancial é apenas intimidade e

disposição de espírito, mas que enquanto existente é separada entre os dois

sujeitos, torna-se com os filhos, enquanto unidade mesma, uma existência

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sendo para si e objeto que eles amam como seu amor, como seu ser – aí

substancial. (HEGEL, 2009, p. 182, §173)

Os filhos nascem inseridos, portanto, em uma comunidade ética onde os costumes são

estabelecidos pelos seus pais. Enquanto têm o direito de serem educados e sustentados por

eles devem obediência aos pais e devem ajudar com o cuidado e o sustento da família (Cf.

HEGEL, 2009, §174). A educação dos filhos é feita por meio da transmissão dos costumes e

hábitos éticos da comunidade em que vivem, ainda de forma imediata (dogmática) para

auxiliar-los na inserção na sociedade28

.

A sobrevivência da família é garantida, por sua vez, pelo patrimônio que possui. Neste

trabalho discutimos a propriedade enquanto a apropriação feita pelo indivíduo de alguma

coisa externa com a finalidade de satisfazer uma vontade. O patrimônio é a expressão ética da

propriedade, uma vez que expressa “a determinação de uma posse estável e segura” por meio

da qual a família como um todo, a partir da sua atividade nesse patrimônio, poderá suprir suas

necessidades.

A família não tem apenas propriedade, porém, ela enquanto é uma pessoa

universal e durável, surgem o carecimento e a determinação de uma posse

estável e segura de um patrimônio. O momento arbitrário do carecimento

particular do mero singular na propriedade abstrata e o egoísmo do desejo

transformam-se aqui em cuidado e aquisição em favor de algo comum, em

algo ético. (Hegel, 2009, p. 181, §170)

O Patrimônio será o meio pelo qual seus membros proveram o sustento da família

administrados pelo homem da casa29

. Com a morte ou impossibilidade deste sujeito assumir o

patrimônio, ele passa a ser administrado pelos filhos, também homens que educados no meio

da família e positivamente nos hábitos sociais, assumem a responsabilidade de manter o

sustento familiar. Dessa forma se configura a herança da propriedade.

Após a educação dos seus filhos e da garantia do sustento por meio da transmissão do

seu patrimônio, a família está pronta para cumprir seu ciclo com a dissolução, a saber,

28

Mais detidamente, Hegel afirma sobre a educação das crianças: “A respeito da relação familiar, sua educação

tem a determinação positiva de que a eticidade seja levada nelas até o sentimento imediato, ainda sem oposição,

e que o ânimo tenha ali vivido sua primeira vida no amor, na confiança e na obediência, enquanto são o

fundamento da vida ética – mas, então, a respeito dessa mesma relação, a determinação negativa é elevar as

crianças desde a imediatidade natural, em que se encontram originalmente, até a autonomia e a personalidade

livre e, com isso, até a capacidade de sair da unidade natural familiar. (HEGEL, 2009, §175). 29

“A família enquanto pessoa jurídica frente a outras, tem o homem para representá-la enquanto seu chefe.

Além disso, cabe-lhe principalmente a aquisição de fora, o cuidado pelos carecimentos assim como a disposição

e a administração do patrimônio familiar.” (HEGEL, 2009, p. 181, §171)

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A dissolução ética da família consiste em que as crianças, educadas para a

personalidade livre sejam reconhecidas na maioridade enquanto pessoas

jurídicas e enquanto capazes, em parte, de ter uma propriedade livre

própria e, em parte, de fundar a sua própria família. (HEGEL, p. 184,

§177)

A dissolução das famílias é o momento da separação da unidade ética imediata da

família, onde os filhos após passarem pelo trajeto de vida a partir dos pais irão compor a

sociedade civil, formando as suas próprias famílias e garantindo seu próprio sustento a partir

do trabalho no seu próprio patrimônio – que de fato é uma parte do patrimônio herdado dos

pais, possivelmente dividido com outros irmãos. Dessa forma, a única edição da família

existente, até então transforma-se em uma multiplicidade de famílias, todas elas educando

seus filhos para se inserirem na sociedade, a partir de suas próprias bases éticas formadas no

casamento e com patrimônios próprios, realizando os mais diversos tipos de trabalhos e

serviços30

. Este grande conjunto de sujeitos familiares irá interagir entre si, mediado pela

troca dos produtos dos seus trabalhos, estabelecendo vinculações com outras particularidades

e formando a rede conceituada como Sociedade civil-burguesa.

A Sociedade Civil–Burguesa é um conceito clássico da Filosofia Política utilizado

para diferenciar as características políticas pertinentes exclusivamente a comunidade social

que não estão vinculadas ao estado, o que a torna Civil. A sociedade civil é também burguesa

em Hegel, pois que está fundada na Propriedade privada, ou no caso no patrimônio da família

enquanto meio concreto de sustento e inserção no meio social. Hegel introduz este conceito na

sua Filosofia Política para desenvolver a explicação filosófica sobre a objetivação da

liberdade conquistada na esfera da Subjetividade, ou seja, tenta explicar como é que as

pessoas tornam realidade concreta as suas Intenções (propósito da vontade) na vida em

comunidade, mediados pelos costumes éticos, gerando desta forma um progresso na

concepção de liberdade a partir da construção ativa da substância ética. Hegel conceitua a

Sociedade Civil a partir de dois princípios, a saber, o princípio da dignidade do sujeito e o

princípio da vinculação intersubjetiva.

A pessoa concreta que enquanto particular é a si um fim, como um todo de

carecimentos e como mescla de necessidade natural e de arbítrio é um

principio da sociedade civil – burguesa – mas, como a pessoa particular se

encontra essencialmente em vinculação com outra particularidade

semelhante, de modo que cada um apenas se faz valer e se satisfaz mediante

30“De maneira natural e essencialmente mediante o princípio da personalidade, a família dissocia-se em uma

pluralidade de famílias, que se comportam de maneira geral como pessoas concretas autônomas e, por isso,

exteriores umas as outras.” (HEGEL, 2009, p. 188, §181).

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a outra e, ao mesmo tempo, simplesmente apenas enquanto mediada pela

forma da universalidade, que é o outro princípio da sociedade civil-

burguesa. (HEGEL, 2009, p. 189, §182)

A partir das palavras de Hegel, podemos inferir que a Sociedade Civil seja de fato o

momento da articulação entre a vontade subjetiva e a vinculação social entre as intenções e

carecimentos de cada indivíduo (o fim egoísta), mediados pela diversidade de atividades

sociais promovidas pela sociedade. O resultado dessa vinculação entre múltiplos sujeitos

forma o que Hegel chama de “sistema de dependência multilateral” onde cada sujeito

encontrará a satisfação da totalidade dos seus carecimentos na atividade social, coletiva, de

modo que o benefício individual será articulado com o benefício de todos os membros dessa

comunidade.

O fim egoísta, em sua efetivação, assim condicionado pela universalidade,

funda um sistema de dependência multilateral, de modo que a subsistência e

o bem-estar do singular e seu ser-aí jurídico se entrelaçam na subsistência,

no bem estar e no direito de todos (...). Pode-se, inicialmente, considerar

esse sistema como o Estado Externo – como o Estado da necessidade e do

entendimento. (HEGEL, 2009, p. 189, §183)

Para Hegel, portanto, a Sociedade Civil é a esfera da eticidade onde a vontade

particular e a substância ética se encontram, formando uma ligação efetiva baseada na

vinculação entre os sujeitos (como visto no §154). Podemos derivar disso duas conclusões

fundamentais para a continuidade da nossa investigação. Primeiramente, o sujeito amplia a

objetivação da sua vontade que, inicialmente restrita à família e à dependência parental, torna-

se um efetivo espaço de expressão da autonomia junto à comunidade. Para Hegel, o momento

no qual o Sujeito percebe racionalmente a necessidade de tornar-se parte de um corpo social

não significa necessariamente a perda total da individualidade. De fato, essa vinculação

acontece exatamente por um aprofundamento da individualidade, uma vez que o sujeito

percebe que apenas na dinâmica da sociedade poderá dar vazão às suas necessidades

particulares, configurando, portanto, uma cisão entre a dimensão do sujeito (particularidade) e

a dimensão objetiva da sociedade (universalidade), paradoxalmente formada pelo fundamento

da atividade expressiva deste próprio sujeito.

A idéia nessa cisão confere aos momentos do ser-aí próprio, - à

particularidade, o direito de se desenvolver e de propagar-se segundo todos

os aspectos, e à universalidade o direito de mostrar-se como fundamento e

forma necessária da particularidade, assim como o poder sobre ela e como

seu fim último. – É o sistema da eticidade perdido em seus extremos que

constitui o momento abstrato da realidade da idéia, a qual é aqui, nesse

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fenômeno externo, apenas como totalidade relativa e necessidade interna.

(HEGEL, 2009, p. 189, §184).

Existe na Sociedade Civil algum nível de vinculação entre sujeito e comunidade ética,

entretanto, esta vinculação está submetida à particularidade, à satisfação dos meus desejos e

não necessariamente à universalidade ainda, de forma que a satisfação dos interesses é

puramente contingente, ou seja, submetida aos interesses particulares envolvidos em cada

interação (Cf. HEGEL, 2009, §185). Contudo, é este mesmo processo que está formando e faz

parte de alguma universalidade fundamental para que os vínculos possam existir, apesar de

ser uma universalidade indeterminada, existente apenas enquanto necessidade de vinculação

(Cf. HEGEL, 2009, §186).

Os indivíduos são, enquanto cidadãos desses Estados, pessoas privadas as

quais tem por seu fim seu interesse próprio. Como esse fim é mediado pelo

universal, que, por conseguinte lhes aparece como meio, assim ele apenas

pode ser alcançado por eles, na medida em que eles mesmos determinam de

modo universal seu saber, querer e atuar e assim se façam um elo da

corrente dessa conexão. O interesse da idéia aqui, que não reside na

consciência desses membros da sociedade civil – burguesa enquanto tal, é o

processo de elevar, pela necessidade natural e igualmente pelo arbítrio dos

carecimentos, a singularidade e a naturalidade dos mesmos à liberdade

formal e a universalidade formal do saber e do querer, a cultivar a

subjetividade em sua particularidade. (HEGEL, 2009, p. 191, §187).

É, portanto, interesse da ideia espiritual que permeia as atividades humanas gerar essa

tensão entre universalidade e particularidade, com o objetivo de desenvolver no sujeito a

defesa do eu dentro de um corpo social, obrigando-o a ser livre objetivamente, por meio da

sua atividade expressiva e não apenas internamente, no reino do pensamento. Sendo assim, a

sociedade civil se parte em outras três esferas menores a partir das quais o sujeito realizará

este fim da idéia, a saber, o Sistema de Carecimentos, a administração do direito e a

administração pública e a corporação.

O Sistema de carecimentos é a forma concreta da dependência multilateral criada entre

os sujeitos pertencentes à esfera da sociedade civil. É o momento do conceito onde as duas

possibilidades da satisfação subjetiva – por meio do trabalho na propriedade privada ou por

meio do meu trabalho (Cf. HEGEL, 2009, §189) – colocam-se em um sistema de vinculação

concreta baseada na necessidade subjetiva de todos, a saber, o mercado capitalista

(universalidade) como espaço de troca de produtos para satisfação de necessidades

particulares.

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Visto que seu fim é a satisfação da particularidade subjetiva, mas, na

vinculação com os carecimentos e com o livre-arbítrio dos outros, a

universalidade se faz valer, assim esse aparecer da racionalidade na esfera

da finitude é o entendimento, o aspecto que importa nessa observação e que

constitui o elemento reconciliador dentro dessa esfera mesma. (Hegel,

2009, p. 193, §189).

Os carecimentos são o elemento impulsionador da vinculação autônoma dos sujeitos,

pois, segundo Hegel, é a partir deles que os sujeitos encontram motivação para realizar um

aprimoramento e inovação nos meios para satisfazer estes carecimentos, que cresce

demograficamente junto ao processo de multiplicação e pluralidade das famílias (o

refinamento dos carecimentos, (Cf. HEGEL, 2009, §191). Por estarem inseridos em uma

comunidade na qual os sujeitos são iniciados no âmbito da família, o que realizam como meio

de satisfação de carecimentos é resultado e contribuição da eticidade familiar a qual

pertenceram, ou seja, a atividade no patrimônio herdado. Sendo assim, a realidade social dos

carecimentos é a sua externalização (objetivação) reconhecida enquanto produto comunitário

de posse privada.

A abstração que se torna uma qualidade dos carecimentos e dos meios

torna-se também uma determinação da vinculação recíproca dos indivíduos

entre si; essa universalidade enquanto ser reconhecido é o momento em que

ela, em seu isolamento e em sua abstração, torna concretos, enquanto

sociais, os carecimentos, os meios, e os modos da satisfação. (HEGEL,

2009, p. 195, §193)

A liberdade da eticidade surge efetivamente neste momento, onde o meu carecimento e

os meios que o sujeito particular desenvolveu para satisfazê-lo – o trabalho31

- passaram pelo

crivo de uma “opinião universal” dos hábitos e costumes, ocultando a sua contingência pela

evidencia da razão na eticidade. Dessa forma, sujeito e o universal se vinculam em uma idéia

de Bem que possui sentido e é construída cotidianamente pela atividade autônoma destes

sujeitos. Ainda assim, a esfera dos carecimentos é formal, uma vez que a sua finalidade é

satisfação particular (cf. HEGEL, 2009, §§194, 195).

Entretanto, mesmo sendo egoísta na forma, o traçado colocado pelo meio ético para este

sujeito o vincula a uma “dependência recíproca dos homens para satisfação dos demais

31

Hegel dedica, na Filosofia do Direito dois parágrafos para discorrer sobre o trabalho. Eis suas palavras sobre o

assunto: “A mediação afim de preparar e adquirir para os carecimentos particularizados, é o trabalho, o qual

pelos mais diversos processos especifica o material imediatamente fornecido pela natureza para esses fins

múltiplos. Essa elaboração dá então ao meio seu valor e sua conformidade ao fim, de modo que o homem em

seu consumo se relaciona principalmente com produções humanas e tais esforços são o que ele utiliza” (2009,

p. 196, §196)

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carecimentos” uma vez que a contribuição individual só abarca um carecimento específico,

fator de sobrevivência insuficiente uma vez que nossos carecimentos, seja do estômago ou da

fantasia, são múltiplos32

e necessitam de outros sujeitos que possam produzir o que for

necessário para a satisfação dos demais carecimentos.

O trabalho singular torna-se mais simples pela divisão e, através disso,

torna maior sua habilidade no seu trabalho abstrato, assim como a

quantidade de sua produção. Ao mesmo tempo, essa abstração da

habilidade e do meio completam a dependência e a vinculação recíproca

dos homens para a satisfação dos demais carecimentos até a necessidade

total. (Hegel, 2009, p. 197,§198)

Esta vinculação, na prática, acontece por meio do mercado enquanto uma

“contribuição para a satisfação dos carecimentos de todos os outros” de forma que, a partir

do meu trabalho, posicionado no patrimônio privado, posso participar da vida ética com base

nos meus interesses e carecimentos (Cf. HEGEL, 2009, §199). Dessa forma, a esfera da

Sociedade civil expressa a sua desigualdade, uma vez que serão as contingências sociais

(necessidades maiores que outras) e as habilidades que cada sujeito possui, configurando uma

situação de grande diversidade de interesses, carecimentos e possibilidades de satisfação (Cf.

HEGEL, 2009, §200). Essa diversidade de interesses pode incluir até mesmo a ilicitude como

meio de sobrepor um interesse individual sobre outro dentro da esfera dos carecimentos (a

sabotagem concorrencial, por exemplo), o que pode incorrer inclusive sobre o patrimônio

alheio, fundamento do direito e da liberdade subjetiva. Sendo assim, segundo Hegel, os

sujeitos inclinam-se a defesa dos seus direitos de deliberação enquanto universalidade do

direito de propriedade, e consequentemente do direito de defesa desta propriedade, que agora

se tornará um para-si, explícito na Administração do direito.

O principio desse sistema de carecimentos tem, enquanto particularidade

própria do saber e do querer, a universalidade sendo em si e para si, a

universalidade da liberdade apenas abstrata, por conseguinte, enquanto

direito de propriedade dentro de si, mas que aqui não é mais apenas em si,

porém em sua efetividade vigente, enquanto proteção da propriedade

mediante a administração do direito. (Hegel, 2009, p. 203, §208)

O direito aparece, portanto, como uma resultante da dinâmica de interação entre os

sujeitos dentro do sistema de carecimentos, com o objetivo de salvaguardar o principal

fundamento da subjetividade concreta que é o patrimônio privado, uma vez que é a partir do

patrimônio privado que posso participar dessa rede autonomamente. A defesa da propriedade,

32

Cf. HEGEL, 2009 §190.

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portanto, será o fundamento universal, o laço que unificará o conjunto de interesses

individuais em torno de um interesse mais amplo, a saber, a defesa do patrimônio (Cf.

HEGEL, 2009, §§209, 210). Este direito assume uma “determinidade última”, uma expressão

cabal e explícita do seu conteúdo na forma racional da Lei.

O que em si é direito é posto em seu ser – aí objetivo, isto é, determinado

para a consciência pelo pensamento e conhecido como o que PE direito e

como o que vale, é a Lei; e o direito, por essa determinação é direito

positivo em geral. (Hegel, 2009, p. 204 §211).

A lei, portanto, é a enunciação, a escrita dos costumes e hábitos de uma comunidade a

partir de uma matriz universal concreta, a saber, a defesa do patrimônio. Como já visto antes,

e seguindo a lógica hegeliana, o alcance das leis é mais um progresso na liberdade humana,

pois que delimita, em enunciação escrita e racional, aquilo que já existe na interação

intersubjetiva do sistema de carecimentos de forma abstrata33

. Este progresso na liberdade só

existe de fato na medida em que as leis são publicizadas e em que os sujeitos percebam nesta

lei uma expressão universal dos seus próprios costumes e hábitos praticados no nível

particular34

.

Outro aspecto da legislação é a sua interação com a efetividade particular dos hábitos e

costumes, uma vez que o direito explícito nas leis irá incidir sobre relações particulares. Esta

mediação, segundo Hegel, ocorre por meio da instituição do tribunal onde,

O direito que entrou no ser-aí na forma da lei, para si, defronta-se

autonomamente com o querer e o opinar particulares sobre o direito e tem

de fazer valer como universal. Esse conhecimento e essa efetivação do

direito no caso particular, sem o sentimento subjetivo do interesse

particular, concernem a um poder público, o tribunal (Hegel, 2009, p. 211,

§219)

O fato de que a interação entre situações particulares com a universalidade da Lei

precisar ser mediada por uma instituição pública, o tribunal, responsável por investigar

autonomamente os fatos e julgar o nível de efetivação da lei – e de possíveis penas à ação

ilícita – condizentes com o fato ocorrido traz à tona a efetividade da administração pública,

33

Eis porque na representação do ato de legislar não tem simplesmente diante de si um momento pelo qual algo

se torna enunciado como regra de conduta válida para todos; porém o momento essencial interno é, para esses

outros o conhecimento do conteúdo em sua universalidade determinada. Mesmo os direitos consuetudinários

contêm o momento de ser e de tornar-se sabido enquanto pensamento, pois apenas os animais têm a sua lei

enquanto instinto, mas somente os homens são os que têm essa lei enquanto um hábito.”(Hegel, 2009, p. 204,

§211 Anotações) 34

“A obrigatoriedade para com a lei inclui, da parte da autoconsciência a necessidade de que as leis sejam

tornadas conhecidas universalmente. (Hegel, 2009, p. 208, §215)”

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uma instituição externa à sociedade civil, responsável pela garantia do cumprimento da lei

universal dentro da dinâmica particular e cotidiana da sociedade civil. Pode-se dizer que a

administração pública cumpre o papel de polícia, vigiando as possíveis transgressões à lei

realizadas por indivíduos para benefício individual, encaminhado - os ao tribunal.

Além dos crimes, que o poder universal tem que impedir ou de levar a um

tratamento judiciário, existe o arbítrio permitido para si das ações jurídicas

e do uso privado da propriedade, existem também as vinculações exteriores

com outros singulares, assim como com as demais organizações públicas de

fim coletivo. Mediante esse aspecto universal, as ações privadas tornam-se

uma contingência, que escapa de meu poder e pode ocasionar ou ocasiona

danos e ilicitudes aos outros. (Hegel, 2009, p. 218, §232)

Salvaguardando os interesses subjetivos envolvidos na dinâmica concreta das relações

sociais dentro do sistema de carecimentos, realizando suas ações dentro da esfera da lei,

Hegel destaca o advento das Corporações. Partindo da efetividade do Sistema de

carecimentos, onde cada sujeito envolve-se nele, a partir do trabalho realizado no seu

patrimônio, os sujeitos organizam a divisão do trabalho em estamentos que articulam os

campos de trabalho próximos uns dos outros35

. Na medida em que as leis e os interesses

universais adquirem corporeidade na forma da Administração pública e tribunal, surge a

necessidade de defender novamente os interesses particulares, agora efetivamente organizados

a partir dos estamentos iniciais, na forma de Corporação.

A Corporação, segundo essa determinação, tem o direito, sob a fiscalização

do poder público, de cuidar de seus próprios interesses contidos no seu

interior, de aceitar membros segundo a qualidade objetiva de sua

habilidade e retidão, em número que se determina pela conexão universal, e

de cuidar de seus integrantes frente às contingências particulares, assim

como de cuidar da cultura em vista da capacidade para ser integrado a ela

– de maneira geral, de intervir por eles enquanto segunda família, cuja

posição permanece mais indeterminada para a sociedade civil – burguesa

universal, que está mais distante dos indivíduos e do seu estado de miséria

particular. (Hegel, 2009, p. 226, §252)

A corporação, no entanto, não existe e não tem sentido em si mesma, a não ser se for

para garantir a defesa dos interesses dos sujeitos incorporados dentro de uma dinâmica

universal, a qual reconhecem como fundamental - uma vez que defendem a sua possibilidade

de expressão autônoma concreta baseada na propriedade. Mesmo organizados em corporações

35

“Os meios infinitamente variados e o seu movimento de entrelaçamento igualmente infinito na produção e

troca recíprocas reúnem-se mediante a universalidade inerente a seu conteúdo e diferenciam-se em massas

universais, de modo que toda essa conexão se desenvolve em sistemas particulares de carecimentos, de seus

meios e trabalhos, de modos de satisfação e da cultura prática e teórica – sistemas nos quais os indivíduos são

repartidos – até uma diferença de Estamentos” (Hegel, 2009, p. 198, §201)

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de defesa de uma “subjetividade corporativa” estes sujeitos reconhecem a universalidade da

administração pública e das instituições organizadas para garantir o direito público baseadas

nas leis. A idéia, portanto, se junta novamente aos interesses particulares abrindo espaço para

o advento do estado enquanto expressão corporificada do interesse subjetivo de tornar-se

socialmente universal.

Na efetividade, por causa disso, o Estado em geral é antes o primeiro, no

interior do qual a família primeiramente se desenvolve em direção à

sociedade civil-burguesa e que é a idéia do Estado moderno que se dirime

nesses dois momentos; no desenvolvimento da sociedade civil-burguesa, a

substância ética adquire sua forma infinita, que contem dentro de si os dois

momentos: 1. O da diferenciação infinita até o ser–dentro–de-si-sendo-

para-si da autoconsciência, e 2. O da forma da universalidade que está na

cultura, o da forma do pensamento, pelo qual o espírito é objetivo e efetivo

para si, nas leis e nas instituições, em sua vontade pensada, enquanto

totalidade. (Hegel, 2009, p.229, §256 anotação)

O estado, a “efetividade da liberdade” é a ideia universal manifestada enquanto

externalização final da vontade; a perspectiva universal que se encontrava implícita em todos

os momentos posteriores – da vontade abstrata à liberdade concreta. Segundo Hegel, e é

possível perceber isso na sua interpretação do desenvolvimento do estado em todas as suas

fases, o que o estado representa efetivamente nada mais é do que a disposição do espírito de

buscar o elemento substancial da vinculação humana, abstratamente existente em todas as

fases posteriores e efetivado dentro das instituições do estado. (Cf. HEGEL, 2009, §257).

Como o estado é a efetivação das determinações universais implícitas no espírito subjetivo

esta configuração da vinculação social torna-se o fim último e substancial da própria vida em

comunidade, uma vez que o estado é aquilo que os sujeitos desejavam realizar internamente

desde o início, a saber, uma efetivação substancial da liberdade, iniciada pela vontade abstrata

e que, pelo progressivo processo de desenvolvimento, reconheceu suas limitações e avançou

paulatinamente para este momento que é o ápice da liberdade.

Essa unidade substancial é um autofim imóvel absoluto, em que a liberdade

chega a seu direito supremo, assim como esse fim último tem o direito

supremo frente aos singulares, cuja obrigação suprema é ser membro do

Estado. (Hegel, p. 230, §258)

Como visto até aqui neste trabalho, para o Hegel é a vontade livre e a subjetividade

autônoma que impulsionam e dão sentido a todo o desenvolvimento que deságua na formação

do estado. Entretanto, o estado é a garantia de uma forma específica de Direito subjetivo, a

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saber, o direito de pertencer a uma substância ética superior, onde a efetivação da liberdade se

expressa de forma concreta e absoluta sem empecilhos particularistas que dificultem a

efetivação do Direito subjetivo. A natureza da relação entre indivíduo e estado é uma relação

onde o indivíduo só adquire conteúdo quando está inserido em um estado, quando faz parte

desta comunidade ética universal36

. Pelo seu caráter universal, portanto, o estado não pode se

confundir com as esferas da família e da sociedade civil – burguesa, uma vez que estas duas

esferas ainda são impulsionadas pelo arbítrio puramente particular, por serem objetivações

limitadas da liberdade37

.

Cabe investigar mais detidamente como funciona esta relação ente sujeito e estado na

filosofia hegeliana em suas formas concretas. Essas relações são determinadas na subseção

“Direito estatal interno” da Filosofia do Direito de Hegel. Nesta subseção, Hegel estabelece a

interação entre sujeitos e estado como a liberdade concreta que

“(...) consiste em que a singularidade da pessoa e seus interesses

particulares tenham tanto seu desenvolvimento completo e o

reconhecimento de seu direito para si (no sistema da família e da sociedade

civil burguesa), como, em parte, passem por si mesmos ao interesse do

universal, em parte, como seu saber e seu querer, reconheçam-o como seu

próprio fim substancial e são ativos para ele como seu fim último, isso de

modo que nem o universal valha e possa ser consumado sem o interesse, o

saber e o querer particulares, nem os indivíduos vivam meramente para

esses últimos, enquanto, pessoas privadas sem os querer, ao mesmo tempo,

no e para o universal e sem que tenham uma atividade eficaz consciente

desse fim.” (Hegel, 2009, p. 235, §260)

No estado, portanto, a efetivação da liberdade se dá quando, após compreender as

limitações para a liberdade objetivadas a partir de interesses individuais, o sujeito vincula

autonomamente seus próprios interesses particulares com os interesses coletivos,

identificando os carecimentos individuais com o fim último de reprodução da substância ética

efetivada no estado (Cf. HEGEL, 2009, §261). A concretude racional dessa identificação

absoluta entre as vontades particulares dos indivíduos e universal do estado é expressa

tacitamente por meio da Constituição, a saber, o conjunto de leis organizadas que expressa a

36

“Mas ele tem uma relação inteiramente outra com o indivíduo; visto que ele é o espírito objetivo, assim o

indivíduo mesmo tem apenas objetividade, verdade e eticidade enquanto um membro dele. A união enquanto tal

é, ela mesma, o conteúdo e o fim e a determinação dos indivíduos é levar uma vida universal.” (HEGEL, 2009,

§258, anotação) 37

“Se o Estado é confundido com a Sociedade Civil-Burguesa e se sua determinação é posta na segurança e na

proteção da propriedade e da liberdade pessoal, então o interesses dos singulares tais é o fim último, em vista

do qual eles estão unidos, e disse se segue igualmente, que é algo do bel-prazer ser membro do Estado.”

(HEGEL, 2009, p. 230, §258)

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específica articulação das instituições do estado38

configurada de tal forma a garantir e

efetivar concretamente a identidade entre vontades particulares e vontade universal.

Essas instituições fazem a Constituição, isto é, a racionalidade

desenvolvida e efetivada no particular, e são, por causa disso, a base firme

do Estado, assim como da confiança e da disposição de espírito dos

indivíduos para com ele e são os pilares da liberdade pública, visto que

nelas a liberdade particular está realizada e é racional, com isso está

presente nelas mesmas em si a união da liberdade e da necessidade. (Hegel,

2009, p. 239, §265)

A união entre a liberdade e necessidade, expressas por meio da constituição,

estabelecem o derradeiro momento da odisseia da liberdade para se tornar concreta, racional e

una com o conceito. Agora, completamente espiritualizada por meio do estado, a necessidade

que antes era a determinação tácita e implícita a todas as ações dos sujeitos, torna-se agora

configuração racional da vinculação entre os indivíduos mediados pelas instituições do estado

organizadas pela escrita das leis presente na Constituição. Este processo tem seu início e seu

fim na garantia da liberdade dos sujeitos, uma liberdade que transita da pura abstração da

liberdade absoluta (ou negativa, por negar qualquer limitação de ordem externa mesmo que

seja determinante) à liberdade concreta, onde o conceito torna-se espírito corporificado por

meio do estado.

38

“Nessas esferas, em que seus momentos, a singularidade e a particularidade, tem sua realidade imediata e

refletida, o espírito é enquanto sua universalidade objetiva aparecendo nelas, enquanto o poder do racional na

necessidade (§184), a saber, enquanto as instituições consideradas anteriormente.” (HEGEL, 2009, p. 238,

§263)

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fim desta investigação podemos concluir que Hegel é um peculiar estadista uma

vez que a relação entre estado e indivíduo não se reduz a um elogio da dominação absoluta do

primeiro sobre o segundo, mas sim sobre uma leitura datada da individualidade em sociedade

civil, entendida em suas determinações burguesas, que elevadas à categoria de conceito que

determina essencialmente a individualidade, configurando o quadro que legitima a soberania

do estado sobre os indivíduos.

Pelo percurso deste trabalho, podemos concluir que é de fundamental importância o

papel do individuo na formação deste tecido cultural que se formará o estado, segundo a

teoria hegeliana. Se a vontade livre não fosse o elemento impulsionador deste processo

descrito na “Filosofia do Direito” o estado não teria por onde emergir com a soberania e

legitimidade política que adquirem neste texto. Usamos aqui a palavra emergir, pois, nesta

teoria filosófica, o estado pode, no nível das ideias, ser criado como uma existência política

que regula autoritariamente e externamente a sociedade, como ocorre na fundamentação do

absolutismo monárquico em Hobbes; ou como uma instituição reguladora das vontades

individuais, imediatamente reconhecida por todos, como vemos no exemplo do

contratualismo de Rosseau.

Diferentemente das outras teorias políticas, em Hegel o estado emerge da própria

dinâmica interna que surge nas mediações entre os indivíduos, motivados pelas respectivas

vontades livres. Esta dinâmica que legitima o estado é caracterizada pela atividade social da

burguesia moderna referentes à propriedade privada (o patrimônio) e a segurança necessária

para que os indivíduos possam explorar o seu patrimônio (segurança jurídica) convivendo no

sistema de carecimentos (mercado) de forma ordenada e segura.

Esta é uma diferença específica muito importante desta filosofia, pois, traz para o

centro do debate a questão da legitimidade que a sociedade civil fornece a uma instituição

para que ela cumpra com o seu papel precípuo, a saber, regular e ordenar as relações sociais.

Desta forma, o estado é regulador daquilo que a sociedade civil, formada por indivíduos em

ação livre, deseja em ultima instância para defender os direitos que os indivíduos possuem

essencialmente, principalmente o da liberdade (de compra e venda). Portanto, cada individuo

reconhece no estado a própria vontade particular maximamente objetivada, resultando daí que

o “eu” pode se realizar completamente sem o medo de instabilidade social ou política que

coloque a relação social burguesa em risco.

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Por outro lado, nos dedicamos nestas linhas conclusivas a apontar um problema. E se a

vida burguesa for apenas UM (dentre vários) modo de vida e não O modo de vida social? O

que Hegel pretende é elevar a vida da sociedade civil burguesa ao nível de conceito que

determina a humanidade, ou seja, universalizar aspectos historicamente particulares. Esta

denúncia foi realizada, posteriormente a Hegel, pela filosofia de Karl Marx que, ao analisar a

nascente sociedade moderna com as mesmas ferramentas utilizadas por Hegel (economia

política e os conceitos clássicos do pensamento político) percebeu que a sociedade é dividida

em classes exatamente pelo fato de existirem pessoas que não possuem propriedade privada.

Sendo assim, as sociedades modernas geram, ao menos, DOIS modos de vida social em seu

interior: o dos proprietários e os não-proprietários.

Essa foi a síntese da continuidade da história, ou seja, a humanidade não se reconhece

apenas no Estado de direito defensor da segurança jurídica burguesa porque para muitos falta

aquilo que caracteriza a cidadania burguesa, o patrimônio. Para estes, Hegel impõem o estado

regulador, soberano, interventor, repressor, uma vez que o setor da humanidade que vive nas

sociedades modernas que não possui propriedade se coloca em situações de revolta e

insurgência individual ou coletiva contra um Estado e uma sociedade que não os reconhece

enquanto cidadãos e que, paradoxalmente, possui a legitimidade para tratar parte da sociedade

com a exclusão e outra parte com a inclusão, afirmando nas letras da lei que inclui a todos

igualmente.

A Filosofia do direito, portanto, é a expressão filosófica do que significa a burguesia

no poder e da complexidade retórica que envolve a elaboração da sua afirmação constante no

poder. O “fim da História”, representado pela ascensão da burguesia analogamente à

ascensão da razão em uma epopeia histórica, cai por terra ao vislumbre de uma ingênua

leitura dos jornais contemporâneos: sem-terras, sem – tetos, desempregados, famintos e

trabalhadores explorados de todo o mundo se multiplicam como para afirmar constantemente

que a história não acabou, que o movimento histórico continua e que a dinâmica burguesa não

expressa a universalidade do humano.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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