O Papel Da Intuição Na Fundamentação Da Aritmética No Pensamento Tardio de Frege

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    O papel da Intuio na fundamentao da aritmtica

    no pensamento tardio de Frege

    Por Luciano Carvalho Cardoso

    Doutorando em Filosofia da Linguagem

    Unifesp, 2015

    Resumo

    A intuio foi um dos pontos elementares da construo do

    conhecimento na filosofia de Immanuel Kant, fundamento de todoconhecimento sinttico a priori. Precisamente por esse motivo,

    Gottlob Frege rejeita a justificativa de Kant em definir a aritmtica

    como fundamentada em verdades ou conhecimentos sintticos a

    priori. Dessa recusa, Frege estabelece, em Os Fundamentos da

    Aritmtica (1884), as bases do logicismo, tentativa de Frege de

    estabelecer a Aritmtica como assentada sobre conhecimentos

    analticos. Entretanto, a partir de 1923, Frege elabora um conjunto de

    escritos que prope uma reviso dos fundamentos da aritmtica,

    reconhecendo as bases sinttico a priori, bem como a necessidade de

    recorrer intuio, afirmando que esse movimento devolve a unidade

    matemtica, unidade encontrada nos princpios geomtricos. Nosso

    objetivo consiste em traar o caminho percorrido por Frege e buscar

    compreender como essa passagem se deu e em que ela se alicera.

    Tambm buscamos estender algumas hipteses sobre quais os

    possveis impactos que essa mudana de paradigma causaria na

    estrutura dopensamento, tal como Frege o concebe.

    Introduo

    Em 1884, Gottlob Frege publicou Os Fundamentos da Aritmtica, obra

    em que define os principais elementos que passam a compor o

    logicismo. As principais definies de Frege nessa obra podem ser

    expressas, em linhas gerais, como se segue:

    1. Nmeros e noes aritmticas podem ser definidos pela lgica

    formal;

    2. Proposies numricas podem ser derivadas a partir dosaxiomas da lgica;

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    3. Verdades derivadas da aritmtica so analticas;

    4. Geometria no pode ser reduzida lgica, pois suas verdades

    so sintticas a priori;

    5. Noo de que os nmeros so extenses de conceitos apenas;

    6. Adoo do conceito de conjunto de Cantor;

    7. Estrutura de equivalncia de conceitos pela extensionalidade

    8. Um conceito equivalente a outro se os nmeros que

    caem sob ele so os mesmos para o outro conceito, ou seja, se

    um conceito for equinumrico a outro;

    9. Sugesto do princpio de contexto;

    10. Distino entre conceito e objeto;

    11. Distino dos campos subjetivo, objetivo sensvel e

    objetivo no-efetivo (campo da objetividade lgica).

    Esses onze elementos centrais dos Fundamentos perfazem o

    ncleo do Projeto Logicista de Frege. Nenhum desses elementos

    gratuito em seu sistema lgico, e todos eles tem por finalidade

    fundamentar a aritmtica nas leis da lgica, leis analticas e que,

    em contrapartida, so tambm as leis do pensamento. De acordocom Frege:

    As verdades aritmticas governam o domnio do enumervel.

    Este o mais inclusivo; pois no lhe pertence apenas o

    efetivamente real, no apenas o intuvel, mas todo o

    pensvel. No deveriam, portanto, as leis dos nmeros

    manter com as do pensamento a mais ntima das conexes?

    (FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, 14, pg. 217).

    Essa conexo, ademais, consiste no ponto de permeabilidade

    entre matemtica e linguagem, entre os nmeros e o pensamento.Mas que leis seriam essas? Estabelecer quais seriam as leis que

    governam os nmeros equivale a definir as leis que governam o

    pensamento e, indiretamente, a linguagem pela qual o

    pensamento se expressa.

    O ponto principal de Frege, em Os Fundamentos, consiste em

    estabelecer esses parmetros, e ele o faz de forma a se contrapor

    com alguns dos pressupostos tcitos da lgica clssica.

    Primeiramente, Frege recusa (j desde a Conceitografia), a

    estrutura bsica do silogismo fundamentado nas relaes entresujeito e predicado. Essa estrutura, baseada na linguagem, abre

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    reconsiderar a natureza da aritmtica, e a defini-la como sinttica

    a priori. Para sermos mais exatos, em seus textos, o que fica ainda

    mais explcito o reconhecimento da necessidade de recorrermos

    intuio para fundamentarmos a aritmtica. Considerando que

    Frege, em todos os trabalhos posteriores aos Fundamentos,

    equipara a fundamentao da aritmtica fundamentao do

    pensamento, uma vez que ambos compartilhariam das mesmas

    leis lgicas, convm determo-nos nessas passagens e buscarmos

    uma melhor compreenso do significado das recusas de Frege em

    1884 e quais os contextos que conduziriam Frege a reconsiderar

    sua posio. Tambm empreenderemos algumas consideraes

    sobre os possveis impactos para o logicismo nas reflexes tardias

    de Frege, registradas nos escritos pstumos a partir de 1920.

    1 - A alternativa da fundamentao analtica paraa aritmtica

    O posicionamento de Frege a respeito da analiticidade da

    aritmtica posta no debate fundacional do projeto logicista em

    1884, na redao dos Fundamentos da Aritmtica. Essa obra de

    Frege apresenta um forte intento de combater as principais

    correntes filosficas vigentes no perodo. Combate o empirismo e o

    mtodo mecanicista e agregacionista. Ataca o psicologismo e o

    subjetivismo. Mas, sobretudo, ela estruturalmente se coloca contraa corrente kantiana. Na verdade, resolver o problema colocado

    pela necessidade de estabelecer os fundamentos da aritmtica

    implica em posicionar Kant em um piv condicional a respeito das

    verdades analticas ou sintticas a priori encontradas na aritmtica.

    Como Frege o expressa:

    Se de outros pontos de vista e de maneira

    fundamentada concluirmos que os princpios da

    aritmtica so analticos, isso testemunhar

    tambm em favor de sua demonstrabilidade e da

    definibilidade do conceito de nmero. As razes em

    favor do carter a posteriori destas verdades tero

    um efeito contrrio. (FREGE, G. Os Fundamentos

    da Aritmtica, pg. 95)

    Essa passagem estabelece as condies iniciais de partida do autor

    na busca da demonstrabilidade da definio do conceito de nmero.

    Essa necessidade de definibilidade o motor condicional da

    investigao. A demonstrao, a exemplo de Euclides, evidencia,

    para Frege, o arcabouo lgico oculto sob as tentativas de explicar

    os nmeros empiricamente ou gramaticalmente. O erro doempirismo consiste em acreditar que os nmeros se definem por

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    seu carter abstrato de representar a agregao mecnica de

    objetos concretos. Carter de abstrao, no entanto, que torna

    indemonstrvel o conceito de nmero, sempre condicionado s

    condies concretas e arbitrrias da experincia ou mesmo das

    condies psicolgicas que influenciariam essa representao. J o

    erro da linguagem seria tomar o nmero como propriedade dos

    sujeitos, representando-os como predicados que atribuem uma

    quantidade ao sujeito de um enunciado qualquer. Essa atribuio,

    todavia, no escapa do contexto da representao entre linguagem

    e mundo, e alterna-se entre as condies psicolgicas.

    Portanto, atender ao critrio de demonstrabilidade do conceito de

    nmero implica na excluso de quaisquer consideraesa posteriori

    como forma de conhecimento ou demonstrao do conceito de

    nmero. A questo epistemolgica envolvida nessa investigao,por si s, justifica a adoo dos conceitos kantianos de a priori, a

    posteriori, analtico e sinttico, pois elas adentram a questo do

    juzo e das condies de aferio de verdade:

    As distines entre a priori e a posteriori, sinttico

    e analtico, concernem, a meu ver, no ao

    contedo do juzo, mas justificao da emisso

    do juzo. Pois onde no h esta justificao,

    desaparece tambm a possibilidade daquela

    diviso. Um erro a priori neste caso algo to

    absurdo quanto, digamos, um conceito azul. Se

    uma proposio , em meu sentido, chamada de a

    posteriori, ou de analtica, esto em julgamento

    no as condies psicolgicas, fisiolgicas e fsicas

    que tornam possvel formar na conscincia o

    conceito do juzo, nem tampouco a maneira como

    algum mais, talvez erroneamente, chegou a

    tom-la por verdadeira, mas sim aquilo sobre o que

    se assenta mais fundamentamente a justificao

    de ser ela tomada como verdadeira. (FREGE, G. FA,

    pg. 94.

    A justificativa dos referidos juzos evidencia o nvel de validade do

    juzo, na medida em que sinaliza para o tipo de verdade a ser

    asserida. Se a justificativa for enraizada nas leis lgicas gerais e

    definies, a demonstrao seguir pela via dos conhecimentos

    analticos. Se a demonstrao necessitar de conhecimentos e

    verdades fora do campo da lgica geral, evidenciar um juzo

    sinttico. E, por fim, se a justificativa necessitar recorrer a questes

    de fato, suas verdades so indemonstrveis, recorrendo a objetos

    determinados.

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    A indemonstrabilidade das verdades referentes s questes de fato,

    caso nos quais se enquadram o empirismo, o mecanicismo, e o

    psicologismo, esto no campo a posteriori de juzos. Explicar o

    conceito de nmero por essa via torna impossvel a demonstrao

    dos juzos, da justificao dos juzos e das supostas verdades da

    aritmtica. Por esse motivo, Frege a recusa, reconhecendo que, no

    limite, resultaria em uma questo de pontos de vista e relativismo.

    Mas por que contradizer Kant, em sua afirmao de que o

    fundamento da aritmtica, assim como a geometria, seria sinttico

    a priori?