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O PODER RÉGIO E AS FORMAS DE PROPAGANDA NA
MESOPOTÂMIA ANTIGA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O
PERÍODO ACADIANO E A III DINASTIA DE UR (2335-2004 a.C.)
Rafael Felipe Almeida Nascimento1
Dr. Alexandre Galvão Carvalho2
Este trabalho visa elucidar o debate historiográfico em torno da figura real e sua
legitimação na Mesopotâmia Antiga, em especial, durante os períodos acadiano e da III dinastia
de Ur. Por meio de uma análise comparativa, investigaremos o papel da realeza de ambos os
períodos, apontando suas diferenças e similitudes em relação à legitimação do poder real,
destacando o papel da propaganda, das guerras, dos monumentos, da educação e da deificação
régia.
Acreditamos que para uma análise mais coerente sobre a legitimação régia na Mesopotâmia
Antiga faz-se mister o estudo dos monumentos datados dessa época. De acordo com Carbonari
(2017, p.12), a cultura material proporciona várias possibilidades de estudo, desde o levantamento
das características físicas, das formas de produção dos artefatos, até sua função, utilização e
valoração como mecanismo de dominação e como material ideológico. Portanto, durante este
trabalho fizemos grande uso das fontes materiais primárias associadas aos textos de cunho/caráter
bibliográfico.
Na Mesopotâmia Antiga, as formas de poder e governo sofreram mutações em seus
diversos momentos históricos – desde a Democracia Primitiva até os Impérios –. Acreditamos que
essas transformações não estiveram associadas somente aos aspectos políticos, mas também aos
aspectos sociais, econômicos, religiosos e culturais de cada época. Dentre essas várias mutações
priorizaremos aqui os elementos da legitimação real, em particular, a propaganda estatal, com o
fito de perceber as transformações da civilização Mesopotâmia no final do III milênio.
A Revolução Urbana (3500-3200 a.C.) é um momento chave para entendermos como as
diversas formas de poder se acentuam nesse território. Liverani (1995, p.148-150) afirma que,
1 Graduando do curso de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
E-mail: [email protected] 2 Orientador. Professor Pleno do Departamento de História na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
E-mail: [email protected]
durante o processo de formação e consolidação das cidades-Estados, surgem as grandes
organizações, o Templo e o Palácio, que possuem a função de organizar a sociedade e distribuir
alimentos e terras, essas instituições não possuíam uma autoridade nacional e sim local, visto que,
a Mesopotâmia daquele momento foi caracterizada por um sistema político baseado na autonomia
de cada cidade-Estado. Até mesmo no âmbito religioso, vemos um enorme panteão de deuses,
cada deus era o regente e representante de um centro urbano.
Para Westhead (2015, p.20-23) é na cidade de Uruk, durante o período Dinástico Antigo,
que são encontradas as primeiras evidências de um líder, conhecido como rei sacerdote, esse
governante não tinha plenos poderes e dependia principalmente do Templo para legitimar-se. As
primeiras inscrições reais aparecem nesse momento, mostrando o monarca como um mortal
especial, tocado pelos deuses (observar Texto 01: Inscrição real do período Protodinástico).
Texto 01: Inscrição real do período Protodinástico.
Para seguir as ordens de Enlil (o deus), Enshakushana, o rei (...) destruiu Kish e
prendeu seu monarca, Enbi’eshtar, após a vitória, Enshakushana, retornou a sua cidade e dedicou estátuas, metais preciosos, lápis-lazúli, madeira e tesouros para
Enlil (no templo) de Nippur. (WESTHEAD, 2015)
Essa inscrição, datada do período Dinástico Antigo, mostra que o rei de Uruk,
Enshakushana (2500 a.C.) supostamente teria empreendido uma batalha contra Kish, contudo, o
ato não foi realizado por sua vontade, mas sim pelas ordens divinas de Enlil, deus do ar e das
tempestades. Para Westhead (2015, p.24-25), essa inscrição é extremamente interessante por
mostrar o monarca como alguém que possuía o aval dos deuses, além disso, também são descritos
os acontecimentos após a vitória do rei, cuja primeira atitude é dedicar oferendas a Enlil,
mostrando a sua gratidão pelo apoio divino no conflito e reforçando suas obrigações com o Templo
de Nippur.
Na Figura 01, podemos visualizar um artefato datado do período Dinástico Antigo (2900-
2350 a.C.) que realça as funções religiosas do monarca: o Vaso de Warka. Kriwaczek (2018, p.60-
61) chama atenção para a parte superior do monumento, local onde é possível visualizar uma figura
feminina, a suma sacerdotisa, que se encontra trajada com um manto, realizando um gesto com as
mãos (de saudação ou benção). A sacerdotisa recebe inúmeras oferendas dos homens despidos
liderados pelo rei sacerdote. A simbologia presente na cena é poderosa, pois, retrata o governante
da cidade de Uruk oferecendo presentes e dádivas ao Templo, lugar conhecido como a morada da
deusa Inanna, a padroeira da cidade de Uruk.
Figura 01: O vaso de Warka.
Fonte: Kriwaczek, 2018, p.234
Podemos notar que o poder da realeza na região inicialmente era limitado e estreitamente
submetido ao setor religioso. Para Sazonov (2019, p.128-129), as atribuições do governante
estavam intimamente conectadas ao Templo. O rei deveria fazer abundantes doações e ofertas aos
deuses, renovar seus templos e participar dos rituais e celebrações sagradas, muitas vezes, atuando
na condição de sumo sacerdote. O governante da Suméria Protodinástica nunca possuiu plenos
poderes, sendo visto como um administrador adjunto de um deus ou deusa, um sumo sacerdote e
um senhor da guerra. Em suma, o rei era um mortal escolhido pelo deus para governar e administrar
a cidade em seu lugar (condição de servo da divindade).
No ano 2335 a.C. uma grande mudança acontece no território mesopotâmio. O rei da cidade
Kish, Sargão, com seu exército promove, pela primeira vez, a unificação territorial de toda a
região. A grande inovação do seu governo (2335-2279 a.C.) será a criação de um Império
Universal com uma nova capital, Acádia. A dinastia sargônica buscou centralizar o poder por meio
de um exército permanente, uma nova nobreza, um aparato burocrático de Estado e um novo
sacerdócio designado pelos reis, estabelecendo na região uma nova realidade: a centralização
política sob a égide dos acadianos.
Nesse momento, uma mudança significativa atinge a figura dos monarcas, Sargão e seus
sucessores buscam difundir a ideia de que são fortes e inigualáveis guerreiros que não possuem
rivais à sua altura (diferente do antigo rei sacerdote). A nova visão da realeza está diretamente
ligada à ação militar, fator crucial no processo de unificação do território. Para os reis acadianos
não basta ser um servo da divindade (como no período Dinástico Antigo), mas sim, uma figura
que impõe respeito através da guerra e que sufoca qualquer rebelião contra o seu reinado. Para
legitimar o seu poder e difundir a nova figura régia, a dinastia acadiana utilizou como meio de
propaganda as estátuas e estelas (observar Figuras 02 e 03) que, muitas vezes, retratavam os
soberanos de Acádia derrotando seus inimigos. Para Michalowski (2010, p.152), os monumentos
em homenagem aos reis acadianos foram uma grande novidade, por detrás do belíssimo estilo
artístico existia uma poderosa ideologia que celebrava o novo conceito de Estado centralizado.
Figura 02: Fragmento de uma Estela comemorativa. Figura 03: Estela da Vitória de Naram-Sin
Fonte: LEWANDOWSKI, 1998. Fonte: RAUX, 2009.
Disponível em: Acervo Digital do Museu do Louvre <https://www.louvre.fr/en>Acesso: 20/08/2020 às 16:12
Na Figura 02 podemos visualizar um fragmento de uma estela comemorativa produzida
pelo império acadiano (datado de aproximadamente 2300 a.C.). Ao observamos o fragmento com
mais atenção, podemos notar um soldado acadiano levando consigo dois prisioneiros amarrados.
Por se tratar de uma estela comemorativa, fica evidente o importante papel dado à prática da guerra.
As forças acadianas são mostradas como vitoriosas levando consigo dois prisioneiros de guerra
(que poderiam ser o butim do conflito). Podemos notar com esse monumento, a nova tendência
propagandística oficial inaugurada por Sargão e seus sucessores: as vitórias reais, ilustradas em
uma série de monumentos oficiais. Para a ideologia real acadiana, a vitória era um acontecimento
essencial e um signo eloquente da qualificação real. (SALES,1997, p.107)
A Figura 03 mostra o monumento mais conhecido e debatido do período acadiano, a Estela
da Vitória de Naram-Sin (datada de aproximadamente 2250 a.C.). A Estela de Naram-Sin foi
erguida com o intuito de comemorar a vitória militar acadiana sobre os povos montanheses Lullubi,
podemos perceber que Naram-Sin, neto de Sargão e quarto rei da dinastia acadiana - homem que
se encontra de pé no topo da representação - é mostrado em proporções grandiosas se comparado
aos outros homens, isso garante ao imperador o papel de destaque e mostra a sua superioridade
perante outros humanos, além disso, os inimigos derrotados aparecem aos seus pés, ajoelhados e
pedindo clemência. Esse ponto é de suma importância, pois, mostra como a divulgação do caráter
guerreiro e ímpio do rei era feita. Naram-Sin aparece pisoteando um inimigo, essa simbologia é
extremamente poderosa, pois, transmite a ideia de que os inimigos foram completamente
esmagados pelas forças acadianas e por seu líder, reforçando assim o poderio bélico tão exaltado
pela dinastia sargônica.
A linguagem corporal também merece atenção, a postura do rei indica triunfo, sua cabeça
está erguida e sua estatura remete a uma figura heroica. Portanto, a figura monárquica divulgada
na estela é extremamente idealizada, e tem como objetivo mostrar um governante poderoso e
incomparável. (WESTHEAD, 2015, p.117),
A tiara de chifres e a túnica eram símbolos divinos, ao utilizá-los, Naram-Sin coloca-se
como semelhante aos deuses (deificação). Para Sales (1997, p.129-130), o rei acadiano Naram-Sin
reivindicou para si mesmo o posto de divindade e seus concidadãos responderam-lhe
favoravelmente com a construção de um templo na cidade de Acádia. Portanto, a Estela da Vitória
de Naram-Sin, contém inúmeras mensagens ideológicas construídas com o intuito de vangloriar e
divulgar a figura do monarca, como alguém que realiza grandes proezas militares e que possui
dádivas supra-humanas.
Como podemos notar, o império de Acádia (2335-2154 a.C.) teve como principal
sustentáculo a batalha, a “máquina de guerra acadiana” foi a principal responsável pela construção
e manutenção do Estado, traço evidente quando observamos os monumentos e inscrições reais da
dinastia acadiana que dão grande ênfase ao aspecto belicoso, os textos realçam os 5.400 homens
alimentados diariamente por Sargão e o esplendor militar de Naram-Sin ao massacrar as cidades
revoltosas. Todavia, apenas o poderio militar não seria suficiente para o êxito do império acadiano.
No ano 2154 a.C. o estado acadiano ruiu. A pergunta que fica é por quê? Para Yoffee (2013, p.191-
192), o Estado acadiano caiu por motivos internos e externos. As ambições dos reis acadianos
(posteriores a Naram-Sin) os levaram a empreender campanhas militares para lugares distantes,
fato que deu oportunidade para as populações locais subjugadas se organizarem e formarem
alianças contra Acádia, libertando-se do seu jugo e causando sérias baixas ao exército acadiano.
Sem a mesma capacidade de mobilizar homens para o exército, o governo acadiano perdeu o
controle sobre a mão de obra, o recolhimento dos impostos, além do apoio dos templos e da
população. Com o enfraquecimento de Acádia, seus domínios passam a sofrer constantes ataques
de povos estrangeiros – gútios – que dão fim ao primeiro Império centralizado mesopotâmio.
Com a queda de Acádia, os antigos centros urbanos, agora autônomos, passaram a lutar
pelo controle territorial da região. Para Liverani (1995, p.218-220), esse período foi marcado por
intensos conflitos; os gútios foram os primeiros a dominar a região Norte; no Sul, a disputa ficou
entre três importantes cidades: Lagash, Ur e Uruk. Após diversas batalhas, Ur-Nammu (2112-2095
a.C.), rei de Ur, promoveu a reunificação da Mesopotâmia no ano 2112 a.C., inaugurando um
governo que posteriormente viria a ser conhecido como a Terceira Dinastia de Ur (2112-2004
a.C.).
Os novos imperadores, assim como os acadianos, construíram inúmeros monumentos que
ratificavam o papel e a importância da monarquia. Contudo, diferente dos reis acadianos que
priorizaram em sua “propaganda oficial” o aspecto belicoso, os monarcas de Ur III deram grande
ênfase a racionalidade administrativa. A nova figura régia era culta, escrevia e falava diversos
idiomas, entendia sobre leis, jurisprudência e administração. Os soberanos de Ur queriam ser
reconhecidos como autoridades nacionais, homens que traziam prosperidade ao seu território e que
destruíam os “representantes do caos” (estrangeiros), essas eram as bases da nova ideologia real.
Os monumentos oficiais são caracterizados por sua complexa linguagem cuneiforme, que,
em muitos casos, glorifica o poder estatal e os atributos positivos do rei enquanto intelectual, juiz,
guerreiro, administrador e construtor. Os monarcas de Ur III acreditavam que o sucesso para o
domínio imperial estava na dominação das elites locais, por isso, buscaram legitimar-se,
principalmente, por meio da escrita e da erudição, difundindo inúmeros textos oficiais nas escolas
de escribas, locais cujo o objetivo era educar pessoas em posições de poder.
Um dos registros cuneiformes mais impressionantes deixado pela III Dinastia de Ur é o
código de Leis de Ur-Nammu (datado de aproximadamente 2112-2095 a.C.). Para Viana (2019,
p.84), o conteúdo do monumento apresenta o rei como garantidor da justiça. Poderíamos classificá-
lo como uma forma de propaganda governamental, utilizada para justificar a legitimidade do
regime. As tabuletas contam com mais de 35 leis que buscavam divulgar a figura do monarca
enquanto pessoa justa, culta e próxima dos deuses. Comecemos pelo prólogo:
Texto 02: Prólogo do Código de Leis de Ur-Nammu.
An e Enlil deram o reino de Ur para Nanna, nesse tempo Ur-Nammu, nascido de
Ninsun, mãe adorada, foi criado de acordo com os princípios da verdade e da
igualdade. Depois os deuses fizeram de Ur-Nammu um guerreiro poderoso, rei de Ur, da Suméria e da Acádia. Seguindo a verdadeira palavra de Utu, o rei
estabeleceu a justiça em suas terras. Baniu a calúnia, a violência e a fome.
Aumentou as riquezas dos templos. Criou uma medida. Criou o peso de uma mina. Os órfãos não mais eram entregues aos poderosos. As viúvas não mais
estavam à mercê dos poderosos. O rico não mais dominava o pobre. (KRAMER,
1954)
Podemos observar no prólogo (observar Texto 02: Prólogo do Código de Leis de Ur-
Nammu) uma mítica história envolvendo o monarca Ur-Nammu. No primeiro momento é dito que
An e Enlil, deuses do céu e da tempestade, respectivamente, cederam o reino de Ur à Nanna, o
deus lua. Durante essa época, Ur-Nammu já teria nascido e estaria sendo criado por sua mãe,
Ninsun, deusa das atividades pastoris, que o ensinou sobre os princípios da verdade e da igualdade.
Após determinado período, Ur-Nammu teria se tornado um grande guerreiro e rei. Seguindo os
ensinamentos de Utu, o deus sol, o monarca teria estabelecido a justiça em seu reino, banindo a
calúnia, a fome e a violência.
É interessante notar o esforço do prólogo em criar uma áurea sobre-humana em torno de
Ur-Nammu, inicialmente é dito que o rei foi criado por sua mãe Ninsun, uma deusa, logo, Ur-
Nammu seria alguém diferente dos outros homens por possuir laços com o mundo celestial. Desde
cedo ele aprendeu sobre os princípios divinos, incluindo a justiça; outro ponto importante é o fim
das mazelas da região, atribuído ao novo governo; por fim, o prólogo chama atenção para a
unificação dos pesos e das medidas, uma importante política implementada pela nova dinastia. Os
monarcas de Ur III inauguram na região um novo modelo de realeza, que mostra o rei como um
homem bom e justo, alguém que ajuda seu povo através de leis que estabelecem indenizações e
punições em casos de homicídios, danos morais e delitos sexuais (observar Texto 03: Leis do
Código de Ur-Nammu).
Texto 03: Leis do Código de Ur-Nammu.
1. Se um homem matar outro homem deverá ser morto.
2. Se um homem for culpado de roubo deverá ser morto.
3. Se um homem for culpado de sequestro deverá ser preso e condenado a pagar 15 shekels de prata.
4. Se um escravo se casar com uma escrava, e esta cativa for posta em
liberdade, então nenhum dos dois poderá deixar o cativeiro. (...) 6. Se um homem deflorar a esposa virgem de outro homem ele deverá ser
morto. (...)
9. Se um homem se divorcia da primeira esposa deverá pagar para ela uma mina
de prata. (...)
12. Se um homem for acusado de feitiçaria, mas contra ele não houver provas, então esse homem deverá passar pelo “Julgamento Divino”. Se ele for inocente,
deverá receber 3 shekels de prata daquele que o acusou.
13. Se uma mulher for acusada de infidelidade deverá passar pelo “Julgamento divino”. Se for inocente, seu acusador deverá lhe pagar a terça parte de uma
mina de prata. (...)
15. Se um homem devolver o escravo fugido a outro homem deverá receber 2 shekels de prata. (...)
16. Se um homem furar o olho de outro homem deverá pagar meia mina de
prata. (KRAMER, 1954)
Outro monumento interessante para o estudo da legitimação régia durante a III Dinastia de
Ur é o hino de autoelogio a Shulgi - segundo monarca da dinastia - datado de aproximadamente
2100-2000 a.C. (observar Texto 04: Hino de autoelogio a Shulgi – Fragmento D).
Texto 04: Hino de autoelogio a Shulgi (Fragmento D) – Linhas 1 a 31.
1-13. Ó meu rei, grande touro, dragão com olhos de leão! Pastor Shulgi, (...)
poderoso, digno de heroísmo! Homem justo, investido com justiça por Utu! Leopardo feroz (...) touro desenfreado que nasceu para ser um grande
animal! Uma barba de lápis-lazúli, um peito sagrado - maravilhoso de se ver! Ó
rei Shulgi, nomeado por An com um bom nome! Bom pastor, dotado de força por Enlil, Shulgi, o amado de coração de Ninlil! (...)
14-17. Ó, meu rei, quem é tão poderoso quanto você e quem é capaz de rivalizar
com você? De fato, quem é desde o nascimento tão rico em compreensão quanto
você? Que seu heroísmo brilhe e que você possa ser respeitosamente elogiado!
18-31. Você destrói os inimigos, você é poderoso, você é corajoso, quando está
em Ekur, nas terras estrangeiras hostis você saqueia cidades; como um leão
ofegante. Você lança palavras raivosas contra o povo das terras estrangeiras que são hostis a Nanna. Você é adornado com esplêndidos chifres (...) você traz
alegria a Enlil. (KLEIN, 1981)
Ao analisarmos o conteúdo das inscrições é possível notar o forte teor propagandístico do
monumento. Primeiramente, vemos Shulgi sendo apresentado como um grande herói poderoso e
justo, ainda nas linhas 1-13 é dito que o monarca é amado e protegido pelos deuses, e que recebeu
inúmeras dádivas dos mesmos; os atributos da sua virilidade masculina, como a barba e o belo
peitoral, também são evocados. Nas linhas 14-17 vemos um questionamento, quem poderia ser
capaz de se equiparar a um monarca tão sábio e poderoso? Já nas linhas 18-31 notamos a forte
ênfase dada ao sentimento nacionalista, os monarcas de Ur buscaram divulgar a imagem de uma
Mesopotâmia unida cujo principal inimigo seriam os estrangeiros, Shulgi é mostrado como uma
figura raivosa - um leão ofegante - que destrói as terras estrangeiras hostis ao culto do deus lua,
Nanna. Para Vacin (2011, p.22), os hinos de Shulgi constituem um corpus de literatura
propagandística, repleto de frases e alusões que buscam criar a imagem de um herói sobre-humano,
justo e sábio.
Após a análise dos monumentos fica nítido o contraste entre o Império de Acádia e a III
dinastia de Ur, apesar das similitudes iniciais em relação à deificação régia, ao apoio divino e ao
caráter guerreiro do rei (este último com consideráveis mudanças em cada um dos contextos aqui
explanados). Os reis acadianos focalizaram em sua ideologia real o aspecto belicoso, mostrando-
se como ímpios guerreiros que silenciavam qualquer rebelião contra seu reinado, seja ela, interna
ou externa. O estado acadiano foi o primeiro sistema imperial da Mesopotâmia, as antigas cidades-
Estados autônomas não aceitaram de bom grado o novo governo centralizado e sempre que
possível se revoltaram contra os acadianos, que por sua vez reinventam a ideologia real passando
a enfatizar em seus monumentos o poderio militar, uma clara tentativa de intimidar futuras
rebeliões; os monarcas de Ur, por sua vez, queriam ser lembrados/vistos como autoridades
nacionais, homens cultos e justos que traziam prosperidade ao seu território destruindo aqueles
que representavam o caos (estrangeiros). A nova dinastia buscou desenvolver uma identidade
comum para todo território – a de mesopotâmios –, para tal, unificaram os pesos e as medidas,
criaram uma complexa burocracia e construíram a imagem de um inimigo em comum - o outro,
os “bárbaros”. Essas medidas visavam centralizar o poder e evitar as rebeliões internas (um grande
problema enfrentado por seus predecessores acadianos). A dinastia propagandeou um novo
modelo de rei, o senhor de todo o país, uma figura ímpia e destrutiva fora de suas terras que esmaga
qualquer levante estrangeiro, pois, o principal inimigo imperial encontrava-se para além das suas
fronteiras. Eis a nova ideologia vigente.
Portanto, fica nítido a grande importância de se analisar as razões políticas, sociais,
econômicas e culturais que levaram as mudanças no modelo da realeza e sua propaganda na
Mesopotâmia, em especial durante esses dois períodos (Acádia e Ur III). O tema possui grande
relevância para os estudos da assiriologia e para os debates historiográficos sobre o Antigo Oriente
Próximo. Esse trabalho, portanto, insere-se como uma contribuição a esse campo de estudos tão
esquecido no Brasil.
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